1 MIRCEA BUESCU HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL LEITURA BÁSICA Antonio Paim (organizador) CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB) 2011 1 2 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO – Antônio Paim .......................................... 4 MATÉRIA INTRODUTÓRIA Prefácio – Américo Jacobina Lacombe ...................................... 13 Textos de Mircea Buescu - Um programa de trabalho para a história econômica do Brasil ............................................................... 20 - Esquema de história econômica do Brasil .............................. 30 OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS - A economia açucareira em 1600 e seus aspectos quantitativos ............................................................. 52 - Sobre o valor da exportação colonial ..................................... 61 SÉCULO XIX Nota introdutória – Antônio Paim ............................................... 65 Textos de Mircea Buescu 8. DIVISOR DE ÁGUAS ...................................................... 69 8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista ................... 69 8.2 Chegada da Corte .............................................................. 74 8.3 Política econômica ............................................................ 75 8.4 Gargalo externo ................................................................. 87 8.5 Outras atividades econômicas.............................................91 8.6 Novos rumos ..................................................................... 93 9. O CICLO DO CAFÉ ......................................................... 96 9.1 Perspectiva em meados do século XIX ............................. 96 9.2 Condicionamentos externos .............................................. 98 9.3 Condicionamentos internos ..............................................101 9.4 Empresa e rentabilidade ...................................................113 9.5 Comércio exterior .............................................................118 9.6 Agricultura de subsistência ...............................................135 9.7 Início da indústria .............................................................139 9.8 Moeda e finanças ..............................................................145 2 3 9.9 Balanço do período ............................................................ 158 Revendo a política econômica do Império (1991) ....................... 165 Notas sobre a economia do Segundo Reinado ............................. 188 SÉCULO XX Apresentação – Antônio Paim ..................................................... 203 TEXTOS DE MIRCEA BUESCU - Brasil: problemas econômicos e experiência histórica Cap. VIII – Processo da industrialização ............................... 205 Cap. IX – Papel do Governo .................................................. 222 - Lições da história .................................................................... 230 - A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho ................. 247 - Arranco ou transição (1930/1960) .......................................... 289 - Acerca da teoria dos choques externos ................................... 312 - Os objetivos nacionais nos planos econômicos (1964/1985) ............................................................................ 335 - Progresso e declínio do planejamento econômico no Brasil ................................................................................. 359 - Os anos 80: a década perdida ................................................. 375 - Desenvolvimento econômico: condicionamentos .................. 396 CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA (1965-1990) - Correntes de idéias sobre a economia brasileira (1965/1990) ............................................................................. 416 - Capitais estrangeiros (um debate no Conselho Técnico)......... 438 - Notas históricas sobre imperialismo, dependência e dominação ........................................................................... 454 - Inflação, mentalidades e estruturas..........................................474 - O fascínio do discurso marxista ............................................. 490 3 4 APRESENTAÇÃO Antonio Paim Nasceu em Bucareste, Romênia, a 14 de setembro de 1914. Concluiu a Faculdade de Direito de Bucareste e diplomou-se em estudos superiores da Faculdade de Direito de Paris. Em sua pátria de origem, foi chefe de serviço no Ministério do Comércio Exterior. Emigrou para o Brasil em 1949, aos 35 anos de idade. Em 1954 obteve a nacionalidade brasileira. Nos anos sessenta, economistas ligados a Roberto Campos (1917/2001) criaram a Editora APEC – Analise e Perspectiva Econômica que desenvolveu um grande trabalho no sentido de recuperar a tradição liberal, sucessivamente arquivada depois da Revolução de 30. Além de haver completamente desaparecido de nosso meio, o liberalismo econômico era criticado e deturpado. A moda, que não desapareceu de todo, em matéria de economia, era a vulgata marxista. A APEC publicou diversos dos livros escritos por Roberto Campos. Além disto, deu a conhecer a obra de economistas liberais da época. Progressivamente, os nomes de Adam Smith e seus seguidores deixaram de ser satanizados, criando espaço próprio nos cursos de economia. Sem embargo, remanescentes da vulgata continuam a insistir nas superadas teses cepalianas, à cata de culpados, no exterior, pelo atraso que ainda registramos em parcelas do território e até conseguem 4 5 manter políticas obsoletas como uma reforma agrária fora do tempo. Ligando-se à APEC, depois de 1962, da qual seria diretor, entre 1972 a 1979 e consultor a partir de 1980, responde em grande medida pelo sucesso do empreen dimento, notadamente ao estimular – e contribuir decisivamente – para a elaboração de análises da economia brasileira, dignas do nome. Tornou-se professor de história econômica na PUC-RJ (1965 a 1986) e no Instituto Benett de Ensino. Deu aulas de economia e história econômica no Instituto Rio Branco, na Faculdade Santa Úrsula, na Fundação Getúlio Vargas e ainda em outras instituições do Rio de Janeiro e de outros estados. Buescu exerceu ainda a função de assessor no Gabinete do Ministro da Fazenda, de 1967 a 1986. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Publicou grande número de artigos e ensaios em jornais (Jornal do Comércio; O Globo, Jornal do Brasil) e revistas, entre outras a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Carta Econômica da APEC e Carta Mensal, órgão do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, de que era membro. O grande feito de Mircea Buescu reside na notável contribuição que deu para estruturar o estudo do nosso desenvolvimento econômico em bases estri tamente científicas, como se pode ver da Bibliografia adiante. 5 6 Faleceu no Rio de Janeiro a 16 de maio de 2003, aos 89 anos de idade. O levantamento dos dados biográficos de Mircea Buescu só foi possível graças à recuperação de uma breve nota, de sua autoria, que havia sido encaminhada ao Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio – a que pertencia – graças à diligência da secretária Sandra Nascimento. Faltava, entretanto, a data de falecimento, obtida graças à iniciativa de Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e à presteza e solicitude da secretária Tupiara Machareth. Fica a lacuna relativa aos últimos anos de vida. Segundo os registros constantes da Carta Mensal, sua última conferência teve lugar em maio de 1995, isto é, ainda viveria oito anos, caracterizados pela interrupção abrupta de sua brilhante produção intelectual. Os quatro ensaios subseqüentes aparecidos na revista (nos anos de 1996 e 1997, referidos adiante), sem indicação de que teriam resultado de conferências, devem ter sido encaminhados diretamente para publicação, praxe admitida. No elogio dos sócios falecidos, no caso a cargo de Vitorino Chermont de Miranda, afirma-se: “presença assídua, nas sessões do CEPHAS, enquanto a saúde lhe permitiu” (RIHGB, 184 (421): 280; out.-dez., 2003). É de presumir, portanto, que a inatividade observada haja decorrido do estado de saúde. 6 7 BIBLIOGRAFIA Livros História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (1967); 2ª edição, Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1969, 178 p. (em colaboração com Vicente Tapajós) Exercícios de História Econômica do Brasil (1968). Rio de Janeiro: APEC Editora, 1969, 136 p. História Econômica do Brasil. Pesquisas e análises. Rio de Janeiro: APEC, 1970, 284 p. O divisor de águas: 1808/1850. Rio de Janeiro: APEC, 1972. 300 anos de inflação. Rio de Janeiro: APEC, 1973. Evolução econômica do Brasil (1974). 4ª edição. Rio de Janeiro: APEC, 1974, 230p. 10 anos de renovação econômica. Rio de Janeiro: APEC, 1974 (em colaboração com Victor Silva) A moderna história econômica. Rio de Janeiro, 1976 (em colaboração com Manuel Peláez). Guerra e desenvolvimento. Rio de Janeiro: APEC, 1976. Brasil. Disparidades de renda no passado. Rio de Janeiro: APEC, 1979, 136p. Métodos quantitativos em história. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1983. História Administrativa do Brasil. Organização e Administração do Ministério da Fazenda no Império. Rio de Janeiro: FUNCEP, 1984. Brasil. Problemas econômicos e experiência histórica . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985. 7 8 Artigos e Ensaios Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Quantidade e qualidade em história econômica: o caso da inflação brasileira no século XIX. v. 313, p. 21-45, out./dez., 1976. O café na história do Brasil. v. 321, p. 234 -236, out./dez., 1978. Disparidades regionais, v. 318, p. 88 -91, jan./mar., 1978. Inegalités regionales au Brésil das la seconde moitié du XIX siécle. v. 321, p. 222-232, out./dez., 1978. Criação do Banco do Brasil, v. 322, p. 181 -184, jan./mar., 1979. Miguel Calmon e a valorização do café. v. 327, p. 235 238, abr./jun., 1980. No centenário da Lei Saraiva. v. 330, p. 179 -186, jan./mar., 1981. Novas notas sobre a Lei Saraiva. v. 331, p. 209-211, abr./jun., 1981. O sistema eleitoral após a Lei Saraiva. v. 332, p. 225 227, jul./set., 1981. Natalidade e mortalidade da população escrava. v. 334, p. 163-165, jan./mar., 1982. Uma interpretação marxista da escravidão no Brasil. v. 334, p. 183-190, jan./mar., 1982. Exportação no Brasil colonial. v. 335, p. 129 -132, abr./jun., 1982. 8 9 Situação dos escravos no século XIX. v. 336, p. 145 -147, jul./set., 1982. Política econômica do Segundo Reinado. v. 339, p. 7 -12, abr./jun., 1983. Centenário do Motim do Vintém. v. 339, p. 113 -120, abr./jun., 1983. O alvará bicentenário de 1785. v. 350, p. 183 -186, jan./mar., 1986. O reerguimento econômico: 1903-1913. v. 353, p. 10331050, out./dez., 1986. Um estadista controvertido: Joaquim Murtinho. v. 365, p. 529-572, out./dez., 1989. A Primeira República e o sistema econômico inter nacional. v. 379, p. 350-363, abr./jun., 1993. Carta Mensal Desenvolvimento e lazer. v. 36, n. 423, p. 35 -42, jun. 1990. Inflação: mentalidades e estruturas. v. 36, n. 427, p . 714, out. 1990. Progresso e declínio do planejamento econômico no Brasil. v. 36, n. 428, p. 53-61, nov. 1990. Os objetivos nacionais nos planos econômicos (1964/ 1985). v. 36, n. 430, p. 23-37, jan. 1991. A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho. v. 36, n. 431, p. 37-56, fev. 1991. Comentários à margem da perestoika. v. 36, n. 432, p. 41-49, mar. 1991. 9 10 A inflação como combate pela renda. v. 37, n. 436, p. 2332, jul. 1991. Primórdios do protecionismo alfandegário no Brasil. v. 37, n. 437, p. 7-23, ago. 1991. Revendo a política econômica do império, v. 37, n. 441, p. 3-13, dez. 1991. Correntes e idéias sobre a economia brasileira (1965 1990). v. 37, n. 444, p. 49-58, mar. 1992. Os anos 80: a década perdida. v. 38, n. 447, p. 53 -62, jun. 1992. Variações sobre um tema ecológico. v. 38, n. 452, p. 11 19, nov. 1992. Arranco ou transição. v. 38, n. 455, p. 21 -30, fev. 1993. Notas históricas sobre imperialismo, dependência e dominação. v. 39, n. 460, p. 29-36, jul. 1993. Acerca da teoria dos choques externos. v. 39, n. 466, p. 50-59, jan. 1994. Lições da história. v. 40, n. 471, p. 41 -48, jan. 1994. Desigualdades regionais: primórdios. v. 40, n. 474, p. 54 63, set. 1994. A investigação quantitativa do passado. v. 41, n. 484, p. 3-10, jul. 1995. Desenvolvimento econômico. v. 41, n. 485, p. 33-43, ago. 1995. Drácula: história e fantasia. v. 41, n. 487, p. 56 -65, out. 1995. Notas históricas acerca da dívida externa. v. 41, n. 492, p. 75-83, mar. 1996. O fascínio do discurso marxista. v. 42, n. 498, p. 77 -85, set. 1996. 10 11 Notas sobre a economia do Segundo Reinado. v. 43, n. 502, p. 13-20, jan. 1997. Capitais estrangeiros: um debate no Conselho Técnico. v. 43, n. 508, p. 17-26, jul. 1997. 11 12 MATÉRIA INTRODUTÓRIA 12 13 PREFÁCIO Américo Jacobina Lacombe Por estranho que pareça, num tempo em que tanto se fala em economia, nossa bibliografia de história econômica é escassíssima. O mais recente e completo de nossos estudos de metodologia histórica e historiografia, a Teoria da História do Brasil, do prof. José Honório Rodrigues, 3ª ed. (São Paulo, 1969), mal conclui uma página com a relação das obras principais nesse setor, e assim mesmo incluindo as de pura documentação, as biografias, as histórias das finanças e as monografias sobre produtos especiais ou aspectos parciais. Os trabalhos de conjunto sobre a história da economia brasileira contam-se pelos dedos. Em primeiro lugar, os Pontos de Partida para a História Econômica do Brasil, de Lemos Brito, que são de 1923, e representam um esforço de organização dos dados constantes da historiografia corrente, sem muita preocupação técnica. De 1929 é a obra de Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico. Ainda que não vise ao Brasil especialmente, a maneira pela qual encarou a economia colonial e o método que empregou no estudo dos ciclos econômicos (termo que daí por diante vai ser sempre empregado) transformaram este livro num modelo de cujo plano e terminologia dificilmente escapam os continuadores. De 1935 é o livro de J. F. Normano: Brazil – A study of Economic Types, inteligente exposição que não 13 14 tomou conhecimento do historiador português, mas contribuiu, por sua vez, com algumas idéias que se incorporam aos relatos subseqüentes. Em, 1937 surge a obra clássica de Roberto Simonsen. Criando em 1933 a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, viu-se o homem de empresa, doublé de intelectual, com a responsabilidade imprevista de ministrar pessoalmente o curso de história econômica. Daí resultou a História Econômica do Brasil, cujas edições se sucedem ininterruptamente. Sem ser um historiador por formação, mas homem de boa cultura geral e econômica, Simonsen empregou sua notável inteligência e sua invejável capacidade de organização na feitura de uma obra magistral. Submeteu-a ao crivo de eruditos do nível de Rodolfo Garcia, Afonso d”E. Taunay e Eugênio de Castro. Daí resultou um livro básico, lúcido e metódico, em que se vão abeberar os seguidores inevitavelmente. De 1938 é a maravilha de exposição representada pelas aulas ministradas em Montevidéu pelo professor Afonso Arinos de Melo Franco e editadas pelo Mini stério da Educação: Síntese da História Econômica do Brasil, várias vezes reproduzidas. Tudo o que apareceu precedentemente foi esquematizado de maneira tal que os compêndios não fazem, pela maior parte, daí por diante, senão seguir a esteira do conferencista. Com Caio Prado Junior, na História Econômica do Brasil em 1945, escrita para um público estrangeiro (encomenda que foi do Fundo de Cultura Econômica do México) temos uma visão diferente do problema. O 14 15 autor lamenta justamente ser escassa a produção brasileira em matéria de literatura econômica que examina e seleciona. Mas proclama a dificuldade de elaborar cientificamente o assunto segundo suas concepções dialéticas, já que é uma “ilusão ingênua esta idéia muito corrente de uma possível e suposta imparcialidade filosófica que não existe e não pode existir”. Verdade esta que já fôra proclamada por Aristóteles: a de que para deixar de filosofar, ainda é preciso filosofar. Completamente outro é o ponto de vista de Celso Furtado na sua Formação Econômica do Brasil, de 1959. O problema historiográfico não o preocupou. “Omite-se quase totalmente a bibliografia histórica brasileira”, previne ele na Introdução, “pois escapa ao campo específico do presente estudo, que é simplesmente a análise dos processos econômicos e não a reconstituição dos eventos históricos que estão por trás desses processos”. E realmente toda a massa de informações necessária ao raciocínio é colhida nos trabalhos antecessores. A intervenção do prof. Mircea Buescu no campo de nossos estudos de história econômica, com os Exercícios de História Econômica do Brasil, e com a História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (em colaboração com o prof. Vicente Tapajós), traz-nos uma contribuição importantíssima. Espírito formado no trato contínuo dos problemas econômicos, formado por uma profunda preocupação pelo material historiográfico empregado 15 16 na elaboração dos estudos, o professor Buescu empreendeu uma exaustiva revisão nos dados elementares nas fontes primárias de nossa evolução. Na falta de estatísticas e relatórios oficiais, em vista da política de sigilo característica dos governos da era moderna, nossas fontes vêm sendo os cronistas e os missionários coloniais. Não se pensara, porém, até agora em submeter os dados multifários extraídos desses trabalhos, nem sempre com a exatidão necessária aos raciocínios históricos e econômicos, a uma costratação rigorosa. Sobre eles se apoiaram os historiadores até aqui. Mas o professor Buescu demonstra que muita coisa precisa ser posta em dúvida e repensada. Pelo menos não é lícito chegar a certas conclusões sem averiguar certos pontos assaz duvidosos. Urge um trabalho preparatório de apuradas pesquisas para obter uma série de dados quantitativos essenciais ao reestudo de vários capítulos que enganosamente julgávamos documentados. Como se verá das páginas que se seguem, o Autor fez sérias tentativas neste sentido, no curso que ministra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Os resultados não corresponderam totalmente aos esforços empregados mas, de qualquer modo, demonstraram a possibilidade de se chegar a conclusões muito importantes. A solução que ocorre ao professor Buescu é a de um Instituto especializado em História Econômica do Brasil, capaz de centralizar as tentativas nesse sentido. 16 17 Óbvia a conclusão. Mas, por outro lado, parece-me que mais rapidamente se poderia organizar tal instituto à sombra de instituições já existentes, interessadas nas pesquisas histórico-econômicas. E são muitas as que estão sentindo a necessidade de dar uma base sólida e documentada a um setor perigosamente exposto aos ventos das paixões. Como companheiro de trabalhos e de lutas no campo universitário – e só a esse título estou ocupando estas páginas – não me resta senão desejar ardentemente que o apelo do Autor encontre eco no meio dos esclarecidos. Não faltam, mercê de Deus, jovens dispostos e livres para pesquisas trabalhosas, mas empolgantes. Dêem-nos ambiente e meio e nós, os professores, auxiliares e estudantes, os transfor maremos em elementos para uma sólida construção científica futura. É o que já antevejo com otimismo e confiança. Que as palavras deste mestre frutifiquem. (Transcrito de História Econômica do Brasil. Pesquisas e análises, de Mircea Buescu – Rio de Janeiro, APEC, 1970, págs. 13-16) Nota do editor Américo Jacobina Lacombe (1909/1974) concluiu o curso de direito aos 22 anos, em 1931. Ainda nos anos trinta, teve atuação destacada no Centro Dom Vital – que exerceu grande influência nos círculos católicos durante largo período – e foi secretário do 17 18 Conselho Nacional de Educação. Integrou o grupo que lançou as bases da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde, a partir de 1941 passou a lecionar História do Brasil. Graças a essa condição, viria a produzir extensa bibliografia dedicada ao tema, o que o tornaria renomado historiador e o levaria ao exercício da Presidência do Instituto Histórico Brasileiro. Seria também diretor da casa de Rui Barbosa e responsável pelo ordenamento de sua obra para edição. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras. 18 19 TEXTOS DE MIRCEA BUESCU 19 20 UM PROGRAMA DE TRABALHO PARA A HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL O desvio do estudo da História Econômica do Brasil do caminho que normalmente devia seguir – isto é, pesquisa exaustiva dos dados informativos (em grande parte quantitativos); depois, síntese coerente destes dados; e finalmente outra síntese integrando a realidade econômica no conjunto da realidade cultural – esse desvio, queimando as etapas e passando diretamente para o terceiro estágio do caminho normal, foi, sem dúvida, em grande parte, obra das escolas materialistas, estruturalistas e outras semelhantes que enfatizaram demasiadamente o aspecto social e institucional – os problemas das classes sociais, dos sistemas, das estruturas, dos regimes, das instituições políticas, etc. É de estranhar que doutrinas que sublinharam até além dos limites lógicos a importância do fator econômico na evolução da Humanidade, contribuíram para a marginalização do estudo especificamente econômico na História. Um caso típico é o estudo da evolução econômica do Brasil no período moderno até a Segunda Guerra Mundial. No prefácio do seu excelente livro recentemente publicado no Brasil (1), Frédéric Mauro escrevia: “Após essa fase colonial de nossas pesquisas históricas, sentimo-nos atraídos eventualmente pelos séculos XIX e XX, cuja economia os historiadores 20 21 brasileiros negligenciaram em extremo”. Entretanto, procure-se nos livros “clássicos” da história econômica do Brasil, e encontrar-se-á um número imenso de páginas dedicadas àquele período. Só uma perquirição mais atenta descobrirá o sentido, perfeitamente justo, das palavras de Mauro: é que, apesar da extensão dos comentários (todos, de acordo com uma certa filosofia política e social), a base informativa, o documento, a estatística não existem – o que torna extremamente precário o respectivo comentário. Ninguém pode minimizar a importância dos sistemas, das instituições, das classes, das forças políticas e sociais em jogo, e assim por diante. Entretanto, uma avaliação objetiva destes fatores, em termos econômicos, só pode ser feita depois da análise do processe econômico e dos seus efeitos. Para fixar -se bem essa posição, talvez seja conveniente, mais uma vez, indicar os caminhos a seguir – mesmo se, às vezes, esta tarefa pareça repisar o terreno do óbvio. *** O que é a História Econômica? É o estudo dos fatos econômicos sob perspectiva temporânea – isto é, o estudo do modo como os homens resolveram o seu problema de bem-estar material, produzindo mais para poderem consumir mais. Do ponto de vista teleológico interessa o consumo, do ponto de vista genético, a produção: dada a escassez da natureza, inclusive no que 21 22 tange à capacidade do homem, é a produção que constitui o aspecto dramático do problema econômico. De forma simplificada, a História Econômica deve pesquisar e explicar como o homem organizou a pro dução e, em face dessa organização, quais os resultados alcançados em termos de consumo (implicando, também, num problema de distribuição da renda). A história dos fatos econômicos é a descrição cronológica e a análise dos esforços humanos criadores de valores econômicos, a luta pela redução dos custos e aumento das satisfações obtidas. Evidentemente, nisso intervém uma série de elementos institucionais e estruturais – porém, num primeiro estágio da análise não é permitido preterir o fato simples, mas fundamental, de como e quanto se produziu – uma avaliação dos fatores de produção aproveitados e dos produtos realizados. Essa análise será obrigatoriamente quantitativa. Isto não quer dizer que os fatores qualitativos devam ser desprezados. O desenvolvimento econômico é função do homem, envolvendo, portanto, todo o comportamento da comunidade humana no respectivo momento histórico. A necessidade de quantificar a História Econômica para efeito de melhor apreciar os fatos econômicos – único meio objetivo e comparar custos e benefícios sociais – não implica em desprezar ou minimizar os fatores qualitativos.(2) As etapas inevitáveis para a construção de uma História Econômica do Brasil – como de outras comunidades – seriam, portanto: 1º) a análise dos fatos econômicos – produtos, fatores de produção, custos, 22 23 preços, rendas, etc. – quase totalmente quantitativa (3); 2º) síntese dos fatos econômicos – aspectos macroeconômicos, estruturas, instituições, etc.; 3º) síntese final, englobando todos os fatos culturais em cada momento histórico para determinar-se sua interdependência (4). Obviamente, pelas necessidades de exposição, as três etapas poderiam ser atacadas em conjunto, porém nunca com a preterição das etapas iniciais. *** Um programa de trabalho para a História Econômica do Brasil, deveria seguir as mesmas etapas, sob pena de chegar a conclusões inadequadas ou incoerentes. Esta formulação programática não implica na negação do que foi feito até agora no campo das pesquisas e da elaboração de sínteses quantitativas. Quanto às primeiras, não podem ser citados aqui todos os trabalhos realizados – apesar de, em muitos casos, a pesquisa puramente histórica ter tido prioridade em detrimento da pesquisa da história econômica (5). O que falta, no que foi feito, é uma “consolidação” dos elementos objetivos, atualmente espalhados em várias publicações, para que se proceda a seu confronto verificando-lhes a coerência. E seriam necessárias muitas novas pesquisas referentes a todas as épocas – e, sobretudo, a épocas mais recentes. 23 24 Como dizia Mauro, o século XIX foi pouco estudado – apesar de muito “interpretado” e comentado (o período a partir da Segunda Guerra Mundial, foi analisado com maior objetividade pelos economistas brasileiros). Fala-se, por exemplo da economia brasileira do século XIX sem se ter, até agora, um estudo da inflação naquela época, a não ser o trabalho pioneiro, e valioso sob muitos aspectos, de Oliver Ónody (6). Entretanto, a quantificação da inflação é, como não podia deixar de ser, bastante precária, e exigiria novas pesquisas para sua confirmação ou retificação. Os dados encontram-se esparsos em jornais, revistas, livros, documentos oficiais e privados, testamentos, inventários, registros, e só pela sua coleta e ulterior confronto poderia construir-se uma escala, algo mais completo, dos preços no século XIX. O trabalho não será fácil, porque se trata justamente de uma quantidade enorme de dados informativos espalhados em todo o Brasil e numa imensa variedade de fontes. Tentei fazer, por exemplo, um levantamento dos preços em períodos decenais entre 1835 e 1875, através dos anúncios classificados do “Jornal do Commercio”, mas os resultados foram inexpressivos: poucas mercadorias são comparáveis, não se podendo chegar a um resultado ponderado (7). Por exemplo, entre aquelas duas datas, o preço do açúcar mascavo subiu 79,4%, o do açúcar refinado 56,8% e o do arroz 52,9%. Os resultados parecem coerentes. Entretanto, durante o mesmo período o preço da carne seca elevava-se de 224.2%. As variações a prazo mais curto são ainda mais 24 25 traiçoeiras: entre 1835 e 1845 o açúcar mascavo s obe de 5,3%, o refinado de 21,2%, a carne seca de 63,2%, o milho de 75,5%, enquanto o preço do arroz acusa queda de 3,6%. (Foram comparados preços médios, elimi nando-se aqueles que destoavam, por razões desconhecidas, do conjunto). Trabalho evidentement e precário e insuficiente, que talvez possa ser valorizado pela comparação com outras informações similares. O levan tamento completo fica para ser feito, com paciência e espírito crítico. Como na maioria das vezes, a infor mação sobre o preço da mercadoria dá poucas indicações quanto à qualidade. Só juntando um grande nú mero de informações será possível eliminar as eventuais distorções. E entre um número reduzido de fontes a comparação é irrealizável, como, por exemplo, entre as informações fornecidas por Leithold e Rango em 1819(8) e as de Davatz uns quarenta anos mais tarde (9). Entretanto, este é o único caminho. Sem esta construção, embora muitas vezes precária, as discussões em torno dos temas da História Econômica do Brasil continuarão dominadas pelas interpretações doutrinárias, na falta de uma base objetiva de interpretação. Um exemplo típico é a construção, aparentemente coerente, da teoria da “exportação das crises pelos países industrializados para o Brasil” e da “transferência do ônus da crise pelos exportadores de café para a massa dos consumidores brasileiros”. Não é desprovida de base verídica essa dupla teoria, porém a sua apresentação de forma radical e excessiva, não parece justificar-se pelos dados estatísticos disponíveis(10). 25 26 Inúmeros exemplos poderiam ser dados que justificassem a obra de pesquisa e reconsideração da História Econômica do Brasil. Esta afirmação não implica em negar o que até agora foi feito(11). Mas, mesmo para o que tem sido feito, seria indispensável aquele trabalho de “consolidação”, a fim de medir a coerência dos vários resultados (12). *** Seria preciso organizar pesquisas sistemáticas (obra de um eventual Instituto de História Econômica do Brasil, desejo meu talvez bastante utópico), sobre os aspectos micro e macroeconômicos da economia brasileira no período entre o Descobrimento e fim da Segunda Guerra Mundial (período que, por analogia com a terminologia clássica na História, constituiria, em muitos pontos, a fase “pré-literária” da História Econômica do Brasil, época em que não houve levantamentos estatísticos sistematizados, a não ser em alguns poucos setores). Este programa de pesquisas deveria conter, entre outras (a enumeração não é exaustiva): – evolução da população – não apenas para permitir o calculo da renda per capita, mas também, através do perfil dos grupos raciais (brancos, pretos, índios) e sociais (rurais e urbanos, livres e escravos), para ajudar no cálculo das rendas, uma vez que a 26 27 estimativa direta do produto real poderia ser mais difícil (13). - avaliação da produção; muito difícil no que tange aos produtos de consumo interno, seria mais fácil para os produtos de exportação, mas, mesmo para estes, uma reavaliação será necessária, e a base será en contrada na estatística do movimento marítim o (14); – levantamento da evolução dos preços locais; – levantamento da evolução dos preços de ex portação; – estatísticas sobre os salários e outros rendimentos; – volume das importações dos escravos e de seus preços(15); – quantificação do fiscalismo colonial e do ônus resultante da intermediação comercial e financeira da Metrópole – aspecto extremamente importante para determinar-se a parte de renda efetivamente aproveitada pela Colônia; – despesa pública (para a época colonial) a fim de saber-se a parte da renda que, captada pela Metrópole, voltava para a Colônia; – volume monetário; para a época independente: emissões de papel-moeda e volume de meios de pagamento; – investimentos estrangeiros e seus lucros.(15 bis) Evidentemente, uma primeira operação consistiria no levantamento do que foi feito até agora – e há muitas pesquisas extremamente valiosas; em segundo lugar, o 27 28 material existente deveria passar pelo crivo crítico para avaliar-lhe a coerência; novas pesquisas deveriam ser prosseguidas paralelamente, e à medida que chegassem os resultados, os dados anteriores seriam novamente submetidos à análise crítica. Por fim, haveria a construção de conjuntos macroeconômicos, objetivos e coerentes, que dariam a imagem global da evolução econômica. Tentativas desse tipo já foram feitas, tais como as construções de Roberto Simonsen no que tange à evolução das exportações, de Maurício Goulart sobre a importação de escravos, de Celso Furtado concernente à evolução da renda em algumas épocas e regiões. Tentei levar adiante essas construções referentes ao fim do século XVI para melhor caracterizar, em termos quantitativos, a evolução da economia nacional. Utilizei (16), para calcular a evolução da renda, as estimativas da exportação colonial construídas por Simonsen, e os dados disponíveis para o período independente, estabelecendo, depois, uma escala de proporções entre o valor da exportação e o da Renda Interna. Tive a satisfação de encontrar um método análogo, embora apresentado sob forma de um modelo matemático mais sofisticado (porém admitindo basicamente uma relação entre as flutuações da exportação e da Renda Interna), num notável trabalho feito por Teodoro Oniga (17). A diferença fundamental entre os dois métodos é que adotei uma relação variável entre a renda gerada pelas exportações e a renda global, enquanto Oniga admite que entre 1830 e 1960 o crescimento da renda 28 29 num período decenal corresponde constantemente a 40% do valor total das exportações no respectivo decênio. A aplicação de uma relação constante exportação/renda parece uma inadvertência no cálculo final, pois o próprio Oniga, com seu penetrante poder de análise, fala em que a dependência renda/exportação se é válida “num intervalo em que as exportações representam uma fração relativamente pequena e decrescente (entre 19% e 7.5% - entre 1947 e 1960), ela tem maiores chances ainda de exprimir uma realidade econômica no passado, quando as exportações contribuem com uma fração muito mais importante no total da produção” (nosso grifo).(18) Devo lembrar que eu tinha aplicado, entre 1600 e 1950, uma escala de relação exportação/renda partindo de 80% e chegando a 10%. Os resultados globais da evolução da renda são os seguintes: 1800 1850 1900 1950 £ 1000 8.750 22.080 132.933 1.387.070 US$ milhões 72,6 183,3 1.103,3 11.512,7 Estes dados diferem bastante dos apresentados em livro anterior (19) por duas razões: a) adotou-se para 1850 a relação E/RI de 35% (em vez de 40%) e para 1900 de 25% (em vez de 30%); b) a fim de evitar as distorções resultantes das flutuações da exportação, a base do cálculo não foi o valor da exportação dos anos 29 30 1850 e 1900, e sim a média do valor da faixa de 10 anos em torno das respectivas datas. Os estudos contidos no presente livro representam tentativas de completar e reajustar os trabalhos realizados por outros, a fim de se chegar, com o tempo, a uma História Econômica do Brasil quantificada, objetiva e coerente, constituindo uma experiência aproveitável para a compreensão dos árduos problemas do desenvolvimento econômico. ESQUEMA DA HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL 1. Ciclos e subciclos: - Formação econômica determinada pelo binômio mer cantilismo/colonialismo: organização da Colônia de modo a garantir a balança comercial favorável da Metrópole (através da produção de metais pr eciosos ou de produtos conjunturais de exportação).(20) Concentração dos fatores de produção no produto conjuntural (tendência para a monocultura); instrumentos institucionais favorecendo o produto conjuntural. - Ciclos: períodos em que a exportação é concentrada num certo produto conjuntural. - Efeitos: - o produto conjuntural liderando a exportação;(21) - a exportação (com a intermediação inevitável da Metrópole) constituindo a principal fonte criadora da renda 30 31 - - colonial, o produto conjuntural ( cíclico) desempenha papel decisivo na criação da renda; - atração dos fatores da produção: - expansão territorial; - expansão demográfica; - entrada de capitais; alta rentabilidade (reinves -timento); - reflexo sobre outras atividades econômic as (fluxos de renda); - estratificação social correspondendo às necessidades do produto cíclico; - criação de instituições políticas e sociais adequadas. Ciclos: períodos em que o centro dinâmico da economia é cons tituído por um certo produto co njuntural de exportação. Subciclos: períodos em que produtos secundários sustentaram a balança comercial, sem o dinamismo de um verdadeiro ciclo; ligação com o consumi interno.(22) Cronologia dos ciclos: 1503- 1550: ciclo do pau-brasil (23) 1550-1650: ciclo do açúcar (24) 1560 até o fim do período colonial: subciclo do gado 1642 até o fim do período colonial: subciclo do fumo (25) 1694-1760: ciclo da mineração (diamantes: a partir de 1729) 1780-1790: subciclo do algodão 1790-1810: ressurgimento do ciclo do açúcar 1825-1930: ciclo do café 2. Do Descobrimento até meados do século XVI 2.1 Quadro histórico 1492 – Bula Inter Caetera do papa Alexandre VI 1994 – Tratado de Tordesilhas 1500 – Pedro Álvares Cabral no Porto Seguro 1501-1503 – Expedições de reconhecimento 31 32 1504 – Incursões francesas no Brasil 1506 – Novos progromos contra os judeus nos países ibéricos 1516-1519 e 1526-1528 – Expedições de Cristóvão Jacques 1519-1521 – Conquista do México por Cortês 1524-1532 – Conquista do Peru por Pizarro 1530-1532 – Expedição de Martim Afonso de Souza 1532 – Fundação de São Vicente 1534 – Criação das primeiras Capitanias Hereditárias Constituição da Companhia de Jesus 1545 – Descobrimento das minas de prata de Potosi (Peru) 1548 – Regimento de Tomé de Souza 1549 – Constituição do Governo Geral do Brasil Fundação da cidade de Salvador Chegada dos padres jesuítas (Manuel da Nóbrega) 2.2 Ciclo do pau-brasil Condicionamentos externos – aumento das rendas e do consumo na Europa Ocidental; demanda de tecidos; expansão do artesanato; demanda de corantes (preços altos, suportando o alto custo do transporte transoceâ nico); rentabilidade (custo local: 1.000 réis por quintal; venda para o consumidor: 4.00 0 réis). Condicionamentos internos – fatores de produção: - recursos naturais: planta nativa, sem exigir cuidados especiais; - mão-de-obra; índios (livres ou escravos), para derru barem as árvores e transportarem-nas até o local de embarque; - tecnologia: rudimentar (corte de árvores), conhecida pelos índios; - capital: reduzida exigência no local (pagamento dos índios in natura ou sua utilização como escravos; cons tituição de feitorias temporárias para o embarque do pau 32 33 brasil); necessidade de volumosos capitais para transporte e comercialização (apelo para os cristãos novos). Funcionamento: - monopólio da Coroa; - arrendamento (1º) grupo de cristãos -novos liderados por Fernão de Noronha – 1503); - limitação da renda pela demanda (± 20.00 0 quintais por ano = ± £ 80.000); (26) - dificuldades criadas pelos ataques dos índios e pelas incursões dos corsários, piratas, comércio entrelopo; - substituição por um produto mais rendoso (açúcar); (27) - persistência da exportação de pau-brasil durante o período colonial; - liquidação do produto pela invenção dos corantes artificiais (índigo artificial). Efeitos: - prioridade na pauta de exportação (até 1540 -1550, provavelmente, 90-95% do valor anual da exportação); - criação de renda (fora da Colonia); - valor da exportação de pau-brasil no período colonial: £ 15.000.000 (2,8% da exportação total, 1,7% da Renda Interna colonial); - poucos reflexos no conjunto econômico -social: sem penetração territorial, sem crescimento demográfico (a não ser, ambas muito superficiais); sem criação de classes sociais, e outras atividades reflexas (quase sem caráter de verdadeiro ciclo); entretanto, justificando a necessidade da criação de um sistema político -militar da defesa: capitanias hereditárias. (28) 3. De meados do século XVI a meados do século XVII 3.1 Quadro histórico 1551 – Criação do bispado da Bahia 1554 – Fundação do Colégio Jesuíta de São Vicente 33 34 1555-1565 – Franceses no Rio de Janeiro (Villegaignon) 1565 – Fundação da cidade do Rio de Janeiro 1571 – Batalha de Lepanto 1573-16578 – Instituição de dois governos 1578 – Batalha do Alcácer-Québir 1580-1640 – Portugal unido à Espanha 1583-1591 – Ataques ingleses ao Brasil 1584 – Conquista da Paraíba 1588 – Desastre da Invencível Armada 1589 – Conquista de Sergipe 1591-1595 – Primeira visitação do Santo Ofício 1594-1597 – Ataques franceses 1599-1604 – Ataques holandeses 1599 – Conquista do Rio Grande 1600 – Constituição da Companhia Inglesa das Índias Orientais 1602 – Constituição da Companhia Holandesa das Índias Orientais 1608-1612 – Instituição de dois governos 1609 – Trégua Espanha-Holanda 1612-1615 – Franceses no Maranhão 1618-1648 – Guerra de Trinta Anos 1621 – Fundação do Estado do Maranhão e Grão -Pará Constituição da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais 1624-1625 – Holandeses na Bahia 1630-1654 – Holandeses em Pernambuco, Itamaracá, Rio Grande, Paraíba, Sergipe e Maranhão 1637 – Expedição de Pedro Teixeira na Amazônia 1637-1644 – Governo de Nassau 1642 – Tratado Portugal-Inglaterra 1645 – Insurreição pernambucana 1648 – Reconquista da Angola pelos portugueses 1651 – Ato de Navegação de Cromwell 1652-1653 – Guerra Inglaterra-Holanda 34 35 3.2 Ciclo do açúcar – 1550-1650 Condicionamentos externos: - elevação das rendas na Europa Ocidental; - aumento do consumo de açúcar; - dificuldades do abastecimento do Oriente Próximo e Extremo Oriente; - elevação geral dos preços em decorrência do afluxo de metais preciosos do Novo Mund o (arroba de açúcar em 1500: 400 réis; em 1650: 1.800 réis). Condicionamentos internos – fatores de produção: - recursos naturais: terra disponível de qualidade relativamente boa (massapé), clima, florestas próximas (lenha para fornalhas), rios (força motriz e transporte); em toda a extensão da costa, mas sobretudo de Sergipe a Rio Grande do Norte; necessidade de animais de carga (v. subciclo do gato); - mão-de-obra: índios (livres ou escravos) inadaptados; reduzida mão-de-obra branca; importação maciça de escravos africanos (29) - tecnologia: experiência anterior dos portugueses (Madeira); - capital: necessidade de capitais volumosos (um engenho: £ 10-15.000); dificuldades financeiras dos donatários (30); papel dos cristãos-novos e dos intermediários comerciais e financeiros; capitalização na própria economia açucareira, porém com dificuldades de capital de giro (31); Funcionamento: - unidade de produção: engenho de açúcar (economia autárquica); formação: donos de engenho, trabalhadores livres, escravos, cultivadores livres (arrendatários fornecedores de cana); agregados, forros, artesãos, etc.; - favores oferecidos aos donos de engenho pela Me trópole(4); 35 36 - fiscalismo: dízimo do açúcar (1/10 da quantidade produzida); intermediação obrigatória da Metrópole na exportação (papel dos grandes centros europeus de comercialização: Antuérpia); - insegurança: ataques dos índios, corsários, piratas e comércio entrelopo; ocupação holandesa(33); - expansão durante a conjuntura ascendente (1550 -1650): aumento das quantidades produzidas e exportadas (1600? 1.200.000 arrobas; 1650: 2.000.000 arrobas), ao mesmo tempo que os preços se elevavam; - alta rentabilidade; - mudança da conjuntura após 1650: concorrência antilhesa, queda dos preços (fim da inflação européia); - ressurgimento por causa da revolução nas Antilhas (1789); - Bloqueio Continental (1806): açúcar de beterraba. Efeitos: - prioridade na pauta de exportação: 1600 - £ 2.100.000 (90% do total); 1650 - £ 3.800.000 (95% do total); no período colonial: £ 300 milhões – 56% da exportação total (34); - importante receita para a Coroa (e para os intermediários comerciais e financeiros); - criação de renda (talvez 2/3 fora da Colônia); do total da renda colonial, 33% gerados pelo a çúcar; - fixação dos colonos; ocupação territorial (embora apenas litorânea); - expansão demográfica: atração dos colonos, integração de índios, importação maciça de escravos africanos; - estruturação social (criação de latifúndios, situação subserviente dos demais cultivadores); isolamento dos engenhos; hábitos de consumo mais elevados nos engenhos (em grande parte, com produtos importados); reduzida urbanização (35); 36 37 - criação de atividades conexas: presa de escravos (índios: bandeirantes; pretos: mercadores); atividades adjuntas no engenho; criação de gado. 3.3 Subciclo do gado Condicionamentos: - ligação indireta com o setor exportador: fornecimento de força motriz, meio de transporte, alimentação e matéria prima artesanal para os engenhos d e açúcar (mais tarde, sustentação no ciclo da mineração, inclusive para gado cavalar e muar); - ligação direta: exportação de couro (também como envólucro para fumo); - para consumo interno: alimentação e artesanato (aspecto anticíclico) (36); - facilidade para fatores de produção: extensão territorial; mão-de-obra índia adequada; pouca necessidade de capital (capitalização natural no próprio setor). Funcionamento: - pontos de expansão: Bahia, Pernambuco, São Vicente; - expansão ao longo dos rios (São Fr ancisco); limitações legais para não prejudicar a cultura da cana; - grandes currais (em torno dos engenhos) e pequenos currais; - rentabilidade modesta. Efeitos: - sustentação da balança comercial (sobretudo nas épocas de crise do açúcar); total da exp ortação no período colonial: £ 15.000.000 (2,8% do total); - receita para a Metrópole; - fortalecimento do setor autônomo (composição do setor: agricultura de subsistência – mandioca, algodão, etc. – pesca de baleia, criação de gado, colheita tropical, pequenas ocupações agropecuárias e hortigranjeiras; 37 38 reduzido artesanato; inexistência de um grande mercado: níveis baixos de renda, falta de ligações entre os núcleos, pouco interesse dos investidores, economia não monetária); - criação de uma classe média rural (maior mobilidade social); - grande expansão territorial (37). 4. A Segunda Metade do Século XVII 4.1 Quadro histórico 1632 – Criação do Conselho Ultramarino 1649 – Constituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil 1654 – Expulsão dos holandeses Tratado Portugal-Inglaterra 1657 – Instituição do Governo de Pernambuco Lutas na fronteira Sul 1661 – Tratado Portugal-Inglaterra Tratado de paz da Haia 1665 – Franceses em São Domingos 1669 – Dissolução da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais 1680 – Fundação da Colônia do Sacramento 1681 – Tratado de Lisboa Perda das Índias Portuguesas 1682 – Constituição da Companhia do Comércio do Maranhão 1633-1713 – Guerra dos Bárbaros (Confederação dos Cariris) 1684 – Revolta de Beckman 1695 – Destruição do quilombo de Palmares 1703 – Tratado de Methuen 4.2 Hiato econômico – Subciclo do fumo - queda do ciclo do açúcar: baixa das cotações (aumento da oferta em decorrência da criação dos centros produtores nas Antilhas; queda geral dos preços); o açúcar mantém38 39 se, entretanto, como principal produto de exportação do Brasil; queda da rentabilidade - descapitalização do setor (38); - medidas de defesa da receita colonial: - criação do Conselho Ultramarino; - constituição de organizações monop olistas para comercializar os produtos da Colônia: Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649-1663) e Companhia do Comércio do Maranhão (1632-1685); sucesso relativo da primeira, apenas; - monopólio do fumo (1642); - monopólio do sal (1658); - liberação do comércio em navios estrangeiros (1671); - navegação obrigatória em frotas (1688); - importância relativamente maior dos produtos sub cíclicos na exportação e na geração da renda: couro, algodão (Maranhão), fumo. Subciclo do fumo (a partir da segunda metade do século XVII) - conjuntura: aumento do consumo na Europa Ocidental; produto importante para o escambo dos escravos africanos; em pequena proporção, para o consumo interno (39); - condicionamentos: planta indígena; tecnologia tradicio nal; mão-de-obra local ou escrava; necessidade reduzida de capital; - funcionamento: - rentabilidade relativamente reduzida; - monopólio da Coroa – importante receita pública; - participação da economia colonial: exportação total £ 12.000.000 (2,2% do valor da exportação colonial, 1,3% da Renda Interna do período colonial). Resultados do período - queda da exportação, apesar das medidas de defesa e da participação dos subciclos; - queda da Renda Interna, sendo dependente da exportação; 39 40 - crescimento relativo do setor autônomo da economia (não dependente da exportação): mandioca, milho, plantas alimentícias, frutas, trigo, etc. (fumo, algodão, pecuária – na medida em que não se exportavam); artesanato (muito reduzido); - em termos per capita a exportação caiu, entre 1650 e 1700, de 23.10.0 para £ 6.14.0, a Renda Interna, de £ 29.8.0 para £ 11.8.0. 4.3 Panorama do século XVII - Evolução da exportação (aspecto cíclico) – reflexo sobre a geração de renda (boa parte da Renda Interna – talvez 2/3 – ficava fora da Colônia) – crescimento relativo do setor autônomo (40). Exportação (E) £ 1000 1600 1650 1700 2.400 4.000 2.400 variação % ... + 67% – 40% - Composição da exportação: 1600 % do £ 1000 total açúcar 2.160 90% pau-brasil 100 4% fumo 15 0 couro ... ... mineração – – Renda Interna (RI) £ 1000 3.000 5.000 4.000 variação % ... + 67% – 20% 1650 £ 1000 3.800 75 ... ... – Setor autônomo (RI-E) £ 1000 variação % 600 ... 1.000 + 67% 1.000 + 60% 1700 % do total 95% 2% ... ... – £ 1000 1.800 45 ... 100 310 % do total 75% 2% ... 4% 13% 40 41 - Expansão territorial e demográfica: Área ocupada População (km2) (hab) 1600 25.800 100.000 1650 ... 170.000 1700 110.700 350.000 Densidade (hab / km2) 3,9 ... 3,2 (41) 5. A primeira metade do século XVIII 5.1 Quadro histórico 1693 – Ouro em Taubaté 1694 – Fundação da Casa da Moeda (Bahia; no Rio de Janeiro em 1702) 1700 – Tratado de Lisboa 1704-1705 – Ataques espanhóis a Sacramento 1708 – Guerra dos Emboabas 1709 – Criação da Capitania de São Paulo e Minas Gerais 1710 – Guerra dos Mascates Corsários franceses na Costa do Rio de Janeiro 1715 – Tratado de Utrecht 1720 – Criação da Capitania de Minas Gerais Brasil Vice-Reinado 1725 – Criação de Casas de Fundição 1729 – Diamantes em Serro Frio 1735-1737 – Ataques espanhóis a Sacramento 1744 – Criação da Capitania de Goiás 1747 – Primeira tipografia no Rio de Janeiro 1749 – Capitania de Mato Grosso 1750 – Tratado de Madrid 1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro 5.2 Ciclo da mineração (1693-1760) Condicionamentos externos: - importância do ouro como moeda internacional; 41 42 - mercantilismo – crisofilia (procura constante desde o Descobrimento: entradas, bandeiras). Condicionamentos internos: - condições naturais: ouro e diamantes a flor da terra em grandes quantidades; - mão-de-obra: novos colonos ou atraídos de outras zonas; importação de escravos; - tecnologia: bastante simples, conhecida na Metrópole e até pelos negros; - capitais: necessidade de pouco capital (escravos, equipamento); transferido de outras zonas, trazido pelos novos colonos ou criado pela própria mineração. Funcionamento: - descoberta de ouro em Taubaté (1693); extensão para Mato Grosso e Goiás; diamantes em Serro Frio (1729); - fiscalismo: quinto do ouro (1735-1750: capitação); derrama; monopólio dos diamantes (1731); - obrigação da cunhagem (Casas de Fundição); - medidas de defesa em relação ao contrabando (organização administrativa na região da mineração); importância do contrabando (20% de produção ); - entrada maciça de novos colonos na região da mineração (guerra dos Emboabas); - queda da produção na segunda metade do século XVIII; excesso do fiscalismo (Inconfidência Mineira -Tiradentes – 1789). (42) Efeitos: - exportação: no período colonial, £ 170 milhões (31,7% da exportação total); - importante fonte da receita para a Coroa; - criação de renda (no período colonial, 19,0% da Renda Interna total); - reflexos sobre outras atividades (comércio, artesanato); 42 43 - elevação (passageira, dos níveis de c onsumo; urbanização (comércio, artesanato, administração); - novas classes (parcialmente desaparecidas após a queda do ciclo – proletariado rural e urbano); - monetização da economia; - elevação dos preços (inflação) na região mineira. (43) 6. De meados do século XVIII até a Mudança da Corte 6.1 Quadro histórico 1750-1777 – O marquês de Pombal, secretário de Estado 1751 – Criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão 1759 – Expulsão dos jesuítas 1762 – Capitulação de Sacramento 1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro 1772 – Criação do Estado do Maranhão e Piauí 1774 – Escolas Régias no Rio de Janeiro e São João del Rei 1778 – Guerra da Independência dos Estados Unidos 1789 – Revolução Francesa – Revolta no Haiti Inconfidência Mineira 1798 – Conjuração Baiana 1802 – Revolta em São Domingos 1807 – Bloqueio Continental Criação da Capitania do Rio Grande do Sul 1808 – Mudança da Corte para o Rio de Janeiro 6.2 Hiato econômico – Subciclo do algodão - queda do ciclo da mineração (esgotamento das r eservas facilmente alcançáveis); - contínua decadência do açúcar (entretanto, pequeno res surgimento após a revolta nas Antilhas, destruindo ins talações e eliminando temporariamente um concorrente); golpe definitivo com o aparecimento do açúcar de beterraba; - fraqueza da economia de subsistência; - medidas de defesa: 43 44 - constituição da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1777) e da Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba (1759 1780); - políticas de Pombal: criação da Mesa de Inspeção (1759), maior liberdade de navegação (1765), redução dos fretes marítimos (1766); - proibição das indústrias (1785). Subciclo do algodão Condicionamentos: externos: revolução Industrial na Inglaterra: demanda maior de algodão; guerra da Independência norte-americana: falta de matéria-prima norteamericana. internos: condições ecológicas (planta indígena); mão de-obra escrava (índia); pouca necessidade de capital; - Sustentação da balança comercial: exportação £ 12.000.000 durante o perío do colonial (2,2% da exportação total); - Ligação com o setor autônomo (consumo local); - Criação de renda (importância regional: Norte). Resultados do período - queda da exportação; - queda da Renda Interna; - crescimento relativo (embora em condiçõ es precárias) do setor autônomo da economia; - queda da exportação per capita (£ 2 9/10 em 1750, £ 1 1/10 em 1800) e da renda per capita (£ 4 8/10 em 1750, £ 2 2/3 em 1800). 44 45 6.3 Panorama do século XVIII - Nova variação cíclica graças à mineração; depois, queda da exportação (porém menor, graças à intervenção de outros produtos); contudo, ligeiro crescimento da renda (graças ao desenvolvimento relativo a o setor autônomo) (44). Exportação (E) £ 1000 1700 1750 1800 2.400 4.300 3.500 variação % – 40% + 79% – 19% - Composição da exportação: 1700 % do £ 1000 total açúcar 1.800 75% pau-brasil 45 2% fumo ... ... couro 100 4% mineração 310 13% algodão ... ... Renda Interna (RI) £ 1000 4.000 7.200 8.800 variação % – 20% + 80% + 22% 1750 £ 1000 2.000 30 100 110 2.035 ... Setor autônomo (RI-E) £ 1000 variação % 1.600 + 60% 2.900 + 81% 5.300 + 83% 1800 % do total 47% 0 2% 2% 47% ... - Expansão territorial e demográfica: Área ocupada População (km2) (hab) 1700 110.700 350.000 1750 ... 1.500.000 1800 324.000 3.300.000 £ 1000 1.100 60 225 200 855 200 % do total 31% 0 6% 6% 24% 6% Densidade (hab / km2) 3,2 ... 10,2 (45) 45 46 NOTAS (1) Frédéric Mauro, LXXIX, pág. 10. (2) Apesar da insistência quanto à necessidade de quantificar a História Econômica do Brasil, como metodologia analítica, enfatizei sempre a importância primordial do conjunto dos fatores culturais em que se processa o desenvolvimento econômico (v. Mircea Buescu-Vicente Tapajós – XXI). (3) Não se pode negar a precariedade dos estudos quantitativos referentes a épocas remotas em que as informações estatísticas são muito escassas, principalmente por causa do desinteresse dos cronistas pela quantificação do fenômeno social até, pelo menos, o século XVI (v. John V. Nef – LXXXVI bis). Caso típico é a crítica feita a Earl J. Hamilton pela precariedade dos cálculos sobre a evolução dos preços nos séculos XVI e XVIII. Evidentemente, os cálculos devem ser aceitos com cautela, mas de qualquer forma a tentativa de quantificação represen tou um progresso com vistas a uma interpretação mais objetiva do fenômeno. Como diz Frédéric Mauro, “o que fez é melhor que nada” (op. cit., pág. 18). Os estudos publicados no presente volume são tentativas no mesmo sentido – e sou o primeiro a compreender as limitações de tais “exercícios” de quantificação. Insisti em quão audaciosa é a tentativa de calcular a renda inte rna do Brasil em 1600 (v. infra, págs. 81-90: “BRASIL 1600”), mas achei que este é o caminho para um estudo mais objetivo do passado brasileiro. Tive a satisfação de encontrar um apoio, embora não referente ao meu estudo, em Frédéric Mauro (op. cit., pág. 28): “Mas, será objetado, para que serve estudar a renda nacional do século XVII, quando, naquela época, ninguém pensava nisso? Duas razões para fazê-lo nos parecem essenciais. De uma parte, é este o único meio de compreender a organização de conjunto da economia nesta época e de opô -la à organização das economias seguintes. De outra parte, é este o único meio de compreender as flutuações a longo prazo desta economia, de discernir as variáveis mais interessantes para estudar, de precisar seu valor e sua significação”. (Para a perspectiva da evolução da renda no Brasil, v. infra, o gráfico da pág. 224). (4) O livro citado de Frédéric Mauro, d epois de adotar, teoricamente, as mesmas posições quanto à metodologia da História Econômica, contém vários estudos enquadrando -se nas duas 46 47 etapas mencionadas. De um lado, pesquisas quantitativas micro e macroeconômicas contribuindo para o conhecimento do comportamento da economia em várias épocas: atividades do mercador Fernão Martins na primeira metade do século XVII, contabilidade do Engenho Sergipe do Conde na mesma época, análise do livro razão de Antônio Coelho Guerreiro no fim do século XVII e o início do século XVIII. De outro lado , sínteses como o “Império Português e o Comércio Franco-Português nos meados do século XVIII”, ou, sobretudo, o brilhante estudo “Acerca de um modelo intercontinental: a expansão ultramarina européia entre 1500 e 1800”. (Sobre o assunto, v. do mesmo autor – LXXVIII). (5) É o caso dos excelentes trabalhos divulgados pelos “ESTUDOS HISTÓRICOS” da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília – exemplo de dedicação e entusiasmo pela pesquisa histórica. (6) Oliver Ónody – LXXXVIII. (7) v. infra, págs.244-249: “Preço de escravos no século XIX”. (8) T. von Leithold – L. von Rango – LXX. (9) Thomas Davatz – XLI. Um livro excelente cujas fontes de informação foram, também, os anúncios de jornal, mas que oferece igualmente poucas possibilidades de comparação entre os preços no período imperial: Delso Renault – CII. (10) v. infra, págs. 250-268: “Café, câmbio e inflação no Brasil (1850-1900)”. Outro caso interessante é aquele da “política da defesa do nível de renda” durante a Grande Crise de 1929, através da compra e da queima pelo Governo dos excedentes de café: v. uma refutação da tese tradicional em Carlos Manuel Pelaez – XC. (11) v. na bibliografia final os grandes trabalhos de Capistrano de Abreu, Roberto Simonsen, Afonso Taunay, Celso Furtado, Maurício Goulart e outros. (12) No que concerne à quantificação da economia brasileira em fins do século XVI por Celso Furtado, v. infra, págs. 81 -90: “Brasil 1600”. Quanto à reconsideração da estimativa feita por 47 48 Simonsen para a receita da exportação no período colonial, v. infra, págs. 196-198: “Sobre o valor da exportação colonial”. (13) Foi esta a técnica que utilizei para o cálculo da Renda Interna no fim do século XVI – v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”. (14) Frédéric Mauro (LXXiX, pág. 78), insiste, com razão, nessa pesquisa. Exemplos de levgantamentos dessa natureza encontram se nos grandes trabalhos de Pierre Chaunu – XXXIX bis e do próprio Mauro – LXXVI. (15) v. infra, págs. 201-208: “Notas sobre o volume da importação de escravos”; págs. 209-218: “Novas notas sobre a importação de escravos”. (15 bis) Enquanto se aprontava o presente livro, um grupo de professores e alunos, do qual faz parte o autor, constituiu o Centro de Pesquisas de História Econômica do Bra sil (CEPHEB). Esperase que, com o tempo, este Centro consiga preencher a lacuna apontada no texto. (16) v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”; também, M. Buescu – V. Tapajós – op. cit., pág. 166. (17) Teodoro Oniga LXXXVII bis. (18) As mesmas ponderações são válidas a respeito das estimativas feitas por Sérgio Nunes de Magalhães Junior (LXXII bis); v. infra, págs. 272-279: “A Renda interna (1920-1940): uma tentativa de quantificação”. (19) M. Buescu – V. Tapajós – ibidem. (20) O mercantilismo pode ter sua filosofia sintetizada no sorites: o poder é dado pela riqueza; a riqueza é dada pelos metais preciosos; os metais preciosos são dados pela balança comercial superávitária. (21) Para certas limitações a essas características, v. Mircea Buescu – Vicente Tapajós – XXI – págs. 24-25. 48 49 (22) Podem ser chamados “anticiclos” na medida em que contribuíram para interiorizar a economia – conf. M. Buescu – V. Tapajós – op. cit., pág. 25. (23) Sobre o fim do ciclo do pau-brasil, v. infra, págs. 45-50: “Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”. (24) Sobre o fim do ciclo do açúcar, v. infra, págs. 109 -131: “O Engenho Sergipe do Conde no século XVII: um levantamento quantitativo”. (25) v. infra, págs. 74-80: “Contribuição para a história do subciclo do gado”. (26) v. Roberto C. Simonsen – CXII, págs. 63-64 – um cálculo sobre a rentabibilidade do ciclo. (27) Sobre a persistência do ciclo do pau -brasil, v. infra, págs. 4550: “Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”. (28) v. Vicente Tapajós – CXXI. (29) Sobre a rentabilidade do escravo, v. M. Buescu – V. Tapajós – XXI, pág. 124. (30) v. supra, págs. 45-50: “novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”. (31) v. infra, págs. 169-174: “Uma controvérsia em torno de Antonil”. (32) Sobre os direitos dos donatários – V. Tapajós – CXXI. (33) v. infra, págs. 139-149: “Invasão holandesa no século XVII: perdas da economia açucareira”. Dois livros são fundamentais: Hermann Wätjen – CXXXIX e C. R. Boxer – XIII. (34) A quantificação da exportação colonial foi feita por Roberto Simonsen (CXII). Sobre uma possível reavaliação dos números, v. infra, págs. 196-198: “Sobre a exportação colonial”. 49 50 (35) Sobre a vida social da época, é fundamental o livro de Gilberto Freyre – LIV. (36) A importância relativa do gado aparece quando relacionamos o número de cabeças existentes em 1600 (650.000) com o número de habitantes (100.000): isso dá 6,5 cabeças por habitante. No Brasil de 1960, a relação não passava de 0,8. (37) v. infra, págs. 167-168: “Panorama do século XVII”. (38) Sobre a decadência do setor açucareiro, v. infra, págs. 169 174: “Uma controvérsia em torno de Antonil”. (39) v. infra, págs. 189-193: “A economia do fumo segundo Antonil”. (40) As estimativas aqui alinhadas, forçosamente precárias , são resultado de um método de cálculo que foi exposto em M. Buescu – V. Tapajós – XXI, págs. 132-140. (41) A queda da densidade (N.B.: em relação à área econo micamente ocupada) pode ser interpretada como reflexo do sub ciclo do gado, atividade tipicame nte extensiva. (42) Livro fundamental é o de C. R. Boxer – XII. (43) Informações valiosas em Andreoni (Antonil) – IV. (44) Detalhes quantitativos em M. Buescu – V. Tapajós – XXI – Para um balanço da Colônia, v. infra, págs. 219 -224: “Desenvolvimento econômico do Brasil – raízes históricas”. (45) Numa economia de agricultura extensiva, o aumento da den sidade demográfica, não acompanhado por progressos tecnoló gicos, poderia explicar, em parte pelo menos, a queda global da renda “per capita”. (Transcrito de História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro: APEC, 1970, págs. 25-33). 50 51 OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS 51 52 A ECONOMIA AÇUCAREIRA EM 1600 E OS SEUS ASPECTOS QUANTITATIVOS O fenômeno econômico é essencialmente quantificável. Pelo caráter específico do seu suporte material o valor econômico, ao contrário das outras categorias axiológicas, apresenta duas dimensões: ao lado das conotações qualitativas, definem-no, e de maneira mais patente, as conotações quantitativas. Não deve ser exagerado o mérito destas últimas, pois atrás do quantitativo, de aparência rigorosa, sempre aparece o qualitativo – mas, do ponto de vista formal, a quantificação resolve o problema, como, por exemplo, o preço unido do mercado estabelece o equilíbrio aparente entre as partes, embora tenha, muito provavelmente, significado qualitativo diferente para cada uma delas. A apreciação objetiva do fenômeno econômico no seu desenrolar histórico ficará extremamente precária se não se basear na quantificação. Como se poderá falar objetivamente em progresso ou retrocesso se a afirmação se sustenta, apenas, em sinais exteriores, bem precários? Afirmar a necessidade da quantificação na História Econômica não significa minimizar as dificuldades de empreendê-la por falta de documentos. Como se sabe, a tendência de precisar o fenômeno 52 53 social em termos numéricos é hábito recente que, mesmo na Europa, mais avançada culturalmente, não apareceu antes da segunda metade do século XVI.(1). É fácil imaginar a penúria de elementos num Brasil Colonial que a Metrópole manteve em quarentena cultural. Contudo, as informações existem: por exemplo, se em 1618, Brandônio, apesar de sua origem e profissão, se apega bastante pouco aos números, Gandavo, uns 70 anos antes, já tratava em termos quantitativos a economia açucareira incipiente. Lá onde os dados faltam, poder-se-á interpolar ou extrapolar – método matemático de usar a imaginação. Deverá aplicar-se com cautela e prudência, exigindo-se que a construção resultante seja racional e coerente. Nã o será fácil chegar a uma quantificação de uma certa amplitude, abrangendo todo o passado da economia brasileira. Até lá, será preciso juntar dados, conferi -los, completá-los, construindo-se, aos poucos, a imagem quantificada. Brilhante exemplo foram dados por Roberto Simonsen(2) e Celso Furtado(3). Tentativas mais ousadas, portanto mais aleatórias, foram feitas num livro meu, em co-autoria com o Prof. V. Tapajós (4). A necessidade de reconsiderar e conferir alguns dados tornados tradicionais aparece ao analisar-se um documento recentemente elaborado pelo XXI Curso da CEPAL – BNDE (5). Não vou referir-me aos valores indicados em várias ocasiões e transformados em moeda atual, pois parecem mais um erro gráfico. Por exemplo, diz -se que o rendimento do açúcar era de “300.000 cruzados ou 53 54 Cr$ 28 mil”. O equívoco é evidente. Simonsen fala em 28 contos da sua época. Na realidade, 300 mil cruzados do início do século XVII correspondiam a 120 contos daquela época, ou seja, pouco mais de £ 115.000 (ouro). Em valor atual (numa equiparação muito precária quando se trata de épocas tão distantes), seriam cerca de US$ 955.000. Essa confusão entre valores atuais e valores da época de Simonsen (que também não teve o cuidado de indicar o que era objetivamente o valor da moeda d a sua época) repete-se em várias ocasiões, Mais grave é a imprecisão de um trecho referente ao rendimento total do pau-brasil durante 30 anos de exploração. Indica -se a soma de 120.000 contos, porém sem precisar-se em que moeda. Poderia presumir-se que se trata da moeda do século XVI, mas, então, o valor indicado seria 100 vezes o calculado por Simonsen para toda a exportação colonial do pau-brasil, isto é, em 300 anos, e não apenas em 30. Cem vezes o valor e dez vezes o período, a diferença seria de 1 para 1.000. Isto mostra mais uma vez a necessidade de adotar-se um instrumento de medição objetivo e unitário na quantificação do passado (6). Incidentalmente, vale lembrar, também, os números indicados no Relatório CEPAL-BNDE a respeito da população escrava, quando se diz que “em 1700 já havia três milhões (de escravos) aproximadamente”. Ora, de acordo com as fontes mais seguras de informação e cálculo, toda a população do Brasil em 1700 devia situar-se em torno de 350 mil almas. Como pode 54 55 explicar-se o número de três milhões inscritos en toutes lettres no Relatório? Nem um eventual erro gráfico (1700 em vez de 1800) salva a situação. Em 1800 o Brasil tinha aproximadamente 3.300.000 habitantes, do que resultaria que a população escrava teria representado 91% do total – o que seria um absurdo evidente. Admite-se que no ponto culminante da participação dos escravos na composição demográfica, no período 1750-1800, essa participação devia ser de cerca de 50%. Voltando para a economia açucareira, vale a pena confrontar, mais uma vez, os números concernentes à produção de açúcar em 1600. Repetindo Porto Seguro (apesar das sérias restrições feitas por Simonsen), o Relatório CEPAL-BNDE indica 120 engenhos “com produção de 70.000 caixas de 10 quintais a unidade”. Uma pequena análise mostra, entretanto, a incoerência da informação: 70.000 caixas a 10 quintais são 700.000 quintais ou cerca de 41 milhões de quilos ou 3,7 milhões de arrobas. Divididos entre 120 engenhos, estes 3,7 milhões de arrobas dariam 30 mil arrobas por engenho e por ano. Ora, as informações são abundantes no sentido de que a produção anual de um engenho, por maior que fosse, era muito mais modesta. Em 1570, Gandavo falava numa média de 3.000 arrobas por ano, e outra informação sua sugeriria ainda menos (cita, para a Bahia, uma produção excepcional de 50.000 arrobas para 23 engenhos – pouco mais de 2.000 arrobas por engenho). Brandônio, em 1618, diz que havia engenhos 55 56 pequenos de 3 a 5.000 arrobas e outros, maiores, constituindo provavelmente a maioria, de 6 a 10.000 arrobas. Laet, na época da ocupação holandesa, dá um mínimo de 3.000 e um máximo de 8.000. O próprio Relatório CEPAL-BNDE adota os extremos de 3.000 e 10.000 arrobas. Como poderiam ser 30.000? Mesmo adotando, conforme a advertência de Simonsen (baseada na informação de Antonil), o peso de 35 arrobas por caixa, as 70.000 caixas dariam 2.450.000 arrobas, as quais, divididas para 120 engenhos, corresponderiam a pouco mais de 20.000 arrobas por engenho e por ano o que é, também, inadmissível (7). O problema deve ser reconsiderado sob os dois aspectos, do número de engenhos e da produção, a fim de se chegar a um conjunto coerente de dados. No que tange ao primeiro aspecto, deve-se, mais uma vez (8), e apesar da autoridade de Varnhagen e Capistrano de Abreu (que aderiu ao cálculo – cf. prefácio aos Diálogos das Grandezas do Brasil), verificar se o número de 120 engenhos para o ano de 1600 é sustentável. Este exame crítico parece ousado face à aceitação, quase unânime, do número oferecido por Varnhagen, aceito en passant por Capistrano, discutido, porém sem conclusão definitiva, por Simonsen, adotado por Celso Furtado e, finalmente, pelo Relatório CEPAL-BNDE. Um levantamento das principais informações a esse respeito permite estabelecer o seguinte quadro, com os engenhos apontados pelos respectivos informantes nas várias Capitanias do Brasil (9): 56 57 1570 1583 1584 1587 1612 1627 Rio Grande 1 Paraíba 12 18-20 Itamaracá 1 3 10 18-20 Pernambuco 23 66 60 50 99 100 Bahia 18 36 40 36 50 50 Ilhéus 8 3 6 5 Sergipe 1 Porto Seguro 5 1 2-3 2 1 Espírito Santo 1 6 4-5 6 Rio de Janeiro 3 2 40 São Vicente 4 3-4 3 Fontes: 1570 – Gandavo; 1583 – Fernão Cardim; 1584 – Anchieta; 1587 – Gabriel Soares; 1612 – LIVRO DE DÁ RAZÃO DO ESTADO DO BRASIL; 1627 – Frei Vicente do Salvador. Observa-se que nenhuma fonte abrange todas as Capitanias. Portanto, para estabelecer a situação de 1600 deve-se proceder a uma corroboração, e a uma interpolação dos dados disponíveis. Mas será p ossível admitir que o número de engenhos cresceu de 60 em 1570 para 115 em 1583, isto é, de 90% em 13 anos, para, depois, passar em outros 17 anos (de 1583 a 1600) de 115 para 120, ou seja, um crescimento de apenas 3%? A época foi de intensa expansão do ciclo, e o fato é que, em 1627, corroborando os dados de Frei Vicente do Salvador com os anteriores, pode-se aceitar um número global de 240 engenhos. Comparando-se os dados existentes, constata-se, como era previsível, a redução da taxa de crescimento – em decorrência da elevação dos números absolutos. No período 1583/1612 é de 2-2,5%: em 1612/1627 é pouco 57 58 superior a 1%. Isto permitiria a interpolação da taxa de crescimento de 3 a 4% para o subperíodo de 1583 a 1600. As várias hipóteses poderiam levar a cifras entre 160 e 190 engenhos em 1600, porém, face à informação do Livro que dá Razão, etc., pareceria mais plausível a cifra menor, 160 ou170 engenhos. O número poderia ser ligeiramente aumentado levando-se em conta as inevitáveis omissões das fontes informadoras. Isto nos levaria perto de 200 engenhos em 1600, bem longe dos 120 tradicionalmente admitidos. Se, outra vez, ao tentar quantificar a economia açucareira, em 1600, adotei o número de 200 engenhos foi para chegar a um conjunto coerente de dados, pois , aceitando a quantidade anualmente exportada de açúcar , tal como foi calculada sob a autoridade de Simonsen (1.200.000 arrobas), chega-se à média de produção anual de 6.000 arrobas por engenho, que parece adequada, conforme as informações já citadas sobre a capacidade produtiva dos engenhos. Afinal de contas, poder-se-ia dizer que, face à penúria de dados, o número de 200 é apenas indicativo, e 190 ou 180 engenhos são da mesma ordem de grandeza. Pareceria ate que o número mais baixo – de 160 engenhos – seria coerente, pois corresponderia à média anual de 7.500 arrobas (contando que se aceite o volume global de 1.200.000 arrobas por ano, e não mais). Isso sugeriria que os pequenos engenhos eram muito poucos – o que, em termos gerais, está certo. Mas até que ponto a maioria era de engenhos de 7,8 ou 10 mil arrobas? Proceda -se, como exercício, a imaginar uma distribuição de 58 59 engenhos, com a maioria de capacidade de 8-10.000 arrobas, mas admitindo-se, também, a existência de engenhos médios e pequenos, ainda que em reduzida proporção, e verificar-se-á difícil admitir a média de 7.500 arrobas por engenho. Por isso, parece-me mais plausível uma cifra aproximando-se de 200 engenhos. Uma pesquisa mais detalhada da produção dos engenhos ajudará à elucidação da questão (10). Essa pesquisa não seria tão estéril quanto poderia parecer à primeira vista. É com base em informações setoriais desse tipo que se poderá proceder à construção de uma imagem mais objetiva, quantificada, da realidade econômica do Brasil histórico (11) . NOTAS (1) John U. Nef. – LXXXVI bis. (2) Roberto C. Simonsen – CXII. Parece-me, contudo, que certos números deveriam ser reconsiderados. V. infra: “Sobre o valor da exportação colonial”, (págs. 196 -198). (3) Celso Furtado – LVI. Há excelentes tentativas de quantificação macroeconômica dos ciclos açucareiro e mineiro, bem como de outras épocas e setores. Demonstrei, entretanto, em outra ocasião, que o confronto dos dados fornecidos para o ano de 1600 mostrava certa incoerência (V. infra, págs. 81 -90). (4) Mircea Buescu – Vicente Tapajós – XXI. (5) A Economia do Nordeste vista pelo XXI Curso da CEPAL BNDE (JORNAL DO BRASIL – 27.10.1967). 59 60 (6) M. Buescu – V. Tapajós, op. cit., págs. 30 e 145. (7) Rocha Pombo (Simonsen – op. cit., tabela da pág. 382) admite 200 engenhos e 2.800.000 arrobas por ano – o que daria, ainda, 14.000 arrobas em média por engenho, bem acima do máximo indicado por todas as fontes. (8) Para uma primeira análise, v. M. Buescu – V. Tapajós, op. cit., págs. 21-22. (9) Brandônio não figura por ser sua informação totalmente imprecisa: em Pernambuco os engenhos são “infinitos”, na Bahia são “muitos”, na Paraíba “não poucos”, no Espírito Santos “alguns”, e assim por diante (v. infra, pág. 92). (10) A pouca probabilidade da média de 7. 500 arrobas por engenho aparece, por exemplo, da leitura das contas do Engenho Sergipe do Conde (o admirável levantamento feito pelo Dr. Gildo Moura, sob a égide do IAA e publicado no II volume de DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DO AÇÚCAR – XLVI). Num grande engenho, como aquele, a produção média anual oscilava em torno de 10.000 arrobas. Não se deve esquecer que as informações mais numerosas se referem a médias menores: Gabriel Soares dá 120.000 arrobas para 40 engenhos na Bahia/ Fernão Cardim, 350.000 arrobas para 115 engenhos. Nestes, a média situa-se em torno de 3.000 arrobas. (11) Assim foi tentada uma quantificação da Renda Interna e da Renda per capita em 1600, para comparação, mediante interpolações, com as épocas subseqüentes: v. M. Buescu – V. Tapajós, op. cit., págs. 165-168 e 174-176; v. também infra, págs. 81-90. (Transcrito de História Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: APEC, 1970, págs. 62-67). 60 61 SOBRE O VALOR DA EXPORTAÇÃO COLONIAL Roberto Simonsen foi um grande pioneiro na tarefa árdua de quantificar a economia colonial brasileira, partindo de dados esparsos, incompletos e incertos. (1) Outros trabalhos foram feitos com o mesmo intuito, mas nenhum, excetuando-se as tentativas de Celso Furtado, com mesmo sentido amplo de oferecer uma visão global da economia brasileira, em termos numéricos, objetivos. (2) A sua estimativa do valor da exportação colonial tornou-se ponto pacífico e indiscutível: £ 536 milhões, das quais £ 300 milhões a cargo do açúcar. O quadro que ele redigiu o seu clássico tratado (3) indica, segundo diversas fontes, os valores da exportação de açúcar em várias épocas, escolhendo aqueles que lhe pareceram mais válidos. Não se trata, nesta pequena nota, de proceder à análise crítica das fontes e, conseqüentemente, dos valores-base adotados para a construção do quadro global. Quero apontar apenas – data venia – uma contradição interna nos próprios dados adotados por Simonsen, aspecto até agora despercebido pelos estudiosos. 61 62 Para isso, é suficiente dirigir um olhar “estatístico” para o gráfico que consigna, no mesmo local do livro, as conclusões estatísticas, referentes à exportação de açúcar. Numa apreciação muito aproximada, mas válida como ordem de grandeza, encontram-se as seguintes posições: Período 1536-1570 1571-1580 1581-1600 1601-1630 1631-1641 1642-1650 1651-1670 1671-1710 1711-1760 1761-1776 1777-1783 1784-1795 1796-1814 1815-1820 1821-1822 Total Nº de anos (a) 35 10 20 30 11 8 20 40 50 16 7 12 19 6 2 286 anos Valor médio (£ 1000) (b) 300 450 1.500 2.400 3.100 3.600 3.000 2.000 2.000 1.900 1.600 1.300 1.200 1.800 2.300 ------- Valor do período (£ 1000) (a x b) 10.500 4.500 30.000 72.000 34.100 28.800 60.000 80.000 100.000 30.400 11.200 15.600 22.800 10.800 4.600 515.300 O resultado agregado é bem diferente do valor indicado por Simonsen: £ 5151 milhões, contra £ 300 milhões, ou seja, 71,6% a mais. Evidentemente, nessas condições, a exportação total não podia ser de £ 536 milhões, e um cálculo semelhante ao do acima leva a um valor de, aproximadamente, £ 752 milhões, ou seja, 40,3% superior ao de Simonsen. (4) 62 63 Onde está a verdade? Nos dados parciais que levam ao valor global de £ 752 milhões, ou no dado global de £ 536 milhões? De qualquer forma, a opção só poderá ser feita depois de novas pesquisas e levantamentos. Uma modificação das conclusões, até agora admitidas a esse respeito, terá vários reflexos não destituídos de importância. É suficiente considerar que, com o novo valor global da exportação e admitindo uma tributação metropolitana, direta e indireta, de 60% do valor exportado, a espoliação colonial subiria de £ 322 milhões para £ 451 milhões, valor-ouro. Uma diferença de £ 129 milhões – ou seja, 948 toneladas de ouro ou, de uma forma bem aproximada, mais de um bilhão de dólares, em valor atual constitui elemento objetivo para apreciar o ônus do colonialismo. NOTAS (1) Roberto C. Simonsen – CXII. (2) Celso Furtado – LVI. Tentativas foram feitas, também em M. Buescu – V. Tapajós – XXI. (3) Roberto C. Simonsen – op. cit., - quadro e gráfico entre as páginas 381 e 383. (4) Observe-se que, conforme esses novos números, a participação do açúcar na exportação colonial, seria muito maior do que conforme o cálculo global de Simonsen (68,5%, contra 56,0%). (Transcrito de História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro: APEC, 1970, pág. 196-198). 63 64 SÉCULO XIX 64 65 NOTA INTRODUTÓRIA Mircea Buescu não dividiu por séculos a história econômica de nosso país. Essa opção é da res ponsabilidade do organizador, com vistas à sim plificação da tarefa. Essa simplificação, contudo, não constitui nenhuma violação de seu pensamento, como explico nesta breve Nota. Tendo chegado ao Brasil em 1949, vê-se que no texto que divulgou, menos de vinte anos depois, na segunda metade da década de sessenta, revelava pleno domínio da língua portuguesa. Contudo, tornar-se-ia a única síntese global de sua lavra. Tenho em vista a História do História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (1967). Sentiu necessidade de respaldá-la com a presença do conhecido historiador (Prof. Vicen te Tapajós – 1917/1998), certamente por considerar insuficiente o seu domínio da História do Brasil. Toda a volumosa – e de excepcional qualidade – obra posterior corresponde a aprofundamento de determinados aspectos, de retificações de maior precisão de avaliações ali constantes, bem como de complementação do processo básico que se acha apenas esboçado naquela e nas obra que de imediato lhe seguiram, vale dizer, a industrialização. 65 66 Assim, por exemplo, o primeiro livro subsequente – História Econômica do Brasil: APEC, 1970 – resulta do curso que ministrava na PUC-RJ e além do programa de que se valia para ministrá-lo “Esquema de História Econômica do Brasil”, antes transcrito, consiste de ensaios de aprofundamento de temas relacionados aos primeiros séculos, notadamente à economia açucareira. Vê-se como soube valer-se da documentação disponível a fim de obter coeficientes capazes de produzir consistente quantificação do processo econômico. Acha se nesse caso o exame minucioso que efetivou da documentação divulgada da atividade produtiva do “Engenho Sergipe do Conde”, no século VII. Embora, pelas características do tipo de divulgação que se pretende com esta seção (LEITURA BÁSICA) não seria adequado transcrever a todos, acredito que a amostra selecionada é representativa. Além disto, foi o próprio Buescu que reuniu em separado os ensaios que dedicara àquele período de nossa história. Evolução econômica do Brasil – de poucos anos depois, 1974 – tem certamente maior amplitude desde que, além de aprofundar a caracterização dos diversos ciclos econômicos, refere aquilo a que corresponderia a sua superação, isto é, a nova dinâmica representada pela industrialização. Ainda assim, o maior desenvolvimento ali existente diz respeito ao século XIX, notadamente ao ciclo do café. A temática que efetivamente mereceria a denominação de complementação da revolução industrial, com base no programa estabelecido pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos – da qual origina-se o seu 66 67 efetivo suporte, o BNDE – é posterior ao período considerado. O ápice da industrialização (década de setenta) e problemática subseqüente (inflação, década perdida; etc.) mereceria abordagens muito expressivas, em en saios autônomos. Devido a esse entendimento, pareceu nos que expressaria melhor a inteireza de sua contribuição que transcrevêssemos – como século XIX -, os estudos que o próprio autor subdividiu em primeira e segunda metade daquele século, deixando assim, a abordagem do período subseqüente para consideração autônoma, inserida a seguir. 67 68 TEXTOS DE MIRCEA BUESCU 68 69 8. DIVISOR DE ÁGUAS O ano 1808 em que ocorre a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, constitui marco fundamental na história econômica do Brasil, iniciando um período de transição, acabado entre 1830 e 1850, em que se assentam algumas condições indispensáveis para o futuro crescimento. Os resultados a curto prazo, neste período, aparecem ainda muito modestos, quase nulos, mas foi, então, que desapareceram alguns entraves herdados da colônia e se criaram alguns rudimentos estruturais favoráveis ao progresso. Daí, constituir-se o período num verdadeiro “divisor de águas”. Melhor compreensão da mudança será alcançada se, primeiro, fizermos o balanço econômico da época colonial. 