ISBN: 978-85-61946-63-0 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil DESIGUALDADES DE GÊNERO NO ROMANCE “SOMOS TODOS INOCENTES” Ângela Maria Macedo de Oliveira1 Universidade Estadual do Piauí – UESPI RESUMO Este texto discute as diferenças de gênero no romance “Somos Todos Inocentes”, de O. G. Rego de Carvalho, na análise de alguns trechos da obra, estes revelam um contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade. A categoria conceitual utilizada foi gênero que discute como são criadas historicamente as relações entre o masculino e o feminino. A metodologia empregada para a construção da narrativa foi a análise do romance enquanto fonte histórica bem como o uso da história oral através de entrevistas do tipo trajetórias de vida. Portanto, a partir da representação literária ficava expresso que o uso da sexualidade feminina fora dos padrões tradicionais de gênero, ou seja, fora do casamento a moça deveria ser castigada, o que expressava também uma defesa e/ou uma contestação em relação à manutenção da dupla moral sexual, a qual restringia a sexualidade feminina, devendo as moças manter-se virgens até as núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Os preceitos sociais buscavam manter a sexualidade feminina sob controle e vigilância. Já ao homem era concedida total liberdade, pois a virilidade era medida pela quantidade de experiências sexuais que detinham, pela freqüência a prostíbulos, pela audácia com que se movimentavam na sociedade. Palavras-chave: História. Literatura. Gênero. Sexualidade Feminina. Introdução Este texto discute as diferenças de gênero no romance “Somos Todos Inocentes”, de O. G. Rego de Carvalho, na analise de alguns trechos da obra, estes revelam um contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade femininos. O romance é ambientado na primeira capital do Estado do Piauí, Oeiras, nos fins da década de 1920, cidade marcada por diferenças sociais, tradicionalismos, era cercada por fazendas e sobrados. 1 Graduada em História pela Universidade Estadual do Piauí, Campus Clóvis Moura (2006); Especialista em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (2008) e Mestre em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI (2009), Professora Efetiva da UESPI Campus Possidônio Queiroz (2012). A cidade de Oeiras não estava ainda urbanização e modernizada haja vista que o transporte ainda era feito a cavalos, não existia luz na cidade – à noite para iluminar as casas utilizavam velas estearinas, candeeiros – conforme nos informam os personagens do romance “[...] – espere que vou acender o petromax [...] com a caixa de fósforos na mão. O velho candeeiro iluminava pouco, lutando por falta de querosene, e era fraca a luz da vela sobre a mesinha do oratório” (CARVALHO, 2003: 166). De acordo com Santos (2010) a paisagem urbana oeirense começava a sofrer alterações consideradas como ‘ecos de modernidade’ nas décadas de 1930 e 1940, desde modificações arquitetônicas, calçamento e chegada da luz elétrica ocorrida em 1937. A literatura tem sido utilizada pelos historiadores como objeto e fonte de pesquisa. Esta última perspectiva, literatura como documento, foi utilizada pela primeira vez no Brasil, na década de 1980, por Nicolau Sevcenko (2003), na obra “Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República”. Utilizar a literatura como fonte para o historiador, algo ousado ainda no país, a partir dos escritos de cunho políticos e sociais de Lima Barreto e Euclides da Cunha, procurava compreender a grande crise histórica que marcou a entrada do Brasil na modernidade após a Abolição e a República. Para Sevcenko (2003) a história procura o ser das estruturas sociais, a literatura fornece uma expectativa do vir-a-ser, possibilidades de acontecimentos, e isto é o que procuramos demonstrar ao analisar trechos do romance Somos Todos Inocentes como aspectos referentes ao cotidiano da sociedade piauiense da primeira metade do século XX, sociedade marcada por tradicionalismos, religiosidade e de provincianismo. Polaridades a partir da dupla moral sexual: discussões de gênero como