ISBN: 978-85-61946-63-0
4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil
DESIGUALDADES DE GÊNERO NO ROMANCE “SOMOS TODOS
INOCENTES”
Ângela Maria Macedo de Oliveira1
Universidade Estadual do Piauí – UESPI
RESUMO
Este texto discute as diferenças de gênero no romance “Somos Todos Inocentes”,
de O. G. Rego de Carvalho, na análise de alguns trechos da obra, estes revelam um
contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à
sexualidade. A categoria conceitual utilizada foi gênero que discute como são
criadas historicamente as relações entre o masculino e o feminino. A metodologia
empregada para a construção da narrativa foi a análise do romance enquanto
fonte histórica bem como o uso da história oral através de entrevistas do tipo
trajetórias de vida. Portanto, a partir da representação literária ficava expresso que
o uso da sexualidade feminina fora dos padrões tradicionais de gênero, ou seja,
fora do casamento a moça deveria ser castigada, o que expressava também uma
defesa e/ou uma contestação em relação à manutenção da dupla moral sexual, a
qual restringia a sexualidade feminina, devendo as moças manter-se virgens até as
núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Os preceitos sociais buscavam manter a
sexualidade feminina sob controle e vigilância. Já ao homem era concedida total
liberdade, pois a virilidade era medida pela quantidade de experiências sexuais
que detinham, pela freqüência a prostíbulos, pela audácia com que se
movimentavam na sociedade.
Palavras-chave: História. Literatura. Gênero. Sexualidade Feminina.
Introdução
Este texto discute as diferenças de gênero no romance “Somos Todos
Inocentes”, de O. G. Rego de Carvalho, na analise de alguns trechos da obra, estes
revelam um contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à
sexualidade femininos. O romance é ambientado na primeira capital do Estado do
Piauí, Oeiras, nos fins da década de 1920, cidade marcada por diferenças sociais,
tradicionalismos, era cercada por fazendas e sobrados.
1
Graduada em História pela Universidade Estadual do Piauí, Campus Clóvis Moura (2006); Especialista em
História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2008) e Mestre em História pela Universidade Federal
do Piauí – UFPI (2009), Professora Efetiva da UESPI Campus Possidônio Queiroz (2012).
A cidade de Oeiras não estava ainda urbanização e modernizada haja vista
que o transporte ainda era feito a cavalos, não existia luz na cidade – à noite para
iluminar as casas utilizavam velas estearinas, candeeiros – conforme nos
informam os personagens do romance “[...] – espere que vou acender o petromax
[...] com a caixa de fósforos na mão. O velho candeeiro iluminava pouco, lutando
por falta de querosene, e era fraca a luz da vela sobre a mesinha do oratório”
(CARVALHO, 2003: 166). De acordo com Santos (2010) a paisagem urbana
oeirense começava a sofrer alterações consideradas como ‘ecos de modernidade’
nas décadas de 1930 e 1940, desde modificações arquitetônicas, calçamento e
chegada da luz elétrica ocorrida em 1937.
A literatura tem sido utilizada pelos historiadores como objeto e fonte de
pesquisa. Esta última perspectiva, literatura como documento, foi utilizada pela
primeira vez no Brasil, na década de 1980, por Nicolau Sevcenko (2003), na obra
“Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República”.
Utilizar a literatura como fonte para o historiador, algo ousado ainda no país, a
partir dos escritos de cunho políticos e sociais de Lima Barreto e Euclides da
Cunha, procurava compreender a grande crise histórica que marcou a entrada do
Brasil na modernidade após a Abolição e a República.
Para Sevcenko (2003) a história procura o ser das estruturas sociais, a
literatura fornece uma expectativa do vir-a-ser, possibilidades de acontecimentos,
e isto é o que procuramos demonstrar ao analisar trechos do romance Somos Todos
Inocentes como aspectos referentes ao cotidiano da sociedade piauiense da
primeira metade do século XX, sociedade marcada por tradicionalismos,
religiosidade e de provincianismo.