8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista Pode ser feito sob o aspecto quantitativo e qualitativo: a) Do ponto de vista quantitativo, a dependência da renda interna monetária em relação à exportação e a evolução aleatória desta, submetida a flutuações cíclicas, resultaram numa oscilação da própria renda interna – oscilação esta que se amenizou à medida que crescia, embora modestamente, a parcela relativa do setor autô nomo da economia, isto é, a parcela da renda interna que 69 70 não dependia da exportação. O Quadro 8.1 mostra es tas flutuações globais a longo prazo. Mais grave, o esgotamento econômico da colônia manifesta-se no reduzido crescimento global da exportação e da renda interna – portanto, da capacidade de gerar uma renda monetária. Em termos per capita, a situação é pior, assistindo-se a uma quadra da renda de £ 30 em 1600 para £ 2,7 em 1800 (v. Anexo II). Os valores absolutos ficam ainda mais reduzidos se passamos para a renda nacional, que podia repre sentar uns 40% da renda interna. Talvez a queda relativa seja um pouco menor se admitirmos que o ouro exportado não sofria os desvios para os intermediários comerciais, como no caso das demais mercadorias. Seja como for, na véspera da independência, o Brasil encontrava-se no mais baixo nível de renda per capita da sua história. Quanto ao setor de subsistência, não-monetário, sempre de muito menor dinamismo e importância econômica, não podia compensar, com seu crescimento simplesmente vegetativo, as perdas sofridas no setor monetário. Quadro 8.1 Exportação e Setor Autônomo Exportação (£ 1000) 1600 1650 1700 1750 1800 2.400 4.000 2.400 4.300 3.500 Setor Autônomo (£ 1000) 600 1.000 1.600 2.900 5.300 Exportação p.c. (£) 24,0 23,5 6,9 3,3 1,1 Setor Autônomo p.c. (£) 6,0 5,9 4,5 2,2 1,6 70 71 b) Vários aspectos qualitativos referentes à evolução anterior a 1808, têm caráter nitidamente negativo: i) O colonialismo representou perda de substância através de tributos cuja receita se aplicava na metrópole, monopólios que reduziam o dinamismo e a capacidade competitiva da economia brasileira, e intermediação compulsória no comércio internacional, representando outra perda de substância. O resultado global foi um nível baixo de renda, a reduzida margem de poupança e investimento, e a comprovada queda da capacidade de gerar renda. As proibições econômicas ligadas à aplicação do pacto colonial (em produção, transportes, profissões) impediram a diversificação e o aumento da produção, bem como a criação de tradições profissionais. A mais grave foi a proibição, por motivos políticos, de um sistema educacional, resultando em baixa propensão para trabalho, tecnologia e poupança, baixo horizonte de consumo e reduzida motivação desenvolvimentista – com efeito desastroso para o futuro econômico do país. A insignificância da classe média pode ser explicada, entre outras, por esta mesma causa. E, também, um certo divórcio entre o cidadão e o Estado, uma vez que este se identificou com a metrópole espoliadora. 71 72 ii) Os reflexos do mercantilismo já foram apontados em várias ocasiões, no que precedeu: organização de uma economia monocultural com vistas à exportação e, portanto, vulnerável às flutuações conjunturais; perda de substância, em fatores de produção ociosos, em decorrência da mudança cíclica; abandono e fraqueza da economia destinada ao con sumo interno e sua substituição, em muitos casos, por importações; disparidades regionais de renda; criação de uma estrutura rural rígida, impedindo o bom aproveitamento da terra com a mão-de-obra livre disponível, império do espírito mercantilista, imedia tista e pouco propenso ao trabalho pioneiro. iii) A própria expansão territorial em grandes áreas, sem encontrar obstáculos políticos intrans poníveis, apresentou aspectos negativos, embora tenha permitido alcançar grandes espaços, com variedade de recursos naturais: criação de núcleos econômicos isolados a grandes distâncias, resultando reduzida divisão social do trabalho, dificuldades de intercâmbio e atrofia do mercado; incentivo para a cultura extensiva e desincentivo aos investimentos agrícolas; outra vez, fraqueza da economia destinada ao mercado interno; desapego à terra, explicado também pelas tradições índias e negras. iv) A presença da escravidão constituiu-se em fator altamente negativo pelo dispêndio no exterior para a formação de mão-de-obra em vez de ter sido feito 72 73 internamente, incentivando atividades econômicas adequadas; (o volume da importação de escravos é controvertido, mas pode-se admitir, para o período colonial, uma cifra entre 3,5 e 4 milhões de escravos – ao preço médio de venda no Brasil de £ 30, montando a mais de £ 1000 milhões; em 1840, um escravo custava na África 30/40 mil-réis e era vendido no Brasil a 500/700 – outra drenagem de renda para fora); pelo desestímulo ao investimento em equipamentos e tecnologia, uma vez que se dispunha de um fator de produção muito barato; pela marginalização de uma classe sem recompensa pelo seu esforço produtivo e, portanto, sem capacidade de dar maior dimensão ao mercado nacional; pela ineficiência na produção em decorrência da falta de motivação; pelo desprezo que jogou sobre o conceito de trabalho, identificado com a escravidão. Alguns destes condicionamentos persistiram após o “divisor de águas”, às vezes até hoje em dia, explicando percalços e atrasos no processo desen volvimentista. Não resta dúvida, entretanto, de que no período em foco foram removidos alguns elementos negativos, em primeiro lugar o colonialismo e, parcialmente, a escravidão. Se o modelo monocultural de exportação se prolongou através do café, o foi em outras condições mais favoráveis do que antes. Nocivo, como se vai ver, foi o seu prolongamento excessivo. 73 74 8.2 Chegada da Corte As mudanças econômicas provocadas pela mudança da Corte, em 1808, foram fundamentais. Na época da chegada de D. João VI, a cidade do Rio de Janeiro tinha cerca de 50 mil habitantes. A entrada de 15 mil pessoas com a frota real representava um aumento de 30%. Em termos de renda, o incremento foi, sem dúvida, bem maior, visto que se tratava, em grande parte, de pessoas de altos rendimentos. Há, contudo, uma ponderação a fazer. Em verdade, a nova população tinha hábitos de consumo mais elevados, o que constituía uma demanda potencial. A demanda efetiva dependia dos níveis de renda. Ora, tratava -se de pessoas que viviam, sobretudo, a cargo do erário público, portanto seus rendimentos dependiam da receita pública e esta, da renda nacional. O problema residia na capacidade de resposta da oferta, isto é, da mobilização de fatores de produção. Terra e mão-de-obra, embora escrava, havia, mas faltavam capital, tecnologia e espírito empresarial. Sobre os escravos pode-se dizer apenas que eram distribuídos de forma desequilibrada, com concentrações em regiões, como as minas, onde as atividades econômicas estavam, em franca decadência. Admite-se que os recém-chegados trouxeram valores orçados em £ 22 milhões (mais de duas vezes o valor estimado da renda nacional do Brasil), Contudo, não se diz em que forma entraram aqueles valores, se imobilizados em jóias, louças ou em dinheiro, por exemplo. Mesmo a parcela em dinheiro, podia gerar 74 75 apenas uma despesa efetiva de consumo ou, eventualmente recursos para investimentos. Dado o tipo social que entrou com a Corte – dignatários, funcionários, clientela política – a propensão para investir e o espírito empresarial faziam falta. Apareceram apenas alguns novos empreendimentos agrícolas, e mesmo industriais, muito modestos. A demanda crescente resultou numa pressão inflacionária que atingiu algo em torno de 35% entre 1807 e 1819. Vale lembrar, desde já, que a importação sofria o impacto do bloqueio continental, criando um ponto de estrangulamento da oferta. O outro prendia-se à própria incapacidade da produção local. Esta sofria da falta de renovação tecnológica e de excesso de escravos (talvez 50% da população em 1800). A própria terra, embora disponível, não havia sido ocupada de forma satisfatória: em 1800 havia, para cada habitante, 9,8 hectares ocupados; em 1600 eram 25,8 hectares . (v. Anexo I). 8.3 Política econômica Várias medidas inovadoras – sem que este termo seja sempre compreendido num sentido positivo – merecem análise mais atenta. 8.3.1 Liberalismo O liberalismo consubstanciado em algumas das providências da Corte no Brasil foi objeto de críticas, 75 76 Sob o ângulo teórico atual, estas críticas são às vezes justificadas. Esquece-se, entretanto, que naqueles tempos o liberalismo era doutrina dominante, e a adesão de um José da Silva Lisboa aos ensinamentos já consagrados de Adam Smith é muito explicável. Acrescente-se que a doutrina liberal estava ligada à oposição ao colonialismo e aos entraves criados pelo mercantilismo e pelo pacto colonial. O libelo de João Rodrigues de Brito, já em 1807, oferece exemplo expressivo. (1) Quanto à identidade entre a política liberal e os interesses da Inglaterra, a dominação desta, naquela época, é um fato histórico, sobretudo em relação a Portugal que devia pagar um preço econômico para sua sobrevivência política como potência colonialista. Dentro deste contexto podem ser apreciados dois atos da Corte no Brasil: a abertura dos portos em 1808 e o tratado com a Inglaterra em 1810. a) O alvará assinado na Bahia em 28 de janeiro de 1808, permitindo a livre entrada dos navios estrangeiros no Brasil, quebrou o pacto colonial por força dos acontecimentos que haviam alterado as posições geográficas metrópole/colônia. Fixada a metrópole na área colonial, era impossível manter a claustração colonial, era um contra-senso a metrópole cercear sua própria liberdade. Sob ângulo prático, era impossível limitar as relações comerciais a Portugal, conform e a interpretação rigorosa do pacto colonial, de vez que a ocupação 76 77 francesa impedia esse comércio. O fechamento total da economia brasileira era solução inviável. A única solução econômica que representava, também, um preço político pago à Inglaterra, era a abertura para o comércio internacional, em que a Inglaterra detinha posição preponderante. Aliás, para um país incipiente que não tinha nada em termos de infra-estrutura, produção diversificada, mercado interno, tecnologia e capacidade de capita lização, uma solução válida para sair do círculo vicioso do atraso e da estagnação era aproveitar a demanda externa para criar renda, e a oferta interna de produtos primários – o que será feito, um pouco mais tarde, graças ao café. Outrossim, nem capitais, nem mão-deobra imigrante encontravam atrativos num espaço vazio que não havia ainda saído do jugo colonial e, por cima, praticava a escravidão. Até 1850, as tentativas de colonização tiveram resultados modestos – fundação de Nova Friburgo em 1818, de São Leopoldo em 1824 – ou mesmo a experiência de Nicolau Vergueiro (1847). b) O tratado de 1810 com a Inglaterra (renovado em 1827) teve, sem dúvida, caráter leonino. A concessão de um direito alfandegário de apenas 15% para as mercadorias importadas da Inglaterra quando as próprias mercadorias portuguesas pagavam 16% e as demais, como confirmado no ato da abertura dos portos, 25%, constituía uma posição privilegiada. Outros privilégios, em termos de foro judicial, tributação etc. foram outorgados. A reciprocidade de tratamento preferencial 77 78 reconhecida para alguns produtos brasileiros, como o açúcar e o café, no mercado inglês, era ilusória: quando a Inglaterra quis, ofereceu condições iguais ou melhores para produtos de outras procedências. Também inócua era a outorga dada a Portugal de colocar taxas proibitivas sobre a importação de açúcar, café e outros pro dutos procedentes das colônias britânicas, e sem impor tância o direito dos negociantes portugueses de se estabelecerem na Inglaterra. É óbvio que uma tributação alfandegária de 15% era insuficiente em termos de proteção à indústria nacional, sobretudo que, a partir de 1818, a mesma taxa foi estendida às mercadorias portuguesas, e entre 1826 e 1828, aos demais principais parceiros comerciais do Brasil. Do ponto de vista do estímulo às atividades manufatureiras nacionais, a posição liberal adotada, evidentemente para o benefício, em primeiro lugar, da Inglaterra, não se justificava. Porém, não se deve pensar que, sem essa política, a industrialização brasileira t eria se iniciado desde aquela época. Faltavam muitas condições para esse processo. O fato é que os próprios ingleses que dominavam política e economicamente o país, se instalaram como comerciantes, e não como investidores industriais. Não se deve minimizar a importância da presença destes empresários ingleses que, além de dinamizar o comércio, provocaram um efeito-demonstração, não apenas em termos de níveis de consumo, mas também de atitudes empresariais. A experiência de Irineu Evan 78 79 gelista de Souza, futuro Visconde de Mauá, na casa Carruthers, é eloqüente. Apesar da abertura dos portos e da política liberal, não parece ter havido logo, como se diz às vezes, invasão de mercadorias inglesas. A importação cresceu em comparação com o ano 1808 quando, por força do bloqueio continental e das guerras napoleônicas, havia caído ao mínimo de £ 425 mil (só de Portugal). As estatísticas são muito incompletas, mas encontramos, em 1812, a importação total de £ 3.125 mil, £ 4.444 mil em 1815, £ 4.123 em 1819 e £ 4.590 mil em 1822. Ora, já em 1799, o Brasil importava de Portugal £ 4.445 mil. Quem tinha sido deslocado da sua posição era Portugal (em 1819 participava com 50,2%). Quanto às queixas de abarrotamento de mercadorias, devia-se à falta de transportes e armazéns, e à exigüidade do mercado, e não ao crescimento absoluto das importações. Em valor per capita a importação era de £ 2,28 em 1822 – mas, em 1799, já havia atingido £ 1,35. Nos anos 20 seguintes, a importação vai subir para £ 13.298 mil, ou seja, £ 1,58 per capital. O movimento portuário não leva a conclusões diferentes: em 1806, apenas 641 navios entraram no porto do Rio de Janeiro; em 1810, já eram 1.214, mas nos anos seguintes, entre 1810 e 1820, a diferença não é muito grande. Só que em vez de serem 10% estrangeiros, passaram para 27%. A remessa de lucros dos comerciantes ingleses podia pesar sobre o balanço de pagamentos, mas 79 80 proporcionalmente representava menos do que ia antes para Portugal. A realidade é que o setor externo sofreu, até perto de meados do século, estrangulamento, e não expansão. 8.3.2 Problemas financeiros e monetários Um dos efeitos mais graves da queda das importações e da incidência aduaneira de 15% foi o impacto sobre a receita pública, uma vez que o imposto sobre a importação constituía a principal fonte da receita. Em 1808, ele representava 34% da receita – em 1820, não passava de 14%. Vimos que foi um período de relativo aumento das importações a partir do mínimo de 1808, e apesar disso a receita do imposto de importação cresceu bem menos do que a receita total. O erário público lutava com dificuldades, não apenas por causa da inépcia administrativa (apesar da lei orçamentária de 1827, renovada em 1831) e os excessos de gastos supérfluos, mas também em decorrência das necessidades da organização da administração local (Secretarias de Estado, Conselho de Estado, Conselho da Fazenda, entre outros), da implantação de instituições ligadas ao setor público (Academia Militar, arsenais, fábricas de pólvora, por exemplo) ou de caráter cultural (bibliotecas, arquivos) bem como por causa das dificuldades políticas (guerra da Independência, no Prata, no Pará, dos Farrapos). Entre 1823 e 1850/1, a execução orçamentária apresentou 22 déficites e 7 80 81 superávites. Em valores acumulados, o déficit – 79.024 contos de réis – representou 17% da receita. Três tipos de soluções foram procurados: a) solução tributária: criação do imposto sobre a exportação (em 1801 e 1836), décima sobre ao valor locativo, sisa sobre vendas imobiliárias e meia-sisa sobre escravos e algodão, tributos sobre carruagens, navios e armazéns – todos estes desde o tempo de D. João VI; b) solução creditícia: empréstimos estrangeiros; c) solução monetária: além das manipulações sobre as moedas de prata e cobre, que iam provocar a fuga do ouro e da prata, dificultando a situação monetária, a criação do Banco do Brasil. Estas últimas duas soluções merecem um tratamento especial. 8.3.3 Banco do Brasil Fundado em 1808, representou o início das relações, às vezes espúrias, entre o poder públ ico e os órgãos responsáveis pela expansão monetária. O objetivo principal, expresso no alvará de constituição – “obter fundos para a manutenção da monarquia” – era uma limitação, senão um desvio, nas funções de um banco que devia atender às necessidades d e crédito de um sistema totalmente desprovido de tais instrumentos. A vida do Banco do Brasil vai ressentir-se desta distorção. Constituído como banco particular com o ca 81 82 pital de 1.200 contos de réis, e recebendo por 20 anos o privilégio da emissão da moeda de papel com curso legal, o capital foi subscrito com dificuldade, completando-se apenas em 1817, demonstrando seja as reduzidas disponibilidades de capital, seja o pouco interesse pelos investimentos, seja, mais provavelmente, a desconfiança em relação a um órgão controlado pelo Governo. O capital foi aumentado depois, chegando a subscrição a 2.235 contos até 1821. Entretanto, em grande parte, os recursos foram fomentados graças à ajuda do Governo (por exemplo, recursos decorrentes dos impostos especiais criados em 1812) de forma que o governo era principal acionista, controlando o Banco. A atividade básica deste foi a emissão de papelmoeda para as necessidades do Tesouro, sem nenhuma relação com o lastro metálico ou com as necessidades reais do sistema econômico. A distribuição de bons dividendos baseava-se na emissão de papel-moeda, criando uma falsa euforia. No balanço de 1821, no ativo figuravam apenas 1.315 contos em moeda metálica e, no passivo, as emissões somavam 8.872 contos de réis. A volta de D. João VI para Portugal proporcionou a retirada de suas participações criando um verdadeiro pânico e outras retiradas pelos seguidores do rei. O encaixe do Banco reduziu-se a 200 contos. Em termos globais, a saída de dinheiro do país, nesta ocasião, avaliada em £ 6 milhões, foi bem menor do que a entrada inicial de £ 22 milhões, mas do ponto de vista do Banco do Brasil a sangria foi grave. Entretanto, mesmo sem este acontecimento, o Banco era fadado ao 82 83 insucesso não porque teria sido inviável em si, mas p or causa do seu modo de funcionar, com emissões desastradas feitas para atender ao Governo. Em 1808, o meio circulante atingia, conforme estimativas, a 10 mil contos de réis. As emissões feitas até 1821 somaram 8.872 contos, isto é, uma expansão de quase 89%, que gerou uma alta de preços avaliada em torno de 40%. É pouco provável que a diferença de 49% tenha sido toda absorvida pelo crescimento do produto real, pois isto levaria a uma taxa anual de crescimento de 2,6%, pouco admissível. Devem ser levadas em conta as saídas de dinheiro, desconhecidas, a título de déficit comercial, remessa de lucros e transferências públicas e privadas para a metrópole. Ademais, uma parte das emissões deve ter compensado a falta de liquidez antes ressentida. Finalmente, o Banco do Brasil foi liquidado em 1829. Naquele momento o total dos bilhetes emitidos era de 19.174 contos de réis e a divida do Tesouro, de 18.301 contos. Portanto, 95,48% das emissões correspondiam às atividades do Governo, de pouca repercussão econômica. A curta existência do Banco não deixou de ser uma experiência, uma etapa para realizações mais sólidas. Tanto é que outros bancos comerciais foram criados no período: Ceará (1836 - durou apenas 3 anos), Comercial do Rio de Janeiro (1838), Bahia (1845), Maranhão (1846), Pará (1847), Pernambuco (1851) e Brasil (Mauá – 1851). 83 84 Os bilhetes do Banco do Brasil foram encampados pelo Tesouro que começou também, por conta própria, as atividades emissoras. A confusão monetária completava-se com moeda de cobre, papelmoeda emitido para a retirada do cobre da circulação e moeda de cobre falsa (xenxém). Com o aparecimento dos bancos particulares, começaram a circular vales emitidos por eles – papel de crédito a prazo muito curto com juros, desempenhando função de moeda. Em 1853, o meio circulante somava 70.300 contos de réis, compondo-se de 46.700 contos em papel do Tesouro, 18.000 contos em moeda metálica e 5.600 em vales bancários. Assim, a expansão monetária entre 1808 e 1853 teria sido de 603%, enquanto a inflação é esti mada em 153%. A diferença representaria o crescimento do produto (178%), à taxa anual de 2,3%. Outros meios de avaliação indicam que a renda interna do Brasil teria se elevado de £ 8,8 milhões em 1800 para £ 27 milhões em 1850, um crescimento global de 207%, ou seja, quase a mesma taxa anual. (v. Anexo II) 8.3.4 Empréstimos externos Outro recurso para complementar a receita pública foi constituído pelos empréstimos externos. Se considerarmos o valor absoluto destes empréstimos não podemos dizer que o endividamento era exagerado. Entre 1824 e 1843, o Brasil contratou 5 empréstimos, correspondendo a um compromisso global de £ 5.599.200, importância 84 85 pouco relevante se lembrarmos que entre estas datas a exportação anual oscilou entre £ 4 e 5 milhões. Os juros, 5% ao ano para todos os empréstimos, também não eram exagerados. O que foi menos favorável, além das vantagens retiradas pelos negociantes, foi o tipo dos empréstimos que oscilou entre o máximo de 85% e o mínimo, realmente excessivo de 52%, de forma que a importância total efetivamente embolsada pelo país foi de £ 4.335.000, 77,4% do compromisso de £ 5.599.200. Com isso os juros reais montaram, em média, a 6,5% ao ano. De fato, o aspecto negativo mais importante foi o caráter fiscal dos empréstimos, destinados apenas a cobrir os déficits orçamentários e dívidas públicas anteriores, e não a investimentos capazes de inculcar um certo dinamismo ao sistema econômico. Assim não havia contrapartida positiva ao ônus que o endividamento representava na execução orçamentária e no balanço de pagamentos. Em ambos os campos, as dificuldades provinham da pouca expansão do comércio exterior, uma vez que o imposto de importação era principal fonte de receita e a exportação era elemento básico do ativo no balanço de pagamentos. Com déficits permanentes na balança comercial (como se caracterizou toda esta época) e com poucas entradas de capitais estrangeiros que não encontravam muitos atrativos na economia brasileira, o ônus da dívida pública era pesado no balanço de pagamentos. Da mesma forma o era para a execução orçamentária, enfraquecida pelas razões expostas. Assim, o círculo vicioso continuava. 85 86 8.3.5 Política desenvolvimentista Antes de tratar dos problemas de comércio exterior – âmago do problema – vale mencionar as importantes medidas tomadas por D. João VI com vistas (em termos) ao desenvolvimento econômico. - medida fundamental, revogação, já em 1808, do alvará de 1785 que havia proibido as indústrias no Brasil – aplicação do pacto colonial que não mais s e justificava após a instalação da metrópole no território brasileiro; - auxílios concedidos à construção naval (1809), resultando na expansão desta atividade no Rio de Janeiro, Salvador, Recife, etc.; - reorganização do Arsenal da marinha (1809); - isenção alfandegária na importação de matériasprimas para as manufaturas nacionais (1809); - vantagens concedidas para a fabricação de fios e tecidos (1810); - isenção de penhora dos equipamentos dos mineradores (1813), medida ligada, ainda, aos objetivos mercantilistas; - liberdade de exercício da profissão de ourives (1815). Deveria acrescentar-se o fomento oferecido à mineração e siderurgia, prêmios para transplante de especiarias (outra vez, o mercantilismo), a abertura de estradas, a isenção de impostos para novas culturas às margens das estradas abertas, o fomento à irrigação, a 86 87 experiência com núcleos coloniais. A conclusão é que o período de D. João VI foi muito mais rico em inovações e iniciativas econômicas do que aquele que se estende até a maioridade de D. Pedro II. É verdade que as condições políticas foram diferentes. Finalmente, não se deve esquecer, para a expli cação do desenvolvimento subseqüente, os progressos feitos, até meados do século XIX, em termos de abertura de horizontes culturais e formação de elites. 8.4 Gargalo externo Apesar de concentrar-se a atividade econômico, por tradição e falta de oportunidades, no setor exportador, o comércio exterior apresenta, no período indo até perto de meados do século XIX, posição estacionária. Entre 1800 e 1830, o valor da exportação anual oscila entre pouco mais de £ 3 milhões e pouco mais de £ 4 milhões. Em termos per capita, ela cai de £ 1,05 em 1800 para £ 0,63 em 1830. Entre 1808 e 1819, a balança comercial era, ainda, predominantemente superávitária, mas isto se deve à queda brutal das importações (guerras napoleônicas, bloqueio continental). Depois de terem chegado ao seu ponto mais baixo, as importações recuperaram-se, porém em 1830 estavam, até então, nos níveis de 1800, em torno de £ 4 milhões. Em termos per capita caíram de £ 1,35 em 1799 para £ 0,75 em 1830. A recuperação parcial das importações fez com que o período de 1822 a 1845 fosse altamente 87 88 déficitário na balança comercial – apenas em 4 anos verificou-se superávit. Em 1850, no fim do período, a balança continuava déficitária em £ 1.094 mil (£ 9.215 mil de importação, £ 8.121 mil de exportação). Os juros anuais dos empréstimos estrangeiros até então contratados somavam £ 280 mil. Acrescentando as remessas oficiais e particulares e as operações especulativas, pode-se imaginar as dificuldades surgidas no balanço de pagamentos. E compreende-se a suspensão, antes de 1850, das amortizações da dívida externa. Aquelas dificuldades manifestaram-se na queda da taxa de câmbio que da paridade manti da desde o ciclo da mineração até o início do século XIX, de 67 1/2 pence/mil-réis, após ligeira melhora até 1814, cai verticalmente até a média anual de 22 13/16 pence em 1830. Nova ligeira melhora surge até 1835 – período deflacionário no Brasil – para depois fixar-se o câmbio entre 25 e 28 pence/mil-réis, até 1865. A paridade legal foi de 27 pence a partir de 1846. A exportação não encontrou, ainda, outro produto mais dinâmico. No decênio 1821/1830, com um valor anual médio de £ 3.838 mil, ela depende, em primeiro lugar, do açúcar (32%) e do algodão (20%). O café encontra-se no terceiro lugar, com 19%, seguido pelos couros e peles com 14%. Exportação altamente concentrada – 4 produtos são responsáveis por 84,6% do total. De 1821/1830 para 1831/1840, o preço por tonelada do açúcar cai da média de £ 24 para £ 17, e o do algodão em pluma de £ 66 para £ 48. A forte crise internacional de 1825 afeta todos os preços de 88 89 exportação, inclusive do café. O Quadro 8.2 oferece um panorama do ponto de estrangulamento do comércio exterior e sua solução graças ao café. A participação dos principais produtos na pauta evoluiu da seguinte forma: (em % do total) Café Algodão Açúcar Couros Fumo 1821/30 18,6 20,0 32,2 13,8 2,4 1831/40 43,8 11,0 24,0 7,9 1,9 1841/50 41,3 7,5 26,7 8,0 1,8 Apesar da fraqueza mostrada (o privilégio da isenção de penhora é uma prova), o açúcar, produzido sobretudo no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará e São Paulo, tenta melhorar quanto à qualidade da cana e aos equipamentos: em 1813 aparece a primeira máquina a vapor num engenho. O algodão (sobretudo em Maranhão, bem como Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais) utiliza, desde 1826, o descaroçador moderno, elevando a produ tividade, mas o período assiste à queda de sua posição relativa. A pauta de exportação é completada pelo paubrasil (costa do Nordeste; monopólio estatal desde 1822), fumo (Alagoas, Sergipe, Bahia), couros (Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, São Paulo, Rio Grande do Sul), cacau (Bahia, Pará), azeite de baleia – apesar do declínio da pesca (Bahia), arroz (Bahia, Maranhão, São 89 90 Paulo), carne-seca e sebo (Rio Grande do Sul), aguardente – para o escambo africano (Bahia, Pernambuco, Pará), mate (Paraná). Acrescentam-se as drogas do sertão, no Norte, entre as quais começa a firmar-se a borracha e, a partir de 1840, a cera de carnaúba (Ceará, Rio Grande do Norte). A mineração está em franca decadência apesar de certas descobertas na Bahia (Diamantes). Em 1824 é permitida aos estrangeiros a exploração mineira, resul tando a entrada de empresas britânicas, fixadas nas regiões mais produtivas. A Real Extração dos diamantes é extinta em 1832. O café, cuja produção havia descido do Pará e Maranhão, firma-se no Rio de Janeiro e, depois de 1830, melhora as suas máquinas de beneficiamento. A data coincide com o aparecimento do ciclo do café. Na década 1831/1840, o café com uma exportação anual média de £ 2.153 mil, já representa cerca de 70% do valor total. E graças ao café, a exportação total sobe de £ 3.348 mil em 1830 para £ 5.384 mil em 1840 e £ 8.121 mil em 1850. Em termos per capita, a tendência descendente inverte-se: de £ 0,63 em 1830 sobe para £ 0,87 em 1840 e £ 1,2 em 1850. Quando à importação, a pauta é típica de país subdesenvolvido. Além dos escravos importados da África, entram alimentos e bebidas – manteiga, sal, bacalhau, vinho, azeite, farinha de trigo e vinagre (de Portugal), cereais (Estados Unidos);tecidos, louças e metais (Inglaterra), breu, potassa, couros e velas (Estados Unidos), metais (Alemanha), papel (Holanda), 90 91 bebidas, móveis, medicamentos e artigos de luxo (França) ceras, especiarias e óleos (África). Em 1839/1844, as manufaturas de algodão contribuíram com 33,8% do valor da importação; acrescentando os de lã, linho e seda, chegamos a 48,2%. A farinha de trigo, bebidas, carnes, manteiga, bacalhau e azeite perfaziam outros 20%. As ferragens entravam com 3,2% e as máquinas e acessórios não passavam de 0,2%. A Inglaterra era o mais importante parceiro comercial. Na exportação participava, em 1853/1858, com 32.9%, seguida pelos Estados Unidos com 28,1%, a França com 7,8%, a Alemanha com 6,0% e Portugal com 5,9%. Na importação, o domínio da Inglaterra era mais nítido, com 54,8%, seguida pela França (12,7%), Estados Unidos (7,0%), Portugal (6,3%), Alemanha (5,9%). Havia concentração, também, em termos de parceiros: cinco países respondiam por 80,7% das exportações e 86,7 das importações. 8.5 Outras atividades econômicas Poucas novidades podem ser ditas a respeito do setor autônomo, fora da exportação, o qual se arra stava penosamente por falta de investimentos (atraídos pela exportação) e de renovações tecnológicas. Na agricultura, os primeiros lugares eram detidos pela mandioca, arroz, feijão, milho, trigo. O gado conti nuou dominando nas áreas tradicionais. As tentativas de renovação com imigrantes portugueses encaminhados para a agricultura (tal como Pombal já havia tentado no 91 92 Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foram pouco sucedidas. O mesmo aconteceu com os imigrantes estrangeiros, a experiência alemã em São Leopoldo (1824) e a do Senador Vergueiro, com colonização em parceria (1847) – prejudicada pelos abusos e malentendidos de ambas as partes. O Ato Adicional de 1834 havia autorizado as Províncias de fundar colônias. A entrada de colonos europeus contribuiu para a introdução de culturas temperadas e a melhora das técnicas agrícolas, mas até 1850, o fenômeno foi muito limitado. A existência da escravidão e o regime precário da propriedade rural constituíam-se em desincentivos para os imigrantes. O próprio nível baixo da economia e a falta de infra-estrutura exerciam influência negativa sobre os imigrantes. A lei de 1850, que proibiu doravante a ocupação das terras devolutas, importava na fixação do statu-quo no regime agrário. Entre as atividades primárias deve-se acrescentar a extração do sal e, especialmente, a primeira salina artificial em Cabo Frio, em 1822. Quanto ao setor secundário, havia as atividades caseiras (fiação, tecelagem, cerâmica, móveis), mas também artesanato tradicional, bem como aparec eram pequenas fábricas de bens de consumo, sobretudo tecidos (Rio de Janeiro e Minas Gerais). Mais para registro histórico do que como resultado econômico merecem menção as primeiras tentativas siderúrgicas, entre 1809 e 1812. A experiência de 1835, em Iracema, foi mais sólida. 92 93 O sistema de transportes continuou rudimentar, embora a unidade política e administrativa e o centralismo imperial tivessem contribuído para a intensificação das trocas interregionais. No setor marítimo, vale mencionar o emprego, a partir de 1819, de barcos a motor. Outrossim, o esquema do mercado não diferia muito do período colonial. (v. Gráfico 2) 8.6 Novos rumos Os resultados positivos até o fim da primeira metade do século XIX foram bastante magros. Graças ao café, a exportação subiu para cerca de £ 8.100 mil em 1850 – crescimento de 131% sobre 1800, e a renda interna de £ 8.800 mil para £ 27.000 mil, ou seja, 207%. A renda interna per capita passou de £ 2,7 em 1800 para £ 3,7 em 1850 – aumento de apenas 37%. Uma ressalva pode ser feita no sentido de que, eliminado o laço colonial, a diferença entre a renda interna e a nacional deve ter sido menor. Admitindo que esta diferença caiu de 60% para 30%, a renda nacional per capita teria evoluído de £ 1,1 para £ 2,6, um crescimento de 136%. É preciso acrescentar também, que, se nossas hipóteses de trabalho são válidas no que concerne à relação exportação/renda interna, o setor autônomo teria se elevado de £ 5.300 mil em 1800 para £ 18.900 mil em 1850, a uma taxa global de 257%. Outrossim, pouca coisa se realizou em termos de infra-estrutura e renovação econômica. Apenas experiências, esboços – e um ambiente cultural e político 93 94 mais propício para o progresso. Em primeiro lugar, a libertação do ônus colonial. Mais especificamente, na economia, a entrada de um novo produto conjuntural – o café – graças ao qual se podia elevar a renda e a capacidade de capitalização. Até o fim do período, dois fatos iam juntar -se ao panorama: a) A abolição do tráfico, em 1850, com a lei Eusébio de Queirós, após uma prolongada luta entre as pressões abolicionistas da Inglaterra (convênio de 1830) e as resistências brasileiras, fundadas nas tradições escravagistas e nas necessidades de mão -de-obra no momento em que a produção de café se expandia. As perspectivas da abolição intensificaram a importação de escravos (a média anual em 1846/1849 foi de 55.124 peças, decaindo completamente nos 6-7 anos seguintes), mas incentivou, também, as tentativas de colonização européia. De qualquer forma, liquidando-se uma das fontes da escravidão, sobretudo quando a taxa de crescimento vegetativo da população escrava era negativa, a instituição estava fadada ao desa parecimento. Assim preparavam-se as bases para nova solução ao problema da mão-de-obra. b) O início do protecionismo, com a caducidade, em 1844, do tratado com a Inglaterra e a introdução da tarifa Alves Branco, no mesmo ano. Proteção ainda insuficiente (a média da incidência era de 40%), porém 94 95 muito melhor do que a anterior, de 15%, e constituindo o início de uma política protecionista, embora com flutuações subseqüentes em ambos os sentidos, permitindo uma certa evolução industrial na segunda metade do século XIX. Uma evolução talvez retardada por causa da própria concentração em torno do café cujo ciclo dominou aquele período. Quadro 8.2 Evolução do comércio exterior Exportação Total (£ 1000) Exportação Café per capita (£) Valor (£ 1000) Café/exp. (%) Importação Total (£ 1000) per capita (£) 1746 3.200 1,01 --- --- 3.001 (1) 0,92 (1) 1800 3.500 1,05 --- --- --- --- 1810 3.940 1,04 --- --- --- --- 1818 4.000 0,92 --- --- 1.800 0,41 (2) 1822 4.030 0,87 789 0,20 4.590 (2) 0,99 1830 3.348 0,63 663 0,20 4.007 0,75 1840 5.384 0,87 2.300 (3) 0,43 7.458 1,20 1850 8.121 1,12 2.906 (4) 0,36 9.215 1,27 Indicações de leitura Roberto C. Simonsen, 73; J. Pandiá Calógeras, 4; Sérgio Buarque de Holanda, 217, tomo I-2. NOTA (1) Conf. Mircea Buescu, 34, pp. 230 -238. 95 96 9. CICLO DO CAFÉ 9.1 Perspectiva em meados do século XIX As primeiras duas décadas após a Independência foram bastante inexpressivas em termos de performance econômica. O setor tradicional, da exportação , tardava em reerguer-se. A agricultura de subsistência sofria os reflexos de condicionamentos negativos seculares. Pe quenas indústrias e atividades terciárias começaram a brotar, porém, sem grande capacidade de expansão num mercado de limitadas dimensões. Afinal, vivia-se num círculo vicioso em que os níveis baixos de renda não permitiam poupanças e investimentos com vistas à elevação da renda. Quando à poupança externa, não encontrava atrativos suficientes numa economia rudimentar, a não ser em atividades comerciais ligadas à importação. E a renda aplicava-se na importação de bens de consumo que o mercado interno não podia fornecer, bem como de escravos que constituíam a base da produção agrícola. A saída desse círculo vicioso foi possível através do setor exportador que se dinamizou graças à conjuntura favorável encontrada, a partir de 1830/1840 durante muitos decênios, pelo café. A atração exercid a pela exportação, pelas oportunidades no mercado mundial, era a continuação do espírito mercantilista que havia dominado a vida econômica brasileira durante mais de três séculos. O sucesso do café ia enraizar este espírito ainda mais, provocando certas distorções. 96 97 Entretanto, a solução era justificada – e encontrase, também, em outros casos de países subdesenvolvidos. Não havendo um mercado interno capaz de absorver excedentes, expande-se uma produção primária que exige pouco capital, e em maior medida, fatores de produção disponíveis – terra e mão-de-obra – portanto a custo mais baixo, a produção de um produto de larga aceitação no mercado internacional. Obtém-se, desta forma, uma sólida fonte de renda que poderá irradiar -se em outros setores da economia, embora sob alguns aspectos negativos. Assim, acontecerá no caso do café, mas, se essa irradiação ia se fazer com certo atraso, a causa foi o excesso da mentalidade mercantilista que, justificada pelo próprio processo do café, mostrará a tendência de concentrar indefinidamente todos os esforços produtivos no setor cafeeiro, até com o preço de criar sérias distorções na alocação de fatores. Como vimos no capítulo anterior, o ciclo do café começou no decênio entre 1830 e 1840, quando este produto assume a liderança na pauta de exportação e – o que é mais importante – torna-se responsável pelo reerguimento das receitas da exportação, constituindo -se em setor dinâmico da economia em termos de mobilização de fatores de produção e da geração de renda. Pelo critério da liderança na exportação, o ciclo do café não teria terminado ainda, porque até hoje em dia, o café, individualmente, cobre a maior participação relativa na pauta. Entretanto, pode-se argumentar que ao longo das primeiras três ou quatro décadas do s éculo XX, na fase que poderia ser rotulada de pré-arranco do 97 98 Brasil, a indústria começa a assumir importância crescente. Os fatores de produção são atraídos, também, pelo setor secundário. As políticas econômicas não são, exclusivamente, protetoras ao setor cafeeiro. Quanto à criação de renda, é verdade que, até recentemente, a agricultura representou parcela maior que a indústria no produto real, mas, considerando só o café em face da indústria, a situação mudara bem antes. O presente capítulo versará, portanto, sob o período de incontestável domínio do café na economia brasileira até o último decênio do século XIX, quando se verificam medidas de política econômica que parecem dar menor importância ao destino do café. 9.2 Condicionamentos externos Como se trata da expansão da produção e exportação de um produto destinado ao mercado internacional, neste deve-se procurar a motivação do ciclo, a conjuntura favorável que irá incentivar a oferta. Introduzindo-se, aos poucos, ao logo dos séculos XVI, XVII e sobretudo XVIII, o hábito do consumo de café na Europa, a demanda crescente, após a norma lização política que seguiu as guerras napoleônicas. foi resultado do crescimento demográfico na Europa Ocidental e nos Estados Unidos e, mais importante, da elevação das rendas e dos padrões de consumo naqueles países: em torno de 1840, a Inglaterra já estava na segunda fase de sua revolução industrial, a França, a Bélgica, os Países Baixos e os Estados Unidos haviam 98 99 ingressado na fase de arranco, a Alemanha preparava -se para a mesma etapa de desenvolvimento. A demanda crescente resultou na possibilidade de aumentar as quantidades produzidas e vendidas. Antes do início do ciclo, por volta de 1825, a exportação mundial girava em torno de 1,5 milhões de sacas, dos quais 5,15% fornecidos pelo Brasil. No fim do século XIX, com o Brasil participando com cerca de 70% a exportação mundial chegou perto de 13 milhões de sacas. Não se deve esquecer o progresso realizado pelos transportes marítimos após a Revolução Industrial: no fim do século, a exportação de café somava quase 10 milhões de sacas – 600 mil toneladas. O auge do açúcar havia exigido transporte de 30 mil toneladas. O crescimento da oferta não se efetivou com redução dos preços unitários de venda. Apesar das alegações tradicionais concernentes à deterioração secular dos preços dos produtos primários, mais especificamente do café (invocando-se, neste caso, inclusive a lei de Engel), não se constata tendência descendente dos preços do café durante o século XIX. (1) É verdade que condições excepcionais no início da década de 1820 (quando a oferta antilhana se ressentia, ainda, dos efeitos das guerras e revoluções, e a brasileira não estava preparada para responder) elevaram os preços até mais de £ 5 por saca de 60 quilos. Esta conjuntura favorável contribuiu muito para o primeiro impulso da economia cafeeira brasileira que, até então, se arrastava sem assumir maior expressão. 99 100 Se considerarmos a segunda metade do século XIX, constata-se que a cotação média da última década, £ 2,81 por saca (1891/1900) é 43% superior a média da década inicial 1851-1860 (£ 1,97 por saca). O que caracteriza a evolução dos preços do café não é a tendência a longo prazo, e sim, as flutuações cíclicas dos preços. A causa não deve ser procurada apenas d o lado da demanda (retratação durante as depressões cíclicas que se verificaram durante o período: 1857, 1867, 1873, 1882 e 1892), mas também do lado da oferta, porque, sendo o cafeeiro planta de longa maturação, o plantio era incentivado durante o período de alta dos preços e o aumento da oferta, após 5 -6 anos de maturação, chegava muitas vezes nos momentos de depressão, contribuindo, assim, para uma queda maior do preço. Depois de um período de baixa no fim da década 1820/1830 e uma posição bastante estáv el até 1840, a cotação do café cai novamente a partir de 1842, mantendo-se estável no início da segunda metade do século. Verificaram-se depois, três ciclos: de 1857 a 1868 com a cotação máxima de £ 3,06 em 1863 e mínima de £ 1,68 em 1868; de 1869 a 1885, chegando a £ 4,31 em 1873 e, após flutuações, outra vez a £ 4,29 em 1879, com a queda até £ 1,77 em 1885; de 1886 a 1906, subindo logo a £ 4,10 em 1887 e, após ligeiro afrouxamento, £ 4.09 em 1893, para cair até £ 1,49 em 1898 e £ 1,47 em 1903. Estas flutuações influenciavam, sem dúvida, a rentabilidade, mas não implicavam forçosamente em 100 101 prejuízos. Do ponto de vista da receita cambial, a queda de preços podia ser compensada pelo aumento das quantidades exportadas – como na realidade aconteceu na maioria das vezes. Para o país, o prejuízo podia resultar da deterioração da relação de trocas, mas este fato não foi comprovado, embora seja provável que tenha acontecido várias vezes, justamente porque os produtos importados, industrializados, podem mais facilmente controlar sua oferta nos períodos de depressão. (2) Para o produtor, que recebia seus rendimentos em moeda nacional, a queda das cotações internacionais podia ser compensada pela deterioração da taxa de câmbio, de modo a receber a mesma importância em moeda nacional. Uma alta de cotações, juntamente com desvalorização cambial, representava uma excelente oportunidade de receita. Sem dúvida, os benefícios retirados via desvalorização cambial correspondiam ao encarecimento das mercadorias de importação, port anto a um ônus suplementar suportado pelos consumidores daquelas mercadorias (os quais eram, em grande parte, os mesmos produtores de café cujas rendas altas permitiam acesso àquele consumo). 9.3 Condicionamentos internos Como em outros casos, o aspecto mais grave em termos de mobilização de fatores de produção prendeu se ao trabalho, porque o café exigia mão-de-obra numerosa, sobretudo enquanto se aplicou uma tecnologia 101 102 primitiva, sem máquinas e equipamentos. Por isso mesmo as necessidades de capital fixo eram reduzidas. Quanto à terra, havia disponibilidades suficientes. Os principais condicionamentos são os seguintes: a) Recursos naturais – O café, introduzido no Norte no início do século XVIII, começou a descer à procura de novas terras e climas adequados. No fim do século encontrava-se no vale do Paraíba no Rio de Janeiro. Ainda em 1860, 78% da produção de café procedia desta província, 12% de São Paulo e 8% de Minas Gerais. A passagem da supremacia para o Oeste de São Paulo efetivou-se nos últimos dois decênios do século XIX, beneficiando-se da mão-de-obra livre, imigrante naquela região em grande volume, e da infra estrutura de transporte ferroviário (Santos-Jundiaí 1868; Jundiaí-Campinas 1872; Campinas-Itu 1873; Mojiana e Sorocabana 1875; ligação com a estrada de ferro D. Pedro II, 1877). Até lá, o transporte era feito a dorso de mulas e cavalos. Os novos meios de transporte permitiram a integração de novas áreas de boa produtividade natural sem elevação de custos. A disponibilidade de terras incentivava a produção extensiva. A terra esgotada era abandonada e novas áreas eram integradas via queima das florestas. Havia, apenas a vantagem de empregas as cinzas como adubo. Afinal, integrava-se em maior proporção um fator barato, a terra, com a ajuda de outro fator relativamente barato, o trabalho. Enquanto isso aconteceu, constituiu desincentivo à aplicação de capital 102 103 e à melhora tecnológica. O mecanismo de preços permitiu manter os lucros sem necessidades destes últimos dois fatores. Outrossim, o regime agrário foi organizado pela lei de 1850 que proibiu a ocupação das terras devolutas. Doravante, novas terras, antes obtidas por doação ou ocupação, só podiam ser adquiridas por compra do Governo. A intenção pode ter sido forçar a mão -de-obra livre disponível no campo a se empregar no lugar dos escravos cuja importação ia cessar após 1850. O resultado foi, além desta transferência embora parcial para as grandes fazendas, o fortalecimento do latifúndio (que contribuiu integrando, de fato, novas áreas) e o enfraquecimento da pequena propriedade, acentuando este fator negativo do desenvolvimento brasileiro. Em 1854 foi decidida a revalidação das sesmarias e doações quando cultivadas ou em início de cultivo (foi criada a Repartição Geral das Terras Públicas). Po r outro lado, em vários casos, os colonos imigrantes foram contemplados com lotes de terra criando um importante setor agrário, muitas vezes de subsistência. O café continuou, entretanto, em grandes latifúndios; o que, com o tempo, se verificou menos apropriado para reduzir o custo e melhorar a qualidade. b) Mão-de-obra – A solução do problema foi dominada pela mentalidade escravagista. Havia ainda, a possibilidade de empregar o trabalhador local ou o imigrante: 103 104 i) Apesar das tentativas, embora tímidas, de fomentar a imigração estrangeira (a qual, de fato, não encontrava grandes atrativos numa economia primitiva, em recessão, num ambiente climático e social diferente das pátrias européias de origem), o interesse fixou-se no escravo tanto por tradição, como por conveniência econômica. Havia a reserva de trabalho resultante da expansão demográfica do século XVIII (quando a população livre havia crescido quase oito vezes). Em torno de 1830, a população livre situava-se perto de 3 milhões – e não havia, até aquela data, nenhuma atividade econômica capaz de absorver as disponibilidades de mão-de-obra: açúcar, algodão, fumo, mineração eram decadentes, e só o café, a partir daquele momento, começou a representar uma demanda crescente de braços. Havia, para o proletariado rural – gerado por aquela decadência – o recurso à ocupação de terras disponíveis (fato possível, até certo ponto, mesmo após a lei proibitiva de 1850) para viver no setor de subsistência, em condições de pouca rentabilidade, dado o baixo nível cultural e tecnológico dos caboclos, pouco interessados em melhorar sua vida. Mas as perspectivas de trabalho, enquanto existia o escravo, não eram muito brilhantes. Para o proprietário, o escravo era, ainda, mais barato face à possibilidade de usar intensamen te sua força de trabalho. ii) De fato, não se observou um interesse especial pelo trabalhador rural livre durante o período em que havia possibilidade de importar escravos. A iminência da abolição do tráfico provocou a intensificação das 104 105 importações. Entre 1846 e 1849, a média anual foi de 55 mil escravos, bem mais alta do que o máximo que se pode supor para o auge da mineração (talvez 25 -30.000, no máximo). A população escrava subiu de quase 1,5 milhões em 1823 para 2,5 milhões em 1850 – resultado das importações maciças antes da suspensão do tráfico. Em 1872, no primeiro recenseamento, era quase a mesma, demonstrando a impossibilidade de um crescimento vegetativo. Na véspera da abolição da escravatura situava-se em torno de 700 mil. É interessante observar a localização da população escrava, correspondente ao interesse econômico maior e à procura de novas soluções de trabalho, como se vê no Quadro 9.1. Observa-se que São Paulo, apesar da pujança do café, usava parcela relativamente menor de escravos. Quadro 9.1 População escrava por região (em percentagem do total) 1823 1872 1885 Rio de Janeiro 13,1 22,6 24,6 Minas Gerais 18,7 24,5 22,6 São Paulo 1,8 10,4 12,9 Bahia/Pernambuco/Maranhão 42,3 22,0 27,2 Funcionava, neste caso também, um círculo vicioso: havendo escravos baratos, não se justificavam investimentos em equipamentos mais avançados; nestas condições, o trabalho livre não apresentava nenhuma 105 106 vantagem técnica, e não podia ser explorado plenamente como o do escravo. A presença do escravo mantinha os salários baixos, afastando, ainda mais, a solução do trabalho livre. Um escravo podia cuidar de até 3.500 pés de café, mas é mais razoável admitir a média de 1.000 pés. Isto dava, em condições normais, 100 arrobas de café por ano. A £ 2 por saca em média a renda anual bruta era de £ 50 enquanto o escravo no auge do ciclo do açúcar, com 60 arrobas, produzia £ 120, mas não se deve esquecer que, com uma cotação máxima de £ 4, o café podia chegar também a £ 100. E não exigia investimentos fixos tão elevados como o açúcar. A abolição do tráfico tornou o problema mais grave, sobretudo por elevar brutalmente o preço do escravo: da média de 400 mil-réis, ou menos, antes de 1850, chega a quase 1.000 réis em 1855 e cresce, depois, lentamente até 1.100/1.200 no fim da escravatura. Mesmo assim, o escravo apresentava vantagens enquanto sua oferta podia ser mantida, sem substituição pela máquina. Por exemplo, em torno de 1865, com o escravo valendo 1.050 mil-réis, a amortização, para uma vida média de 15 anos, era de 80 mil-réis, à qual devia acrescentar-se a despesa de manutenção de cerca de 20 mil-réis por ano. A sua produção de 100 arrobas em média, valia 440 mil-réis, dos quais deve-se deduzir gastos com transportes, beneficiamento, impostos e comissões, orçados em 160 mil-réis. A despesa de 90 mil-réis com o escravo oferecia um retorno líquido (sem 106 107 computar o custo da terra e dos equipamentos) de 280 mil-réis, ou seja, 211%. O interesse pelo escravo resultou na transferência de escravos do Norte e Nordeste, onde a rentabilidade era menor, para o Sul. Houve projetos para impedir estas transferências, mas a solução comum foi a tributação das saídas de escravos: em Pernambuco (1850) e na Bahia (1862) 200 mil-réis por escravo que saía. As transferências, então, caíram após 1870. Entretanto, em 1887 50% dos escravos existentes no país localizavam-se na região cafeeira – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Novos golpes foram recebidos pelo escravagismo: a Lei do Ventre Livre (1871) que, na realidade, embora libertando os nascituros, permitia a persistência da escravidão porque o proprietário do filho de escravos podia, em vez de receber a indenização de 600 mil-réis, utilizar os seus serviços entre 8 e 21 anos de idade; a lei da liberdade dos sexagenários (18 85), finalmente, a abolição da escravatura (1888). Face a estas alterações, nova solução foi procurada com a imigração estrangeira. ii) Deixando de lado as esparsas tentativas de colonização na primeira metade do século, o interesse pela entrada de imigrantes cresceu à medida que a solução escravagista se comprovava inviável. No decênio anterior à abolição do tráfico entraram, apenas, 4.992 imigrantes. Nos dos decênios seguintes, foram 108 mil em cada um. Entre 1870 e 1879, as entradas subiram para 193.931 e na década da abolição da escravatura elevaram-se para 448.622. Houve, na base, 107 108 uma transformação cultural, ao mesmo tempo que as condições econômicas permitiram a substituição do escravo pelo trabalhador livre: - face à escassez de escravos, houve necess idade de introduzir equipamentos de forma que o trabalho se tornou mais produtivo, permitindo salários mais elevados; - com o crescimento da economia e das facilidades de infra-estrutura, os atrativos eram maiores para os imigrantes estrangeiros; - foram dados incentivos à entrada de colonos, inclusive para obtenção de terras. As experiências de colonização começaram com o senador Nicolau Vergueiro que, em 1847, fundou a colônia de Ibicaba. O sistema adotado foi o de parceria, isto é, o colono recebia um lote de terra, adiantamentos para viagem e equipamentos, para, depois, dividir os lucros líquidos com o proprietário da terra e pagar suas dívidas. Dentro deste sistema, foram feitos outras experiências em São Paulo (em 1853/4 foram autorizados empréstimos por 6 anos para subsídios a viagens dos imigrantes) e Santa Catarina (Blumenau, Joinville). O sistema de parceria, entretanto, não se comprovou satisfatório: apesar da lei de 1837 sobre o trabalho dos colonos (renovada em 1879) havia abusos por parte dos proprietários, era difícil fazer contas certas sobre os lucros líquidos, o fornecimento de equipamentos e mantimentos era espoliatório – e, por outro lado, os próprios colonos encontravam 108 109 dificuldades em se adaptar às novas condições. Havia, ainda, o fato de que os colonos produziam menos que os escravos: uma família de 4/5 pessoas ativas cuidava de 1.500/2.000 pés, enquanto vimos que um escravo cobria facilmente 1.000 pés ou mais. Chegou-se a protestos por parte dos países de emigração, até a proibição da id a para o Brasil (rescrito de Heydt, na Prússia, em 1859). É verdade que tais restrições foram feitas mais tarde, depois de abolido o sistema de parceria, e não apenas pela Prússia, mas também pela França e Inglaterra. Entretanto, havia uma realidade mais forte: a expansão demográfica na Europa meridional, central e oriental, sem grandes oportunidades de emprego; a necessidade de mão-de-obra no Brasil, em condições já relativamente melhoradas. As tentativas de imigrações chinesas em 1855/1856 não vingaram. Em geral, a vinda dos imigrantes foi subvencionada pelos governos provinciais, e várias or ganizações foram constituídas para sustentar o movimento (Associação Auxiliadora de Colonização – 1871). Os imigrantes não se fixavam mais em regime de parceria, mas como assalariados, seja com um salário mensal, seja com pagamentos proporcionais ao número de pés sob seus cuidados ou ao volume de café produzido. A região de São Paulo soube adaptar-se melhor às novas condições, ativando a entrada de imigrantes, criand o infra-estrutura adequada, investindo em equipamentos; o clima temperado era, também, mais atraente. O mesmo não aconteceu com a região do Paraíba que se viu, neste período, superada por São Paulo. 109 110 Enquanto a escravidão permaneceu presente, os salários deviam sofrer sua influência. Evidentemente este fato constituiu fator negativo para uma distribuição melhor da renda e o fortalecimento da classe operária. No início, o salário fixava-se perto do aluguel dos escravos de ganho – a única diferença era que o trabalhador livre não podia ser submetido ao regime rigoroso do trabalho escravo, em quantidade e qualidade: o assalariado trabalhava 10 horas diárias e o escravo, 16-17. Mais tarde, após 1870, com a redução da oferta de escravos, a elevação do seu preço, a introdução de máquinas que elevavam a produtividade do trabalho, os salários começaram a subir. Na década 1870/1880 encontramos, na zona mais bem paga (São Paulo), salários médios entre 14 e 20 mil-réis por mês e 600 e 700 réis por dia. Após 1880, o salário médio, na zona privilegiada, sobe para 25/30 mil-réis mensais. A diária era de 1/1,5 mil-réis mais comida, ou 2 mil-réis a seco. Isto correspondia a algo mais do que o aluguel de escravo, uma vez que a manutenção deste custava cerca de 20 mil-réis por mês; acrescentando uma amortização de 8 mil-réis (em 15 anos ao preço de 1.300 mil-réis), mais um pequeno lucro, chegamos ao nível dos salários. Em casos de pagamento por tarefa os resultados podiam ser menores. Dá-se o exemplo de uma família que podia produzir, anualmente, 200 arrobas de café (correspondentes a 200 pés), recebendo 1.200 réis por arroba. O rendimento não passava de 20 mil-réis por mês.(3) 110 111 c) Tecnologia – Até 1850, a técnica de produção ficou extremamente rudimentar; era a queima das matas, o trabalho com enxada e foice (a charrua começou a ser empregada mais persistentemente após 1870), o piso teamento dos grãos ou o uso de pilões à tração animal ou à água. Em torno de 1830 já haviam sido aplicadas melhorias no equipamento: ribas, carretão, depois carretão de roda de baixo, monjolo, engenho de pilões. A partir de 1850 são introduzidas as máquinas para beneficiamento, aumentando substancialmente a produtividade: descascadores podiam operar 800 arrobas num dia de 10 horas, e despolpadoras até 1.200 arrobas. d) Capital – No início, as necessidades de capital prendiam-se sobretudo, à compra da escravos. No resto, a terra não custava praticamente nada (o seu preparo era feito pelos escravos) e os equipamentos eram rudimentares. O aspecto mais grave era o longo período de maturação: o café começava a produzir 6/7 anos após o plantio: vivia 20 a 25 anos, mas a sua produtividade máxima durava 10 anos (de acordo com a região e os métodos de produção podia ser de 100 arrobas por mil pés como em São Paulo ou de 30/40 arrobas como no vale do Paraíba). Os capitais aplicados procederam dos restos da acumulação dos tempos da mineração, inclusive no setor comercial, dos latifundiários, das disponibilidades da classe média, e provavelmente dos capitais tornados disponíveis depois da abolição do tráfico – mas não há provas diretas. Mais tarde, os 111 112 capitais estrangeiros, fixados inicialmente no setor de comercialização, ingressaram no de produção. Com custos baixos para uma produtividade relativamente elevada do trabalho escravo, e com preços de venda em alta, embora com flutuações, os lucros foram elevados, e o seu reinvestimento constituiu a principal fonte de capital. Após 1850, as exigências de capital aumentaram para investimento em máquinas e equipamentos. Em compensação, a imobilização em mão-de-obra escrava diminuiu, mas havia necessidade de capital de giro para o pagamento dos salários. Nesta segunda fase, o reinvestimento dos lucros continuou sendo a fonte mais importante de capital. Havia, também, capitais trazidos pelos imigrantes. Ademais, os comissários e as companhias de exportação, em grande parte estrangeira (em 1880, de 131 maiores exportadores, 66 eram estrangeiros – e superavam em muito os nacionais), adiantavam importâncias para capital de giro, e com o tempo o sistema bancário em formação começou a atuar no mesmo sentido. O papel fundamental do reinvestimento dos lucros mostra não apenas a capacidade de capitalização, mas também a propensão para poupança e investimento, denotando uma verdadeira classe empresarial que lutou, inclusive no terreno político, pela defesa de seus interesses e soube, sobretudo na região de São Paulo, criar condições de expansão e melhora de produtividade: introdução de imigrantes, adoção de equipamentos, criação de infra-estrutura. A única restrição que se pode 112 113 fazer é que a miragem dos lucros cafeeiros atraiu demais os investimentos, superdimensionando o setor em detri mento de outras atividades econômicas. A luta em torno deste problema pertence ao período seguinte. 9.4 Empresa e rentabilidade 9.4.1 Estrutura agrária e comercialização A empresa típica de café é a fazenda, o latifúndio organizado nos moldes tradicionais, basicamente em forma monocultural, acrescentando-se alguns produtos de subsistência. O caráter autárquico da fazenda de café é menos completo do que o do engenho de açúcar. Isto quer dizer que a especialização da empresa é maior, mas ao mesmo tempo a economia é mais diversificada, havendo agentes especializados em atender ao consumo interno (inclusive através da importação, fonte indispensável à medida que o café concentrava todos os fatores de produção do setor agrícola). Esta fazenda de grandes dimensões é, no início, escravocrata, passando, como vimos, sob a força das circunstâncias, para o trabalho livre, mais depressa em São Paulo do que no Rio de Janeiro. Acima dos escravos encontramos os assalariados, em número cada vez maior, todos sob a direção do fazendeiro que é, como já dissemos, um verdadeiro empresário. Com o tempo, a elevação das rendas trouxe a propensão para o ócio e o lazer e, 113 114 então, fazendeiros passaram para a cidade, deixando a fazendo sob a direção de administradores ou feitores. A estrutura agrária continha uma classe intermediária, os colonos – parceiros, arrendatários ou proprietários – que se dedicavam, também, ao cultivo do café, ficando ligados ao latifundiário com vistas ao beneficiamento e à comercialização do produto. Nesta faixa, a agricultura de subsistência era relativamente mais expressiva. Distribuição agrária desigual com efeitos negativos para a formação econômica do país, porém com uma faixa de propriedades médias bem mais forte e mais ampla do que na economia açucareira. Podemos ter uma idéia, embora um pouco alterada pela diferença de época, ao analisar a estrutura agrária do setor cafeeiro de São Paulo, em 1927.(4) Para um número de 39.897 estabelecimentos agrícolas possuindo 1.130,1 milhões de pés, podemos construir o perfil do quadro 9.2. Quadro 9.2 Estrutura agrária cafeeira Tipo de estabelecimento - com menos de 5.000 pés - de 5.0000 a 20.000 pés - de 20.000 a 100.000 pés - de 100.000 a 500.000 pés - mais de 500.000 pés Total 34,4 39,3 20,2 5,8 0,3 % do total dos cafeeiros 3,0 15,4 33,4 39,3 8,9 Tamanho médio (pés) 2.502 11.079 46.863 192.997 842.500 100,0 100,0 28.325 % do total dos estabelecimentos 114 115 Observa-se que 73,7% dos estabelecimentos têm tamanho inferior à média do setor e possuem apenas 18,4% do total dos cafeeiros, enquanto 6,1% dos estabelecimentos são responsáveis por 48,2% dos cafeeiros, tendo tamanhos superiores a 100 mil cafeeiros e chegando a mais de 1 milhão (21 pés em que 20,2% dos estabelecimentos possuem 33,4% dos cafeeiros, tendo o tamanho médio de 46.863 pés por estabelecimento. O problema é saber qual era a rentabilidade da empresa. Antes, deve ser completado o quadro da organização empresarial com as empresas de comercialização. Normalmente não era o produtor quem exportava. Havia firmas especializadas nestas operações as quais atuavam através dos comissários, agentes intermediários que adquiriam os produtos, adiantavam capital de giro aos produtores, manipulavam no mercado. Do ponto de vista da receita interna do café é preciso deduzir os lucros auferidos pelos comissários, mercadores e outros intermediários, lucros esses que, em decorrência da sua posição privilegiada, ul trapassavam, às vezes, as proporções normais da intermediação. 9.4.2 Rentabilidade Apesar de todas as queixas dos cafeicultores, sobretudo por causa da escassez de mão-de-obra, apesar da decadência de certas áreas cafeeiras (por própria 115 116 inépcia empresarial), e apesar das flutuações cíclicas dos preços, é ponto pacífico que as atividades cafeeiras foram altamente rentáveis. Indicações temos na capacidade de reinvestimento no setor, na elevação dos níveis de consumo e na acumulação de capitais que iam germi nar em outros setores. É preciso, entretanto, tentar a quantificação do problema. A renda real do café flutuava sob a influência de três fatores: cotação internacional, taxa de câmbio e nível interno de preços. Tomando os preços de venda em moeda nacional (resultantes da cotação estrangeira multiplicada pela taxa de câmbio) em anos selecionados de máximos e mínimos, e deflacionando-os pelo índice de preços, encontramos a evolução do índice do preço real que consta do Quadro 9.3. Quadro 9.3 Café – preços nominais e reais (índices – base: 850 = 100) Preço nominal Deflator Preço real 1863 195,1 183,4 106,4 1868 106,9 211,7 50,5 1873 274,5 223,7 122,7 1877 149,0 229,3 65,0 1879 273,5 235,2 116,3 1885 112,7 239,3 47,1 1887 260,8 229,4 113,7 Observa-se que, com base no ano de 1850, um ano relativamente normal, a renda real do café sofreu 116 117 altas e baixas, de acordo com a flutuação do preço internacional, visto que, contrariamente à tese tradicional, a desvalorização cambial não foi sempre capaz de salvaguardar o nível de renda real. Eventualmente, o produtor podia garantir sua renda global, aumentando as quantidades produzidas e vendidas, caso a sua capacidade de produzir e o mercado comprador lho permitissem. Mas, o problema estava em qual seria, num nível médio dos preços, a margem de lucro do produtor. Tomemos um exemplo típico: 1.000 pés de café (em 1,3 hectares) produzindo 100 arrobas, na década 1861/1870. Não vamos computar o preço da terra por ser muito aleatório, ou talvez nulo. Havia, entretanto, a derrubada, a queima, a capoeira – talvez uns 120 a 150 mil-réis por alqueire, ou seja, uns 70 mil-réis por 1,3 hectares. Durante 6 anos, o café exigia cuidados sem produzir nada. Eram os serviços de um escravo a 90 milréis por ano (70 de amortização, 20 de manutenção), Um total de 610 mil-réis a serem amortizados em 10 anos de vida do cafeeiro em plena produtividade. O preço médio de venda na década 1861/1870 foi de 24.334 réis por saca, ou seja 6.084 réis por arroba. Deduzindo as despesas de transportes, comissões de 3% e impostos (um total de cerca de 25% sobre o preço da venda), mais o beneficiamento (1%) e o trabalho do escravo (900 réis por arroba) e ainda, o preço do capital investido (12$ sobre 610 mil-réis, em 100 arrobas), sobra um lucro líquido de cerca de 2.980 réis por arroba – 49% do preço de venda. 117 118 Considerando o investimento inicial de 610 mil réis, o lucro, na produção anual de 100 arrobas, era de 49%. Em 10 anos de vida intensa dos novos cafeeiros, os lucros podiam amortizar o capital inicial de 610 mil réis e deixar, não obstante, um lucro líquido de 2.360 mil-réis, ou seja, 287% sobre o capital investido (ou mais, se amortizado parceladamente, o que reduzia os juros). Talvez haja um excesso no cálculo dos lucros, subestimando-se o custo da terra – aspecto válido sobretudo para os pequenos produtores que deviam pagar arrendamentos, participações etc. Tampouco foram computados os gastos em equipamentos. Não se deve esquecer, igualmente, que em certas regiões a produtividade por 1.000 pés e por escravo ou por assalariado era menor de 100 arrobas. Havia, da mesma forma, casos de espoliação pelos comissários e capitalistas. Tudo isto podia aumentar os custos e reduzir os lucros, mas não resta dúvida de que o café oferecia uma excelente margem de rentabilidade, o que explica a atração que exerceu durante todo o período e os reflexos sobre o estado geral da economia nacional. 9.5 Comércio exterior 9.5.1 Resultados do café A conjugação da pressão da demanda e da capacidade de expansão da oferta resultou no 118 119 crescimento contínuo dos volumes exportados de café. O passo decisivo foi dado entre 1830 e 1860. Depois, o crescimento foi mais lento. As variações das cotações internacionais eram compensadas pelo aumento das quantidades embarcadas, de modo que a receita do café cresceu, também, sendo principal responsável pelo crescimento da receita total da exportação. O Quadro 9.4 sintetiza a evolução. (v. também Anexo IV) Quadro 9.4 Exportação de café (valores decimais acumulados) Valor Part. Exportação Volume exportado Receita medio café total (1000 sacas) (£ 1000) (£ / (% (£ 1000) saca) s/total) 1821/30 3.178 7.189 2,26 36.792 12,5 1831/40* 9.744 21.539 2,21 49.214 43,8 1841/50 15.677 21.736 1,39 52.690 41,3 1851/60 26.253 49.741 1,89 102.019 48,8 1861/70 28.977 68.004 2,35 149.471 45,5 1871/80 36.341 112.754 3,10 199.391 56,5 1881/90* 53.326 135.027 2,53 219.735 61,4 * Entre 1833 e 1887, o ano fiscal não coinci diu mais com o ano calendarístico, e foi fixado entre 1/7 e 30/6. As estatísticas seguiram o mesmo critério. Assim, o período de 1831/1840 inclui apenas 19 semestres e o de 1881/1890, 21 semestres. Observa-se que os volumes embarcados cresceram muito, no início, tanto em valores absolutos como em relativos: de 1821/30 a 1831/40, 6.566 mil sacas (+ 206,6%); de 1831/40 a 1841/50, 5.933 mil (+ 60,9%); de 1841/50 a 1851/60, 10.576 mil (+ 67,5%). O 119 120 aumento da oferta, mais do que as crises da demanda, pode ter contribuído para a depressão das cotações. De qualquer forma, o aumento das quantidades mais que compensou a queda dos preços de maneira que a receita aumentou, entre 1821/30 a 1841/50, em 202,4%. A partir de meados do século, as cotações elevamse paulatinamente, ao mesmo tempo que crescem as quantidades exportadas, com uma diminuição do ritmo no decênio 1861/70, da Guerra da Secessão norte-americana, que provocou a diminuição da demanda. Não se deve esquecer que na época, os Estados Unidos compravam cerca de 41% do nosso café, e a Europa 56%. Entre 1871 e 1890, os volumes aumentaram substancialmente outra vez, e as cotações subiam; somente no fim do período começou a manifestar-se o enfraquecimento do mercado. De qualquer forma, entre a década de 1861/70 e de 1881/90, o volume decenal embarcado aumentou 84,0% e a receita 98,6%. O café torna-se principal responsável pela expansão das exportações. Individualmente, a partir da década de 1831/40, representa mais de 40% do valor total, chegando a mais de 60% no fim do período. (v. Anexo III). O crescimento absoluto da receita de exportação foi, principalmente, devido ao aumento da receita do café a não ser no período 1861/70 quando, em circunstâncias conjunturais excepcionais, o algodão aumentou suas vendas no exterior. Em relação à posição do café na renda interna monetária, só podemos fazer suposições: se, em meados do século, a exportação representava cerca de 35% da renda e 50% da exportação correspondiam ao café, este era responsável por 120 121 cerca de 17% da geração da renda. No fim do século, com a exportação a 25% da renda e o café com mais de 60% da exportação, aqueles 17% teriam caído para 15% – tudo isto significava, ainda, uma enorme participação, que mostra a concentração monocultural da economia. Ao mesmo tempo, o Brasil aumentava sua participação no mercado mundial do café até dominá -lo, de 18,2% na década de 18290 para 40,0% em 1840/49, 52,1% em 1850/59 e 56,6% em 1880/89. Até o fim do século chegará a 66,7%. Com o café repetiu-se o que apenas aconteceu com o açúcar entre o fim do século XVI e meados do século XVII: o Brasil era fornecedor regular e dominante do respectivo mercado. Entretanto, torna-se difícil afirmar que o mercado do café era um seller’s market. É verdade que já no século XIX, o Brasil tentou orientar os preços (em 1883/84 financiou um corner do café). Mais tarde, as políticas de valorização serão aplicadas, às vezes, com sucesso a curto prazo, mas contraproducentes a longo prazo por proteger a entrada no mercado de concorrentes marginais. O sucesso da manipulação de preços era limitado pela elevada elasticidade da demanda na alta dos preços e reduzida na baixa – fato ligado a pouca essencialidade do produto. 9.5.2 Pauta de exportação: outros produtos A exportação voltava a ser o setor dinâmico da economia, fonte de renda, sustentáculo do balanço de 121 122 pagamentos e núcleo de capitalização. Entretanto, esta situação devia-se, exclusivamente, ao café com a exceção de alguns pequenos períodos. A exportação, sem café, evoluiu como segue em valores decenais acumulados: 1821/30 1831/40 1841/50 1851/60 1861/70 1871/80 1881/90 (£ 1000) 29.603 27.675 30.954 52.278 81.467 86.637 84.708 índice 100,0 93,5 104,6 176,6 275,2 292,7 286,1 No início verifica-se uma tendência ligeiramente negativa e, em 30 anos, estacionária. Entre 1841/50, 1851/60 e sobretudo na década seguinte, a expansão deve-se, também, ao algodão e, subsidiariamente, ao açúcar, peles e couros, fumo e borracha. Finalmente, apenas a borracha progride, enquanto os demais principais produtos recuam. Não fosse o café, a exportação não teria encontrado novas soluções, a não ser a da borracha, precária e passageira (até 1910). A exportação decenal de café aumentou, entre 1821/ 30 e 1881/90, 18,8 vezes, a total 5.9 vezes e a dos demais produtos apenas 2.9 vezes. E a exportação continuava concentrada em alguns produtos. Entre 1840/50 e 1881/90, a concentração acentuou-se entre 6 produtos, aumentando sobretudo, a participação do café e da borracha: 122 123 (% do valor total da exportação) 1841/50 Café 41,3 Algodão 7,5 Açúcar 26,7 Fumo 1,8 Peles e couros 8,6 Borracha 0,4 Total dos 6 produtos 86,3 1881/90 61,7 4,2 10,0 2,8 3,2 7,7 89,6 Na zona do café, as próprias culturas de exportação foram prejudicadas pela concentração d os fatores de produção no produto prioritário. Nas outras regiões dominaram, ainda, os produtos tradicionalmente cultivados, marginalizados pela falta de um mercado em expansão, pela incapacidade de competição por causa da escassez de capitais e atraso da tecnologia. Vale um rápido exame dos principais artigos de exportação: a) Açúcar. Continuou representando a principal produção do Nordeste, embora tenha se desenvolvido, também, no Norte e no Centro-Sul (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo). As quantidades produzidas e exportadas haviam aumentado: no início da segunda metade do século, andavam em torno de 8 milhões de arrobas, mas o mercado ressentia-se cada vez mais da concorrência do açúcar de beterraba que ia finalmente cobrir cerca de dois terços do consumo mundial. Além disso, apareceu a concorrência do açúcar africano e 123 124 indiano. Em 1878, a arroba valia, no máximo, 1.800 réis, ou seja pouco mais de £ 0,17. A exportação cresce, ainda, até £ 21,6 milhões durante a primeira década da segunda metade d o século. Depois, o valor fica praticamente estacionário, com uma queda mais sensível entre 1861 e 1870 por causa do retraimento da demanda norte-americana. Face às novas condições competitivas, o açúcar brasileiro não soube renovar-se tecnologicamente. No princípio do século XIX houve melhoria nas variedades cultivadas de cana, mas a lavoura ficou a mesma, à base de enxada e foice, sem pelo menos o uso do arado, e sofrendo as conseqüências das pragas. No tratamento da cana, o século XIX trouxe a introdução da moenda de cilindros de ferro, o uso de centrifugadores e o emprego da máquina a vapor. Foram concedidos, inclusive, incentivos tributários para o uso de máquinas, porém sem grandes resultados: em 1857, Pernambuco tinha 1.106 engenhos dos quais apenas 18 movidos a vapor. E proliferavam os pequenos engenhos (ainda em 1878, na mesma província, abundavam engenhos que produziam entre 2 e 6 mil arrobas por ano). Falta de capitais, falta de mão-de-obra (sobretudo por causa da abolição do tráfico e a atração exercida pelo café), atraso tecnológico. Ao preço de 1.800 réis por arroba (1878), um escravo produzia por ano 180 mil-réis (100 arrobas), enquanto no setor cafeeiro, produzia 800 mil -réis, sem precisar de tantos investimentos em equipamentos. A zona açucareira não conseguiu recuperar o atraso sofrido a partir da queda do ciclo do açúcar. Há quem 124 125 sustente que o atraso foi provocado, especialmente, no século XIX pela aplicação de uma taxa cambial ditada pelo café e inadequada por tornar o açúcar brasileiro competitivo no mercado mundial. (5) Uma tentativa de melhora empresarial foi feita a partir de 1875 pela constituição dos engenhos centrais (garantia de juros de 6,5-7% a.a., e outros favores para atrair, inclusive, capitais estrangeiros). Eles deviam beneficiar, com maquinaria moderna, a cana fornecida pelos cultivadores, mas foi exatamente este o ponto de estrangulamento do sistema, decorrente do atraso do setor agrícola. Capitais ingleses foram investidos, atraídos pela garantia de juros de 6,5% a.a. Nova f ase começou, em 1890, com a constituição das usinas, grandes unidades de produção de cana e fabrico de açúcar. b) Algodão. O Brasil tinha perdido, já no início do século, o mercado inglês para o concorrente norte americano. Novas oportunidades surgiram quando, por causa da Guerra de Secessão, a concorrência norteamericana foi eliminada temporariamente: o algodão brasileiro chegou a representar 60% da importação inglesa; no fim do século voltou para cerca de 20%. Os preços refletiam, com efeito, a nova situação: em meados do século, o preço da tonelada situava-se em torno de £ 45; na década de 1861/70 chegou a mais de £ 90. Já na década seguinte começava a baixa, chegando ao mínimo de £ 33 em 1882/83, para recuperar-se a £ 56 no ano da proclamação da república. 125 126 A variação da conjuntura manifestou-se do mesmo modo nas quantidades embarcadas e nas receitas de exportação. Estas subiram de £ 3.952 mil na década de 1841/50 e £ 6.325 mil em 1851/60 para £ 27.503 mil durante os anos 1861/70. Depois a receita caiu até £ 9.229 na década 1881/90. As principais províncias produtoras e exportadoras continuavam no Norte e Nordeste: Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Maranhão, Bahia, Ceará – contudo produzia-se, também, em São Paulo (abandonado parcialmente a favor do café), no Sul, no Centro-Oeste. A introdução do tipo de algodão herbáceo no início do século foi inovação bem-vinda, mas, tal como em outros setores, a renovação tecnológica (por exemplo, o descaroçador moderno) tardou. Após 1865, este atraso tecnológico, a mudança da agricultura, a fuga de escravos para o Sul, a falta de capitais esvaziaram novamente o setor, diminuindo as perspectivas de reerguimento econômico da região mais ligada ao produto – o Norte e o Nordeste. c) Borracha. Sem chegar a seu apogeu neste período, a borracha, cuja demanda estava em plena ascensão em decorrência do processo industrial e da descoberta da vulcanização, começou a firmar-se antes do fim do século, aproveitando as condições naturais (a hévea é planta nativa), as disponibilidades de mão-deobra (proletariado rural do Norte e Nordeste, sobretudo depois da grande seca de 1877), a tecnologia primitiva acessível, a pouca exigência de capitais. A produção 126 127 localizou-se na Amazônia, facilitada pela introdução da navegação a vapor após 1853. O verdadeiro boom (ou subciclo) da borracha situa-se entre 1890 e 1910, mas mesmo antes observa -se o abandono de atividades tradicionais – lavoura, pastoreio, artesanato típico – a favor dessa atividade mais prometedora. Em 1850, a exportação anual não passava de 1.467 toneladas; em 1880, entretanto, atingia 16.394 toneladas. Do valor acumulado de £ 2.107 mil na década 1841/50 chegou a £ 16.920 mil em 1881/90. Ao lado do café e os três grandes produtos citados, acrescentavam-se as peles e os couros (£ 4.531 mil na década 1841/50, £ 10.967 mil em 1871/80, caindo para £ 7.032 mil em 1881/90) produzidos quase em todas as regiões, mas sobretudo no Nordeste e no Sul, os dois centros de criação de gado. O fumo também, (£ 948 mil em 1841/1850, £ 6.779 mil em 1871/80) produzido sobretudo no Nordeste, expandiu suas vendas para os países industrializados, mais do que compen sando a perda do mercado africano após a abolição do tráfico. Em posições inferiores: cacau, no Nordeste (Bahia) e Norte (Pará), merecendo destaque porque sobretudo na Bahia, a simples coleta transformou -se em lavoura; o ouro, cujas jazidas aparentes se esgotavam, de modo que a produção caiu da média anual de 2.533 quilos em 1821/1850 para pouco mais de 2.240 quilos em 1851/1865 e 1.735 quilos em 1866/1875 (novas perspectivas abriram-se com a concessão de exploração por empresas estrangeiras); madeiras, castanhas do Pará, 127 128 cravo no Norte; pau-brasil (em vias de completo desaparecimento), caroá, carnaúba, diamantes (Chapada Diamantina; Serra das Arociras, em 1842) no Nordeste; madeiras no Sul e Centro-Sul; erva-mate no Sul (a sua participação no valor otal da exportação oscilou em torno de 1,10-1,50% no período 1851/1890; cristal de rocha e ipecacuanha no Centro-Oeste. 9.5.3 Importações Tal como a pauta de exportação caracterizava um país subdesenvolvido, exportador de produtos primários – matérias-primas e gêneros alimentícios – apenas parcialmente industrializados (como no caso do açúcar), “a pauta de importação convergia para a mesma caracterização. Como ela era formada na sua maior parte de bens manufaturados de consumo e muito poucas matérias-primas e combustíveis, denota a inexistência de uma indústria exigindo insumos que não podiam ser produzidos internamente. Ainda mais: encontra-se na pauta, uma boa proporção de gêneros alimentícios, em parte preparados, o que demonstra a incapacidade da oferta agrícola local, absorvida como era pelo café. Os levantamentos estatísticos são escassos, porém algumas amostragens são expressivas. Podemos clas sificar os principais itens de importação em dois momentos selecionados, conforme mostra o Quadro 9.4. 128 129 Quadro 9.4 Estrutura das importações Manufatura de algodão, lã, seda e linho Artigos de vestuário (calçados, chapéus, etc.) Gêneros alimentícios e bebidas (farinha de trigo, sal, carnes, manteiga, bacalhau, azeite, etc.) Carvão de pedra Ferro, aço, ferragens, cobre Bens duráveis de consumo (louças, ouro, prata) Couros preparados Papel e aplicações Produtos químicos e farmacêuticos Máquinas e acessórios 1839/40-1843/44 (% do valor total) 1870/71-1874/75 49,5 43,0 2,1 3,4 21,0 1,0 4,8 19,6 3,5 8,8 1,8 1,6 0,8 5,4 2,7 1,6 1,0 0,2 1,5 2,9 Entre os dois qüinqüênios selecionados, a média das importações subiu de £ 6,3 milhões para £ 17,1 milhões, portanto os valores absolutos em cada classe cres ceram. O aspecto global ficou, em termos relativos, qua se o mesmo, mas alguns detalhes podem ser apontados, denotando alterações estruturais na eco nomia: aumento de certos produtos manufaturados indicando elevação dos padrões de consumo; redução das manufaturas têxteis correspondendo ao início da indústria nacional; aumento das importações de máquinas, acessórios, fer ragens, metais, combustível mineral, em ligação ao mesmo desabrochar da indústria. Os 5 itens ligados à 129 130 indústria (ferro, aço, cobre, carvão, ferragens, máquinas e acessórios) aumentaram, entre os dois períodos se lecionados, de £ 447 mil para £ 2.269 mil, ou seja, 408%. No mesmo intervalo, as importações tot ais cresceram cerca de 100%, apenas. Após a estagnação do início do século encontramos um crescimento paralelo às exportações: de £ 4,0 milhões em 1830 para £ 7,5 milhões em 1840, £ 9,2 milhões em 1850, £ 13,3 milhões em 1860, £ 14,9 milhões em 1870, £ 16,5 milhões em 1880 e £ 24,0 milhões em 1890 – em tudo um aumento de 6 vezes em 10 anos (7,9 vezes para as exportações). Em termos per capita a importação cresceu, entre as duas datas -limites, de £ 0,75 para £ 1,69 (para a exportação, de £ 0,63 para £ 1,86). 