desconstrução dos papéis tradicionais O romance Somos Todos Inocentes nos revela um contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade, ou seja uma dupla moral sexual, a qual restringia a sexualidade feminina. Assim, as moças deveriam Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 2 manter-se virgens até as núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Em outras palavras, os preceitos sociais buscavam manter a sexualidade feminina sob controle e vigilância. Já ao homem era concedida total liberdade, pois a virilidade era medida pela quantidade de experiências sexuais que tinham. Verifica-se isso, por exemplo, no diálogo das personagens Dulce e Amparo, quando a primeira relata à segunda: “ – lembras de Pedrina na festa? Se roçando nele (Raul). Pois na volta se esconderam no mato e só vieram muito depois, quando já tínhamos decidido procurá-los. Ela trazia as costas sujas de areia, e Raulzito dava a impressão de ...”(CARVALHO, 2003:129). A representação feminina expressa no diálogo acima desaprovava a conduta da personagem Pedrina, comparando-a a um animal irracional, como uma gata que se roça nos informa também como eram rígidos os valores no que dizem respeito ao corpo e sexualidade feminina. No contexto da obra, verifica-se que a personagem Dulce, ao relatar o ocorrido a outra personagem, o faz com claro desejo de identificar naquilo uma atitude não adequada a uma moça, uma vez que esta deve resguardar-se em suas intimidades sexuais até que venha casarse. Outro exemplo dessa desigualdade de gênero retratada na obra pode ser identificado, no que se refere á dupla moral religiosa, encontra-se na citação a seguir, longa, mas necessária: Pedrina [...] passara a noite insone e cheia de pressentimentos maus. Agora que as regras suspenderam e vinha sendo acometido de náuseas, já não tinha qualquer dúvida [...] decidiu-se procurar Raul, e desde as sete horas rondava a esquina do Sobrado [...] só tarde Raul apareceu [...] ela admirou mais uma vez seu porte elegante, as pernas grossas, os músculos rijos dos braços. E se acercou dele no momento em que montava o alazão. – Raul, preciso falar com você. É urgente. O jovem, que há uma semana se ocultava dela [...] – Eu lhe disser que não viesse cá [...] Pedrina estremeceu ante o olhar severo com que acolhia, [...] confessou tudo: Estou grávida. – Eu sabia – respondeu Raul com impaciência, dando-lhes as costas. – Não, não se vá agora! – e ela tomou as rédeas nervosamente. Você tem de casar comigo, Raul! – Não a seduzi – replicou ele, exaltado. Você já era à-toa quando ... Pedrina implorou mais uma vez: - Não me despreze, Raulzinho! [...] não se preocupe, que há remédio. – Remédio, que remédio? - perguntou a jovem, confusa. – Quando eu voltar do ‘Junco’ cuidaremos disso. – Você se casará? (Ela não sabia de outra solução.). Raul limpou o suor da testa e, vendo-a mais tranqüila, criou coragem: - O aborto, menina! Cuidaremos disso quando eu voltar [...] Abortar não é crime, Raul? E Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 3 eu não posso ... quero meu filho [...] – Aja como quiser. Uma cousa lhe asseguro: você não se casará comigo. Não sou da sua laia. Pedrina empalideu e gaguejou. Sua posição social perdera-a e agora os separava (CARVALHO, 2003: 141-2). A partir do trecho acima citado, verifica-se que Pedrina, depois que descobre estar grávida, busca insistentemente cuidar da honra, para não ficar falada, antes que “a vergonha começasse a aparecer” e indagava para Raul “Você tem de casar comigo, Raul!”, aquele debochava dela afirmando que: “ – Não a seduzi – replicou ele, exaltado. Você já era à-toa quando...”