Polaridades a partir da dupla moral sexual: discussões de gênero como
desconstrução dos papéis tradicionais
O romance Somos Todos Inocentes nos revela um contexto social que
expressava valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade, ou seja uma dupla
moral sexual, a qual restringia a sexualidade feminina. Assim, as moças deveriam
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manter-se virgens até as núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Em outras
palavras, os preceitos sociais buscavam manter a sexualidade feminina sob
controle e vigilância. Já ao homem era concedida total liberdade, pois a virilidade
era medida pela quantidade de experiências sexuais que tinham. Verifica-se isso,
por exemplo, no diálogo das personagens Dulce e Amparo, quando a primeira
relata à segunda: “ – lembras de Pedrina na festa? Se roçando nele (Raul). Pois na
volta se esconderam no mato e só vieram muito depois, quando já tínhamos
decidido procurá-los. Ela trazia as costas sujas de areia, e Raulzito dava a
impressão de ...”(CARVALHO, 2003:129).
A representação feminina expressa no diálogo acima desaprovava a
conduta da personagem Pedrina, comparando-a a um animal irracional, como
uma gata que se roça nos informa também como eram rígidos os valores no que
dizem respeito ao corpo e sexualidade feminina. No contexto da obra, verifica-se
que a personagem Dulce, ao relatar o ocorrido a outra personagem, o faz com
claro desejo de identificar naquilo uma atitude não adequada a uma moça, uma
vez que esta deve resguardar-se em suas intimidades sexuais até que venha casarse.
Outro exemplo dessa desigualdade de gênero retratada na obra pode ser
identificado, no que se refere á dupla moral religiosa, encontra-se na citação a
seguir, longa, mas necessária:
Pedrina [...] passara a noite insone e cheia de pressentimentos maus.
Agora que as regras suspenderam e vinha sendo acometido de náuseas, já
não tinha qualquer dúvida [...] decidiu-se procurar Raul, e desde as sete
horas rondava a esquina do Sobrado [...] só tarde Raul apareceu [...] ela
admirou mais uma vez seu porte elegante, as pernas grossas, os
músculos rijos dos braços. E se acercou dele no momento em que
montava o alazão. – Raul, preciso falar com você. É urgente. O jovem, que há
uma semana se ocultava dela [...] – Eu lhe disser que não viesse cá [...] Pedrina
estremeceu ante o olhar severo com que acolhia, [...] confessou tudo: Estou grávida. – Eu sabia – respondeu Raul com impaciência, dando-lhes as
costas. – Não, não se vá agora! – e ela tomou as rédeas nervosamente.
Você tem de casar comigo, Raul! – Não a seduzi – replicou ele, exaltado. Você já
era à-toa quando ... Pedrina implorou mais uma vez: - Não me despreze,
Raulzinho! [...] não se preocupe, que há remédio. – Remédio, que
remédio? - perguntou a jovem, confusa. – Quando eu voltar do ‘Junco’
cuidaremos disso. – Você se casará? (Ela não sabia de outra solução.). Raul
limpou o suor da testa e, vendo-a mais tranqüila, criou coragem: - O aborto,
menina! Cuidaremos disso quando eu voltar [...] Abortar não é crime, Raul? E
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eu não posso ... quero meu filho [...] – Aja como quiser. Uma cousa lhe
asseguro: você não se casará comigo. Não sou da sua laia. Pedrina empalideu e
gaguejou. Sua posição social perdera-a e agora os separava
(CARVALHO, 2003: 141-2).
A partir do trecho acima citado, verifica-se que Pedrina, depois que
descobre estar grávida, busca insistentemente cuidar da honra, para não ficar
falada, antes que “a vergonha começasse a aparecer” e indagava para Raul “Você
tem de casar comigo, Raul!”, aquele debochava dela afirmando que: “ – Não a seduzi
– replicou ele, exaltado. Você já era à-toa quando...”. A culpa recai, portanto, sobre os
ombros femininos, haja vista que seu comportamento fugia aos padrões
tradicionais de sexualidade feminina, que eram controlados e vigiados,
demonstrando valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade feminina. O
jovem separava as moças em duas categorias binárias: moça para casar e moça
para brincar “à-toa”.