9.5.4 Políticas comerciais No período em foco, as políticas comerciais concernentes à exportação não apresentaram nada de especial. O café desenvolvia-se normalmente e não parecia exigir uma estratégia específica, tal como devia acontecer no fim do século e, ainda mais, no século seguinte. Os problemas que preocupavam mais eram de natureza financeira, monetária e cambial, como veremos mais adiante. Outrossim, a perpétua desvalorização cambial constituía incentivo para as exportações. E, o poder competitivo destas era considerado bastante grande para permitir a aplicação do importo de exportação cuja incidência variou entre 2 e 9%; no fim 130 131 do Império era de 7%. Em 1850/51, o imposto sobre a exportação representava 14,4% receita do Tesouro; em 1870/1871, 15,3%; em 1889, 9,3% – demonstrando a necessidade de não onerar demasiado as exportações, quando sua pujança começara a afrouxar. E havia, também, impostos regionais (provinciais e municipais) que as oneravam. No que tange à política alfandegária sobre importação, dominou o espírito fiscalista, a idéia de obter uma receita para o erário público quando o mercado interno, encolhido, não oferecia boas perspectivas de tributação. Entretanto, esta política, iniciada com a tarifa Alves Branco de 1844, teve também reflexos protecionistas que irão manifestar-se nas primeiras tentativas de implantação de uma indústria nacional. A evolução da política tarifária seguiu os seguintes marcos: - tarifa Alves Branco (1844), com uma incidência média de 40%, mas variando entre 20 e 60%, com maior tributação sobre têxteis e bebidas (50-60%); - tarifa Souza Franco (1857), com taxas específicas e ad-valorem, com reduções para alimentos, ferramentas agrícolas, máquinas e matérias -primas para as indústrias (estas últimas duas pagavam 15%); - tarifa Silva Ferraz (1860), também com taxas fixas e ad-valorem, com reduções para ferragens, armamentos, ferramentas e máquinas; - tarifa Rio Branco (1874), unificando a 131 132 incidência para 40%, com isenção para plantas, raízes, máquinas agrícolas e industriais; - tarifa Assis Figueiredo (1880), com novas isenções para máquinas agrícolas e outras; - tarifa Saraiva (1881), adotando uma incidência móvel na base de listas de preços alterados conforme a taxa de câmbio; - tarifa Belizário de Souza (1887), aumentando a incidência para os produtos com similar nacional e negando a proteção às indústrias que não utilizavam matérias-primas nacionais; - tarifa João Alfredo (1888), com incidência móvel para compensar as flutuações cambiais. Observa-se que, ao lado da preocupação com a garantia da receita do imposto de importação face às flutuações de preços e câmbio (este imposto repre sentava 62,7% da receita em 1850/51, 54,2% em 1870/71 e 48,3% em 1889), medidas referiam-se ao fortalecimento da agricultura, sobretudo a destinada à exportação, e à sustentação dos primeiros passos da indústria. 9.5.5 Balança comercial e distribuição geográfica do comércio exterior a) O início do século havia se caracterizado pela estagnação das exportações. Entretanto, numa economia cuja despesa se orientava tradicionalmente para o mercado externo, a demanda de importações manteve -se bastante ativa sobretudo depois da chegada da Corte, 132 133 cujo poder de compra era mais elevado. A própria concentração de fatores de produção no setor cafeeiro, principalmente a partir de 1830, se de um lado reativou a receita de exportação, esvaziou, ainda mais, a agricultura de subsistência. (Quase se pode falar num multiplicador negativo das exportações em relação a esta agricultura). As limitações da produção industrial e artesanal impunham, também, o recurso à importação. O resultado foi que, até a década 1851/60 inclusive, a balança comercial foi quase permanentemente negativa – o que criou, como vamos ver mais adiante, problemas no balanço de pagamentos. Entre as décadas 1841/50 e 1851/60, as importações acusaram um aumento enorme, de 88,9% que reflete, provavelmente, as alterações provocadas pelo café: elevação das rendas e esvaziamento da agricultura de subsistência. Nas três décadas anteriores à República, as importações continuaram crescendo, porém em ritmo menos acentuado – o abastecimento interno melhorava tanto no setor agrícola como no industrial. Por outro lado, as exportações aumentaram as taxas elevadas graças ao café em plena expansão, ajudado pelo algodão na década 861/70 e pela borracha no fim do período. O resultado foi a transformação do déficit em superávit na balança comercial, aliviando a posição do balanço de pagamentos. O Quadro 9.5 mostra a evolução da balança comercial: 133 134 Quadro 9.5 Balança comercial (£ milhões – dados decenais acumulados) 1831/1840 1841/1850 1851/1860 1861/1870 1871/1880 1881/1890 Exportação 49,2 52,7 102,0 149,5 199,4 219,7 Importação 54,3 60,1 113,5 132,0 164,9 195,4 Saldo – 5,1 – 7,4 – 11,5 + 17,5 + 34,5 + 24,3 Nos 60 anos em foco, o resultado global foi um superávit de £ 52,3 milhões que representava mais de 4 vezes a exportação média anual do período (£ 12,9 milhões). Entretanto, o comércio exterior mostrava aspectos negativos, senão perigosos. A exportação, responsável por uma grande parcela da renda gerada no país e constituindo o setor principal de capitalização, estava concentrada em alguns produtos e principalmente no café – o que a tornava sensível aos eventuais reveses do mercado internacional. E a importação – que era fonte de abastecimento de bens de consumo essenciais e, mais tarde, devia ser fornecedora de equipamentos e matérias-primas para a indústria – dependia, em grande parte, da receita de exportação. b) A distribuição geográfica do comércio exterior mostra o mesmo excesso de concentração: se este fato não prejudicou os fluxos normais de exportação e importação, aumentou o grau de dependência econômica 134 135 em relação a algumas praças dominantes. Na segunda metade do século XIX, a Inglaterra conserva a supremacia no comércio exterior brasileiro. Principalmente, na importação ela apresenta-se como, de longe, o mais importante fornecedor. Na exportação os Estados Unidos mostram-se competidores importantes, em grande parte, por serem grandes compradores de café. Entre 1850 e 1870, a participação da Inglaterra nas exportações brasileiras flutuou entre 30 e 40%, a dos Estados Unidos entre 28 e 35%. No segundo plano, com participações entre 5 e 10% entravam a França, a Alemanha, a Argentina e Portugal. Em 1867/68, por exemplo, estes 6 países cobriam 80% das nossas exportações. Nas importações, a concentração era maior, pois a Inglaterra participou, no período, com 50 a 55% do valor total, seguida pela França com 12 a 14%. Numa faixa entre 5 e 10% encontravam-se os Estados Unidos, a Alemanha e Portugal. Os mesmos 6 países citados eram responsáveis, em 1858/59, por 93% das importações brasileiras. 9.6 Agricultura de subsistência No início da segunda metade do século XIX, a agricultura destinada ao consumo interno, já marginalizada desde o início da vida econômica do Brasil, sem capitais, sem tecnologia, não recebeu nenhum reforço capaz de melhorar sua situação. A citada lei de 135 136 1850 sobre as terras devolutas não era de natureza de alterar uma estrutura agrária pouco incentivadora para a média empresa agrícola. Esvaziamento maior sofreu a agricultura de consumo por causa da própria expansão do café. Foi, sobretudo no período de 1850 a 1870, que culturas de subsistência foram abandonadas em benefício do café. A forte alta dos preços dos gêneros alimentícios – fonte perene de inflação – reflete a retração da oferta. A abolição do tráfico, elevando o preço dos escravos, prejudicou o setor de subsistência que, pela sua baixa rentabilidade, não podia competir com os compradores de escravos do setor cafeeiro. Isto fez com que começassem a ser importados gêneros alimentícios tradicionalmente nacionais – feijão, arroz, milho – além daqueles, já antes, pouco produzidos no país – banha, manteiga, presunto. Pode-se dizer que a expansão do café provocou um fenômeno de substituição por importações, isto é, o déficit de abastecimento provocado pelo desvio de fatores para o café era coberto pela importação. Com menores efeitos sobre a economia nacional, mas com maior violência, o mesmo fato aconteceu na Amazônia durante o subciclo da borracha. Continuaram as culturas tradicionais – mandioca, milho, feijão, arroz – mais a criação do gado, a pesca (baleia), a coleta florestal, a indústria salineira, mas sofrendo, todas, além dos revezes mencionados, da falta de renovação tecnológica, da falta de mão-de-obra qualificada (ou mesmo de mão-de-obra qualquer), da falta de capitais em decorrência da baixa rentabilidade, 136 137 da falta de uma infra-estrutura de transportes (o pouco que se possuía, estava, em grande parte, ligado à exportação), da falta de um mercado mais amplo (a concorrência das importações refletia-se negativamente), da falta de créditos (uma lei hipotecária de 1864 previu empréstimos a 10-30 anos e 6% a.a. de juros, mas normalmente eram os bancos comerciais que forneciam créditos, a prazos e juros incompatíveis com as atividades agrícolas). No mesmo período, entretanto, um fator novo veio impulsionar e diversificar a agricultura: a entrada mais densa de imigrantes europeus a partir de 1850 e principalmente após 1880. Tratava-se de população de certos conhecimentos agrícolas, de maior produtividade e de padrões de consumo mais elevados. Um suplemento de demanda proporcionava maiores dimensões ao mercado, e uma capacidade maior de produção permitia a elevação das rendas. O processo verificou-se nas áreas de preferência destes imigrantes – São Paulo e todo o Sul, e um pouco menos no Centro-Sul. Resultou uma certa renovação dos métodos agrícolas com elevação da produtividade do setor de subsistência. Resultou, também, maior diversificação da produção, com possibilidade, desta feita, de substituir as importações: trigo, vinhas e criação de porcos pelos alemães e italianos no Rio Grande do Sul, frutas e gado leiteiro no Paraná e Santa Catarina. E mesmo em São Paulo, apesar da fixação em torno do café, certos progressos em cereais, hortigranjeiros, pecuária. Em termos absolutos e relativos, a economia de subsistência 137 138 cresceu, sobretudo, devido à expansão demográfica: a população aumentou 2,5 vezes entre 1850 e 1900; descontando os escravos, o aumento foi mais de 3 vezes. Finalmente, as dimensões do mercado cresceram em decorrência da elevação das rendas, esta, devida, em grande parte, ao café: o efeito multiplicador não de ixou de se manifestar e não apenas nos reinvestimentos no próprio setor cafeeiro, mas também em outros setores – importação, artesanato nacional, comércio e, mais tarde, na agricultura de subsistência. O mercado concretizou suas dimensões graças à expansão da rede de transportes. É verdade que a criação dos meios de transportes foi ligada, em grande medida, às necessidades do setor exportador (assim, por exemplo, as citadas ferrovias de São Paulo), mas não podia deixar de beneficiar o mercado interno. Houve progressos na construção de rodovias (União e Indústria – 1860 – para facilitar o escoamento da zona cafeeira do Rio de Janeiro e Minas Gerais; rodovias, embora rudimentares às vezes, foram abertas em outras regiões). Progressos nas ferrovias: iniciativa pioneira de Mauá – 1854; ferrovia D. Pedro II – 1858; a partir de 1858 no Nordeste, São Paulo – 1867, Rio Grande do Sul – 1874, Paraná – 1883, Santa Catarina – 1884. A introdução do sistema de garantia de juros para os investidores no setor foi incentivo importante, e os capitais estrangeiros desempenharam papel fundamental na expansão do setor. Alguns empréstimos públicos foram contratados no estrangeiro com o mesmo objetivo: o de 1858 (£ 1.526.500) para o 138 139 prolongamento da Estrada de ferro D. Pedro II; o d e 1860 (£ 1.373.000) para o prolongamento da estrada de ferro Pernambuco; o de 1883 (£ 4.599.600) para, entre outras, melhoria de estradas de ferro; o de 1888 ( £ 6.297.300) para construção e prolongamento de estradas de ferro federais; o de 1895 (£ 7.442.000) para a estrada de ferro Este de Minas. Ao mesmo tempo realizavam-se progressos na navegação fluvial e marítima com a introdução da navegação a vapor na Amazônia (1853), no rio São Francisco (1872) e em outras regiões. Em 1851, abria -se a primeira linha marítima regular entre Southampton e Rio de Janeiro. Acrescentem-se, também, os avanços em meios de comunicação (telégrafo, cabo submarino etc.), ligados às necessidades de centralização administrativa imperial. Por outro lado, a expansão dos meios de transporte oferecia novas oportunidades à indústria incipiente, tanto em termos de demanda de produtos industrializados como de criação de infra-estrutura para o mercado nacional. 9.7 Início da indústria Se, para identificar na economia brasileira o fenômeno da industrialização (isto é, o momento em que o setor secundário assume maior participação na composição do produto e da população ativa, e maior dinamismo em termos de rentabilidade, capitalização e reflexos no resto da economia), teremos que esperar até 139 140 depois da Segunda Guerra Mundial, não quer dizer que a indústria surgiu de uma vez naquela época ou em outro momento único anterior. Como era normal, houve uma evolução lenta que começou desde o século XIX. Predominavam, inclusive na segunda metade do século, as indústrias caseiras, o artesanato: fiação, tecelagem, cerâmica, produtos alimentícios, pequenos artigos de consumo. O setor foi melhorado, após 1850, graças à entrada dos imigrantes europeus, de maiores tradições artesanais. Quanto à indústria, a única realmente digna deste nome, antes de 1850, era a de construção naval. Houve, também, as tentativas fracassadas da siderurgia, e a constituição de pequenas fábricas de artigos de consumo, de alimentação e vestuário. As condições mudaram em meados do século, tornando-se mais favoráveis para a constituição de um núcle industrial nacional: a) A partir da tarifa Alves Branco (1844), a política aduaneira foi acentuadamente protecionista (mesmo se não visava diretamente a este objetivo). Como já mencionamos, algumas medidas específicas foram tomadas para incentivar a entrada de equi pamentos e matérias-primas industriais. b) Uma proteção suplementar resultou da contínua deterioração do valor externo da moeda nacional, deterioração que beneficiava os exportadores, mas que, elevando o preço das mercadorias importadas, protegia, também, a indústria nacional. 140 141 c) A elevação das rendas, resultante, em grande parte, do café, implicou em intensificação da demanda e, portanto, em expansão do mercado interno. Ao mesm o tempo, permitiu o aumento da poupança que ia tornar -se disponível para investimentos industriais. A longo prazo a expansão das exportações foi compatível com a implantação da indústria. d) Como já foi dito, a criação da infra-estrutura de transportes e comunicações constituiu, também para a indústria, uma boa base. O aparecimento de estabelecimentos bancários, apesar de suas limitações inerentes à inexperiência e de suas práticas abusivas, constituiu outro fator positivo. e) A mudança das condições gerais da economia, com a verificação de novas oportunidades de lucro, atraiu capitais estrangeiros. Entre 1860 e 1890, 137 empresas estrangeiras foram autorizadas a funcionar, entre as quais 22,6% no setor de seguros, 19,0% na mineração, 13,1% nas ferrovias, 9,5% em serviços públicos de gás, transportes e comunicações, 8,0% em atividades bancárias, e 5,8% no setor de energia. Vale sublinhar o interesse do capital estrangeiro pela criação de infra-estrutura. O capital inglês foi predominante: em 1880 somava £ 23,1 milhões em títulos governamentais e £ 15,8 milhões em investimentos privados. f) A abolição do tráfico e a melhora das condições gerais da economia abriram caminho para a mão-de-obra livre, de outro nível tecnológico e outros hábitos de consumo. Conseqüentemente, tanto a demanda como a oferta de produtos industriais 141 142 cresciam. g) A entrada dos capitais estrangeiros, inclusive dos imigrantes, bem como o progresso dos meios de comunicação permitiram um a certa renovação tecnológica. O aumento das patentes autorizadas no período constitui um bom indicador: entre 1851 e 1875, 222 patentes; entre 1876 e 1889, 1.249 patentes. h) A renovação tecnológica, a racionalidade econômica, o aumento do consumo correspondiam ao progresso cultural processado desde a primeira metade do século. No plano estritamente econômico este progresso manifestou-se pela criação de uma mentalidade empresarial cujo representante pioneiro e mais brilhante foi Irineu Evangelista de Souza, Visconde de Mauá. A figura de Mauá distingue-se na sua época, porque marca, por antecipação, uma nova fase em que o agente dinâmico não é mais o fazendeiro, e sim o homem da indústria, do comércio e das finanças. É expressiva a variedade de campos em que Mauá foi pioneiro – e com bastante êxito, até o melancólico e desmerecido fim que foi sua falência: construção naval (estaleiro da Ponta da Areia), navegação fluvial (Cia. de Rebocadores a Vapor, no Rio Grande do Sul e Cia. de Navegação a Vapor do Amazonas), ferrovias (ferrovia Mauá-Raiz da Serra em 1854, e auxílio financeiro às ferrovias Pernambuco-São Francisco, D. Pedro II, Bahia-São Francisco, Santos-Jundiaí, Rio Verde em Minas Gerais), serviços de utilidade pública (gás de iluminação para o Rio de Janeiro – 1854), bancos 142 143 (Bando do Brasil – 1851, Banco Mauá e Cia., ligações bancárias na Inglaterra e no Uruguai). Mauá destaca-se pelo seu pioneirismo e pela sua versatilidade, mas outros o acompanharam ou seguiram seu exemplo, como, por exemplo, Teixeira Leite nas ferrovias, Souto nas atividades bancárias, Teófilo Otoni, Mariano Procópio nas rodovias. A presença do empresário não foi dos fatores menos importantes para o início da indústria. Que este início se verificou já no período ora analisado, não há dúvida contanto que não se dê sentido exagerado a estes primórdios. Já vimos que a própria evolução da pauta de importações fornece sugestões valiosas quanto às possibilidades da produção nacional. Vejamos outras: a) De acordo com informações diretas, embora precárias, o Brasil tinha, em 1850, 50 fábricas com o capital de 7 mil contos de réis (cerca de £ 800 mil, valor de 500 mil sacas de café). Em 1889 havia 636 fábricas, com capital de 400 mil contos e 54 mil operários. A produção teria sido estimada em cerca de 500 mil contos – porém isto parece altamente exagerado. Acrescente-se que a indústria era quase exclusivamente de bens de consumo, sobretudo têxteis (60%). b) Entre 1850 e 1860 foram fundadas 62 indústrias, além de 8 companhias de mineração, 20 de navegação a vapor, 3 de transportes urbanos, 8 de 143 144 produção de gás, 23 de seguros, 4 de colonização, 8 estradas de ferro, 2 caixas econômicas e 14 bancos. c) no censo industrial, de 1920, encontramos as seguintes empresas, ainda existentes, e fundadas antes de 1889: Período de fundação até 1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1889 Nº de empresas 35 24 54 125 398 Operários/ empresa 83,7 94,6 48,9 82,0 90,7 Força motriz (HP)/ empresa 59,3 55,3 45,8 92,5 123,2 É interessante observar, que empresas fundadas até 1859 tem, em termos de operários e força motriz por empresa, dimensões maiores do que outras constituídas mais recentemente. O tamanho pode explicar sua sobrevivência até o censo de 1920, mas o fato é que não encontramos a mesma situação para as empresas fundadas em 1860/1879. d) No período 1866/1885, a indústria têxtil cresceu a taxas bastante elevadas: a produção a 9,4%, o número de teares a 10,0% e o número de operários a 7,6% - taxas limitadas ao setor mais avançado, mas já satisfatórias como indicadores de crescimento industrial. Esses primeiros passos foram fundamentais, mas insuficientes para poder-se falar num verdadeiro surto industrial, capaz de alterar a posição predominante de 144 145 outros setores, a saber, a agricultura e, mais especificamente, a agricultura de exportação, o café. O período decisivo, de transição, coincidirá com o advento da República, mas será ligado à crise do café e à ocorrência de vários fatores determinantes para o fortalecimento da indústria. 9.8 Moeda e finanças Já temos encontrado aspectos monetários e financeiros que influenciaram a evolução econômica do Brasil na segunda metade do século XIX. Temos que analisar agora, com mais detalhes, estes aspectos: finanças públicas, endividamento externo, balanço de pagamentos e câmbio, expansão monetária e inflação . 9.8.1 Finanças públicas Uma atuação mais decidida do setor público teria eventualmente apressado o processo de industrialização, embora isto tivesse sido muito improvável, uma vez que o Governo era dominado pela concepção mercantilista e pelos interesses do café. Pelo menos, teria eliminado certos percalços do sistema econômico. Entretanto, naqueles tempos não se tinha, de modo geral, compreendido o papel do setor público, tanto mais uma sociedade em que o nível cultural era muito baixo ainda. As idéias dos próprios dirigentes mais esclarecidos resumiam-se numa posição liberal com certas concessões protecionistas, porém de caráter fiscal, 145 146 respondendo a outro preceito básico, o do equilíbrio orçamentário. Finalmente, o apego ao modelo do padrão-ouro, como instrumento de equilíbrio monetário e cambial. Desde já, diga-se que nenhuma dessas políticas foi plenamente aplicada. Ademais, o Tesouro Nacional lutou com dificuldades permanentes cujo resultado foi um déficit orçamentário crônico. O fato deve ser explicado, em primeiro lugar, pelo despreparo administrativo, pela falta de um organismo fazendário estruturado e treinado, pela inépcia dos dirigentes. Do lado da receita, a inexistência de uma base tributável mais ampla e de um sistema adequado de impostos. Do lado da despesa, além das causas gerais indicadas, pressões periódicas por causa das guerras e revoluções; quanto a estas, houve um período de relativa calma entre a revolução praieira de Pernambuco (1847) e a revolução federalista do Rio Grande do Sul (1893); em compensação, as décadas de 1851 a 1870 conheceram as guerras contra Rosas e Oribe, contra Aguirre e finalmente contra Solano Lopes (guerra do Paraguai). Outras calamidades, como a seca de 1878, agiram negativamente. É importante sublinhar, desde já, a relevância do setor externo tanto na receita como na despesa: os impostos de importação e exportação constituíam a principal fonte de recursos; o pagamento da dívida externa (ela mesma resultante dos déficits orçamentários) formava um item importante no dispêndio público. Vale analisar, em alguns detalhes, a execução 146 147 orçamentária: a) Receita: Até 1844 ressentiu-se da estagnação do setor externo, sua maior fonte de recursos, e da baixa incidência do imposto de importação. A recuperação começou a partir daquela época, mas no exercício 1849/50 a receita não passava de 28.200 contos de réis contra 23.762 contos em 1829/30. Em ternos reais o aumento limitou-se a 4,2%. Entre 1850 e 1880, a receita subiu até 120.762 contos, ou seja, um aumento real de 118,9%. Isto correspondia a um crescimento anual de 2,5-2,6%. Como é totalmente impossível ter aumentado o produto real a estas taxas, conclui-se que a carga tributária elevou-se em termos relativos. Observe-se que o próprio turnover com o exterior – exportação mais importação – aumentou, no período, apenas 77,2% em termos reais. A principal fonte de receita era o imposto de importação. A partir da tarifa Alves Branco sua incidência cresceu, e como as importações se expandiram, a sua arrecadação melhorou. Ademais, o Governo aplicava taxas adicionais sobre as tarifas. Entre 1849/50 e 1879/80, a receita do imposto passou de 17.429 contos de réis para 64.756 contos, ou seja, um aumento real de 89,9%. Em 1849/50, o imposto de importação representava 61.8% da receita total; em 1879/80, 53,6%; no primeiro ano da República, eram ainda 48,3%, apesar do crescimento da base tributável dos outros impostos. Outro imposto era o de exportação, cuja 147 148 incidência flutuou entre 2 e 15% sobre vários produtos. Na primeira metade do século, seus resultados foram modestos pelos motivos conhecidos. Em 1829/30 não passava de 5,5% da receita, mas em 1849/50 esta participação já era de 13,5%. Em 1889 tinha caído, outra vez, para 9,3%. Outra categoria de impostos foi a designada sob o rótulo “imposto interior”, cuja arrecadação se encontrava no primeiro lugar no período de estagnação do comércio exterior: na receita total contribuiu com 33,5% em 1829/30, 17,4% em 1849/50 e 21,4% em 1889. Na realidade, tratava-se de vários impostos que incidiam sobre as atividades locais: direitos de 15% sobre a compra de embarcações estrangeiras, imposto sobre a mineração do ouro, impostos sobre lojas, sisa dos bens de raiz, impostos do selo, imposto sobre escravos e outros; a partir de 1867, um imposto de 3% sobre vencimentos públicos (já houve outro em 1843), imposto de 1,5% sobre dividendos distribuídos pelas sociedades anônimas, imposto de 3% sobre locações de imóveis – inovações que denotam a mudança das condições econômicas. Discussões em torno da criação do imposto territorial e do imposto de renda não levaram a nenhum resultado. A resistência dos contribuintes – latifundiários e homens de posse – foi maior. Por outro lado, para uma economia ainda incipiente, a carga tributária era bastante pesada: só a receita do Tesouro Nacional devia representar uns 15% da renda interna monetária, mas havia, também, os impostos regionais – provinciais e 148 149 municipais – muitas vezes invadindo, inclusive, a zona de competência do poder central. A transferência de recursos para o setor público era bastante forte, sem corresponder a uma aplicação economicamente adequada. b) Despesa. O seu crescimento, pelas razões expostas, resultou em déficits quase permanentes. Entre 1829/30 e 1849/50, enquanto a receita estagnava, a despesa subiu a 18.213 contos de réis para 28.950 contos, ou seja, 36,9% em termos reais. Continuou subindo e chegou a 150.134 contos em 1879/80 – aumento real de 165,0% sobre a despesa de 1849/50 – representando aproximadamente 20% da renda interna monetária. Quanto à composição da despesa, os dois princi pais destinos foram os Ministérios da Guerra e da Ma rinha de um lado, o Ministério da Fazenda (inclusive o serviço da dívida pública), do outro. Em 1849/50, por exemplo, os primeiros eram responsáveis por 40,6 % da despesa, o outro por 37,1%. Em 1867/68, em pleno es forço de guerra com o Paraguai, a despesa militar chegou a 52,7%, elevando o total da despesa a 165.985 contos; o Ministério da Fazenda entrava com 29,5%. Em 1879/80, os ministérios militares não exigiam mais de 16,1%, enquanto a despesa da Fazenda representava 41,2%. Com estes dois itens abrangendo entre 60 e 80%, acrescentando-se as despesas da pasta do Império (depois, do Interior), quase nada sobrava para despesas de caráter desenvolvimentista, como agricultura, indústria, obras públicas. A mentalidade do tempo 149 150 reflete-se na organização do orçamento. c) Déficit. O resultado conjugado do comportamento da receita e da despesa foi um déficit crônico: entre 1849/50 e 1886/87, apenas três exercícios apresentaram superávit. As causas podiam encontrar-se do lado da receita, quando, em decorrência da recessão mundial ou local, o comércio exterior se retraía, provocando a diminuição da receita dos impostos de exportação e, sobretudo, importação. Do lado da despesa, havia o ônus da dívida pública interna e externa, além de causas acidentais. Entre estas, a guerra do Paraguai quando o déficit (94.784 contos de réis em 1867/68) chegou a representar 133,1% da receita. Depois, o resultado melhorou, embora ainda déficitário. Outro aperto foi provocado pela seca do Ceará: o déficit de 1878/79 subiu novamente até 55,8% da receita. Face à insuficiência dos recursos normais, o Tesouro apelou para os empréstimos internos e externos, e para as emissões de papel-moeda. 9.8.2 Endividamento externo, balanço de pagamento e câmbio A dívida interna cresceu durante o período, e seu serviço constituiu um permanente ônus para o Governo. No fim do Império, ela montava a 506 mil contos de réis (entre títulos de dívida, empréstimos, depósitos nas 150 151 caixas econômicas etc.). Era uma importância subs tancial – talvez 50% ou mais, da renda interna do país – que representava uma pressão inflacionária em potencial. Mais grave era o problema da dívida externa que, além de efeitos inflacionários, periclitava o equilíbrio do balanço de pagamentos. O total dos 11 empréstimos contraídos durante a segunda metade do século XIX pelo Império somara, em valor nominal, £ 40.755.700. Destes, £ 13.796.400 tiveram, como objetivo, construções de ferrovias e outras obras públicas. O resto de £ 26.959.300 destinou-se à cobertura de déficits governamentais, pagamento de dívidas anteriores e seus juros. O endividamento passou de £ 6.182.550 em 1850 para £ 30.152.500 em 1890 – aumento de 387,7%. Em 1850, o endividamento representava 76,1% da exportação anual, em 1890, 114,3%. Os tipos de empréstimos foram, também, melhores do que no período anterior, variando entre 74 e 100%, de maneira que as importâncias efetivamente recebidas somaram £ 36,8 milhões, ou seja, em média, 90% sobre o valor nominal. Os juros sobre a dívida nominal oscilaram entre 4,5 e 5% a.a., o que correspondia a juros reais de 5-5,5%. Se considerarmos que os empréstimos de caráter financeiro não rendiam nada, uma vez que cobriam déficits de custeio, a parte realmente produtiva, de £ 13,8 milhões, devia cobrir os juros do total, ou seja, numa incidência de 13 a 15% a.a. O serviço da dívida pública externa, praticamente suspenso até 1850 quando as condições se nor151 152 malizaram, não deixou de constituir um ônus pesado sobre o balanço de pagamentos, sobretudo quando a balança comercial caía ou os capitais estrangeiros se retraíam. O desequilíbrio provocava a desvalorização cambial e, até o restabelecimento da situação, exigia novos empréstimos. Estes desequilíbrios devem ter acontecido durante as crises cíclicas dos países industrializados, compradores de produtos de expor tação brasileiros e investidores de capitais no Brasil. Entretanto, não se tem uma evidência empírica do mecanismo em seus detalhes. Pode-se observar que, entre 1850 e 1880, a importação anual aumentou pouco mais de 2 vezes, enquanto a renda interna cresceu quase 3,5 vezes. É lícito concluir que, apesar da expansão do café, havia um ponto de estrangulamento na capacidade de importar. É impossível reconstituir o balanço de pagamentos daquela época, porque faltam uma série de itens: despesas a título de serviços, entrada e saída de capitais, operações especulativas. Conhecemos a balança comercial, a entrada de empréstimos públicos e a despesa com a dívida pública externa. Por outro lado, constata-se uma deterioração secular da taxa de câmbio. A paridade oficial passou de 67 1/2 d. por mil -réis no início do século – ou 1.600 réis a oitava do ouro – para 43 1/2 d. em 1833 e 27 d. em 1846 – mas a taxa real flutuou muito mais. Uma teoria tradicional sustenta que a desvalorização cambial era resultado da queda de preços dos produtos primários durante as crises cíclicas (trans 152 153 ferência do ônus da crise para os exportadores de produtos primários) e, face a esta queda, a defesa dos rendimentos daqueles exportadores via deterioração do câmbio (transferência do ônus para a comunidade através do encarecimento dos produtos importados). Além do mais, quando do restabelecimento das condi ções normais, não se procedia à revalorização cambial. Não há, entretanto, evidência empírica a respeito desse mecanismo, pelo menos de uma forma generalizada. O fato ocorreu várias vezes, mas houve, também, queda de preços sem desvalorização e, ainda mais, revalorização cambial coincidindo com melhora de cotações. Mesmo na balança comercial não se constata coincidência entre queda de cotações e déficits. Constata-se que esta queda era compensada por um aumento de quantidades vendidas de forma que nem a receita do café, nem o valor total da exportação sofriam forçosamente pela deterioração dos preços. Com as informações truncadas que temos, não podemos explicar muito bem a flutuação do câmbio através do balanço de pagamentos. Eis uma posição global no período 1850/1880: 1850/51-59/60 1860/61-69/70 1870/71-79/80 (valores decenais acumulados em £ 1000) AmortizaBalança Emprésções e Balanço comercial timos juros – 11.237 + 4.097 – 6.486 – 13.662 + 17.160 + 8.300 – 11.015 + 14.445 + 34.777 + 7.963 – 11.386 + 31.354 153 154 No primeiro período, o saldo é nitidamente negativo, coincidindo com uma queda de 10,2% do valor externo o mil-réis (de 28,74 para 25,81 mil-réis). Entretanto, na década seguinte, apesar do saldo positivo, a queda do câmbio foi maior – 14,5% (chegando a 22,6). A entrada de capitais pode ter sido importante após 1850, em decorrência da abolição do tráfico. Na década 1860/70, a guerra do Paraguai exigiu despesas gover namentais que podem ter desequilibrado o mercado de câmbio. Independentemente disso, a taxa de câmbio podia ser apenas um efeito da alteração do nível interno de preços como reflexo de outras causas autônomas. 9.8.3 Inflação Todo o século XIX brasileiro foi inflacionário com apenas pequenas exceções. As variações por períodos foram as consignadas no Anexo VI. No período de 1826 a 1887, a alta de preços foi de 181,3% (1,7 ao ano). Inflação relativamente amena, mas que não deixou de provocar, a longo prazo, distorções no cálculo econômico e na distribuição da renda. As distorções foram mais acentuadas em momentos de maior alta de preços, como nos dias que sucederam à abolição do tráfico, ou durante a guerra do Paraguai. Quais foram as possíveis causas inflacionárias? (v. Gráfico 3) 154 155 a) Conforme a teoria mencionada, a inflação resultava de um duplo processo de transferência do ônus das crises do mundo ocidental, mas isto carece de confirmação empírica, pelo menos para ser aceita de forma exclusiva e radical. A inflação realmente consiste em transferir rendas reais de um grupo para outro: é lícito admitir que os cafeicultores fossem, muitas vezes, beneficiários do fenômeno, mas não constantemente beneficiários, através do mecanismo exposto. Observe se que, entre 1850 e 1880, face a uma alta de preços de 95,6% a taxa de câmbio não subiu mais de 30,1%. b) Há indicações estatísticas, mas sobretudo qualitativas, de que o setor agrícola, fornecedor de gêneros alimentícios, foi um foco perene de alta de preços a qual se alastrava em todo o sistema de preços. Sabemos as limitações do setor de subsistência e, também, os reveses que sofreu por causa da atração exercida pelo café. Talvez seja a explicação mais plausível para a tendência altista a longo prazo dos preços no Brasil. c) A elevação do preço do escravo, após a abolição do tráfico e antes da parcial substituição pela mão-de-obra assalariada, explica igualmente parte da forte inflação do período 1851/56 (42,9%, ou seja, 6,1% ao ano). d) É difícil não considerar, como causa autônoma, a expansão do meio circulante. (v. Anexo IV) Entre 1849/80, o papel-moeda emitido aumentou de 46.884 contos de réis para 215.678 contos – expansão de 360,0%. Uma parte deste aumento podia justificar -se 155 156 pelas necessidades das atividades econômicas em expansão – inclusive em decorrência da maior monetização do sistema (a abolição do tráfico e a entrada de imigrantes contribuíram neste sentido). Uma parte podia representar a adaptação do meio circulante aos novos níveis de preços, provocados seja pelo gargalo do setor externo, seja pelo da agricultura. Entretanto, estes fatores não podem explicar todo o crescimento do meio circulante. Dois elementos contribuíram de forma autônoma: os déficits governamentais e a demanda de crédito. Depois da liquidação do Banco do Brasil, a emissão de moeda coube ao Tesouro Nacional. Criaram se vários bancos comerciais que não tinham direito da emissão, mas que, de fato, colocavam em circulação “vales” pagáveis a curto prazo e com juros, que funcionavam como verdadeira moeda. Face à confusão reinante no setor monetário, fez se necessária a criação de um órgão emissor que foi o Banco do Brasil (1853), resultando da fusão do Banco Comercial do Rio de Janeiro com o Banco do Brasil de Mauá. Exercendo o monopólio de emissão, o novo banco procedeu a uma grande expansão monetária, enquanto persistiam os vales dos bancos particulares. O excesso de crédito, às vezes especulativo, ao qual se acrescentou a depressão nos países industrializados (provocando queda de receitas de exportação e saída de fundos) teve como efeito a crise de 1857. Nova regulamentação tornava-se necessária, esta veio, portanto, pela lei de 1860, que deu a autorização 156 157 de emissões ao Banco do Brasil e mais outros seis, sob a condição de retirarem os vales da circulação e garantirem a conversibilidade da moeda de papel. Dominava sempre, como em todo lugar naquela época, a idéia do padrão-ouro, inaplicável num país de poucas reservas metálicas como o Brasil.(6) Uma nova crise em 1864, de proporções maiores que a de 1857, provocou reações, consubstanciadas na lei de 1866, que passou o direito da emissão ao Tesouro Nacional. O regime perdurou nesta forma até o fim do Império. O quadro 9.6 oferece um panorama sintético da evolução monetária. Quando 9.6 Indicadores monetários Papel-moeda emitido (contos de réis) 1850/51 1856/57 1861/62 1870/71 1874/75 1881/82 1885/86 Tesouro Bancos Total 46.884 43.677 33.724 151.078 149.501 188.111 194.283 1.313 51.540 45.704 40.728 32.367 24.129 19.300 48.197 95.217 79.464 191.806 181.869 212.240 213.583 Déficit do Tesouro (contos de réis) (variação % no período) --+ 97,6 – 16,5 + 141,5 – 5,2 + 16,7 + 0,6 --+ 4.107 – 19.474 – 363.110 – 42.025 – 223.806 – 108.186 Taxa de câmbio (variação % no período) --+ 4,3 + 4,7 + 19,1 – 11,7 + 17,7 + 17,8 Índice de preços (variação % no período) --+ 41,2 + 1,4 + 25,8 – 0,4 + 9,9 – 4,7 As diferentes fases aparecem bastante nítidas. Até 1856/57 não parece o Tesouro o principal responsável pelas emissões. A taxa de câmbio ficou, também, calma. Foi no período em que, além das causas ligadas à abolição e ao café, a expansão de crédito, decorrente da lei de 157 158 1853, é sugerida como principal causa inflacionária. O período seguinte até 1861/62, apesar de ligeiramente déficitário na execução orçamentária, e do comportamento da taxa cambial quase igual ao período anterior, acusa uma inflação reduzida, devido a maior contenção monetária. A década seguinte é dominada pela Guerra do Paraguai. Os fortes déficits orçamentários exigem emissões maciças e a inflação acentua-se. A taxa de câmbio, causa ou efeito da conjuntura, deteriora-se de modo mais marcante. O qüinqüênio seguinte, de déficits mais amenos, de melhora da posição cambial e de redução do meio circulante registra, como não podia deixar de ser, ligeira queda dos preços. A nova crise de 1875 alertou para a necessidade de recompor a liquidez do sistema: o meio circulante subiu, mas a taxa de câmbio, deteriorada, atuou no mesmo sentido inflacionário. Os últimos anos do Impé rio foram de contenção monetária – o que se refletiu tanto na taxa cambial como na evolução dos preços. Entretanto, a liquidez do sistema deve ter sofrido: em 1886/87, o meio circulante era apenas 5,5% acima do nível de 1870/71, enquanto os preços haviam subido 2,4%. Isto representava uma expansão real de 3,0%, quando, no período, o produto real deve ter crescido algo em torno de 20% ou mais. Esta situação ia provocar reações por parte dos primeiros dirigentes da República. 9.9 Balanço do período A performance da economia brasileira na segunda 158 159 metade do século XIX foi bem diferente das medíocres realizações do início do século, se nos referimos ao nível de renda, à capacidade de capitalização e às mudanças estruturais. Este tríplice progresso foi ligado a três fatos básicos: - expansão da produção e exportação de café; - início da indústria; - eliminação paulatina da escravidão. Em termos de renda global, de acordo com estimativas evidentemente precárias, o aumento entre 1850 e 1900 foi de £ 27 milhões para £ 160 milhões – um crescimento de quase 500%, ou seja, 3,6% ao ano. Nos 50 anos anteriores, a renda crescera pouco mais de 200% ou 2,3% ao ano. Em termos per capita, a renda chegou, no fim do século a £ 8,9 contra £ 3,7 em meados do século. O seu aumento foi de 140% no período ou de 1,8% ao ano. Entre 1800 e 1850, a renda per capita cresceu apenas 37% (de £ 2,7 para £ 3,7), ou seja, a uma pobre taxa anual de 0,6%. A renda do setor autônomo cresceu mais que a exportação, mas de forma ainda insuficiente, tanto é que certos autores responsabilizaram esse seto r pela reduzida performance da época. 159 160 Ao mesmo tempo a renda tornava-se mais desligada da exportação, dependendo mais das atividades econômicas dirigidas ao consumo interno. Esta parcela deve ter chegado, no limiar do século XX, a uns 75% da renda total. (v. Anexo II e Gráfico 1) No que tange à composição do produto, a predominância da agricultura era ainda absoluta, mas a presença de um pequeno setor industrial, o crescimento das atividades bancárias, o desenvolvimento dos transportes, a urbanização constituem indícios de uma diversificação maior do produto, com um relativo recuo do setor primário. Outrossim, a distribuição da renda apresentava grandes desigualdades tanto vertical como horizontal mente. O café tinha criado a classe dos grandes latifundiários – os barões do café – bem acima dos an160 161 tigos latifundiários do Nordeste, mas também uma classe rural média de certa expressão. Havia, também, o setor comercializador: exportadores, comissários, inter mediários – de rendas bastante elevadas. A indústria não tinha, ainda, criado grandes fortunas, mas havia, no setor urbano, classes de rendas elevadas seja do comércio e dos bancos, seja da administração pública. A população escrava diminuiu até a sua extinção em 1888, mas existia a grande camada de camponeses de rendas muitíssimo baixas. Infelizmente, não possuímos infor mações estatísticas para quantificar o perfil de rendas. Na mesma situação encontramo-nos no que concerne às disparidades regionais de renda. De fato, o centro de gravidade econômica havia descido do Nordeste para o Centro-Sul desde o século XVIII. Se considerarmos que o setor exportador era o setor dinâmico que se refletia, através de um forte multiplicador (apesar de certos aspectos negativos), nos demais setores da economia, principalmente no caso do café, a localização geográfica das exportações repre senta um indicador da distribuição regional da renda. Em torno de 1880, a exportação de café, toda ela localizada praticamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, abrangia mais de 55% da exportação total. Acrescentando mais parcelas de açúcar, algodão, peles, couros e outros produtos, chegaremos a, pelo menos, 65% para a região Centro-Sul e Sul. Isto devia corresponder a 18-20% da renda total. Admitindo que os restantes 80% se distribuíram de forma igual na população, teríamos, para as províncias entre Minas 161 162 Gerais e Rio Grande do Sul (com população cerca de 50% da população do país) outros 40% da renda total (50% de 80%). Acrescentando os 20% da exportação, teríamos uma concentração de 60% da renda interna naquela região – percentagem subestimada, visto que o nível geral de renda daquela região era reconheci damente ao das demais regiões. Numa sociedade escravocrata, o estoque de escravos pode, também, constituir um indício da concentração da renda embora o escravo possa ser desperdiçado (como foi o caso depois da queda da mineração em Minas Gerais ou mesmo no Rio de Janeiro, quando o centro do café se deslocou para São Paulo). Com estas limitações, podemos ainda observar que, em 1872, 962 mil escravos, ou seja, 63,7% dos escravos existentes concentravam-se nas províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mais os escravos da Corte. O aumento da renda per capita verificou-se apesar da expansão demográfica, maior do que no período anterior. Na segunda metade do século XIX, a população cresceu 148,6%, ou seja, 1,8 ao ano, contra cerca de 119% (1,6% ao ano) durante a primeira metade. Acrescente-se que no início do período havia cerca de 1,5 milhões de escravos (20% do total da população) que não existiam mais no fim do período. Isto dava outras dimensões ao mercado, além do fator fundamental do aumento geral das rendas e da elevação dos hábitos de consumo. 162 163 A área economicamente ocupada expandiu-se 3 vezes durante o século, contra um crescimento de quase 5,5 vezes da população. Assim, a densidade demográfica na área ocupada aumentou de 10 para 18 habitantes por km 2 . Face à falta de renovação tecnológica no setor agrícola (salvo em algumas regiões e para certas culturas) o fato não pode ser considerado auspicioso. O Censo demográfico de 1872, primeiro a ser realizado, oferece certas informações quanto à alteração estrutural da economia. De uma população ativa de 5.758.364 (58% do total), 63,4% trabalhavam no setor primário, 15,5% no secundário e 21,1% no terciário. Pode-se duvidar da consistência das informações, mas o quadro não deixa de ser sugestivo. Uma importante restrição refere-se ao setor secundário em que foram englobadas várias atividades artesanais. Finalmente, a urbanização mostra progressos substanciais, indicando elevação das rendas, mudanças setoriais e transformações sociais em termos de grupos de maior influência. Por exemplo, a população urbana de São Paulo cresceu 156,6% entre 1860 e 1886. A proclamação da República coincidiu com um período de novas transformações, iniciado com a abolição da escravatura e a subseqüente entrada maciça de imigrantes, e completado com a preocupação maior pela expansão industrial, embora se firmassem as políticas de defesa do café. A transformação social e política acompanhou a mudança da economia. 163 164 NOTAS (1) v. Antônio Delfim Netto, 140. (2) v. Hélio Schlittler Silva, 170. (3) Para todos estes problemas, v. Emília Viotti da C osta, 113. (4) J. F. Normano, 45. (5) Nathaniel H. Leff, 93. (6) v. Celso Furtado, 50, pp 176 -182. Indicações de leitura: Antônio Delfim Netto, 140; Sérgio Buarque de Holanda, 217, tomo II-3; Hélio Schlitter Silva, 170; Emília Viotti da Costa, 113; Mircea Nuescu, 176. Nota 1 – As referências ao montante da renda interna baseiam-se em cálculos cujos detalhes se encontram em Mircea Buescu, 35. Nota 2 – A quantificação da inflação no século XIX é ainda muito precária. Adotamos os resultados do nosso tr abalho anterior (Mircea Muescu, 176). Vale a pena alertar sobre o fato de que muitos autores citam valores em moeda nacional e tiram conclusões quanto às variações reais sem considerarem a alt eração do valor da própria moeda. 164 165 REVENDO A POLÍTICA ECONÔMICA DO IMPÉRIO No tempo em que exercia o magistério e me dedicava ao estudo da História Econômica do Brasil, fiquei interessado numa reavaliação da política econômica do Império. Em face das inúmeras críticas sofridas por essa política – sem critério histórico, a meu ver – achei oportuno apresentar sua defesa com vistas à sua reabilitação, pelo menos parcial. Hoje em dia, quando se prepara uma escolha plebiscitária entre a Monarquia e a República, gostaria de sublinhar que meu discurso não representa uma opção política, mas apenas um empenho científico em busca da verdade histórica. Abordarei cinco facetas principais: o respaldo dogmático da política econômica, a política monetária, a política orçamentária, a política alfandegária e a política de endividamento externo. Partirei das críticas formuladas por historiadores e economistas, apresen tando em seguida os argumentos em que se poderia basear a defesa das políticas adotadas. De modo geral, esta defesa aponta para a falta de “historicidade” do ato de acusação – isto é, a condenação da referida política em nome de teorias econômicas surgidas muito mais tarde e por cujo desconhecimento não podem ser respon sabilizados os dirigentes da época. A avaliação “historicista” não pode deixar de levar em consideração os condicionamentos do momento, os quais, salvo 165 166 algumas exceções, determinavam faltamente a menta lidade dos policy-markers e a estrutura das instituições. Atente-se também para o fato de que em muitos casos esses condicionamentos vinham de velhos tempos e ultrapassavam as fronteiras do país. Pode-se condenar um ministro da Fazenda do Império por não ter tratado as crises de acordo com as teorias de Keynes? A condenação pode ser válida sob o ângulo puramente teórico, embora esta também seja questionável, haja vista a precariedade das teorias, mas ela aparece totalmente injusta em perspectiva histórica. Não obstante, veremos que muitos comentaristas caíram no pecado do “anti-historicismo”. E as críticas vêm, na sua maioria, de historiadores! Na mesma categoria inclui-se a crítica de que não foram adotadas políticas estritamente genuínas, como se cada país devesse arquitetar teorias próprias, sem aproveitar a experiência estrangeira. Assim, o grande economista francês Jean-Baptiste Say deveria ser condenado por ter recorrido às luzes dos ingleses Adam Smith e David Ricardo. Contudo, um historiador pátrio censura em termos contundentes a adoção pelo Brasil das teorias e políticas econômicas vigentes na Europa do século XIX. Diz ele, não poupando expressões insinuantes: “A classe de senhores de terras e de escravos, manipulando o aparelho do Estado, adotou as teorias econômicas vigorantes entre os seus associados europeus” (Werneck Sodré, 1964, p. 263). Mas, que teorias podiam adotar? Genuinamente brasileiras, depo is de 300 anos de colonialismo? Da América Latina? Das 166 167 tradições africanas? E o mesmo autor acrescenta: “Aplicavam aqueles princípios com uma confiança ao mesmo tempo interessada e ingênua” (ibidem, p. 264) – tipo de crítica ambivalente: interessada, logo consciente, ou ingênua, logo involuntária? Aliás, a refutação das censuras feitas às políticas econômicas do Império esbarra às vezes na dificuldade resultante da ambivalência das críticas: rejeitando um, parece aceitar-se implicitamente o seu contrário. Na realidade, a ambivalência é prova de má fé ou de criticismo à outrance. Por exemplo, enquanto o crítico citado acusa a adoção cega das teorias alienígenas, um outro, da mesma escola de pensamento, afirma enfaticamente que “o Império viveu de expedientes e ao sabor das circunstâncias do momento” (Prado Jr., 1963, p. 205). Esta última formulação, depois de expurgada do seu tom pejorativo, poderia referir-se, com propriedade, a um certo pragmatismo, que tinha sua razão de ser, como tentarei argumentar mais adiante. *** Quando os críticos se insurgem contra “as teorias econômicas vigorantes entre os seus associados europeus”, visam evidentemente, em primeiro lugar, o liberalismo econômico que conheceu o seu período de glória no século XIX, por cima das investidas que começou a sofrer desde o segundo quartel do século por parte do chamado socialismo romântico, da Escola Histórica e, mais tarde, do socialismo “científico” de 167 168 Marx e Engels. Não se trata de abordar aqui a controvérsia teórica em torno do liberalismo. Sob ângulo histórico é suficiente lembrar que ele dominou o pensamento econômico a partir de Adam Smith e Ricardo, passado por Say e Bastiat até Stuart Mill que declarava, com confiança, que a Economia Política, tendo alcançado todas as verdades essenciais, não podia esperar mais nenhum outro progresso. E não se esqueça que o opus magnum da economia liberal, os Princípios de Economia de Alfred Marshall, foi publicado em 1890: o paradigma do liberalismo econômico veio à luz um ano após a queda do Império. O que se podia esperar dos teóricos e dirigentes econômicos do Brasil entre 1822 e 1889? Os críticos dão a entender que teria sido imprescindível uma teoria específica para os países subdesenvolvidos, exigência essa que continua até nossos dias sem ser satisfeita. A realidade histórica é que, desde o tempo de D. João VI, a política econômica era inspirada pelas “idéias espalhadas pelos discípulos brasileiros de Adam Smith e Say” (Vitor Viana, apud Ferreira Lima, 1976, p. 77). O representante mais importante do grupo foi José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú, considerado “pai ideológico de Rui Barbosa e Vieira Souto” (ibidem), isto é, com influências ainda nos tempos da República. No caso do Brasil, o apego ao liberalismo econômico podia explicar-se pela sua identificação com o liberalismo político. Portanto com os ideais supremos de liberdade, independência e repúdio ao colonialismo. Um testemunho expressivo é representado pelo de168 169 poimento prestado pelo desembargador João Rodrigues de Brito, em 1807, em resposta a um questionário redigido pelo governador da Bahia, o Conde da Ponte. As reivindicações formuladas por Brito no sentido da remoção dos entraves impostos ao comércio contêm implicitamente um libelo contra o colonialismo de forma global. Essa implicância política aparece desde o início, com a abertura dos portos em 1808 – a inserção do Brasil no comércio internacional, pela qual o Brasil colônia recebia status independente de facto pela sua capacidade de comercializar fora da reserva colonial. A despeito desse aspecto, que me parece essencial para uma explicação correta do ponto de vista histórico, os críticos contemporâneos fazem inúmeras restrições ao liberalismo brasileiro da época por seus efeitos supostamente nocivos sobre a evolução da econo mia nacional: chegam a considerá-lo “sistema prejudicial e perigoso” (Ferreira Lima, 1970, p. 260). Referindo -se aos conceitos do liberalismo, escreve o mesmo autor: “Foi com esse instrumento ideológico em moda, mas impróprio para o nosso caso, que as elites administrativa e política tentaram resolver os problemas que se nos apresentavam na época.” (Ferreira Lima, 1976, p. 82). Outro comentarista, sem rejeitar em tese o liberalismo, acusa apenas a incompetência dos dirigentes econômicos” que “não souberam tirar partido da liberdade de comércio no século XIX” e, daí, “tiveram a evolução (do Brasil) retardada” (Nogueira, 1988, p. 335). 169 170 Tais afirmações constituem uma injustiça e uma inverdade histórica. Obviamente, todo o comportamento da sociedade, do governo e da classe dirigente, levou a marca do atraso – reflexo de três séculos de colonialismo, com seus conhecidos efeitos negativos. Mas foi precisamente graças à abertura propiciada pelo liberalismo econômico que o Brasil conseguiu um primeiro impulso, condição para futuros progressos. Dispondo apenas de mão-de-obra não qualificada, sobretudo servil, e recursos naturais, sobretudo tropicais, sem capitais e sem tecnologia, a abertura para o amplo mercado mundial representava uma oportunidade para aproveitar os citados fatores de produção disponíveis, via exportação de produtos primários, principalmente café. Não vamos entrar aqui na controvérsia a respeito da alegada deterioração secular dos termos de troca – a tese estruturalista que nem sempre encontrou uma confirmação empírica. Tampouco seria lícito exagerar os prejuízos ensejados pelas relações de dominação que amiúde existiram, porém pari passu com efeitos benéficos. É ponto pacífico, contudo, mesmo entre os detratores do modelo liberal, que o ciclo do café formou os alicerces da moderna economia do Brasil: foi ele que permitiu o aumento da receita da exportação e portanto da capacidade de importar, fortalecendo o balanço de pagamentos; foi o café que proporcionou em maior medida o crescimento da renda nacional e a expansão do emprego (sobretudo livre, a partir de 1850); foi em torno do café que se criou uma infra-estrutura de 170 171 comércio, transporte e crédito, bem como uma verdadeira classe empresarial. Então, como “não souberam tirar partido?” Os críticos lamentam o atraso do crescimento industrial e responsabilizam pelo fato a prioridade do café e o modelo aberto, mas parece-me uma visão simplista, pois a formação de um surto industrial dependia de muitos outros fatores. Houve, sem dúvida, um certo círculo vicioso, uma certa inércia, assim como a presença de importantes grupos sociais com interesses ligados ao café. Eventualmente o despertar industrialista podia acontecer mais cedo, mas de qualquer maneira não se podem minimizar os benefícios trazidos pelo café e portanto os méritos do liberalismo econômico adotado durante o Império. *** A política monetária foi um dos alvos preferidos dos críticos. O que se lhe censurou foi a adesão ao sistema do padrão-ouro que constituía o principal ingrediente do liberalismo econômico no século XIX. Mais uma vez incorre-se no pecado de uma interpretação histórica. Pois que outra técnica monetária se podia adotar quando o padrão-ouro dominava no mundo ocidental – ou seja, na expressão pejorativa citada, “entre os associados europeus dos senhores de terras e escravos?” Um conceituado economista pátrio, numa incursão na História Econômica, escreveu: “O político 171 172 brasileiro, com formação de economista, estava preso por uma série de preconceitos doutrinários em matéria monetária que eram as regras do padrão-ouro” (Furtado, 1961, p. 181). Uma investigação com espírito histórico deve contudo anotar que “o século XIX assistiu à extensão e ao apogeu do estalão-ouro” (Niveau, 1969, p. 256). E sobre o espírito reinante no fim do século escreveu outro historiador: “O sistema monetário universalmente adotado era o padrão-ouro” (Pommery, 1945, p. 19). Embora naquela altura não se acreditasse mais de forma absoluta no automatismo do mecanismo câmbio/preços/ouro, nenhum controle severo se exercia no mercado de câmbio, apenas intervenções discretas. Entretanto, segundo observadores mais atentos há evidências de que o padrão-ouro do final do século XIX não funcionava efetivamente. Houve quem sustentasse com suficiente razão que o padrão-ouro só funcionou realmente na Inglaterra graças à sua posição de liderança e às suas grandes disponibilidades de ouro. Mas o sistema do padrão-ouro manteve seu prestígio teórico e prático até em plano século XX, sendo proposto como solução liberal e eficiente pelo Cunliffe Report em 1918 e, mais tarde, na véspera do colapso da Grande Depressão, pelo MacMillan Report, em 1929. Parece historicamente gratuito imputar aos dirigentes econômicos do longínquo Brasil do século XIX não terem inventado uma solução original. Aí, também, aparecem as posições contraditórias dos críticos, isto é, censura-se a política monetária do Império sob um certo ângulo e ao mesmo tempo sob o 172 173 ângulo contrário. Por um lado, critica-se a submissão ao padrão-ouro, um sistema reprovável sob vários aspectos. Diz um historiador: “Surgiu imperiosamente, como dotada de miraculosos poderes, a doutrina econômica vigente no exterior, com os seus conceitos e princípios aqui rigorosamente adotados” (Werneck Sodré, 1964, p. 263). Por outro lado, um historiador da mesma formação ideológica refere-se a “o que há de precário e irregular nesta política monetária orientada pelo acaso e pelo expediente do momento” (Prado Jr., 1963, p. 205). Esses últimos qualificativos não combinam de modo algum com a idéia de que os princípios do padrão-ouro foram religiosamente aplicados. Na verdade, a segunda série de qualificativos fica mais perto da realidade, porém não necessariamente com aquela matiz pejorativa. Simplesmente os dirigentes econômicos foram guiados por um certo sadio pragmatismo que os fizera afastarem-se da doutrina pura do padrão-ouro, evitando assim as mazelas a ela ligadas. (Um dos expoentes mais brilhantes desse pragmatismo foi o grande ministro da Fazenda – em 1832, 1852/53 e 1868/70 – Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí). A oposição entre metalistas e papelistas, correspondendo à controvérsia inglesa entre currency school e banking school, com vitórias parciais entre os dois grupos de contendores, testemunhou o referido pragmatismo – o que rejeita a condenação proferida à aplicação “cega” do padrão-ouro. Os princípios deste sistema tinham na base a defesa da taxa de câmbio (a estabilidade cambial), a 173 174 manutenção da conversibilidade, o controle das emissões monetárias, a conseqüente estabilidade dos preços e o equilíbrio orçamentário. Nenhum destes requisitos foi cumprido, embora tenha persistido um certo fetichismo cambial, a obsessão de manter a taxa oficial estabelecido em 1846, de 27 pence por mil -réis. Como se pode verificar nas tabelas anexas, a taxa de câmbio se desvalorizou num total de 66,8% entre 1840 e 1885 (Tabela I), os preços aumentaram, não muito, mas continuamente (ibidem), a expansão monetária foi ininterrupta (Tabela II), a execução orçamentária foi cronicamente déficitária (Tabela III). Este último aspecto, objeto de críticas acerbas e duráveis, merecerá uma atenção à parte, mais adiante. Resumindo as considerações sobre a política monetária, vale citar a conclusão de uma análise competente e objetivo: “Foi acertada a orien tação do Governo brasileiro de adotar um padrão fiduciário durante as crises internacionais, assim como um sistema de taxa de câmbio relativamente flexíveis e uma política monetária mais liberal, com o propósito de limitar o efeito das contrações econômica s originárias do exterior sobre a moeda, renda e preços internos” (Peláez-Suzigan, 1976, p. 169). Tal conclusão torna muito questionável a referência de outro economista à “dificuldade que enfrentou o homem público brasileiro da época para captar a realidade econômica do país” (Furtado, 1961, p. 184). Ou, nas palavras de outro, a referência à “incompreensão de nossos problemas internos” 174 175 (Ferreira Lima, 1970, p. 259). De fato, a política eco nômica foi assaz realista. *** Embora os preceitos do padrão-ouro tenham sido criticados, uma das maiores investidas contra a orien tação econômica do Império refere-se justamente a uma prática contrária aos dogmas ortodoxos: a existência crônica de déficits orçamentários. É conhecido o slogan “o Império é o déficit”, cunhado pelos republicanos que não podiam imaginar que a República iria conhecer déficits orçamentários quase tão duradouros quanto os do Império (1823/1889 – 56 exercícios déficitários do total de 67 = 84%/ 1890/1990 – 70 exercícios déficitários do total de 101 = 70%). Sem dúvida, tais desequilíbrios são altamente indesejáveis, a não ser em hipóteses keynesianas, que não vinham ao caso. Mas as críticas foram veementes não apenas quanto à incapacidade dos dirigentes fazendários, mas também insinuando que a criação do déficit era procurada conscientemente como uma solução fácil. De fato, aqui também verifica -se a discrepância entre o discurso ortodoxo e a realidade da prática. Os pronunciamentos oficiais, a começar pelas Falas do Trono, apegavam-se aos princípios ortodoxos do equilíbrio orçamentário. Em 1848, por exemplo, o Imperador fala em criação de novos impostos “para suprir o défict das despesas ordinárias e indis pensáveis”; em 1861, apela para “equilíbrio da receita e 175 176 da despesa” – repetindo-se o mesmo objetivo nas Falas de 1862, 1866 e 1882. E os grandes dirigentes fazen dários pronunciaram-se repetidamente no mesmo sentido – José Maria da Silva Paranhos, José Antonio Saraiva e outros. Então, de onde veio a discordância entre o discurso e a realidade? A meu ver, das insuficiências culturais e institucionais de um país recém constituído após 300 anos de colonialismo. As limitações estruturais existiram do lado da despesa, da receita e da administração fazendária. Pode-se admitir que houve uma certa culpa em desprezar essas deficiências ou em não proceder mais ativamente à sua remoção. Mas, aí também, é válido procurar uma explicação nos círculos viciosos em que sempre se debate o subdesenvolvimento. Do lado das despesas é preciso citar primeiro os gastos provocados pelas convulsões da Independência – levantes em Pernambuco, Rio de Janeiro, a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, a Revolução Farroupilha – assim como pelas guerras (contra Oribe, Rosas, Aguirre, Solano Lopez), guerras de afirmação política ou eventualmente de exaltação nacional; a despesa decorrente de excesso do funcionalismo público ou da politização (a “empregomania” de Nabuco de Araújo); os gastos com a dívida pública interna e externa, para cobrir a insuficiência da receita; a despesa com a garantia de juros para investimentos em infra-estrutura, uma despesa, afinal de contas, desenvolvimentista. Limitações do lado da receita, pois, dado o baixo 176 177 nível da renda nacional e a exigüidade do mercado, a base tributável devia ficar no setor externo, mais precisamente no imposto sobre importações, estas também apertadas devido às dificuldades do balanço de pagamentos. Finalmente, limitações por causa das deficiências administrativas, por conta do baixo nível cultural, despreparo técnico, falta de quadros e tradição, bem como a praga, não tão limitada ao Império, da imoralidade administrativa. Vale acrescentar um recado, derivado da citada politização e imaturidade política, que foi a descontinuidade do comando: em 74 anos, 68 mudanças na direção da pasta da Fazenda. Podia haver incompetência ou mesmo inépcia, mas houve também importantes exceções, como por exemplo na preocupação de reduzir a captação de recursos pelo Estado sob pena de prejudicar as capacidades produtoras da sociedade. Advertiu Itaboraí (no Conselho de Estado, em 1867) que o aumento de impostos deve ser feito “sem ofensa ou míngua das fontes de produção nacional”. E Paranhos (ibidem, 1871) falou na inconveniência de “atrair para o Tesouro os capitais nacionais disponíveis, desviando-os dos canais da lavoura, do comércio e das diversas indústrias". São opiniões que seriam tranqüilamente subscritas pelos estadistas atuais. Mas, evidentemente, essa preocupação de não retirar demais recursos da sociedade implicava na redução das disponibili dades do governo. Daí, a necessidade de recorrer para fontes externas – de que tratarei a seguir. 177 178 *** O recurso ao endividamento externo foi alvo de críticas acerbas, talvez mais do que a adoção (teórica) do padrão-ouro. Aparentemente justificar-se-ia censurar o fato de que o endividamento externo tinha como objetivo cobrir o desequilíbrio orçamentário, ou seja, um expediente para compensar a inépcia administrativa. Refere-se um comentarista a “apelos ao crédito externo, não com o fito imediato de expandir as forças econômicas do País, mas apenas para cobrir os déficits” (Lemos, 1946, p. 4). Entretanto, o que foi argumentado sobre as origens estruturais do desequilíbrio orçamentário traz uma certa justificativa para esse tipo de financiamento do déficit. Por outro lado, a generalização está errada: considerando os empréstimos contratados durante o Segundo Reinado, 34% do seu montante foram destinados a investimentos em infra estrutura. Os críticos foram extremamente exigentes. Al guns deles falam em “um caminho que seria longo e melancólico, trazendo consideráveis prejuízos à economia nacional” (Ferreira Lima, 1970, p. 194). O mesmo refere-se à “bola de neve que nos precipitou no abismo” (ibidem, p. 197). É verdade que a política de endividamento apresenta perigos, sobretudo quando, mantendo-se as condições prevalecentes no seu início, se entra num processo cumulativo: “Em virtude desse círculo vicioso e pernicioso, o Brasil sempre viveu com sua economia e 178 179 suas finanças deprimidas diante de obrigações irrevogáveis para com o estrangeiro” (Bouças, 1955, p. 75). O encadeamento entre causas e efeitos era, entretanto, mais complexo e a referida “depressão” da economia não deve ser debitada exclusivamente ao endividamento externo. Esta transferência de culpa ocorreu também em épocas mais recentes. Naturalmente não faltaram insinuações referentes ao imperialismo e às relações de dominação: “O país viverá acorrentado aos seus credores, especialmente os banqueiros ingleses” (Pinto, 1965, p. 93). Ou então, com a obstinação de criticar. “Política de empréstimos no exterior para saldar contas comerciais déficitárias” (Werneck Sodré, 1964, p. 251), quando a partir de 1860 a balança comercial foi permanentemente superavitária, com a exceção de um único exercício. Talvez tenha havido erros ou mesmo culpas nos apelos repetidos para o crédito externo ou abusos em matéria de intermediação e comissões, mas afinal de contas o endividamento não foi exagerado: no final do Império a dívida externa não atingia mais de £ 30 milhões, correspondentes a pouco mais do que a receita anual de exportação (Tabela IV). Por outro lado, os prazos e os juros foram normais, do mercado. Quanto aos tipos, os deságios sobre o valor nominal do empréstimo, melhoraram paulatinamente até desaparecerem, testemunho da melhora da posição do País no mercado financeiro internacional. Em geral, os comentaristas hostis tendem a sugerir que o recurso ao crédito externo constituía um 179 180 comodismo, uma solução fácil para acobertar a incapacidade da administração fazendária. Pode ser, mas basicamente é uma insinuação gratuita, pelo menos em muitos dos casos concretos conhecidos. Por exemplo, em 1867 Zacarias Góes de Vasconcelos declarava que “os empréstimos externos são onerosos, os internos difíceis” (Conselho do Estado). Neste campo prevaleceu também uma posição pragmática, como se despreende de uma declaração de Saraiva: “O empréstimo é um recurso para os dias difíceis ou um meio de empreender melhoramentos de tal influência no desenvolvimento das indústrias, que dêem uma garantia eficaz aos compromissos do Estado” (ibidem, 1881). E Belisário: “Os empréstimos só se justificam por urgentes necessidades, ou compensação de mais vantagens, quando deles possa auferir a geração onerada com o encargo do pagamento” (ibidem, 1887). Diria eu que os dirigentes fazendários, corretamente, oneraram as futuras gerações com o preço a pagar pela infância e adolescência de um novo país. *** Como já disse, o problema do equilíbrio orçamentário estava ligado à principal fonte de receita, qual seja, pelas razões expostas, o imposto sobre importações. Assim, parece válida a afirmação de um analista de que “a principal característica da tarifa brasileira no século XIX foi o seu caráter fiscal” (Normano, 1975, p. 184). Entretanto, neste campo 180 181 também, as críticas vão mais longe, alegando que a política do liberalismo econômico, desprovido de qualquer idéia protecionista, prejudicou o eventual processo de industrialização. Diz um dos críticos mais ponderados: “Durante a maior parte da existência do Império, a política comercial baseava-se no livre-cambismo, o que tornava extremamente difícil o estabelecimento de indústrias no país, face à concorrência externa” (Baer, 1966, p. 14). É verdade que uma dose maior de protecionismo podia ajudar, porém, antes de mais nada, é preciso atentar para duas circunstâncias históricas: uma, a de que a adesão ao liberalismo correspondia à defesa do modelo aberto, a oportunidade de expansão aproveitando o mercado internacional; outra, a de que as condições globais da economia, dadas as condições históricas e culturais, não podiam proporcionar um rápido crescimento industrial. O que se podia proteger quando não havia indústrias, nem suficientes fatores de produção industrial – mão-de-obra qualificada, tecnologia, capitais, mercado, infra-estrutura? Dá-se o exemplo da política protecionista de Alexander Hamilton nos Estados Unidos (1816/1832), mas naquele momento os Estados Unidos, independentes já fazia meio-século, se encontravam num estágio muito mais avançado, tanto é que se admite (W.W. Rostow o período 1840/1860w) como fase do seu arranco. Mas os críticos radicais vão mais longe. “A tarifa de 1844 (a tarifa Alves Branco, que deu início à regulamentação alfandegária) era puramente fiscal” (Werneck Sodré, 1964, p. 255). O objetivo imediato era, 181 182 sem dúvida, fiscal, tratava-se de resolver o impasse orçamentário, mas não era “puramente” fiscal, pois na própria exposição de motivos a tarifa assumia o alvo de “proteger os capitais nacionais já empregados dentro do país em alguma indústria fabril e animar outros a procurarem igual destino”. Objetivo nitidamente prote cionista, mesmo se nem sempre vingou devido a preeminência teórica ou interessada do liberalismo. No fim do período, a tarifa João Alfredo (1889) decreto u o aumento da incidência “a fim de que não sofram com a concorrência iguais produtos de fábricas nacionais”. O protecionismo foi tímido e flutuante, mas firmou -se paulatinamente ao longo da legislação alfandegária do Império. Não entrarei em maiores detalhes, de vez que, num trabalho anterior aqui apresentado, tentei uma análise mais detalhada em termos quantitativos da política protecionista. Um apanhado sumário (Tabela V) demonstra não apenas o aumento da incidência do imposto de importação, mas também – e isso caracteriza a intenção protecionista – a discriminação das alíquotas, taxando mais os bens de consumo importados, eventualmente concorrentes dos produtos nacionais, e incidindo menos sobre as matérias-primas, bens intermediários e sobretudo bens de capital, favorecendo deste modo os investimentos industriais. Tal análise objetiva demonstra a injustiça da rejeição de plano da política econômica do Império e do seu respaldo liberal. Este realmente dominou, porém amenizado através de um pragmatismo que considero 182 183 salutar por evitar eventuais excessos nocivos do laissezfaire. Tabela I – Preços e taxa de câmbio 1840 1845 1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 Fonte: Ónody Preços Índice Var. % 100,0 ... 103,3 3,3 103,8 0,5 139,4 34,3 150,6 8,0 165,3 9,8 191,0 15,5 190,2 – 0,4 202,0 6,8 203,8 0,4 mês / £ 7,74 9,44 8,35 8,71 9,30 9,60 10,88 8,82 10,86 12,91 Câmbio Índice 100,0 122,0 107,8 112,5 120,2 124,0 140,6 114,0 140,3 166,8 Var. % ... 22,0 – 11,6 4,4 6,8 3,1 13,4 – 19,9 23,1 18,9 Tabela II – Expansão monetária 1840 1845 1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 Fonte: Papel-moeda emitido Índice Variação % 100,0 ... 127,2 27,2 119,7 – 5,9 172,8 44,4 210,7 76,0 275,8 30,9 484,3 75,6 452,1 – 6,5 534,9 18,3 528,2 – 1,3 Peláez-Suzigan Meios de pagamento Índice Variação % 100,0 ... 127,8 27,8 121,5 – 4,9 180,0 48,1 226,8 26,0 320,3 41,2 548,8 71,3 518,0 – 5,6 651,0 25,7 657,0 0,8 183 184 Tabela III – Execução orçamentária 1840 1845 1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 Receita Despesa (contos de réis) Saldo 15.948 24.805 28.200 36.985 43.807 56.996 94.847 106.490 120.762 124.156 24.969 25.635 28.950 38.740 52.606 83.346 141.594 125.855 150.134 158.496 – 9.021 – 830 – 750 – 1.755 – 8.799 – 26.350 – 46.747 – 19.365 – 29.372 – 34.340 Fonte: Ónody Tabela IV – Dívida externa e exportação (£ 1000) Dívida externa / Exportação Dívida externa Exportação 1840 5.580 5.384 1,04 1850 6.183 8.121 0,76 1860 7.655 13.241 0,58 1870 12.721 15.439 0,82 1880 16.554 21.249 0,78 1890 30.153 26.382 1,14 Fonte: Normano 184 185 Tabela V – Imposto de importação (incidência média %) Tarifa Total Classe I Classe II Classe III 1844 26,4 26,4 25,0 35,5 1857 24,5 18,2 10,0 30,8 1860 25,8 17,6 8,3 34,2 1869 33,4 16,8 6,7 34,9 1874 34,5 16,7 11,7 27,9 1879 47,5 15,0 10,0 28,4 1881 37,8 14,4 8,0 28,7 1887 41,8 21,4 12,6 45,4 Nota - Classe I – matéria-prima e bens intermediários - Classe II – bens de capital - Classe III – bens de consumo (Pesquisa do autor) BIBLIOGRAFIA BAER, WERNER. A industrialização e o Desenvolvimento Econômico do Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 1966. BOUÇAS, VALENTIM, Finanças do Brasil – Dívida Externa. Rio de Janeiro, Ministério da Fazenda, 1955. FERREIRA LIMA, HEITOR. História Político-Econômica e Industrial do Brasil. São Paulo, CEN, 1970. FERREIRA LIMA, HEITOR. História do Pensamento Econômico do Brasil. São Paulo, CEN, 1976. 185 186 FURTADO, CELSO. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961. LEMOS, CLAUDIONOR DE SOUZA. Dívida Externa. Rio de Janeiro, 1946. NIVEAU, M. História dos Fatos Econômicos Contemporâneos. São Paulo, DIFEL, 1968. NOGUEIRA, DENIO. Raízes de uma Nação. Rio de Janeiro, Forense Univ. 1988. NORMANO, J. F. Evolução Econômica do Brasil. São Paulo, CEN, 1975. ONODY, Oliver. A Inflação Brasileira 1820-1958. Rio de Janeiro, 1960. PELÁEZ, CARLOS MANUEL-SUZIGAN, WILSON. História Monetária do Brasil. Rio de Janeiro, IPEA, 1976. PINTO, FERREIRA. Capitais Estrangeiros e Dívida Externa do Brasil. 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E esta conclusão foi subscrita inclusive pelos detratores da política econômica dos governos imperiais, o que implicaria na pior das hipóteses que a pujança econômica do país foi tão forte que compensou os erros políticos. Senão, vejamos alguns testemunhos confiáveis: - Caio Prado Jr.: “(após 1850) o país entra bruscamente num período de franca prosperidade e larga ativação da vida econômica”. - Celso Furtado: “Considerada em conjunto, a economia brasileira parece haver alcançado uma taxa relativamente alta de crescimento na segunda metade do século XIX”. - Heitor Ferreira Lima: “O progresso realizado na economia brasileira na segunda metade do século 188 189 XIX...”. - Carlos Manuel Peláez: “O período 1861/1900 mostra alta taxa de crescimento do produto real”. Tudo isso poderia bastar para conferir ao Brasil do Segundo Reinado uma certidão de bom comportamento econômico, a despeito das conclusões contrárias sugeridas pela eventual inépcia dos policy makers brasileiros da época. Entretanto, ouve-se ainda opiniões esparsas menos favoráveis. Uma voz discordante é a de Nathaniel Leff que se referiu ao “fraco desempenho econômico do País no século XIX”. Esta afirmação poderia ter alcance limitado, mas Leff acrescenta: “O Brasil experimentou uma relativa estagnação em seu nível de renda per capita para a totalidade do país durante a maior parte do século XIX”. Tal declaração, desta vez não mais qualitativa, mas referindo-se a um conceito macroeconômico quantitativo, justificaria uma revisão do problema. Por outro lado, vários historiadores sustentaram, embora sem confirmação empírica, que o Brasil do século XIX não registrou alterações estruturais em sua economia. Heitor Ferreira Lima parece categórico: “A estrutura econômica não mudou”. E Virgílio Nova Pinto: “Nenhuma alteração de estruturas é vislumbrada ... ao contrário, uma cultura cafeeira afirmando -se, persiste a dependência agrícola” – asserção essa que para o bem da verdade precisaria ser mais cir cunstanciada. Um comentarista mais recente (Lorenzo 189 190 Fernandez) fala, com razão, em circunstâncias adversas, “estrutura física desfavorável” e condições externas que não estavam maduras”, para concluir que o país saiu “por caminhos tangenciais” quando “não deu voltas e retrocedeu”. O objetivo do presente trabalho é limitado: questionar à luz das informações objetivas, se possível quantitativas, as conclusões negativas que os historiadores ainda reservaram à economia imperial, em contradição com as afirmações genéricas inicialmente mencionadas a respeito dos progressos realizados na época. *** Comecemos com o problema do crescimento do produto global e per capita. Antes de mais nada, é preciso advertir sobre a precariedade de tal indagação a respeito de um período em que ainda não havia Contas Nacionais, de modo que o cálculo deve aproveitar indicações indiretas – quase simples hipóteses de trabalho. Numa tentativa experimentada uns 30 anos atrás (Buescu-Tapajós, 1967) parti dos valores constantes, em libras esterlinas, da exportação, aplicando um coefi ciente de exportação interpolado entre o máximo de 0,80 diretamente calculado para o ano de 1600 e o de 0,12 constante das Contas Nacionais de 1950, na evidente constatação da progressiva redução da participação das exportações na formação do Produto. O coeficiente 190 191 assim interpolado teria sido de 0,40 em 1850 e 0,30 em 1900, resultando que o aumento do Produto Global no período teria sido de 443%, ou seja, 3,4% ao ano (1,7% per capita). Conclusão um tanto exagerada devido aos valores altos demais do coeficiente de exportação, bem como da receita de exportação anormalmente elevada em 1900. O cálculo foi alterado ulteriormente (Buescu, 1979) adotando-se coeficientes de exportação mais realistas: 0,29 em 1850 e, terminando o período imperial, 0,22 em 1890. Os valores da exportação expressos em mil-réis foram devidamente deflacionados – sem dúvida, outra aproximação face à inseguranç a dos índices inflacionários. Assim procedendo resultou que o Produto Real teria crescido entre 1850 e 1890 129%, ou seja à razão de 2,1% ao ano; em termos per capita 0,4% ao ano. Esta conclusão coincide bastante com o cálculo de Raymond Goldsmith que utilizou as informações referentes ao volume dos meios de pagamento, aos valores do comércio exterior, dos salários e dos gastos governamentais, todos deflacionados (Goldsmith, 1986). A conclusão foi que, em preços constantes, o Produto Real teria crescido à razão de 2,0% ao ano – 0,3 per capita. Eu também usei os valores dos meios de pagamento deflacionado para calcular a renda entre 1920 e 1940, mas tive medo de me aventurar para épocas mais longínquas, devido ao caráter aleatório de dois parâmetros: o multiplicador dos meios de pagamento e a taxa inflacionária. 191 192 Alguns pesquisadores chegaram a conclusões algo diferentes, mas em geral para taxas mais elevadas de crescimento do produto per capita: Furtado, 1,5%; Peláez 2,6%. Outros apresentaram conclusões menos favoráveis: Leff, 0,1-0,8%; Haddad, 0,4%. De qualquer forma, computada a elevada taxa de expansão populacional (1,7% ao ano), a taxa de crescimento do Produto Global teria se fixado entre 1,8% e 4,3% ao ano, numa média de 2,8%, apenas um pouco acima dos resultados de Goldsmith e dos meus. Seriam esses números tão baixos para justificar a condenação da economia do Segundo Império? As conclusões pessimistas são muitas vezes tiradas da comparação com as taxas de crescimento obviamente altas dos atuais países desenvolvidos. Mas a informação histórica correta leva a uma visão diferente. A Inglaterra, entre 1822 e 1846, portanto já depois de seu precoce take off cresceu 1,8% anuais per capita e, segundo outros levantamentos, 1,7% entre 1806 e 1836 (e não se esqueça que o Brasil teve o seu take off mais de um século depois). Praticamente na mesma época a França cresceu a razão de 1,2% per capita. Entretanto os países do Terceiro Mundo acusaram nas últimas décadas do século XIX um crescimento per capita não mais do que 0,2% ao ano. Não computando a taxa de expansão demográfica, o crescimento do Produto Global dos países hoje desenvolvidos não foi no século XIX muito superior ao do Brasil: Inglaterra 2,9% (1806/1836); Estados Unidos 2,6% (1799/1849); França 1,9% (1803/1854). 