. A culpa recai, portanto, sobre os ombros femininos, haja vista que seu comportamento fugia aos padrões tradicionais de sexualidade feminina, que eram controlados e vigiados, demonstrando valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade feminina. O jovem separava as moças em duas categorias binárias: moça para casar e moça para brincar “à-toa”. O conceito de gênero nos ajuda a analisar essas questões para depois desconstruirmos tais desigualdades quanto a dupla moral sexual que restringia a sexualidade feminina, uma vez que as moças deveriam manter-se virgens até as núpcias, como ‘anjo na terra’, contidas. Os preceitos sociais buscavam manter a sexualidade feminina sob controle e vigilância. Já ao homem era concedida total liberdade. No diálogo acima também fica evidente que os preceitos sociais eram rigorosos quanto a união entre pessoas de classes sociais diferentes quando Raul diz: “uma cousa lhe asseguro: você não se casará comigo. Não sou da sua laia”. Raul era médico recém-formado, voltara a sua cidade natal, morava em Sobrado e pertencia à família Ribeiro, um dos mais importantes redutos políticos da cidade, e Pedrina, filha do sacristão – este passava os dias entre os bordéis e a Igreja; quanto a sua mãe, já havia morrido. Questões sobre a maternidade não desejava também faz parte do enredo: “[...] Raul limpou o suor da testa e, vendo-a mais tranqüila, criou coragem: - O aborto, menina! Cuidaremos disso quando eu voltar [...] Abortar não é crime, Raul [...]? (CARVALHO, 2003: 142).”. Aborto, Assunto apenas feminino? O seu corpo Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 4 lhe pertence? Ou existem discursos religiosos, médicos, sociais que lhes incidem? Ordenando sua conduta?. O corpo feminino é um lugar de discursos plurais. Corpo não é seu, é construído por práticas sociais. Os silêncios sobre o corpo feminino, segundo Michele Perrot “as raízes do silêncio acerca do corpo da mulher trata-se de uma longa duração, inscrito na construção do pensamento simbólico da diferença entre os sexos” (PERROT, 2003: 20). Entre esses silêncios, encontram-se temas como o aborto – o qual, na França, na década de 1970, foi alvo das lutas feministas – o direito de escolarização, o de ter ou não um filho, sem as amarras dos discursos médicos, religiosos, jurídicos, lutas essas que culminaram, em 1975, com a aprovação com a Lei Veil. “[...] Como esconder esta vergonha? Só com o aborto ... E arrependendo-se de tê-lo admitido, por um instante: Não abortar nunca! Nossa Senhora do Perpétuo Socorro será minha valença. Ela me ajudará” (CARVALHO, 2003: 142)”. O aborto no Brasil em pleno século XXI ainda é considerado crime pelo Código Penal, embora já tenha havido diversas tentativas de descriminalizá-lo. Assim, considera-se o aborto crime contra a vida com exceção nos casos de estupro, quando há risco de vida ou saúde da gestante e nos casos de anencéfalos julgados favoravelmente em abril de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, existe um anteprojeto de novo Código Penal que prever possibilidade de aborto para mulheres sem condições de criar filho, segundo o qual elas poderão abortar até a 12ª semana, conforme expresso no artigo 128: não há crime de aborto se: I – houver risco à vida ou à saúde da gestante; II – a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; III – comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos; IV – por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade. (MULHER sem condições de criar filho poderia abortar até a 12ª semana. Disponível em: <www.http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/anteprojeto-denovo-codigo-penal-vai-prever-possibilidade-de-aborto.html> Acesso: 20 de jul. de 2012). Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 5 A personagem Pedrina não queria o aborto provocado, mesmo sem condições de criar a criança, considerava um crime. No entanto, pelas condições de insalubridade de sua moradia, chão escorregadio, ocorre, a partir de uma queda, o aborto natural. [...] o estomago se lhe revolvia em náuseas, e ela começou a suar frio, com a impressão de que ia morrer [...] ergueu-se a custo. O ventre intumescido, acochado por cordões, maltratava-a muito. Olhou o chão e estremeceu. Como sempre, estava escorregadio, cheio de lama e resto de alimentos [dormiu e no dia seguinte] levantou-se no escuro, com dificuldade, e vestiu a roupa por cima do chambre. À porta do quarto, tropeçou no baú [...] - Se eu banhar agora, talvez o abatimento diminua [...] o chão acordara escorregadio como nunca [...] o pé