O conceito de gênero nos ajuda a analisar essas questões para depois
desconstruirmos tais desigualdades quanto a dupla moral sexual que restringia a
sexualidade feminina, uma vez que as moças deveriam manter-se virgens até as
núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Os preceitos sociais buscavam manter a
sexualidade feminina sob controle e vigilância. Já ao homem era concedida total
liberdade.
No diálogo acima também fica evidente que os preceitos sociais eram
rigorosos quanto a união entre pessoas de classes sociais diferentes quando Raul
diz: “uma cousa lhe asseguro: você não se casará comigo. Não sou da sua laia”. Raul era
médico recém-formado, voltara a sua cidade natal, morava em Sobrado e
pertencia à família Ribeiro, um dos mais importantes redutos políticos da cidade, e
Pedrina, filha do sacristão – este passava os dias entre os bordéis e a Igreja; quanto
a sua mãe, já havia morrido.
Questões sobre a maternidade não desejava também faz parte do enredo:
“[...] Raul limpou o suor da testa e, vendo-a mais tranqüila, criou coragem: - O
aborto, menina! Cuidaremos disso quando eu voltar [...] Abortar não é crime, Raul
[...]? (CARVALHO, 2003: 142).”. Aborto, Assunto apenas feminino? O seu corpo
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lhe pertence? Ou existem discursos religiosos, médicos, sociais que lhes incidem?
Ordenando sua conduta?.
O corpo feminino é um lugar de discursos plurais. Corpo não é seu, é
construído por práticas sociais. Os silêncios sobre o corpo feminino, segundo
Michele Perrot “as raízes do silêncio acerca do corpo da mulher trata-se de uma
longa duração, inscrito na construção do pensamento simbólico da diferença entre
os sexos” (PERROT, 2003: 20). Entre esses silêncios, encontram-se temas como o
aborto – o qual, na França, na década de 1970, foi alvo das lutas feministas – o
direito de escolarização, o de ter ou não um filho, sem as amarras dos discursos
médicos, religiosos, jurídicos, lutas essas que culminaram, em 1975,
com a
aprovação com a Lei Veil.
“[...] Como esconder esta vergonha? Só com o aborto ... E arrependendo-se
de tê-lo admitido, por um instante: Não abortar nunca! Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro será minha valença. Ela me ajudará” (CARVALHO, 2003: 142)”.
O aborto no Brasil em pleno século XXI ainda é considerado crime pelo Código
Penal, embora já tenha havido diversas tentativas de descriminalizá-lo.
Assim, considera-se o aborto crime contra a vida com exceção nos casos de
estupro, quando há risco de vida ou saúde da gestante e nos casos de anencéfalos
julgados favoravelmente em abril de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal. No
entanto, existe um anteprojeto de novo Código Penal que prever possibilidade de
aborto para mulheres sem condições de criar filho, segundo o qual elas poderão
abortar até a 12ª semana, conforme expresso no artigo 128:
não há crime de aborto se: I – houver risco à vida ou à saúde da gestante;
II – a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego
não consentido de técnica de reprodução assistida; III – comprovada a
anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias
que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por
dois médicos; IV – por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação,
quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta
condições de arcar com a maternidade. (MULHER sem condições de
criar filho poderia abortar até a 12ª semana. Disponível em:
<www.http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/anteprojeto-denovo-codigo-penal-vai-prever-possibilidade-de-aborto.html> Acesso: 20
de jul. de 2012).
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A personagem Pedrina não queria o aborto provocado, mesmo sem
condições de criar a criança, considerava um crime. No entanto, pelas condições
de insalubridade de sua moradia, chão escorregadio, ocorre, a partir de uma
queda, o aborto natural.