192 193 *** No concernente a inalteração estrutural da economia durante o Segundo Reinado conhecemos o fato mais flagrante que desmente tal asserção. É impossível aceitá-la quando na época se concretizou, como todo o mundo sabe, a mais importante mudan ça estrutural no caminho da modernização: a abolição da escravatura. Uma mudança lenta, às vezes penosa, devido às resistências da tradição, da inércia e dos interesses de certas classes – mas todavia uma mudança cristalizada finalmente na Lei Aurea de 1888. Como se poderia negar a transformação estrutural quando em 1850 os escravos representavam cerca de 35% da população total e em 1887 essa participação tinha baixado para 5,4%? O fenômeno deveu-se à conhecida circunstância de que o crescimento vegetativo da população escrava foi sempre negativo, ao que se acrescentaram os efeitos da Lei do Ventre Livre de 1871 e da Lei Saraiva-Cotegipe da Liberdade dos Sexagenários de 1885. Em 1888 a parcela dos escravos estava reduzida a zero. Paralelamente, cresceu o número de imigrantes. No início da segunda metade do século XIX, a entrada de imigrantes se processou a um ritmo em torno de cem mil pessoas por década. No decênio anterior à Abolição, de 1880 a 1889, entraram 448 mil emigrantes. O crescimento da população livre entre estas últimas datas, cerca de 15%, se devia a imigração. A alteração 193 194 estrututal da população total e conseqüentemente da população economicamente ativa aparece de maneira nítida, desmentindo por números as alegações gratuitas. *** Passando do campo demográfico para o propriamente econômico, o problema básico é identificar a conformação estrutural do Produto Real, definindo a posição relativa do setor industrial. Obviamente faltam dados estatísticos sistemáticos, a não ser indiretamente, o que se pode deduzir dos censos demográficos de 1872 e 1900. Roberto Simonsen (1939) levantou informações esparsas e não obstante não desprovidas de interesse para o nosso objetivo: em 1850 o Brasil teria contado com pouco mais de 50 estabelecimentos industriais, entre salineiros, fábricas de tecidos (apenas duas), indústrias de alimentação, pequenas metalurgias e outros. Já em 1881 o número de fábricas de tecidos chegaria a 44, crescendo o número total de industrias no período de 1880/1890 que Simonsen rotulou como o primeiro surto industrial: entre 1880 e 1884 foram fundadas 150 indústrias e entre 1865 e 1889 mais 248. No fim do Império já existiam 636 estabelecimentos industriais, empregando 54,169 operários e energia de 65.000 HP. Tudo isso sugere indubitavelmente uma alteração estrutural, com uma participação crescente do setor industrial. Uma indicação semelhante resulta também do 194 195 censo industrial de 1907. Nele aparece que dos 326 estabelecimentos industriais existentes no Estado de São Paulo apenas 15 (com 6,3% do capital social total) tinham sido criados antes de 1880, o que confirma um crescimento no fim da segunda metade do século XIX. Num exercício estatístico (Buescu, 1985) tentei quantificar a estrutura do Produto Real do Brasil em 1900, incluindo, devido a limitação da informação estatística, o período do Encilhamento que obviamente não podia ser o único responsável pelo progresso registrado. O exercício partiu da distribuição setorial do Produto em 1949: setor primário, 24,5%; secundário, 26,5% e terciário, 49,0% (conforme as Contas Nacional oficialmente calculadas). Aplicando regressivamente as taxas setoriais de crescimento entre 1900 e 1947 segundo as estimativas de Cláudio Haddad (1974), chega-se para o ano de 1900 a uma distribuição setorial de 45,1% - 13,3% - 41,6%, uma estrutura ainda subdesenvolvida, sem dúvida, porém já registrando a existência de um não desprezível setor industrial ( essas percentagens setoriais não estão muito longe das calculadas por Goldsmith: 49,2% - 14,9% - 35,9%). Confrontando apenas os setores primário e secundário a proporção seria de aproximadamente 77%: 23% - resultado bastante coerente com o de Vilella – Suzigan (1973) referente ao ano de 1907: 79%: 21%. O perfil encontrado parece também coerente com a situação mais recente de países subdesenvolvidos no período do pós-guerra, conforme Simon Kuznets, em: Aspectos Quantitativos do Desenvolvimento Econômico 195 196 (1970). De qualquer modo, a existência de um pequeno setor industrial confirma a mudança estrutural processada a despeito do domínio avassalador da exportação sustentada pelo café. Tal situação poderia explicar-se por simples evolução orgânica, mas corresponde a uma modificação de mentalidade e comportamento dos empresários e dos policy makers. Como se sabe, a mudança foi reflexo dialético do próprio sucesso do surto cafeeiro que resultou não apenas em aumento de emprego e da renda, como também na modernização estrutural da economia: sistema ferroviário, rede bancária e comercial, espírito empresarial. *** Seria válido lembrar também certas modificações do perfil setorial do produto. Uma refere-se à estrutura dos transportes. Inevitavelmente aparece a presença das ferrovias em decorrência da inovação tecnológica surgida no início do século XIX. O Brasil entrou atrasado nesta corrida: em 1854 não havia mais de 50 km de vias férreas. Mas em 1894 já eram 11.260 km, ainda bem atrás dos países ocidentais, sobretudo se levar em conta o imenso território do País, porém não deixou de representar um passo inicial digno de regi stro. Acrescenta-se também, como mudança quase inevitável, a modificação do sistema de crédito com a criação, embora ainda modesta, de uma rede bancária 196 197 nacional. No início do Segundo Reinado não existiam mais que 3 bancos comerciais, com depósitos num montante de 10 mil contos de réis. A sua dimensão chegou no final do século a 35 estabelecimentos bancários com depósitos da ordem de 200 mil contos de réis. *** Sob um aspecto importante, entretanto, justificase a asserção da não alteração estrutural: n o que tange às relações econômicas internacionais, o Brasil perma neceu durante a segunda metade do século XIX país exportador de produtos primários, concentrados no café. A exportação continuou sendo o setor dinâmico: entre 1850 e 1890 a sua receita aumentou 225%, de 8.821 mil libras esterlinas anuais para 26.382 mil; em termos per capita subiu de 1,12 para 1,84 libras esterlinas. A exportação continuou concentrada praticamente em 6 produtos primários (café, algodão, couros, fumo, borracha e açúcar), os quais eram responsáveis por 86,3% da receita total em 1841/50 subindo para 89,5% em 1881/90. A parcela do café elevou-se de 41,3% na primeira década, para 61,7% na última. Não obstante, verifica-se também neste campo uma modificação estrutural: a exportação, e daí todo o comércio exterior passou a representar uma parcela decrescente na formação do Produto. Em exercícios anteriores, começados uns 30 anos atrás, procedi a uma avaliação rudimentar desta parcela que, como já disse, 197 198 sofreu uma redução secular, chegando a 29% em 1850 e 22% no fim do Império. Tudo isso, muito aproximado. Numa pesquisa mais recente, Raymond Goldsmith calculou coeficientes ainda menores para o comércio exterior total: 0,31 em 1850 e 0,27 em 1889 – o que daria para exportação 0,151 em 1850 e 0,146 em 1889, coeficientes que parecem um tanto subestimados. Mesmo assim, verifica-se uma pequena alteração estrutural com a diminuição da parcela da exportação no PIB. Houve também outra alteração não desprovida de significado: a da composição da pauta de importação. Sem dúvida a conformação global permaneceu a mesma, a de um país anterior à industrialização: grande participação dos produtos manufaturados, reduzidas importações de matérias-primas industriais e quase inexistentes de máquinas e instalações. A despeito disso, as estatísticas mostram ligeiras modificações que sugerem uma certa transformação da economia. Constata-se um pequeno aumento da participação relativa de produtos ligados à expansão industrial. As compras de ferragens, carvão de p edra, ferro e aço, máquinas e acessórios subiu entre 1839/40 e 1870/75 de 5,4% para 14,0% do valor total da pauta. Em compensação as compras de manufaturados têxteis, algodão, lã, linho diminuíram de 44,5% para 40,8%; em 1902/1904 elas já tinham caído para 16,0% do total. *** 198 199 Os progressos realizados durante o Segundo Reinado, embora relativamente modestos, não deixam de assinalar uma ascensão para patamares superiores de desenvolvimento. Desprezá-la seria negar a realidade da evolução histórica, admitir um hiato dentro do processo normal de crescimento e transformação. É verdade que sob certos aspectos as mudanças estruturais foram quase nulas, assim, por exemplo, quanto ao perfil agrário, onde os latifúndios ociosos e os minifúndios ineficientes permaneceram, senão aumentaram; ou quanto aos desequilíbrios regionais de renda, de que já falamos aqui; ou quanto às grandes disparidades entre um grupo limitado de pessoas de renda elevada e a grande massa vivendo em estado de pobreza. A persistência de tais mazelas poderia ser imputada, entretanto, à própria República, durante longos anos e às vezes até o atual momento. De modo que parece excessivo o julgamento reservado ao Segundo Reinado que, afinal de contas, se estendeu num intervalo iniciado apenas 48 anos após a liberação dos vínculos coloniais, que marcaram durante 322 anos a história do Brasil. BIBLIOGRAFIA BUESCU, MIRCEA. (1979) – Brasil: Disparidades de Renda no Passado – Notas sobre a industrialização brasileira. Anais SBPH, 1985. 199 200 BUESCU, MIRCEA – TAPAJÓS, VICENTE. – História do Desenvolvimento Econômico do Brasil. 1967. FERREIRA LIMA, HEITOR. História Político-Econômica e Industrial do Brasil. 1970. FURTADO, CELSO. Formação Econômica do Brasil. 1959. GOLDSMITH, RAYMOND W. Brasil 1850-1954 – Desenvolvimento Financeiro sob um Século de Inflação. 1986. HADDAD, CLÁUDIO. Growth of Brazilian Real Output 1900/1947. 1974. LEFF, NATHANIEL H. Subdesenvolvimento e Desenvolvimento no Brasil. 1991. LORENZO-FERNANDEZ, Brasileira. 1976. O. S. Evolução Econômica PELÁEZ, CARLOS MANUEL. História Econômica do Brasil. 1979. PINTO, VIRGÍLIO NOYA. Balanço das transformações econômicas no século XIX (Brasil em Perspectiva). 1968. PRADO JR., CAIO. História Econômica do Brasil. 1963. SIMONSEN, ROBERTO C. Evolução Industrial do Brasil. 1939. 200 201 VILLELA, ANÍBAL VILLANOVA; SUZIGAN, WILSON. Política do Governo e Crescimento Econômico do Brasil 1889/1945. 1973. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 43(502): 13-20, Janeiro 1997). 201 202 SÉCULO XX 202 203 APRESENTAÇÃO Antonio Paim Na História do desenvolvimento do Brasil (1ª ed., 1967), Mircea Buescu afirma que “a divisão em ciclos não representa apenas instrumento metodológico. Corresponde a uma realidade profunda do processo econômico nas condições de economia incipiente, colonial e mercantilista.” Detém-se no conceito de ciclo e enfatiza a circunstância de que determinado produto atrai “os fatores de produção – capitais e mão-de-obra – e se refletem em todos os outros principais setores da comunidade.” Decorre de que “colonialismo e mercantilismo impunham organização econômica dirigida para a exportação e, especificamente, para a exportação mais rentável.” E, ainda: “a importância do setor externo persistiu mesmo após a independência e o abandono da política mercantilista.” (obra citada; 2ª ed., págs. 21-23) No tocante à indústria, logo adiante, afirma: “Fala-se, também, num sub-ciclo da indústria, mas a terminologia não se justifica, uma vez que o período da industrialização, cujas datas marcantes se situam na Primeira Guerra Mundial, na grande crise de 1929 e na Segunda Guerra Mundial, representa justamente o fortalecimento de economia autônoma, reduzindo a 203 204 dependência em relação ao setor externo (essa dependência persiste sobretudo na medida das necessidades de importações para industrialização, em ma térias-primas, combustíveis, equipamentos e técnicas).” Deixa claro que introduz nova dinâmica no processo. Como o coroamento de nossa Revolução Industrial iria verificar-se nos anos subseqüentes, seus aspectos mais destacados seriam objeto de estudos autônomos, o que se reflete na seleção subseqüente. 204 205 TEXTOS DE MIRCEA BUESCU BRASIL: PROBLEMAS ECONÔMICOS E EXPERIÊNCIA HISTÓRICA Capítulo VIII – Processo da Industrialização A experiência histórica do Brasil em matéria de industrialização contém importantes lições a respeito da complexidade dos fatores positivos ou negativos que podem condicioná-la. É verdade que o processo teve, na base, uma situação sui generis, duplamente desvantajosa: primeiro – e o mais importante – o status colonial; segundo, o fato de que a própria Metrópole não tinha potencial econômico de grande calibre para poder transmitir tecnologia e mão-de-bra especializada, a não ser nos setores ligados ao modelo exportador mer cantilista-colonialista. Entretanto, mesmo com uma Metrópole diferentemente estruturada, o pacto colonial teria impedido o aproveitamento das eventuais capa cidades metropolitanas pela Colônia. Primórdios do setor secundário Apesar da utilização, por certos autores, do termo “indústria” para várias atividades econômicas até anteriores ao Descobrimento(1), constitui terminologia mais adequada a que reserva a qualificação de 205 206 “indústria” à atividade secundária que produz bens, inexistentes na natureza, através da utilização da máquina (engenho que integra no processo de produção fontes energéticas mais poderosas). Neste sentido não se pode falar em indústria antes do fim do século XVIII, na Inglaterra, quando justamente é identificado o início da Revolução Industrial.(2) Como sempre, as separações conceituais não são rigorosas, mas é lícito reservar o termo “indústria” quando se trata de uso mais intensivo da máquina. Com algumas exceções, não desprovidas de importância, o setor secundário limitou-se, em geral, ao artesanato, no Brasil colonial. Há havia as tradições índicas, embora rudimentares, em matéria de têxteis, cerâmica, armas, canoas e utensílios comuns. Estas ocupações continuaram entre os colonos, dentro das limitações do pacto colonial e da tendência das classes de nível social mais elevado de abastecerem -se na Metrópole ou, de forma geral, na Europa. Isso aplicava se não apenas aos artigos de luxo – vestido, jóias, tapetes – mas até aos utensílios, instrumentos de produção, móveis e alimentos manufaturados (azeite, vinho). O artesanato local situado na zona urbana ou perto das grandes propriedades agrícolas fornecia alimentos, tecidos, artigos de couro e de madeira, além das obras de construção civil. Sobretudo a partir do ciclo do ouro, deve-se acrescentar a ourivesaria, ela, também, cerceada, em certo momento, pelo pacto colonial. Mais grave foi o cerceamento do artesanato 206 207 têxtil pelo Alvará de 1785 que proibiu o fabrico local de tecidos, exceto os panos grossos para escravos. De qualquer forma, não há elementos para avaliar, em termos quantitativos, a importância do artesanato da época.(3) Como já disse, houve casos em que o setor secundário assumiu feições de uma indústria. Um deles foi a própria produção de açúcar, que exigia grandes instalações, embora usando, ainda, fontes primitivas de energia – escravos, bois e, quando muito, força hidráulica. Outro caso igualmente ligado ao modelo de exportação colonialista foi o da construção naval, com vistas às necessidades dos transportes transoceânicos, não apenas para a ligação Portugal-Brasil, mas para todo o tráfico marítimo da Metrópole.(4) Quanto às tentativas de organizar fundições, foram esparsas e temporárias, não conseguindo ser relevantes no cenário da época.(5) De fato, em decorrência do modelo mercantilistacolonialista, faltavam os elementos necessários para a constituição de um setor secundário poderoso.(6) Contribuíram para isso, dentro de um verdadeiro círculo vicioso: as proibições do pacto colonial, a redução progressiva da renda nacional, a limitação do mercado (em termos de demanda e meios de transportes), a falta de capitais, o atraso tecnológico, a ausência de mão -deobra qualificada, a omissão do Governo. No momento da Independência, o Brasil não tinha um setor secundário razoavelmente evoluído para constituir-se em alicerce da futura indústria. Tudo isso 207 208 representou um elemento atrasador que devia ser penosamente removido. A lição de ordem geral é que, sendo o desenvolvimento econômico um processo cumulativo de longa duração, qualquer fator perturbador de um certo porte marcará sua presença na evolução futura. Início da indústria Os fatos negativos acima enumerados prevaleceram, também, durante os primeiros anos da Independência, só que naquela altura as predisposições e possibilidades eram diferentes, apesar do enorme peso representado pela herança colonial. Foram notáveis as iniciativas de D. João VI, a começar pela revogação, já em 1808, do malfadado alvará de 1785: vantagens e auxílios à construção naval, à fabricação de fios e tecidos, à importação de matériasprimas para as manufaturas nacionais, às invenções tecnológicas, etc., até a tentativa de criar uma siderurgia,(7) que fracassou porque continuavam, em peso, os fatores negativos acima enumerados.(8) O mesmo deve ser levado em consideração quando se analisa o tratado comercial de 1810, com a Inglaterra – que será herdado pelo Brasil independente. Foi, sem dúvida, um tratado leonino que caracterizou o poder de dominação da Inglaterra, não apenas sobre o Brasil, mas, progressivamente, sobre todo o sistema comercial mundial. 208 209 É verdade, também, que a taxa alfandegária de 15% sobre as importações de mercadorias inglesas (estendida, de 1822 a 1828, a todos os parceiros comer ciais do Brasil) não podia representar verdadeira proteção à indústria nacional existente ou por criar, mas seria irrealista culpar o regime alfandegário – e somente ele – pelo atraso da industrialização brasileira. O regime alfandegário de 1810 teve efeito altamente negativo sobre as finanças públicas, cuj a principal fonte de receita era o imposto sobre importação. Com uma base tributável reduzida, pois o valor da importação só começou a crescer após 1840, e com uma incidência limitada a 15%, a receita era muito modesta. Isso explica, em grande parte, as di ficuldades enfrentadas pelo Tesouro Nacional. Dos 27 exercícios financeiros entre a Independência e meados do século apenas 7 foram superávitários. De qualquer forma, não se deve esquecer que o pensamento liberal – a teoria do livre-cambismo – devia ser questionado apenas a partir do segundo quartel do século XIX. Por outro lado, a vocação exportadora do Brasil, materializada, com sucesso crescente, no café, devia refletir-se em maior simpatia por um mercado internacional livre de barreiras, que não obstruí sse as exportações. Não e de admirar, nessas condições, que Governo e empresários convergissem num sentido pouco favorável à indústria nacional e ao protecionismo. Não obstante, houve, no período, já na primeira metade do século XIX, uma lenta – muito lenta – expansão das indústrias de bens de consumo básico: 209 210 alimentação e têxteis, mas também serralharias, es tamparias, fundições, etc. De fato, uma faixa intermediária entre artesanato e pequena indústria.(9) Isso nos leva, desde já, a admitir que o Brasil não conheceu uma verdadeira “revolução industrial”, isto é, uma passagem brusca e intensiva para a indústria, mas, sim, uma evolução lenta, como aliás, se admite, também, para outros países, como, por exemplo, a França.(10) A atividade pioneira do futuro Visconde de Mauá, em torno dos anos 1850-1870, era, talvez, prematura dentro de um ambiente ainda despreparado para um verdadeiro surto industrial – daí possivelmente o seu fracasso final.(11) Mas o período não deixou de ser um marco na evolução, com marchas e contra-marchas, da indústria nacional. É importante atentar para o trabalho preparatório desenvolvido pelo café. O processo de causação circular por ele proporcionado tinha caráter introvertido, isto é, beneficiava o próprio setor, mas, com o tempo, es ses benefícios começaram a preparar o terreno propício para mudanças: elevação da renda nacional, aparecimento de um espírito empresarial, ampliação do mercado, criação de infra-estrutura comercial, de transportes(12) e de crédito e – talvez mais do que tudo – a introdução de imigrantes como mão-de-obra assalariada e futuros empresários (v. capítulos IV e VI, supra). Na medida em que o ciclo do café começou a perder sua força, os capitalistas passaram a procurar na indústria novas oportunidades de investimento, em condições mais adequadas, já existentes.(13) 210 211 Paralelamente, processou-se uma mudança de mentalidades, em primeiro lugar no sentido protecionista. Apesar de interpretações errôneas, já em 1844 a tarifa Alves Branco foi razoavelmente (e, também, explicitamente) protecionista e, a despeito de ondas de liberalismo, o protecionismo acentuou-se ao longo da evolução da política alfandegária do século XIX,(14) ao lado de outros incentivos industriais.(15) No fim do século, o pensamento industrialista firmou-se, muitas vezes acompanhado do espírito nacionalista.(16) Como manifestações do empresariado industrial, cite-se a criação da Associação Industrial em 1881 e do Centro Industrial do Brasil, em 1902. Não ficaria completo este panorama complexo dos condicionamentos do crescimento da indústria se não acrescentássemos o papel dos capitais estrangeiros e do Governo (em grande parte, ainda na base de empréstimos externos) nos investimentos de infraestrutura, sobretudo de transportes ferroviários. Contudo, era impossível esperar uma atuação mais eficiente do setor público quando ele se debatia no meio de enormes dificuldades financeiras (v. capítulos V. supra, e IX, infra). O crescimento da indústria foi, ainda, modesto, conforme nos ensinam os poucos dados estatísticos disponíveis,(17) mas os progressos foram inegáveis em termos de mudança da orientação da economia. Os surtos industriais 211 212 É bastante enraizada a idéia de que o primeiro surto industrial se verificou na primeira década da República – no período de inflação acelerada rotulado como “Encilhamento”.(18) Implicitamente, seria um argumento de que a inflação ajuda o desenvolvimento econômico.(19) Não há dúvida de que a lei de 1888 (implementada em 1890) que estabeleceu normas mais liberais no direito de emissão de moeda pelos bancos veio não apenas oferecer maiores recursos aos cultivadores gravemente atingidos pela abolição da escravidão, mas também conferir maior liquidez ao sistema, ressentido pela política contencionista dos últimos decênios do Império. Isso podia ajudar a expansão das atividades econômicas, inclusive in dustriais, dentro das novas mentalidades, exaltadas pelo novo status político do País. Sabe-se, entretanto, que a euforia e a liberdade descontrolada resultaram principalmente num surto especulativo: as operações na Bolsa de Valores cresceram mais do que as indústrias. Se houve um certo crescimento industrial, não se dispõe de nenhuma evidência empírica de que foi devido à inflação, quando ele pode ser melhor explicado pelos condici onamentos já mencionados. Ademais, de acordo com as limitadas informações referentes aos investimentos industriais (capacidade energética instalada, consumo aparente de aço e cimento, importações de bens de capital), o período seguinte à política saneadora de Joaquim Murtinho, de 212 213 1903 até a véspera da Primeira Guerra Mundial (o chamado Reerguimento Econômico), um período de estabilidade monetária e financeira, com uma inflação mínima, sobretudo na sua parte inicial, apresentou resultados muito mais favoráveis.(20) Como se explicaria o sucesso? Não apenas pelo ambiente político, social e psicológico – paz, estabilidade, prestígio político, confiança nacional, euforia – nem apenas pelo ambiente ideológico – industrialismo, nacionalismo – mas também pela conjugação dos esforços do Governo e dos empresários (incluindo os capitalistas estrangeiros). O saneamento da moeda e das finanças fortaleceu a posição internacional do País atraindo investimentos e empréstimos, estes, parcialmente para o Governo que, não precisando mais cobrir déficits orçamentários, os utilizou em investimentos de infra-estrutura.(21) As imigrações forneceram mão-de-obra mais especializada, alguns capitais, tecnologia, espírito empresarial. O bom comportamento do setor externo (com a ajuda da borracha e do café, sustentado pela primeira operação de valorização) manteve um alto grau de capacidade de importar. Esse relacionamento do progresso econômico (ou, particularmente, industrial) com o setor externo leva à discussão da teoria tradicional dos “choques externos”, segundo a qual os surtos industriais do Brasil foram provocados de fora, por choques (a Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial) que afastaram a concorrência estrangeira, por 213 214 um lado, e privaram o País dos fornecimentos estrangeiros, do outro (ou, num outro enfoque, tornaram os preços de importação relativamente mais caros). Isso teria induzido os empresários a eliminar o estrangulamento através da expansão da indústria nacional.(22) Por trás dessa demonstração sente-se implicitamente a idéia de que as classes ligadas ao setor exportador não teriam permitido a industrialização, a não ser sob o impacto do “choque externo”. Diga-se de passagem que é uma injustiça, uma vez que o pensamento industrialista, protecionista e nacionalista apareceu e cresceu antes da época dos choques externos. A tese tradicional dos choques externos foi, aliás, fortemente questionada pelas teorias “revisionistas”.(23) Se entendermos por progresso industrial o aumento da capacidade de produção, através do investimento, é difícil admitir que isso ocorreu num período de colapso do comércio internacional quando o País não tinha condições de importar fatores indis pensáveis – equipamentos e tecnologia – que, por definição, ele não era capaz de produzir. Podia haver, apenas, oportunidades melhores de venda, pelas indústrias já existentes, inclusive para mercados externos (América Latina, África do Sul), na medida em que o “choque” eliminava a concorrência dos países industrializados, mas não os fechava, por razões geográficas, à indústria brasileira – o que aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial e, ainda mais, a Segunda. 214 215 Na medida em que a indústria nacional teve novas oportunidades de venda nos mercados da América Latina e da África do Sul, e atendeu a essa demanda através da utilização intensiva da capacidade instalada, ela efetivou um verdadeiro “desinvestimento”, isto é, uma depreciação mais acelerada dos equipamentos.(24) Os lucros assim conseguidos podiam (mas não obrigatoriamente) servir para novos investimentos, mas só depois do choque, uma vez normalizada a situação do mercado internacional – o que ocorreu sobretudo após a última guerra. O choque pôde constituir uma adver tência, provocou uma mudança de mentalidade cujos efeitos se materializariam após a normalização do mercado internacional. Portanto, os choques podem ter contribuído para despertar a consciência desenvol vimentista, para convencer da necessidade de um esforço maior no sentido de tornar o País menos dependente do exterior – o que caracterizou, em todo o Mundo, o período “autarcista” entre a Grande Depressão e a última guerra. Mas a realização se efetivou nos períodos de relativa normalidade. As estatísticas são de claridade meridiana (v. quadro no fim do capítulo). Os indicadores de investimentos industriais apresentam níveis mais elevados durante os períodos entre os choques, e não durante os choques. A própria produção industrial registra taxas de crescimento mais altas nas épocas de normalidade (durante a Depressão a taxa chegou a ser negativa) e as taxas de crescimento do produto real apresentam as mesmas flutuações (v. quadro no fim do capítulo II, 215 216 supra). Vale observar, entretanto, que, de modo sistemático, o produto industrial acusou taxas de expansão maiores do que o produto total – o que caracteriza o dinamismo do setor e, conseqüentemente, a transformação estrutural da economia. O crescimento concentrou-se, nas indústrias de bens de consumo não duráveis, com poucas exceções (cimento, siderurgia), substituindo-se as importações que, antes, atendiam à demanda interna. Após a Segunda Guerra Mundial, o processo estendeu-se aos bens de consumo duráveis. A sucessão de surtos industriais seria, então, a seguinte: a) 1903-1913 – de que já falamos; b) 1920-1929 – bom comportamento do setor externo, garantindo uma razoável capacidade de importar; entrada de capitais estrangeiros (investimentos incen tivados no setor do cimento e da siderurgia); reduzida atividade investidora do Governo que, não obstante a política monetária e cambial um tanto confusa, não chegou a prejudicar o crescimento da indústria e da economia em geral; c) 1933-1939 – a retração do comércio internacional não impediu as importações de equipamentos industriais, graças a medidas seletivas; o Gover no não gastou muito em investimentos,(25) mas praticou uma política mais agressiva de fomento à indústria, através da expansão do crédito especializado(26) e da insti tucionalização dos instrumentos de amparo.(27) Não se deve minimizar a importância das mentalidades reinantes, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro: nacio 216 217 nalismo e autarcismo – o que devia constituir-se num suporte psicológico dos esforços pela industrialização.(28) d) 1946-1961 – processo de industrialização intensiva através da substituição de importações (processo algo fácil por dirigir-se a um mercado já definido); ampliação do planejamento econômico,(29) con cretizado progressivamente no pós-guerra: Plano SALTE (1948), Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico (1951), trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1951/1953), Banco Nacional de Desen volvimento Econômico (1953), Plano de Metas (1957); várias medidas de política comercial e cambial a favor da indústria (taxa múltipla de câmbio; proteção aduaneira; lei do similar nacional – aliás, existente desde 1911; incentivos diretos, por exemplo, GEIA – Grupo Executivo da Indústria Automobilística); crescente interferência direta do Governo através de empresas estatais ou de economia mista (ação iniciada desde o tempo da guerra: Cia. Siderúrgica Nacional, Cia. Vale do Rio Doce, Cia. Nacional de Álcalis, Petrobrás, etc.; sobre a estatização, v. capítulo IX, infra); apelo para os capitais estrangeiros (introdução do câmbio livre pela Lei 1.807/1953; Instrução 113/1955, da SUMOC, permitindo a entrada de conjuntos industriais sem cobertura cambial).(30) O processo de industrialização realizado neste último período não foi isento de defeitos (ênfase para a produção de bens de consumo duráveis, concentração regional, tecnologia capital-intensiva pouco geradora de 217 218 emprego), mas é incontestável que permitiu grandes progressos, manifestados em mudanças estruturais: em 1960, 25,8% do PIB provinham do setor secundário, 12,7% da população ativa concentrava-se no setor, 30,9% da produção industrial eram gerados pelas indústrias modernas de ponta. Mais questionáveis são, contudo, os desequilíbrios criados fora do setor industrial: o pouco interesse dispensado à agricultura, o descuido com o comportamento das exportações, o esquecimento do desenvolvimento social (educação, habitação) e, por cima de tudo, os germes de uma inflação acelerada. NOTAS (1) É o caso do livro, aliás, de incontestável valor documentário, de Heitor Ferreira Lima, 98, que abrange o período colonial. (2) Um tear, mesmo mais sofisticado, não é máquina, no sentido rigoroso da palavra, enquanto foi movimentado pela força do homem. Senão, a própria roda do oleiro seria máquina e sua utilização uma indústria e não um artesanato, como tradi cionalmente é qualificada. (3) Para a descrição das atividades artesanais, v. Lima, op. cit., passim e 99, p. 75-126. (4) Ibidem, p. 115-138; para a contribuição na carreira da Índia, v. Lapa, 88 e 89, p. 231-278. (5) Lima, 98, p. 115-138. (6) O caso das Colônias inglesas da América d o Norte foi diferente. Sem exagerar a importância do fator geográfico, pode se admitir que ele foi relevante para a modalidade do colonialismo 218 219 ali aplicado: em se tratando de colônias de zona temperada, não havia condições de organizar a sua economia com v istas à exportação para a Metrópole. A alternativa foi permitir atividades para consumo local ou para exportação em zonas de estruturas econômicas diferentes (por exemplo, Caribe) e tributar essas atividades. O pacto colonial funcionava mais do lado das importações das Colônias, e ainda parcialmente. Isso permitiu, desde os primórdios, a constituição de uma economia algo autô noma e introvertida – o que correspondia, também, às intenções dos colonos, diferentes da mentalidade mercantilista dos colo nizadores do Brasil. (7) Simonsen, 153, p. 442-449; Lorenzo-Fernandes, 102, p. 85-87. (8) Simonsen, 152, p. 11: “Na primeira metade do século XIX, a inexistência de fatores positivos à industrialização do Brasil, a política livre-cambista que adotamos e a concor rência das manufaturas inglesas impediram a nossa industrialização.” Parece me que o primeiro argumento tem peso maior do que os demais. (9) Lima, 99, p. 206. (10) É a tese de Jean Marczewski, 107. A rigor, houve uma única e verdadeira “revolução” industrial: a que ocorreu na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII. (11) Nisso tiveram mérito os contatos com o estrangeiro, possibilitados pela abertura dos portos, o tratado de 1810 e a entrada de comerciantes, sobretudo ingleses. É bom lembrar que Irineu Evangelista de Souza fez sua aprendizagem no Rio de Janeiro, numa casa comercial inglesa – Carruthers – e, depois, na própria Inglaterra. É um exemplo da importância da abertura dos horizontes culturais e do intercâmbio tecnológico internacional. (12) As ferrovias acompanharam a trajetória do café: Santos Jundiaí (1868), prolongada até Campinas (1872); Itu (1873); Mogiana e Sorocabana (1875); extensão da ferrovia D. Pedro II até Queluz (1877) e Ribeirão Preto (1883). 219 220 (13) Os primeiros capitais da ind ústria paulista procederam dos cafeicultores, aos quais se acrescentaram os dos importadores e dos imigrantes (v. Dean, 51). (14) A reação liberal venceu sobretudo nas tarifas Souza Franco (1857) e Silva Ferraz (1860), mas o protecionismo firmou -se; a tarifa Belisario (1887) é um exemplo. (15) É preciso lembrar, como instrumento permanente para atração dos investimentos estrangeiros – na indústria ou na infraestrutura – a garantia de juros (de 5 a 7% ao ano) oferecida pelo Tesouro Nacional, desde 1852. A tentativa de renovação da indústria açucareira foi feita pela lei de 1875 que garantiu juros de 7% para a criação de engenhos centrais. O fracasso desta fórmula teve várias causas que não cabe analisar aqui. (16) Os trabalhos fundamentais são de Dean, op. cit., e Luz, 103. Os nomes de Américo Werneck, Amaro Cavalcante, Alcindo Guanabara, Serzedelo Corrêa, Jorge Street, e outros, devem ser citados como paladinos desse pensamento, já passando para o século XX. (17) Sobre a indústria têxtil, v. o livro clás sico de Stanley Stein, 162. Na década de 1870/1880, as importações de máquinas e acessórios representavam apenas cerca de 3% do valor total das importações. (18) Com maior rigor de terminologia, o Encilhamento foi o período de 1890 a 1893 quando a inflaçã o resultou do excesso de especulação bursátil e crédito bancário. A inflação continuou até 1898, porém tirando sua origem, como tradicionalmente, do déficit orçamentário do Tesouro Nacional ( v. capítulo X, infra). (19) Sobre este ponto teórico pode -se consultar: Magalhães, 104, e Simonsen, 150. (20) Buescu, 29. Houve uma certa alteração estrutural do produto real: entre 1900 e 1913, o setor primário caiu de 40,4% para 33,3% do produto total e o secundário aumentou de 13,5% para 15,8%, em 1920 representariam 33,5% e 18,0% respectivamente 220 221 (Haddad, 74). Sobre o período 1903/1913, v. Apêndice 8, infra. Quanto à política saneadora de Murtinho, acho que foi injustamente criticada, como em Lima, 88 bis, ps 136-149 – mas o assunto ultrapassa os limites deste livro . (21) Sobre os investimentos estrangeiros em 1860/1913, v. Castro, 45. (22) Para a teoria dos choques externos (iniciada com Simonsen, 152), v. Furtado, 66. (23) Para as teorias revisionistas: sobre a Primeira Guerra Mundial – Dean, op. cit.; para a Grande Depressão – Peláez, 130/ para a Segunda Guerra Mundial, Buescu, 24. Posições inter mediárias: Malan et alii, 105 e Versiani, 165 bis. A chamada “escola estruturalista” é defensora da teoria tradicional dos choques externos. Por exemplo, Tavares, 165: “O recente processo de desenvolvimento econômico do Brasil teve lugar fundamentalmente sob o impacto das restrições do comércio exterior.” Os revisionistas colocam-se no pólo oposto: “Longe de resultar das dificuldades das importações durante as duas guer ras mundiais e a Depressão... o desenvolvimento inseriu -se num conjunto de condições favoráveis ao comércio exerior” (Nathaniel H. Leff, Long Term Brazilian Economic Development ). Sobre a Primeira Guerra Mundial, Simonsen ( op. cit.) havia escrito: “A guerra européia deu novo e decisivo imuslo à evolução industrial de São Paulo” – enquanto Dean (op. cit.) rebateu: “Poder-se-á até perguntar se a industrialização de São Paulo não se teria processado mais depressa se não tivesse havido guerra.” (24) Buescu, 24. Como exemplo, as importações maciças de fusos e teares após o término da Segunda Guerra Mundial – sinal de que a indústria têxtil havia esgotado seus equipamentos, sem possibilidade de reposição durante a guerra. (25) Segundo Furtado (op cit.), o surto industrial após a Grande Depressão resultou do mecanismo de defesa do café que permitiu a manutenção do nível de renda do setor – renda essa que teria sido transferida para a indústria. Mas, então, o surto industrial 221 222 seria devido à defesa do comércio exter ior e não ao seu abandono, como dizem os estruturalistas. (26) Criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do Banco do Brasil (1937). (27) v. Wirth, 172. (28) Um marco decisivo, nesse sentido, idealizado já antes da guerra, mas realizado graças às motivações trazidas pela guerra, foi a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, com a sua usina de Volta Redonda (1942-1946). (29) Lafer, 86. (30) Malan et alii, op. cit.; Lorenzo-Fernandez, op. cit. Capítulo IX – Papel do Governo ..................................................................................... Rumo à economia mista Apesar da persistência prioritária do pensamento liberal, o cenário da política econômica mudou, em todo o Mundo, a partir do fim do século XIX. As deficiência s da economia de mercado levaram à intervenção cres cente do Governo no processo econômico – tendência essa que se acentuou sob o impacto das dificuldades trazidas pelas duas Guerras Mundiais e pela Grande Depressão de 1929. O resultado, em escala mundial, foi que, cada vez mais, se abandonava a economia de mercado, no sentido puro do liberalismo clássico, a 222 223 favor de um sistema de economia mista em que sobrevivem a propriedade individual, a empresa e a iniciativa privadas e o próprio mercado, porém com a imissão crescente do Governo, como orientador autoritário da economia e como empresário e investidor.(1) Na atividade não propriamente econômica do Governo foram registrados progressos – fruto do amadurecimento da comunidade, da experiência adquirida e do aprimoramento dos quadros humanos. A segurança externa foi preservada, sendo favorecida, durante as duas grandes conflagrações mundiais, pela posição excêntrica do País – o que permitiu um envolvimento limitado, fora das fronteiras. A projeção internacional do Brasil (como marcos: a conferência de Petrópolis, a participação na Conferência de Haia no período Rodrigues Alves-Afonso Penna. A Operação Pan-Americana no Governo Kubitschek) criou um clima de confiança e um sentimento de grandeza que devem ter influenciado favoravelmente a atuação dos agentes econômicos. Progressos foram alcançados, também, em termos de segurança interna, embora prejudicados, ainda, pelas distâncias e pela persistência das estruturas locais, passíveis de praticar abusos. É questionável a eficiência da descentralização administrativa instaurada pela República. De qualquer modo, a concentração do poder econômico nas mãos do Governo central tornou a descentralização, do ponto de vista econômico, bastante ilusória. Essa concentração resultou não apenas do processo político e das ambições de poder do centro, 223 224 mas também da necessidade de um planejamento econômico centralizado, como veremos mais adiante. A atividade normativa do poder público diversificou-se e ampliou-se, tal como aconteceu em todo o Mundo. A política monetária continuou seguindo os moldes tradicionais, com períodos de maior ortodoxia (durante as presidências Campos Salles, Rodrigues Alves, Arthur Bernardes e Washington Luiz) e de maior liberdade monetária (no Encilhamento e no Governo Kubitsckek). Firmou-se e implementou-se a idéia de utilizar o sistema bancário como instrumento desenvolvimentista. A Lei de 1890, da multiplicidade dos institutos emissores do papel-moeda, já objetivava a recomposição da liquidez do sistema para não prejudicar as atividades econômicas. Inovações institucionais foram feitas com a criação da Carteira de Redescontos, do Banco do Brasil (de curta duração: 1921-1923 e reintroduzida em 1935) e sobretudo da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do mesmo Banco (1937), a fim de oferecer facilidades de crédito com vistas ao desenvolvimento econômico. Embora durante a quase totalidade do período o poder emissor e várias atribuições de autoridade monetária foram conferidos ao Banco do Brasil, instituição privada, porém sob o controle do Governo, a ação normativa do setor público no setor monetário verificou-se, cristalizada em várias instituições, tais como a Caixa de Conversão (1906-1914) e a Caixa de Estabilização (1926-1929) e, mais tarde, a Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC (1945224 225 1965), com prerrogativas de banco central. Estas instituições – principalmente as duas primeiras – lidavam com o problema cambial, reputado sempre da maior importância.(2) Em geral, dominou, até a Segunda Guerra Mundial, a ortodoxia monetária e cambial, sobretudo após a reforma monetária de 1926 até o estouro provocado pela Grande Depressão, às vezes com efeitos deprimentes para a economia. Depois da guerra, a política cambial tornou-se mais complexa – com taxas múltiplas através de ágios e bonificações em cima da taxa cambial oficial – tudo isso com o objetivo de defender o balanço de pagamentos e, mais importante e mais inovador, de estimular e proteger ini ciativas desenvolvimentistas.(3) Atendendo aos crescentes anseios de industrialização, reforçadas pela ideologia nacionalista, a política alfandegária acentuou o seu caráter prote cionista (a introdução da tarifa – ouro em 1890 e 1898 teve cunho predominantemente fiscal, porém com efeito protecionista). Entretanto, em épocas mais recentes as tarifas alfandegárias desempenharam papel de menor importância: as alíquotas específicas da tarifa de 1934 tornaram-se, cada vez mais, inexpressiva em face da elevação continuada dos preços, até 1957, quando foi adotada uma tarifa ad valorem (Lei 3.244/1957). A proteção da indústria nacional foi efetivada através da política cambial e dos controles diretos (licença de importação). Vale mencionar a concessão do “custo de câmbio” (taxa de câmbio oficial, muito abaixo da taxa do mercado) para pagamento das importações consi 225 226 deradas prioritárias para o desenvolvimento (a mesma Lei 3.244/1957). A intervenção normativa do Governo manifestou se em outros dois campos, algo inovadores no País. Primeiro, em políticas redistributivas de renda, seja de renda pessoal (através do imposto de renda, introduzido em 1924), seja da renda regional (através de organismos especializados, tais como DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia e, no fim do período, a SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Segundo, em políticas anticíclicas – de fato, resumidas na defesa do café contra as depressões do mercado mundial, começando com a Convenção de Taubaté (1906), continuando com os planos de valorização após a Grande Depressão.(4) Ademais, a intervenção governamental se aprofundou através de controles setoriais, ou através de instituições especializadas, tais como os Institutos do Café, do Açúcar e do Álcool, do Pinho, do Sal, do Mate, assim como o Conselho Nacional do Petróleo, e outros. A novidade mais recente – ocorrida, também, em outros países – foi a sistematização da intervenção do setor público através do planejamento. Os primeiros planos econômicos aparecem na véspera da Segunda Guerra Mundial(5) e após seu início, e tinham objetivos limitados de mobilização econômica: Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional (1939), Plano de Obras e Aparelhamento (1944). 226 227 Apesar da resistência dos liberais puros,(6) as experiências de planejamento continuaram e se am pliaram no pós-guerra, embora sem se chegar ainda a verdadeiros “planos” de caráter macroeconômico(7). O Plano SALTE, de 1950, era apenas um previsão de veras para alguns setores prioritários, daí a sigla: Saúde, Alimentação, Transportes, Energia. O Relatório da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1952) continha um diagnóstico macroeconômico do Brasil, mas, como solução, preparou apenas planos setoriais. O mesmo caráter setorial teve o Plano de Metas (1957), sem nenhuma avaliação macroeconômica e sem programação financeira (o Programa de Estabilização Financeira, de 1959, foi rejeitado). O planejamento econômico, no sentido completo da palavra, desenvolveu-se a partir da década de 1960. O aumento da participação do setor público da economia não se manifestou apenas sob o ângulo normativo. Já durante o “Reerguimento Econômico” (1903-1913) o Tesouro Nacional reservou uma boa parcela de sua despesa para investimentos de infra estrutura; portos, ferrovias, saneamento, iluminação; essa parcela chegou a 24% em 1912. Os recursos foram obtidos principalmente através de empréstimos externos. No período que medeia entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a parcela da despesa públi ca destinada à formação de capital foi modesta, mas, em compensação, o Governo começou a agir através de empresas estatais ou de economia mista, absorvendo vários setores básicos, além da infra-estrutura. Entre 227 228 estas empresas deve ser citada, em primeiro l ugar, como pioneira de grande porte, a Companhia Siderúrgica Nacional (1942), seguindo a Companhia Vale do Rio Doce, Companhia Nacional de Álcalis, Fábrica Nacional de Motores e, mais tarde, como outro marco importante a Petrobrás (1953) – além de outras empresas, sejam criadas pelo Governo (Furnas, CEMIG), sejam entradas sob seu controle (Cosipa, Usiminas). No fim do período em foco, o Governo tinha domínio majoritário ou mesmo total em setores estratégicos como eletricidade , petróleo, ferrovias, siderurgia, mineração, navegação, comunicações. Sem dúvida, é impossível negar o papel positivo do setor público no processo de investimentos desenvolvimentistas, sobretudo nos setores em que a iniciativa privada não tinha condições de atuar por falta de recursos suficientes e de interesse em termos de lucros imediatos. O exemplo do Brasil não serviria de argumento a favor de uma tese radicalmente liberal. Não obstante, é verdade que muitas vezes se verificaram as insuficiências das empresas públicas: falta de efici ência, desperdício, empreguismo, politização. A lição histórica leva, como amiúde acontece, a uma posição mediana de colaboração empresa privada/Governo. Participação do setor público na economia 1950 Governo - Despesa Total - Consumo 19,0 12,7 (em % do PIB) 1960 24,2 14,2 228 229 - Poupança - Formação bruta de capital - Impostos diretos e indiretos 2,2 4,7 15,8 4,0 5,7 22,2 NOTAS (1) Sobre o confronto empresa/Estado, v. Simonsen, 150, p. 181206; sobre a evolução mais recente no Brasil, v. Villela-Baer, 168. (2) Tanto a Caixa de Conversão como a de Estabilização tinham como objetivo a manutenção do equilíbrio da taxa de câmbio; para detalhes, v. Villela-Suzigan, 169; Peláez-Suzigan, 131; Neuhays, 124. (3) Detalhes em: Baer, 5; Malan et alii, 105. (4) As interpretações e avaliações da política de valorização depois de 1930 são muito controvertidas: v. Furtado, 66; Peláez, 130. (5) A política de controle global, embora sem elaboração de planos, foi praticamente iniciada com o Conselho Federal de Comércio Exterior (1934-1941), e continuada com o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (1944 -1946) e a Comissão de Planejamento Econômico (1944 -1945). (6) Sobre a controvérsia acadêmica em torno do planejamento, v. Simonsen-Gudin, 154. (7) v. Lafer, 20. (Transcrito de Brasil: Problemas econômicos e experiência histórica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985, p. 83 -95 e 106-111) 229 230 LIÇÕES DA HISTÓRIA O título da palestra sugere logo a pergunta se a história é capaz de fornecer lições válidas para o presente e o futuro. Posto em termos mais gerais seria perguntar se a experiência dos fatos passados constitui um bom apoio para tomada de decisões ou pelo menos para compreensão da realidade. Nestes termos a resposta afirmativa parece indubitável, pois todas nossas ações, a não ser os atos puramente reflexos, têm algum respaldo numa experiência anterior: sem esta capacidade a vida se tornaria um pandemônio de busca interminável e às vezes inglória de soluções para cada alternativa aparecida perante nosso juízo. Entretanto, na realidade o aproveitamento da experiência passada depende de inúmeros fatores, não apenas da maior ou menor evidência da qualidade da experiência passada, mas também e sobretudo da nossa própria capacidade racional de avaliar e assimilar. Um filósofo chinês teria dito que o homem não aprende por experiência, mas sim por fadiga – mas afinal a fadiga é ela mesma ainda uma experiência repetitiva. Não vou falar desse aspecto psicológico e pedagógico que pertence a domínios em que, como leigo, não tenho direitos de entrar. Quero referir -me à utilidade do conhecimento histórico, especificamente para o agente econômico e, mais ainda para o policymaker, na tomada de decisões dentro do processo econômico sempre em evolução. A pergunta singela é se 230 231 o estudo da história tem alguma utilidade para o presente e, mais audaciosamente, para o futuro. Muitos poderiam questionar a utilidade do conhecimento de épocas remotas, ultrapassadas, enquanto estamos enfrentando angustiantes problemas atuais. Por outro lado, muitos historiadores estão preocupados principalmente com os aspectos pragmáticos de suas indignações e obstinados em tirar alguma lição do passado. Essa preocupação não é desprezível e ninguém se atreveria em exigir sua expulsão dentre os objetivos do historiador. Mas acho que o caso é mais complexo e precisa de alguns reparos. Antes de mais nada, o estudo do passado, tal como outros objetivos das disciplinas sociais, pode ser desprovido de qualquer conotação pragmática. Ele p ode justificar-se simplesmente pelo desejo de conhecer o passado, pela curiosidade científica que se encontra nos alicerces de toda ciência e constitui um dos grandes mistérios e méritos da mente humana. Poder-se-ia alegar que eventualmente o motor inicial de toda indagação teria sido uma necessidade prática – a exigência de resolver problemas ligados à própria sobrevivência. Entretanto, em seguida, através de um mecanismo mental peculiar, a procura utilitária teria se sublimado, passando a justificar-se per se, como uma vitória do intelecto, sem nenhuma preocupação pragmática. O espírito chegou a encontrar satisfação no simples desvendar dos segredos da Natureza, da Vida e da História, uma vitória sobre o mundo em que ele se encontra, visto numa perspectiva seja espacial, seja 231 232 temporal. Não obstante, por mais desinteressado que seja o conhecimento do passado, ele pode trazer valiosos ensinamentos. Em primeiro lugar, o estudo mostrará a complexidade do fenômeno social, o que servirá como advertência contra eventuais tendências de simplificação e contra uma visão às vezes elegante, porém irrealista dos fatos históricos, uma visão centrada em torno de um modelo pré-concebido de acordo com as preferências ou limitações do historiador. Em segundo lugar, o conhecimento desinteressado não deixa de revelar a inter-dependência dos atos históricos – sociais, econômicos, políticos, culturais – reciprocamente condicionados. Em outras palavras, descobre-se a unidade dos valores que constituem a cultura de uma sociedade numa certa época. Acho que essa lição não é desprezível: ela fornece uma orientação valiosa para compreender outros momentos passados ou atuais. Assim, o conhecimento neutro não deixará de revelar um significado pragmático. Entretanto, se os aspectos globais do conhecimento – complexidade e interdependência – se aplicam de forma generalizada aos fatos históricos, a pergunta que tanto o scholar quanto o leigo enfrentam é se o conteúdo dos fatos passados, fora do seu momento histórico, pode ainda ser útil, ou seja, se o passado serve para compreender o presente e enfrentar o futuro. Se a resposta a esta indagação é positiva, isto explicaria o apelo que, a certa altura, os economistas se vêem dispostos a fazer a favor do conhecimento da 232 233 história. Como observou W. Arthur Lewis, “todo economista atravessa uma fase em que não o satisfaz a base dedutiva da Teoria Econômica e acredita que possuirá visão muito melhor do processo econômico pelo estudo dos fatos históricos”. (A Teoria do Desenvolvimento Econômico). Referindo-se quase explicitamente às mencionadas características de complexidade e interdependência, Joseph Schumpeter se manifestou de modo mais incisivo: “Ninguém poderá entender o complexo econômico de qualquer época se não possuir uma visão adequada dos fatos históricos, e senso histórico bastante ou algo que seja classificado como experiência his tórica... A maioria dos erros fundamentais correntemente cometidos em análise econômica é devida à deficiência da experiência histórica”. (A História da Análise Econômica). Qual é, entretanto, o alcance dessa experiência? A sabedoria popular afirma com a mesma segurança que “toda história se repete” e que “a história nunca se repete”. É a alternativa entre o nil novi sub sole do Eclesiastes – nada é novo neste mundo – e o planta rhe de Heráclito – tudo flui, nenhum momento do passado voltará. Numa visão criteriosa, os historiadores aceitam o valor da experiência passada para a compreensão do presente, admitindo implicitamente que há uma certa lógica evolucionista que liga o momento atual ao curso anterior da história. Escreveu Frédéric Mauro: “Para compreender nossa economia do presente torna-se preciso compreender a do passado”. (Nova História e 233 234 Novo Mundo). Isso leva, de certa forma, à asserção dramática de que “quem não aprende as lições da história está condenado a repeti-la.” Mas, até que ponto a experiência histórica pode ser aproveitada? Em que medida a lição do passado pode ser aplicada às condições do presente: Será que o mundo não evolui continuamente de modo que o momento atual dificilmente ou mesmo impossivelmente se assemelhará ao momento passado? A opção exigirá racionalidade e comedimento. Ortega y Gasset apontou uma solução mediana, destacando a tênue margem de aproveitamento da experiência passada. Escreveu ele: “O saber histórico... não dá soluções positivas ao novo aspecto dos conflitos vitais: a vida é sempre diferente do que foi; mas ele evita cometer os erros ingênuos de outros tempos”. ( A Rebelião das Massas). Assim Ortega y Gasset achava mais importante a história dos erros do que dos acertos, mas isso parece confirmar indiretamente o valor da experiência histórica e a possibilidade de seu apro veitamento. Qual o caminho a seguir? Uma base racional pode ser encontrada numa formulação lapidar de John Hicks: “Cada fato histórico tem algum aspecto sob o qual é único; mas em outros aspectos ele é sempre parte de um grupo, às vezes de u grupo bem numeroso”. (Uma Teoria de História Econômica). De fato, Hicks refere-se à possibilidade de repetição num universo estático, mas o binômio unidade/repetição é também uma realidade numa perspectiva dinâmica. Vale um certo desenvolvimento 234 235 em torno da observação de Hicks. A essência do espírito humano, o comportamento típico do homem, constituiria um argumento a favor de uma certa repetição. Contudo, em que pese o comportamento ligado à própria psicologia, como, na econimia, o de um abstrato homo oeconomicus, há sempre variedade individuais e coletivas ligadas aos diversos fatores culturais, que não permitem iden tificar uma verdadeira repetição ne varietur dos atos humanos ao longo da história. Pois os sistemas econômicos, as instituições, as atitudes e reações variam no tempo e no espaço em função daqueles fatores – é um universo em perpétuo movimento em que apenas através de uma cuidadosa operação de redução e identificação se pode encontrar semelhanças e repetições. Assim, o passado é, até certo ponto, um fato único, em cujo seio entretanto é possível encontrar algumas permanências, uma certa continuidade que justificam tomá-lo como padrão, tirando conclusões para o presente. É uma questão de discernimento e come dimento, usar com cautela o cotejo temporal, a fim de ver o que realmente é lícito extrair da experiência passada. Frédéric Mauro formulou uma vez essa lição de sabedoria: “A confrontação do passado e do presente deve conduzir-nos à descoberta dos paralelismos, das analogias, mas também das diferenças igualmente instrutivas”. (ibidem) O passado, mesmo quando diferente do presente, oferece uma lição valiosa: o que é permanente é o ser humano, com seus condicionamentos mutantes – ins235 236 titucionais ou conjunturais. Qualquer experiência anterior contém uma lição seja no seu aspecto constante, seja per a contrário. É importante apenas distinguir o que é permanente ou pelo menos repetível, e o que é passageiro, contingente, portanto sem aplicação válida no presente ou no futuro. Aí aparece o perigo de uma aplicação cega da idéias de que o passado se repete ou de uma interpretação literal do tradicional aforisma nil novi sub sole. Quais, então as condições da experiência his tórica para efeito de aproveitá-la no presente? Uma exigência básica seria o conhecimento exaustivo, na medida do possível, da realidade histórica, a fim de separar os fatos de caráter permanente (por exemplo os ligados à própria natureza humana) e os fatos de caráter passageiro, ligados às realidades institucionais e con junturas específicas, não repetitivas. A compreensão da lição dependerá da capacidade racional e do preparo intelectual do observador: perante o mesmo exemplo histórico, o sábio tirará uma certa conclusão e o inepto, uma totalmente contrária. E, sem dúvida, as conclusões são tiradas em função da escala de valores do observador. Todas estas ponderações parecem bastante banais, beirando o óbvio, mas a presença de muitas confusões nas conversas diárias, nos meios de comunicação e até em certos trabalhos acadêmicos parece justificar a inquirição a que acabamos de nos dedicar. *** 236 237 Depois destas considerações de ordem geral, achei oportuno apresentar alguns casos concretos como ilustração das possibilidades e dos limites da lição histórica. Os casos escolhidos foram tirados da História Econômica do Brasil, mais especificamente da história da inflação, visto que o fenômeno inflacionári o se mantém, infelizmente, da maior atualidade. Escolhi épocas mais remotas a fim de dispormos de suficiente perspectiva temporal e necessária imparcialidade, longe das conotações emocionais do presente. O período que vai da proclamação da República até o início da Primeira Guerra Mundial fornece um material sugestivo, com uma inflação aguda no começo do período, seguida por um certo arrefecimento e, em continuação, um curto intervalo deflacionário, após o qual a inflação retomou seu curso habitual. De fato, se quiséssemos fazer um cotejo quan titativamente mais próximo da realidade recente, deveríamos voltar muito mais para trás até a época do ciclo do ouro quando, sobretudo na sua fase inicial – digamos entre 1693 e 1710 – certos preços subiram, na região das Minas, numa proporção de até 300 vezes (30 mil por cento). A experiência não é desprovida de interesse, de uma forma geral, uma vez que verificou grosso modo a teoria quantitativa da moeda – sendo a alta dos preços provocada pela abundância do metal precioso em circulação. Poderíamos encontrar também alguns condicionamentos cuja validade ultrapassa a conjuntura do ciclo do ouro, como por exemplo a 237 238 persistência secular da corrida atrás do ouro, a velha auri sacra fames. Mas tudo se passou num ambiente muito diferente, dentro de uma economia colonial, carente de estrutura mais sólida, com uma população de ricos exploradores, de imigrantes aventureiros e de escravos marginalizados. mesmo assim, a experiência poderia oferecer certas lições, mas achei que, co m ela, mergulharíamos num universo demasiadamente dife rente do nosso. A escolha exempli gatia do quarto de século de 1889 a 1913 me pareceu mais convincente por se tratar de uma economia mais moderna, capitalista ou quase, cujos ensinamentos seriam mais válidos, tanto no sentido positivo como no negativo. O período focalizado começa com o Encilhamento, a inflação de 1890/1893, uma inflação mais forte do que tinha ocorrido desde a Independência até aquela data. Forte, contudo, em comparação com o passado, mas irrisória em termos atuais, visto que a alta dos preços foi provavelmente de 30-40% anuais (alguns autores referem-se a percentagens mais altas, porém sem nenhuma comprovação empírica confiável). Não quer dizer que tal inflação não tenha provocado reações na sociedade, inclusive quanto ao ambiente especulativo que precedeu a alta dos preços. Uma des crição do fenômeno encontra-se na conhecida crônica do Visconde de Taunay, publicada justamente sob o título de O Encilhamento. Taunay refere-se principalmente à especulação bursátil que se iniciou no último ano do Império e se intensificou em 1890/1892. Essa febre na Bolsa de 238 239 Valores poderia ser considerada como mais uma ca racterística social de apego ao jogo, que Afonso Arinos chamou de tendência para “salvação pelo acaso”, considerada por ele como de origem ibérica. ( Conceito de Civilização Brasileira). Esse aspecto nos ensinaria não desprezar, na avaliação do processo econômico e na formulação das políticas, os condicionamentos cul turais que podem vir de longe, em espaço e tempo. Entretanto, para o período em pauta a febre bursátil pode-se explicar primeiro por condições específicas: a euforia da renovação política e social anunciada pela abolição da escravidão e a adoção do regime repu blicano, considerada como um ingresso entre países modernos, mais evoluídos. Infelizmente, a expansão bursátil, até certo ponto salutar, desembocou em especulação desenfreada que Taunay desmascarou e condenou. Mas deve -se atentar para a circunstância essencial de que a esc alada especulativa não teria sido viável sem ser sustentada pelo maciço aumento da liquidez do sistema, resultado de um relaxamento da política monetária. Isso faz aparecer no palco a responsabilidade do governo – uma lição que ao longo do século seguinte se tornou mais evidente e mais grave. Uma nova situação se criou através da reforma bancária de 1890 (decreto de 17/01/1890 que retomou os termos da lei do Império, de 1888, que não chegara a ser aplicada). A intenção foi boa, pois havia necessidade de criar maior liquidez no sistema face às novas demandas monetárias decorrentes não apenas do 239 240 crescimento natural da economia, mas também so bretudo das exigências de capital de giro devido à abolição da escravidão. O fato é que os últimos anos do Império tinham assistido a uma política monetária muito contencionista: entre 1870 e 1879 os meios de pagamento cresceram apenas 20,3% e em 1889 se situavam apenas 2,4% acima do nível de 1879! A reforma bancária de Rui Barbosa judiciosamente quis emendar e eliminar este entrave da economia. Aí, a lição é positiva. A redução dos meios de pagamento, agravada pela situação criada pela Abolição, tinha efeitos nocivos sobre a atividade econômica, embora não haja meios de avaliar quan titativamente o fenômeno. Corretamente, as autoridades monetárias deviam velar para um suficiente grau de liquidez. mas a lição histórica é limitada às condições peculiares da economia brasileira do fim do século XIX, com suas instituições específicas, com os hábitos dos usuários, as capacidades do corpo administrativo, etc. Por outro lado surgiu um problema que traz um bom ensinamento, de ordem mais geral: é que assume importância capital a implementação de uma medida – a implementação é até mais importante do que o diploma legal; afinal o que funciona na realidade é a medida implementada e não o dispositivo abstrato. O que aconteceu foi que o decreto de 17/01/1890, justificado em tese, foi aplicado sem critério, de forma abusiva pelos dirigentes da Fazenda, principalmente Tristão de Alencar e Henrique Pereira de Lucena. 240 241 O resultado foi que os meios de pagamento cresceram 99% em 1890, puxados pelos depósitos à vista cujo aumento atingiu 166%, enquanto o crescimento do papel-moeda emitido se limitou a 53%, ainda muito elevado. Em 1891 a expansão mon etária foi menor, mas ainda se situou em torno de 50%. Vê -se que o foco expansionista reflete o relaxamento do regime bancário. Vale acrescentar que, na época, não se verificou nenhuma pressão significativa oriunda da despesa pública: a execução orçamentária foi apenas ligeiramente déficitária entre 1890 e 1893, até com um exercício superávitário em 1891. É uma lição de comedimento do setor público, mas o ensinamento maior consiste em que não é suficiente atacar a inflação somente de um lado. A permissividade oficial com respeito ao direito bancário de emissão pode-se explicar por fatores históricos cuja lição pode ser válida para outras épocas: interesses escusos, favoritismo político, demagogia. Mais uma vez, é lícito concluir que as boas intenções podem ser prejudiciais pelas realidades políticas, sociais e culturais, além das falhas insti tucionais de um país com escassa tradição cívica e insuficientes quadros técnicos. Será que a experiência inflacionária do Encilhamento traz algum argumento convincente a favor da tese às vezes sustentada do papel desen volvimentista da inflação? Não há condições de pro ceder aqui a uma análise mais detalhada do pretenso surto industrial propiciado pelo Encilhamento, mas o 241 242 fato é que não se verificou uma grande expansão econômica durante o Encilhamento e muito menos que ela deve ter sido fruto do processo inflacionário redistributivo: é ponto pacífico que a grande maioria da pletora de empresas criadas durante o Encilhamento foram de caráter especulativo e tiveram curta existência. Um testemunho coeso e insuspeito da conjuntura é esclarecedor, no Relatório do Ministro da Fazenda Bernardino de Campos (1898). Ele fala em “in conveniências da incipiente organização econômica... as freqüentes agitações... a permanência e agrav ação de uma circulação irregular e viciosa... grandes embaraços e deficiências onerando e atrofiando o comércio, a agricultura e a indústria nascente... as especulações, o espírito de agiotagem... a paralisação dos negócios...” – uma lição ainda válida. Se houve ao longo dos anos, antes e depois da proclamação da República, uma tendência progressista, ela pode ser melhor explicada por outros fatores que não o Encilhamento: a abolição da escravidão, a entrada maciça de imigrantes, as políticas prote cionistas, etc. A advertência que resulta da interpretação do episódio é de evitar o sofisma de composição – post hoc, ergo propter hoc – ou seja, que os pregressos verificados mais tarde, na virada do século, teriam sido o reflexo do surto inflacionário do Encilhamento. Não se deve confundir uma febre especulativa com um movimento de real progresso – isto já tivemos oportunidade de verificar em tempos 242 243 recentes. Na realidade, entre o Encilhamento e o período de expansão chamado Reerguimento Econômico, de 1903 a 1913, houve outra experiência, da qual é possível tirar certos ensinamentos. Como no caso do Encilhamento, não vou ater-me aos aspectos teóricos da experiência – eles não são desprovidos de interesse, mas, tendo em vista as mudanças dos conceitos teóricos e das circunstâncias históricas, muitas das lições não podem ser extrapoladas para os tempos atuais. Mas existem aspectos permanentes, os em que “a história se repete” e sua lição merece nossa atenção. O período que estamos abordando agora é o da experiência deflacionária de Joaquim Murtinho, na presidência de Campos Sales. De acordo com Murtinho, a economia brasileira se encontrava no fim do século XIX sob o signo de uma dupla crise: a elevação dos preços (27,8% em 1886, 18,7% em 1887) e a queda das cotações do café (a saca de café tinha caído de um valor de £ 4,09 em 1883 para £ 1,49 em 1898). Em ambos os casos, Murtinho deu uma explicação em acordo com os conceitos clássicos: tratava-se de um excesso de oferta – de moeda e de café. Não interessa discutir aqui a questionável fórmula quantitativa de Murtinho a respeito do valor da moeda – o que interessa é que ele deu uma resposta certa, acusando o excesso de papel-moeda. Indiretamente, a redução do estoque monetário, provocando a va lorização cambial, devia reduzir a remuneração do café em moeda nacional e conseqüentemente eliminar os 243 244 produtos marginais e, assim, sanear o mercado cafeeiro. Tais conclusões, válidas para o estágio da economia e da sociedade brasileiras em 1900, são altamente questionáveis, na sua essência técnica para, por exemplo as condições do Brasil em fins do século XX. Nesse caso, como em muitos outros, a lição da História fica muito genérica face às diferenças culturais e institucionais entre as épocas cotejadas. Com perfeita cobertura do presidente Campos Sales (uma importante lição quanto à necessidade da coesão governamental), Murtinho aplicou com o maior rigor, talvez excessivo, seu plano, retirando papel moeda da circulação e impedindo a expansão bancária: entre 1898 e 1902 o papel-moeda emitido se reduziu 12,6%, os depósitos à vista 52,1% e os meios de pagamento 24,9%; os preços caíram numa média acumulada entre 25 e 35%; e a taxa de câmbio se valorizou mais de 60%. O caso Murtinho é um exemplo da relatividade da lição histórica quando se trata de teorias econômicas que são, por sua natureza, questionáveis. Assim, os liberais puristas acharam que a política de Murtinho constitui exemplo valioso a ser seguido, enquanto os modernos críticos, imbuídos dos preceitos de Keynes, acham que o exemplo de Murtinho tem valor per a contrário, isto é, como uma advertência do que não deve ser feito. Sob este ângulo, então, a história não se deve repetir mas não deixa de ensinar. As drásticas providências de Murtinho não 244 245 passaram sem sofrimentos: houve uma onde recessiva que se manifestou principalmente na crise dos bancos, de 1900, com falências, fechamento de bancos, etc., mas os indicadores estatísticos não detectam uma profunda recessão: no quadriênio o produto real cresceu à razão de 4,4% ao ano, um crescimento razoável para uma economia subdesenvolvida. Mas, sob o impacto das paixões políticas, o governo foi alvo de críticas exacerbadas que beiraram a revolta aberta. Com isenção, a História ensina – e este é um ensinamento de dramática atualidade – que uma operação de saneamento exige sacrifícios, Assim sendo, os governantes e a sociedade devem ter uma visão telescópica, numa perspectiva de prazo mais longo. Murtinho teve essa visão cujos frutos surgiram no período subseqüente – o Reerguimento Econômico de 1903/1913 – quando se realizaram as promessas que, nas críticas ferinas de Vieira Souto, Murtinho não teria cumprido: renascimento do crédito público, desenvolvimento do crédito privado, maior atividade econômica, aumento da riqueza nacional. Campos Sales e Murtinho tiveram que enfrentar os maiores vexames e adversidades e uma imensa onda de impopularidade – sabe-se que Campos Sales saiu da presidência sob as vaias populares. Entretanto – mais uma lição histórica – eles deram prova não apenas de coerência em relação aos seus planos, mas também de grande coragem cívica, sem a qual a política econômica 245 246 fica submissa à demagogia. Palestra proferida em 19 de maio de 1994. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 40(471): 41-48, Junho 1994). 246 247 A EXPERIÊNCIA DEFLACIONÁRIA DE JOAQUIM MURTINHO As experiências do passado não podem ser plenamente aproveitadas para a orientação das ações presentes e futuras das sociedades, mas contêm sempre ensinamentos valiosos devido à permanência dos mecanismos do comportamento humano e de algumas de suas motivações básicas. Assim, ao evocar a política deflacionária de Joaquim Murtinho, respaldada na autoridade do Presidente Campos Salles (1898/1902), depois do tumulto monetário e financeiro da primeira década republicana, não se pode pretender tirar, a não ser com muita cautela, conclusões sobre a inflação e a política antiinfracionária atuais ou normas a serem aplicadas no presente: as condições econômicas, sociais e políticas do Brasil – e do Mundo – mudaram muito ao longo do século. Alguns preceitos, contudo, continuam válidos. Vale, portanto, dedicar alguma atenção à lição histórica oferecida pelo programa de estabilização monetária e financeira de Murtinho, sobretudo no que diz respeito a críticas e resistências da sociedade. *** A situação política e econômica do Brasil na véspera da gestão de Joaquim Murtinho explica e eventualmente justifica a política por ele implementada 247 248 que, aliás, se enquadrava no pensamento econômico oficial, predominante no fim do século: liberalismo, padrão-ouro, teoria do comércio internacional. Já no fim do Império houvera um sério abalo provocado pela abolição do regime servil. O início da República teve, entretanto, graves problemas de outra natureza, ligados em grande parte à inflação e à especulação bursátil conhecidas sob o rótulo de “Encilhamento”. Assistiu-se a uma excessiva expansão do crédito, incentivada pela especulação bursátil, a uma forte expansão monetária e a uma acentuada (para aqueles tempos) elevação dos preços. Depois da relativa calmaria do Império, os novos desequilíbrios de uma intensidade inédita podiam preocupar a sociedade e os dirigentes econômicos – mas a reação só veio dez anos depois. Entre 1889 e 1894 o papel-moeda emitido cresceu 261% e os meios de pagamento 190%. O impacto sobre os preços foi menor, porém sensível numa economia que não tinha conhecido inflação galopante (exceto o surto passageiro e regionalmente limitado, no início do ciclo do ouro): os preços subiram cerca de 114%. Depois de uma breve trégua em 1894/95, os preços retornaram à sua escalada, oriunda desta vez de outro desequilíbrio, o das finanças públicas, em decorrência de causas estruturais e conjunturais (distúrbios políticos, administração deficiente, q ueda da receita do imposto de importação, etc.). Acompanhando parcialmente a desaceleração monetária, os preços 248 249 teriam acusado entre 1894 e 1898 uma alta em torno de 29%. A grande preocupação veio de outra deterioração do quadro econômico a qual afetava os pilares de um sistema fortemente baseado no setor externo, sobretudo na exportação de café. Ao longo da primeira década republicana a taxa de câmbio despencou verticalmente, uma desvalorização de 73% em 9 anos – o que era uma afronta para a ortodoxia da política cambial e monetária da época. Entretanto, a desvalorização cambial, maior do que a elevação dos preços internos, devia favorecer a exportação e, conseqüentemente, a balança comercial. De fato, a exportação cresceu ligeiramente de 1889 até 1894, mas se reduziu no fim do período. A balança comercial permaneceu superavitária, mas o saldo positivo se reduziu. Para os que acompanhavam mais de perto a marcha dos negócios e da economia a grande preocupação referia-se ao espetáculo assustador do setor cafeeiro. A cotação do café em Nova York caiu brutalmente devido ao desequilíbrio do mercado, com uma superprodução cujo resultado era o aumento acentuado dos estoques mundiais. Atraída pela demanda elevada do período anterior, a produção brasileira de café quase dobrou entre 1889 e 1898. Já antes falou-se em “prenúncio de grave crise cafeeira” (Taunay) e apareceram as primeiras sugestões de uma política de defesa do café, que devia vingar apenas em 1906, com a convenção de Taubaté. 249 250 De qualquer forma, já antes da gestão de Murtinho, várias vozes autorizadas se levantaram apontando para o estado precário da economia brasileira e clamando por reformas drásticas para o saneamento da situação financeira, monetária e cambial do País. Por exemplo, no Relatório da Fazenda de 1898: “A notável decadência a que chegou o câmbio no Brasil, excedendo já em muito os limites naturais do câmbio real, só pode ser atribuída em sua máxima parte ou quase totalidade à depreciação do papel-moeda”... “as emissões bancárias determinaram a desvalorização do meio circulante na proporção expressa pelas taxas cambiais expostas, prova de sua superabundância e medida de sua depreciação”. E, já pensando em reformas: “É evidente que será legítimo qualquer expediente que liberte o país desta opressão (do câmbio baixo)”. Um contemporâneo descreveu em termos incisivos a péssima situação da economia em 1898 que justificaria políticas saneadoras: “criação e agravação contínua de impostos... abuso de crédito... aumento da dívida... uma situação insustentável” (Guanabara). Algumas motivações políticas não faltavam, a meu ver. O novo regime instaurado em 15 de novembro de 1889 apresentava sinais de fragilidade e de ins tabilidade, sobretudo sob a ameaça de uma restauração monárquica, bem como por instigar outras áreas de conflito e descontentamento. A primeira década da Re pública foi interrompida por crises sucessivas que tumultuaram o ambiente e sem dúvida não repre 250 251 sentaram um bom ingrediente para a arrumação da economia. A desarrumação podia constituir, sem dúvida, um argumento contra o regime republicano. Era, pois, normal que os defensores do regime pensassem no saneamento da economia a fim de não mais oferecer aos adversários um campo propício às críticas. Tratava -se de fortalecer o regime sob todos os aspectos, inclusive o econômico, e esse intuito parece implícito, senão mesmo explícito, nas medidas que eram preconizadas por líderes como Prudente de Moraes, Bernardino de Campos ou Campos Salles. O próprio Joaquim Murtinho, no seu relatório como Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, em 1897, observava que “consolidar a República não é simplesmente defendê -la contra os atos de agressão violenta de seus inimigos”, mas sim fazer uma política econômica sadia, baseada nas idéias do liberalismo. *** Como Ministro da Fazenda (1898), Joaquim Murtinho partiu de um diagnóstico simples mas rigoroso, posto que em termos hoje desatualizados. Para ele, o Brasil padecia de duas crises: uma, econômica “resultante da redução do valor da unidade do mais importante (dos produtos): o café”, efeito por sua vez da “produção exagerada em relação ao consumo”; outra, financeira, resultante da “redução do valor da unidade da massa (das rendas do Estado)”, por seu turno 251 252 conseqüência “da produção exagerada do meio circulante em relação ao valor real da circulação” (Relatório da Fazenda, 1899). Vale observar que ao apontar os efeitos do excesso da circulação monetária, Murtinho não se refere de modo mais específico ao nível dos preços: ele preferiu relacionar o valor da moeda à taxa de câmbio. Mais expressivo é, entretanto, o fato de que ele coloca a crise brasileira numa dupla equação de teoria clássica, isto é, uma dupla discrepância entre a oferta e a demanda. Mais tarde, no Relatório da Fazenda de 1900, ele detalhou mais os desequilíbrios: “discordância entre a produção do café e seu consumo, determinando a redução do preço... discordância entre a nossa riqueza anual em ouro, representada pelo valor da exportação e a massa de papel-moeda inconversível em circulação, produzindo redução do preço do papel, baixa de câmbio... discordância entre a receita e a despesa federal, produzindo déficits orçamentários, novas emis sões, novos empréstimos...” A formulação do diagnóstico já indica as bases da política saneadora: o restabelecimento do equilíbrio entre a demanda e a oferta, o que implica na redução da produção do café, na diminuição das emissões de papel moeda, no equilíbrio orçamentário. Alguns dos conceitos emitidos por Murtinho são questionáveis, mas sob um ângulo puramente pragmático levaram a resultados profícuos em termos de combate à inflação e de arrumação da economia. 252 253 A ênfase era dada ao saneamento monetário e financeiro, o que não se pode estranhar num ambiente dominado pela ortodoxia monetária e pelo sistema do padrão-ouro. Tal ortodoxia pode ser criticada pelos economistas menos conformistas, embora ela mantenha sua validade até para nossas experiências recentes. Para seu tempo, Murtinho invoca, em apoio à sua política econômica opiniões de alguns dos seus antecessores ilustres, Souza Franco, Torres Homem, Dias de Carvalho, Itaboraí, Zacarias de Vasconcelos, Ouro Preto, Martinho Campos – testemunhas históricas valiosas. Autoridades estrangeiras – obviamente do mesmo grupo da ortodoxia – convergiram no mesmo sentido, mesmo depois da gestão de Murtinho. Paul LeroyBeaulieu, grande autoridade na época, citado por Alcindo Guanabara, declarava: “O Brasil não tem senão perseverar na trilha pela qual enveredou... a elevação do câmbio se deve não tanto à melhora orçament ária, alta do preço do café, aumento do stock do ouro, quanto à retirada do papel-moeda”. E, em outra ocasião: “A experiência do Brasil, de 1899 a 1905 é o testemunho mais decisivo a favor das doutrinas econômicas sadias sobre o câmbio nos países com padrão monetário avariado... O exemplo do Brasil é especialmente típico e honra grandemente o presidente Campos Salles, que teve a iniciativa dessa política financeira saneadora”. (apud Andrada). 253 254 A chave consistia em elevar o poder de compra da moeda nacional através do enxugamento de sua quantidade. E a valorização da moeda devia se manifestar pela elevação da taxa de câmbio. É curioso que muitas vezes Murtinho é censurado por não ter dado bastante atenção ao problema do balanço dos pagamentos (ele deduziu a taxa de câmbio de uma relação mais simples, sem atentar para a complexidade dos fatores incluídos no balanço de pagamentos). Mas a importância reservada ao câmbio implicava em ressaltar indiretamente o papel do setor externo na economia. O enfoque cambial podia ter também outra justificativa, tal como foi formulado pelo próprio Campos Salles na sua mensagem de 1899: “Sob o domínio funesto do curso forçado e portanto na falta de indicador direto que não existe senão quando o papel é conversível, o critério para conhecer a deficiência ou excesso do meio circulante é o estado do câmbio”. Ademais, as duas crises diagnosticadas por Murtinho estavam interdependentes, e o elo entre eles era formado pela taxa de câmbio. O saneamento da moeda, provocando a alta do câmbio, ofereceria menor retribuição à exportação – principalmente de café – e dest’arte eliminaria os produtores marginais do setor. Inversamente, a valorização do câmbio reduziria a proteção da indústria nacional frente à concorrência dos produtos importados tornados mais baratos, e consequentemente poderia provocar um deslocamento de 254 255 fatores de produção de uma indústria algo ineficiente para o setor agrícola. Sem dúvida, na formulação do diagnóstico e na indicação das metas da política econômica revela-se o apego de Murtinho ao liberalismo ainda dominante, à sistemática do padrão-ouro e ao modelo tradicional de uma economia exportadora de produtos primários, integrada no grande comércio mundial baseado na divisão internacional do trabalho. *** Ao traçar-se o perfil ideológico de Joaquim Murtinho é importante sublinhar que do ponto de vista moral Murtinho foi irrepreensível pela sua coerência e pela sua coragem; essa é sua principal mensagem e lição histórica válida até hoje. Sob o ângulo teórico, ele é questionável. O seu arcabouço teórico apresenta às vezes lados altamente discutíveis. Mas, que teoria econômica merece uma adesão incondicional? Principalmente ao definir suas posições não se deve esquecer o momento histórico em que se situaram e seria anti-histórico julgá-as à luz das teorias que surgiram muito depois e que Murtinho só poderia ter previsto se ele tivesse sido realmente um gênio dessa disciplina, o que, com todo o respeito, ele não foi. Ele adotou para fins práticos extremamente plausíveis as doutrinas do seu tempo. Se seu respaldo teórico parece agora algo antiquado, os seus preceitos de política econômica continuam válidos. 