resvala, fazendo-a cair de bruços no solo, com uma dor terrível no ventre. Meu Deus, juro que não queria! [...] que eu morra, mas salve meu filho [...] a custo Pedrina conseguiu arrastar-se até a rede. A dor aumentara e em suas pernas corria agora um filete de sangue [...] o ventre começava a revolver-se, contraindo-se para expelir um pequeno ser ainda em formação, que fecundara e morrera em suas entranhas (CARVALHO, 2003: 181-4). Quanto ao aborto consentido pela mãe, [este] considerado crime na sociedade brasileira, já em sociedades europeias o aborto, analisado como aspecto cultural e não natural, passou a ter diversos significados históricos e usos, a partir dos costumes sociais diversos. Assim, as práticas abortivas, antes algo decidido pelo masculino, na modernidade, passaram a ser relacionadas apenas como práticas femininas, conforme analisado por Joana Maria Pedro, a seguir: Foi na modernidade que os corpos femininos das mulheres tornaram-se alvo do controle [...] as práticas contraceptivas abortivas, infanticidas e ainda, o abandono de crianças passaram a ser relacionadas a práticas femininas. Em diferentes culturas, o aborto e o infanticídio têm sido sancionados pelo costume, têm amparo coletivo, e não são considerados crimes passíveis de punição [...] na Antiguidade e na sociedade medieval, o infanticídio e o abandono de crianças foram práticas por demais corriqueiras. Combatidas pela Igreja e pode setor público, foram mantidas pelos casais. Essas práticas, no entanto, passaram a ser associadas às mulheres pobres, e não mais aos homens. Assim, se na Antiguidade era o pai quem decidia aceitar ou recusar a criança, na Idade Média essa atribuição passou a ser da mãe. É a ela que os penitenciais, os artigos, os interrogatórios e os párocos da Igreja dirigem-se. As práticas do abandono, do aborto e do infanticídio tornaram-se um pecado de mulher [...] os processos de urbanização, de aburguesamento, de problematização da vida, têm permeado tal mudança” (FLANDRIN apud PEDRO, 2003: 161-2). No caso da personagem Pedrina, ocorrido o aborto natural, era preciso fazer curetagem, quando entrava em cena a personagem do boticário. O trecho Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 6 abaixo relata um exemplo de exercício de sexualidade feminina, no qual a moça deveria ser castigada por sua conduta considerada desviante. O boticário (médico prático) da cidade, ao fazer a curetagem sem anestesia, demonstrava que “as mulheres tinham que sofrer por onde tinham pecado” (VICENT, 1992:253). Ele confirma tal postura ao afirmar que “[...] sim, eu poderia tê-la anestesiado antes. Mas, preferi que ela sofresse tudo consciente”. A citação é longa, mas necessária. O boticário colocou a valise sobre o baú e olhou detidamente para Pedrina. Era o que eu imaginava. Em seguida, escancarou a janela, a fim de que a luz da manhã facilitasse o diagnóstico [...] Dulce viu Pedrina meio nua, com as pernas afastadas, fora da rede, o ventre a expelir um pequenino ser com vaga aparência humana. - Meu Deus, o aborto! Dulce tremia encostada na parede em que se amparou. Nunca imaginava que houvesse tanto sofrimento no parto. Até num simples aborto! [...] (Dulce começou a mexer com a volta, comprimindo a medalha entre os dedos.) Ainda não. Seu Ernesto saiu e logo voltou com uma bacia de água fervente. Daí a instantes, Dulce sentiu cheiro ativo de clorofórmio de iodo. “Meu Deus, salvai Pedrina [esta] dormia profundamente, sob o efeito do anestésico. Seu corpo, cobria-o com um lençol limpo. No rosto descorado permanecera o sofrimento: era como se sonhasse que padecia as dores de um parto. [...] Dulce abaixou a vista, também emocionada. Diga-me uma coisa, seu Ernesto – perguntou em seguida, para satisfazer a curiosidade. Qual a razão por que o Senhor não deu a anestesia logo no começo? Pedrina não teria dores. Seu Ernesto, que já havia apanhado a maleta para sair, parou junto à porta: - Sim, eu poderia tê-la anestesiado antes. Mas, preferi que ela sofresse tudo consciente. - Como? – insistiu Dulce, abismada. Seu Ernesto não respondeu. No entanto, o brilho de