[...] o estomago se lhe revolvia em náuseas, e ela começou a suar frio, com
a impressão de que ia morrer [...] ergueu-se a custo. O ventre
intumescido, acochado por cordões, maltratava-a muito. Olhou o chão e
estremeceu. Como sempre, estava escorregadio, cheio de lama e resto de alimentos
[dormiu e no dia seguinte] levantou-se no escuro, com dificuldade, e
vestiu a roupa por cima do chambre. À porta do quarto, tropeçou no baú
[...] - Se eu banhar agora, talvez o abatimento diminua [...] o chão
acordara escorregadio como nunca [...] o pé resvala, fazendo-a cair de bruços
no solo, com uma dor terrível no ventre. Meu Deus, juro que não queria! [...] que
eu morra, mas salve meu filho [...] a custo Pedrina conseguiu arrastar-se até
a rede. A dor aumentara e em suas pernas corria agora um filete de sangue [...] o
ventre começava a revolver-se, contraindo-se para expelir um pequeno ser ainda
em formação, que fecundara e morrera em suas entranhas (CARVALHO,
2003: 181-4).
Quanto ao aborto consentido pela mãe, [este] considerado crime na
sociedade brasileira, já em sociedades europeias o aborto, analisado como aspecto
cultural e não natural, passou a ter diversos significados históricos e usos, a partir
dos costumes sociais diversos. Assim, as práticas abortivas, antes algo decidido
pelo masculino, na modernidade, passaram a ser relacionadas apenas como
práticas femininas, conforme analisado por Joana Maria Pedro, a seguir:
Foi na modernidade que os corpos femininos das mulheres tornaram-se
alvo do controle [...] as práticas contraceptivas abortivas, infanticidas e
ainda, o abandono de crianças passaram a ser relacionadas a práticas
femininas. Em diferentes culturas, o aborto e o infanticídio têm sido
sancionados pelo costume, têm amparo coletivo, e não são considerados
crimes passíveis de punição [...] na Antiguidade e na sociedade medieval,
o infanticídio e o abandono de crianças foram práticas por demais
corriqueiras. Combatidas pela Igreja e pode setor público, foram
mantidas pelos casais. Essas práticas, no entanto, passaram a ser
associadas às mulheres pobres, e não mais aos homens. Assim, se na
Antiguidade era o pai quem decidia aceitar ou recusar a criança, na Idade
Média essa atribuição passou a ser da mãe. É a ela que os penitenciais, os
artigos, os interrogatórios e os párocos da Igreja dirigem-se. As práticas
do abandono, do aborto e do infanticídio tornaram-se um pecado de
mulher [...] os processos de urbanização, de aburguesamento, de
problematização da vida, têm permeado tal mudança” (FLANDRIN
apud PEDRO, 2003: 161-2).
No caso da personagem Pedrina, ocorrido o aborto natural, era preciso
fazer curetagem, quando entrava em cena a personagem do boticário. O trecho
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abaixo relata um exemplo de exercício de sexualidade feminina, no qual a moça
deveria ser castigada por sua conduta considerada desviante. O boticário (médico
prático) da cidade, ao fazer a curetagem sem anestesia, demonstrava que “as
mulheres tinham que sofrer por onde tinham pecado” (VICENT, 1992:253). Ele
confirma tal postura ao afirmar que “[...] sim, eu poderia tê-la anestesiado antes.
Mas, preferi que ela sofresse tudo consciente”. A citação é longa, mas necessária.
O boticário colocou a valise sobre o baú e olhou detidamente para
Pedrina. Era o que eu imaginava. Em seguida, escancarou a janela, a fim
de que a luz da manhã facilitasse o diagnóstico [...] Dulce viu Pedrina
meio nua, com as pernas afastadas, fora da rede, o ventre a expelir um
pequenino ser com vaga aparência humana. - Meu Deus, o aborto! Dulce
tremia encostada na parede em que se amparou. Nunca imaginava que
houvesse tanto sofrimento no parto. Até num simples aborto! [...] (Dulce
começou a mexer com a volta, comprimindo a medalha entre os dedos.) Ainda não. Seu Ernesto saiu e logo voltou com uma bacia de água
fervente. Daí a instantes, Dulce sentiu cheiro ativo de clorofórmio de
iodo. “Meu Deus, salvai Pedrina [esta] dormia profundamente, sob o
efeito do anestésico. Seu corpo, cobria-o com um lençol limpo. No rosto
descorado permanecera o sofrimento: era como se sonhasse que padecia
as dores de um parto. [...] Dulce abaixou a vista, também emocionada. Diga-me uma coisa, seu Ernesto – perguntou em seguida, para satisfazer
a curiosidade. Qual a razão por que o Senhor não deu a anestesia logo no
começo? Pedrina não teria dores. Seu Ernesto, que já havia apanhado a
maleta para sair, parou junto à porta: - Sim, eu poderia tê-la anestesiado
antes. Mas, preferi que ela sofresse tudo consciente. - Como? – insistiu
Dulce, abismada. Seu Ernesto não respondeu. No entanto, o brilho de
seus olhos explicava tudo (CARVALHO, 2003:185-7).