255 256 As posições de Murtinho podem ser identificadas da forma seguinte: a) Antes de mais nada, o liberalismo. Alguém o tachou de “liberalismo econômico bastante radical” para emendar depois “menos radical do que se pensa” (Villela Luz). De fato, é preciso aceitar Murtinho como um verdadeiro liberal ou rejeitá-lo na medida em que não se concorda com o pensamento liberal. Esse liberalismo não era apenas econômico, mas principalmente político, visto que obviamente um está intimamente ligado ao outro. Murtinho o diz claramente já no seu Relatório de 1891 como Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas: “A liberdade política não pode ser completa sem a liberdade econômica” – tal como pensam os atuais grandes liberais – Von Mises, Hayek, etc. Com um matiz pejorativo, o liberalismo de Murtinho foi tachado de “darwinismo” ou “spencerianismo”, isto é, um tipo de capitalismo selvagem em que os mais aptos superam e liquidam os mais fracos. De fato, o liberalismo, sob o signo da concorrência, admite uma certa luta em que os agentes econômicos tentam maximizar suas atividades: reduzir os seus custos e elevar os preços de venda dos meios d e produção e dos produtos. E como a igualdade é uma ilusão, evidentemente uma dose de sacrifícios inevitáveis. É o preço a pagar pelo sistema, na medida em que outra alternativa seria mais desvantajosa sob o ângulo econômico, social e político. Ao criticar um 256 257 sistema, amiúde costuma-se opor à sua implementação real, portanto eivada de imperfeições como qualquer empreendimento humano, a imagem de um sistema teórico, ideal, logo desprovido de qualquer defeito. A discussão é delicada, mas parece claro que os d etratores do “darwinismo” ou “spencerianismo” econômico são antes de mais nada adversários do liberalismo. Pode -se encontrar um libelo, aliás talentoso, contra o liberalismo por exemplo em Galbraith (A Era da Incerteza). Mas uma vez mais, não se deve esquecer que Spencer dominou o pensamento sociológico na segunda metade do século XIX. Para Murtinho, o conceito de liberalismo estava ligado a valores econômicos que assumiriam até um sentido moral: “Implantar em nosso espírito o ideal individualista, ideal de energia, ideal de trabalho, ideal de independência...” (Rel. da Faz., 1898). A terapêutica podia ser dura, porém para um liberal convicto, isso apresentaria o anverso inevitável de um sistema altamente profícuo para toda a sociedade. b) Entretanto, o liberalismo de Murtinho tem seus limites. É verdade que o princípio básico é o não intervencionsimo do Estado: “Nenhum governo por mais sábio, por mais poderoso e mais patriótico que seja, pode substituir-se à ação de milhares de homens de negócios” (ibidem). A idéia fundamental de caráter econômico, é que a livre concorrência, afinal de contas, contribuiria para a redução generalizada dos custos, portanto para a maximização do objetivo de bem -estar 257 258 material: “a capacidade de produzir o máximo resultado possível em relação ao capital empregado com o mais baixo preço em um regime de livre concorrência” (Rel. 1899). Não falta, contudo, uma dose de pragmatismo que sempre esteve presente na política econômica daqueles tempos, permitindo por exemplo desvios benéfico s do regime do padrão-ouro. No caso em pauta, uma posição de frio “darwinismo” é atenuada pelos acenos a uma certa intervenção estatal: “Quando se manifesta uma crise no trabalho é dever do Estado afastar todas as causas com que ele tinha contribuído para aquele mal; mas seria contra os princípios de justiça proteger os ineptos, os imprudentes, os viciosos, com o sacrifício daqueles que lutam, que se esforçam e que vencem com os elementos próprios da energia individual”. (Rel. 1897). Murtinho admite o intervencionismo na medida em que ele restabelece a liberdade e as condições normais do mercado. Na realidade, a presença normativa do Estado é inevitável: afinal, todas as medidas preconizadas para “normalizar” o mercado do café via valorização cambial ou para enxugar o meio circulante não passam de intervencionismo estatal, porém com o objetivo de liberalizar subseqüentemente a economia, senão, diz Murtinho, cai-se no “despotismo econômico”, “o aprisionamento da economia em normas cartorialmente impostas pelo poder público” através de “um grande número de leis” (Rel. 1897) – posição que, convenhamos, é válida até nossos dias. 258 259 No caso do café, a atitude intervencionista é nítida: “Restringir a cultura de café aos pontos mais produtivos... limitar o desenvolvimento da produção do café de modo a acompanhar o desenvolvimento do seu consumo”. (ibidem, p. 152). É interessante notar como exemplo da ambivalência das críticas, que Murtinho é frontalmente acusado de ter defendido a agricultura em detrimento da indústria, e ao mesmo tempo de ter “deixado o café no abandono”. c) Por cima das considerações pragmáticas, Murtinho permaneceu fiel aos dogmas do liberalismo político e econômico e de seus subprodutos, a divisão internacional do trabalho e o padrão-ouro. Aquela, ainda válida em princípio, com as ressalvas impostas pelo protecionismo e pelo desenvolvimento mundial; este, muito mais contestado ulteriormente e afastado a favor de uma concepção monetária mais moderna. Neste ponto também, críticas mais recentes pecaram pela omissão das condições históricas de quase um século atrás: “Exemplo típico (do apoio à ortodoxia monetária) foi o de Joaquim Murtinho, metalista ardente e sob vários aspectos mercantilista confuso... con duzindo-nos à violenta deflação conhecida” (Ferreira Lima), A verdadeira confusão é misturar na mesma cesta as posições liberais de Murtinho com um pretenso mercantilismo que ele, na realidade, combateu (como por exemplo no caso da política de valorização do café). 259 260 d) O respaldo teórico da ortodoxia monetária de Murtinho – ou mais precisamente da medicação adotada para equilibrar a economia brasileira – foi a teoria quantitativa da moeda. Mas uma teoria apresentada numa forma sui generis que foi inspirada pelo seu conselheiro J. P. Wileman. É curioso que se admite que Wileman influenciou profundamente Murtinho, sendo elogiado pela sua “análise objetiva” e pelo fato de ter percebido “o papel do preço do café como fator determinante da taxa cambial” (Furtado), porém, por outro lado, Murtinho é criticado por não ter “entendido bem a função determinante do balanço de pagamentos sobre a taxa cambial” (Villela Luz), o que é algo contraditório. A utilização da fórmula quantitativa da moeda por Joaquim Murtinho foi asperamente criticada desde Vieira Souto. Uma crítica mais recente referiu-se à “convicção de Murtinho na teoria quantitativa da moeda, erigida em panacéia geral para cura de todos os males econômico-financeiros de todas as nações” (Ferreira Lima). Pode-se admitir que Murtinho não foi um grande teórico e mesmo que talvez ele tenha ficado algo desatualizado, mas se se quiser identificar os alicerces de suas argumentações, encontrar-se-ão os princípios da teoria econômica clássica, a começar pela lei da demanda e da oferta, com que ele explicou a dupla crise da economia brasileira. Não se deve esquecer que o grande livro de Irving Fisher, paradigma da teoria quantitativa, foi publicado em 1892. Sem dúvida, na época de Murtinho a teoria 260 261 quantitativa não havia assumido as sofisticações subseqüentes que Murtinho não podia imaginar. O que é peculiar nas demonstrações feitas Por Murtinho é que ele encara o valor da moeda sob o ângulo cambial, o que se pode explicar pelo apego dos adeptos do padrão -ouro à ligação das moedas com o ouro via taxa cambial, ou pela importância atribuída a esta taxa numa economia profundamente arraigada ao setor externo. Foi sumamente criticada e rejeitada a aplicação por Murtinho da teoria quantitativa no caso brasileiro, interligando o volume das exportações (tão importante para uma economia dependente do setor externo), o volume do meio circulante e a taxa de câmbio. A equação de Murtinho mostra que o valor da moeda, isto é, a taxa de câmbio, é o quociente entre o volume do meio circulante (Murtinho omite o fator velocidade de circulação da moeda) e o volume das transações, isto é, o valor das divisas produzidas pela exportação. Sem dúvida, a simplificação é facilmente criticável visto que a taxa de câmbio depende do conjunto de fatores que entram no balanço de pagamentos. A equação en tretanto era “operacional” constituindo-se num programa para o saneamento da moeda. Mesmo do ponto de vista teórico, ela podia salvar-se quando, dado um certo volume de exportações, ligava a taxa de câmbio ao volume da circulação monetária, pois, se, dentro da teoria quantitativa, a circulação determinava o nível de preços, chegava -se de forma indireta a uma ligação taxa de câmbio/preços – o que aproxima a posição de Murtinho, ainda que de 261 262 forma algo confusa, da teoria das paridades de poder de compra. Na realidade as oscilações do câmbio nem sempre correspondem à expansão ou à contração monetária: justiça seja feita, Vieira Souto percebeu muito bem o fato, ainda que o seu radicalismo o tenha levado também a exageros. Entretanto, independentemente da taxa de câmbio, o valor da moeda, ou seja o seu poder de compra era constantemente ligado ao volume da circulação monetária: a maioria dos teóricos no fim do século XIX pensaram dessa forma. O purismo de Murtinho chegou a um exagerado desnecessário quando ele sustentou o imperativo de voltar para a taxa legal de 1846, de 27 d/mil -réis. Era a aplicação rigorosa do padrão-ouro pelo reconhecimento da taxa “real” de 27 d. – um verdadeiro feitichismo, visto que o equilíbrio monetária e cambial podia realizar-se em outros níveis. De qualquer modo, o importante era que a fórmula de Murtinho implicava um programa interno de saneamento monetário e financeiro. e) Criou-se a imagem de um Murtinho nitidamente antiindustrialista, portanto, um retrógrado que desejaria manter a economia brasileira num estado primário, retardatário, imune a qualquer modernização e progresso. Uma análise mais objetiva demonstrará a injustiça de tal qualificação: a posição de Murtinho foi muito mais criteriosa. 262 263 Sem dúvida, não se pode dizer que foi um industrialista enragé. O seu apego ao liberalismo clássico e ao seu sub-produto – a divisão internacional do trabalho – levou-o a insistir na vocação do Brasil como exportador de produtos primários, vocação essa que, afinal de contas, tinha sido responsável pelo progresso registrado ao longo do século XIX. O comércio exterior constituía uma forte alavanca da economia, mas seria errado pensar que Murtinho tinha uma visão limitada. Já no seu Relatório de 1899 ele escreveu: “Uma balança comercial desfavorável nem sempre é sinal de decadência econômica em país em que ela se manifesta”. Na realidade ele tinha uma visão assaz correta da complexa realidade econômica e desde o primeiro momento em que imaginou um programa econômico para o Brasil, no Relatório do Ministério da Indústria em 1897, ele colocou como objetivo “facilitar comércio, indústria e agricultura”. Não obstante, a condenação mais contundente foi reservada ao antiindustrialismo de Murtinho, “seu repúdio exacerbado e ostensivo à industrialização” (Ferreira Lima). Mesmo críticos mais ponderados chegam a afirmações deste tipo: “O liberalismo de Murtinho e seus princípios darwinianos levaram -no a combater a incipiente industrialização que se processava no Brasil na época”. (Villela Luz). Em apoio a essa crítica, foi censurada a posição racista de Murtinho ao argumentar de modo muito infeliz que havia obstáculos raciais contra a implantação de indústrias no Brasil quando na realidade o progresso era estorvado por 263 264 fatores históricos. De fato, as teses racistas já tinham começado a brotar na segunda metade do século XIX (Gobineau, H.S. Chamberlain). Embora politicamente avançado, Murtinho não foi precisamente um pioneiro. No campo da economia estava ligado aos princípios clássicos do liberalismo econômico e da divisão internacional do trabalho que reservava ao Brasil um ligar privilegiado entre os países exportadores de produtos primários. É interessante observar, mais uma vez, as oscilações dos comentários entre a tradicional acusação de antiindustrialista e uma interpretação mais objetiva dos fatos. Um autor retifica: “Murtinho não era propriamente desfavorável ao desenvolvimento indus trial do Brasil... O que na realidade Murtinho mais condenava no processo industrial brasileiro era o alto custo de produção”. (Villela Luz). Tratava-se portanto de uma posição “econômica”: a utilização racional dos fatores de produção disponíveis em atividades de custo mais baixo. Este imperativo incide em todas as atividades econômicas e não constitui um pretexto para paralisar o surto industrial: “Temos necessidade de aumentar a produção do País, desenvolver suas indústrias e todas as outras fontes de riqueza, promovendo assim o seu progresso”. (Relatório 1901). Era preciso, pois, maximizar o uso dos fatores de produção disponíveis, sobretudo o do capital cuja escassez era patente. A exigência do custo baixo – preceito econômico básico – aplicava-se logo a todas as atividades e não 264 265 representava especial e exclusivamente uma restrição à produção industrial. Murtinho não foi muito feliz quando forjou a expressão “indústria artificial”, aconselhando a sua eliminação. Na realidade era melhor dizer “indústria ineficiente”. O fato é que a expressão “indústria artificial” se impôs como um sinal da aversão de Murtinho à expansão das atividades industriais. A tradução da expressão odiada foi dada pelo próprio Murtinho já em 1897: as industrias naturais são as “que têm condições de vida própria”. E em outro lugar Murtinho esclarece: “O que caracteriza uma indústria natural não é o fato de ter sua matéria-prima importada ou não, mas o ter capacidade de produzir o máximo resultado possível em relação ao capital empregado com o mais baixo preço em um regime de livre concorrência” (Relatório 1899). Pode-se revelar, atrás dessa posição, uma submissão talvez exagerada ao princípio da divisão internacional do trabalho que, em nome da eficiência, relegava o Brasil, inexoravelmente, no grupo dos países produtores e exportadores de produtos agrícolas. Em nome desse princípio, Murtinho insurge-se contra a proteção industrial através da desvalorização cambial e das tarifas alfandegárias. De fato, dentro do conceito básico de eficiência admitia uma dose de pragmatismo - racional e equilibrado. "Não é possível, nem conveniente, sobretudo numa época de grandes abalos, provocar uma transformação brusca no nosso vicioso sistema industrial, suspendendo instantaneamente proteções 265 266 oficiais, à sombra das quais se organizaram e vivem muitas industrias artificiais entre nós". (Relatório 1899). Murtinho não estava propenso a pensar muito numa verdadeira política de protecionismo industrial, mas é míster observar que o traço característico não era propriamente o antiindustrialismo e, sim, o dogma da eficiência econômica que ele quis impor, com o mesmo rigor, à agricultura, ao café, dentro de um modelo de liberdade, sem "despotismo econômico". (Relatório 1897). *** A política de Murtinho lastreada na fórmula quantitativa visando à valorização da moeda nacional e fundamentada legalmente no Acordo de funding celebrado em 1898 com os credores externos, previa em primeiro lugar a retirada da circulação de um montante de 115 mil contos de réis. O programa foi implementado com bastante rigor. Não obstante, não se chegou a este nível de contração monetária primária. Houve n a realidade uma retirada entre 98 e 104 mil contos, ou seja, uma redução do meio circulante de 12-13%. Uma perda sensível de liquidez, visto que os meios de pagamento acompanharam a evolução, diminuindo cerca de 25%. O sistema adaptou-se através da queda dos preços. Talvez o corte monetário tenha sido violento demais, e Murtinho é apresentado como um cirurgião cruel que operou sem nenhuma sensibilidade para com o 266 267 paciente. Mas não lhe era essa a intenção: falando da contração monetária, ele disse que "é uma operação em cuja realização a paciência, o total, o critério e a prudência devem andar ao lado da coragem, da tenacidade e da perseverança". (Rel. 1899). Talvez estas últimas características tenham prevalecido demais - uma questão de dosagem. Mas Murtinho não o considerava assim, pois, no início da sua experiência escrevia: "Um resgate brusco, trazendo como conseqüência uma valorização rápida do meio circulante, traria grandes prejuízos a certas classes sociais e especialmente aos produtores nacionais" (ibidem) - sem dúvida pensando primeiramente nos cafeicultores. Outrossim, Murtinho achava que "a emissão de papel-moeda criando valores potenciais provoca a formação de negócios, alarga de fato a circulação aumentando-lhe o valor primitivo durante o tempo de existência daqueles valores potenciais" (ibidem), quase justificando uma política expansionista; só que a expansão devia ser em moeda conversível e, a seu ver, a conversibilidade devia ser alcançada no nível do valor legal de 1846. A imposição da conversibilidade podia, contudo, justificar-se naquele tempo quando o sistema bancário não era disciplinado como freio e garantia de equilíbrio. Acho que é um aspecto que mereceria destaque: a moralização do sistema bancário através do padrão ouro. Uma lição interessante. O próprio Vieira Souto, o grande crítico de Murtinho, considerou correta a retirada de dinheiro da 267 268 circulação quando esta é superabundante - porém avaliou como equilibrada a situação que se apresentava no início da gestão de Murtinho e achou até q ue o equilíbrio se restabelecera desde 1894. Talvez Murtinho tenha exagerado os perigos da inflação, mas o fato é que depois de um período de calmaria em 1894/95, os preços tinham voltado a subir. Quanto à idéia esdrúxula de que ao invés de queimar o papel-moeda, o governo podia proceder a investimentos produtivos, seria uma estratégia "tipográfica" de desenvolvimento. Murtinho a repeliu decididamente. A contenção monetária devia encontrar um sustentáculo no equilíbrio das finanças públicas para eliminar o foco expansionista representado pelo déficit orçamentário, porém este não exerceu sempre papel nocivo durante o primeiro decênio da República, embora a execução orçamentária não tenha apresentado resultados brilhantes. No quadriênio 1898/1902 apenas dois exercícios registraram magros superávits, 1899 e 1902. No total, um déficit líquido de 88,4 mil contos de réis. Relacionado à receita, isto representava apenas uma proporção de quase 6% - mas era ainda déficit. Do lado da despesa, a melhora parece mais níti da em 1901/1902 mas o período foi de deflação de modo que em termos reais não se observa nenhum progresso. Do ponto de vista da formação de capital do País, podia se lamentar a pouca importância da parcela da despesa do governo destinada a esse fim, mas es sa situação caracterizou toda a década e se prolongou até 1903. 268 269 Do lado da receita, reforçada pelo aumento do imposto de consumo sobre vários produtos e pelo aumento da incidência do imposto do selo, bem como do importo de importação com a cota em ouro (a partir de 1900) – porém prejudicado pela ligeira retração das importações – o progresso mais acentuado (em termos reais) apareceu apenas em 1902. Obviamente, esses aumentos proporcionaram a Murtinho opositores entre consumidores, importadores, etc. Entretanto, a crítica de que o aumento da carga tributária contribuiu para a alta do custo de vida não tem nenhum cabimento. Ela é rejeitada pelo observador da evolução dos preços, como se verá a seguir. O próprio Murtinho repeliu as queixas pela “carestia de vida insuportável” (Rel. 1901), exibindo uma lista de 333 produtos que, entre 1899 e 1901 tiveram na quase unanimidade baixa de preços. É bastante estranho que alguns críticos, inclusive recentes, em sua ânsia de denegrir à tout prix a reforma de Murtinho, se queixam da alta de preços e do crescimento do custo de vida, ao mesmo tempo que condenam a política deflacionária de Murtinho. A lição, ainda válida, é que muitas vezes o desejo de criticar supera a objetividade. e) As informações sobre a evolução dos preços no período são escassas e precárias. Um trabalho com levantamentos em anos selecionados (Ónody) fornece índices apenas para 1896 e 1900, registrando uma queda de 7,4%, mas o período inclui 2 anos anteriores a Murtinho e não alcança os últimos 2 anos de sua gestão. 269 270 Ademais, abrange somente a variação dos preços dos produtos importados. Outro levantamento (Buescu) limitado aos anos terminais do período para 20 produtos fornece a informação de uma queda global de 33,0% entre 1898 e 1902, obviamente índice não ponderado. Outras informações algo mais detalhadas, ano a ano, chegam a conclusões parcialmente discrepantes, mas que convergem no sentido global já indicado, de uma baixa continuada dos preços. Corroborando as várias fontes, o resultado final indicaria uma queda de 26 a 27% - uma deflação nítida. Ao avaliar-se a contração monetária acontecida no período deve-se levar em conta essa valorização da moeda. Com efeito se, em termos nominais, os meios de pagamentos se reduziram 25% entre 1898 e 1902, em termos reais, com uma deflação de 27%, a variação real é positiva de 3%. Isto quer dizer que a liquidez do sistema se recompôs em outro patamar. Mas, tampouco isto quer dizer que a adaptação ao novo nível se tenha feito sem sacrifícios. *** Contestada ou não a medicação proposta por Murtinho, o fato é que ao longo do período presidencial de Campos Salles, assistiu-se a uma substancial valorização cambial: a libra esterlina viu cair a sua cotação de 33,380 mil-réis em 1898 para 20,237 mil-réis em 1902. Essa queda de 39% de sua cotação pode ser 270 271 cotejada com a queda de 27% dos preços internos. Murtinho calculou a taxa de câmbio “teórica” a partir de sua equação quantitativa e acertou em grande parte, porém se vê que a valorização cambial foi mais forte do que a do poder de compra interno da moeda. De qualquer forma, Murtinho deve ter se decepcionado por ter a taxa de câmbio real ficado ainda longe da meta de 27 d/mil-réis (ou 8,889 mil-réis por libra esterlina). Evidentemente, além do problema da paridade dos preços intervinham os vários fatores que afetavam o balanço de pagamentos – nisso os críticos de Murtinho tinham razão. Murtinho é acusado de não ter prestado atenção aos problemas do balanço de pagamentos, ao passo que Wileman, seu consultor, o fazia. Na realidade, Murtinho cuidou, sem indicação explícita, de vários elementos atuantes sobre o balanço de pagamentos, a começar pela suspensão por 13 anos do serviço da dívida externa conforme o mencionado Acordo de 1898. O saneamento da economia nacional devia atrair capitais estrangeiros sob forma de empréstimos e investimentos, como de fato aconteceu mais tarde. A reconquista da confiança externa foi um elemento muitas vezes ignorado ou desprezado pelos críticos. Por outro lado, a balança comercial devia melhorar graças ao freio posto às importações via elevação do imposto de importação bem como – na visão de Murtinho – graças à expansão da receita de exportação via fortalecimento do mercado cafeeiro. É curioso constatar que alguns críticos acusam Murtinho por não ter prestado atenção ao preço do café 271 272 (Villela Luz). Mas então que queria dizer o empenho de Murtinho em restringir a produção do café a fim de fortalecer-lhe o mercado? O que Murtinho subestimou foram as forças do mercado, não apenas do lado da demanda, mas também do lado da oferta. A valorização cambial não mudou a tendência decadente das cotações mundiais e o esperado equilíbrio do mercado não se restabeleceu. As vozes favoráveis a uma intervenção no mercado se intensificaram, mas parece injustifica da a interpretação de que foi a política de Murtinho responsável pela subseqüente adoção da intervenção (política de valorização que será iniciada pela convenção de Taubaté, em 1906). Sem Murtinho, o mercado de café ter-se-ia recuperado por si próprio? A queda das cotações tinha começado em 1890 e a alternativa teria sido continuar a forte desvalorização cambial da moeda nacional. Mas valia a pena onerar a comunidade inteira, provocando uma redistribuição da renda, via câmbio, a favor do setor cafeeiro? É e stranho que tais posições foram adotadas por comentaristas que se pretendiam partidários da modernização da economia brasileira. Embora um tanto “darwinista”, a posição de Murtinho foi mais “econômica”, visto que acentuou a importância da eficiência e da diminuição dos custos: “A redução (da produção) tem-se de dar infelizmente pela seleção que elimina os mais fracos, deixando subsistir os mais fortes”. (Rel. 1901) Como não podia deixar de ser, tal posição garantiu a Murtinho o ódio de mais uma classe, a dos cafeicultores. 272 273 O fato é que, apesar da permanência da cotação do café em níveis baixos, a sua receita cresceu paulatinamente. Isso foi possível graças a um grande esforço quantitativo, mas evidentemente resultou uma forte perda sob o ângulo das relações de troca. Murtinho quis evitar isso – sem sucesso. *** A política econômica de Joaquim Murtinho foi fortemente criticada devido a seus efeitos negativos a curto prazo: a crise dos bancos de 1900 e, de modo mais geral, a pressuposta depressão, em dimensões catastróficas, da economia nacional. Isso exige alguns reparos. i) A crise bancária foi uma realidade. O que está em discussão é a sua extensão, bem como a sua causa mais profunda. Quanto ao primeiro aspecto, houve como em todo “episódio Murtinho” exageros. Foi dito que “o pânico bancário em 1900... quase destruiu o sistema monetário brasileiro” (Peláez-Suzigan), embora este, passada a crise, voltasse a funcionar normalmente, um ano depois. Outro comentário excessivo diz que “os bancos nacionais faliram quase todos”. (Ferreira Lima). Outro9s, mais comedidos, dizem que “uma grande crise bancária em setembro de 1900 levou à falência quase metade do sistema bancário” (Villela-Suzigan). Roberto Simonsen cita a falência de 17 bancos, sem definir o tamanho do abalo – apenas observa que o feito colocou “em penosa situação as classes produtoras”. Na 273 274 avaliação ponderada de Calógeras, se chega a apenas 9 estabelecimentos bancários. Sem dúvida, o abalo não era desprezível, atingindo algumas instituições de base do sistema financeiro. A crise era inevitável face à perda aparente de liquidez. Entretanto, pode-se fazer um exercício cujos resultados são um tanto surpreendentes: partindo da base de 1889, o montante dos meios de pagamento, em termos reais, teria chegado em 1900 para um nível superior ao de 1889. Até 1902 subiu ainda mais. Em outras palavras, apesar do impacto contracionista, a política de Murtinho não teria chegado a anulas os excessos expansionistas ocorridos entre 1889 e 1898. Murtinho procedeu criteriosamente ao enxugamento do sistema, ciente do preço a pagar e dos riscos a assumir, assinalando “os perigos que (o resgate do papel-moeda) pode trazer, se não for executado com grande prudência e extraordinário critério. O perigo está em que a redução do papel-moeda traz como conseqüência uma redução na amplitude da circulação, na extensão do aparelho circulatório, que se manifesta por grande diminuição de negócios”. (Rel. 1899). Talvez o empenho saneador tenha ultrapassado às vezes os limites da prudência, mas a alternativa podia parecer a Murtinho – e a outros – ainda pior. Murtinho, entretanto, insistiu em que a origem do mal residia nos abusos feitos durante o período de liberdade exacerbada após 1889. A crítica, avalizada pela autoridade de Calógeras, refere-se em primeiro lugar ao Banco da República do Brasil que “conservou os germes da 274 275 destruição criados pela gestão desastrosa, dilapidadora destas duas instituições (os bancos que fusionaram no Banco da República)” (Calógeras), aduzindo, ainda, à “fraqueza profissional da administração” do Bando da República. (ibidem). Tendo sido vedadas novas emissões de acordo com a lei de 1899, os bancos não tiveram mais meios de refazer sua liquidez a fim de atender a seus compromissos. De fato, as autoridades monetárias não ficaram insensíveis, mas na opinião de Calógeras, a procura de uma solução foi torpedeada “por uma campanha de sábias indiscrições”. Finalmente, às pressas, foi arquitetado um plano de emergência de restauração financeira (setembro de 1900) para acudir aos bancos em apuros. Enfim, a crise foi superada, mas sem dúvida não seria lícito minimizar o trauma sofrido pelo sistema. Até que ponto o saneamento se justificava em tal intensidade? Murtinho, obviamente, defenda as pro vidências tomadas: “A crise aguda que se manifestou ultimamente no nosso mercado monetário veio, pois, mais uma vez trazer a demonstração do acerto da política e dos resultados fecundos que ela trouxe ao país e, se é verdade que ela acarretou alguns sofrimentos, não é menos verdade que esses sofrimentos, como muitos outros, têm vantagens incontestáveis”. (Rel. 1901) E Murtinho aproveita para insistir em que, se a crise foi devida à notável diminuição do crédito e à ruína de muitos estabelecimentos bancários, a raiz dos males residia “nas grandes emissões anteriores de papelmoeda” (ibidem). 275 276 Pouco tempo depois, uma autoridade como Calógeras veio fornecer um irrestrito atestado a favor dos acontecimentos: “A derrocada dos bancos de 1900 produziu evidentemente benéficos: o saneamento econômico e financeiro da praça do Rio, e dos principais mercados em relação com ele, exigia esse preço”. ii) Parece fora de dúvida que a forte contenção monetária, financeira e creditícia não limitou seus efeitos à crise dos bancos, mas toda a economia nac ional pode ter sido afetada. Há, entretanto, a que parece, exageros de avaliação e não se deve esquecer que o governo Campos Salles foi submetido por várias razões – sobretudo políticas – a críticas duras que, em perspectiva do tempo, não dão impressão de isenção e objetividade. Um juízo mais ponderado diz com prudência: “É provável que jamais se consiga avaliar adequadamente os efeitos dessa política de contenção, mas é fora de dúvida que esse período foi um dos mais críticos na história econômica do Brasil”. (VillelaSuzigan) Seria irrealista uma defesa de Murtinho negando-se os inevitáveis efeitos amargos da política de saneamento. De fato, essa ressalva se pode fazer a respeito de outras experiências mais recentes no Brasil. As próprias fontes coevas – salvo as dos inimigos declarados do governo – embora reconhecendo os aspectos depressivos do momento, não chegam a clamar contra uma catástrofe de dimensões insuportáveis. Vejamos o Retrospecto Comercial do Jornal do Commercio de 1900 – uma publicação ligada aos 276 277 interesses das classes comerciantes, portanto pouco propensas a indulgências para com Murtinho: “O ano passado (1900) foi ainda menos satisfatório do que o anterior e as atribulações do comércio, tanto de importação como de exportação foram persisten tes e agudas”. Não deixa de apontar a “atmosfera da desconfiança” – que abre uma janela sobre a impopularidade da política de Murtinho. Outro trecho é mais contundente, referindo-se à crise, “a mais pesada de que tenho lembrança durante mais do que um quar to de século”. Isso se escrevia no auge da crise, que foi no ano de 1900. No ano seguinte o tom já é mais ameno: “Acre ditamos ter havido melhora no movimento comercial durante o ano findo, não obstante as reclamações mais ou menos persistentes”. Referindo-se aos negócios de importação o Retrospecto esclarece que as queixas são devidas mais a “esperanças exageradas” e menos à “verdadeira diminuição dos negócios”. O leitor impar cial dificilmente encontrará nestes textos a imagem de uma débâcle da economia. As tormentas se acalmaram e sente-se a normalização, embora com a persistência do trauma provocado pela crise: “A estabilidade do câmbio durante o ano findo removeu notavelmente as queixas do nosso comércio importador: mas tão enraizado se mostrou o costume de referirmo-nos à crise tremenda pela qual o país passa que em quase todos os documentos publicados, dos mais variados objetivos, consta tal frase sombria.” A frase foi retomada, retocada e magnificada pelos comentaristas ulteriores. 277 278 Embora seja válida a observação citada de que “jamais se consiga avaliar adequadamente os efeitos de política de contenção”, vale juntar alguns indícios. Um indicador global (embora precário) que seria a taxa de crescimento do PIB no período, não acusa nenhuma derrocada fatal, durável. De acordo com vários pesquisadores, o PIB em valores constantes teria crescido muito pouco em 1899; teria caído, também pouco, em 1900, registrando depois excelentes taxas de crescimento: 11% em 1901, 7% em 1902. (Goldsmith) Estas últimas taxas parecem exageradamente altas, mas seria ainda mais gratuito sustentar que as taxas teriam sido negativas. Em 4 anos (1899/1902) o crescimento foi de 18,7% ou seja à razão de 4,4% ao ano. Na década anterior (1889/1898) a taxa média anual não havia passado de 1,5%. Onde fica a recessão? Numa economia predominantemente agrícola e ainda com setores não monetizados, a crise monetária podia ser amortecida. O importante era o comportamento da agricultura de exportação, visto que o coeficiente de exportação era muito elevado provavelmente 20 a 25% do PIB. Mas, com todos os percalços encontrados, a exportação teve um com portamento razoável: depois de um biênio de estagnação – mas não de queda – em 1898/99, a receita de exportação subiu 30% em 1900 e 22% em 1901 e caiu apenas 10% em 1902, situando-se ainda em nível bastante elevado. Não se deve esquecer que o Brasil se encontrava em pleno subciclo da borracha, com volumes exportados crescentes e cotações em alta. 278 279 Do lado das importações, a retração é mais visível, embora se pudesse esperar uma ativação graças à valorização da taxa de câmbio. O valor da importação caiu paulatinamente, porém não em grandes proporções, entre 1899 e 1901; em 1902 voltou praticamente para o nível de 1898. Sinais recessivos, embora amenos, aparecem no movimento do porto do Rio de Janeiro, em 1900/1901, tanto no longo curso como na cabotagem, porém em 1902 já se tinha voltado para o nível de 1898 em quase todos os casos mencionados (Lobo). O movimento da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, também, está longe de oferecer um cenário de débâcle: entre 1898 e 1900 o volume de cambiais negociadas aumentou: o do títulos da dívida púbica caiu de 1899/1900, mas acusou forte aumento em1901/1902; houve igualmente queda nas transações com ações e debêntures em 1900/1901 e recuperação em 1902 (ibidem). Pode-se interpretar também como sinal recessivo a diminuição das importações de equipamentos in dustriais; entretanto, apenas o ano de 1901 apresentou resultado evidentemente negativo. Por outro lado, pod ese registrar como fator de animação da economia, o fato de que se intensificara a entrada de investimentos estrangeiros. (Castro). Quanto à “onda de desemprego e de greves” de que se falou, parece ter havido algum exagero. De fato, a avaliação deveria referir-se ao setor industrial urbano e a indústria representava uma parcela mínima do PIB 279 280 (12% em 1902) e conseqüentemente do emprego. Em 1907 o número de operários industriais era de 151 mil – o que não representava mais de 0,7% da população total. Um levantamento mais cuidadoso dos movimentos grevistas poderia eventualmente detectar maiores tensões durante a presidência Campos Salles, mas num panorama superficial dos primeiros 10 anos da Repú blica, tal agravamento não aparece (Carone). iii) Para finalizar, foi uma política de um antiindustrialista ferrenho? Da mesma forma poder -se-ia alegar que Murtinho foi um adversário ferrenho da economia cafeeira na medida em que ela seguia padrões antieconômicos. Outrossim, Murtinho seguiu a tendência histórica de aumentos da proteção alfandegária – mesmo se era por razões tributárias e não protecionistas. Com a reforma de 1900, com a elevação das alíquotas e a aplicação da cota-ouro de 20% e depois 25%, a indústria passou a ter uma forte proteção, superior à dos regimes anteriores. Sem dúvida, não se tratava de uma política industrialista explícita, mas esta tardou a aparecer no Brasil e a sua ausência não deve ser debitada a Murtinho. Mas por outro lado, se Murtinho quis acabar com o regime preferencial para o café, não lutou ele por uma nova alocação de fatores de produção que beneficiaria indiretamente o setor industrial? Se não se pode creditar a Murtinho uma verdadeira política industrialista, as suas reformas beneficiaram a economia brasileira como um todo, inclusive o ainda frágil setor industrial. Numa 280 281 perspectiva mais ampla, ultrapassando os limites do período presidencial Campos Salles, os benefícios iriam aparecer claramente. *** Houve, sem dúvida, insatisfações, protestos, vítimas. Não se deve esquecer o clima de liberdade que acompanhou as reformas de Murtinho. Na sua última mensagem, Campos Salles lembrou algo melanco licamente: “Nunca atravessamos uma fase em que tivessem sido mais livres, mais ilimitadas, mais veementes e talvez mais sediciosas as ex pressões da imprensa e da tribuna”. E é bom lembrar também que o Retrospecto Comercial de 1901 quando fala das agitações de rua, esclarece que estavam ligadas à sucessão presidencial. Um cronista competente descreveu da forma seguinte os acontecimentos: “A hostilidade contra o governo havia atingido seu máximo (1901) e tudo era levado como pretexto para fazer-lhe oposição. Agitações sem grande valor, contudo, exigiram a intervenção enérgica da política do Rio. Essas notícias exageradas e comentadas no Brasil e no estrangeiro, aumentavam as facilidades de ação dos agitadores, auxiliados pela violência das discussões parlamentares”. (Calógeras). E qual era a explicação no plano das reformas econômicas de Murtinho? “Todas essas inovações fiscais e sobretudo o espírito draconiano dos regulamentos que determinaram o modo de percepção e de 281 282 supervisão, provocaram sobre as praças comerciais do Brasil um tollé geral, que foi até a insurreição”. (ibidem) Em outras palavras, válidas para os nossos dias: a tradicional resistência do corpo social a reformas de gosto amargo a curto prazo, esquecendo as vantagens de longo prazo. De tal miopia parecem ter sofrido alguns comentaristas mais recentes. Não se fale mais das críticas exacerbadas – e gratuitas como as que afirmam que “as medidas postas em prática por Murtinho se trans formaram para nós em fatores de retrocesso por encerrarem caráter antinacional”. (Ferreira Lima, 1976). Parece linguagem de comício eleitoral, usando co nhecidos chavões. Outros críticos, muito mais competentes, pecaram entretanto por um certo radicalismo no sentido de censurarem em Murtinho uma política contrária a suas posições teóricas – elas mesmas de valor relativo, como sempre se verificou na história do pensamento econômico. Os críticos enfatizaram seja o seu fraco embasamento teórico, seja a inocuidade das providências adotadas, seja, sobretudo, os seus efeitos nocivos a curto prazo. O fato é que Murtinho atingiu grande parte de suas metas: contenção monetária e creditícia, equilíbrio das finanças públicas, valorização cambial. Isso com seus ingredientes negativos talvez inevitáveis: crise bancária, recessão, rigor do programa de saneamento. Entretanto, o melhor teste de política de Murtinho 282 283 deveria ser feito através dos seus efeitos numa visão de prazo mais longo. Calógeras, com isenção, lembrou os percalços de curto prazo, sem deixar de assinalar os ganhos subseqüentes: “Com o risco de parecer insen sível e duro, tenho que confessar lealmente minha profunda convicção de que, devidamente pesado s os males e as vantagens, a derrocada dos bancos de 1900 produziu resultados evidentemente benéficos...” A política de Murtinho desagradou a gregos e troianos, pois todos os grupos tenham uma ótica limitada aos próprios interesses imediatos: os consumidores rejeitaram o aumento dos impostos, os empresários a redução do crédito, os cafeicultores a valorização cambial – e assim por diante. Entretanto o estadista deve possuir a visão “telescópica – a capacidade de enxergar os efeitos finais a longa distância. E a coragem moral para enfrentar as críticas. Vieira Souto ironizou as promessas não cumpridas de Murtinho: renascimento do crédito público, desenvolvimento do crédito público privado, maior atividade da circulação econômica, aumento da riqueza. Isso foi escrito em 1902 e Vieira Souto podia ganhar esperando apenas alguns anos para verificar a realização das promessas de Murtinho. Pois, justamente a partir de 1903 e durante uma década, até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o Brasil passou por uma fase de expansão e equilíbrio econômicos que foi, com propriedade, rotulada como “Reerguimento Econômico” – fase que deve ser creditada ao trabalho preparatório de Murtinho. Cite-se apenas rapidamente os sucessos regis283 284 trados: equilíbrio monetário e financeiro, fortalecimento da posição cambial, confiança do mercado financeiro internacional, fortalecimento do crédito externo, entrada de investimentos estrangeiros, expansão das exportações e importações, manutenção de saldos comerciais elevados e boas taxas de crescimento do PIB e, mais especialmente, do produto industrial (Buescu). Pode -se dizer que o único fracasso foi a continuada expansão do setor cafeeiro que teve como conseqüência a adoção das políticas de valorização à qual Murtinho se tinha oposto, de modo que seria uma distorção injusta – como alguns o fizeram – responsabilizar a política de Murtinho de um liberalismo puro demais, pelos desvios mercan tilistas da defesa do café que devia prolongar-se até muito tempo depois da morte de Murtinho. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Carmen Lícia Palazzo de. Dívida externa: o empréstimo de consolidação de 1898. in: Revista de Informação Legislativa, Brasília, abr./jun., 1989. ANDRADA, Antônio Carlos Ribeiro de. Finanças e Financistas de 1822-1922. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1922. BUESCU, Mircea. Evolução dos vencimentos públicos federais no início da República. in: Verbum, Rio de Janeiro. PUC, 1976. 284 285 BUESCU, Mircea. Capítulos da História dos Preços 1889-1913. Rio de Janeiro, APEC, 1988. BUESCU, Mircea. 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(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(431): 37-56, Fevereiro 1991). 288 289 ARRANCO OU TRANSIÇÃO (1930/1960) Passou discretamente, no ano passado, uma comemoração de grande significado para a história econômica do Brasil. O semicentenário da constituição da Companhia Siderúrgica Nacional (Volta Redonda), criada pelo Decreto-lei 3.002, de 30 de janeiro de 1941 (1). A importância estratégica da empresa, que devia entrar em funcionamento apenas em 1946, não escapou aos contemporâneos. Ainda em 1941, o presidente Vargas considerou-a um “passo decisivo para a industrialização e a independência econômica”. Na mesma época (1942), Roberto Simonsen a entendia como “o início de uma nova era industrial”. Realmente, a criação da CSN não representa apenas uma etapa significativa na evolução industrial do país, um símbolo da decolagem econômica, mas também um paradigma do desenvolvimento na época, sob a égide de nacionalismo do intervencionismo estatal, do autarcismo e do industrialismo. Mas adiante, reservarei maior atenção a esses aspectos típicos daquele momento histórico. Por enquanto, quero referir-me a Volta Redonda como marco do que teria sido o arranco brasileiro. 289 290 Uns 20 anos atrás, quando me dedicava com entusiasmo aos métodos quantitativos em história econômico, empreendi um exercício quantitativo para a identificação cronológica do arranco brasileiro (2). O exercício, com todas as limitações do método e dos escassos dados estatísticos, devendo, portanto apelar para extrapolações e estimativas, sustentava-se, não obstante, na coerência das conclusões, em cotejo com informações qualitativas. A demonstração partia do esquema do arranco, tal como apresentado no livro clássico do W. W. Rostow (3). Como se sabe, ele afirmou que o arranco se caracteriza por três condições inter-relacionadas (uma simplificação): taxa de investimento produtivo superior a 10% da renda nacional; crescimento elevado de um ou mais setores manufatureiros básicos; existência ou rápida eclosão de um arcabouço político, social e institucional favorável ao desenvolvimento. Tal esquema constitui um bom roteiro para análise, de modo que voltará a aparecer mais adiante na exposição, embora ele deva ser aceito de maneira circunstanciada: antes de mais nada pode-se dizer que os condicionamentos são reciprocamente condicionados – por exemplo, a elevada taxa de formação de capital condiciona o crescimento do PIB, mas ela por sua vez pode ser elevada graças ao alto nível do PIB. Na falta de informações diretas sobre a evolução secular da taxa de formação de capital, o exercício quantitativo consistiu em observar a partir de que data aquela taxa podia ser superior a 10% do PIB, descontada 290 291 a taxa de depreciação, que não podia ser muito elevada numa economia predominantemente agrícola. Estim ei primeiro as taxas de crescimento do PIB, de forma indireta, de vez que as contas nacionais oficiais come çaram praticamente apenas na década de 50 (4). As estimativas assim calculadas foram razoavelmente confirmadas pelos levantamentos oficiais ulterior es (5). A fim de passar das taxas de crescimento do produto para as da formação de capital foi necessário extrapolar o valor da relação capital/produto. Ora, nas contas nacionais, após 1947, essa relação apareceu como aproximadamente de valor 2. E, por razões estruturais, era quase impossível ter sido maior nos anos antecedentes. Portanto, com a relação capital/produto de no máximo, 2 e com taxas de crescimento do produto inferiores a 5% até a década 1940/50 (6), foi só nesta década que a taxa liquida de formação de capital podia ter ultrapassado o limiar rostowiano de 10% (7). Isso me permitiu considerar, algo super ficialmente, que o arranco brasileiro ocorrera no decênio 1940/50 (8) ou, rejeitando o período desfavorável da guerra, em 1945/50. Dessa forma – para voltarmos à data comemorativa – podia considerar a criação da Volta Redonda como uma indicação ou pelo menos um símbolo do arranco. *** Entretanto, o arranco, como qualquer processo histórico, mesmo quando se trata de uma assim chamada 291 292 revolução, apresenta-se como um processo de evolução lenta, contínua, mesmo se mais acelerado durante um certo período. Segundo o critério adotado, o momento crítico da mudança teria se cristalizado em 1945/50, porém a preparação desse momento vinha de longe: já assinalei que, para haver uma certa capacidade de formação de capital, a economia nacional devia en contrar-se num patamar razoavelmente elevado em termos de taxa de crescimento e estruturas sócio -políticas e econômicas (mais especificamente em termos de grau de industrialização). Como qualquer processo histórico o arranco não surgiu ex nihilo, nem se podia completar instantaneamente ou num rápido lapso de tempo. Ao observar a série secular das taxas de crescimento do Brasil, no século XX, constatava-se que durante quase o primeiro meio século flutuaram em torno de 4% ao ano (salvo nos períodos de crise: a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão). Ademais, o processo de industrialização foi também de longo prazo: excluindo os dois períodos de crise mencionados, o setor industrial acusou taxas de crescimento superiores ao conjunto da economia – quer dizer, ele aumentou paulatinamente sua participação no produto global. Deixando os aspectos quantitativos do arranco e considerando os que se referem aos condicionamentos qualitativos do arranco (o setor político dinâmico, a motivação nacionalista e autárquica, o intervencionismo como instrumento desenvolvimentista), podemos admitir que esta fase primitiva do arranco começou nos anos 30, 292 293 mais especificamente após a passagem dos efeitos negativos da Grande Depressão. Alguns historiadores sugerem que a revolução de 1930 representa o marco de surgimento do Brasil moderno. Do ponto de vista econômico, a modernidade consistiu no abandono do modelo, já esgotado, de exportação de produtos primários e na adoção mais ou menos explícita do modelo industrialista: uma passagem lenta e às vezes hesitante, a aplicação de decisões ambivalentes, favo recendo às vezes o modelo antiquado, porém cada vez mais o modelo da modernização. Parece, portanto, aceitável a adoção de uma periodização – arbitrária como qualquer outra – que fixaria o arranco ou melhor, a transição no período de 30 anos de 1930 a 1960, um lapso de tempo praticamente da mesma ordem que os detectados por Rostow para os países ocidentais. Adotando por hábito tradicional subperíodos decenais, a periodização compreenderia: - os anos de 1930 a 1940; o surgimento das condições mais nítidas da transição; - os anos de 1940-1950: a marcha mais resoluta para o novo modelo; - os anos 1950-1960: a consolidação do novo modelo. Contudo, por mais que se queira compartimentar a evolução, é difícil isolar o período selecionado dos seus antecedentes. Se antes de 1930 a taxa de formação de capital era inferior a 10% da renda nacional, esta de qualquer forma aumentava, nos anos de normalidade, a 293 294 taxas ligeiramente superiores à taxa de expansão demográfica; logo resultava num pequeno crescimento da renda per capita. No produto real, como foi assinalado, aumentava a parcela relativa da indústria: na véspera da Primeira Guerra Mundial havia uma razoável produção industrial nos setores alimentício e têxtil e, nos anos 20 surgiram avanços na produção siderúrgica e do cimento. Tinha-se constituído uma pequena rede ferroviária e depois da guerra desenvolveu-se a rodoviária. A expansão do setor cafeeiro propiciou em grande parte este progresso, incluindo a formação de uma infra-estrutura bancária e comercial e o surgimento de uma classe empresarial razoavelmente forte. Por outro lado, as mentalidades haviam evoluído num sentido mais adequado ao desenvolvimento econômico. O protecionismo, já atuante no século XIX, se tornou mais insistente e menos fiscalista, mesmo no período de forte liberalismo entre a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão. O nacionalismo, eventualmente econômico, se manifestou já no início do século, por exemplo com Alberto Torres; as idéias foram adotadas pelo tenentismo que assumiu também posições de intervencionismo estatal, embora sem formulações muito nítidas. A Grande Depressão, no limiar da época em pauta, acentuou por motivos estratégicos, como em todo o mundo, a ênfase no papel do Estado na direção da economia e a tendência para o autarquismo, O crescimento econômico ficava ligado à expansão da indústria. O industrialismo, já detectado no pensamento de Rui Barbosa, firmou-se, como por 294 295 exemplo, nas idéias de Amaro Cavalcante e de Serzedelo Corrêa ou no comportamento do empresário Jorge Street e, mais tarde, de Roberto Simonsen. Vale ainda assinalar, na véspera desse período de transição, a criação sintomática do Centro das Indústrias de São Paulo. Foi neste ponto que, sob o impacto da Grande Depressão e das políticas daí decorrentes, bem como o da mudança do regime político, é lícito considerar iniciado o período de 30 anos rotulado como arranco ou transição. *** Seguindo a periodização adotada, tratarei agora do primeiro subperíodo: abandonando a rígida divisão decimal, seria válido considerar o intervalo de 1932, fim da Grande Depressão no Brasil, a 1939, início da Segunda Guerra Mundial. Como já foi apontado, este intervalo ainda não se enquadra no arranco propriamente dito quanto ao critério da taxa de formação de capital, mas pelas características a serem apontadas mais adiante, inclui-se no conceito de transição: mudança da estrutura sócio-política, ênfase de novos enfoques na condução da política econômica, sinais de substituição do antigo modelo exportador pelo modelo industrialista. É importante assinalar a sensação de renovação que se sentiu quando da instalação do novo regime político em 1930 – talvez um impacto de esperança ou simples desejo de transformação para melhor, tal como se manifestara 40 anos antes, por ocasião da procla 295 296 mação da república. Essa transformação se fez ao longo da década, sob a égide dos princípios que dominaram o pensamento econômico ocidental depois da Grande Depressão. Tal como a Primeira Guerra Mundial abalou a confiança na ordem política do mundo liberal, a Grande Depressão solapou as esperanças de uma ordem econômica baseada no liberalismo. Na confusão criada pela Depressão, os países buscaram soluções próprias de defesa, o que agravou a compartimentação da economia mundial. O colapso do comércio internacional levou à procura de soluções autárquicas, justificadas cada vez mais pela deterioração do cenário político precursor da guerra. O quadro ideológico dominado, portanto, pelo autarquismo, peno nacionalismo econômico, pelo inter vencionismo estatal. Foi sob o império destes princípios, que se deu a renovação. Apesar das restrições que podem ser feitas a esses princípios, deve-se admitir que, nas circunstâncias do momento, tiveram efeitos bastante benéficos para o desenvolvimento econômico do País. Isso não quer dizer que devem ser elevados ao nível de paradigmas da política econômica, porém é preciso não esquecer que se tratava de um período de crise tanto política como econômica. Não obstante, talvez seja enfática demais a alegação de um autor de que “o ano de 30” marca o início da “Revolução Nacional Brasileira” (8 bis), sobretudo quando se recorda o retrocesso político de 1937, embora este também tenha sido em sintonia com as idéias generalizadas na época. Talvez seja ocioso lembrar, para definir o cenário 296 297 mundial, não apenas a marcha aparentemente bem sucedida da planificação centralizada na União Soviética, bem como a extensão e o agravamento do interven cionismo estatal, a começar pelo país-líder do liberalismo, os Estados Unidos. Não se pode aplicar apenas ao Brasil a observação de que na época “o racionalismo econômico serviu para identificar as prioridades e investir o Estado de autoridade para entrar em ação” (Wirth). Evidentemente, tal posição provo caria arrepios a qualquer liberal enragé da atualidade. Como no esquema de Rostow, a transição se tornou possível graças ao “arcabouço social e político” favorável ao desenvolvimento. Aí domina a figura de Getúlio Vargas, responsável pela direção política e econômica durante 15 anos, aos quais se deve acrescentar, após um interregno de 5 anos, novo período presidencial de 4 anos. Merece destaque a observação de um estudioso de que “Vargas irradiava confiança no futuro econômico do Brasil” (Wirth), traço psicológico que encontraremos novamente na fase final da transição durante a presidência Kubitschek. O perfil ideológico de Vargas encontra-se, por exemplo, num discurso, já em 1931, quando, referindo se ao problema da criação de uma siderurgia nacional, ele indica os parâmetros da política econômica: nacio nalismo, autarquismo, intervencionismo estatal, industrialismo. Disse Vargas: “O problema máximo, básico de nossa economia é o siderúrgico... a grandeza futura do Brasil depende principalmente da exploração de suas jazidas de ferro... nacionalizar a indústria”. Somente 297 298 dentro dessa ideologia é permitido afirmar que o Bras il teve um governo “identificado com os ideais de renovação da política e da economia brasileiras” (Bresser Pereira) ou que se tinha chegado ao “surgimento de uma ideologia desenvolvimentista” (Wirth). Pode-se identificar o espírito renovador, no sentido de abandonar o modelo exportador a favor do industrialista, na correspondente alteração do perfil social, com a redução do poder da classe agrária e a diversificação da sociedade, com o crescimento da burguesia industrial e do proletariado urbano – isso, pode ser considerado falacioso, pois essas mudanças foram conseqüências e não causas da industrialização. Mais relevante parece a presença de líderes empresariais que batalharam pela industrialização: Roberto Si monsen, Euvaldo Lodi, Henrique Lage, etc. E n o setor público, Macedo Soares, Horta Barbosa, etc. A ênfase reservada à indústria e ao mercado interno refletia a decepção com o modelo exportador, duramente atingido pelo colapso do mercado internacional a partir de 1929. Não obstante, não se deve subestimar a força de sobrevivência do antigo modelo. A década focalizada se iniciou com a grande operação de defesa do café, cujo alcance anticíclico é objeto de controvérsias (9), mas de qualquer forma deve ter contribuído, ao lado do programa do Reajustamento Econômico, para minimizar o impacto da Grande Depressão, tanto em intensidade como em duração (10). O interesse persistente pela exportação aparece na criação do Conselho Federal do Comércio Exterior 298 299 (1934) e dos vários Institutos destinados a sustentar certos setores exportadores (açúcar, mate, cacau, pinho). Mesmo Roberto Simonsen, grande industrialista, propunha aumentar a participação do Brasil no mercado mundial de produtos tropicais e a criação de um Instituto Nacional de Exportação. Entretanto, reservava-se atenção crescente ao setor industrial, através de uma política seletiva de importações, a fim de sustentar os investimentos industriais, favorecendo sobretudo a indústria têxtil que chegou a ser superdimensionada, o que lhe permitirá expandir suas exportações durante a guerra. Sem entrar em outros detalhes, é suficiente citar a criação do Conselho Nacional do Petróleo e da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Brasil, a redação do Código de Minas e Águas, bem como os planos visando a industrialização e a modernização da economia, como por exemplo o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Econômica (1939). Na falta de estatística macroeconômica, pode-se encontrar um indício da intensificação dos inves timentos industriais no aumento do consumo de cimento e aço, e da importação de bens de capital (11). A mudança do centro de gravidade da economia é ilustrada pela redução da proporção entre a receita do imposto de importação e a do imposto de consumo (12). Por outro lado, observa-se uma diminuição da participação das indústrias tradicionalistas (alimentar e têxteis) no produto industrial total, em benefício das indústrias mais modernas (13). 299 300 O subperíodo seguinte, dos anos 40, se iniciou, tal como o anterior, depois de um grande abalo: a Segunda Guerra Mundial. A década incluiu duas fases, de acordo com a conjuntura internacional – uma com as dificuldades criadas pela guerra; a outra, com a euforia e as relativas facilidades do pós-guerra. Assim a marcha da transição continuou. Havia entretanto, mais do que nos anos 30, os requisitos do arranco: estrutura industrial incipiente e o arcabouço sócio-político surgido com a revolução de 1930 e cujo impulso assumiu eventualmente mais força devido aos desafios criados pela guerra. Voltando para àquele critério, um tanto mecanicista, da taxa de formação de capital, já vimos que foi nesta década que se atingiu o limiar rostowiano de 10% da renda. Mais precisamente, no segundo qüinqüênio, pois segundo cálculos diretos das Contas Nacionais, aquela taxa foi, em média, de 14,1% em 1947/50, o que não parece ter sido alcançado no qüinqüênio anterior (14). O governo, ainda sob a pressão das circunstâncias externas adversas, continuou mostrando inte resse pela aceleração do crescimento econômico através da industrialização (15). E no mesmo sentido se com portaram os líderes dos setores público e privado. As alavancas ideológicas que atuaram nos anos 30 fun cionaram com maior nitidez durante a guerra e depois: nacionalismo, autarquismo, intervencionismo estatal. Quanto à conjuntura externa, a tese tradicional, a teoria dos choques externos, deve ser entendida com 300 301 muitas ponderações. Não se pode dizer que o choque da Segunda Guerra Mundial, ao fechar o mercado externo favoreceu o crescimento, ao provocar uma verdadeira proteção compulsória da indústria nacional. A realidade foi que o fechamento, se foi efetivo em relação à Europa, não ocorreu na zona ocidental, a não ser em decorrência das restrições bélicas. Pelo contrário, o Brasil exportador teve à sua disposição, além do mercado norte-americano, a América Latina e a África do Sul – o que proporcionou à indústria brasileira a oportunidade de exportar para estas duas áreas, livre da concorrência dos países industrializados envolvidos na guerra. Como, entretanto, as importações sofreram grandes restrições, o Brasil acumulou substanciais saldos comerciais que foram parcialmente desperdiçados no pós-guerra. Outrossim, o choque externo prejudicou o processo desenvolvimentista devido ao estran gulamento das importações e à retração dos investimentos externos. Mas isso também não é verdade completa, sendo a contraprova a própria Volta Redonda, cujos equipamentos norte-americanos começaram a entrar já antes do fim da guerra. Por outro lado, pode ficar como saldo positivo o fato de a indústria ter acumulado lucros com a exportação. E, ainda mais valeu a lição da exigência de fortalecer a economia nacional, a fim de fazer face aos imprevisíveis abalos externos. Vê-se, portanto, que a guerra teve efeito ambivalente quanto à passagem do modelo exportador para o modelo renovador, industrialista: por um lado, intensificou a ação no sentido da industrialização, 301 302 embora seja ela prejudicada pelo retraimento das importações, por outro lado, favoreceu as exportações, enriquecidas, pelo menos nos últimos anos da guerra, pelos produtos industrializados (16). Fazendo o balanço, entretanto os fatores negativos superaram os positivos. A transição prosseguiu na segunda metade da década, num ambiente externo e interno de relativ o equilíbrio e euforia. Evidentemente, o fim da guerra e as esperanças de reconstituição do sistema econômico internacional constituíram as bases do otimismo: falou se cada vez mais clara e insistentemente no desen volvimento econômico como condição geral da paz; é expressivo que o grande organismo de reerguimento econômico no âmbito mundial, criado já antes do término da guerra, se referiu à reconstrução e “desenvolvimento” (BIRD). Ademais, no caso do Brasil, uma revolução pacífica ensejou a volta para um regime democrático – motivo de euforia e esperança. As idéias progressistas eram adotadas tanto do lado do setor público como crescentemente do setor privado, dentro de um ideário de economia de mercado e livre empresa, embora com a manutenção de uma boa dose de intervencionismo estatal. Mais tarde foi notada “a emergência (depois da guerra) de um grupo, em constante expansão, de homens de empresa” (Relatório COMBEU, 1954). E ainda no mesmo Relatório: “é particularmente notável como muitos dos empresários que iniciaram suas atividades na década dos anos 30, conseguiram agressiva e vigorosamente dilatar as fronteiras dos seus negócios e ramificar suas atividades 302 303 durante e após a última guerra”. Foram estes empresários, congregados nas Confederações Nacionais das Indústrias e do Comércio, que constituíram parte daquela elite necessária para o arranco de acordo com o esquema de Rostow (17). Havia, por outro lado, o papel do governo, pois obviamente não podia ser eliminado o intervencionismo estatal na economia. Na época, o líder da ação em prol de Volta Redonda declarava: “não é possível esperar pelas iniciativas particulares... incumbências que não interessam ou são superiores às possibilidades (da iniciativa privada)”. (Macedo Soares, 1944). Não obstante, faziam-se restrições, como nas palavras de um técnico liberal: “A necessidade da intervenção do Estado, para corrigir ou suprir as fraquezas dos empreendedores particulares, não permite concluir que a iniciativa particular seja decadente e deva dar lugar à iniciativa estatal” (Bulhões, 1950). A intervenção do governo, justificada também pela conjuntura bélica até 1945, se manifestou nos vários planos econômicos que visavam a indus trialização, em primeiro lugar por razões estratégicas – como dizia o já citado Plano Especial de 1939, “a criação de indústrias de base como a dotação da defesa do País”. Dentro dessa atividade normativa e orga nizacional, cite-se o Plano de Obras e Aparelhamento (1944), a constituição da Comissão do Planejamento Econômico (1944), a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC (1945), culminando com um plano mais abrangente, o chamado plano SALTE 303 304 (1948). Os resultados, em termos de crescimento econômico, foram positivos sem chegarem a ser brilhantes. No segundo qüinqüênio da década, o produto real cresceu à razão de 6,5% ao ano (COMBEU), sendo a renda real beneficiada pela melhora das relações de troca (18), bem como pelo aumento das importações graças à normalização do mercado internacional (19). A indústria progrediu, elevando suas taxas de crescimento, ao mesmo tempo que se processava um deslocamento qualitativo, das indústrias tradicionais, para setores mais modernos (20). Na terceira fase da transição, nos anos 50, o processo chegou o seu apogeu. Os fatores positivos que já tinham atuado nas décadas anteriores manifestaram -se com maior dinamismo, num ambiente político interno mais favorável (excetuando a tragédia de 1954), com a volta para a normalidade constitucional. Cientistas políticos quiseram detectar uma causalidad e recíproca entre a estabilidade política e o crescimento econômico (21). Devem ser acrescentados os condicionamentos externos, que Rostow pareceu menosprezar no seu esquema teórico do arranco. Com efeito, verificou -se no pós-guerra “uma taxa de crescimento totalmente sem precedentes na produção industrial mundial” (Paul Bairoch). Paralelamente, o comércio internacional aumentou substancialmente (22). Os países em desen volvimento participaram também destes progressos, embora em menor proporção. 304 305 Pode-se identificar, na época, a presença de uma elite desenvolvimentista, isto é, dedicada de modo racional e sistemático à promoção do desenvolvimento econômico, elite essa que atuou no setor privado como no público, principalmente durante a presidência Kubitschek, dentro de um modelo de economia mista assim definido com relativa propriedade: “O núcleo da política econômica de Kubitschek consistiu na congregação da iniciativa privada... com a intervenção contínua do Estado como orientador dos investimentos, através do planejamento... O Governo se transforma em instrumento deliberado e efetivo do desenvolvimento econômico”. (Benevides). Para definir as elites mencionadas, nada mais expressivo que o testemunho de um de seus líderes que mais tarde declarou “ter-se apaixonado pela luta do desenvolvimento econômico”, sublinhando a presença de um condicionamento psicológico fundamental: o fato de que se vivia num “clima de esperança” (23). De veriam ser citados todos os empresários de iniciativa e coragem, bem como, no setor público, os técnicos que foram mobilizados do Banco do Brasil, da SUMOC, da Fundação Getúlio Vargas, etc., e que, em muitos casos, agiram em ambos os setores. O papel do governo foi fundamental, incluindo -se na categoria “governo” tanto as decisões de p olítica econômica como o comportamento das pessoas que formavam o setor público – decisões e atitudes motivadas pelo espírito desenvolvimentista. As decisões buscaram progressivamente um maior grau de racio 305 306 nalidade e coerência, cristalizando-se na obra de planejamento econômico. Aí deve-se citar, desde a presidência Dutra, o mencionado Plano SALTE, basicamente frustrado apesar de suas boas intenções. Houve ainda outros planos setoriais: o Plano Nacional do Petróleo, o Plano do Carvão Nacional, o Plano da Eletrificação. Com maior abrangência, o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, o chamado Plano Lafer (1951), a que deve ser ligado o ato de suma importância que foi a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDES (1952), órgão destinado a receber e distribuir recursos externos e assumindo, com o tempo, o papel central no finan ciamento do crescimento econômico. Já antes, as idéias mestras da ação desenvolvimentista haviam se cristalizadas nos trabalhos da Comissão Mista Brasil Estados Unidos (1951), cujos projetos específicos foram integrados no Plano de Metas de Kubitschek – a primeira em escala nacional. O interesse pelo crescimento autônomo manifestou-se, às vezes com excessos de nacionalismo irracional e xenófobo, na campanha “o petróleo é nosso” que culminou com a criação da Petrobrás. Seria fastidioso citar aqui todas as medidas governamentais visando o desenvolvimento, mas acho que vale mencionar, para marcar a mudança do centro de interesse, as medidas de política comercial e cambial (Instrução nº 70 da SUMOC, a lei nº 3.244/1957) que criaram mecanismos cambiais incentivando e subsi diando os investimentos para desenvolvimento. A ex 306 307 portação ficou marginalizada – sinal da transição do modelo exportador para o industrialista. É preciso acrescentar que os anseios desenvolvimentistas encontraram condições políticas e ins titucionais para transformar-se em providências efetivas, através dos dispositivos legais em vigor ou graças a medidas pragmáticas, como foi a chamada “admi nistração paralela” dos Grupos de Trabalho e dos Grupos Executivos, durante a presidência Kubitschek. Tudo isso proporcionou um excelente crescimento econômico, de 1948 a 1961, a taxas anuais entre 5,6% e 10,3% (com duas exceções) e uma média anual de 7,1%, correspondendo a 4,2% per capita. Causa ou efeito, a taxa de formação bruta de capital subiu para 17,4% do PIB em 1951/55 e 15,7% em 1956/60. É importante sublinhar que o volume de investimentos foi primordialmente sustentado pela poupança interna, apesar da insuficiência institucional do mercado de capitais, mas também pela poupança externa que foi captada graças a uma série de dispositivos legais favoráveis, tais como a lei nº 1.807/1953 que introduziu o mercado livre de câmbio; a Instrução nº 113/1955 da SUMOC para importações sem cobertura cambial, etc. No que tange à industrialização a transição consistiu também na mudança estrutural do produto industrial com o desenvolvimento maior dos setores modernos, mais dinâmicos, em detrimento dos setores tradicionais – valendo mencionar a implantação da indústria de bens de capital e de construção naval. Assim se completou o período de 30 anos que 307 308 constituiria o arranco ou a transição, sem que tal periodização implicasse num estancamento no fluxo contínuo da história. Passada a transição, considera-se que a economia brasileira tinha conquistado posições estruturais, garantindo um crescimento sustentado. Isso, entretanto, não excluía estagnações ou recuos como infelizmente iriam se verificar logo depois, no início dos anos 60, repetindo-se nas décadas seguintes em alternação com fases de maior expansão. A lição histórica a reter refere-se à conjuntura de fatores positivos, principalmente políticos e culturais que permitiram a passagem para uma fase mais madura da economia nacional. De fato, ampliando a perspectiva limitada do arranco ou transição, pode-se concluir que aqueles fatores condicionam também a manutenção de um ritmo satisfatório de crescimento econômico. NOTAS (1) A história do empreendimento pode ser en contrada em dois livros de autoria daquele que pode ser considerado como o grande artífice de Volta Redonda, Edmundo de Macedo Soares e Silva: Volta Redonda e o Desenvolvimento Industrial do Brasil . Rio de Janeiro, 1944 e Volta Redonda, Rio de Janeiro. 1945. Um bom relato histórico encontra-se também em: Wirth, John. A Política do Desenvolvimento na Era Vargas. Rio de Janeiro, 1973. (2) BUESCU, Mircea. Identificação cronológica do arranco brasileiro, in: Estudos Historicos, Marília, 1970. (3) ROSTOW, W. W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro, 1964. 308 309 (4) O cálculo foi feito paralelamente a partir das séries conhecidas dos valores da exportação e dos meios de pagamento, aplicando -se respectivamente o coeficiente de exportação e o quociente da velocidade-renda da moeda, ambos extrapolados; sobre este cálculo, v. BUESCU, Mircea. História Econômica do Brasil – Pesquisas e Análises. Rio de Janeiro, 1970. (5) Conf. HADDAD, Cláudio. Growth of Brazilian Real Output 1900/1947. Chicago, 1974. A partir de 1947 foram redigidas as Contas Nacionais pelo Instituto Brasileiro de Economia. (6) Segundo minhas estimativas o crescimento anual médio evo luiu assim: 1903/13 4,05 1933/39 4,8% 1914/18 2,4% 1940/45 2,4% 1919/29 4,2% 1946/62 7,1% 1930/32 0,4% (v. também: GOLDSMITH, Raymond W. Brasil 1850-1984. São Paulo, 1986). (7) De acordo com várias estimativas (Bernstein, Spiegel, Dias Carneiro) a taxa bruta de investimentos foi de 8,7 -9,6% em 1941/43 e ultrapassou ligeiramente os 10% apenas em 1944/45; v. BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1976. (8) Opinião endossada pelo historiador francês Frédéric Mauro. in: Histoire de L’Économie Mondiale 1790 -1970. Paris, 1971. (8bis) Bresser Pereira, L. C. Desenvolvimento e Crise no Brasil. Rio de Janeiro, 1968. (9) A interpretação “Keynesiana” foi sustentada por Celso Furtado em: Formação Econômico do Braisl. Rio de Janeiro, 1964. A contestação veio de Carlos Manuel Peláez. História da Industrialização do Brasil. Rio de Janeiro, 1972. (10) Pode-se admitir, com base em estatísticas precárias, que no Brasil a Depressão durou de 1930 a 1932, quando a queda global da economia foi de 0,4%. 309 310 (11) A evolução foi a seguinte (médias anuais): 1921/29 1930/32 1933/39 consumo de cimento (1000 t) 361 354 554 consumo de aço (1000 t) 230 150 297 Import. de bens de capital (índice) 100 39 75 (conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política e Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973. (conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política do Governo e Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973. (12) A proporção foi de 1,98 em 1920 e caiu progressivamente para 1,78 em 1930 e 0,93 em 1940. (13) Em 1920 as duas indústrias tradicionais eram responsáveis por 67,7% do total; em 1939 essa participação não passava de 53,8%. (14) Conf. HADDAD, op. cit. (15) A atividade empresarial do governo compreendeu a criação da Fábrica Nacional de Motores, da Cia. Nacional de Álcalis, da Cia. Vale do Rio Doce. (16) A classe de produtos manufaturados não contribuía em 1939 com mais de 0,8% no valor total das exportações; em 1942/45 essa participação subiu para a media de 16,9%; em 1947 tinha descido para 7,4%. (17) v. SIMONSEN, Roberto C. Evolução Industrial do Brasil. São Paulo, 1973; v. também: SIMONSEN, Roberto C. -GUDIN, Eugenio. Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira. Rio de Janeiro, 1977. (18) O índice das relações de troca elevou-se 35,9% entre 1940 e 1945, e 95,8% entre 1945 e 1950. (19) O índice do quantum das importações, que não havia crescido mais de 7,6% em 1940/45, subiu 79,1% de 1945 a 1950. 310 311 (20) O índice da produção real na indústria metalúrgica cresceu 232,2%; na indústria têxtil e alimentar limitou -se a 20,3% e 60,9% respectivamente. (21) v. BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O Governo Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política . Rio de Janeiro, 1976. (22) Em 1953/63 o crescimento do produto mundial acusou taxas de 4,1% a 5,3% por ano. O volume do comércio cresceu 37,9% entre 1948 e 1953 e 89,4% entre 1953 e 1963 (conf. KENNEDY, Paul). Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro, 1991. (23) Em 1950 os bens de capital correspondiam a 30,3% da produção industrial; essa participação passou para 40,7% em 1960. Os setores modernos (metalurgia, mecânica, material elétrico, material de transporte e química) aumentaram entre 1950 e 1960 sua participação no produto industrial total de 20,6% para 35,5%. Entre as mesmas datas o produto da indústria tradicional (alimentar e têxtil) caiu de 50,2% para 36,3% do total. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(455): 21-30, Fevereiro 1993). 311 312 ACERCA DA TEORIA DOS CHOQUES EXTERNOS Completaram-se dois decênios desde o choque do petróleo de 1973, que se repetiu em 1979, seguindo-se novo choque em 1982, quando do colapso do sistema financeiro internacional. Desde logo depois do primeiro choque, o II Plano Nacional de Desenvolvimento, promulgado em dezembro de 1974, detectou – como não podia deixar de fazer – a mudança do cenário internacional, porém sem muito alarmismo. Ele falou em “novas realidades da economia mundial e evidentemente na “situação de escassez do petróleo”. Não obstante, apesar de apontar “as dificuldades para manter o crescimento acelerado”, a fim de “não se abalar a confiança” para “manter o crescimento dos últimos anos”. Tal posição respondia ao profundo anseio da sociedade brasileira de elevar seu nível de vida e eliminar a pobreza e a miséria. Ademais, justificava -se tecnicamente, pois o crescimento econômico devia ser mantido graças ao recurso ao mercado internacional de capitais, em que, com os petrodólares, havia grandes disponibilidades a juros baixos, às vezes negativos em termos reais. O III Plano Nacional de Desenvolvimento, de maio de 1980, já depois do segundo choque do petróleo, 312 313 manteve uma postura otimista, e eventualmente justificada pelo sucesso da política aplicada entre 1974 e 1979. Aí, talvez pela razão política de insuflar confiança ou por convicção teórica, o III PND ressuscitou a velha teoria dos choques externos – a alegação de que as dificuldades no setor externo propiciaram resultados positivos dentro da economia do País. O III PND manifestava a confiança “na capacidade de realização, historicamente demonstrada pela nação brasileira... inclusive durante períodos de crise mundial”. O principal artífice do II PND se pronunciou depois, no mesmo sentido: “Pela experiência histórica, foi exatamente em duas épocas de aguda crise de balanço de pagamento, e conjuntura mundial contur bada, que o País realizou dois significativos surtos de industrialização: a época da Depressão dos 30 e o imediato pós-guerra”. (Velloso) O III PD tinha explicitado tal alegação da forma seguinte: “O setor externo sempre teve um papel im portante na evolução da economia brasileira. Alterações nas relações econômicas internacionais traduziam -se inicialmente em desequilíbrio na organização interna. No momento seguinte, contudo, a reorientação adequada da política econômica interna tem conseguido trans formar o desafio internacional em fator de dinamização do crescimento brasileiro”. Lendo com maior cuidado essas citações, parece que se trataria de um binômio toynbeeniano de desafio/resposta cujo efeito positivo se configuraria somente depois do abalo externo, mas persiste a impressão, explícita ou implícita, de que o 313 314 choque tinha sido necessário ou pelo menos desempenhou um papel fundamental para a manutenção do crescimento econômico e da industrialização. É sobre esse conceito que vai versar o presente comentário. (*) *** A idéia básica da teoria dos choques externos consiste em que o processo da industrialização e portanto do crescimento econômico não se deu de forma linear ou continuada, mas sim em surtos temporários, provocados pela retração ou quase colapso do mer cado internacional. Em outras palavras, os abalos sofridos por este mercado – a Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial – agiram como verdadeira proteção compulsória, vinda de fora e independente da vontade da sociedade brasileira. Numa forma mais sofisticada, que implicaria uma certa relação autônoma do empresariado nacional, a perturbação do mercado externo teria provocado uma distorção do sistema de preços, tornando mais altos os dos produtos importados e portanto justificando a produção nacional, com maior margem de lucro. Parece que a idéia dos choques benéficos foi formulada pela primeira vez em 1922, num livro de Hannibal Porto, O Brasil Econômico de 1920 (apud Normano): “Foi devido às dificuldades encontradas durante a guerra para importação de artigos manufaturados que os brasileiros decidiram explorar um grande número de indústrias”. A 314 315 tese foi endossada por Roberto Simonsen (num trabalho publicado em 1939: A Evolução Industrial do Brasil) e assim gozou da autoridade do grande líder empresarial. Reconhecendo que a expansão da indústria tinha raízes desde o fim do século XIX, Simonsen declarou que “a guerra mundial daria por fim, a esse surto industrial novos impulsos e novas direções”. Entretanto, vale observar desde já que o pensamento de Simonsen era mais circunstanciado: a guerra “teve, de fato, uma pronunciada influência no seu desenvolvimento posterior (meu grifo), por ter provocado uma notável diversificação na fabricação de novos produtos”. Oportunamente veremos qual foi o significado daquela “diversificação”. Por enquanto, é preciso reter a idéia de que os efeitos eventualmente benéficos não teria surgido durante a guerra, mas sim, posteriormente – o que dá outro sentido ao choque externo. De qualquer forma, a teoria dos choques externos foi adotada por muitos historiadores, tornando -se durante muito tempo paradigma para a explicação dos surtos industriais. Foi dito, por exemplo, enfaticamente: “O recente processo de desenvolvimento econômico do Brasil teve lugar fundamentalmente sob o impacto das restrições do comércio exterior” (Maria da Conceição Tavares). Ou então: “A depressão da década de 1930 constituiu um incentivo à industrialização através de um mecanismo automático de proteção, que é ainda mais interessante do que as duas guerras mundiais” (Werner Baer-Issac Kertenetzky – apud Peláez). 