seus olhos explicava tudo (CARVALHO, 2003:185-7). A educação sexual constituía tabu, segredo inviolável. As moças não eram orientadas sobre a noite de núpcias, nem pelas revistas, nem pelas mães, muito menos pela escola. Ainda não havia esse tipo de instrução, a palavra virgindade ou sexo não aparecem em nenhum, dos veículos de informações pesquisados do período, como por exemplos, romances, crônicas jornalísticas, entrevistas, revistas. Em seu lugar, apareciam palavras, como: ‘dignidade’, ‘pérola’, ‘bem precioso’. Em suma, era tabu falar sobre sexo. Neste período, os homens faziam seleção, quando iam casar: somente casavam com moças de família, “as honestas”, em oposição às “mulheres para brincar, as fáceis”. Moças para casar versus moças para brincar, assim os homens classificavam as moças de forma binária. No imaginário social, as artistas, em Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 7 geral, tinham ‘fama’ de serem brinquedinhos masculinos, como demonstra a crônica a seguir: [...] está o honrado prefeito do Distrito Federal, o coronel Dilcídio Cardoso, a repetir a história daquele antigo filme [...] o reino por uma famosa e conhecida estrela do rádio. Tomou-se o prefeito de amores pela cantora lusitana Ester de Abreu e quando se pensava que o Flirt era “pra que é”, vem o honrado prefeito e esclarece que é mesmo “prá casar” [...] por que a sua noiva é artista de rádio? [...] as cantoras de rádio, esta pecha infamante [...] o Rio de Janeiro estava até tranqüilo quando dona Ester veio com sua beleza e seu “it” perturbar a pacatez da família getulista (O CASAMENTO do prefeito. O Dia, Teresina, p.4, 17 de jan. de 1954). A imagem do feminino na sociedade piauiense era percebida também dessa forma binária, como mencionado pela crônica anterior, separando-se as moças entre evas, levianas, mal-faladas, perdidas de um lado, representada pela atriz, e moça de família, para casar, de outro. As moças mal-faladas eram para passar o tempo, para divertimento, não eram levadas a sério, o destino delas já estava traçado. A dupla moral sexual era rígida, as mulheres eram separadas pelos olhares masculinos em “mulher para casar” e “mulher para brincar”. O homem era o provador, de senso prático, e as mulheres ‘deveriam’ pensar duas vezes, mesmo com a ‘tentadora’ e ‘provocante’ prova de amor que o noivo ou o namorado solicitavam às moças. Mas estas, “crivadas de tantas dúvidas, essas mulheres às vezes pareciam querer atirar tudo para o alto” (SANTOS, 1998:58). Maria Pompeu tinha 20 anos. Já era atriz conhecida. Sentiu o drama de ser mulher antes de Leila Diniz: - Em 58 perdi a virgindade com um rapaz com o qual estava noiva há dois anos – lembra. – Eu pretendia me casar com ele, que era muito carinhoso e todo dia ia me pegar na Maison de France, onde eu estudava Francês e fazia minhas peças. Depois que perdi a virgindade o sujeito não quis mais saber de casamento. Foi uma tragédia em cinco atos. Como eu ia casar se não era mais virgem? Ser mulher era fazer muitas perguntas e nem sempre achar respostas razoáveis (SANTOS, 1998: 49). “Conservando sempre a nossa dignidade cristã [...] desta maneira teremos assegurado a salvação da nossa alma” (NOSSO dever. O Dominical, Teresina, p.3, 10 de set. de 1950). Este trecho apresenta uma das estratégias do discurso católico, para que as jovens conservassem sua pureza ou dignidade cristã até o casamento era a prescrição de um prêmio, a salvação da alma. Há na crônica um Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 8 ressentimento evidente em alguns trechos, como: “hoje, infelizmente observamos na vida de tantas jovens que em meio ao lodaçal do mundo, esquecem a sublimidade de sua vocação cristã” (NOSSO dever. O Dominical, Teresina, p.3, 10 de set. de 1950). Portanto, algumas práticas eram consideradas como desviantes, caso do sexo antes do casamento Como as moças de família deveriam manter o recato, ser cordatas – o que as diferenciava das moças mal-faladas – era prescrito que estas não comparecessem a todas as festas dançantes, visto que não seria prudente ao comportamento feminino, conforme nos