A educação sexual constituía tabu, segredo inviolável. As moças não eram
orientadas sobre a noite de núpcias, nem pelas revistas, nem pelas mães, muito
menos pela escola. Ainda não havia esse tipo de instrução, a palavra virgindade
ou sexo não aparecem em nenhum, dos veículos de informações pesquisados do
período, como por exemplos, romances, crônicas jornalísticas, entrevistas, revistas.
Em seu lugar, apareciam palavras, como: ‘dignidade’, ‘pérola’, ‘bem precioso’. Em
suma, era tabu falar sobre sexo.
Neste período, os homens faziam seleção, quando iam casar: somente
casavam com moças de família, “as honestas”, em oposição às “mulheres para
brincar, as fáceis”. Moças para casar versus moças para brincar, assim os homens
classificavam as moças de forma binária. No imaginário social, as artistas, em
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geral, tinham ‘fama’ de serem brinquedinhos masculinos, como demonstra a
crônica a seguir:
[...] está o honrado prefeito do Distrito Federal, o coronel Dilcídio
Cardoso, a repetir a história daquele antigo filme [...] o reino por uma
famosa e conhecida estrela do rádio. Tomou-se o prefeito de amores pela
cantora lusitana Ester de Abreu e quando se pensava que o Flirt era “pra que é”,
vem o honrado prefeito e esclarece que é mesmo “prá casar” [...] por que a sua
noiva é artista de rádio? [...] as cantoras de rádio, esta pecha infamante [...] o Rio
de Janeiro estava até tranqüilo quando dona Ester veio com sua beleza e
seu “it” perturbar a pacatez da família getulista (O CASAMENTO do
prefeito. O Dia, Teresina, p.4, 17 de jan. de 1954).
A imagem do feminino na sociedade piauiense era percebida também dessa
forma binária, como mencionado pela crônica anterior, separando-se as moças
entre evas, levianas, mal-faladas, perdidas de um lado, representada pela atriz, e
moça de família, para casar, de outro. As moças mal-faladas eram para passar o
tempo, para divertimento, não eram levadas a sério, o destino delas já estava
traçado.
A dupla moral sexual era rígida, as mulheres eram separadas pelos olhares
masculinos em “mulher para casar” e “mulher para brincar”. O homem era o
provador, de senso prático, e as mulheres ‘deveriam’ pensar duas vezes, mesmo
com a ‘tentadora’ e ‘provocante’ prova de amor que o noivo ou o namorado
solicitavam às moças. Mas estas, “crivadas de tantas dúvidas, essas mulheres às
vezes pareciam querer atirar tudo para o alto” (SANTOS, 1998:58).
Maria Pompeu tinha 20 anos. Já era atriz conhecida. Sentiu o drama de
ser mulher antes de Leila Diniz: - Em 58 perdi a virgindade com um
rapaz com o qual estava noiva há dois anos – lembra. – Eu pretendia me
casar com ele, que era muito carinhoso e todo dia ia me pegar na Maison
de France, onde eu estudava Francês e fazia minhas peças. Depois que
perdi a virgindade o sujeito não quis mais saber de casamento. Foi uma
tragédia em cinco atos. Como eu ia casar se não era mais virgem? Ser
mulher era fazer muitas perguntas e nem sempre achar respostas
razoáveis (SANTOS, 1998: 49).