315 316 Como se explica o sucesso acadêmico e político da tese dos choques externos? Pode-se detectar a idéia de que as elites e seus interesses estavam tão arraigados ao antigo modelo exportador de produtos primários que não teriam admitido de bom grado a industrialização a não ser sob a força do abalo externo. A escola estruturalista adotou posições neste sentido: o seu líder escreveu que “duas guerras mundiais... e a grand e crise econômica... mostraram aos países latino-americanos que chegou o momento de enveredarem pelo rumo das atividades industriais” (Raul Prebisch – apud Peláez). Entretanto, pelo menos no que tange ao Brasil, tal alegação é irrealista: sabe-se que o movimento industrialista começou desde o século XIX (Mauá, Serzedo Corrêa, etc.) e vários grandes produtores e exportadores de café se tornaram industriais. Pode -se admitir apenas que na medida em que vários fatores, inclusive os choques externos, solaparam o setor cafeeiro, propiciaram a busca de novas oportunidades empresariais, em primeiro lugar no setor industrial. Quanto à tese estruturalista, ela revela a desconfiança e o repúdio ao sistema econômico internacional ao rezar que o progresso industrial – e econômico, em geral – se realiza melhor dentro de uma política isolacionista – ideais autárcicos que brilharam ente as duas guerras mundiais, com os desastrosos efeitos econômicos e políticos já conhecidos. O repúdio do papel criativo do comércio internacional continha uma contradição básica: o processo da industrialização, no sentido correto de 316 317 aumento da capacidade industrial, exigia capitais, equipamentos e tecnologia que, por definição, o país subdesenvolvido não possui. Pode-se imaginar um certo crescimento auto-sustentado, autônomo dispensando os recursos externos procedentes dos países desenvolvidos via intercâmbio internacional, mas seria um crescimento penoso, demorado, e não poderia justificar a qualificação de “surto industrial”. A penúria provoca da pelo choque externo podia oferecer oportunidades de vendas e lucros para as indústrias existentes – e isso aconteceu de fato – porém isso não caracteriza um verdadeiro progresso. Por outro lado, não deve ser minimizado o papel da exportação como setor gerador de renda e de mercado para a indústria, sobretudo numa economia voltada para o exterior como a brasileira, cujo fator dinâmico secular se encontrava justamente nas vendas para o exterior. Por cima das contestações teóricas, o fato é que a teoria dos choques externos não encontrou uma confirmação empírica – como se verá mais adiante. Baseados em constatações concretas, vários eco nomistas, chamados “revisionistas” contestaram as po sições estruturalistas. Um estudioso da industrialização de São Paulo concluiu suas análises com as seguintes palavras: “Poder-se-á perguntas se a industrialização de São Paulo não se teria processado mais depressa se não tivesse havido guerra” (Dean). Outras contestações vieram a respeito do papel do choque externo durante a Grande Depressão (Peláez) ou Segunda Guerra Mundial (Buescu). Sintetizando as conclusões teóricas e as 317 318 verificações empíricas, escreveu um historiadoreconomista: “Longe de resultar das dificuldades das importações durante as duas guerras mundiais e a Depressão... o desenvolvimento inseriu-se num conjunto de condições favoráveis ao comércio exterior’. (Nathaniel H. Leff). Foi feita uma tentativa conciliatória (Versiani), distinguindo entre os suros de produção (durante os choques, quando a conjuntura de escassez oferecia oportunidades de venda e lucro) e surtos de in vestimento (durante os períodos de normalidade, quando havia condições de investir); essa distinção foge, entretanto, ao âmago do problema: o verdadeiro surto industrial consiste no aumento da capacidade de produção e não da possibilidade de vender com lucro. Aliás, essas vendas eventualmente expandidas pres supõem a existência de uma indústria com capacidade ociosa, capacidade essa adquirida no período de nor malidade de importações de equipamentos e tecnologia. Os defensores da teoria dos choques externos não puderam sair desse impasse: se houve processo verdadeiro, ele ocorreu depois do choque, o que altera a posição básica da teoria. Por exemplo, foi observado que Fishlow, defendendo a importância da Primeira Guerra Mundial como oportunidade de lucros, “enfatiza a importância desse período de grande lucratividade para os produtores internos, no que se refere aos grandes investimentos do pós-guerra” (Versiani) (meu grifo). A lucratividade podia ser fonte de progresso sob a condição de os lucros serem reinvestidos na indústria. E, 318 319 de qualquer modo, os investimentos só podiam ocorrer após a volta à normalidade, como de fato aconteceu. Vê-se portanto que o papel dos choques externos deve ser reconsiderado – o que tentarei fazer. Antes, porém, é mister ver sinteticamente como evoluiu a economia e a indústria em particular ao longo dos 50 anos aproximadamente, que cobrem os três choques em pauta. *** O indicador mais abrangente é, sem dúvida, a taxa de crescimento do produto interno bruto ou produto real. Embora os cálculos sejam precários anteriormente à implantação das contas nacionais, a série estatística mostra de modo convincente que, contrariamente à versão primitiva dos choques externos, estes registraram uma nítida desaceleração do crescimento econômico, senão um verdadeiro retrocesso como em 1930/1932. Os períodos de crescimento maior foram justamente inter choques. O mesmo fenômeno aparece nitidamente na evolução da produção industrial, como se pode observar na tabela seguinte: 1903/1913 1914/1918 1919/1929 1930/1932 1933/1939 1940/1945 1946/1962 Fonte (até 1947): Haddad. PIB 4,0 2,4 4,2 -0,4 4,8 2,4 7,1 (variação anual média %) Prod. industrial 6,4 4,7 6,2 -1,4 10,0 5,8 8,8 319 320 A inevitável precariedade dos cálculos estatísticos pode ser compensada pela informação qualitativa: durante os choques, numerosos são os testemunhos da penúria e das restrições de consumo, falta de produtos, principalmente combustíveis, cujo abastecimento se baseava, em grande parte, na importação. Melancolicamente, alguns dentre nós podem lembrar-se de tais circunstâncias que não contribuem de maneira alguma para conferir um papel positivo aos choques externos. No que concerne à capacidade de expansão da economia graças ao volume dos investimentos, as informações disponíveis não testemunham a favor dos choques externos. Na falta de cálculos diretos (que foram feitos nas Contas Nacionais apenas a partir de 1947) é válido observar (Villela-Suzigan) a evolução de alguns indicadores indiretos da formação de capital fixo. São eles: o crescimento da potência instalada, o quantum de importação de bens de capital e o consumo aparente de aço e cimento. A variação dos índices anuais evoluiu da forma seguinte durante os choques em relação ao período imediatamente anterior: variação % pot. imp. bens cons. cons. inst. capitais aço cimento 1914-1918/1903-1913 -41,9 -74,1 -54,2 -58,8 1930-1932/1927-1929 -73,2 -63,3 -55,5 -36,4 1940-1945/1934-1939 -53,8 - 7,5 - 1,3 42,4 320 321 Os períodos expansionistas se situaram entre os choques e seria uma inferência gratuita dizer que os avanços representaram apenas uma reação provocada pelos choques – isso podia ser parcialmente verdade ou apenas coincidência. As informações desfavoráveis a respeito da situação econômica durante os choques devem ser confrontadas com a documentação inso fismável dos progressos conseguidos inter-choques: durante o chamado Reerguimento Econômico (1903/ 1913), período de equilíbrio interno e abertura exte rna; durante os anos 20, grande expansão do comércio exterior, mas também implantação das indústrias siderúrgica e do cimento; entre a Grande Depressão e o início da Segunda Guerra Mundial, quando novos progressos foram feitos principalmente na indústria, graças a um elenco de fatores favoráveis de com portamento e de política econômica e finalmente no ambiente de equilíbrio político interno e externo que caracterizou nos anos 50, o início do período desenvolvimentista do Brasil. Evidentemente este apanhado sintético é muito simplificado: os fatos se apresentaram de maneira mais complexa e circunstanciada. É preciso portanto tentar definir melhor o impacto dos choques externos em função de alguns parâmetros que seriam, a meu ver, os seguintes: 1º - o grau de dependência da economia nacional em relação ao setor externo; o peso da exportação e da importação, bem como dos capitais estrangeiros no processo de crescimento da economia; 321 322 2º - o grau de intensidade do abalo externo – o grau de perturbação sofrida pelo sistema econômico internacional durante os choques; 3º - o grau de fechamento da economia nacional em decorrência da perturbação externa: estrangulamento da balança comercial e do balanço de pagamentos, implicando portanto em retração do movimento de mercadorias e capitais; 4º - o potencial econômico interno – o grau de capacidade de defesa em função da dimensão do produto interno bruto, da sua composição setorial, princi palmente quanto ao setor industrial, e da capacidade interna de capitalização; 5º - a capacidade de reação da sociedade e da economia, a sua disposição de mobilização contra a adversidade externa – em outras palavras, a possibilidade de um processo de desafio/resposta do tipo toynbeeniano, a ser dada pelo governo e pelos empresários; uma resposta que poderá ocorrer sobretudo posteriormente ao choque, visto que, como já disse, o estrangulamento externo afasta do País muitos dos meios necessários para uma forte reação positiva. Os cinco parâmetros enumerados oferecem uma pista para avaliar a gravidade do choque, mas também uma indicação sobre a maior ou menor possibilidade de enfrentar o seu desafio. Vejamos como se apresentaram 322 323 esses critérios ao longo do período desde o início da Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda, prolongando eventualmente seus efeitos nos anos seguintes. *** (1) No concernente à importância do setor externo, a economia brasileira evoluiu desde o fim do período colonial num sentido de maior autonomia. Cálculos aproximados (Buescu) estimam um coeficiente de exportação de cerca 0,40 (40% do PIB) na época da Independência, diminuindo gradualmente ao longo dos anos: em 1910/1920 ter-se-ia fixado entre 0,13 e 0,17 até a véspera do primeiro choque externo; em 1939, antes do terceiro choque externo; em 1939, antes do terceiro choque teria chegado a 0,14, caindo até 0,12 no fim da Segunda Guerra Mundial (Malan). Tais coeficientes de exportação, aos quais correspondem semelhantes coeficientes de importação, não eram, afinal de contas, muito elevados, mas esse aspecto quantitativo é menos relevante que o qua litativo, sobretudo na importação: deixando de lado o problema do abastecimento em trigo, bem como em outros artigos de consumo, persistiu e se acentuou a dependência em relação aos insumos necessários ao desenvolvimento industrial. Em matéria de combustíveis, em 1914 a parcela do carvão no total da importação era de 7,4%, enquanto os combustíveis líquidos representavam apenas 2,8%. Mas essas 323 324 porcentagens evoluíram de forma assimétrica chegando em 1939 a 4,0% e 6,4% respectivamente. O valor percentual parece ainda modesto, mas já tinha significado estratégico não desprezível. Muito mais importante era o papel das matérias-primas, que em 1910/1913 eram responsáveis por 46,3% da importação. Em 1920/1929 essa participação chegou a 53,7% e em 1939 era ainda de 47,0%. Aumentava ao mesmo tempo a dependência em bens de capital importados: em 1911/1920 eles absorviam 10,1% da despesa total, subindo para 14,0% em 1920/1929 e 22,3% antes do último choque. (2) Por definição, os choques esternos tiveram um impacto negativo sobre as relações internacionais – isto é incontestável. O que quero observar agora é que o impacto negativo não foi homogêneo em todos os três choques. O fato teve efeitos diferentes e permitiram res postas ligeiramente diversas. No que tange à Primeira Guerra Mundial, é preciso sublinhar a sua extensão e intensidade sintetizadas na expressão de “guerra total” (apesar de certas áreas de tranqüilidade), com imensa mobilização de homens e materiais, incluindo gu erra submarina e aérea, com bloqueio recíproco, com imenso desperdício e volumosas despesas, com retração do intercâmbio internacional de mercadorias e capitais, resultando na redução da capacidade econômica civil entre os beligerantes. Os países líderes que desempenhavam papel preponderante no cenário internacional 324 325 (Inglaterra, Alemanha, França) sofreram profundamente. Apenas os Estados Unidos ficaram algo excêntricos tanto que continuaram crescendo, expandindo seu co mércio exterior (por exemplo, entre 1914 e 1918 suas exportações subiram de 2,1 para 6,0 bilhões de dólares) e aumentando sensivelmente seus empréstimos para o resto do Mundo até um montante de 6 bilhões de dólares – soma enorme nos padrões da época. As limitações assinaladas tiveram sua importância para o desenrolar da crise no Brasil. No caso do segundo choque, o alastramento da Grande Depressão incluiu todas as potências, sendo mais grave nos grandes países industrializados. A queda dos preços nestes países foi de 30-35%, chegando a 6070% nas commodities – fato agravante para os países exportadores destes produtos. A produção industrial mundial caiu 36% e o comércio internacional 25% (em volume), desencadeando uma bola de neve. Paralelamente a crise abalou o mercado internacional de crédito, assistindo-se a uma retração generalizada, ou até ao desaparecimento do movimento financeiro. Desta vez não foi poupada aquela válvula de escapamento que foram os Estados Unidos no choque anterior. O panorama da Primeira Grande Guerra Mundial praticamente se repetiu durante a Segunda, porém em extensão e intensidade maiores. A intensificação da guerra submarina prejudicou mais o comércio internacional, inclusive em áreas mais longínquas, antes poupadas. Não obstante, mais uma vez como fator amenizador de que o Brasil pôde beneficiar-se, os 325 326 Estados Unidos cujo território não foi atingido, expandiram suas atividades e aumentaram sua capacidade comercial e financeira (como exemplo, enquanto as exportações da Inglaterra se reduziram pela metade entre 1938 e 1944, as norte-americanas mais que quadruplicaram). Por outro lado, os Estados Unidos se tornaram, mais do que em 1914/1918, o grande fi nanciador do Mundo. No caso do Brasil, as cir cunstâncias assinaladas facilitaram a resposta da eco nomia nacional ao choque. (3) Em que grau os choques externos afetaram a economia brasileira? Como resultados globais já mostrei a inegável queda da taxa de crescimento econômico e de investimento em todas as três crises – mais acentuadamente na segunda. Por definição, os choques atingiram as relações do País com o exterior, afetando a geração da renda (via exportação) e daí a capacidade de consumo e inves timento (via importação de mercadorias e capitais). Comparando as médias anuais de 1914/1918 com as de 1909/1913 – isto é, do período do choque com o imediatamente anterior – observa-se uma queda de 15,7% na exportação e de 24,3% na importação. Da mesa forma verifica-se queda entre 1927/1929 e 1930/1933 – aliás bem maior, confirmando o que foi dito a respeito da maior gravidade desta crise: -49,9% na receita de importação, -61,4% na despesa de importação. O choque da Segunda Guerra Mundial foi diferente: a importação caiu ainda 2,5% em relação a 1935/1939, mas em com 326 327 pensação a exportação cresceu 34,1%, devido à manutenção das relações em certas áreas excêntricas (América do Sul e África do Sul) e com os Aliados, via Estados Unidos. O maior impacto na importação explica-se ao apenas pelas restrições impostas aos fornecimentos pelos Aliados, mas também pela participação relativamente maior da Alemanha nas importações do Brasil antes da guerra: ela entrava com 16,1% em 1914 e 25,0% em 1938 (neste ano superando inclusive os Estados Unidos que detinham 24,2%). Um efeito sui-generis foi a oportunidade que a indústria brasileira teve de expandir suas exportações durante o primeiro e o terceiro choques para as áreas ainda disponíveis – Estados Unidos (carnes e produtos de açúcar, no primeiro), América do Sul e África do Sul (têxteis, no terceiro). Durante este último choque os produtos industrializados chegaram a ser responsáveis por 19,7% da receita de exportação (em 1943) contra menos de 1% antes da guerra. Deve-se sublinhar entretanto que tal sucesso foi possível graças à abertura parcial do nosso comércio exterior e não ao seu fechamento. No caso da importação a escassez provocada pelos choques externos foi patente e ressentida tanto pelos consumidores como pelos empresários que se viram desprovidos das fontes tradicionais de abastecimento. Já verificamos a queda do índice de importação de bens de capital, claro indicador das dificuldades de investimentos. A escassez de 327 328 combustíveis aparece nitidamente nas características, confirmadas pelas experiências pessoais consignadas nos testemunhos da época. Por exemplo, a importação de gasolina caiu 22,0% entre a média de 1912/1913 e de 1914/1918; 22,4% entre 1928/1929 e 1930/1932; 13,7% entre 1938/1939 e 1940/1944. (4) Obviamente, entre o início do primeiro choque (1914) e o do terceiro (1939) a economia brasileira progrediu, mas, como já foi visto no quadro estatístico apresentado, o crescimento global e industrial se deu nos períodos entre-choques e não durante os choques. Os progressos alcançados permitiram, com o tempo, uma resistência relativamente maior e mais eficiente, o que se constata sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, não apenas graças à referida abertura parcial da economia apesar do choque, mas também devido a maior capacidade econômico do País. As características são muito precárias, porém não deixam de ter um certo valor indicativo. Em datas selecionadas o PIB per capita teria subido de 94 dólares em 1910 para 141 dólares em 1930 e 168 dólares em 1940. Isso daria valores globais de 2.088, 4.733 e 7.175 milhões de dólares, respectivamente – um crescimento razoável. Ao mesmo tempo melhorava o perfil do produto real, com um crescimento relativamente maior do setor industrial. Considerando um universo composto apenas dos setores primário e secundário, a distribuição teria sido de 79-21% em 1919, 57-43% e 49-51% em 1949. 328 329 A capacidade industrial se verifica também no volume de potência instalada que subiu de 244 MW em 1913 para 1.176 MW em 1939 – uma expansão de quase 5 vezes em 26 anos. Por outro lado o perfil industrial amadureceu: por exemplo, as indústrias mais modernas (metalúrgica, mecânica, material elétrico e transportes) que representavam em 1919 6,6% do valor agregado total tinham dobrado sua participação em 1939. Isso não constituiu um benefício proporcionado exclusivamente pelo choque externo, mas simplesmente um aumento da possibilidade de reagir ao choque – reação essa que se processou nos períodos de normalização econômica e política entre os choques. (5) O quinto elemento de avaliação do impacto dos choques externos sobre a economia nacional prende se à capacidade e à disposição de reagir da sociedade, dentro dos demais parâmetros mencionados. Trata-se agora propriamente do binômio desafio/resposta. Sem dúvida, em condições de normalidade política e social, qualquer sociedade, levada pelo espírito de sobre vivência, deverá agir para diminuir ou mesmo limitar as duras limitações impostas de fora. Entretanto, as reações surgidas durante o período de crise surtirão pouco efeito positivo, justamente por causa do estrangulamento da economia em decorrência do estreitamento ou mesmo colapso do sistema internacional. Se o abalo sofrido teve como resultado o despertar das consciências e dos esforços desenvolvimentistas, o que nem sempre pode acontecer – os efeitos benéficos surgirão apenas após a 329 330 reabertura do setor externo, respaldo sine qua non do crescimento equilibrado. Como exemplo de reação simultânea, mas de efeito limitado, cite-se, quanto à Primeira Guerra Mundial, a utilização intensiva da capacidade industrial criada antes do conflito, sobretudo nos setores dos tecidos, carnes preparadas e produtos de açúcar (por sinal, mercadorias necessárias para exportação, apro veitada ainda a abertura parcial da economia). Cite -se também a criação de oficinas mecânicas destinadas a consertar os equipamentos que não podiam ser substituídos via importação, Tais ações de utilização intensiva não representavam um progresso, um aumento real da capacidade produtiva. Pelo contrário, e isso será válido nos três choques externos, a utilização intensiva dos equipamentos em 2 ou 3 turnos de trabalho constituía um desinvestimento, visto que acelerava o processo de depreciação. Dispõe-se de informações semelhantes com referência à Segunda Guerra Mundial. Falando da situação em toda a América Latina, uma publicação da antiga Liga das Nações anotava: “As condições criadas pela guerra impediram de realizar um aumento do equipamento material... conseqüentemente o desenvolvimento da atividade industrial exigiu uma utilização mais intensiva das instalações existentes”. (Revue de la Situation Economique Mondiale 1942/1943 – Société des Nations, Genève, 1945). Existem numerosos testemunhos brasileiros da época a respeito da utilização intensiva dos equipamentos e a 330 331 respeito dos paliativos empregados para enfrentar a falta de substitutivos. Um reflexo deste processo aparece, por exemplo, nas maciças importações realizadas após o fim da guerra em fusos, teares e outros equipamentos para a indústria têxtil que, devido às circunstâncias expostas, havia trabalhado intensivamente a fim de aproveitar os novos mercados a ela abertos na América do Sul e na África do Sul. Os exemplos mencionados referem-se às atividades empresariais, mas evidentemente houve também uma ação governamental, sobretudo na época mais recente, à medida que se desenvolvia uma filosofia de intervencionismo econômico. Mesmo durante a Primeira Guerra Mundial o governo federal manteve na sua despesa uma parcela razoável destinada à formação de capital fixo – um pouco acima de 21% em 1914/1916, aumentando no ano seguinte. O mesmo não aconteceu durante os anos difíceis da Grande Depressão, quando aquela parcela ficou entre 2 e 5% da despesa federal – percentual que caracterizou todo o período de 1923 a 1938. O intervencionismo econômico cresceu, entre tanto, nos anos 30, manifestando-se de forma mais espetacular nos planos de defesa do café. A interpretação dos efeitos destes planos é controvertida (v. contro vérsia Furtado-Peláez) e não poderia entrar aqui. Podese admitir contudo que a defesa do café, complementada com o Reaparelhamento Econômico, de sustentação dos agricultores, teve certos reflexos positivos sobre a economia, mas de qualquer forma essas ações e seus reflexos se manifestaram depois da crise, sendo com331 332 plementados por medidas de planejamento e racio nalização econômica (por exemplo, a política seletiva de importações). A ação governamental foi mais evidente durante a Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, com os Acordos de Washington (1942) de sustentação de certas exportações e, de modo mais efetivo, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, coroação de um projeto idealizado desde antes da guerra e acelerado por razões estratégicas. Isso explica em parte o aumento de 17 a 22% da parcela da despesa federal destinada à formação de capital fixo. Mas, neste caso também, o progresso alcançado foi possível graças à abertura parcial da economia, permitindo a importação dos equipamentos para Volta Redonda. Como conclusão, temos que nos referir outra vez à estatística da evolução do PIB, indicando maior crescimento durante os períodos de maior crescimento, nas fases de normalidade e de abertura para o exterior. Foram essas fases, reflexos tardios do choque? Constituíam elas realmente respostas aos desafios dos choques, ou seja, em outras palavras, os progressos não teriam se verificado sem aqueles desafios? Parece que uma resposta afirmativa a estas questões seria gratuita, pois, independentemente dos choques, havia suficientes condicionamentos sócio-políticos para proporcionar à economia brasileira os progressos por que ansiava a sociedade. Eventualmente, os choques apenas aguçaram a vontade de renovar. 332 333 (*) O texto já estava redigido quando tomei conhecimento dos trabalhos de dois colegas deste Conselho (os Conselheiros Dênio Nogueira e Ernane Galvêas) que abordaram, com compe tência, o tema dos choques externos. A minha contribuição poderia justificar-se como uma complementação visando sobretudo uma formulação mais genérica dos parâmetros dos choques externos. BIBLIOGRAFIA BUESCU, Mircea. Brasil: Problemas Econômicos e Experiência Histórica. Rio de Janeiro, Forense Univ., 1985. BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, APEC, 1975. DEAN, Warren. A Industrialização de São Paulo. São Paulo, DIFEL, 1971. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961. MALAN, Pedro S. – BONELLI, Regis – ABREU, Marcelo de P. – PEREIRA, José Eduardo de C. Política Econômica Externa e Industrialização do Brasil (1939/52). Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1977. 333 334 NORMANO, J. F. Evolução Econômica no Brasil. São Paulo, CEN, 1975. PELÁEZ, Carlos Manuel. História da Industrialização do Brasil. Rio de Janeiro, 1972. SIMONSEN, Roberto C. Evolução Industrial do Brasil e Outros Estudos. São Paulo, CEN, 1973. VELLOSO, João Paulo dos Reis. A Solução Positiva. 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Esses aspectos definem, até certo ponto, a evolução das preocupações e motivações econômicas da sociedade brasileira no período escolhido, tal como interpretadas pelos dirigentes políticos e econômicos. Neste relato histórico, em que, por limitações óbvias, assinalo apenas os objetivos básicos sem muitos detalhes setoriais, serão analisados os seguintes documentos: - Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), de 1964; - Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), de 1967; 335 336 - Metas e Bases para a Ação de Governos (METAS), de 1970; - I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), de 1971; - II Plano Nacional de Desenvolvimento ( II PND), de 1974; e, - III Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico (III PND), de 1980. *** É interessante, antes de mais nada, para definir a posição dos planejadores, observar a qualificação que eles deram à sua ação planejadora, a égide sob a qua l colocaram a respectiva obra. Nisso, o PAEG propõe -se modestamente perseguir três objetivos: “Estabilização, desenvolvimento e reforma democrática” – uma reação à confusão política, econômica e social dos anos 1961 1964. Já o PED, passada a fase insegura dos primeiros anos do regime instaurado em 1964, mostra-se mais exigente, abandonando a idéia fria de desenvolvimento puramente econômico e referindo-se ao progresso social, mais especificamente à “valorização do homem brasileiro”. Os sucessos conseguidos pela economia brasileira após 1967 – o conhecido “milagre brasileiro” – refletem-se no otimismo e nas aspirações crescentes já nas METAS, que falam enfaticamente no “ingresso do Brasil no mundo desenvolvido”. O otimismo transparece também no I PND que se refere ao “Brasil nação de336 337 senvolvida”, com uma “economia moderna, competitiva e dinâmica”, para explodir plenamente no II PND (apesar dos sinais negativos do primeiro choque do petróleo) falando no “Brasil como poder emergente” e “desenvolvimento e grandeza”. Mais tarde, a deterioração do cenário internacional com o segundo choque do petróleo reflete-se no comedimento do III PND que mantém, não obstante, a confiança no futuro em que se prevê “a construção de uma sociedade desenvolvida, livre, equilibrada e estável em benefício de todos os brasileiros, no menor prazo possível’ – expressão em que se identifica não apenas a preocupação crescente com uma melhor distribuição do desenvolvimento, mas também os sinais da abertura política então incipiente. *** Ao abordar os objetivos dos planos, é oportuno observar que muitos se apresentaram de forma permanente. Assim, são o crescimento econômico e o emprego, a distribuição setorial e regional da renda e o equilíbrio do balanço de pagamentos. Entretanto, variaram em enfoque e intensidade de acordo com as circunstâncias conjunturais, as opções estratégicas e as abordagens teóricas. Da mesma forma, verifica-se o destaque crescente, após 1973, do problema energético em decorrência da crise do petróleo. Veremos ta mbém que o próprio problema inflacionário, tão crônico, teve flu 337 338 tuações em seu tratamento, de acordo com o agra vamento ou afrouxamento da escalada dos preços. *** Como não podia deixar de ser, o desenvolvimento econômico constituiu, em todos os planos desde o PAEG de 1964, o objetivo primordial da economia nacional. Esse interesse, correspondendo, em termos mais comuns, ao anseio pelo progresso econômico, portanto à própria essência da atividade econômica, tornou -se crescente em escala universal após a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu o que Gunnar Myrdal chamou de “o Grande Despertar”, a consciência da necessidade do desenvolvimento, tanto é que, de forma sintomática a ONU denominou o seu grande Banco, de Reconstrução e Desenvolvimento. Detectou-se, na época, o “gradual surgimento de uma consciência da responsabilidade internacional no tocante à promoção do desenvolvimento econômico” (Roberto Campos) e no caso do Brasil, falou-se na “geração desenvolvimentista”, justamente aquela que criou os primeiros planos econômicos. Com o tempo, verificou-se um certo refino do conceito básico. Já vimos que o PED falou em valorização do homem e mais tarde o I PND acentuou que o desenvolvimento implica em modernização e competitividade da economia. O II PND, logo após a primeira crise do petróleo, cuida de reafirmar a capacidade de crescer da economia brasileira e insiste 338 339 na meta de um crescimento acelerado. Mesmo o III PND, embora a crise já mostrasse seus efeitos nocivos, rezava pela manutenção do crescimento apesar das dificuldades surgidas, confessando “a certeza de que a sociedade brasileira está plenamente capacitada e motivada para enfrentar e vencer os desafios adicionais da economia mundial”. E mais: “o Brasil não pode renunciar ao crescimento, seja por legítimas aspirações do seu povo por maior prosperidade, seja pelo alto custo social da estagnação ou do retrocesso”. Essa opção absoluta pelo crescimento que tinha se fortalecido com as boas performances econômicas, depois de 1967, tinha seus riscos, porém se justificava a longo prazo. (1) O preço pago pela manutenção do crescimento após 1980 foi o forte endividamento externo. O crescimento econômico vinha emparelhado com a criação de empregos, objetivo básico num país da dimensão do Brasil, com expansão demográfica elevada. Essa preocupação aparece desde o PAEG que se refere ao esforço de investimentos para “assegurar opor tunidades de emprego produtivo”. Quando, entre as medidas adicionais, fala nas políticas agrária e ha bitacional, o objetivo da criação de empregos aparece implicitamente. É interessante notar que, apesar de referir-se “à mão-de-obra que continuamente, aflui ao mercado de trabalho”, não há nenhuma alusão a uma política demográfica. Os Planos subseqüentes continuarão a mencionar a importância dos investimentos para a criação de empregos, pelo que afirmaram, sobretudo o III PND, a necessidade de 339 340 fortalecer a agricultura, tampouco mencionando qual quer programa demográfico. Entretanto as METAS e o II PND já tinham esclarecido que “o problema de controle da natalidade deve permanecer na alçada da unidade familiar”. (2) De fato, aceitando-a a explosão demográfica com um “datum”, irreversível, o problema da criação de empregos tornava-se mais premente. Por outro lado, firma-se o enfoque social do desenvolvimento econômico que aparece desde o PAEG, que fala na “melhoria das condições de vida”, seguido pelo PED que prega o crescimento econômico “aliado ao progresso social”. Este enfoque acentuou-se ulteriormente – tendência generalizada em todo mundo dentro de uma visão mais globalizante do crescimento econômico. No fim do período focalizado, o III PND, ao falar dos fundamentos do Plano, menciona que “o objeto do esforço nacional é a valorização do homem brasileiro”, uma concepção mais humanística do desenvolvimento. (3) *** Paralelamente ao problema do crescimento, é oportuno indagar qual foi o modelo, entendido sob vários ângulos, que os planejadores adotaram como solução para o Brasil. Uma pergunta básica quanto a esse modelo tem resposta inegável: os planejadores afirmaram sua opção pelo modelo liberal, o modelo do mercado e da livre empresa. Desde o início, o PAEG proclama o papel regulador do sistema de preços, mas, 340 341 justificando sua própria atuação, sustenta a necessidade da intervenção estatal através do planejamento econômico para corrigir as insuficiências do mercado, principalmente no que tange ao volume desejável de poupança, à formação das economias externas, à distri buição satisfatória da renda nacional e as distorções do mercado. Outrossim, os planos repetem a necessidade do fortalecimento da empresa privada e afirmam ex pressamente “a opção pela economia de mercado” (III PND). De fato, apesar da crítica socialista e da miragem da planificação centralizada na URSS – entusiasmo que ia arrefecer em anos mais recentes – o Brasil permaneceu basicamente fiel à tradição liberal, natu ralmente dentro da evolução geral rumo a uma economia mista. Esse aspecto é ressaltado de modo mais explícito no I PND que sustentara um modelo de mercad o “fundado na aliança entre o Governo e o setor privado”. Essas relações entre o setor público e privado apresentaram certas nuanças ao logo da ação planejadora. Inicialmente, pode-se estranhar que o PAEG, criado dentro de um clima de reação contra as tendências estatizantes anteriores, não tenha reservado maior atenção aos problemas da empresa privada e às suas relações com o setor público. A idéia era contudo de aplicar “uma política positiva que permita aos empresários nacionais competirem, em igualdade de condições, com os empresários estrangeiros, que operam no país” (Velloso). Parece-me que isso representava uma resposta antecipada às eventuais críticas contra a 341 342 política de abertura aos capitais estrangeiros. O “fortalecimento da empresa nacional” foi a tônica nos Planos subseqüentes, e ao lado dela, a preocupação com a definição e eventualmente limitação da competência do Estado. O desdobramento dessas idéias básicas já surge no PED que, ele também, proclama como primeiro princípio da filosofia do governo “o fortalecimento da empresa privada nacional” – uma adjetivação para rejeitar eventuais críticas nacionalistas. Ademais, o PED explicita que “o Governo não deverá executar diretamente aquilo que puder eficientemente contratar” e que “deverá ser extremamente cauteloso ao transferir recursos do setor privado ara o setor público”. Por outro lado, o PED expressa sua preocupação com dois fatos: “o debilitamento do setor privado” e “a pressão excessiva exercida pelo setor público”, e refere-se até à “reversão da tendência estatizante”, sem contudo aludir a uma verdadeira privatização da economia – o que se verifica igualmente nos Planos ulteriores. As METAS e o I PND bateram na mesma tecla: fortalecimento da empresa privada, incutindo-lhe um grau maior de modernização e competitividade. Não obstante, às vezes tem-se a impressão de que se desejava apenas manter o status quo: as METAS falam no equilíbrio Governo/setor privado e o I PND na integração Governo/setor privado, embora o processo de estatização continuasse. Já o II PND dedica menor atenção à empresa privada: fala apenas “na articulação natural e fecunda entre o Governo e a iniciativa 342 343 privada”. Na mesma época, o autor desse Plano, um tanto resignadamente, aconselhava “evitar o avanço da estatização” (Velloso). Nos anos seguintes, com a preparação da abertura política, parece fortalecer-se a reação contra o intervencionismo estatal. Entre os fundamentos do III PND inclui-se a opção brasileira pela economia de mercado, limitando-se explicitamente o papel do Estado “aos campos de atividades exigidos pelo interesse e segurança nacionais” ou em caráter supletivo. De fato, manteve-se a porta aberta à estatização ou pelo menos à manutenção do status quo. *** O objetivo prioritário do desenvolvimento econômico ficou ligado principalmente nos primeiros Planos, ao combate antiinflacionário. Os dirigentes econômicos da época criticaram duramente as distorções inflacionárias (Campos, Simonsen, Galvêas). A motivação imediata foi a escalada dos preços que demonstrava tendências nítidas de aceleração. Por outro lado, havia a resistência teórica dos grupos estruturalistas e semelhantes, que consideravam a inflação um instrumento de desenvolvimento através da poupança forçada por ela produzida, ou então, como o subproduto inevitável do próprio desenvolvimento. Assim sendo a base teórica e factual, era normal que o PAEG invocasse “o combate urgente ao violento processo inflacionário” e colocasse a luta contra a 343 344 inflação como verdadeiro objetivo prioritário. A preocupação com a inflação, além de merecer um capítulo especial no PAEG, aparece como um leit-motiv em várias oportunidades, construindo-se uma completa estratégia antiinflacionária de caráter ortodoxo. Essa preocupação arrefeceu já no Plano seguinte, visto que entre 1964 e 1967 a taxa inflacionária decrescera. O PED indica a meta de “uma relativa estabilidade de preços” e dedica apenas dois parágrafos ao problema. As METAS, nem tanto: entre os objetivos básicos reserva-se duas linhas à inflação, com a finalidade de “taxa decrescente até a relativa estabilidade dos preços antes de 1974”. No I PND, o problema da inflação já aparece totalmente ofuscado por outras preocupações. A ulterior deterioração do cenário externo, fez com que o problema da inflação reaparecesse no I I PND, porém ainda de forma discreta: “reafirmar a política de contenção da inflação pelo método gradualista” – referência essa refletindo os debates teóricos dos anos anteriores a respeito da melhor estratégia, gradualismo ou tratamento de choque. O recrudescimento da inflação sobretudo depois do segundo choque do petróleo explica a volta para a ênfase maior reservada à inflação do III PND que alertou sobre “substancial pressão inflacionária de origem interna e externa” e estabeleceu, infelizmente sem conseqüências prática, que “o controle da inflação é condição essencial para assegurar a eficiência, a estabilidade e o crescimento continuado da economia 344 345 brasileira e a melhoria dos níveis de bem-estar de nossa população” – linguagem que tinha sido abandonada nos Planos anteriores (5). *** Voltemos ao tema central do desenvolvimento econômico a fim de identificar alguns aspectos peculiares dos modelos adotados. Obviamente, os seus redatores não podiam preterir os fatores básicos do crescimento – trabalho e poupança. No concernente ao primeiro, já falei sob o aspecto da criação de empregos como já vimos a respeito do PAEG. O objetivo é repetido no PED e sob uma forma ou outra até o III PND, o qual proclama, como primeiro objetivo nacional, “o acelerado crescimento da renda e do emprego”. Acho que é oportuno sublinhar que a criação de empregos é encarada não tanto sob o ângulo de mobilização de um fator de produção, senão como medida social de distribuição da renda. Por exemplo, o III PND, refere-se ao “nível suficiente para ocupar de forma produtiva os novos contingentes de mão-deobra... e para absorver progressivamente os contingentes de desempregados e subempregados atualmente existentes”. (6) Outrossim, os Plano iniciais enfatizaram princi palmente o papel da poupança, talvez como reação ao atraso, até 1965, do mercado de capitais do País. O PAEG adota explicitamente o modelo de crescimento de Harrod-Domar que se articula em torno do volume da 345 346 poupança disponível e da relação capital/produto. O próprio planejamento é justificado em primeiro lugar, no PAEG, para corrigir a insuficiente formação de pou pança pelo mercado. E várias políticas nele idealizadas – financeira, tributária, bancária – tem, como escopo manifesto, a formação de poupança. Depois, o problema da poupança passou para um lugar mais apagado, mas permaneceu, às vezes para justificar o apelo aos capitais estrangeiros, assunto politicamente delicado. Aos poucos surgiu em lugar de destaque a questão do fator humano, a importância do comportamento da sociedade e portanto da educação. O capítulo “Educação” aparece já no PAEG, dentro do título mais amplo de “Desenvolvimento Social”, portanto não referindo-se diretamente ao processo de crescimento. Com o tempo, o pensamento econômico foi progredindo no sentido de dar maior ênfase aos recursos humanos como alavanca do desenvolvimento. Os Planos ressaltaram progressivamente esse aspecto e já o PED declarava a educação como “programa prioritário... essencial ao desenvolvimento”. Cada vez mais os Planos referiram-se aos recursos humanos (METAS) ou à política de utilização dos recursos humanos (I PND) e dedicaram capítulos especiais, de destaque, à Educação. Paralelamente cresceu a importância reservada ao progresso tecnológico. A expressão praticamente não existe no PAEG, mas o PED já aconselha a “amparar e fortalecer a tecnologia nacional” e “estimular a pesquisa 346 347 científica e tecnológica”; e o I PND fala num verdadeiro “Plano Tecnológico Nacional”. A idéia evidentemente permaneceu, mas recebeu depois menor d estaque, talvez por ser considerada implícita: aliás, o III PND esclarece que “é indispensável destacar a relevância da pesquisa científica e tecnológica e sua aplicação para o desenvolvimento nacional”. *** Outra indagação possível prende-se ao tipo de crescimento adotado do ponto de vista setorial. Nesse sentido houve um certo afastamento do modelo indus trialista puro, isto é, um modelo de crescimento de sequilibrado em favor da indústria. É verdade que o autor do PAEG escrevera ainda em 1953: “No caso brasileiro... parece claro que o desenvolvimento econômico deve ser associado a uma industrialização intensiva” (Roberto Campos) e o próprio PAEG previu “a recuperação das altas taxas de crescimento da indústria”, enquanto para a agricultura se desejava modestamente “a eliminação do seu relativo atraso”. O PED considerou a indústria “fonte de considerável dinamismo” e em geral os Planos, seguindo a posição do PAEG, estabeleceram para o setor metas quantitativas mais elevadas do que para o resto da economia. Não obstante, já as METAS fizeram uma ressalva, propondo “a objetivação de um desen volvimento mais integrado, ou seja, menos dependente de um setor – a indústria”. 347 348 Em decorrência dessa visão mais equilibrada do desenvolvimento econômico, os Planos reservaram, com maior ou menor ênfase, um papel especial à agricultura, para a transformação da agricultura tradicional (ME TAS); aumento da produtividade (PED); modernização e progresso tecnológico do setor – porém às vezes com vistas apenas à criação de empregos e redistribuição da renda. O papel estratégico da agricultura foi ressaltado, entretanto, pelo III PND em termos de fonte de crescimento, criação de emprego, solução energética, distribuição funcional e regional da renda nacional e sustentáculo da balança comercial. Comedidamente foi atacado, vez por outra, nesses termos, o problema da reforma agrária com uma conotação bastante conservadora (7). Para completar este panorama setorial falta acrescentar pelo menos dois itens: 1 – O aparecimento do problema do petróleo depois dos choques de 1973 e 1979. Evidentemente, reservou-se um certo espaço às questões energéticas em todos os Planos, mas já o II PND vez várias referências à crise do petróleo e colocou entre as “tarefas árduas” a de que “o Brasil deverá ajustar a sua estrutura econômica à situação de escassez de petróleo”. O III PND seguiu no mesmo sentido. 2 – O maior interesse pela preservação dos recursos naturais, poluição industrial (II PND), ambiente (III PND), refletindo o interesse universal crescente. 348 349 *** O equilíbrio do Balanço de pagamentos constituiu uma preocupação constante dos Planos. Desde o início, o PAEG colocou como quinto objetivo básico “corrigir a tendência a déficits descontrolados do balanço de pagamentos, a fim de evitar percalços decorrentes do estrangulamento da capacidade de importar”. De fato, tratava-se da adoção de um modelo definido de economia aberta para o exterior, em contraposição do modelo fechado iniciado, de uma certa forma, pelo processo de substituição de importações e o qual, sob as pressões do nacionalismo exacerbado, tendia para uma posição autárquica. A opção pelo modelo aberto foi amplamente justificada pelos dirigentes econômicos da época. Um deles explicou mais tarde o conceito: “uma economia aberta, que enfatize as exportações como fator de crescimento e admita a importação de capitais como elemento de transferência de poupança e tecnologia” (Roberto Campos), Parece-me que o móvel essencial da opção se ligava à importância conferida pelo PAEG à poupança, como já assinalei. Tratava-se de aumentar a capacidade de expansão da economia através do aproveitamento da poupança externa. Esta absorção exigia a obtenção de meios para pagar o serviço dos capitais, portanto a necessidade de ampliar as expor tações. Na época, tais posições enfrentavam a oposição da corrente estruturalista que apontava efeitos nocivos 349 350 do comércio exterior, bem como a dos nacionalistas que viam, na abertura, um fenômeno de dominação, uma dependência em relação aos países industrializados . Os partidários da abertura responderam, por exemplo: “(o comércio exterior) é instrumento altamente eficaz para abreviar o processo do desenvolvimento econômico e antecipar a formação de uma sociedade industrial” (Delfim Netto). E quanto à dominação estrangeira e a dependência ressaltaram que “(a interdependência) nos assegura o acesso ao desenvolvimento tecnológico e coloca à nossa disposição o enorme mercado dos grandes países industriais (Galvêas). O PAEG definiu as facetas do modelo aberto – e os Planos subseqüentes se fixaram na mesma linha – apenas o PED, embora reconhecendo o esforço de poupança obtido do exterior, pareceu insistir mais no mercado interno; porém não havia de fato nenhuma incompatibilidade real com o modelo aberto. Na linha mencionada, as METAS e depois o I PND aconselharam o equilíbrio do balanço de pagamentos para garantir o nível da importação. Já o II PND adota uma visão mais ampla referindo-se à “integração na economia mundial”. É interessante que essa confiança na cooperação econômica internacional se reforçou num momento de crise da economia mundial: o II PD aconselha um ajustamento à escassez de petróleo e o III PND, já depois do segundo choque do petróleo, exalta o papel dinâmico da exportação como fonte de renda, criação de empregos, redistribuição da renda funcional e regional. Por outro lado, o mesmo III PND assinalou “crescentes 350 351 pressões sobre o nível e custo da dívida externa”, resultantes do endividamento externo conscientemente assumido para manter o crescimento econômico após o primeiro choque do petróleo, e imprevisivelmente agravado pela escalada dos juros internacionais. O debate sobre a dívida externa, iniciado após a redação do III PND, tornou-se acirrado nos anos subseqüentes – e ainda não terminou (8). *** Finalmente, é preciso referirmo-nos a um tema que figurou de maneira constante no elenco dos objetivos planejados, mas cuja ênfase cresceu ao longo do período. Trata-se da correção das disparidades de renda sob os aspectos pessoal, funcional e regional. A preocupação com as desigualdades regionais vinha de longe, até antes da criação da SPVEA e da SUDENE. Desde o início, o PAEG aponta a necessidade de “ate nuar os desequilíbrios setoriais e regionais”. E a visão se alarga no PED que já fala em integração naci onal, expressão essa que vai se repetir nos PLANOS subseqüentes, por exemplo no I PND (Programa de Integração Nacional). No III PND o problema da correção dos desequilíbrios regionais chega a ser focalizado sob uma ótica ainda mais ampla: migrações, desenvolvimento industrial e agrícola, política energética, etc. Quanto aos outros aspectos das disparidades de renda vimos que o PAEG se referiu ao desequilíbrio 351 352 setorial, dando destaque à distribuição da renda nacional entre o setor do trabalho e do capital, mas encarou também o problema das desigualdades pessoais para cuja solução se referiu às políticas agrária, habitacional e educacional. A inadequada e desequilibrada dis tribuição das rendas pessoais foi, cada vez mais, abordada sob a pressão das correntes de pensamento humanista e da opinião pública em geral. Talvez tenha sido também uma razão de contestação política: Delfim Netto observou que face aos sucessos da política econômica após 1967, “o problema da distribuição da renda se transformou em um dos mais controversos temas da atualidade.” A meta distributivista mantém-se com destaque no PED (“participação de todos os brasileiros nos resultados do desenvolvimento”), nas METAS (Programa de Integração Social), no I PND (integração nacional e social, PIS, PASEP), II PND (“melhoria da distribuição da renda e oportunidades”), III PND (“distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento econômico”). Continuou, entretanto, a controvérsia sobre a opção prioritária entre crescimento e redistribuição, e em geral os Planos, fiéis ao seu objetivo básico, pareceram inclinados em favor do desenvolvimento, dentro de um certo equilíbrio. As METAS advertiram: “sem excesso distributivista” e o II PND falando na redistribuição da renda adverte: “simultaneamente com a determinação de manter o crescimento acelerado”. Mais tarde, um dos artefatos dos Planos resumiu a 352 353 posição que havia vingado: “crescimento e redistri buição da renda devem vir juntos”. (Velloso) (9) *** Não se trata nesse trabalho limitado proceder a um balanço das realizações propostas pelos Planos: isso exigiria a exposição de toda a evolução da economia brasileira no último quarto de século. Falando apenas nos objetivos adotados, pode-se afirmar não apenas que representaram em geral boas intenções a respeito do progresso do país, mas também corresponderam a um esforço de racionalidade econômica e coerência. São discutíveis, sem dúvida, as opções quanto ao modus faciendi, mas isto é apanágio das incertezas humanas: crescimento equilibrado ou desequilíbrio? Maior ou menor ênfase na agricultura ou na indústria? Economia aberta ou fechada? Maior ou menor intromissão do Estado na economia? Redistribuir antes ou depois de crescer? De qualquer modo não se pode contestar, mesmo numa avaliação perfunctória, que efetivamente a aplicação dos Planos registrou sucessos em vários campos, sucessos que foram devidos a um complexo de condicionamentos e não forçosamente ao planejamento em si. Assim foi no caso do próprio crescimento econômico, na expansão do comércio exterior, no combate à inflação, no aumento da capacidade de poupar. Progressos demasiadamente modestos ou quase nulos verificaram-se no campo da agricultura, da educação e da redistribuição da renda. 353 354 O balanço poderia apontar, também, as causas do fracasso ou da limitação das metas: fatores externos, deficiências administrativas, inércia da sociedade, e outras de caráter econômico, político e social. Mas a discussão desses aspectos, como se diz, “é uma outra estória”. Palestra proferida em 22 de novembro de 1990. NOTAS (1) No que tange ao desenvolvimento econômico, o balanço dos 20 anos aqui focalizados foi positivo. Depois de alguns anos de crescimento modesto devido as perturbações políticas, econômicas e sociais da época, o PIB começou a crescer a taxas r azoáveis e, a partir de 1968 até 1976, cresceu a taxas elevadas entre 9% e 14% ao ano (exceto em 1975), totalizando em 9 anos uma expansão de 115,4%, ou seja, na média anual de 10%. O segundo choque do petróleo e, principalmente, o colapso do sistema fina nceiro internacional em 1981/1982 interromperam o progresso, contra riando a opção desenvolvimentista dos Planos. Em 1977/1983 o cres cimento do PIB limitou-se à média de 2,8% por ano (sendo negativas as taxas de 1981 e 1983). Houve ligeira recuperação depois, No total do período de 1964 a 1985, o PIB subiu 176,2%, a uma taxa anual média assaz satisfatória de 6,2%. (2) A população economicamente ativa cresceu de 27,8 milhões de pessoas em 1960 para 43,2 milhões em 1980, mas, em termos relativos, houve um pequeno encolhimento: em relação à po pulação global ela caiu de uma proporção de 39,5% para 36,3%. Estes números são entretanto algo irrelevantes sem certa qua lificação, principalmente porque havia um grande contingente de ativos na chamada “economia informal”, incluindo semi-emprego ou desemprego disfarçados. 354 355 (3) No tocante ao desenvolvimento social, os resultados foram decepcionantes, malgrado alguns progressos realizados. Em 1983, havia ainda 30,5 milhões de analfabetos (23,4 milhões em 1960), 19 milhões de famílias abaixo da linha de pobreza (de renda até 1 salário mínimo), 24 milhões de pessoas sem água encanada (32 milhões em 1960), 5 milhões de domicílios sem instalações sanitárias (7 milhões em 1960), 30 milhões de pessoas sem luz elétrica (44 milhões em 1960). O problema da “dívida social” ficou no primeiro plano especialmente nos anos 80. (4) Apesar das declarações a favor da empresa privada e contra os excessos da estatização, a participação do setor público na economia cresceu, quase por inérc ia, amparado pelos interesses individuais ou grupais ligados ao setor. Alguns dados são relevantes, por exemplo: as despesas governamentais subiram de 21,6% do PIB em 1959 para 27,7% em 1973; a ação do Estado como empresário representava em 1969 cerca de 1 6% do PIB; o Estado era responsável por 60% dos investimentos em capital fixo; entre as empresas mais significativas do País em 1970, as estatais participaram com 47,5% do patrimônio líquido, proporção que subiu para 52,2% em 1976. (5) Entre 1960 e 1964 a taxa anual da inflação subiu de 29,1% para 90,7% (índice geral de preços-disponibilidade interna). As políticas aplicadas a partir daquela última data pressionaram a inflação para baixo, de modo que ela caiu paulatinamente de 57,1% em 1965 para 14,9% em 1 973. Os choques do petróleo, a inflação mundial e os descuidos internos permitiram novamente a escalada dos preços: o ICP-DI elevou-se para 42,7% em 1977, 100,2% em 1980 e 225,5% em 1985. Não se trata de fazer aqui a história desta inflação, nem a análise crítica das políticas implantadas: existe farta literatura a respeito (Campos, Simonsen, Delfim Netto, Galvêas). (6) A taxa de formação fruta de capital oscilou em torno de 17% do PIB nos anos 60. Nos 20 anos seguintes até 1982 situou -se em torno de 20% do PIB, com um nível máximo de 24,4% em 1975. As altas taxas de crescimento econômico na época explicam -se por uma baixa relação capital/produto. Após 1985 a formação de 355 356 capital iria cair até 16-17% do PIB ou menos. (7) Os progressos da agropecuária contin uaram modestos. As taxas de crescimento do setor flutuaram entre a média de 2,9% (1980/1983) e 5,0% (em 1974/1979, enquanto a indústria chegou à média anual de 7,5% em 1974/1979 e até 12,7% em 1968/1973), mas se mostrou mais vulnerável em períodos críticos : taxa de 1,3% em 1964/1967 e 1,0% negativo em 1980/1983. De qualquer modo, a alteração estrutural do PIB prosseguiu: a parcela da agropecuária caiu de 15,0% em 1964 para 10,1% em 1985 e a da indústria subiu de 30,0% para 35,5%. (8) A expansão das exportações foi vertical (ajudada em termos nominais após 1973 pela inflação externa e pela desvalorização do dólar): em milhões de dólares, 1.406 (1963), 6.199 (1973), 20.132 (1980); 25.639 (1985). As importações subiram ainda mais (vide o preço do petróleo), ma s foram contidas no final do período: 1.487 (1963), 6.999 (1973), 24.961 (1980), 14.332 (1985). A deterioração afetou o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos que evoluiu assim (em milhões de dólares): 114 (1963), 1.688 (1973), 12.807 (1980), 268 (1985). Os déficits em conta corrente, a escalada dos juros internacionais e o endividamento em bola de neve provocaram a seguinte evolução da dívida externa bruta (em milhões de dólares): 3.968 (1963), 12.572 (1973), 53.848 (1980), 95.857 (1985). (9) As estatísticas abrangem o período “crítico” de 1960 a 1970 que propiciou as críticas internas e externa ao modelo brasileiro sob o ângulo distributivista. Um exemplo sintético mostra que a faixa de 10% da população mais pobre aumentou sua renda, no período, em 28%, enquanto os 10% mais ricos a aumentaram em 67%. Os 40% de renda mais baixa reduziram sua participação na renda total de 11,20% para 9,05%, e os 10% mais ricos a aumentaram de 38,87% para 48,35%. O coeficiente de Gini subiu de 0,48 para 0,56. Quanto à renda regional, observa-se que a região mais rica (Sul, Centro-Leste) aumentou sua parcela na renda global de 74,7% para 76,7 do total, enquanto o resto do país desceu de 25,3% para 23,3%. 356 357 BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Roberto de Oliveira. Economia, Planejamento e Nacionalismo. Rio de Janeiro, APEC, 1963. DELFIM NETTO, Antonio. Vicissitudes da política econômica no Brasil. in: A Economia Brasileira e suas Perspectivas. Rio de Janeiro, APEC, 1969. DIAS LEITE, Antônio. Caminhos do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1966. GALVÊAS, Ernane. A Saga da Crise. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1985. GALVÊAS, Ernane. A Crise do Petróleo. Rio de Janeiro, APEC, 1985. GALVÊAS, Ernane. Brasil: Desenvolvimento e Inflação. Rio de Janeiro, APEC, 1976. GALVÊAS, Ernane. Brasil: Economia Aberta ou Fechada? Rio de Janeiro, APEC, 1982. GALVÊAS, Ernane. Brasil: Fronteira do volvimento. Rio de Janeiro, APEC, 1974. Desen- LANGONI, Carlos Geraldo. A Economia da Transformação. 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(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(430): 23-37, Janeiro 1991). 358 359 PROGRESSO E DECLÍNIO DO PLANEJAMENTO ECONÔMICO NO BRASIL O planejamento econômico representa a etapa mais avançada no processo de intervenção do Estado nas economias de mercado, uma intervenção que se pretende mais racional e mais articulada do que nas formas anteriores do dirigismo estatal. De fato, a presença do Estado na economia foi, em formas mais ou menos acentuadas, uma constante histórica, pois não se pode imaginar uma atividade econômica sem a existência de uma infra-estrutura política, jurídica e administrativa. Ademais, o Estado sempre assumiu ações propriamente econômicas. Não falemos da fase dominada pela doutrina mercantilista que foi uma doutrina de objetivo político (o poder) procurado através de instrumentos econômicos (principalmente o mecanismo da balança comercial). O triunfo do liberalismo econômico não implicou na expulsão do Estado da economia; ele atuou pelo menos através da ação tributária. Pelo contrário, na medida em que a economia liberal mostrava inevitavelmente suas imperfeições e deficiências, ela sofreu abalos sob o impacto dos ataques humanistas ou das críticas teóricas da Esc ola histórica, do socialismo romântico e do socialismo 359 360 chamado “científico”. Juntando-se às investidas do movimento sindical. O Estado procedeu a uma intervenção crescente em vários setores da economia, caminhando para uma economia mista em que ainda prevalece o mercado e a livre iniciativa, porém com uma boa dose estatizante. Talvez tenham contribuído, como um substrato ideológico, velhas aspirações utópicas de uma felicidade idílica, garantida pelo braço providencial do Estado – tal como nos sonhos de Platão, Campanella ou Thomas Morus. Por cima das utopias, certas realidades atuaram no mesmo sentido estatizante. Os desequilíbrios por que passou a economia mundial nas primeiras décadas do século XX propiciaram uma penetração maior do Estado na economia liberal, abalada por crises periódicas. A Primeira Guerra Mundial contribuiu nesse sentido, mas o impacto fundamental foi a Grande Depressão de 1929 que deu oportunidade a políticas econômicas fortemente intervencionistas, não apenas em Estados totalitários, mas também nos países democráticos, a começar pelos Estados Unidos de Franklin Roosevelt. Tratou-se de um intervencionismo mais amplo e mais articulado – precursor do planejamento. Incentivo no mesmo sentido foi recebido da experiência soviética de planificação centralizada, cujo sucesso foi exaltado pela propaganda ideológica. Por outro lado, a idéia de uma intervenção macroeconômica estatal recebeu forte respaldo das teorias de Keynes. Foi nos anos 30 que o intervencionismo sob a 360 361 forma mais racionalizada do planejamento quis assumir posições abrangentes, num sentido macroeconômico e não somente com o emprego de planos parciais. Aos poucos, tornou-se uma verdadeira panacéia. A intervenção estatal estendeu-se, ainda, eventualmente com maior intensidade, nos períodos de crise após a Segunda Guerra Mundial quando proliferaram planos econômicos em vários países liberais. Isso correspondia em primeiro lugar à convicção de que o liberalismo puro era inoperante e que o modelo certo devia ser o de uma economia mist a. Desse intervencionismo crescente brotou e se fortaleceu a idéia de planejamento como fórmula racional de orientação de uma economia mista. *** Evolução semelhante em direção ao planejamento ocorreu no Brasil. Entretanto, antes de abordar este relato histórico é mister proceder a algumas precisões de terminologia, inclusive para esclarecer o sentido do título desta palestra. Evidentemente, quando falo de declínio do planejamento no Brasil não posso referir-me à palavra lato sensu, ou seja, ato de fazer planos, elaborar um plano ou roteiro, projetar ações desejadas. Nesse sentido, o plano faz parte de qualquer atividade humana, não apenas econômica, que pretenda um mínimo de racionalidade. Muitas definições do planejamento econômico 361 362 não passam, pelo menos implicitamente, de uma simples afirmação da racionalidade necessária para o sucesso de qualquer política econômica, tanto no nível macro como no microeconômico. Diz um analista abalizado: “(Planejar é) agir com racionalidade e senso de previsão” (Velloso, citando James Tobin). Ou: “o planejamento é... apenas um método racional de expressar a volição coletiva” (Roberto Campos). O planejamento, neste conceito de conjunto de medidas bem ponderadas e logicamente sistematizadas, é intrínseco a qualquer atividade econômica racional. Mas não é disso que se trata nesta perfunctória investigação. Ela se refere a um sentido mais restrito, mais técnico de noção de planejamento. Para melhor apertar a terminologia. Poder-se-ia partir de uma definição ainda genérica, porém mais técnica de que as declarações de racionalidade antes citadas, como a de que “(planejamento consiste em) elaboração por etapas, com bases técnicas... de planos e programas com objetivos definidos”. (Aurélio) O planejamento strictu sensu pressupõe uma ação consciente do poder público com vistas a atingir certos objetivos em nível macroeconômico. Aí vale aduzir à diferença entre o planejamento aplicado nas economias de mercado em que as medidas propostas são obrigatórias para o setor público, mas apenas indicativas para o setor privado; e de outro lado o planejamento aplicado nos sistemas de economia sem mercado livre, socialistas ou comunistas (a que prefiro chamar pla nificação) em que o plano substitui o mercado e todas as 362 363 atividades econômicas são decididas compulsoriamente pelo órgão central de planificação. De qualquer modo, na economia de mercado, as medidas apresentadas dentro do plano exigem certas condições de formulação técnica que confiram coerência e lógica ao planejamento. Numa formulação esquemática, um verdadeiro instrumento de planejamento deverá conter: o diagnóstico da economia – os objetivos perseguidos – as metas quantitativas a serem alcançadas durante a vigência do plano – as políticas governamentais a serem aplicadas – e os recursos a serem mobilizados. Em alguns casos, os chamados planos, não passam de declarações de política econômica indicando estratégias e metas, ou de programas de desenvolvimento, incluindo também prioridades e incentivos. A experiência brasileira nos últimos 50 anos revela uma orientação crescente para o planejamento completo, seguida, em anos recentes, de um certo abandono desse objetivo ambicioso. É o que tentarei mostrar a seguir. *** A experiência planejadora começou no Brasil dentro do ambiente até aqui sumariamente descrito. Tal como em outros países, a aproximação da Segunda Guerra Mundial e, depois, sua explosão necessitavam uma direção mais firme e articulada da economia nacional. Ao lado do DASP (Departamento Adminis 363 364 trativo do Serviço Público), já existente, apareceu o CFCE – Conselho Federal de Comércio Exterior (1934), que apesar de seu título limitativo, assumiu funções mais abrangentes, chegando a pensar na formulação de um verdadeiro planejamento econômico nacional. Inicialmente foram arquitetados planos setoriais de emergência exigidos pelas realidades bélicas: em 1939, o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional, cuja missão era “a criação de indústrias de base, com a dotação da defesa do país”. Em continuação, criou-se para outro qüinqüênio e com praticamente os mesmos objetivos, o Plano de Obras e Aparelhamento (1944). Várias iniciativas do CFCE e do DASP resultaram na criação de órgãos visando ações planejadoras, como a Comissão de Defesa Nacional, a Coordenaç ão da Mobilização Econômica, o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial o qual chegou a fazer uma proposta de planificação nacional – e culminando com a constituição da Comissão de Planejamento Econômico (1944). Sugestões no mesmo intuito plane jador partiram das comissões norte-americanas que estudaram modalidades de cooperação e desenvolvimento no Brasil: Taub (1942), Cooke (1943) e Abbinck (1948). Foi nesta época que ocorreu o célebre debate em torno da necessidade do planejamento econômico, entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Simonsen, parti dário do planejamento, considerava “aconselhável a planificação de uma nova estruturação econômica, de 364 365 forma a serem criadas dentro de determinado período a produtividade e as riquezas necessárias para alcançarmos uma suficiente renda nacional”. Gudin, liberal ferrenho, referia-se ironicamente a “mística do Plano” e ao “equívoco de pensar que se pode conciliar o domínio do Estado sobre a economia com a democracia política”. O pós-guerra assistiu, pelas razões já expostas, à expansão das políticas econômicas planejadoras em regime de economia mista. O primeiro fato a assinalar nesta fase foi durante o governo Dutra, o plano SALTE (1948) que contudo não passava de uma exposição de despesas governamentais prioritárias (Saúde, Alimentação, Transporte, Energia), sem uma definição rigorosa dos recursos a serem mobilizados e sem uma indicação dos instrumentos de ação. De fato, o plano SALTE teve uma vida curta e bastante inexpressiva. Um novo passo foi dado pela COMBEU (Comissão Mista Brasil-EUA) cujo relatório final (1953) constituiu quase um esboço de planejamento, com um diagnóstico global da economia brasileira, a identificação de objetivos prioritários e a elaboração de projetos setoriais. Paralelamente, foi decretado o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico (1951) o qual entretanto não constituía um verdadeiro plano no sentido amplo da palavra, mas sim, um programa de mobilização financeira com vistas ao financiamento dos projetos administrados pelo BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), criado na época. Ainda neste período preparatório, uma contri buição importante foi dada pelo Programa de Metas 365 366 (1955) do presidente Kubitschek. Sem constituir um plano global, o Programa de Metas representou contudo um aprofundamento da tendência planejadora, não apenas pela sua elaboração mais completa, mas também pela sua confiança na técnica do planejamento – a visão progressista e otimista do desenvolvimento a ser realizado através do plano. A institucionalização dessa técnica verificava-se na criação de um órgão especializado de supervisão e controle – o Conselho de Desenvolvimento – e de órgãos de execução e acompanhamento – os Grupos de Trabalho e os Grupos Executivos. Não se tratava de um plano global, mas apenas de “um somatório empírico de objetivos de origem muito variada e não totalmente compatíveis entre si” (Lorenzo Fernandes). Pode-se definir também como um conjunto de programas setoriais, sem cobrir por inteiro a economia nacional. Implicava entretanto numa opção de prioridades que podem ser identificadas nas suas categorias de projetos elaborados, que previam as metas físicas e quantificavam os investimentos. Uma iniciativa de chegar a um verdadeiro plano incluindo medidas de compatibilização financeira foi feita através do Programa de Estabilização Monetária (1958), o qual, por motivos políticos, não chegou a ser implementado. Apesar das limitações indicadas, o Programa de Metas representou um passo efetivo na direção do planejamento global. Este começou com o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-65) do 366 367 Governo Goulart. Foi deste momento até 1979 que a atividade planejadora chegou ao seu auge, coma elaboração de planos macroeconômicos globais e não apenas pluri-setoriais, planos assumindo as características antes mencionadas. Vale observar que a adoção da técnica plena de planejamento começou com um governo estatizante, senão de objetivos coletivizantes: o Plano Trienal declarava no seu prêmio o propósito de “assegurar ao Governo uma crescente unidade de comando dentro de sua própria esfera de ação”, e, ainda mais, “criar condições para que dentro de poucos anos possam ser introduzidas técnicas mais eficazes de coordenação das decisões”. Os dirigentes subseqüentes do planejamento do período citado foram de convicções basicamente li berais, porém houve, a partir de 1964, a afirmação explícita de que era necessário incutir um grão maior de racionalidade no sistema econômico e para tal fim o planejamento constituía o instrumento indispensável. Essa posição teórica refletiu-se também numa institucionalização do planejamento, primeiro, de maneira mais limitada com a criação da Comissão e Planejamento Nacional – COPLAN – de 1961 e, depois, do Ministério Extraordinário de Planejamento e Coordenação (1962), transformado mais tarde em Secretaria junto à Presidência da República (1975). A consolidação do planejamento em termos de implementação e controle dos planos foi complementada pela criação do Sistema de Planejamento Federal (1 972) – marcando o ápice da evolução. 367 368 Os partidários do planejamento não desconheciam as suas limitações: a deficiência das informações estatísticas apesar dos progressos feitos; a precariedade das projeções e dos modelos econométricos; as incertezas decorrentes da presença de um grande setor privado; as eventuais surpresas oriundas do setor externo; a descontinuidade administrativa. Aliás, para garantir a coerência do planejamento, os últimos planos dessa fase foram estabelecidos por períodos que ultrapassavam a duração do mandato presidencial. Entrementes, firmava-se a convicção da imprescindibilidade do planejamento. Essa confiança não esta va desprovida de perigos, pois tendia a uma concepção de auto-suficiência: a técnica de planejamento parecia constituir por si mesma uma garantia de sucesso, uma espécie de irrealismo tecnocrático. Tanto é que um observador percuciente, embora comprometido com o planejamento, escreveu: “a expressão planejamento assumiu em realidade qualidades de mística” (Roberto Campos). Os planos produzidos entre 1963 e 1980 refletiram essa confiança no planejamento e se empenharam em organizar a economia de acordo com o modelo planejado. Assim, o Plano Trienal de 1963 começa pela definição dos objetivos da ação econômica, bem como as metas setoriais, procede a projeções globais da economia, identifica certos condicionamentos da política econômica, projeta os investimentos setoriais necessários, e constrói o programa de desenvolvimento até 1965 e às vezes, até 1970. O fracasso do Plan o 368 369 Trienal, sua vida curtíssima se deveram, além das inevitáveis mazelas do planejamento, às condições sócio-políticas da época. O Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG – para 1964/66 progrediu no sentido do aperfeiçoamento da técnica de planejamento criando um plano no sentido mais rigoroso da palavra, embora tenha declarado modestamente que “não tem a pretensão de apresentar se como um novo plano de desenvolvimento, mas apenas um programa de ação do governo no campo econômico”. Não obstante, constitui um verdadeiro plano pelo qual “a ação governamental complementa, mas não necessariamente substitui os mecanismos de mercado” – expressão que reflete o conflito implícito do planejamento numa economia de mercado. O PAEG, entretanto, esclarece que “o planejamento econômico vai importar numa definição sistemática e coerente por parte do Governo, das medidas tendentes à criação da ordem dentro da qual operarão as forças do mercado”. Com este propósito, o PAEG define inicialmente os objetivos e instrumentos de ação, estabelece metas quantitativas de crescimento, passa a explicitar as políticas a serem aplicadas setorialmente e apresenta o orçamento de investimentos do governo e os programas setoriais, com projeções até 1970 ou mesmo 1980. O empenho planejador aparece ainda na afirmação de que o PAEG prepara “as bases para um planejamento mais orgânico e de longo prazo”. Essa ambição se concretizou ainda durante o governo Castello Branco no preparo de um Plano 369 370 Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social (1967). O roteiro dos trabalhos para a formulação deste plano e sua implementação revela a decisão de proceder a um amplo planejamento incluindo os elementos indispensáveis de um verdadeiro plano, como já mencionado, acrescentando um programa de investimentos governamentais e privados e um orçamento-programa para o período 1967/1971. A despeito desses preparativos, a mudança presidencial determinou o abandono do Plano Decenal mesmo antes de ser inteiramente formulado. Nos períodos presidenciais seguintes (Costa e Silva/Médici) a atividade planejadora continuou intensamente através de dois documentos que, apesar de não ter o título explícito, constituíam verdadeiros planos do teor dos antecedentes, em intenção e formulação: Diretrizes de Governo – Programa Estratégico de Desenvolvimento (1967) e Metas e Bases para a Ação do Governo (1970). Em que pese o abandono do ambicioso projeto do Plano Decenal, o interesse oficial pelo planejamento não arrefeceu. Os dois diplomas citados, com duração de 3 anos cada um, assumiram feições de um verdadeiro plano, com maior ênfase no último, embora este tenha declarado modestamente que “não constitui novo plano global” mas “trata -se de documento de sentido eminentemente prático e mais voltado para a execução”. O Plano Estratégico contém a definição dos objetivos básicos; as diretrizes da política econômica; o 370 371 programa estratégico e as diretrizes setoriais; A inten ção globalizante manifesta-se em que entre os setores abrangidos, figuram não apenas os existentes no PAEG, mas também outros como a Justiça e as Forças Armadas. Não obstante, o Programa Estratégico limita-se à declaração pormenorizada das políticas governamentais a serem implantadas, sem metas físicas quantificadas (o que representava um recuo em relação ao PAEG). Tampouco continha previsões de recursos para investimentos, mas pretendia orientar a elaboração de um Plano Trienal do Governo de 1968 a 1970. As Metas e Bases, apesar da ressalva citada, acentuavam a tendência planejadora em caráter macro econômico nacional. As suas pretensões mais abrangentes aparecem já na definição dos objetivos, incluindo enfaticamente “a grande tarefa nacional”, ou “as conquistas essenciais”. A mesma tendência globalizante aparece na formulação da ação setorial que abrange vários setores inclusive alguns sem caráter econômico. Ademais, estabelecem-se metas físicas quantificadas bem como projetos, com investimentos também quantificados. Por outro lado, o plano devia ser completado por um novo orçamento plurianual de investimentos, e subseqüentemente pelo I Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (I PND) com vigência em 1972/74. Com este I PND que será seguido pelo II PND (1975/1979) chegou-se ao auge da ação planejadora. O entusiasmo por essa ação pode ter sido também reflexo dos sucessos alcançados pela economia nacional da 371 372 época – a do “milagre brasileiro” que lhe foi parcialmente creditado, pelo menos no tocante à racionalidade da direção econômica. As maiores pretensões de planejamento manifestaram-se tanto na amplitude e sofisticação dos objetivos nacionais propostos, como no detalhamento das políticas, dos instrumentos de ação e menor interesse pela construção imponente de planos detalhados em objetivos, instrumentos e metas quantitativas? Talvez simplesmente fosse a decepç ão dos resultados alcançados após 1975, demonstrando que, devido a outros fatores reais, a existência dos planos não representa uma garantia de sucesso. Isso pode ter correspondido também ao ressurgimento mais vigoroso do pensamento liberal, ao que se acrescentou em tempos mais recentes a divulgação das enormes dificuldades enfrentadas pela economia soviética, desfazendo o velho mito da panacéia da planificação centralizada. A discrepância entre os objetivos planejados e as realizações efetivas decorreu, em muitos casos, das insuficiências administrativas – um perigo sempre existente e mais acentuado em épocas de confusão política, social e moral como ocorreu no último qüinqüênio. A inflação crescente constituiu igualmente um fator de insegurança nas previsões e programações financeiras. Mas aquela discrepância entre as realidades e as pretensões da ação planejadora podia decorrer de um fenômeno social assaz corriqueiro que é a tendência das instituições de cresceram de maneira autônoma, sim plesmente por sua própria inércia, fora da realidade. 372 373 Mas, houve outro elemento perturbador muito mais grave que foi a deterioração do cenário internacional com os choques do petróleo de 1973 e 1979 e o colapso do sistema financeiro internacional em 1982, o que tornou extremamente precárias as previsões – daí a flexibilidade recomendada pelo III PND. Em tempos mais recentes, após a nova Constituição de 1988, a situação se complicou ainda mais devido à maior força de decisão do Congresso Nacional em matéria econômica e à maior autonomia dos Estados e Municípios, limitando o poder planejador do Governo Central. É impossível prever a evolução futura do planejamento econômico no País, mas continuando a tendência recente, ela parece fixar-se na formulação, pelas autoridades públicas, de um conjunto racional e coerente de diretrizes setoriais, tanto para o setor privado como para o público, dentro dos objetivos maiores da comunidade, ficando os resultados, quantitativos ou não, a serem conferidos a posteriori, como um resíduo. Tal comportamento pragmático justifica-se especialmente no caso de uma conjuntura econômica ou política cheia de imprevistos. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Roberto de Oliveira. Economia, Planejamento e Nacionalismo. Rio de Janeiro, APEC, 1963. 373 374 LAFER, Betty Mindlin. Planejamento no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1973. LEWIS, W. Arthur. Os Princípios do Planejamento Econômico. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1960. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(428): 53-62, Novembro 1990). 374 375 OS ANOS 80: A DÉCADA PERDIDA Tornou-se lugar comum na opinião pública qualificar os anos 80 como uma “década perdida” ao se referir à performance econômica do Brasil. Os fatos parecem justificar a denominação, porém é sempre aconselhável desconfiar das caracterizações glob ais. Uma observação atenta poderia descobrir se alguns momentos do período focalizado, ou certos setores da economia nacional, se salvaram da qualificação pe jorativa. Mais importante, a análise seria eventualmente capaz de identificar os condicionamentos negativos de evolução – o que constituiria um não desprezível ensinamento da História. *** Para se ter uma idéia mais clara dos acontecimentos, é preciso começar por descrever o cenário internacional da década, de vez que ele foi determinante sob vários aspectos, principalmente na primeira parte do período. A década se iniciou ainda sob o impacto do segundo choque do petróleo de 1979 que surgiu ines peradamente, mesmo na opinião dos especialistas do assunto e numa proporção muito maior do que no 375 376 primeiro choque de 1973: em pouco mais de um ano, a cotação internacional de petróleo quase triplicou (1). Essa mudança abrupta dos preços relativos abalou toda a economia mundial, não poupando os países industrializados. Entre 1980 e 1982 o comércio exterior destes países se retraiu ou ficou estagnado, as suas balanças comerciais tornaram-se deficitárias, conseqüentemente cresceu seu déficit em conta corrente do balanço de pagamentos e diminuíram suas reservas internacionais (2). É importante sublinhar que, pa ra se defenderem, os países industrializados adotaram práticas protecionistas que afetaram os subdesenvolvidos, por definição mais sensíveis às contrações do comércio exterior. Ademais, o desenrolar econômico dos países desenvolvidos foi atingido, refletindo-se na redução das taxas de crescimento e no aumento do desemprego, o que também provocou políticas autônomas de defesa com prejuízo dos países em desenvolvimento (3). Por outro lado, o choque do petróleo se manifestou também nas pressões inflacionárias: sob este aspecto, o impacto foi mais rápido, já deste 1979, prolongando-se até 1981 e afrouxamento em 1982(4). Essa escalada de preços, exorbitante pelos moldes das economias ocidentais, justificou políticas antiinflacio nárias que, no caso mais relevante dos Estados Unidos, se deram no sentido da contenção monetária e creditícia – o que resultou na alta vertical dos juros internacio nais(5), com efeitos desastrosos para os países em desenvolvimento: primeiro, como eles haviam aumentado seu endividamento externo no período entre os dois 376 377 choques do petróleo a fim de sustentaram seu desenvolvimento na base de juros baixos, o ônus da dívida externa se tornou insuportável(6); segundo, a alta dos juros desincentivou a formação de estoques, o que se refletiu na queda das cotações dos produtos primários exportados pelos países em desenvolvimento. Essa queda contribuiu para aliviar a situação dos países industrializados que já tinham melhores condições para reagir contra os efeitos negativos da crise (7). Quanto à posição dos países endividados, embora aliviada pela baixa das taxas de juros internacionais após 1982, agravou-se devido à crise financeira inaugurada com a insolvência da Polônia e a moratória do México (1982), e ainda mais pelo fracasso da Conferência de Toronto, em setembro do mesmo ano, que marcou um verdadeiro colapso do sistema financeiro internacional. A partir de 1983 a situação se normalizou, prin cipalmente nos países industrializados que comandavam a economia mundial. Mais tarde foi possível afirmar-se que “no conjunto, os anos 80 foram marcados pela retomada da economia mundial” (8), embora os países em desenvolvimento, como sempre, tenham se apro veitado menos da conjuntura favorável, e a Europa Oriental tenha começado a sentir as perturbaçõ es da liberalização. A recuperação foi naturalmente creditada ao progresso tecnológico, mas este fato se tornou também prejudicial aos países menos desenvolvidos por reduzir a dependência da produção em relação aos produtos primários, cujas cotações caíram sistematicamente. 377 378 Entretanto, o crescimento do Centro foi beneficiado pela liberalização da economia e a limitação das políticas monetaristas contencionistas (Reagan e Thatcher). Um certo abalo pareceu surgir com o crash na Bolsa de Nova Yorque em 1987, mas suas repercussões negativas sobre a economia real foram superficiais e passageiras, perdendo-se entre os fatores positivos da recuperação. Esta refletiu-se também no intercâmbio comercial, favorecendo como habitualmente, os produtos industrializados (9). Não obstante, persistiram aspectos de guerra comercial, de caráter protecionista, embora às vezes apresentados sob forma de defesa liberalizante (por exemplo no contencioso comercial entre o Brasil e os Estados Unidos). Ademais, o problema da dívida externa dos países em desenvolvimento continuou onerando pesadamente as suas economias, cirando dificuldades de negociação e estrangulamento nos balanços de pagamentos. Houve, aí também, um certo desanuviamento demonstrado pelo empenho em solucionar o impasse dentro de uma cooperação internacional maior(10). *** Pode-se agora tentar alinhavar alguns aspectos característicos da década no Brasil, tanto os que justificariam considerá-la “perdida” como os que, não obstante, se apresentaram como elementos posit ivos. 1. O aspecto que provavelmente mais justificou 378 379 aquela qualificação negativa foi a desaceleração do crescimento econômico. O III PND em 1979 tinha declarado enfaticamente que “o Brasil não pode renunciar ao crescimento”, mas entre essa decisão e a realidade surgiram os imprevistos já mencionados: alta do preço do petróleo, perda nas relações de troca, crise do sistema financeiro internacional. Depois, os maus resultados ficaram por conta de fatores internos, como veremos mais adiante. Nas condições adversas surgidas desde 1979, o primeiro triênio acusou uma taxa negativa de cres cimento do PIB – uma ilustração da interdependência econômica em escala mundial. Apesar disso, o cres cimento do PIB brasileiro se recuperou em 1984/87 – prova de que a estagnação não é inelutável: afinal, o Brasil já tinha estruturas relativamente sólidas, de correntes de uma lenta evolução secular e mais dinâmica nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Pode -se especular que a frustração da última década resultou também do confronto com as excelentes conquistas conseguidas durante o chamado “milagre brasileiro”. A decepção tornou-se maior quando, depois do despertar de 1984/87, a economia brasileira voltou a registrar taxas baixíssimas ou mesmo negativas de crescimento no último triênio da década (11). No total a taxa anual média seria de 1,5% (para o período 1981/90) ou de 2,8% (considerando o período 1980/89). Taxas modestas, sem dúvida. Não obstante, não se comparam tão desfavoravelmente com as dos outros países, mesmo dentre os industrializados. 379 380 Conclui-se, como consolo, que o hiato entre o Brasil e os países mais avançados não cresceu, pelo menos na maioria dos casos (12). 