informou Celso Barros Coelho, As moças procuravam ser recatadas era do próprio estilo da sociedade, mas, havia as mal faladas, quando namoravam abertamente. Também quando demoravam demais nas praças, ou seja, ficavam nas praças depois das 21 h. Ou, quando eram freqüentes a todas as festas do Clube dos Diários, também quando apareciam com namorados diferentes, as moças que iam a todas as festas eram consideradas namoradeiras (COELHO, 2008:4). As moças raramente andavam sozinhas, andavam sempre acompanhadas, por amigas de mesma idade, ou pelos irmãos. Dona Iracema Silva nos revela que seu pai permitia que ela fosse a todas as festas, desde que acompanhada pelo irmão Omar. Não importava que fosse a todas as festas, o que importava era a vigilância, mais uma vez dona Iracema Silva nos revela as pistas de táticas que utilizava, frente ao controle e rigidez prescritos ao público feminino. Dona Iracema Silva tinha dois irmãos mais velhos (Antônio e Omar), mas preferia ir acompanhada pelo irmão Omar, pois, este a deixava à vontade com mais liberdade. Como Omar não dançava, ao contrário da irmã, quando chegavam ao Clube dos Diários se separavam, ficavam em mesas diferentes, se encontrando somente na saída da festa, para voltarem juntos para casa, conforme nos informou, Eu ia acompanhada de meu irmão Omar ou com amigas, meu pai sempre deixava ir ao cinema, e também a todas as festas, mas, sempre acompanhada do meu irmão Omar dos Santos Rocha, pois ele é seis anos mais velho do que eu, mas, ele sempre me deixava à vontade, quando eu chegava no cinema, ele não sentava do meu lado, ele me deixava descontraída, porque, se eu não tivesse a liberdade de conversar com alguém, não poderia namorar. Quando íamos ao Clube dos Diários, como meu irmão não gostava de dançar, ele ficava conversando com seus amigos, e, ele de longe só me observava. Ficávamos em mesas diferentes, mas, quando voltávamos para casa era Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 9 sempre juntos, ele sempre foi muito compreensivo e amigo (SILVA, 2008:5). A moral prescrevia que as moças não deveriam andar desacompanhadas, os pais deixavam suas filhas saír[em] mediante a extensão de sua vigilância. Como os pais não iam, nomeavam seus substitutos, os filhos (homens). Estes seriam os olhos dos pais, vigiariam e controlariam suas irmãs, passo a passo. Em outro dialogo do romance Somos Todos Inocentes entre Amparo e Dulce, esta ultima afirmou: “Raul infelicitou Pedrina”. A personagem Amparo responde: “- Raul não procederia assim, se ela não o provocasse”. Dulce [a] recrimina sua atitude quando afirma: “[...] – Devias ser menos severa. Amparo, Raul não é o inocente que imaginas. – Admito que não. Mas é homem, se me entendes. – Desejas então empurrar Pedrina para os cabarés? Sua mãe faleceu lá” (CARVALHO, 2003: 152-3). Nestes trechos, o feminino e o masculino são pensados como categorias naturais a-históricas, com identidades sexuais essencialistas, lembrando que é preciso desconstruir tais discursos a partir da discussão de gênero, enquanto categoria útil de análise, que expressa como são criadas historicamente as relações entre o masculino e o feminino. Em outro trecho, temos exemplos dessa discussão da identidade feminina pensada como natural,essencialista: a de submissão frente ao masculino, representada pela personagem Amparo, noiva de Raul. Ao homem era concedida total liberdade, pois a virilidade era medida pela quantidade de experiências sexuais que tinham, pela frequência a prostíbulos, pela audácia com que se movimentavam na sociedade. No entanto, mudanças já estavam ocorrendo na Europa e em Teresina quanto à igualdade de gêneros, mas Oeiras continuaria ainda tradicionalista. [...] era tão comum a existência de amantes na vida dos homens de Oeiras! Chegava a ser uma tradição [...] Amparo sabia que hoje ou amanhã Raul teria as suas, porém não se conformava. Os tempos já não eram mais os mesmos. Estavam em ’29. As mulheres da Europa vinham há muito lutando por igualdade de direitos. Até em Teresina se falava nisso. Só em Oeiras é que se admitia uma situação esdrúxula