“Conservando sempre a nossa dignidade cristã [...] desta maneira teremos
assegurado a salvação da nossa alma” (NOSSO dever. O Dominical, Teresina, p.3,
10 de set. de 1950). Este trecho apresenta uma das estratégias do discurso católico,
para que as jovens conservassem sua pureza ou dignidade cristã até o casamento
era a prescrição de um prêmio, a salvação da alma. Há na crônica um
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ressentimento evidente em alguns trechos, como: “hoje, infelizmente observamos
na vida de tantas jovens que em meio ao lodaçal do mundo, esquecem a
sublimidade de sua vocação cristã” (NOSSO dever. O Dominical, Teresina, p.3, 10
de set. de 1950). Portanto, algumas práticas eram consideradas como desviantes,
caso do sexo antes do casamento
Como as moças de família deveriam manter o recato, ser cordatas – o que as
diferenciava das moças mal-faladas – era prescrito que estas não comparecessem a
todas as festas dançantes, visto que não seria prudente ao comportamento
feminino, conforme nos informou Celso Barros Coelho,
As moças procuravam ser recatadas era do próprio estilo da sociedade,
mas, havia as mal faladas, quando namoravam abertamente. Também
quando demoravam demais nas praças, ou seja, ficavam nas praças
depois das 21 h. Ou, quando eram freqüentes a todas as festas do Clube
dos Diários, também quando apareciam com namorados diferentes, as
moças que iam a todas as festas eram consideradas namoradeiras
(COELHO, 2008:4).
As moças raramente andavam sozinhas, andavam sempre acompanhadas,
por amigas de mesma idade, ou pelos irmãos. Dona Iracema Silva nos revela que
seu pai permitia que ela fosse a todas as festas, desde que acompanhada pelo
irmão Omar. Não importava que fosse a todas as festas, o que importava era a
vigilância, mais uma vez dona Iracema Silva nos revela as pistas de táticas que
utilizava, frente ao controle e rigidez prescritos ao público feminino.
Dona Iracema Silva tinha dois irmãos mais velhos (Antônio e Omar), mas
preferia ir acompanhada pelo irmão Omar, pois, este a deixava à vontade com
mais liberdade. Como Omar não dançava, ao contrário da irmã, quando chegavam
ao Clube dos Diários se separavam, ficavam em mesas diferentes, se encontrando
somente na saída da festa, para voltarem juntos para casa, conforme nos informou,
Eu ia acompanhada de meu irmão Omar ou com amigas, meu pai sempre
deixava ir ao cinema, e também a todas as festas, mas, sempre acompanhada do
meu irmão Omar dos Santos Rocha, pois ele é seis anos mais velho do que
eu, mas, ele sempre me deixava à vontade, quando eu chegava no
cinema, ele não sentava do meu lado, ele me deixava descontraída, porque, se eu
não tivesse a liberdade de conversar com alguém, não poderia namorar. Quando
íamos ao Clube dos Diários, como meu irmão não gostava de dançar, ele
ficava conversando com seus amigos, e, ele de longe só me observava.
Ficávamos em mesas diferentes, mas, quando voltávamos para casa era
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sempre juntos, ele sempre foi muito compreensivo e amigo (SILVA,
2008:5).
A moral prescrevia que as moças não deveriam andar desacompanhadas, os
pais deixavam suas filhas saír[em] mediante a extensão de sua vigilância. Como os
pais não iam, nomeavam seus substitutos, os filhos (homens). Estes seriam os
olhos dos pais, vigiariam e controlariam suas irmãs, passo a passo.
Em outro dialogo do romance Somos Todos Inocentes entre Amparo e Dulce,
esta ultima afirmou: “Raul infelicitou Pedrina”. A personagem Amparo responde:
“- Raul não procederia assim, se ela não o provocasse”. Dulce [a] recrimina sua
atitude quando afirma: “[...] – Devias ser menos severa. Amparo, Raul não é o
inocente que imaginas. – Admito que não. Mas é homem, se me entendes. –
Desejas então empurrar Pedrina para os cabarés? Sua mãe faleceu lá”
(CARVALHO, 2003: 152-3).