2. É oportuno incluir aqui um aspecto um tanto positivo: a redução da taxa de expansão demográfica. De acordo com o levantamento recentemente divulgado pelo IBGE, a população do Brasil cresceu entre 1980 e 1990 à razão de 1,9% ao ano, de 119 para 143 milhões de habitantes, demonstrando uma nítida desaceleração a partir dos anos 50, quando o crescimento demográfico se dera à razão de 3,1% anuais. Quanto às causas da mudança, não há indicações concludentes: urbanização? elevação das rendas? trabalho da mulher? alteração dos padrões sociais ou morais? De qualquer modo, do ponto de vista econômico, se a taxa de 3,1% se tivesse mantido, a população no último ano da década teria sido de 152 milhões e não de 143 efetivamente computados em 1990: uma diferença de 9 milhões a menos de novos brasileiros exigindo habitação, alimentação, infra estrutura e educação. De forma global com um crescimento anual bruto do PIB de 2,8% e expansão demográfica de 1,9%, há aumento líquido de 0,9% ao ano em termos per capita; a taxa se tornaria negativa com uma expansão demográfica de 3,1%. 3. A desaceleração do desenvolvimento econômico é colocada, entre outros condicionamentos, em função da diminuição da taxa de formação de capital. O momento crítico foi em 1986: a taxa de formação 380 381 bruta de capital começou a cair desde o início da década até 1986 voltando a se recuperar em 1987/90. Obviamente os reflexos sobre o crescimento foram defasados por alguns anos, porém é extremamente difícil avaliar essa defasagem. Verificou-se, progressivamente, um retraimento dos investimentos privados, tanto internos como ex ternos, como resposta a um estado de instabilidade econômica, à incredibilidade do governo, à inflação crescente e à falta de uma política econômica trans parente e coerente. Por outro lado, diminuiu o fluxo dos investimentos públicos, esteio importante do processo, devido à crise financeira do setor público. A desconfiança, alimentada pelas negociações infrutíferas em torno da dívida externa, também foi provavelmente uma das principais causas da retração dos investimentos estrangeiros, cujo ingresso anual caiu de cerca de US$ 1,5 bilhão no início da década para a média de US$ 560 milhões em 1983/90. 4. A menção referente ao retraimento dos investimentos públicos nos leva à sua causa mais imediata, responsável aliás por outras mazelas do pe ríodo: o permanente e elevado déficit público. Essa situação decorreu de um conjunto de condicionamentos: a queda da renda tributária (ineficiência, sonegação), o aumento das despesas correntes (excesso de funcionalismo, irracionalidade, outra vez ineficiência), o peso crescente da dívida pública interna – um círculo vicioso. 381 382 O resultado global é percebido na centralização do aumento crescente do déficit do setor governo nas contas nacionais (13). Isto refletiu-se negativamente no crescimento, pois o setor público se tornou um peso morto ao invés de injetar recursos na economia. Na medida em que isso se tornou conhecido, constituiu um fator de desencantamento da sociedade com o Estado e com os governantes – um fator de desagregação. Ademais como já disse, o déficit público eliminou uma fonte importante (não apenas em termos quantitativos, mas também e, sobretudo estratégicos) na formação bruta de capital. Por outro lado, o déficit público e seu financiamento tornaram-se, na opinião quase unânime dos técnicas, uma fonte perene de inflação. 5. Sem dúvida, o estado inflacionário crônico e com repetidas tendências de crescer constituiu uma das principais razões e de efeitos sociais mais patentes para a qualificação da “década perdida”. A história é bastante conhecida. A taxa inflacionária subiu em 1980/82 para um patamar em torno de 100% anuais: foi o efeito da alta de preços causada pelo segundo choque do petróleo e pelas dificuldades do balanço de pagamentos. Mas a inflação persistiu proprio motu: começaram a agir as estruturas inflacionárias de que já tive oportunidade de falar aqui (agosto de 1990). No triênio 1983/85 a taxa anual da inflação flutuou um pouco acima de 200% anuais, alimentada pelo déficit público e eventualmente por alguns deslizes da política financeira, monetária e cambial. A experiência heterodoxa do Plano Cruzado em 382 383 1986 propiciou, malgrado seu diagnóstico errado, um alívio temporário – “a fugaz trajetória do cruzado” (14), prejudicado por interesses políticos eleitoreiros. Na falta de uma política antiinflacionária adequada, a marcha continuou depois, apesar das tentativas dos Planos Cruzados II, Bresser Pereira e Verão. A taxa inflacionária que estaria num patamar ainda razoável em 1986 subiu continuamente até certo de 200% ao ano em 1989. No primeiro trimestre de 1990 ela flutuou em torno de 70-80% mensais, justificando o temor de uma hiperinflação, se esta, na realidade já não existia (15). Esse ambiente inflacionário destorceu as relações econômicas, desincentivou os investimentos, estimulou a especulação financeira, contribuiu para o agravamento do déficit público e, de forma global, criou a chamada “cultura inflacionária”, com raízes fundas, resistentes, no início da década seguinte. Numa palestra anterior (junho de 1991) tentei identificar responsabilidades não apenas do lado do setor público, mas também do corpo social como um todo. 6. Coloca-se no passivo da década perdida o considerável aumento da dívida externa do País. Ela cresceu de US$ 53,8 bilhões em 1980 para US$ 97,7 bilhões em 1990. Este montante correspondia a mais de três vezes a receita anual de exportação. E os juros pagos naquele ano de 1990 foram de $ 8,7 bilhões contribuindo basicamente para o déficit em conta corrente do Balanço de Pagamentos. O aumento da 383 384 dúvida implicou num escoamento de recursos, desequilíbrio cambial e ameaça para as reservas internacionais. De fato, essa situação fora parcialmente herdada desde o período entre os dois choques do petróleo (1973/79), quando foi decidido manter o ritmo do crescimento econômico através do endividamento ex terno, aproveitando a liquidez financeira internacional e o baixo nível das taxas de juros, às vezes negativas em termos reais. A bomba entretanto estourou no fim dos anos 70 e sobretudo no início dos anos 80 quando as taxas de juros internacionais subiram verticalmente, onerando os países endividados. A situação agravou -se com a citada deterioração do mercado financeiro internacional em 1982. A crise da dívida externa representou um grande estorvo para a economia nacional, embora se deva rejeitar a idéia de que todos os males procediam desse lado. Mas o Brasil teve que se submeter a penosas negociações, mais a moratória unilateral temporariamente declarada em 1987 – percalços que afetaram o conceito do País no cenário mundial. 7. Nesta altura, é oportuno, para clarear um tanto o panorama, acrescentar um resultado positivo: o bom comportamento da balança comercial, especificamente – a expansão das exportações. No início da década o comércio exterior sofrera ainda o impacto do segundo choque do petróleo: o preço deste produto estava alto, o valor da importação era superior a $ 22 bilhões e com 384 385 uma exportação razoável, a balança comercial apre sentava ainda um pequeno saldo negativo. Aos poucos, este cenário melhorou. Apesar da queda das cotações dos produtos primários e de alguns tropeços na política cambial, especialmente a manu tenção de uma taxa cambial supervalorizada para não se constituir em foco inflacionário, o valor da exportação subiu paulatinamente e num salto notável chegou a $ 33 bilhões em 1988/90 graças a uma política cambial mais realista. Ademais, o sistema de incentivos fiscais e creditícios, embora criticado, desempenhou um papel da sustentação. Entretanto, como fator adverso, continuava a desfavorável posição das cotações internacionais dos produtos primários. A resistência da receita de expor tação deveu-se a um grande esforço quantitativo, principalmente nas vendas de produtos industrializados: estes já eram responsáveis por mais de 50% do valor da pauta em 1980, mas esta proporção chegou a 70%, ou pouco mais, no último triênio da década. Paralelamente a despesa com importações se reduziu, em primeiro lugar graças à queda do preço do petróleo importado e ao esforço de substituição pelo petróleo nacional e pelo álcool. A euforia traiçoeira do Plano Cruzado ensejou um certo aumento da importação que atendeu a uma febre consumista. Porém, o cres cimento das importações veio no fim do período graças a uma certa liberalização do setor. Devido ao esforço exportador e ao alívio do lado das importações de petróleo, a balança comercial se 385 386 tornou superavitária, por um montante anual médio em torno de $ 11 bilhões, ultrapassado substancialmente em 1988 e 1989(16). Os sucessos alcançados na balança comercial permitiram reduzir o desequilíbrio em conta cor rente do balanço de pagamentos, desequilíbrio esse a ser debitado na conta de serviços, mais especificamente às despesas com juros. Ao longo da década, o déficit em conta corrente foi mantido na média anual de $ 2,7 bilhões. Isso representou um relativo alívio para o equacionamento do grande problema do endividamento externo. 8. Para enriquecer a conta positiva da década, vale detalhar um pouco mais o caso do petróleo. Ainda que se possa fazer restrições em termos de ritmo de crescimento, eficiência e modernização tecnológica, é preciso reconhecer que a década registrou nítidos progressos na produção nacional de petróleo bruto (17), embora se possa observar uma desaceleração quando se afrouxou a pressão do preço do petróleo importado. O chamado balanço do petróleo melhorou sensivelmente, no sentido de que a parcela do petróleo nacional aumentou em termos absolutos e relativos no consumo total(18). Conseqüentemente a despesa de importação que somava mais de $ 10 bilhões em 1981, caiu para cerca de $ 4 bilhões em 1990, evidentemente também por conta da queda dos preços. O alívio veio também da substituição energética, especialmente pelo álcool. Nesta área, apesar das 386 387 restrições ultimamente feitas ao Programa Proálcool, os progressos foram inegáveis. Mas aí também a euforia provocada pela queda das cotações internacionais, do petróleo resultou num afrouxamento: entre 1985 e 1990 a produção do álcool ficou praticamente estacionária. Não obstante, a performance do setor energético pode ser colocada no ativo da década. Quanto ao atraso tecnológico, essa faceta negativa não se limitou ao setor energético, mas, sim, abrangeu vários segmentos da indústria, em decorrência dos fatos já apontados: o retraimento dos investimentos e as dificuldades do balanço de pagamentos – aos quais podem ser acrescentadas certas políticas isolacionistas do tipo da lei da informática de 1984. 9. Talvez seja lícito condenar a “década perdida” por não ter resolvido ou pelo menos atacado com suficiente vigor o problema das disparidades das rendas pessoais. Nisso, o pecado vem de longe. De acordo com os levantamentos mais recentes, ainda que inevitavelmente precários, a concentração da renda teria aumentado na década: os 10% mais ricos da população detinham em 1981 45,6% da renda nacional, elev ando-se para 52,3% em 1989; os 1% mais ricos evoluíram de 13% para 17,3% da renda total; em contrapartida o quinhão dos 10% mais pobres caiu de 0,9% para 0,6%. Em números absolutos, cerca de 14 milhões de pessoas deteriam mais de metade da renda, enquanto os demais 126 milhões se limitariam aos restantes 47%. A certa altura sustentou-se que o Plano Cruzado teria provocado 387 388 uma salutar redistribuição da renda, mas foi simples ilusão decorrente da explosão do consumo. Como novidade entre os fatores desequilibradores vale mencionar o crescimento de uma classe privilegiada de altos rendimentos, formada pelos detentores do poder público, em todos os níveis funcionais e regionais – reflexo do crescimento da estatização na economia. Não obstante, apesar da persistência do que se acostuma chamar “a dívida social”, as mazelas do cenário distributivo se amenizaram sob alguns aspectos: na proporção das pessoas alfabetizadas embora ainda tristemente baixa; no número relativo de residências com abastecimento d’água, com iluminação elétrica, e com coleta de lixo. Pelo menos sob esses aspectos, a década não foi totalmente perdida. (19) Entretanto, apesar do mencionado programa em matéria de alfabetização, continuou, em estado idêntico, a deficiência educacional – mas o assunto sai do campo estrito da Economia, embora seus efeitos se sintam em todos os setores, inclusive econômicos. *** Será que a experiência histórica da década permite tirar algum ensinamento, descobrir explicações ou, por ventura, estabelecer responsabili dades? Sem dúvida, como sempre num processo social, há obrigatoriamente uma herança do passado, abrangendo instituições, hábitos, idéias e atitudes coletivas. O fenômeno é irreversível e só resta lamentar os efeitos 388 389 negativos ou louvar os positivos. Da mesma forma, devem ser aceitos com resignação os fatores exôgenos que afetaram o início da década. Alguns desses fatores tiveram efeito retardado após 1985, podendo-se apenas censurar o insuficiente empenho em curar os percalços do passado. Mas caberiam nisso algumas circunstâncias atenuantes. Passada a crise internacional do início da década, o Brasil aproveitou também a conjuntura favorável, apesar da herança incômoda representada pela divida externa. Depois, num ambiente internacional propício, a chamada Nova República entrou num processo de deterioração econômica, com o crescimento baixo e às vezes negativo, com inflação crescente beirando formas hiperinflacionárias e com a desarrumação generalizada da economia dentro de um ambiente político-social perturbado. Entretanto, o segundo qüinqüênio dos anos 80 iniciou-se sob o signo da euforia e da esperança: fim do regime militar, democracia ainda que numa forma algo tumultuada e irracional, eleições livres, mais tarde uma nova Constituição supostamente mais libe ral, e mais moderna, na medida em que estas duas qualificações não fossem interpretadas de maneira contraditória. Nesta segunda metade do decênio, houve também alguns aspectos positivos, como já assinalei, aspectos esses ligados à vitalidade e inércia de uma sociedade e de uma economia assaz maduras. Mas os percalços subsistentes não podiam mais explicar-se por fatores externos adversos. 389 390 Vimos que, em vários momentos da exposição histórica apareceu a responsabilidade do setor público, tanto na eclosão de crises como na incapacidade de sanar as surgidas fora do setor. A responsabilidade do governo (usando o termo num sentido abrangente a todos os detentores do poder) foi sempre ressaltada devido à capacidade, com seu poder político/econômico, sobretudo num modelo de intervencionismo estatal, não apenas de alterar os rumos da economia e as relações entre os agentes econômicos, mas também de influenciar o comportamento do corpo social, suas ações e reações. Como desculpa de ordem geral, pode-se alegar que os governos dos anos 80 foram confrontados com três problemas básicos cujas soluções pareciam incompatíveis: manutenção do crescimento econômico, equilíbrio do balanço de pagamentos e combate anti inflacionário. O III PND, no final da década anterior, tentou compatibilizar os objetivos através da ênfase conferida à expansão da produção agrícola. Entretanto, outras metas de curto prazo vieram prejudicar a linha mestra adotada, e por outro lado, como parecia inevitável, foram cometidos certos erros táticos, como por exemplo, na opinião de alguns técnicos, a pré fixação da correção monetária e cambial ou a manipulação dos índices da correção monetária a qual afugentou os poupadores. Havia, apesar de tudo, uma perspectiva alvissareira ligada à renovação política – tal como acontecera quando da Proclamação da República. Infelizmente, o que se considerou como uma vitória 390 391 política não teve reflexos benéficos sobre a economia nacional. De forma geral, o período de transição, já delicado por definição, se processou num cli ma de confronto e não de consenso, como se esperava inicialmente. A euforia da abertura política desembocou numa ilusão democrática que assumiu matizes quase anárquicas, provocando confusão administrativa, conflitos de competência e politização espúria. As sim, a economia foi desprovida do indispensável respaldo de sólidos quadros político-jurídicos, numa palavra, o afastamento de um Estado de Direito, condição indispensável do bom funcionamento da economia. Um relato histórico fiel registraria muitos episódios ilustrativos do quadro esboçado. Exempli gratia, seria suficiente citar dois casos: a frustração do Plano Cruzado, cujos efeitos foram totalmente pervertidos por interesses eleitoreiros; e a campanha pelo mandato presidencial de 5 anos, a qual resultou em desperdício financeiro e desmoralização do poder público. Frustraram-se as esperanças colocadas no papel regulador, equilibrador da nova Constituição de 1988. O resultado foi um texto híbrido, confuso, às vezes contraditório: para citar dois exemplos, a descentralização financeira que transferiu recursos para Estados e Municípios sem a devida contrapartida de obrigações; e a manutenção de alavancas estatizantes, em contradição com o discurso liberal. A confusão administrativa e a politização con tribuíram fortemente para a acentuação do mal básico que era o déficit público. Da impotência de eliminar 391 392 esse déficit decorreu a permanência de um foco in flacionário, a diminuição da capacidade de investimento e a desregulamentação geral da economia. A degradação do poder e a permissividade daí decorrente, a confusão administrativa, a incredibilidade do governo e a desarrumação da economia provocaram várias reações negativas entre os agentes econômicos: a recusa de investir, isto é, de acreditar no futuro da economia nacional; a fuga de capitais para o exterior; a sonegação fiscal; a corrupção; a resistência a qualquer medida reformista saneadora; a especulação (a ciranda financeira propiciada pela ineficiência das medidas antiinflacionárias); a adoção de medidas individuais de defesa, eventualmente ilegais contra a inflação; a fuga da ordem legal como no caso da expansão da economia informal ou clandestina. De forma geral e numa avaliação mais pessimista, assistiu-se a uma certa ruptura entre a sociedade e o poder público, e ainda mais a uma verdadeira crise de solidariedade e cooperação. A culpa vai possivelmente em primeiro lugar para os governantes cujo comportamento induz e justifica em grande parte as atitudes do corpo social, a não ser que se trate de um fenômeno de raízes mais profundas, ligado à crise moral de caráter mais generalizado em espaço e tempo. É sob este ângulo que entendo a expressão “a década perdida”. Palestra proferida em 21 de maio de 1992. 392 393 NOTAS (1) Em fins de 1979 a cotação do petról eo era de US$ 12,70. Em abril de 1979 já atingia US$ 14,54, em julho US$ 18,00. Um ano mais tarde, em novembro de 1980 alcançava US$ 32,00 e um ano depois US$ 34,00 por barril; depois começou a queda. (2) O comércio exterior (turnover) de 6 países princip ais – Alemanha Ocidental, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido – caiu de US$ 1784,9 bilhões em 1980 para US$ 1667,6 bilhões em 1982. (3) A taxa de crescimento média do PND dos países industrializados caiu paulatinamente de 3,6% em 1979 para 0,8% em 1982. (4) Ainda nos seis países selecionados, a taxa média da alta dos preços ao consumidor subiu até 12,5% a.a. em 1980 e se reduziu para 7,1% em 1982. (5) Em 1978 a taxa Prime era de 11,75% e a Libor 12,50%; em 1980 chegaram a 21,50% e 16,40% r espectivamente; em 1982 eram ainda de 14,60% e 13,60%. (6) A dívida externa dos países em desenvolvimento cresceu de US$ 276,4 bilhões em 1978 para US$ 505,2 bilhões em 1982. (7) A história e análise do segundo choque do petróleo encontram se em dois livros de Ernane Galvêas: A Crise do Petróleo. Rio de Janeiro, APEC, 1985 e A Saga da Crise. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1985. (8) Le Nouvel Etat du Monde – Bilan de la Décennie 1980-1990. Paris, La Découverte, 1990. (9) O comércio internacional de mercadorias cresceu de um total de US$ 1990 bilhões em 1980 para US$ 2880 bilhões em 1988. Nesse total, e entre as mesmas datas, o volume do comércio 393 394 cresceu 3% nos produtos minerais, 18% nos produtos agrícolas e 52% nos produtos manufaturados. Quanto à origem das exportações, as dos países industrializados aumentaram de 62,5% do total em 1980 para 70,3% em 1988, enquanto as dos países em desenvolvimento diminuíram de 29,6% para 21,6% do total. (10) Como exemplos as reuniões de Nova Yorque em 1985 entr e os Estados Unidos, Reino Unido, França, Japão e Alemanha ou os acordos subseqüentes de Paria (1987) e as tramitações dos Sete Grandes ainda em Paris em 1989. Neste último ano surgiu também o Plano Brady para facilitar a conversão e liquidação das dívidas externas. (11) Em 1981/83 a taxa acumulada foi de 7,1% negativos; em 1984/87 houve aumento de 26,6%; em 1988/90 voltou a ser negativa em 1,6%. (12) Os dados sobre o Brasil foram extraídos principalmente da coleção de anuários A Economia Brasileira e suas Perspectivas. Rio de Janeiro, APEC, 1981-1990. (13) Esse déficit foi de 1,5 a 4,7% do PIB em 1980/84, subiu para a média de 10% em 1985/87 e chegou a 15% ou mais nos anos seguintes. (14) No livro do mesmo nome, de Julian Chacel – Rio de Janeiro, JMC, 1987. Sobre o mesmo assunto ver, de Ernane Galvêas, As Duas Faces do Cruzado, Rio de Janeiro, APEC, 1987. (15) A evolução medida pelo índice geral de preços – disponibilidade interna, foi a seguinte: 65% em 1986, 416% em 1987, 1038% em 1988, 1786% em 1989 . (16) O superávit comercial registrou os seguintes valores depois dos fracos resultados de 1980/82 (em US$ bilhões): 1983 – 6,5 1987 – 11,2 1984 – 13,1 1988 – 19,2 1985 – 12,5 1989 – 16,1 1986 – 8,3 1990 – 11,0 394 395 (17) A produção nacional de petróleo b ruto subiu de 10.785 mil m 3 em 1980 para 37.777 mil m 3 em 1990. (18) Em 1980 para um consumo global de 1.094 mil bl/d apenas 17% cabiam ao petróleo nacional; em 1990, de um consumo de 1.225 mil bl/d já 50% eram nacionais. (19) A parcela de pessoas alfabetizadas acima de 5 anos de idade cresceu de 58,6% para 66,1% entre 1980 e 1989. As residências com abastecimento d’água aumentou de 60% para 73% do total, as com iluminação elétrica, de 75% para 87%, as com coleta de lixo de 49% para 63%. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(447): 53-62, Junho 1992). 395 396 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: CONDICIONAMENTOS Embora se enquadrando no tema do desenvolvimento econômico, minha palestra adota um enfoque limitado, a saber, da sua interdependência com o conjunto cultural histórico. Assim sendo, não pretendo tratar do comportamento propriamente dito do desen volvimento (produto, renda, emprego, etc.), mas tentar identificar os condicionamentos do processo no Brasil das últimas décadas. É ocioso lembrar que os elementos condicionantes imediatos são puramente econômicos: trabalho, poupança e investimento, tecnologia. Isto corresponde ao processo básico. No seu livro clássico sobre o assunto, W. Arthur Lewis coloca o mecanismo da causalidade em três níveis: primeiro, os recursos naturais disponíveis e o comportamento humano; este por sua vez, abrange como causas imediatas o esforço para economizar, o aumento do conhecimento e sua aplicação, e a expansão do volume de capital; por baixo ficam as causas de terceiro grau: as instituições e as crenças (diria melhor o sistema de valores) que determinam o comportamento humano. Os estudiosos enfatizaram a importância do cabedal cultural que se encontra nos alicerces do desenvolvimento econômico “São as mudanças nos valores que os homens 396 397 emprestam à vida... que são de importância decisiva na orientação dos esforços econômicos em novas direções.” (John U. Neff) “As forças econômicas devem ser consideradas dentro de uma matriz sócio-cultural... fatores políticos, sociológicos e psicológicos são altamente relevantes... uma completa consideração dos esforços de uma nação para levar a bom termo o seu desenvolvimento econômico abarca a totalidade de sua história cultural.” (Gerald Meier – Robert Baldwin). Assim sendo, tratarei das diversas manifestações da sociedade – idéias, atitudes, instituições e políticas – a respeito do processo de desenvolvimento: primeiro, os fatores relacionados aos “quadros” do processo que formam o seu ambiente espaço-temporal: quadro natural, quadro humano, e quadro histórico. Em seguida abordarei os fatores ligados às diversas facetas da sociedade: fatores culturais, sociais, político-jurídicos e econômicos. Há neste empreendimento várias limitações. Foi inevitável proceder a generalizações que podem fu gir à realidade, face às variedades horizontais e verticais no comportamento da sociedade brasileira. Por outro lado, os fatores a serem avaliados são, na maioria, de caráter qualitativo de modo que as avaliações podem ser altamente subjetivas. Espero que, generosamente, o auditório as aceite como hipóteses sujeitas a discussão. *** De acordo com o propósito desta palestra, ao abordar a questão do quadro geo-fisiográfico não 397 398 procurarei apontar as realidades físicas, mas, sim, o comportamento da sociedade perante as alterações do quadro. Em primeiro lugar está a resposta ao desafio da escassez, uma resposta quantitativa – a ocupação de novas áreas – mas também qualitativa em que se incluem as medidas adotadas contra secas e enchentes. (1) Não se deve desprezar o fato de que a disponibilidade de terras pode trazer ainda a propensão para cultura extensiva, desperdício e dispersão dos núcleos produtivos, embora amenizada pelo progresso dos transportes e da tecnologia. Apesar da amplitude dos recursos disponíveis, aumentaram, pelo menos em certos círculos, as apreensões quanto ao futuro esgotamento. Voltarei a falar sobre essa campanha ecológica. No setor energético, entretanto, a resposta brasileira ao desafio da escassez foi basicamente positiva, com a adoção de um vasto programa de substituição dos derivados do petróleo pelo álcool de cana-de-açúcar, além da intensificação da produção de petróleo da plataforma marítima (2) e o ingresso no campo da energia nuclear. A sociedade soube mobilizar se diante do desafio, ficando os percalços por conta das inevitáveis limitações culturais e tecnológicas. *** No que tange ao quadro demográfico, o que nos interessa, tal como no caso do quadro natural é o comportamento da sociedade diante da configuração e 398 399 evolução deste quadro. Algumas décadas atrás, provocou preocupação a elevada taxa de expansão demográfica, dado o ônus que tal fato tinha na estratégia desenvolvimentista. Foram aventadas medidas racionais para reduzir tal avalanche demográfica, mas a resposta predominante da sociedade não foi muito favorável: o hábito, a inércia, a oposição de diversos segmentos da sociedade, resultaram numa certa insensibilidade ou mesmo oposição a qualquer política de controle da natalidade. Ademais, o problema perdeu sua acuidade, pois em tempos mais recentes a taxa de expansão demográfica caiu para patamares mais aceitáveis, ficando contudo elevada nas camadas mais pobres da população, de modo que o problema passou para o plano da distribuição da renda. A diminuição da taxa de crescimento populacional refletiu-se forçosamente na pirâmide etária em que, 40-50 anos atrás, dominava fortemente a faixa da população jovem, com certo desinteresse pelo grupo dos mais idosos: era, e ainda é parcialmente, dada preferência aos mais jovens na distribuição do emprego, o que sob a ótica do desenvolvimento constitui van tagem em termo de dinamismo, porém perda em termos de experiência e racionalidade. A solução transfe re-se para o terreno da educação (3). *** Passando para o quadro histórico, pode-se dizer que ele se apresentou sob luzes assaz favoráveis. 399 400 Começou com a euforia do fim da Segunda Guerra Mundial, com a paz garantida pelo medo da catástrofe atômica e com um esforço, no plano internacional e regional, de cooperação e integração. O Brasil tirou proveito da conjuntura, embora tenha adotado inicialmente um modelo de crescimento introvertido. Um aproveitamento do bom ambiente externo tornou -se mais efetivo após 1964 quando o país adotou um modelo aberto de desenvolvimento econômico. Como já aludi, as mazelas provocadas pelo choque de petróleo de 1973 foram superadas, mas o de 1979 e a crise do sistema financeiro internacional não permitiram a mesma resposta positiva de um Brasil já fortemente endividado. Uma possível reação positiva foi prejudicada, vez por outra, por fatores internos, principalmente políticos, de que falarei oportunamente. Mas acho que subsistiu uma certa desconfiança em relação ao mercado internacional. *** Vamos tratar agora do comportamento da sociedade em termos da realidade cultural global. Referindo nos, primeiro, ao ideário relativamente dominante, a primeira pergunta seria se a sociedade desejava o desenvolvimento econômico? E a resposta é claramente afirmativa, não apenas por corresponder a faceta perene da natureza humana, mas também por ser motivada pelo baixo nível de renda e pela ocorrência da miséria e da pobreza absoluta. O avanço do materialismo, nocivo sob vários 400 401 aspectos morais, pode ser considerado como fator indutivo do esforço desenvolvimentista. Talvez não haja mais a euforia dos “50 anos em 5” ou do milagre brasileiro, mas a confiança não falta, apesar dos atropelos e das decepções da política. Não se deve subestimar o efeito-demonstração, exacerbado pelo poder crescente da mídia – o que desemboca às vezes em imediatismo e numa certa impaciência contra producente. De qualquer forma, a sociedade, pelas suas elites, firmou-se na crença no desenvolvimento e no seu tratamento racional. Falando em crenças e racionalidade, pode ser vista com desconfiança a proliferação de algumas seitas religiosas de nível excessivamente primário, as quais demonstram dose excessiva de fatalismo e se apegam às práticas mágicas, o que desvia do esforço consciente exigido pelo progresso econômico. Num plano mais positivo assistiu-se ultimamente a uma certa desclassificação do desenvolvimentismo em favor do distributivismo. Esta mudança de prioridade acentuou-se nos anos 70: a política desenvolvimentista de JK, por exemplo, não foi questionada do ponto de vista do distributivismo. Este interesse, evidentemente, não pode ser descartado, mas a sua ênfase no ideário da sociedade não deixa de constituir uma complicação para a política desenvolvimentista: nada mais difícil do que compatibilizar objetivos. É fato que existe um crescente inconformismo com a reinante distribuição da renda, o qual às vezes parece ligado a uma contestação global do sistema – 401 402 negativismo extremamente nocivo. Não obstante, as preocupações distributivistas não prejudicam radical mente o interesse pelo esforço desenvolvimentista. Este está sendo ainda considerado ligado à industrialização, embora o industrialismo tenha perdido algo do seu ímpeto em favor de uma visão mais globalizante da economia. A agricultura permaneceu algo marginalizada. A idéia de uma reforma mais ampla no campo fez pequenos progressos, sem que a sociedade encontre uma solução mais harmoniosa e eficiente em termos de estrutura agrária e produtividade agrícola (4). Outra complicação surge do nacionalismo econômico. Numa forma equilibrada ele se mostrou fator dinâmico do progresso e atuou proficuamente. Entretanto nas suas formas mais radicais foi contraproducente (por exemplo, na reserva de mercado em informática). Apesar da onda internacionalizante, tais posições puderam desviar as decisões de política econômica para uma emotividade irracional. Na mesma categoria podem ser incluídas manifestações antiliberais e, como subproduto espúrio tão conhecido, o anti americanismo. Tudo isso redunda na redução da capacidade de absorver poupança e tecnologia externas com prejuízo do ritmo do desenvolvimento. O fato foi, contudo, de efeitos limitados. O desenvolvimento sofreu também em tempos recentes uma certa inibição por causa do ecologismo. Sem dúvida, a preocupação ecológica é válida, colocando em causa perspectivas de longo prazo, mas a sociedade parece ainda perguntar-se em que medida o 402 403 presente deva ser sacrificado em prol do futuro. *** No campo dos fatores culturais é de capital importância o modo em que a sociedade encara e resolve o problema da educação. Nisso é lugar comum lamentar o atraso brasileiro, mas não se deve desprezar os progressos realizados, inclusive no setor do ensino técnico. (5) Os malogros do Mobral não afetam a qualificação positiva que se pode conferir ao esforço educacional. O que merece destaque é o interesse crescente que o problema educacional despertou na comunidade, não apenas nos círculos acadêmicos que nas últimas décadas reservaram atenção maior a educação como fator de desenvolvimento. Como comparação, vale lembrar o reduzido espaço que a educação ganhou nos primeiros planos econômicos até 1965. A própria opinião pública começou a enfatizar a educação como condição sine qua non do progresso. Constitui uma realidade auspiciosa o interesse dos jovens pela melhor a do seu nível educacional, embora às vezes esse interesse não seja acompanhado pela aceitação dos meios algo penosos de realizá-lo. No que tange ao conteúdo da educação, pode-se aplaudir sob um certo ponto de vista o abandono do beletrismo do século passado e a adoção de um ensino mais pragmático, mais técnico, mais voltado para os resultados práticos, embora possa ser questionado o 403 404 materialismo reinante e uma certa desqualificação do humanismo. Às vezes esquece-se a importância dos fatores éticos na boa atuação dos agentes econômicos. Aqui entra em jogo a opção da opinião pública, mas surge a dúvida quanto ao conhecimento correto das aspirações do corpo social. Esse conhecimento vem praticamente através da mídia, cuja diversificação e capacidade dominam crescentemente a formação de opiniões populares, às vezes em formas destorcidas. Decisões importantes relativas ao desenvolvimento econômico puderam ser induzidas pela mídia para fórmulas espúrias, por interesse ou simplesmente por inépcia. *** Agora vamos abordar os fatores sociais no sentido restrito da palavra, isto é, ligados à estrutura e ao funcionamento da sociedade. Acho que se deve atentar primeiro para o fato de a sociedade brasileira ser aberta em proporções satisfatórias. Apesar de restrições feitas com o intuito de desmoralizar o sistema, parece me que predomina o “homem cordial”, o que constitui boa garantia de cooperação, embora com o risco de decisões emocionais. Alude-se às vezes à discriminação racial, sobretudo quanto aos negros, mas acho que muitos fatos concretos não permitem uma conclusão radicalmente desfavorável. A miscigenação funciona e a marginalização está diminuindo: é suficiente olhar para o número de negros 404 405 e mestiços que atuam nos setores político, econômico e cultural até nos escalões mais elevados. O desenvolvimento econômico só pode ganhar com a integração. Isso demonstra outro aspecto positivo: a mobi lidade social vertical. Recentemente organizaram -se louváveis movimentos de solidariedade e integração dos denominados “excluídos” – movimentos contudo com um certo matiz maniqueísta que, pela insistência em denunciar a exclusão, parecem poder exacerbar conflitos de classe, prejudicando a mobilização para o desen volvimento econômico. A mobilidade vertical é impulsionada, entre outras, pela recompensa que através de instituições ou simplesmente atitudes, a sociedade reserva ao sucesso econômico. Este oferece, além de riqueza ou bem -estar, prestígio e poder, mas o caminho é invertido em muitos casos: o sucesso econômico vai para a classe política ou sua excrescência, a burocracia. Estes casos corres pondem a uma distorção nem sempre vantajosa para o desenvolvimento econômico. De qualquer forma, dada a falta de rigidez das estruturas sociais, não estão se formando classes fechadas, com acesso privativo a riqueza, apesar da relativa marginalização dos non possidentes. Pode-se falar também de um grau assaz elevado de mobilidade horizontal. Se as migrações internas são menores do que outrora, há ainda deslocamentos populacionais entre regiões, sem grades resistências. Pode haver competitividade regional devido a interesses econômicos locais, como foi por exemplo a propósito da 405 406 criação de pólos petroquímicos no Nordeste e de siderurgias no Sudeste, porém sem ameaçar profun damente o equilíbrio das decisões finais. A mobilidade horizontal manifestou-se sobretudo na transferência do campo para cidade. Fenômeno complexo, a urbanização constitui processo normal de reestruturação e modernização com efeitos salutares em termos de crescimento da classe média, mais dinâmica, mas a urbanização foi demasiado acelerada e algo anárquica(6), daí resultando a favelização das cidades com seus efeitos negativos. Ao mesmo tempo o campo ficou esvaziado, sem poder compensar totalmente a perda populacional por progressos técnicos e institucionais adequados. Por outro lado, a classe média urbana cresceu desordenadamente, corroída pelo fisca lismo e pela inflação. *** Passaremos agora para outra categoria de fatores, os político-jurídicos, de grande peso no processo econômico, em termos de organização, decisões normativas e participação do governo na economia. Comecemos com o governo, entendido como o conjunto de todas as instituições públicas detentoras de poder de decisão. No concernente aos grupos participantes ao exercício do poder, o panorama parece bastante equilibrado, sem preponderância acentuada de algum grupo: latifundiários ou industriais, civis ou militares, capitalistas ou sindicatos. Já aludi às 406 407 competições regionais, sem intensidade de natureza a prejudicar o equilíbrio geral da economia. Ademais, é suficiente lembrar que abalos políticos com os de 1954, 1961, 1964, 1985 e 1992 não interromperam radi calmente o processo do desenvolvimento. Em tese, a abertura política foi fator de consolidação da economia, mas esta foi afetada nos últimos aos por fatos que se prendem em grande parte à própria abertura liberal, ou melhor, aos seus excessos. (“a embriaguez da liberdade”). Um elemento perturbador consistiu na indefinição das relações dos Poderes constituídos, resultando em conflitos de competência, bem como choques em função da rotatividade dos agentes de decisão. Essa descontinuidade administrativa esteve li gada também a politização, ao clientelismo e ao empre guismo que prejudicaram a racionalidade exigida pelo desenvolvimento. A descontinuidade administrativa contribuiu para confundir os agentes econômicos e reduzir sua eficiência. Amiúde, os empresários não sabem mais que normas lhe serão impostas – daí a recente insistência não transparência das decisões governamentais. Por outro lado o quadro político-administrativo defende-se via aumento de suas dimensões, corporativismo e proliferação burocrática – fenômeno ligado ao próprio modelo de intervencionismo estatal e constituindo ao longo dos anos um peso crescente para a livre expansão da economia. Muitos dos abusos estão ligados à crise moral, aliás universal, que age de forma perversa sobre o 407 408 sistema do poder, contribuindo para acentuar a desconfiança dos governados em relação aos gover nantes, e chegando às vezes a uma verdadeira ruptura entre eles. *** Para completar o cenário é preciso aludir às políticas adotadas, não em seus pormenores de im plementação, mas apenas em seu espírito geral e nas reações da sociedade a seu respeito. E ponto pacífico que a orientação geral da política econômica continuou sendo dominada pelo liberalismo. Os programas de governo, mesmo no auge do planejamento econômico, repetiram insistentemente a fé nos princípios liberais, e a opinião pública teve de modo geral as mesmas convicções, salvo uma minoria, mais ou menos insistente e perturbadora, confessando simpatias coletivistas, socialistas ou mesmos comu nistas. Tais posições tornaram-se mais discretas após a queda do muro de Berlim, mas não desistiram. A despeito da nota liberal dominante, o modelo foi de uma economia mista com uma forte intervenção estatal no processo econômico. Apenas recentemente tomou-se posição mais firme no sentido de o Estado desistir das atividades empresariais e se restringir a ação normativa e supletiva e mais decidida em setores de interesse comunitário. A índole individualista da sociedade parece associá-la de forma orgânica ao modelo liberal, mas é evidente que subsiste, com 408 409 bastante força, por hábito ou inércia, uma mentalidade intervencionista ou de paternalismo estatal. Talvez se trate de um círculo vicioso, mas muitas vezes as resistências intervencionistas esconderam apenas interesses corporativistas – veja-se a oposição do funcionalismo de certos setores à política de privatização. Não obstante, domina a economia de mercado. E a sociedade se integrou crescentemente no mercado, que cresceu em termos relativos e absolutos com o aumento da população, a elevação da renda e o crescimento das dimensões físicas graças ao progresso dos t ransportes, bem como através da expansão fora das fronteiras políticas em decorrência da adoção após 1964 de um modelo aberto de economia. Apesar dos progressos feitos, o funcionamento do mercado apresenta às vezes tropeços e contradições, talvez por simples falta de tradição capitalista. Distorções puderam decorrer dos abusos dos agentes ou da própria intervenção excessiva do governo, da exacerbação das práticas burocráticas e do aumento do fiscalismo. Isto proporcionou outra distorção rotulada como “economia informal”, eufemismo para indicar práticas econômicas fora dos padrões legais. Como no caso do intervencionismo, a atitude da sociedade oscila entre a condenação teórica e a aceitação prática. Na mesma ordem de idéias convém falar sobre a atitude perante o fenômeno inflacionário. No plano acadêmico perderam força as teorias que concediam à inflação um papel desenvolvimentista. No plano social, 409 410 a inflação foi ainda mais desmoralizada depois das repetidas experiências em que a alta de preços beirou a hiperinflação. Mas, uma vez mais, pode-se detectar imprevistos e contradições nas reações do corpo social. A inflação crônica e a persistência das práticas individuais ou coletivas de defesa antiinflacionária criaram uma verdadeira mentalidade inflacionária, d e caráter especulativo, imediatista e egoísta, a qual perturba o mercado. *** Falta acrescentar alguns traços que me pareceram mais expressivos do comportamento da sociedade a respeito dos fatores de produção. No capítulo trabalho, um ponto a assinalar é o esvaziamento do preconceito em relação à participação das mulheres, preconceito esse que de fato atingia sobretudo as classes de posição social mais privilegiada. Aí deve ser acrescentada a melhora qualitativa, visto que os progressos educacionais atingiram a população feminina ativa. Por necessidade, hábito ou formação cultural existe uma razoável propensão para o trabalho. Fala -se vez por outra de uma “vocação lúdica” do povo brasileiro, mas acho que qualquer generalização é irreal por extrapolar hábitos de alguns grupos, em alguns centros, sobretudo urbanos. A democratização da sociedade, a redução de privilégios de classe ou de casta, as imposições crescentes do próprio progresso 410 411 econômico e político representaram tantas motivações para o trabalho. Esse ímpeto pode ter sido prejudicado pela falta de recompensa devido a má distribuição da renda, a inflação, aos excessos fiscais e outras deficiências institucionais ou pela crise moral com seu excesso de hedonismo. Entretanto há esforços no sentido positivo: no plano puramente econômico devem ser citadas as políticas redistributivas de renda, visando às vezes de forma explícita a classe trabalhadora, como nos projetos ainda não muito bem sucedidos de participação de empregados nos lucros das empresas. O fortalecimento dos sindicatos, salvo abusos demagó gicos, representa uma corrente de opinião equilibradora com efeito sobre as decisões finais. No caso da poupança e de sua contrapartida, o consumo, manifestaram-se, tal como em outros casos, contradições. De um lado uma crescente propensão para consumo, o que se explicaria pela progressiva elevação das rendas individuais, pelo efeito-demonstração exacerbado pela mídia e talvez como reação do consumo reprimido. Talvez se abuse da qualificação de con sumismo quando se trata de uma população na maioria de rendas baixas e com grupos de pobreza e miséria. Mas, em termos, a expressão contém um grau de verdade, sobretudo no sentido de que muitos preferem o consumo conspícuo ou ostentador em detrimento de uma aplicação mais racional da despesa. Não obstante, a poupança cresceu (8). É difícil dizer se houve uma alteração profunda dos hábitos de despesa ou se tratou apenas de flutuações conjunturais. 411 412 Mas parece fora de dúvida que, sobretudo a partir de 1965, desempenharam papel positivo as inovações institucionais que criaram novos instrumentos para captação e aplicação da poupança. As atitudes em relação ao capital são também geralmente positivas, salvo certas posições ideológicas minoritárias, principalmente a respeito dos capitais estrangeiros. Na maioria dos casos, os conflitos entre capital e trabalho ou entre capitalistas e consumidores não assumem proporções assustadoras, apesar do agra vamento provocado pela inflação. A classe empresarial que se fortaleceu e se conscientizou paulatinamente, desempenhou, com inevitáveis exceções de caráter conjuntural ou pessoal, o seu papel positivo, mantendo o nível de investimentos com a contribuição do setor público. (9) Uma certa retenção do capital privado pode explicar-se pela insuficiência da política governamental em termos de continuidade e transparência. Persiste, por outro lado, uma certa desconfiança em relação ao conceito de lucro que alguns grupos estão tentados a interpretar como uma espoliação. O empresariado mostrou suficiente espírito de inovação também, no que tange à tecnologia, com a adoção de novas técnicas de produção baseadas na automação e informática. Nisto merece destaque igual mente a adesão da mão-de-obra, demonstrando o trabalhador brasileiro uma notável capacidade de adaptação com vistas a elevação da produtividade, a despeito do atraso geralmente verificado neste sentido. Sem dúvida, a adoção de técnicas capital-intensivas 412 413 pôde prejudicar o objetivo de criação de empregos – é mais um exemplo da dificuldade de compatibilizar objetivos conflitantes. Acho que em geral prevaleceu o espírito modernizador e renovador da sociedade: embora reconhecendo a necessidade de criar empregos, mostra se maior atração pelo uso intensivo da inovação tecnológica. Recapitulando, o posicionamento em relação ao trabalho feminino, à diversificação da poupança e à modernização tecnológica constitui fator auspicioso para o futuro do desenvolvimento econômico. *** Que conclusão pode-se tirar desta exposição, com suas falhas e insuficiências? Afinal, a conclusão consiste no que foi dito desde o início: o desenvolvimento econômico é um processo extremamente complexo, de equacionamento bastante aleatório, de vez que entra em jogo uma multidão de condicionamentos positivos e negativos. Quer isto dizer que o processo deva ser deixado nas mãos da fatalidade? Obviamente, não. O processo é de desafios e respostas, e estas dependem da capacidade mais ou menos racional do corpo social. O desenvolvimento econômico é feito pelo homem, na medida em que, dentro das imperfeições de sua natureza, o homem está capaz de enfrentar seu destino. Palestra proferida em 25 de maio de 1995. 413 414 NOTAS (1) A expansão da área cultivada foi de 232 milhões de hectares em 1945 para 376 milhões em 1985 (aumento de 62%, menor do que o crescimento demográfico). (2) O petróleo da plataforma marítima chegou a ser responsável por 70% da produção nacional (1992). A produção de cana -deaçúcar cresceu mais de três vezes entre 1970 e 1989, a de álcool 14 vezes. (3) O perfil etário modificou-se também: a proporção de idosos (de mais de 60 anos) aumentou de pouco mais de 40% (1955) para quase 80% (1991) da população total. (4) A proporção dos latifúndios diminuiu: a parcela dos estabelecimentos de mais de 10.000 há cai u de 19% para 16% do total e a dos mais de 100.000 ha caiu de 0,5% para 0,3% entre 1950 e 1980. Paralelamente houve aumento relativo das proprie dades de até 10 ha: 1,5% em 1940; 2,5% em 1980. (5) Em 1995 havia ainda 18% de analfabetos na população maior de 15 anos de idade: em 1960 essa proporção era de 39%. (6) Entre 1940 e 1991 a população urbana cresceu de uma proporção de 31,2% do total para 73,3%. (7) Em 1940 apenas 19% da população economicamente ativa era mulheres; essa participação subiu para 35 ,5% em 1990. (8) Em percentagem do PIB, a poupança bruta subiu de 14% em 1947 para 20,6% em 1992, tendo passado por um auge de 21,8% em 1972. (9) A formação bruta de capital fixo subiu de 14,9% do PIB em 1947 para 18,0% em 1985. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 41(485): 33-43, Agosto 1995). 414 415 CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA (1965-1990) 415 416 CORRENTES E IDÉIAS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA (1965/1990) Neste trabalho tentei fazer um levantamento sucinto de algumas idéias que dominaram a opinião pública, as autoridades e os meios acadêmicos no Brasil em matéria de economia e política econômica. Não se trata propriamente de uma avaliação de tais idéias, embora os juízes de valor sejam às vezes inevitáveis. O objetivo foi basicamente histórico: expor o que aconteceu com as convicções duráveis ou passageiras – uma lição quanto à força, mobilidade ou fragilidade das opiniões e teorias em voga no último quarto de século, em confronto com os fatos históricos. *** Nos anos 60 provocaram grande alarde, comentários e eventualmente protestos as previsões do Hudson Institute, publicadas no livro O Ano 2000 de Kahn-Wiener. Vaticinaram que o hiato entre a renda per capita do Brasil e a dos países industrializados aumentaria muito até o fim do século. A relação da renda per capita EUA/Brasil passaria de 12,7 para 20,1; Alemanha Ocidental/Brasil de 6,8 para 15,4; Japão/ Brasil de 3,1 para 17,0 e assim por diante. Os fatos, entretanto, encarregaram-se de refutar, pelo menos parcialmente, as previsões do Hudson Institute. Já entre 1965 e 1990, a renda per capita do 416 417 Brasil crescera 104,8% (crescimento bruto de 281,3%, menos expansão demográfica de 86,2%), alcançando US$ 573 (em dólares de 1965), sensivelmente acima dos US$ 506 projetados por Kahn-Wiener para o ano 2000. Ademais, o hiato da renda per capita reduziu-se em alguns casos (dados de 1988): 7,4 para os Estados Unidos, 7,1 para o Canadá; e 6,4 para a França (em 1965: 12,7, 8,8 e 6,9 respectivamente). Em outros casos, realmente o hiato aumentou: Japão, Alemanha Ociden tal, mas trata-se de países excepcionalmente dinâmicos. O erro do Hudson Institute foi de proceder a uma extrapolação linear a partir da fraca performance brasileira no início dos anos 60 – um procedimento bastante primário que prejudicou as previsões e, de uma certa forma, contribuiu para desmoralizar a futurologia. É verdade que Kahn-Wiener tiveram a precaução de advertir em várias ocasiões que estavam trabalhando num “horizonte livre de surpresas”. Mas isso é irrealismo, pois o futuro está sempre cheio de surpresas. De qualquer modo, tais procedimentos encontradiços em vários planos e programas governamentais, confrontados com as realidades diferentes, provocaram um certo abandono das ilusões futurológicas e talvez uma descrença na própria capacidade antecipativa da política econômica. A inexistência do horizonte livre de surpresas proíbe, de certa forma, projeções de médio e longo prazos, ou mesmo de curto prazo. O quarto de século aqui focalizado incluiu pelo menos duas surpresas: os dois choques do petróleo de 1973 e 1979. É curioso que, 417 418 mesmo depois do primeiro choque, comentaristas abalizados consideravam altamente improvável uma nova escalada dos preços do petróleo. Mais uma prova da precariedade das projeções. *** Uma projeção destorcida, porém num sentido otimista, verifica-se quando se fala, entre historiadores e economistas, da taxa “histórica” do crescimento do PIB brasileiro, de cerca de 7% ao ano. Sem dúvida que tal simplificação não nega a existência de flutuações; mas por que esses 7% representariam um nível “his tórico” normal? Na realidade a taxa média no quarto de século enfocado ficou em torno de 5%. Os 7% cons tituem simplesmente a projeção de um curto período relativamente favorável de 1956 a 1961. A taxa histórica, isto é de prazo mais longo, por exemplo dos últimos 100 anos, vem se verificado bem menor. A escolha dos 7% é algo arbitrária e poderia ser con frontada com a média de 8,6% de 1967/1980 ou a de 1981/1990 que não passou de 1,5% ao ano. A presença dessas flutuações nos leva ao questionamento de outro conceito muito repetido nos comentários. O de desenvolvimento auto-sustentado. Esta expressão dá, por um lado, a ilusão de que o desenvolvimento econômico, uma vez iniciado, continuará sem interrupção ad infinitum e, ainda mais, se acelerará de acordo com o admirável processo dos juros compostos. Por outro lado, aquela expressão 418 419 sugere a visão de um ideal autárquico, a de um país totalmente fechado, isolado, que para crescer só prec isa de suas potencialidades próprias, dispensando qualquer apoio de fora. Sobre esta última ilusão falarei mais adiante. Quanto à visão de um desenvolvimento auto-sustentável, isto é, que continua hoje porque existiu ontem e continuará amanhã uma vez que acontece hoje, esta visão só pode ser aceita sob a condição de uma total simplificação dos fatos históricos. Vimos, aliás, que tal concepção mecanicista foi responsável por alguns percalços da futurologia. No caso do Brasil, depois do arranco razoavelmente identificado em torno dos anos 50, houve excelentes taxas de crescimento seguidas de um curto período de estagnação ou até retrocesso (1961/1966). Depois de um período brilhante (1967/1973), houve altos e baixos com períodos recessivos em 1981/83 e na passagem da penúltima para a última década do século. Certos casos históricos mostram até que a queda do crescimento pode desembocar num verdadeiro colapso. Evidentemente, num horizonte livre de surpresas, internas ou externas, uma vez ocorrido o arranco, cria mse condições para um desenvolvimento econômico durável: expansão de alguns setores industriais dinâmicos, maior capacidade de poupança e investimento, mas sobretudo “a existência ou a rápida eclosão de um arcabouço político, social e institucional” (Rostow), o que permite falar-se em desenvolvimento regular, uma situação normal ou bem “um progresso 419 420 continuado, embora flutuante” (idem). Entretanto, as surpresas são inevitáveis e em nossos tempos houve a oportunidade de se verificar as possibilidades de reversão das tendências de crescimento e de que a noção de desenvolvimento auto sustentado é válida apenas rebus isc stantibus. Atendo-nos apenas ao último quarto de século, assinalamos que a tranqüila marcha do desenvolvimento econômico foi interrompida por fatores externos adversos: os choques do petróleo e o colapso do mercado financeiro internacional (1981/1983). Estes últimos eventos ensejaram a retomada da idéia escapista de que a responsabilidade dos males recai sempre em cima do estrangeiro – o que seria um argumento a favor do fechamento da economia nacional. Entretanto os períodos recessivos no fim dos anos 80 e início dos 90 demonstraram que a auto-sustentação do desenvolvimento constitui um engodo quando entram em crise as condições políticas, sociais e institucionais que ensejaram o arranco e seu desdobramento. Nos anos 60 começou a se sofisticar a idéia do desenvolvimento: abandonada a fórmula simples do binômio “trans porte/energia” começou a se pensar num esquema correto, baseado em poupança e trabalho, talvez com maior ênfase na poupança, de vez que o trabalho era considerado uma condição óbvia. Foi a essência do modelo Harrod-Domar adotado como instrumento de análise do PAEG de 1964. Já no Plano Decenal de 1966 que se limitou a um exercício macroeconômico sem ser implementado, a 420 421 adoção do modelo Cobb-Douglas implicava na introdução de fatores institucionais mais complexos. Entretanto, a tendência mais característica da época foi no sentido de colocar maior acento nos recursos humanos e na educação, como parâmetros básicos do desenvolvimento econômico. A ênfase era certíssima, contudo parece que a educação foi pensada mais em ternos quantitativos e, quando qualitativos, apenas sob o ângulo do preparo tecnológico. De fato, o sucesso econômico exige transformações culturais mais profundas e as idéias evoluíram no sentido de que são necessários esforços por uma mudança qualitativa da sociedade, cuidando de outros aspectos como racionalidade, responsabilidade, solidariedade. Os fracassos da década perdida causaram uma certa perplexidade, pois não parecia explicável a fraca performance da economia brasileira quando não era mais lícito responsabilizar por isso a conjuntura internacional, já normalizada da segunda metade da década de 80. Houve um certo despertar – talvez ainda muito frágil. *** Observou-se corretamente que uma explicação da desaceleração do crescimento se encontraria na queda das taxas de poupança e investimento. Mas por que aconteceu tudo isso? O problema mereceria uma analise mais pormenorizada que ultrapassa as pretensões e dimensões destes comentários. Mas dentro do objetivo 421 422 mais limitado de historiar as mudanças de opinião e conceitos, parece-me que cada vez mais, a sociedade entendeu ser o desenvolvimento econômico em grande medida um problema político, não apenas no sentido de políticas econômicas governamentais, mas de maneira mais ampla no que tange ao funcionamento das instituições, à regulamentação e ordenação da economia, como também à confiança do corpo social, Pode-se dizer que se perdeu de certo modo a miragem da inexo rabilidade do desenvolvimento. Afinal de contas, isto pode ter contribuído para uma idéia mais objetiva, mais madura do processo. *** Dentro das teorias e opiniões ligadas ao mesmo problema, os anos 60, no liminar do quarto de século aqui focalizado, presenciaram a controvérsia em torno do binômio inflação/desenvolvimento. Durante algum tempo foram bem recebidas as teses estruturalistas que redimiam a inflação: ela constituiria um instrumento desenvolvimentista através do mecanismo da poupança forçada ou seria um processo inevitável devido aos estrangulamentos setoriais provocados pelo próprio crescimento. Alternativamente, ela representaria uma fatalidade histórica ligada às estruturas econômicas dos países subdesenvolvidos. Mesmo um economista ortodoxo pôde afirmar, na época, com o consenso de muitos outros, que “inflações pequenas, descontínuas e de curta duração podem ser usadas para redistribuir 422 423 recursos na direção dos investimentos’. (Roberto Campos). Essa visão algo pacífica da inflação decorria também da constatação empírica de que o desenvolvimento tem podido conviver com a inflação. Com efeito, a economia brasileira cresceu ao longo de sua vida independente dentro de um ambiente inflacionário crônico. Mesmo nos períodos de maior crescimento econômico a inflação persistiu: em torno da média anual de 17% nos anos 1950/58, mas subindo para 35-40% no fim dos anos 50 e para mais no início da década seguinte, até na fase brilhante do “milagre brasileiro” nos anos 1967/1973, quando caiu de 80% para 15% anuais. A excelente performance econômica nesta fase, num ambiente desinflacionário, conseguiu por algum tempo criar na opinião pública uma mentalidade de repúdio à inflação. Na época observava se que a inflação podia apenas “criar um clima eufórico de vendas, nominalmente elevadas e propensão para consumo” e que ela constituía tão-somente “um ingrediente artificial para infundir otimismo e euforia entre investidores e consumidores” (E. Galvêas). Outrossim, as teses estruturalistas perderam seu prestígio anterior, seja por causa das falhas da argumentação, seja por causa da inconveniência de suas conclusões. Essa visão, válida para as “pequenas” inflações e sob a condição de não funcionar o mecanismo auto propulsor da inflação, se esvaeceu com as inflações galopantes dos anos 80. A aceitação benevolente da 423 424 inflação começou a ser abalada já depois do primeiro choque do petróleo, quando os preços subiram desde 16% ao ano (1973) até 46% (1976). Com o segundo choque do petróleo e os desacertos da política antiinflacionária, a taxa da inflação chegou a 110% em 1980 e, com pequenas flutuações, continuou subindo até 241% em 1985. Os vários planos de combate (Cruzado I e II, Bresser Pereira, Verão, Collor) contribuíram ape nas para dar certas freagens, mas também para comprovar a resistência do processo. O espírito inflacionária firmou se dentro da sociedade. Depois da fase algo eufórica da convivência, veio com maior vigor a oposição aos males evidentes da inflação galopante ou da hiperinflação, se assim devia ou não ser chamada a inflação de 40% ao mês em fins de 1989 ou de 70/80% em início de 1990: parece mais uma questão semântica. Porém, era cada vez mais difícil louvar as virtudes da inflação desenvolvimentista ou propiciadora de poupança forçada. O que todo mundo via era a fuga para aplicações especulativas, a ciranda financeira, a retração dos investimentos, a saída dos capitais – um processo perverso e insuportável de redistribuição da renda, bem como políticas antiin flacionárias insuficientes e mesmo contraditórias. Isso resultou em atitudes individualistas de defesa, per petuadoras do processo. A cultura inflacionária chegou ao seu auge. E era difícil a opinião pública aceitar teorias pró-inflacionárias. *** 424 425 Entre os instrumentos oficiais de defesa contra os efeitos da inflação colocou-se em primeiro lugar a correção monetária ou indexação. A atitude coletiva em relação a esta variou também. No início e durante todo o período em que a correção acompanhou a marcha descendente da inflação, ela foi bem vista como um meio de coexistência pacífica. Entretanto, com o recrudescimento da inflação e sua renitência, a indexação começou a ser considerada “la bête noire” do processo – o mecanismo de realimentação indefinida da tendência altista. As altas crescentes de preços tornaram mais acentuados os procedimentos – de caráter público ou privado, setoriais ou generalizados – de correção dos preços e dos rendimentos para seu alinhamento, o qual nunca chega a se realizar na falta de uma operação drástica e dolorosa sobre as fontes inflacionárias. Assim, a indexação voltou com todo o seu falso prestígio. Ademais, isso contribuiu novamente para uma certa aceitação passiva do processo inflacionário. As políticas antiinflacionárias ressentiram-se da marcha imprevista e às vezes irresistível da inflação, bem como das atitudes da sociedade por ela provocadas. A bem sucedida política ortodoxa implementada em 1964/73 que deu pouco crédito às idéias estruturalistas agitadas naqueles tempos, responsabilizou pela inflação o déficit orçamentário, a expansão monetária e creditícia e os excessos salariais. As medidas governamentais visaram esses parâmetros e a opinião pública se 425 426 convenceu do acerto de tal diagnóstico e da política daí decorrente. Os choques externos da década de 70 e início de 80 abalaram em parte a confiança na ortodoxia, mas esta dominou ainda até meados da década de 80, quando em face da escalada irresistível dos preços, foram lançados novos diagnósticos e ensaiados novos remédios (baseados na teoria da inflação inercial) com êxito apenas passageiro. Firmou-se entretanto, cada vez mais, a convicção de que o grande responsável era o déficit público e a perplexidade foi grande, mais tarde, quando a redução deste déficit não teve forte impacto sobre a marcha da inflação. Para esta contribuía toda a sociedade, como tentei argumentar numa palestra aqui apresentada no ano passado. Parece finalmente que a opinião mais generalizada é de que a inflação constitui um problema político num sentido não apenas limitado à atividade do poder público, mas também num sentido mais amplo, compreendendo fatores sociais, culturais e psicológicos, e que conseqüentemente exige uma solução política. Como no caso do problema do desenvolvimento, a visão estritamente econômica perdeu do seu rigor em favor de uma concepção globalista, sócio-política. *** Um problema que preocupou constantemente a opinião pública e os meios acadêmicos foi o da posição e das dimensões do Estado dentro da economia. 426 427 Obviamente as idéias a este respeito evoluíram nos últimos 25 anos, mas, a meu ver, nem tanto quanto se declarou ou se desejou. É verdade que já tinha passado o tempo do ideal autárquico proclamado nos tempos difíceis após a Grande Depressão e durante a Segunda Guerra Mundial. Não obstante, o ímpeto da atividade econômica estatal persistiu, por inércia ou por falta de alternativa eficiente. Os estuturalistas até quiseram dar uma justificativa teórica – de fato bastante falaciosa: diziam que uma vez esgotado o modelo exportador de produtos primários e o de substituição de importações, o dinamismo da economia só poderia proceder de uma intensificação da ação do Estado, em termos de investimentos, produção e direção. O sofisma consistia na troca das premissas. Mesmo não levando em conta os interesses ligados ao processo de estatização e à burocracia, o estatismo encontrou um respaldo no intuito de racionalização econômica através do planejamento. Foi a época do pós-guerra quando os aparentes sucessos políticos e econômicos da União Soviética conferiram um brilho supostamente inegável ao sistema de planificação centralizada. A profissão de fé liberal, implícita nos anos 40 e 50, passou a receber o tratamento de dogma fundamental a partir de 1964. Como tive a oportunidade de mencionar numa palestra anterior, os planos econômicos governamentais insistiram enfaticamente durante mais de 20 anos na implantação de um modelo econômico baseado no mercado e na empresa privada, embora 427 428 admitindo a necessidade da presença do Estado n a economia, sob a condição de definir e delimitar sua área de ação. Foi um período de “fúria planejadora” pelo menos até 1980, portanto de aumento do dirigismo, de regulamentação administrativa e da criação de instrumentos burocráticos. A euforia em torno do planejamento, como reflexo dos bons resultados atingidos durante o “milagre brasileiro” foi sucedida por uma certa decepção quando nos anos 80 a performance econômica começou a deteriorar-se demonstrando que, em face dos fatores aleatórios externos e internos, a atividade planejadora e reguladora do Estado não é suficiente. Ainda mais, a expansão do setor público conduziu de forma visível à redução da eficiência, ao emperramento burocrático, à politização da economia. Já falei aqui em outra oportunidade sobre o arrefecimento da atividade planejadora desde o fim dos anos 70. Não obstante, a presença do Estado na economia continuou muito forte, propiciando dento da opinião pública críticas ao modelo intervencionista. Essa posição crítica foi alimentada também pela onde liberalizante prevalecente em várias regiões do mundo, inclusive na área socialista, onde Gorbachev continuou a obra de Kruschev de destruição dos antigos mitos leninistas/stalinistas. O governo instalado em 1990 enfatizou sua profissão de fé liberalizante no meio de dificuldades cuja exposição ultrapassaria os limites cronológicos desta palestra. De fato, se é lícito falar numa corrente 428 429 liberalizante, não devem ser subestimadas as resistência ideológicas estatizantes e socializantes. Essa dic otomia contraproducente se materializou nas contradições da Constituição de 1988. De onde vêm essas resistências? Seria outro estudo mais amplo a ser feito. Eu apontaria um primeiro lugar, para a vitalidade dos mitos, refletindo comportamentos irracionais da sociedade: apesar dos fracassos políticos e econômicos do modelo soviético e do seu respaldo ideológico marxista, muitos ainda não conseguem abandonar as ilusões com que foram alimentadas durante decênios. Apontaria também para as tradições de populismo e paternalismo, ainda conservadas em várias camadas da população e renovadas com propósitos demagógicos. Finalmente, há as resistências procedentes dos interesses da burocracia que luta pela defesa de suas prerrogativas. Mais uma vez o problema é basicamente político. *** É ponto pacífico que o início do quarto de século aqui focalizado assistiu a uma radical mudança no modelo econômico brasileiro no que tange ao setor externo. Passou-se de um modelo fechado, introvertido, para um modelo aberto, extrovertido, em que merece maior atenção o intercâmbio comercial e financeiro com o exterior. Essa mudança de posição foi aparentemente tranqüila, mas não deixou de provocar controvérsias. Sem dúvida, antes de 1965 ou mesmo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ocorrera uma mudança na 429 430 política econômica em comparação com o período posterior à Grande Depressão, quando por motivos bem conhecidos houve uma ruptura do sistema econômico internacional. Políticas econômicas nacionais, defen sivas e eventualmente agressivas, haviam provocado o estancamento, do comércio internacional com a pre valência da filosofia autárquica – fonte de tensões que contribuíram para a explosão bélica final. O triunfo das potências liberais que se esforçaram por reorganizar a economia mundial no pós-guerra, propiciou uma recomposição do sistema econômico internacional, fundamentado nos princípios do libera lismo econômico e da cooperação internacional. O Brasil integrou-se naturalmente na nova ordem internacional, adotando uma postura libe ral, embora subsistissem resistências protecionistas, nacionalistas, às vezes chauvinistas, bem como a ilusão da solução autárquica. Tal filosofia marginalizava de certa maneira o comércio exterior, embora a própria substituição de importações implicasse na abertura para o exterior para ser possível absorver capitais, tecnologia e equipamentos necessários ao processo substitutivo. O fato é que houve uma verdadeira estagnação das exportações e dos coeficientes de comércio exterior. Entretanto, não foi desprezada a entrada de capitais estrangeiros seja sob forma de empréstimos ou de capitais de risco (v. sobretudo a Instrução nº 113/1955 da SUMOC) , pelo menos até 1962 quando prevaleceram algumas idéias xenófobas (v. Lei nº 4131/1962). Uma sensível mudança veio a partir de 1964 430 431 quando, aparentemente com a adesão da opinião pública e de boa parte dos círculos acadêmicos, o governo adotou de forma explícita um modelo econômico aberto. A idéia era de acelerar e melhorar qualitativamente o desenvolvimento econômico através da integração maciça de poupança externa, tecnologia e equipamentos. E para as necessidades da importação e do serviço de capitais era imprescindível incrementar as exportações, o que foi feito primordialmente através de uma política cambial realista e do sistema de incentivos fiscais e creditícios. Aliás, a característica do modelo foi esse interesse pela expansão das exportações. Uns 15 anos depois, o III PND enfatizou mais o papel estratégico das exportações, não apenas como respaldo do balanço de pagamentos que na época há havia começado a apresentar graves problemas, mas também como fonte de renda e emprego e como instrumento redistributivo da renda regional e pessoal. O coeficiente de exportação chegou à média de 9,2 em 1980/84 e o de importação a 7,9 (em 1960/64, 4,5 e 6,0 respectivamente). Em valores constantes a média anual das exportações cresceu 655% e a das importações 586% entre 1960/64 e 1980/84. Num ambiente internacional favorável, o modelo foi um sucesso, contribuindo para fortalecer a posição dos seus partidários. *** Evidentemente o modelo aberto não estava 431 432 desprovido de riscos, de vez que era sensível às eventuais perturbações da economia internacional. De fato, a década de 70 foi profundamente abalada pelos dois choques do petróleo, que afetaram em diversas proporções tanto os países em desenvolvimento como os industrializados, tanto os países do mundo ocidental como os do bloco socialista, estes supostamente mais estanques em relação ao exterior. Como indicador expressivo pode-se mencionar a evolução do PIB dos países industrializados, a qual acusou queda em 1974/75, se redirecionou em 1976/79 e voltou a se desacelerar 1980/82. Por outro lado verificou-se uma queda no volume do comércio internacional: também entre os países industrializados, em 1980/82, as importações acusaram queda anual média de 0,5% e as exportações um modesto aumento de 3,1% ao ano, contra crescimento de 6,8% e 6,4% respectivamente no biênio anterior. Obviamente, os países em desenvolvimento, com menor capacidade de resistência, sofreram mais. Para compensar as graves restrições impostas aos seus balanços de pagamento tiveram que se submeter a um perigoso processo de endividamento externo, de modo que a dívida externa bruta desses países subiu de US$ 96,8 bilhões em 1973 para US$ 505,2 bilhões em 1982 – um crescimento de 5,2 vezes em 10 anos. A crise fi nanceira internacional de 1981/83 agravou substancial mente a situação. O Brasil não constituiu de forma geral uma exceção nessa degringolada generalizada. Sem entrar em 432 433 detalhes que foram melhor expostos e analisados por outros (v. Galvêas), citarei apenas poucos números: o déficit acumulado da balança comercial foi de US$ 27,5 bilhões em 1974/80, com uma exportação anual média de US$ 12,4 bilhões e importação de US$ 16,3 bilhões. Aproveitando, entre 1973 e 1980, a boa posição dos juros internacionais, às vezes negativos em termos reais, o Brasil optou por uma política de sustentação do desenvolvimento econômico através do endividamento externo. Realmente assim foi possível garantir taxas razoáveis de crescimento do PIB (entre um mínimo anual de 4,9% e um máximo de 10,3%). A dívida externa cresceu, e com a escalada dos juros inter nacionais após 1979 e o colapso do sistema financeiro internacional, a situação se tornou intolerável: a dívida externa que em 1979 era de US$ 49,9 bilhões, atingiu US$ 107,5 bilhões em 1987. Ademais as restrições externas, como já vimos, provocaram a queda brutal da taxa de crescimento econômico: em 1981/83 o PIB registrou uma redução de quase 8%. O desenrolar inesperado dos acontecimentos externos forneceu argumentos aos críticos da política adotada de crescimento econômico lastreado pelo endi vidamento externo. Tudo isso resultou num certo desencantamento com o modelo aberto, sem contu do firmar-se uma alternativa válida nos meios acadêmicos ou mesmo na opinião pública em geral. *** 433 434 Vale finalmente lembrar que durante muito tempo prevaleceu uma teoria que conferia ao setor externo um papel positivo, propiciador da industrialização e do desenvolvimento, porém, pode-se dizer, às avessas: a deterioração do mercado internacional favoreceria o crescimento da indústria nacional como se fosse graças a uma proteção compulsória. Esta “teoria dos choques externos” iniciada por um comentário de Hannibal Porto (1992) e reforçada pela autoridade de Roberto Simonsen, rezava que os grandes momentos de interrupção do intercâmbio mundial – a Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial – agiram favoravelmente, induzindo os empresários a proceder a investimentos industriais substi tutivos das importações afetadas pela conjuntura externa adversa. Ocorreu aí também uma reação que questionou fortemente essa visão e considerou a ruptura no sistema internacional como especialmente prejudicial, pelo menos a curto prazo. Contrariando posições acadêmicas bastante enraizadas, aquele questionamento pela cor rente revisionista referiu-se tanto à Primeira Guerra Mundial (Warren Dean, como à Grande Depressão (Carlos Manuel Peláez) e à Segunda Guerra Mundial (Mircea Buescu). Ulteriormente o revisionismo tornou se mais maleável, reconhecendo que os choques ex ternos podem ser tido reflexos positivos a prazo mais longo. Isto é, o impacto do choque externo provocara novas atitudes empresariais que iriam frutificar após a normalização do cenário internacional. 434 435 É interessante que a tese dos choques externos ressuscitou depois do segundo choque do petróleo, no II PND, talvez por necessidades estratégicas. (O II PND fala em desequilíbrios devidos à alteração das relações econômicas internacionais, porém “no momento seguinte” a reorientação adequada da política econômica “transformou o desafio internacional em fator de dinamização do crescimento”). Interpretou-se aí a crise do petróleo, portanto, como um estímulo, um desafio que exigiu uma resposta positiva da economia nacional, como por exemplo no grande programa do Pró-Álcool e nos esforços de substituição de importações de bens de capital. Entretanto a capacidade de resposta era bem diferente da prevalecente nos choques anteriores. Nos anos 70 o Brasil já dispunha de capacidade industrial e tecnológica que permitia a resposta positiva. Ademais, salvo por pouco tempo, o sistema internacional continuou funcionando com eficiência, logo a ruptura não era tão rigorosa. Pode-se dizer, de modo geral, que as mazelas sofridas nos anos 80 afastaram todas as simpatias pelos “choques externos”. *** Inevitavelmente, foram abrangidas nesta despretenciosa comunicação apenas algumas opiniões e teorias certas ou erradas, que alcançaram relativo sucesso no último quarto de século. Espero contudo que o apanhado apresentado tenha podido dar uma noção da 435 436 fugacidade das idéias econômicas, o que, afinal de contas, caracteriza todos os empreendimentos humanos. O ensinamento da História é que devemos ser muito precautos e circunspectos em face da voga temporária de certas opiniões e teorias, inclusive quando adotadas nos mais acadêmicos ou agitadas nos discursos políticos. Sem dúvida, os problemas aqui abordados exigi ram análises mais aprofundadas, para isso, a palestra precisava dispor de mais tempo, o autor da mais competência e o auditório mais paciência. Palestra proferida em 12 de março de 1992. BIBLIOGRAFIA BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. 1976. CAMPOS, Roberto de Oliveira. A teoria do Colapso. 1966. DEAN, Warren. A Industrialização de São Paulo . 1971. GALVÊAS, Ernane. Brasil: Economia aberta ou fechada? 1982. GALVÊAS, Ernane. A Crise do Petróleo. 1985. LANGONI, Carlos Geraldo. A Economia da Transformação. 1975. PELÁEZ, Carlos Manuel. História da Industrialização do Brasil. 1972. 436 437 SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2001. 1969. SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2002. 1974. VELLOSO, João Paulo dos Reis. A Solução Positiva. 1978. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 37(444): 49-58, Março 1992). 437 438 CAPITAIS ESTRANGEIROS (Um debate no Conselho Técnico) O presente trabalho comenta algumas palestras proferidas entre 1955 e 1958 no Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio e publicadas n a Carta Mensal. Elas foram reunidas, junto com outras palestras, num volume sob o título Problemas Econômicos e Financeiros (1958). Escolhi os debates em torno dos capitais estrangeiros por constituírem um capítulo expressivo na história das idéias econômicas no Brasil, representando também um testemunho da atuação do Conselho Técnico na difusão e discussão daquelas idéias. *** Para melhor compreensão das posições assumi das, parece-me oportuno lembrar inicialmente, de modo sucinto, o ambiente histórico e ideológico, no âmbito nacional e internacional, no momento em que se processaram os debates. A conjuntura internacional naqueles anos posteriores de apenas uma década ao fim da Segunda Guerra Mundial (1), foi dominada pelo programa da reconstrução após os danos da guerra e pelo problema do desenvolvimento, tornado este assunto de premente 438 439 atualidade em decorrência da liberação das antigas colônias (“O Grande Despertar” – na expressão de Gunnar Myrdal). Isso exigiu uma forte mobilização de capital em dimensões planetárias, o que determinou a organização do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Assim, vê-se que o problema debatido no Conselho Técnico era de incontestável relevância. As soluções estavam dificultadas pelos desequilí brios monetários e cambiais (para cuja solução havia sido criado o Fundo Monetário Internacional), acentuados pela escassez de dólares (the dollar gap) – sinal da discrepância entre a penúria no mundo e a posição preponderante dos Estados Unidos. A paralisação do sistema internacional e as dificuldades comerciais e cambiais tornaram preocupante o problema do balanço de pagamentos, preocupação essa que se revelará nos debates em pauta. Por outro lado, os desequilíbrios monetários provocados pela guerra e persistentes no pós-guerra colocaram na berlinda o problema da inflação, espectro ameaçador ressuscitado pelas experiências infelizes de certos países europeus. De qualquer forma, a fim de compreender o ambiente ideológico, é bom não esquecer que a idéia dominante era a do liberalismo e do multilateralismo econômico, em oposição às políticas autárquicas praticadas no período entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Tal universalismo enfrentava ainda os obstáculos criados pelo nacionalismo renitente bem como pela posição contestatória assumida pelo 439 440 comunismo agora vitorioso ao lado dos aliados ocidentais. Essas tendências poderão ser descobertas em intensidades variadas no confronto de idéias de que vamos tratar. *** O ambiente nacional era também de euforia, decorrente da paz externa e da renovação política interna, com a volta para um regime liberal democrático. O Brasil queria abrir-se ao fluxo internacional de mercadorias e capitais (2). Entretanto, os vestígios das políticas anteriores subsistiram durante a presidência Vargas e exacerbou-se um nacionalismo econômico, tal como se manifestou na campanha “O Petróleo é nosso” (3). O conflito chegou finalmente a uma solução de compromisso com a lei 2004/1953 que criou a Petrobrás (4). A política econômica tornou-se mais liberal durante o governo Kubitschek, mas teve que enfrentar ainda as resistências nacionalistas de franca oposição à colaboração dos capitais estrangeiros (5). As dificuldades ligadas ao setor externo persistiram (6), mas de forma geral foi adotada uma atitude assaz equilibrada no concernente aos capitais estrangeiros (7). A reação nacionalista antiliberal iria explodir apenas mais tarde durante a curta presidência Goulart. *** Entre os depoimentos aqui analisados vem em primeiro lugar o relato feito por Glycon de Paiva (1955) 440 441 sobre os debates ocorridos em Washington na reunião dos governadores do FMI e do BIRD. Dispensarei aqui as opiniões de vários participantes estrangeiros, limi tando-me à posição brasileira a cargo de Eugênio Gudin. Seus comentários (complementados em palestras de 1957 e 1958) referem-se primeiro às limitações que podem ocorrer aos fluxos de capitais do lado dos países fornecedores ou recipientes. A contribuição positiva dos capitais estrangeiros parece tão óbvia ao autor que não exige maior demonstração. A formulação lapidar é dada por Glycon de Paiva, citando as palavras pronunciadas pelo delegado inglês na referida reunião internacional: “Financiar desenvolvimento econômico sem lançar mão do capital internacional é impor ao povo gravames e restrições desnecessárias”. Segundo Gudin, salvo limita ções impostas para eliminar excessos e evitar processos inflacionários, as possibilidades dos capitais estrangei ros são ilimitadas para propiciar “maior exportaç ão, maior substituição de importações, maior produção doméstica”. Não é de estranhar pois que Gudin censure a reduzida contribuição dos países desenvolvidos no fluxo de capitais em direção aos subdesenvolvidos. Em outro documento Roberto Pinto de Souza (1958) enumera os méritos da captação dos capitais externos: adição à insuficiente capitalização interna, aumento da capacidade de importar, absorção de tecnologia mais avançada e eventual subsídio para o equilíbrio no balanço de pagamentos. Mesmo Caio Prado Jr. (1957), apesar de suas restrições – como veremos mais adiante – reconhece pelo menos os 441 442 méritos do capital de financiamento, enquanto que “o capital que cria aqui empresas subsidiárias é prejudicial”. Nesta última ressalva difere frontalmente de Gudin que prefere os investimentos por serem mais eficientes do que os financiamentos e por acompanharem a conjuntura. Gudin, economista liberal ortodoxo (talvez demasiadamente ortodoxo), coloca apenas algumas condições racionais para o bom aproveitamento do aporte estrangeiro: que não exceda uma certa proporção do produto real (embora Gudin não considere o perigo de desnacionalização da economia); que não tenha uma aplicação ineficiente; que não provoque inflação (8). Vê-se que restrições não são feitas ao processo em si de participação de capitais estrangeiros, mas apenas ao modus operandi – aos abusos ou desvios do correto aproveitamento das fontes externas do capital. Gudin assinala também os obstáculos a enfrentar pela abertura aos capitais estrangeiros: a oposição dos que temem a competição estrangeira e a dos círculos nacionalistas xenófobos. Disto tratarei mais adiante. O debate em pauta concentrou-se entretanto em grande parte ao problema do balanço de pagamentos, isto é, ao desequilíbrio nele provocado pelo serviço dos capitais estrangeiros, principalmente os de empréstimo. Tal preocupação aparece eventualmente na posição do próprio Gudin que, como bom ortodoxo, enfatizava o equilíbrio das contas externas (e subsidiariamente – outro dogma ortodoxo – o papel nefasto da inflação), 442 443 porém não ao ponto de rejeitar para tal o aporte estrangeiro: teria sido uma incoerência (9). Sem negar a eventualidade de desequilíbrios provocados pelo movi mento de capitais, Gudin ressalva que estes desequilíbrios podem surgir de outras causas, principalmente do que ele chama de “crises” da balança comercial. A experiência dos anos recentes, com o choque do petróleo e o abalo do sistema financeiro internacional, forneceria uma comprovação da hipótese de Gudin. Entretanto, os adversários, basicamente ideológicos, dos capitais estrangeiros insistem de forma radical nos desequilíbrios “inevitáveis” e crescentes por eles provocados. Diz Caio Prado Júnior: “o apelo às inversões estrangeiras cria encargos que acabam superando aquilo que eles dão” – um sofisma, pois compara a entrada única do capital com o fluxo de encargos do capital sem levar em conta os custos gerados por aquele capital”. (10). Sem comprovação estatística, Prado declara que “as remessas de lucros para exterior traze m prejuízos para as importações” – mas isto pode acontecer por causa da insuficiência das receitas cambiais. Pode -se realmente criticar a política econômica da época por uma certa incoerência: enquanto se liberava o mercado de câmbio, não se tomavam medidas de incentivo às exportações que ficaram estagnantes ou mesmo decrescentes (v. quadro 1) – política mudada apenas em 1964. Gudin observou, como aliás se pode constatar do referido quadro, que o serviço dos capitais tem peso limitado na formação do balanço de pagamentos; as 443 444 amortizações tiveram peso maior mas afinal de contas elas representavam uma redução da dependência em relação àqueles capitais. Quadro 1 Balanço de Pagamentos 1950/1959 Dados selecionados (em US dólares milhões) Ano Balança comercial Exportação Investimentos Financiamentos Amortização Juros Lucros Balanço de pagtos. 