daquelas, e ai de quem ousasse combatê-la. ‘Se Deus serviu de uma costela de Adão para moldar Eva – explicou o padre num sermão – é porque quis tornar a mulher dependente do homem” (CARVALHO, 2003: 160) Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 10 Gênero segundo Joan Scott (1995) é uma forma primária de dar significado às relações de poder, expresso no romance a partir da dupla moral sexual. O conceito também nos ajuda a pensar no caráter social das distinções baseadas no sexo, rejeitando o determinismo biológico que determinava as diferenças entre feminino e masculino. Considerações finais A análise de trechos do romance “Somos Todos Inocentes”, de O. G. Rego de Carvalho, revela um contexto social que expressava valores rígidos em relação ao corpo e à sexualidade feminina, exemplificando como as relações de poder são construídas historicamente, determinando papéis sexuais diferenciados para o feminino e para o masculino, como destaca Joana Maria Pedro: Diversos textos, como sermões, artigos de jornais e revistas, pareceres jurídicos, anúncios, notícias, etc, foram produto em geral, de escrita masculina, suportes para concepções de corpos femininos instituídos em determinadas relações de gênero. Nesses textos, os homens falam dos corpos das mulheres como pensam que eles são, ou gostariam que fossem. São maneiras de dar sentido ao outro, portanto, definidas por quem forja tais representações, embora aspirem à universalidade. Foram constituídas no interior de relações de poder, portanto, num campo de concorrências e competições, no qual as relações de gênero desempenham um papel preponderante (PEDRO, 2003: 160) O conceito de gênero nos motiva a pensar como são construídas essas relações e que é preciso desfazer noções abstratas de “mulher” e “homem”, como identidades únicas, a-históricas, essencialistas, para pensar a mulher e o homem como diversidades no bojo da historicidade de suas inter-relações. O contexto histórico analisado nos indica que era necessário redefinir e o alargar as noções tradicionais quanto a sexualidade feminina e masculina, portanto era preciso quebrar a lógica da polaridade ou separação binária: moça para casar versus moça para brincar. Assim como quanto a questão do aborto, que, no romance, tem como a única “castigada” a personagem feminina, o que demonstra desigualdade e diferenças de gênero no tocante à sexualidade, e, quando existe uma gravidez Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 11 não planejada, “apesar de a gravidez indesejada não ser apenas resultado de atos femininos, somente as mulheres têm sido responsabilizadas por tentar interrompê-la. A exclusividade dessa responsabilidade é emblemática da hierarquia existente nas relações de gênero” (PEDRO, 2003: 166). REFERÊNCIAS CARVALHO, O. G. Rego de. Somos todos inocentes. In: Ficção reunida. 4 ed. Teresina: Corisco, 2003. COELHO, Celso Barros. Entrevista concedida a Ângela Maria Soares de Oliveira. Teresina, 21 de junho de 2008. MULHER sem condições de criar filho poderia abortar até a 12ª semana. Disponível em: <www.http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/anteproje to-de-novo-codigo-penal-vai-prever-possibilidade-de-aborto.html>. Acesso: 20 de jul. de 2012. NOSSO dever. O Dominical, Teresina, p.3, 10 de set. de 1950. O CASAMENTO do prefeito. O Dia, Teresina, p.4, 17 de jan. de 1954 OLIVEIRA, Ângela Macêdo de. Imagens dissonantes? A família teresinense: entre prescrições católicas e práticas culturas na década de 1950. Teresina: Universidade Federal do Piauí (Mestrado em História), 2009. 173 f. PEDRO, Joana Maria. As representações do corpo feminino nas práticas contraceptivas, abortivas e no infanticídio – século XX. In: In: MATOS, Maria Izilda Matos; SOIHET, Rachel (Orgs). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora da UNESP, 2003. p.157-176. PERROT, Michelet. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda Matos; SOIHET, Rachel (Orgs). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora da UNESP, 2003. p.13-28 SANTOS, Agnelo Pereira. 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