Nestes trechos, o feminino e o masculino são
pensados como categorias naturais a-históricas, com identidades sexuais
essencialistas, lembrando que é preciso desconstruir tais discursos a partir da
discussão de gênero, enquanto categoria útil de análise, que expressa como são
criadas historicamente as relações entre o masculino e o feminino.
Em outro trecho, temos exemplos dessa discussão da identidade feminina
pensada como natural,essencialista: a de submissão frente ao
masculino,
representada pela personagem Amparo, noiva de Raul. Ao homem era concedida
total liberdade, pois a virilidade era medida pela quantidade de experiências
sexuais que tinham, pela frequência a prostíbulos, pela audácia com que se
movimentavam na sociedade. No entanto, mudanças já estavam ocorrendo na
Europa e em Teresina quanto à igualdade de gêneros, mas Oeiras continuaria
ainda tradicionalista.
[...] era tão comum a existência de amantes na vida dos homens de Oeiras!
Chegava a ser uma tradição [...] Amparo sabia que hoje ou amanhã Raul
teria as suas, porém não se conformava. Os tempos já não eram mais os
mesmos. Estavam em ’29. As mulheres da Europa vinham há muito lutando por
igualdade de direitos. Até em Teresina se falava nisso. Só em Oeiras é que se
admitia uma situação esdrúxula daquelas, e ai de quem ousasse combatê-la. ‘Se
Deus serviu de uma costela de Adão para moldar Eva – explicou o padre num
sermão – é porque quis tornar a mulher dependente do homem” (CARVALHO,
2003: 160)
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Gênero segundo Joan Scott (1995) é uma forma primária de dar significado
às relações de poder, expresso no romance a partir da dupla moral sexual. O
conceito também nos ajuda a pensar no caráter social das distinções baseadas no
sexo, rejeitando o determinismo biológico que determinava as diferenças entre
feminino e masculino.
Considerações finais
A análise de trechos do romance “Somos Todos Inocentes”, de O. G.
Rego de Carvalho, revela um contexto social que expressava valores rígidos em
relação ao corpo e à sexualidade feminina, exemplificando como as relações de
poder são construídas historicamente, determinando papéis sexuais diferenciados
para o feminino e para o masculino, como destaca Joana Maria Pedro:
Diversos textos, como sermões, artigos de jornais e revistas, pareceres
jurídicos, anúncios, notícias, etc, foram produto em geral, de escrita
masculina, suportes para concepções de corpos femininos instituídos em
determinadas relações de gênero. Nesses textos, os homens falam dos
corpos das mulheres como pensam que eles são, ou gostariam que
fossem. São maneiras de dar sentido ao outro, portanto, definidas por
quem forja tais representações, embora aspirem à universalidade. Foram
constituídas no interior de relações de poder, portanto, num campo de
concorrências e competições, no qual as relações de gênero
desempenham um papel preponderante (PEDRO, 2003: 160)
O conceito de gênero nos motiva a pensar como são construídas essas
relações e que é preciso desfazer noções abstratas de “mulher” e “homem”, como
identidades únicas, a-históricas, essencialistas, para pensar a mulher e o homem
como diversidades no bojo da historicidade de suas inter-relações. O contexto
histórico analisado nos indica que era necessário redefinir e o alargar as noções
tradicionais quanto a sexualidade feminina e masculina, portanto era preciso
quebrar a lógica da polaridade ou separação binária: moça para casar versus moça
para brincar. Assim como quanto a questão do aborto, que, no romance, tem como
a única “castigada” a personagem feminina, o que demonstra desigualdade e
diferenças de gênero no tocante à sexualidade, e, quando existe uma gravidez
Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias
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não planejada, “apesar de a gravidez indesejada não ser apenas resultado de atos
femininos, somente as mulheres têm sido responsabilizadas por tentar
interrompê-la. A exclusividade dessa responsabilidade é emblemática da
hierarquia existente nas relações de gênero” (PEDRO, 2003: 166).
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