1950 425 1359 3 28 -85 -27 -47 52 1951 68 1771 -4 38 -27 -20 -70 -291 1952 -286 1416 9 35 -33 -22 -14 -615 1953 424 1540 22 44 -46 -34 -93 16 1954 148 1558 11 109 -134 -48 -49 -203 1955 320 1419 43 84 -140 -35 -43 17 1956 437 1483 89 231 -187 -67 -24 194 1957 107 1392 143 319 -242 -67 -26 -180 1958 65 1244 110 373 -324 -58 -31 -253 1959 72 1282 124 439 -377 -91 -25 -154 Eram, portanto, altamente alarmistas as advertências de Prado Júnior: “as novas inversões es trangeiras... trazem um elemento de agravamento do desequilíbrio... um endividamento progressivo... implica uma compressão de certas importações essenciais para a própria sobrevivência da economia brasileira, como as de equipamentos”. (11) Na realidade, tais perspectivas 444 445 negativas, algo demagógicas, não eram inevitáveis ou implícitas na política de abertura. De fato, não se efetivaram (12) a não ser muito mais tarde, nos anos 1970/80, em condições peculiares muito diferentes. Prado Júnior acrescenta que os capitais entrados “não criam automaticamente como antes os recursos necessários para a liquidação internacional das obrigações assumidas” – “como antes”, isto é, quando os capitais se destinavam, à expansão das exportações, fase que foi devidamente superada. *** É bastante curioso que em grande parte a discussão sobre os perigos e desvantagens da entrada de capitais ficou concentrada prioritariamente sob o ângulo do balanço de pagamentos, mas não faltaram reparos num sentido diferente. Já na palestra de 1955 Gudin observara que “os Estados Unidos não compreenderam o caráter multiplicador do investimento internacional em termos de emprego, produção, mercado de bens e títulos” – colocando a discussão numa perspectiva mais ampla, não limitada aos efeitos sobre o balanço de pagamentos. Rejeitava em seguida explicitamente aquela visão estreita: “Alguns imaginam que os únicos investimentos bem fundados são aqueles que contribuem para a melhoria do balanço de pagamentos do país recipiente... investimentos existem que podem determinar um excelente crescimento de atividade econômica e que não representam qualquer ação direta sobre o balanço de 445 446 pagamentos”. O argumento está repetido em outro trecho, referindo-se desta vez aos financiamentos: “Quando um empréstimo é concedido a um país subdesenvolvido surgem condições novas de emprego, de incremento do comércio, de expansão do mercado”... Este enfoque diferente que permite uma avaliação global do aporte dos capitais estrangeiros sou sumariamente definido por Roberto Campos, durante o debate (1957). “Os efeitos dos investimentos estrangeiros não devem ser consi derados à luz do balanço de pagamentos e sim da renda nacional.” (13) Uma posição totalmente oposta à d e Prado Júnior a qual, no desejo de desmoralizar o papel dos capitais estrangeiros declara peremptoriamente que “a questão de renda nacional não entra em jogo”. *** A discussão não deixou de abordar o tema polêmico, de caráter político/ideológico, representado pelo nacionalismo como estorvo inevitável à entrada dos capitais estrangeiros. De acordo com Gudin, a avaliação lógica do problema é contaminada por “aspectos irracionais” ligados a um “nacionalismo exclusivista... um nacionalismo vesgo misto de jacobinismo e do fantasma do imperialismo econômico e político”. Gudin apressa-se em observar que o imperialismo dominante do século XIX era na época do debate “defunto há mais de trinta anos”. Entretanto, a insistência ideológica devia sobreviver até os nossos dias. 446 447 A rejeição do estrangeiro pode se explicar eventualmente, segundo Gudin, “por um complexo de inferioridade que afasta a aproximação e a colaboração do capital estrangeiro” – um verdadeiro medo da livre competição. Ao mesmo tempo, uma concepção compartimentada da economia mundial, bem oposta à atual globalização, particularmente acirrada quando se trata da exploração das riquezas naturais (aí Gudin pensou com certeza nos combates emocionais, na época, em torno do “Petróleo é nosso”). Havia, portanto, os opositores da colaboração estrangeira, eventualmente sem uma manifestação explícita contra o imperialismo, mas quase evidentemente como rejeição do capitalismo e do liberalismo econômico. O capital estrangeiro era visto como o inimigo da economia nacional, um inimigo abusivo e espoliador. Ele perseguiria apenas a obtenção de benefícios para fora do país: “ele continua permanentemente ligado à sua fonte”, diz Caio Prado, referindo-se especificamente ao capital de investimento. Em sua atuação dentro do território nacional, ele praticaria atos abusivos sem benefícios para os nacionais – prática em que “é de presumir que estejam fortemente apadrinhados”, mais uma vez a tese antiliberal da cumplicidade capitalista. Ainda mais, ele atuaria “através da manipulação do mercado acumulando lucros maiores”. O aumento da produção basear-se-ia simplesmente num “consumo discriminado, criado por uma hábil propaganda e por um sistema de distribuição e venda muito perfeito”. O alvo era, na 447 448 época, a Coca-Cola, colocada na berlinda como caso típico de uma infiltração estrangeira que não visava be nefícios para o povo brasileiro e seu bem-estar. O cunho marxista da oposição aparece nitidamente quando Prado, referindo-se de forma implícita ao processo da maisvalia, declara que “esses empreendimentos (estrangeiros) representam uma maneira de captar a maior parcela do valor que se entrega ao consumidor”. (14) É oportuno mencionar que tais afirmações não se apóiam em nenhuma, ou muito vaga, evidência empírica. *** O nacionalismo econômico e a xenofobia pretendem colocar-se num plano mais objetivo quando alertam sobre o perigo da desnacionalização da economia. O vaticínio de Caio Prado é que “acabaremos tendo no Brasil, nas indústrias, o que não passará de um aglo merado de subsidiárias e filiais de empresas estrangeiras”. Como se trata de futurologia, a veri ficação deveria ser procurada pelo autor na realidade estatística, mas nenhum esforço está sendo feito neste sentido. E a história não ia confirmar a previsão catastrófica. De fato, uma vez admitida e procurada a entrada de capitais estrangeiros de investimento, a desnacionalização não é uma fatalidade, mas apenas função da política econô mica de amparo às empresas nacionais. As críticas mais específicas no debate em pauta, a respeito da desnacionalização, dirigiam-se à Instrução 113/1953, da SUMOC, que para acelerar o processo de 448 449 industrialização permitiu a entrada de equipamentos industriais completos sem cobertura cambial. Segundo uma dessas críticas (Roberto Pinto de Sousa – 1958) esta facilidade oferecida ao investimento estrangeiro traria além da sangria da remessa de lucros uma concorrência nefasta ao capital nacional sem proteção, nem permitiria a acumulação deste capital, enquanto que as empresas estrangeiras nunca se nacionalizaram (o que constitui também futurologia). A crítica passa para o segundo plano os progressos que se obteriam em termos de criação de emprego, crescimento da renda nacional, substituição de importações, etc. (15). Evidentemente não deve ser dispensada uma política de defesa da indústria nacional e os críticos em foco têm a desculpa de ter-se manifestado, em parte, durante a vigência da tarifa aduaneira de 1934, que por suas alíquotas específicas tinham se tornado totalmente inócuas (a incidência média de 35% tinha caído para 2,3% em 1956). A situação mudou a partir da Lei 3244, de 1957, que adotou alíquotas ad valorem, o que as tornou imunes à inflação crescente. Mas, mesmo antes, a economia nacional não estava sem proteção: é suficiente lembrar os setores de atividade reservados aos nacionais: navegação, minas e energia, cabotagem, para citar apenas os principais. Ademais, não era lícito falar em uma desnacionalização da economia quando se olhava para a evidência estatística (16) e, sobretudo, quando se verificava que os setores estratégicos da economia eram ocupados pelas empresas estatais (17): os liberais podiam deplorar um 449 450 excesso de estatização mas não se podia dizer que a liberdade concedida aos capitais estrangeiros periclitava o grau de autonomia da economia nacional. Entretanto, os idiossincrasias existiam como continuam existindo, a despeito dos apelos para a racionalidade econômica. A controvérsia a respeito dos capitais estran geiros continuou nos anos subseqüentes, culminando com o abalo produzido pela lei 4131/1963 sobre a Petrobrás, altamente restritiva, até a sua alteração num sentido liberal pela lei 4360/1964, que consagrou as teses gloriosas no debate aqui comentado do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio. NOTAS (1) A bibliografia é imensa. Entre os trabalhos acessíveis no Brasil: M. Niveau. História dos Fatos Econômicos Contem porâneos. 1969. (2) Após a guerra vingou a idéia de abandonar o isolacionismo econômico (conf. John D. Wirth. A Política do Desenvolvimento da Era de Vargas. 1973). (3) “Surgiu um nacionalismo de cunho agressivo, a títulod e réplica do nacionalismo que sempre existiu... Esse nacionalismo caboclo passou a substituir certos conceitos de patriotismo lírico e ingênuo.” (Herculano Borges da Fonseca, Regime Jurídico do Capital Estrangeiro. 1963). (4) A história do episódio, contada sob o ângulo da visão nacionalista ou mesmo xenófoba, encontra -se em: Jesus Soares Pereira. Petróleo, Energia Elétrica, Siderurgia. 1975. (5) Assim formou-se uma Frente Parlamentar Nacionalista, “grupo 450 451 de pressão com uma plataforma nacionalista, que condenava o imperialismo em geral e o capital estrangeiro em particular, principalmente em matéria de petróleo e remessa de lucros”. (Maria Victoria de Mesquita B enevides. O Governo Kubitschek. 1976). (6) De acordo com a pesquisadora do assunto, os problemas enfrentados pelo governo Kubitschek foram: o déficit do balanço de pagamentos e a deterioração das relações de troca; os pontos de estrangulamento; e a inflação. (Benevides, op. cit.). (7) O marco foi a lei nº 1807/1953 que implantou o mercado livre de câmbio com liberdade para o movimento dos capitais estrangeiros. Uma exposição crítica do regime jurídico dos capitais estrangeiros encontra-se em Fonseca, op. cit. (8) O perigo da inflação era talvez um tanto exagerado por Gudin dentro de sua ortodoxia, pelo menos nos padrões que iriam imperar mais tarde. O índice geral de preço ao consumidor registrou a seguinte evolução (em % ao ano): 1951 – 13,0 1955 – 22,5 1952 – 17,1 1956 – 23,0 1953 – 13,2 1957 – 21,3 1954 – 18,3 1958 – 13,7 As ligeiras e passageiras pressões para cima podiam, contudo, preocupar um ortodoxo como Gudin. (9) Uma colocação correta do problema encontra -se num texto mais recente: “Feita a opção de acelerar o desenvolvimento econômico utilizando maior parcela de financiamentos externos não se trata mais de saber se a dívida externa do País crescerá ou não... tudo o que se pode discutir é a forma pela qual se administrará o crescimento dessa dívida.” (Ernane Galvêas, Brasil: Economia Aberta ou Fechada? 1982). O argumento é válido, em termos, para os capitais de investimento. (10) Roberto Campos fez uma análise percuciente do problema dos capitais estrangeiros num pequeno estudo – “Controle da remessa de lucros e empresas estrangeiras” – incluído em: Economia, Planejamento e Nacionalismo . 1963. Ele assinalou o 451 452 sofisma de comparar a remessa de rendimentos, que é um fluxo, com a entrada de capitais que é uma adição de estoque, sublinhando que não se deve exagerar a sua importância no panorama mais amplo do balanço de pagamentos. (11) Foi na época deste debate que o governo brasileiro iniciou uma política de câmbios múltiplos com a Instrução nº 70/1953 da SUMOC e a Lei nº 3244/1957, justamente para p roteger as importações essenciais. (12) A conta de capitais estrangeiros apresentou realmente um saldo negativo de US$ 230 milhões em 1947/1953. Entretanto, após a Lei nº 1807/1953 entre 1954 e 1960 o balanço tornou -se positivo nos detalhes seguintes (em US$ milhões): Empréstimos entradas: 3.047 amortização: -1.921 juros: - 467 saldo: 659 Investimentos entradas: 721 lucros remetidos: -269 saldo: 452 Saldo total: 1.111 (13) A idéia foi retomada no trabalho citado na nota (10) supra em que Campos apresenta um quadro abrangente do ativo e do passivo do movimento de capitais estrangeiros, em primeiro lugar em relação à renda nacional e complementarmente ao balanço de pagamentos. (14) Em outra ocasião, Caio Prado tinha se mostrado mais contundente – talvez o Conselho Técnico o tenha inibido! Referiu se então “à situação de dependência e subordinação orgânica e funcional da economia brasileira com relação ao conjunto internacional”. E precisando a idéia: “As inversões estrangeiras são elementos de um sistema amplo e geral e a vida econômica do Brasil é... função de contingências da luta de monopólios e grupos financeiros internacionais concorrentes”; E dando o nome específico ao processo: “o imperialismo atua como um poderoso fator de exploração da riqueza natural”. Voltando para o problema do balanço de pagamentos: “O capital internacional invadido no 452 453 Brasil representa um importante fator de desequilíbrio das contas externas e déficits crônicos.” ( História Econômica do Brasil. 1960). (15) É oportuno lembrar que entre 1955 e 1959 a indústria de material de transporte, a principal beneficiária da Instrução 113, acusou um crescimento de 393%, enquanto a indústria em geral não passou de 47%. (16) Contrariamente às previsões pessimistas dos adversá rios dos capitais estrangeiros, a participação destes na economia nacional, embora tenha aumentado, não chegou a ter uma posição pre ponderante. De acordo com o levantamento feito em 1974 a participação no valor das vendas totais das 5.113 maiores em presas do País desdobrava-se da forma seguinte: Governo: 16,1%; empresas privadas: 55,8%; empresas estrangeiras: 28,1%. (17) “O governo praticamente controla o sistema financeiro e cambial, os transportes e as comunicações, bem como a energia e a indústria de base, tornando mais forte ainda o Poder Nacional.” (Galvêas, op. cit.). Muito recentemente, a participação do Governo na economia está em vias de se modificar, porém sem perder o controle. (Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 43(508): 17-26, Julho 1997). 453 454 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE IMPERIALISMO, DEPENDÊNCIA E DOMINAÇÃO Os acontecimentos ocorridos no mundo comunista em torno do ano 1990 foram uma verdadeira explosão, uma mudança antes impensável mesmo em tempos que Galbraith judiciosamente qualifico u como “a era da incerteza”. É verdade que sinais de transformação vinham de mais longe, pois as próprias revoluções não surgem ex nihilo, mas sim, seguem uma certa lógica evolucionista. As conseqüências dessa explosão não são ainda bem definidas. Por enquanto, pode-se lembrar resumidamente os traços imediatos da mudança: o desmoronamento do império soviético, inclusive dentro das fronteiras da antiga União; o fracasso do modelo de planificação econômica centralizada, antes considerado verdadeira panacéia; finalmente, a desmoralização do arcabouço ideológico marxista-leninista. A propósito deste último ponto pôde-se ler, nos comentários ocidentais afirmações como: “o marxismo ocupa agora um lugar secundário no pensamento ocidental” (Le Nouvel Etat du Monde, 1991). Ou ainda: “Como força ideológica, a idéia de uma superioridade econômica (ainda que virtual) do socialismo pareceu definhar definitivamente durante os anos 80.” (ibidem). Por outro lado, Henry Kissinger, numa recente palestra no Brasil, aludiu ao desmoronamento do comunismo como movimento político (Centro de Economia Mundial 454 455 – FGV, 1992). Essa avaliação parece precipitada. A força e a inércia dos mitos, depois da longa propaganda a favor do socialismo e comunismo são capazes de garantir maior longevidade às suas propostas político-econômicas a despeito de sua derrota. Além do mais, a existência da pobreza e da miséria, da má distribuição da renda, e de outras injustiças sociais favorecem o fascínio exercido pelas propostas utópicas do socialismo que, nas palavras de Schumpeter, “promete o paraíso no mundo real”. Obviamente, depois do que aconteceu no “paraíso comunista” os seus partidários considerariam impru dente sustentar uma defesa explícita e direta do comunismo. Prefere-se insistir na crítica do capitalismo e do liberalismo sob os títulos de imperialismo, colo nialismo e outros males supostamente comprovados: é a defesa indireta do mito. Esse empenho em salvá-lo a todo custo constitui prática tradicional: a versatilidade da defesa do dogma e os subterfúgios nela usados podem ser identificados ao longo dos anos. Partindo dessas indicações, a presente palestra quer apontar alguns usos e abusos de conceitos como imperialismo ou colonialismo, e finalmente tentar encontrar um caminho mais objetivo, neutro, para definir as situações evocadas pelos conceitos mencionados. Naturalmente, analisar em profundidade todos esses conceitos seria tarefa incompatível com as limitações de tempo da palestra e de competência do autor. 455 456 *** Um dos temas mais repetidos entre os nossos historiadores marxistas-leninistas em suas publicações e pronunciamentos é o imperialismo: o termo aparece ad nauseam, às vezes graças ao seu matiz dramático, mas não forçosamente dentro do esquema rigoroso de Lênin, a saber: a fase final do capitalismo quando seus agentes buscam novos mercados a fim de salvar mais-valia e, no limite, chega a práticas realmente imperiais: intervenção na política interna, aplicação da força, a guerra e a conquista colonial. Mais adiante abordarei algumas críticas feitas a essa teoria, nas palavras de analistas competentes. Por enquanto, quero sublinhar o caráter nega tivista, contestatório das teses dos seguidores marxistas, empenhados em condenar a todo custo o capitalismo pelas suas práticas espoliatórias. Os termos são aplicados indiscriminadamente, misturando o imperia lismo com o colonialismo, dentro da ofensiva ideológica exercida pela inteligentsia esquerdista. Há sinais claros de que tais investidas vão se perpetuar apesar da crise do comunismo – ou talvez melhor: devido à crise do comunismo, como uma reação de defesa dos mitos. A crítica se estende a todo o sistema comercial e financeiro internacional, visto como um instrumento de exploração e espoliação. É suficiente observar o desprezo com que os historiadores marxistas tratam aquele sistema a despeito das vantagens por ele 456 457 proporcionadas tanto aos países mais desenvolvidos quanto aos mais atrasados, como se esclareceu desde os tempos de Ricardo, e como se verificou, por cima de inevitáveis percalços, ao longe de dois séculos de liberalismo. Para aqueles historiadores, o mercado internacional não passou de um “ingrediente” da conquista econômica. O seu efeito se resumiria a uma relação de submissão da economia nacional aos interesses externos, considerados conjuntamente, sem nenhuma discriminação mais criteriosa. O sistema internacional é definido lapidarmente como “uma situação de dependência e su bordinação orgânica e funcional da economia brasileira com relação ao conjunto internacional”, (Prado J r.) – sem nenhuma referência à idéia de cooperação e interdependência, ou de vantagens recíprocas. Esse silêncio é característico entre muitos historiadores “revisionistas” da história econômica do Brasil que procuraram originalidade condenando o modelo exportador vigente desde à Independência e graças ao qual foi possível a expansão cafeeira e portanto a colocação, ainda que retardada, das bases do futuro progresso econômico do País. Para esta categoria de historiadores, a economia cafeeira “foi largamente explorada pelo capitalismo internacional... os seus lucros canalizaram-se para a remuneração dos capitais internacionais neles invertidos” (Prado Jr.). Tais proposições ainda abundam nos livros-texto universitários. Que houve interesses externos, às vezes 457 458 prevalecentes, não se pode negar, mas parece exagerado um comentarista sério e competente – e não marxista, mas seguindo a onda – insistir em denominar como matiz de nosso crescimento econômico no século XIX, e mesmo depois, a “formação dependente” como uma conotação visivelmente depreciativa (Lorenzo Fernan dez). Afinal, existiu em toda a história econômica um crescimento puramente autônomo? A Inglaterra durante a primeira Revolução Industrial? Os Estados Unidos durante o seu take-off no início do século XIX? Seria fastidioso, repetir aqui conhecidas experiências his tóricas que demonstram a importância do aporte externo do desenvolvimento dos mais poderosos e bem sucedidas economias. O conceito de dependência tem um fundo de realismo, mas os marxistas e semelhantes lhe dão um sentido unívoco, apenas de espoliação capitalista, quando a realidade é mais complexa. Será que o Brasil do século XIX se encontrava numa situação de total dependência econômica no sentido de que sempre os centros de decisão se encontravam no exterior? Ou, mais especificamente, por exemplo, que o mercado de café foi sempre um buyer’s market? A dependência neste caso seria em razão direta com o grau de vulnerabilidade econômica e, sob este aspecto, o Brasil era evidentemente mais fraco, como fornecedor de um artigo de sobremesa para os consumidores, mas elemento vital para a sua economia. Entretanto houve reversões quando o mercado de café se tornou um seller’s market. Esta condição pôde justificar, porém 458 459 como efeitos questionáveis, a política de valorização iniciada com a convenção de Taubaté. Numa forma mais amenizada e indireta, a condenação do sistema internacional foi feita pelos estruturalistas sob a alegação de que o mercado mundial é estruturado de modo a prejudicar secularmente as economias mais atrasadas, portanto a perpetuar um mecanismo de espoliação em escala mundial. Não se trataria mais do esquema aparentemente rigoroso do imperialismo leninlista, mas não deixa de conter no seu bojo um repúdio ao mercado livre internacional . Entre outras, tal tese sustenta que a existência do Centro desenvolvido e da Periferia subdesenvolvida “impõe nos casos extremos que as decisões que afetam a produção e o consumo de uma economia dada são tomadas em função da dinâmica e dos interesses das economias desenvolvidas” (Cardoso). Tal posição é mais ponderada do que a do imperialismo, mas persiste ainda a sugestão da inevitável espoliação capitalista. Fica rejeitada explícita ou implicitamente a idéia de independência, ou seja a capacidade autônoma na tomada de decisões econômicas – o que não passa de um exagero histórico. *** Especialmente radical e irracional é a investida contra os capitais estrangeiros – ação tão conhecida no posicionamento do grupo que pode ser designado como a Esquerda. Esta vê na entrada dos capitais estrangeiros um fenômeno imperialista, apenas uma invasão 459 460 espoliatória. Quando se tem a pretensão de invocar uma verificação empírica, a argumentação é simplesmente falaciosa: confronta-se o montante de capitais entrados com o volume acumulado das saídas a título de lucros e juros remetidos para fora (Carone), ou seja: compara -se um estoque com um fluxo. Nenhuma referência, do lado do ativo, aos ganhos em termos de produto, emprego, tecnologia – resultantes da entrada daqueles capitais. Há apenas alusões a “manobras políticas”, mas a condenação é radical: “A vida econômica (do Brasil), não é função de fatores internos, de interesses e ne cessidades da população que nele habita, mas de contingência da luta de monopólios e grupos financeiros internacionais concorrentes” (Prado Jr.). O modelo marxista é básico nessas exposições: o objetivo do movimento de capitais é “extorquir em proveito próprio a mais-valia do trabalho brasileiro” (ibidem). O resultado é que “o imperialismo impede a estruturação normal na base das verdadeiras e profundas necessidades da população do país” (ibidem). Nenhuma alusão a uma cooperação, mesmo que desequilibrada, entre os fatores de produção internos e o capital externo. Na argumentação, mesmo sem uma referência explícita ao imperialismo leninista, o conceito é subentendido como uma realidade já comprovada. De fato, muitas vezes o termo “imperialismo” é empregado num sentido mais genérico, como um processo de espoliação operada pelos mais fortes (sempre capitalistas) contra os mais fracos. Mas o termo “imperialismo”, sob a autoridade dos profetas Marx e 460 461 Lênin, exerce um fascínio, um impacto emocional. Tanto é que, por exemplo, os historiadores do tipo mencionado tentam demonstrar a sua presença (espoliação através de juros, comissões, etc.) já desde os primeiros empréstimos contratados pelo Império, portanto no tempo em que o capitalismo ocidental não tinha chegado à maturidade do esquema leninista. Historiadores mais objetivos reconhecem que os investimentos estrangeiros foram feitos em “setores de atividades completamente novos entre nós”, investimentos “que exigiram avultados capitais de que não dispúnhamos” (Ferreira Lima). Mas, por cima destas verdades, a tentação anticapitalista é grande demais, de modo que, o mesmo autor se apressa a denunciar que “nossa incursão na economia internacional nos sujeitava completamente às grandes potências... drenando para fora toda fonte de recursos” (ibidem). Anotem o caráter absoluto da alegação: Poder-se-ia encontrar uma certa justificativa dessas teses se fossem apresentadas em formas mais mo deradas. Mas a fúria anticapitalista e antiliberal chega a termos apocalípticos: comentando a política de endi vidamento externo desde o Império fala-se em “abismo financeiro”, “Brasil – presa fácil da especulação”, “tentáculos absorventes” (credores dos capitalistas) – expressões que se encontram até em analistas moderados (como, por exemplo, Valentim Bouças). As citações feitas já têm 30 a 40 anos, mas não se considerem obsoletas. Expressões semelhantes aparecem em trabalhos recentes, em artigos de jornal, nos 461 462 panfletos que surgem todos os dias nos meios de comunicação, nos slogans e chavões dos políticos. Palavras como colonialismo, imperialismo, dependência, espoliação rendem em propaganda política. A confusão semântica representa um bom instrumento de conquista da opinião política, da mesma forma como se brinca com os conceitos de liberdade e democracia. *** É recomendável pôr alguma ordem nos conceitos: cada termo – imperialismo, colonialismo, dependência – deve, numa boa disciplina aristotélica, dizer alguma coisa específica e não é logicamente válido jogá -los, uns em cima dos outros, com o objetivo de condenar os pecados do capitalismo. Uma análise criteriosa pode identificar excessos e abusos, mas as modalidades e intensidades são bem diferentes. No discurso da Es querda, a ação das multinacionais quase se confunde com um empreendimento colonialista – alegação que é conceitual e historicamente incorreta. Imperialismo não é manobra comercial, é um exercício de poder, de poder político – a raiz do vocábulo é imperium, o poder da autoridade. No próprio esquema de Lênin, que representa a matrix pura do imperialismo – o traço típico não é a busca em si da mais-valia, mas sim, o exercício do poder a fim de extrair a mais-valia. Para Lênin, a busca desesperada da mais-valia, quando as fontes internas estão se esgotando, leva 462 463 necessariamente ao aproveitamento espoliatório de zo nas novas onde os salários baixos evitam a redução progressiva da taxa de lucros. Isso faria parte da própria lógica do capitalismo, mas nesta fase de espoliação fora das fronteiras – “o mais alto estágio do capitalismo”, nas palavras consagradas de Lênin – o traço característico é a aplicação do poder, a necessidade dos capitalistas de interferir na condução política, impor suas condições, submeter o país através da força, inclusive pela guerra. O imperialismo consiste justa mente na interferência do poder político – que, no modelo de Lênin, é uma decorrência necessária do capitalismo na sua fase final de maturação. A introdução do conceito do imperialismo na argumentação marxista respondeu à necessidade de explicar o fortalecimento do capitalismo, contrariamente ao pensamento marxista originário, isto é, explicar a postergação do debate do capitalismo. Neste sentido, Galbraith observou que “(a idéia de) imperialismo preencheu uma enorme lacuna no pensamento revolucionário, bem como em sua política”. Entretanto, tomando o termo de imperialismo na sua característica de exercício do poder político, ele deixa de constituir um título exclusivo de condenação do capitalismo. Assim, W. Arthur Lewis pôde anotar: “o desejo de explorar outros povos pode persistir também na sociedade socialista”. De fato, na Europa Or iental falouse correntemente em imperialismo soviético, uma realidade contundente que não tinha nada de subproduto do capitalismo. 463 464 A ambigüidade dos seguidores de Marx -Lênin consiste em usar o termo genérico de imperialismo, isto é, ação imperial, ação de força e opressão, como argumento a favor da tese de que o capitalismo maduro deve obrigatoriamente desembocar no abuso de poder em escala internacional e por isso deve ser condenado sem remissão. Essa ambigüidade justificou Schumpeter a referir-se ao “termo equívoco e amiúde aplicado erradamente de imperialismo”, explicitando que “podemos sempre definir o imperialismo de tal modo que signifique exatamente o que implica na interpretação marxista”. Contra o panorama rocambolesco da conspiração capitalista-imperialista em escala mundial, a crítica objetiva observou que “a realidade em todos os países industrializados é o poder empresarial e não o poder empresarial internacional” (Galbraith) e que, longe daquele esquema golpista do capitalismo, “os grupos capitalistas se modelam infinitamente mais sobre a política do país do que a modelam” (Schumpeter). Aliás, aludindo à comprovada versatilidade da argumentação marxista, o último autor citado proferiu um veredicto final: “Esta teoria do imperialismo oferece um bom exemplo, senão o melhor, de modo de que o sistema marxista usa para resolver os problemas, fortalecendo ao mesmo tempo o seu prestígio”. Por outro lado, a investida contra o capitalismo é reforçada pela inclusão da noção de colonialismo. Misturam-se os conceitos e fala-se tranquilamente do neocolonialismo como uma característica do 464 465 capitalismo, inclusive atual. Esquece-se que a dominação colonial é “o governo de um povo por uma potência geográfica e etnicamente distante” (Galbraith) – não exploração como seria feita, por exemplo, pelas multinacionais, mas um governo, um exercício de poder. Houve realmente colonialismo pré-capitalista na grande expansão dos séculos XVI-XVIII. Houve também um novo colonialismo no século XIX, na África e na Ásia, fatos históricos de caráter peculiar. Entretanto, aplica-se os termos de imperialismo e colonialismo, num sentido vago, emocional, com o intuito de identificá-los com o capitalismo e condenar este capitalismo como único instrumento de espoliação. *** Acho que os fenômenos de poder e coerção nas relações econômicas poderiam ser colocados numa perspectiva mais ampla, mais abrangente, no quadro do conceito de dominação. Este problema já foi levantado em vários níveis: no nível dos indivíduos, das empresas ou das nações. a existência de agentes dominantes e dominados. O enfoque foi proposto desde o século passado, sobretudo no nível das empresas, como em BöhmBawerk, ou no nível de grupos como em Veblen. Uma análise mais percuciente foi formulada por François Perroux. Mas, afinal, o próprio Aristóteles em sua política não menciona o roubo como um dos meios para adquirir riqueza? Pode-se colocar o problema por cima das 465 466 instituições político-econômicas que são apenas capazes de oferecer maiores ou menores oportunidades d e dominação. Acho possível partir de uma realidade psico-fisiológica: a consciência da personalidade e sua afirmação, a qual inclui a tendência de impor aos outros agentes as próprias decisões – evidentemente em se falando do processo econômico, decisões que visam a aumentar o bem-estar. Já Veblen falou da “inclinação do homem para a dominação e a coerção”. E Perroux é mais explícito: “Cada ser humano, sendo como é egoísta, exerce uma dominação no mundo externo... O poder é procurado por si mesmo. Mais do que metas de incremento material, as tendências egoístas do homem individualizado estão na base de uma afirmação de si próprio”. Seria então uma libido dominandi natural, a qual, entretanto, obviamente não é responsável por todo o comportamento humano: o ser humano, ao exercer a dominação, reconhece nos outros, seus semelhantes, e portanto pode ser levado, dentro das inevitáveis contradições humanas para uma atitude de solidariedade e cooperação. “O homem, devido à razão com que é dotado, tem a faculdade de sentir a dignidade na pessoa do seu semelhante como na sua própria pessoa e afirmar assim sob esse aspecto sua identidade com ele” (Servier). Não impera forçosamente a idéia de homo homini lupus (Plauto), mas também às vezes a bela oração de Terêncio: homo sum, humani nihil a me alienum est. A teoria da dominação traz uma visão mais ampla, superando a obsessão da espoliação capitalista. 466 467 Já John Bates Clark se referiu a casos de exploração por parte de qualquer fator de produção e não apenas do capital – trata-se apenas de relações de força (apud Barre). De acordo com Perroux, o exercício do poder e da coação pode ser até não intencional – o que poderia ser achado irrealista, a não ser que a nãointencionalidade seja entendida como um processo inconsciente decorrente da própria natureza humana, tal como sugeri antes. E Perroux acrescenta que o efeito de dominação fica “em oposição lógica com a interdependência recíproca e universal” – uma outra formulação das tendências opostas já mencionadas, a da imposição da própria vontade aos demais seres humanos ou a da solidariedade com aqueles seres. Na escala internacional, Perroux sublinhou o valor operacional do conceito de dominação, de vez que “tem por objetivo substituir aos conceitos vagas ou apaixonados sobre o imperialismo... verificações e regras inevitáveis”. Perroux viu o mundo econômico como “um conjunto de relações patentes ou dissimuladas entre dominantes e dominados” e, ainda mais, contrariamente às habituais críticas da Esquerda afirma que “o crescimento econômico mundial teve lugar por ação das economias nacionais sucessivamente dominantes”. Sem dúvida, essa visão deve ser corrigida acrescentando-se-lhe as inevitáveis facetas escuras do quadro. Seria interessante redigir uma história da dominação econômica em escala internacional, identificando primeiro as motivações, basicamente a 467 468 busca de riqueza e poder, completadas pela corrida atrás de prestígio, triunfo de crenças religiosas e outras, não se esquecendo o importante papel desempenhado pelo nacionalismo exacerbado, muitas vezes motivador de dominação, opressão e extorsão. O relato histórico poderia mostrar as diversas fases, forma e graus da dominação, desde a conquista imperial escravista da Antigüidade, passando pela disputa entre os Estados nacionais na época moderna e em continuação o colonialismo dos séculos XVI-XIX, o autêntico colonialismo que consiste na completa sub missão política da colônia ao poder da metrópole a fim de propiciar sua exploração. Os leninistas poderiam acrescentar os casos, embora questionáveis, em que a conquista imperial teria decorrido de busca externa da mais-valia. Num esquema objetivo, sem preconceitos ideológicos, poderiam ser incluídos processos de do minação econômica pacífica, como a das multinacionais, sem intervenção político-militar. Lembre-se os gritos de alerta que a dominação norte-americana provocou depois da Segunda Guerra Mundial, tal como aparecem no célebre best-seller de Servan-Schreiber, O Desafio Americano. Quando a conjuntura mundial mudou, a advertência se deslocou para o Desafio Japonês, título do livro de Hakan Hedberg, mas, vejam: desafio pressupõe uma certa competição e não um império absoluto. Afinal, tais jogos de poder em torno do problema econômico, sempre existiram e vão existir, sem assumirem, com necessidade, os extremos descritos pelo 468 469 marxismo-leninismo e constituíram apanágio exclusivo do capitalismo. Os choques do petróleo de 1973 a 1979 são exemplos de dominação exercida pelos países ainda longe da fase de maturidade capitalista do modelo de Lênin. Uma curtíssima excursão pela história econômica do Brasil permitiria identificar certas relações de dominação sem os aspectos excessivos imaginados pelos campeões à outrance das teses do imperialismo e do colonialismo. Dominação, mas sem aquela idéia de que os centros decisórios se fixaram inexoravelmente fora do país. Refiro-me ao Brasil independente, porque nos tempos coloniais, por definição, o centro de decisão se achava na Metrópole. Os primórdios da Independência foram interpre tados como uma continuação camuflada das relações coloniais – foi dito que o Brasil trocou apenas de metrópole: Inglaterra no lugar de Portugal. Como ilustra ção típica indica-se o tratado de 1810 com a Inglaterra. Sem dúvida, tratava-se de um pacto leonino, de dominação, uma situação de independência, porém não absoluta, tanto é que, quando caducou o tratado, não foi renovado e o Brasil iniciou uma política comercial autônoma, até protecionista, embora ainda tímida. O episódio da abolição do tráfico africano é também expressivo: apesar das pressões da Inglaterra, chegando quase a um estado de guerra, o Brasil aderiu ao tráfico durante quase 40 anos. Foi um caso de dominação, mas não de dependência absoluta. O Brasil inseriu-se no sistema comercial 469 470 internacional, mas isto não o impediu de praticar uma política autônoma de padrão-ouro, fugindo às exigências ortodoxas de equilíbrio orçamentário, câmbio estável e contenção monetária. Reinou um pragmatismo que, a despeito das eventuais pressões revelava um centro autônomo de decisão. Necessariamente também, as crises do sistema econômico internacional se refletiram na economia nacional – um aspecto de dominação mas também de interdependência. Uma tese muito em voga, embora frágil, foi a de que a inflação brasileira no século XIX teria resultado de duas verdadeiras conspirações: durante as depressões, os países industrializados importadores de café teriam forçado a queda das cotações do café para se ressarcirem de seus prejuízos; por sua vez, os exportadores de café forçaram a desvalorização cambial para manterem suas rendas em moeda nacional. Entretanto, não se comprova uma situação de dependência absoluta; apenas um jogo de dominação, mais complexo da realidade, longe de caracterizar um esquema imperialista. Mais expressivo é o caso das políticas de defesa do café. Nisso, o Brasil, gozando de uma posição do minante no mercado do café – tentou implementar uma política autônoma de valorização com resultados ques tionáveis, mas caracterizando uma relação de domi nação, sem que, com isso, provocasse um processo imperialista ou de submissão de seus parceiros comerciais. Não me demorarei mais em outros exemplos 470 471 históricos. *** Que conclusão poderia ser tentada a partir das notas perfunctórias desta palestra? Seria possível identificar alguns pontos sujeitos a posterior meditação, referentes aos conceitos abordados, a saber: - o termo de imperialismo é próprio ao esquema leninista, sujeito a restrições e não obstante usado abusivamente por razões ideológicas, às vezes num sentido genérico, para efeito de condenação do capitalismo, supostamente único agente de coerção imperial; - o termo de colonialismo designa uma forma histórica específica, mas é usado em situações impróprias, também com o propósito de desmoralizar o capitalismo; - o conceito de dependência corresponde melhor às realidades político-econômicas, mas é amiúde aplicado num sentido pejorativo, com prejuízo da idéia mais realista de interdependência; - o conceito de dominação parece abranger, como subcategorias, todas as noções antes mencionadas, de maneira mais isenta, desligada dos conflitos ideoló gicos, porque oriunda – a meu ver – de uma realidade psico-fisiológica do ser humano. Mas, como se dizia na jurisprudência romana; sub judice lis est – a causa está sob julgamento. 471 472 Palestra proferida em 17 de maio de 1993. BIBLIOGRAFIA BARRE, Raimond. Manual de Economia Política. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1966. CARDOSO, Fernando Henrique-FALETTO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. CARONE, Edgar. A República Velha. São Paulo, DIFEL, 1970. FERREIRA LIMA, Heitor. História Político-Econômica e Industrial do Brasil. São Paulo, CEN, 1970. GALBRAITH, John Kenneth. A Era da Incerteza. São Paulo, Pioneira, 1980. HEILBRONER, Robert L. Entre o Capitalismo e o Socialismo. Rio de Janeiro, Civ. Bras., 1971. LEWIS, W. Arthur. A Teoria do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro, Zahar, 1960. LORENZO FERNANDES, O. S. A Evolução da Economia Brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. 472 473 MEIRA PENNA, J. O. A dependência revisitada. in: Carta Mensal, CNC nº 36/432, maio, 1991. PERROUX, François. A Economia do Século XX. 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Um desequilíbrio que se resolve através da “elevação contínua do nível geral de preços”. O caráter político do processo – entendendo-se o termo “político” lato sensu, isto é, que afeta a vida da sociedade inteira – esse caráter aparece de modo patente numa visão mais sociológica da inflação, que a define como “uma luta entre diversas classes sociais pelo produto total” (segundo Delfim Netto) --ou nas palavras de Eugênio Gudin, como “uma tentativa perpetrada por um grupo econômico de se apropriar de uma parte da renda real pertencente a outros grupos” -- uma apropriação via elevação dos preços. O mesmo sentido competitivo manifesta-se na afirmação de que “a raiz sócio-política das inflações crônicas... se pode encontrar na incompatibilidade da política distributiva do governo” – como diz Mário Henrique Simonsen. É mister, portanto, considerar o processo 474 475 inflacionário não apenas isoladamente como processo econômico, mas dentro da realidade sócio-política que pode oferecer uma explicação das origens da inflação a partir de certos comportamentos da sociedade. Afinal, o mencionado desequilíbrio entre demanda e oferta pode ser provocado ou, pelo menos, facilitado por qualquer das manifestações do corpo social: mentalidades, atitudes, instituições, estruturas. Alguns fatores serão mais propícios ao desencadeamento ou à alimentação da inflação, tornando a respectiva economia mais vulnerável ao fenômeno. Será, logo, útil detectar – pelo menos a posteriori – esses fatores com vistas à sua eliminação ou ao seu amortecimento. Esse enfoque sócio-político-psicológico do fenômeno econômico não constitui novidade – apenas fica amiúde esquecido. No que tange ao comportamento dos indivíduos perante a inflação, já Albert Aftalion sublinhou que “é na mentalidade do detentor de renda que é necessário analisar todas as grandes decisões que influem sobre o futuro da moeda” (apud P. L. Reynaud). Por outro lado, é preciso considerar a existência de uma certa configuração social favorável à inflação; “para a pressão inflacionária se transformar em inflação são necessárias certas condições estruturais”, diz Emile James. Evocar a importância das estruturas não quer dizer adotar as posições do estruturalismo para o qual os aumentos de preços derivam de pressões decorrentes da oferta estruturalmente inelásticas por exemplo no caso de uma agricultura secularmente atrasada ou de um 475 476 comércio exterior baseado na exportação de produtos primários. Tal teoria, muito exaltada após a Segunda Guerra Mundial, principalmente sob a égide da CEPAL e de seu mentor, Raúl Prebisch, não goza mais, hoje em dia, do mesmo prestígio. Não obstante, ela contém uma dose de verdade, porém um valor explicativo limitado, insu ficiente para caracterizar toda e qualquer inflação. O próprio Gudin, que não era nada estruturalista, admitiu certa vez a existência de “estruturas inflacionárias”, principalmente nos países subdesenvolvidos, devido a suas condições peculiares políticas e econômicas. De fato, o caráter crônico do processo deita suas raízes nas mentalidades e estruturas inflacionárias imperantes no país. Isso nos leva a uma concepção que constitui o embasamento teórico das presentes despretenciosas considerações. Compreende-se o fenômeno inflacionário, bem como qualquer outro lado econômico, como sendo imerso na complexa realidade histórica, sendo condicionado pelos fatores constitutivos dessa realidade, ao mesmo tempo que condicionando os seus demais componentes. Trata-se, até certo ponto, de uma inversão da posição marxista para a qual a infra-estrutura econômica – o modo de produção – representa o condicionamento único e absoluto da super-estrutura social, das idéias e das instituições. As estruturas englobam elementos complexos e variados: elementos geográficos, demográficos, morais, institucionais, sociais e, obviamente, econômicos. Estas 476 477 estruturas, que correspondem a certas mentalidades do corpo social podem favorecer ou gerar inflações porém não obrigatoriamente. É lícito incluir entre esses condicionamentos fatores que podem ser qualificados de “neutros” em si, mas que na realidade puderam exercer alguma influência sobre o processo inflacionário. Antecipando os exem plos históricos, poderia citar o fenômeno da seca crônica no Nordeste ou a excessiva expansão demográfica ou a urbanização rápida e descontrolada. Ade mais, condicionamentos inflacionários podem ser total mente exógenos – vejam as duas guerras mundiais, ou os choques do petróleo de 1973 e 1979. O que interessa aqui é identificar ao longo da história os condicionamentos – não apenas econômicos – que proporcionaram ou facilitaram o processo inflacionário, tornando-o crônico. Para efeito de análise pode-se seguir um modelo tradicional (conf. Delfim Netto) em que figuram como parâmetros principais: o déficit governamental; o crédito ao setor privado; os reajustes salariais; e a taxa de câmbio. Os economistas identificam e analisam estas causas diretas da inflação. Agora a tentativa consiste em olhar para um segundo plano por baixo das causas imediatas, afim de descobrir os condicionamentos que propiciaram e eternizaram os mecanismos inflacionários. Sem dúvida, os próprios condicionamentos têm, por sua vez, causas anteriores; mas procurá-las seria enfrentar uma verdadeira probatio diabolica, sem fim. 477 478 O historiador da inflação deve limitar-se à identificação dos condicionamentos históricos – mentalidade e instituições – que constituíram as oportunidades do processo inflacionário. *** Um exemplo concreto deste modelo de investigação, tal como esbocei em 1976 numa palestra no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aborda o processo inflacionário no século XIX. Um dos fatores inflacionários foi o permanente déficit orçamentário – financiado por emissões de papel-moeda. Não prevaleceram os preceitos do padrão-ouro, subproduto do liberalismo econômico então reinante. Vingou o pragmatismo – mais acessível. O que se encontrava atrás desse déficit crônico? Do lado da despesa, as revoluções (os abalos da nova estrutura política independente), a s guerras (principalmente a do Paraguai), as despesas com as secas do Nordeste. Com um caráter menos insuperável: o excesso de funcionamento público – a “empregomania”, na expressão de Nabuco de Araujo – sinal de uma estrutura política ainda imatura. Do la do da receita, a exigüidade da base tributável, limitada sobretudo ao imposto sobre importações – sinal de uma estrutura econômica vertida para o exterior, de um mercado interno precário e de um baixo nível de rendas individuais, além de um liberalismo irracional que impedia o aumento do imposto sobre importações. Ademais, o despreparo administrativo, herança dos 300 478 479 anos de colonialismo e reflexo do baixo nível edu cacional. A sonegação dos impostos poderia ser ligada à característica cultural que Affonso Arinos rotulou como “desrespeito à ordem legal” – para ele um resíduo índioafricano; de qualquer modo, uma mentalidade persistente. A procura de soluções fáceis e imediatistas levou à política de empréstimos externos de caráter fiscal que se avolumaram em bola de neve. A dívida externa, além das remessas particulares dos imigrantes – outro aspecto estrutural – pesou fortemente sobre o balanço de pagamentos, criando repetidas pressões inflacionárias. Havia também uma fragilidade estrutural no balanço de pagamentos pelo fato de se sustentar quase unicamente nas exportações e estas praticamente no café e mais alguns poucos produtos primários. Os estruturalistas exageram o papel do estrangulamento externo, mas este aspecto não pode ser minimizado, na medida em que contribui para a desvalorização cambial, encarecendo os produtos importados, embora, segundo minhas pesquisas, o papel inflacionário dos produtos importados tenha sido, na época, bastante modesto. A expansão monetária através de emissões de papel-moeda resultou em vários casos do excesso de crédito para atender à demanda especulativa dos agentes econômicos – uma mentalidade imediatista de efeito inflacionário. Isso aconteceu, por exemplo, após a reforma bancária de 1853 (na época em que José de Alencar escreveu a peça “O crédito”, em que ironizava os excessos criditícios e Ferreira Soares se referia a um 479 480 “carnaval bancário”). Também em maior medida, no início da República – quando a expansão monetária e creditícia acompanhou a febre de especulação bursá til (descrita pelo Visconde de Taunay no seu opúsculo “O Encilhamento”). Os excessos poderiam ser debitados à frágil estrutura bancária – sem quadros, sem tradições mas, eventualmente, a um certo espírito de jogo que Afonso Arinos inclui na mentalidade coletiva da “salvação pelo acaso”. No caso do custo da mão-de-obra houve uma situação sui generis. O liberalismo que levou à abolição do tráfico africano e, finalmente, do próprio instituto escravista, provocou a curto prazo, a despeito de seus méritos humanitários, o encarecimento da mão-de-obra escrava até sua substituição pelo trabalho livre – um elemento do lado da inflação de custos. A ação direta sobre os preços sob forma de especulação e açambarcamento, assinalada por exemplo por Sebastião Ferreira Soares em 1860, explica-se pelos resíduos da mentalidade mercantilista e, mais ainda, pela inconsistência de um mercado que permitia mo nopólios e oligopólios, e eventualmente por uma certa falta de solidariedade social: Ferreira Soares fala em “sistema de se enriquecer fazendo a miséria pública”. E também, pela ausência de estruturas políticas e administrativas aptas a impedir tais práticas. Finalmente, deve-se apontar a inelasticidade da produção agrícola de alimentos, setor em que a carestia apareceu de modo mais acentuado, como o ressaltaram, em várias oportunidades, as Falas do Trono. 480 481 Os meus levantamentos estatísticos sugeriram que as altas de preços no século XIX foram mais graves entre os produtos nacionais de consumo interno do que os de exportação ou importação. As origens vinham de longe, desde a marginalização da agricultura de subsistência devido à mentalidade mercantilista, agravada no século XIX pela concentração dos interesses em torno do café. Essa insuficiência da produção agrícola poderia ser ligada também a certas estruturas culturais, como a que Afonso Arinos denunciou como “desapego à terra”. *** Não vou me alongar mais nesse panorama do século XIX. Esta excursão pelo passado poderia parecer ociosa, porém vale observar que alguns dos seus aspectos se repetiram mais tarde. O cotejo do passado mais longínquo com os tempos mais recentes revela a permanência de condicionamentos inflacionistas, a despeito das alterações sofridas pela economia e pela própria cultura do Brasil. Senão, vejamos: - O déficit orçamentária permaneceu, com poucas exceções, crônico, tendo nos seus alicerces o despreparo administrativo, as despesas suntuárias (vide construção de Brasília), as limitações estruturais da receita (até 1964 a arrecadação do imposto de renda, introduzido apenas em 1924, foi insignificante); a politização da despesa (por exemplo quando do torpedeamento do Plano Cruzado). Eugênio Gudin quis identificar a causa 481 482 das inflações latino-americanas no surgimento, após 1930, de governos populares propensos a despesas demagógicas “sem consideração do preço a pagar”. - Um sério agravamento decorreu da crescente mentalidade estatizante que aumentou exageradamente o aparelho administrativo e a despesa com um funcio nalismo público superdimensionado. A procura de soluções fáceis para o déficit público levou – como sempre – ao recurso a emissões de papel-moeda e, alternativamente, ao apelo excessivo para a dívida pública, constituindo-se num ônus crescente em bola de neve. A história recente da dívida pública interna oferece um exemplo típico. - O populismo pode explicar em certos anos (como em 1961/1964), os excessos de uma política salarial distributivista que resultou numa pressão de caráter inflacionário. - A atuação empresarial mostrou também excessos em várias oportunidades, quando, aproveitando a estrutura mono-e-oligopolística do mercado e a estrutura desequilibrada da distribuição da renda nacional, procedeu a manipulações excessivas de preços. Múltiplas experiências recentes denunciam tal mentalidade. - Do lado dos consumidores, características culturais e mentalidades levaram às vezes à exacerbação do efeito-demonstração e ao excesso do consumismo, acentuando a pressão inflacionária do lado da demanda. - Práticas mercantilistas continuaram por muito tempo no comércio exterior, por exemplo, com a defesa 482 483 do café e a desvalorização forçada da taxa de câmbio, como em 1906 e 1926. - A alteração estrutural da agricultura no sentido de maior diversificação da produção reduziu a sua pressão inflacionista, que, não obstante, perdurou devido às falhas estruturais da comercialização e do armazenamento e, em boa medida, por causa da miragem da mentalidade industrialista que relegou a agricultura para o segundo plano. - Entre as posições favoráveis à inflação vale acrescentar uma certa corrente de pensamento estru turalista, rezando pela inevitabilidade do fenômeno inflacionário ou mesmo pela sua exaltação como instrumento desenvolvimentista. - Ademais, o próprio desenvolvimentismo à outrance – isto é, sem consideração pelas capacidades reais da oferta – justificou excessos inflacionários. Referindo-se à política de Kubitschek disse um historiador: “O recurso à inflação garantiu, em parte, o crescimento econômico do país”. (Benevides) *** Identifiquei até aqui de forma rudimentar elementos que propriamente não fazem parte do processo econômico da inflação, mas que puderam induzi-lo ou sustentáculo. Entretanto, a própria inflação, ao permanecer e ao agravar-se, cria mentalidades e até estruturas específicas que constituiriam o que se poderia chamar de “universo inflacionário”, e agiriam como um 483 484 processo de causação circular. Quando anos atrás escrevi uma história dos preços no Brasil entre o fim do século XVI e o do século XIX (300 Anos de Inflação) anotei que a inflação brasileira tinha sido amena, um tipo de inflação rastejante, a taxas anuais abaixo de 10%, mas que pelo fato de ser crônica, multi-secular, influenciou a sociedade no sentido de traumatizá-la, de fazê-la aceitar facilmente a inflação e eventualmente prepará-la para patamares mais elevados. Outros falaram com propriedade, em “tolerância inflacionária”, na expressão de Mário Henrique Simonsen. Alguns analistas acharam que as sociedades latino-americanas suportariam, sem reação, altas de preços de até 25% anuais, mas este patamar me parece um tanto exagerado – talvez uns 15% sejam mais realistas. Acontece, entretanto, outro fenômeno como resul tado da persistência crônica da inflação. A convivência com a inflação, sobretudo quanto esta assume inten sidade maior, leva os agentes econômicos a mudarem de mentalidade e comportamento. É como se a inflação fosse o estado natural da economia, requerendo respostas adequadas da comunidade. O resultado é o fortalecimento e a maior duração da inflação. Essa passagem para a “mentalidade inflacionista” – a mudança psicológica do corpo social – talvez não tenha sido bastante ressaltada, a não ser recentemente. Não obstante, encontram-se observações pertinentes como, por exemplo, a de que no Brasil, já na 484 485 década de 1960, devido à maior intensidade da inflação, “um clima de especulação se instalou em todos os setores de atividades”, como descreveu Ernane Galvêas. Mudanças semelhantes foram detectadas em outros países, como na França na mesma época. Escreve M. Niveau: “A psicologia do consumidor francês habituado à inflação aceita as altas contínuas com processo normal... ele não mais procura os melhores preços nos mercados... é a completa inversão da lei da oferta e da procura”. De fato, no universo inflacionário, os agentes econômicos procuram esconder distorções e abusos atrás do processo inflacionário: o que em linguagem correta é especulação, transforma-se em “remarcação de preços” – a inflação vai esconder a manobra especulativa. A estocagem ou o açambarcamento constituem apenas “defesas” contra a inflação futura, porém ao mesmo tempo perpetuam a inflação. Do lado dos salários, aumentos insólitos são apresentados como simples “reajustamentos” em relação a inflação esperada. E, como sempre nos fenômenos sociais, a expectativa de um fato provoca o aparecimento do próprio fato e dessa forma as operações derivadas da mentalidade infla cionária vêem-se justificadas a posteriori. Neste sentido, um economista mais frio disse que num ambiente inflacionário “todos os membros da economia deveriam converter-se em especuladores”. (N. Georgescu-Roegen). A mentalidade inflacionária funciona, tanto do lado da oferta como do lado da demanda, ajudada mais 485 486 uma vez pela estrutura do mercado mono -oligopolista e pela desigual distribuição nas rendas pessoais – elemento estrutural que favorece a inflação e, por sua vez, é agravado pela inflação. Do lado da demanda, a resposta inflacionária é a febre consumista, como foi possível verificar no Plano Cruzado. A este propósito, seria oportuno lembrar que a idéia de inflação inercial, que foi o diagnóstico do Plano Cruzado, tinha a sua dose de verdade. Entretanto, se o choque heterodoxo então aplicado apagou a inflação passada, a falta de outras medidas ortodoxas permitiu a realimentação da mentalidade inflacionária – as expectativas inflacionárias de que tanto se falou nos anos 60. Sem dúvida, não se pode levar o combate antiinflacionário exclusivamente para o plano psicológico, mas este não deve ser menosprezado. Já depois da Segunda Guerra Mundial, referindo-se à inflação, que grassava nos países europeus, um relatório da antiga Sociedade das Nações (1946) afirmou que “o tormento inflacionário foi principalmente resultado de fatores psicológicos”. Essas mentalidades são às vezes profundamente enraizadas no espírito da comunidade, sustentadas por estruturas inflacionárias que vem de longe e sob as mais variadas formas. Qualquer política antiinflacionária encontrará a resistência das mentalidades e das es truturas, dificilmente removíveis a curto praz o. Assim sendo, um combate eficiente de longo prazo contra a 486 487 inflação exige, em última instância, do corpo social, alterações de comportamento no sentido da racio nalidade, moralidade, solidariedade e patriotismo. Mais uma vez, ao enunciar tais objetivos, o impasse econômico desemboca num problema educacional. Palestra proferida em 2 de agosto de 1990. LIVROS REFERIDOS BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O Governo Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política 1956-1961. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. BUESCU, Mircea. Quantidade e qualidade em história econômica: o caso da inflação brasileira no século XIX. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, vol. 303, out./dez. 1976. DELFIM NETTO, Antônio; PASTORE, Affonso Celso CIPOLLARI, Pedro; CARVALHO, Eduardo Pereira de. Alguns Aspectos da Inflação Brasileira. São Paulo, ANPES, 1965. 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O fenômeno é intrigante por ter-se manifestado sistematicamente ao longo da história pública do comunismo desde 1917 até o citado abalo n os anos 90. O fascínio do discurso marxista resistiu através das fases daquela história. Presos por este fascínio os seus admiradores defenderam-no com perseverança e fanatismo. Essa dedicação a uma causa poderia eventualmente ser apreciada como prova de força moral e devoção, porém tal julgamento torna-se questionável diante dos meios empregados na defesa de suas convicções: deturpação dos fatos, camuflagem da 490 491 realidade, propaganda de má fé. E causa espanto o fato de que tais meios foram e são sistematicamente praticados por segmentos das elites intelectuais. O presente trabalho tenta historiar e analisar esta capacidade de sobrevivência do fascínio exercido pelas ilusões marxista-leninistas sobre as elites intelectuais. *** Um bom ponto de partida encontra-se nas palavras de Joseph Schumpeter que reconhecera vários méritos em Marx. Observa Schumpeter: “Sob um certo importante aspecto, o marxismo é uma religião... ele pertence ao grupo de religiões que prometem o paraíso na Terra”. E conclui: “Isso explica o sucesso do marxismo”. Estas palavras constituem um pertinente epígrafe à tese aqui exposta. A força do dogma deriva também do fato de se pretender científica e com isso pode satisfazer o espírito dos positivistas. Porém não deixa de ser estranha essa mistura de materialismo dialético e histórico com uma dose de quase misticismo. A pretensão científica mistura-se com uma visão escatológica e os marxistas não se incomodam em manipular fatos e idéias a fim de sustentar seu dogma. Escreveu um competente historiador da Economia: “A transferência ilegítima, no sistema marxista, de postulados não provados de um campo para outro, cujos silogismos são então transformados em racionalizações do que se tinha postulado inicialmente... constitui o fascínio peculiar d o 491 492 sistema”. (Erich Boll) Poderíamos ir mais longe e encontrar a explicação dessa adesão a uma doutrina místico científica no avanço do positivismo desde o século XIX e na sua obra de solapar as religiões tradicionais: “É no século XIX que a História substitui Deus como TodoPoderoso sobre o destino dos homens... porém é no século XX que se manifestam as loucuras políticas desta substituição” (Furet). Já Renouvier tinha afirmado que “o mundo sofre da falta de fé numa verdade transcendental” (apud Furet) e os marxistas pensaram tê-la encontrado nos ensinamentos dos mestres Marx e Lênin. Com essa mistura de adesão quase mística e pretensão científica, os marxistas e depois os leninistas e stalinistas chegaram à convicção de possuir armas infalíveis para resolver todos os problemas da Humanidade. Evidentemente tal convicção representa um forte atrativo não apenas para as massas, mas também para as elites intelectuais que aqui nos interessam. Mas o processo sedutor pode ser mais detalhado. Basicamente, o socialismo brilha pelas promessas do seu discurso: pura e simplesmente o paraíso terrestre, numa abundância sem limites superando a escassez da Natureza. Mas qual era o elemento motor do processo? A contrapartida desta perspectiva idílica é um panorama de ódio, uma vez que a História é movida pela luta de classes, uma forma de bellum omnium contra omnes. E a solução não surgirá através do amor “que move as 492 493 estrelas” na imagem de Dante, mas de uma relação de força, a ditadura do proletariado, isto é, a organização do ódio para a destruição da classe inimiga. Esse ódio pode também exercer um verdadeiro fascínio sobre todos aqueles que estão descontentes com o presente, mais especificamente com a sociedade capitalista. O anticapitalismo ou daí o antiliberalismo das elites encontrou apoio inicialmente talvez como uma reação emocional contra a Grande Guerra pela qual foi responsabilizada a sociedade liberal capitalista. Acres centando a Segunda Guerra Mundial, tiraram daí a conclusão de que eliminando o capitalismo se acab a com as guerras. Mais tarde, agiu no mesmo sentido a Grande Depressão, concluindo-se que a proposta socialista levaria a um equilíbrio econômico perfeito. As elites passaram por cima das contradições e confusões socialistas ou comunista: levadas pelo fanatismo ideológico, simplesmente abandonaram os valores tradicionais da cultura ocidental. Pode-se portanto falar de uma “traição dos intelectuais”, retomando a expressão lançada por Julien Benda como título de seu livro outrora de grande sucesso. Benda denunciou os intelectuais (les clercs) – as elites que têm a função de “defender os valores permanentes e desinteressados como a justiça e a razão. Elas traíram essa função a favor dos interesses práticos”, ou seja, políticos. Assim, a idéia de liberdade pura foi substituída pelo conceito de liberdade econômica, a justiça pelos objetivos da revolução, a razão pelo argumen6to da autoridade política – Marx, Lênin, 493 494 Stalin. Esta substituição foi feita graças a um arrasador aparelho de mistificações e falsificações. O livro de Benda, ou pelo menos seu título, foi lembrado por outro livro muito recente de autoria de Christopher Lasch: A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia – título que lembra ainda mais a célebre obra de Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ortega tentara explicar a decadência espiritual do Ocidente pela invasão das massas culturalmente despreparadas para exercer o poder conquistado. E agora Lasch condena as atuais elites pelos pecados apontados por Ortega nas massas, entre elas a incapacidade de organizar e viver o verdadeiro liberalismo. Houve também nessa adesão anticapitalista das elites o seu empenho em evitar qualquer aproximação com o espírito burguês, consi derado o mais desprezível dos qualificativos. *** Continuando o exame do fascínio exercido pelo marxismo, encontraremos como linha mestra a antili beralismo e seu subproduto, o anticapitalismo. Entre suas motivações não faltam boas intenções: afinal, o inferno está pavimentado com boas intenções. Nesta categoria poderia entrar um certo idealismo utópico, o anseio por um igualitarismo ideal – uma visão idílica tipo Rousseau: de fato, aquela promessa do paraíso que vimos caracterizar a escatologia marxista. Com isto, os marxisto-leninistas construíram um modelo político-econômico ideal e, sendo ideal, rico de 494 495 todas as perfeições. Eles insistiram em comparar esse modelo com o modelo capitalista real, o qual, sendo real, não podia deixar de ter imperfeições com todos os empreendimentos do gênero humano. Conduzidos pela ilusão da proposta marxista, ficaram obcecados pela sua realização e pela revolução que devia implantar o modelo. Daí uma forte propensão para a engenharia social em cujo nome o regime soviético, paradigma do processo, achou oportuno usar todos os tipos de coerção. Cultivam o sonho de uma sociedade totalmente planificada sem riscos ou surpresas – esquecendo que o preço a pagar seria a perda da liberdade. Onde aparece a culpa das elites intelectuais? Em primeiro lugar na desinformação quando elas pela sua própria essência tinha o dever de procurar e dizer a verdade. As eventuais alegações de ingenuidade no conhecimento das realidades comunistas não constituem uma desculpa para uma classe por definição esclarecida. É, por exemplo, estarrecedor que Sidney e Beatrice Webb, distintos intelectuais do socialismo fabiano inglês, declararam que a URSS representava o início do desaparecimento do Estado. Isto quando o aparelho político e policial do Estado Soviético estava no seu auge. Ignorância ou má fé? É verdade que a poderosa propaganda soviética escondeu as realidades, e o fanatismo das elites tornou as presa fácil daquela máquina. Para uso externo a realidade soviética foi sistematicamente fantasiada (o potemquinismo, na expressão de Guy Sorman) e as elites caíram nessa armadilha. É deprimente a história 495 496 de ilustres intelectuais ocidentais, como os Webb já citados, ou Romain Rolland, prêmio Nobel de literatura, que visitaram a União Soviética, e só vendo as aldeias de Potemkin não pouparam elogios ao regime quando de lá voltaram. O fanatismo fez com que aqueles partidários desconsiderassem as advertências feitas por conhece dores do regime comunista, os que viveram aquela realidade e ficaram desiludidos com as falsas promessas. A propósito desta circunstância vale citar a declar ação do filósofo inglês Bertrand Russel, de que “o bolchevismo... é o regime detestado como uma tirania na Rússia mas esperado como uma libertação fora da Rússia” (apud Furet). As advertências vieram de gabaritados ex comunistas como Pierre Pascal, Boris Souvarine, Panait Istrate, Ignazio Silone, André Caliga e o mais célebre, o romancista francês, prêmio Nobel, André Gide, que visitou a URSS e na volta (1936) publicou suas impressões, um verdadeiro escândalo para a Esquerda. Por exemplo, escreveu Gide: “Duvido que em qualquer país hoje em dia... o espírito seja menos livre, mais submisso, menos aterrorizado, mais vassalizado”. Mais tarde, já depois da Segunda Guerra Mundial, a propaganda comunista foi fortemente desmentida pelos livros de dois conhecedores por dentro do regime, Victor Kravchenko (Escolhi a Liberdade) e Milovan Djilas (A Nova Classe), bem como Orwell, Koestler e outros. Mas a traição dos intelectuais aparece de forma 496 497 patente nos meios por eles usados na defesa do dogma. Um método consistiu em simplesmente omitir os fatos negativos da gestão comunista, na URSS. Os sim patizantes evitaram lembrar o genocídio da coletividade agrícola, os expurgos, as deportações e liquidações ou eventos políticos degradantes como o pacto Ribentropp Molotov que abriu as portas à Segunda Guerra Mundial. Os aduladores do modelo falaram ad nauseam nos progressos econômicos propiciados pela planificação centralizada, mas não fizeram referências ao seu custo em termos de trabalho forçado, compressão insuportável do consumo, falta de eficiência e desperdício. Quando os fatos não foram silenciados, foram colocados num contexto em que a interpretação dos valores tradicionais confundissem a opinião pública. Hayek já escreveu que para se conseguir o abandono dos antigos valores, “a técnica mais eficiente... é continuar a usar as antigas palavras alterando-lhes o sentido”. Assim, falaram ainda em liberdade, justiça, legalidade, etc., contudo num sentido contrário ao tradicional. Às vezes, admitindo os fatos, os partidários do comunismo procederam a verdadeiras acrobacias semânticas para disfarçar a realidade. Um professor sério como Charles Bettelheim chegou a usar eufemismos como por exemplo “meios psico-físicos de coerção”, para designar o arsenal de horrores usado pelo regime comunista. Um exemplo de desvio das realidades foi a identificação da URSS com a luta antifascista, de modo que os adversários do fascismo acharam na URSS a encarnação desta luta – esquecendo que ela própria era 497 498 um modelo de totalitarismo e que a essência do regime comunista não diferia do fascismo, como tão bem demonstrou Hayek. Até se admitir essa semelhança, o comunismo soviético gozou dos louros da luta e finalmente da vitória contra o fascismo. A confusão foi ilimitada, oriunda da ingenuidade ou da má fé dos partidários. Já seria de estranhar que o homem do valor de H. G. Wells escrevera que “o comunismo apesar de tudo e a despeito de Marx podia tomar um poder construtivo enorme”. E por sua vez, Bernard Shaw afirmou que “Stalin é um bom fabiano e isto é o que de melhor se pode dizer de qualquer um”. Às vezes a interpretação eufemística podia explicar-se por interesses políticos. Assim não é de se estranhar que Joseph Davies, sendo embaixador norte americano na URSS na época dos grandes processos de expurgo, a eles assistiu sem entender nada ou não querê lo por dever do ofício. Mais incomoda é a desculpa que o grande liberal Hayek invoca no prefácio da edição de 1976 do seu livro O Caminho da Servidão: “A pouca ênfase que dei è relevância da experiência da Rússia foi uma falha talvez perdoável quando lembramos que, quando escrevi o livro, a Rússia era nossa aliada na guerra”. A verdade teve limites políticos mesmo para um intelectual como Hayek. E para fechar esta série de citações de ambigüidades, vejamos o que escrevia Jorge Amado no momento em que a URSS e Stalin se encontravam no seu auge: “Eu amava a URSS exatamente porque lá não só existe a liberdade de crítica e de imprensa, como o 498 499 exercício do direito de crítica é mesmo um dos princípios em que se funda a sociedade soviética” (O Mundo da Paz, 1952). O autor confessou estar pensando “na imensa ação moral da URSS sobre o nosso tempo”. E mais: “O passado – os restos de um podre mundo capitalista – jamais poderá vencer o presente soviético”, lembrando a “força invencível do mundo que Lênin e Stalin haviam criado”. Sonho? Ou delírio? *** Em meados do século a ilusão marxista sofreu sérios abalos. O momento crucial foi o histórico discurso de Krushev no XX Congresso do PCUS (1956), quando denunciou os crimes do stalinismo. Começou um processo de revelação das realidades comunistas, confirmando o que anteriormente os partidários e simpatizantes do sistema qualificavam de mentiras forjadas pelos capitalistas. No clima de relativa liberalização as denúncias intensificaram-se, oriundas especialmente de dentro do sistema – foram, por exemplo, as obras de Pasternak e Soljenitsin, para não falar dos repetidos testemunhos dos refugiados dos países satélites da Europa Oriental. A contestação começou também de dentro, no campo econômico como as propostas de reforma apresentadas por Liberman e Trapeznicov na União Soviética. O golpe de misericórdia foi dado por Gorbachev, questionando o regime tanto no plano político como no econômico, sem contudo rejeitar as bases do pensamento leninista. 499 500 Mas o nosso propósito não é discutir as causas e os efeitos das críticas e eventuais reformas, mas sim, perguntar qual foi a reação das elites fascinadas pelo marxismo em face das revelações agora incontestáveis sobre o regime. Elas, sempre movidas pelo fanatismo, simplesmente persistiram na defesa do sistema a despeito da evidência dos fatos. Essa defesa continua sendo feita através dos mesmos métodos já men cionados: silêncio a respeito dos fatos incontestáveis, deformação dos mesmos, subterfúgios semânticos, e assim por diante. Em face da denúncia oficial do stalinismo a reação defensiva da Esquerda consistiu em rejeitá -lo separando-o do socialismo “puro” de Marx e Lênin e escondendo o fato de que os germes do stalinismo – autoritarismo, centralização do poder, estado policial – se encontram na tradição de Lênin e mesmo de Marx. Tanto é que até um grande comunista como Trot sky, quando magoado pela perseguição stalinista, identificou a evolução fatal do sistema: da ditadura do prole tariado para a do Partido e finalmente para a do Chefe do partido. As elites esquerdistas voltaram para a velha prática ilusionista, discriminando o socialismo “real”, já condenado, de um outro “socialismo ideal”, a velha utopia do paraíso socialista, considerando o stalinismo como uma simples crise conjuntural dentro da perfeição do modelo marxista. Dentro dessa tática de acenar com a perspectiva de um outro socialismo, foi ressuscitada a figura de Bukharin, suposto paradigma de um 500 501 “comunismo com rosto humano” pretedindo o fato de que o próprio Bukharin foi um seguidor de Stalin de cuja política participou até sua própria liquidação. É um verdadeiro fetichismo quando a Esquerda se refere, sem maior aprofundamento, a um outro socialismo, não explicando como seria e como funcionaria, mas que seria ainda socialismo. Assim, um líder comunista pátrio, tendo honestamente admitido o fiasco da teoria marxista e o colapso do socialismo real, conclama que “temos que reinventar o socialismo”. (Roberto Freire, JB, 9.06.1991) *** Confesso que me faltam capacidade e fôlego para analisar todas as manifestações das elites neste período em que o fascínio pelo marxismo resistiu aos desmen tidos dos fatos. Escolhi apenas o exemplo de um scholar, historiador, professor da Universidade de Londres e muito louvado pela Esquerda: Eric Hobsbawm. Refiro-me especialmente a um livro recente, A Era dos Extremos (1995). Aparece nele o mesmo empenho em camuflar ou deformar as realidades a fim de não marcharem a imagem da experiência com unista representada pela União Soviética. Torna-se evidente o propósito de minimizar ou mesmo ignorar todos os graves acontecimentos que comprovadamente estigmati zaram aquele regime: a coletivização agrícola e a liquidação dos kulaks, as deportações e o t rabalho forçado, os expurgos, o pacto de 1939, a espoliação dos 501 502 países satélites. A despeito das revelações de Gorba chev, Hobsbawm sustenta ainda que o sistema socialista é “economicamente racional em teoria”, mais uma vez a ilusão do modelo ideal. Aconselha pois “separar a questão do socialismo de forma geral da experiência específica do socialismo realmente existente” – a velha condenação do socialismo real para salvar o dogma. Assim Hobsbawm, como os seus antecessores ou coevos, acena com outras alternativas indefinidas: “o fracasso do socialismo soviético não se reflete sobre a possibilidade de outros tipos de socialismo”. Quais? A benevolência para com a União Soviética estende-se às suas ações políticas. Hobsbawm afirma tranqüilamente que “a URSS não era expansionista e menos ainda agressiva, nem contava com qualquer extensão maior do avanço comunista além do que se supõe houvesse sido combinado nas conferências de cúpula de 1943/45” e que “não há índice concreto de que ela pretendesse ampliar as fronteiras do comunismo até meados da década de 70”. A URSS apenas “usou uma conjuntura favorável que não criara”. Se os avanços dos Estados Unidos são imperialistas, os da URSS representam tão somente a expansão “normal” do socialismo. Parece que Hobsbawm viveu num outro planeta ou o fascínio marxista o cegou por completo. *** Essa mistura de fanatismo e confusão surge eventualmente mais acentuada no Terceiro Mundo onde 502 503 as elites, além das motivações já mencionadas, estão menos preparadas e mais sensíveis às promessas comunistas, bem como à obra da propaganda devido ao impacto emocional da pobreza ali reinante. A idéia infiltrada pela propaganda é que só o modelo socialista/comunista pode resolver os problemas, a despeito das experiências reveladoras do Império soviético. Ademais, as reivindicações igualitaristas não são desprovidas de um certo ódio e revanchismo para com o mundo capitalista e daí para com o liberalismo em geral. Entretanto as suas elites não esclarecem o funcionamento efetivo da proposta comunista tanto no plano da igualdade quanto no da liberdade. Rejeitando o rigor dos dogmas marxistas e descartadas as pretensões teóricos de Lênin, para não lembrar mais o des moralizado modelo stalinista, sobram aos defensores do mito marxista sobretudo posições negativas centradas em torno do antiliberalismo, criticar o liberalismo onerando-o com todos os pecados possíveis: capitalismo selvagem, imperialismo, colonialismo. Abandona-se formalmente o cabedal teórico do marxismo ao mesmo tempo que se continua usando e abusando dos conceitos tradicionais de imperialismo, dependência e eviden temente anticapitalismo e antiamericanismo. Pode-se dizer que o fascínio do discurso marxista se manifesta sobretudo em formas negativistas. Essa posição, bastante cômoda como qualquer crítica destrutiva, foi uma constante na atitude dos simpatizantes. “É fundamental que o argumento comunista foi 503 504 principalmente negativo: anticapitalismo, antifascismo, etc. O mesmo acontece agora: exemplo, as críticas ao neoliberalismo sem definir os méritos do comunismo”. (Furet) Afinal de contas, a capacidade de sobrevivência do fascínio marxista estaria ligada, em grande parte, a essa posição negativista, ao arsenal de críticas a outras propostas, sem que o socialismo se sinta obrigado a assumir seus fracassos e justificar as suas propostas. É suficiente a obstinação cega de seus discursos, sustentados por uma bem articulada propaganda, graças à infiltração nos meios de comunicação. E a explicação desse fanatismo talvez deva ser procurada naquela observação inicialmente citada de Schumpeter sobre o caráter quase religioso do discurso marxista – a promessa de um paraíso terrestre. BIBLIOGRAFIA SELECIONADA BENDA, Julien. 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