O Direito Comunitário e a Tendência de Mudança de Paradigma da Hierarquia das Normas Jurídicas* Cristiane Schwanka Humberto Soares Hungria Jéferson Leal Quadros Karla Ferreira de Camargo Fischer** Resumo: O texto propõe uma análise do tema da formação do Direito Comunitário a partir da criação dos blocos econômicos. Apresenta a tendência de relativização do conceito de soberania do Estado-nação. Discorre sobre a perspectiva tradicional da definição da hierarquia das normas jurídicas e a sua modificação em face da criação de um Direito supranacional. Apresenta a tendência de mudança de paradigma da supremacia da Constituição a partir da celebração dos Tratados fundadores das Comunidades, tomando por base o contexto formado pela criação da União Européia que contém disposições comunitárias dotadas de aplicabilidade direta no ordenamento nacional. Palavras – chave: Direito Comunitário; Blocos Econômicos; Integração; Supremacia Constitucional; Soberania; Comunidade Européia. Introdução O artigo trata da formação do Direito Comunitário como forma de disciplinar o processo de integração dos Estados envolvidos na criação das comunidades internacionais e da sua incidência sobre o direito nacional dos Estados-membros. Inicialmente, é apresentado um panorama das relações comunitárias com ênfase à necessidade de aceitação cultural e social para o sucesso da integração pretendida. Em seguida, discorre-se sobre a tendência de relativização do conceito de soberania, tendo em vista que a utilização do conceito de forma absoluta é impeditivo ao desejo de integração dos Estados. Na seqüência, aborda-se a questão da supremacia constitucional em face da necessidade da primazia do direito comunitário para garantir a permanência da comunidade formada. Finalmente, são apresentadas algumas considerações finais sobre o tema, sem contudo, ter a pretensão de esgotá-lo. 1 O Desejo Integracionista e a Formação do Direito Comunitário Atualmente, a integração entre os países, faz desenvolver um novo tipo de relações que se aperfeiçoaram a ponto de tomar feição própria: são as chamadas “relações comunitárias”.1 Ao discorrer sobre o processo de integração regional Pascuall CAIELLA, afirma que se constitui fundamentalmente um processo cultural pelo fato de que a integração somente poderá realizar-se quando se tenha conformado um sistema de valores comuns entre os atores do processo, que inclui uma visão do mundo em que se vive e até a qual se pretende ir, e que o próprio processo seja internalizado como bom para todos os cidadãos de cada país membro da união.2 Segundo Jorge Luis SALOMONI, “a dimensão cultural, é então em minha opinião, um * Artigo apresentado à disciplina Direito da Integração, do 10° semestre curso de Direito das Faculdades Integradas do Brasil. ** Acadêmicos do 10° semestre do curso de Direito das Faculdades Integradas do Brasil, Turma 10 DAN. 1 SOUZA, Washington Peluso Albino. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTR, 2003. p. 195. 2 CAIELLA, Pascual. Problemas relativos a la compatibilización de los derechos constitucionales y el derecho comunitário. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari. VIEIRA, Oscar Vilhena. (Coord.) São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 49. [tradução livre] dos mais importantes problemas da integração: sem cultura comum não há integração”3 Isso porque, o Direito é parte do mundo da cultura uma vez que é através de valores extraídos do corpo social, em determinado contexto histórico, que se criam os comandos normativos que irão regular as condutas humanas daquela sociedade.4 As relações entre nações, Comunidades e demais agentes apresentam-se sobre a forma de blocos econômicos com predominância para o sentido regional – embora nem sempre observadas, cujo traço comum é o objetivo integracionista mesmo com a existência de acentuadas diferenças entre os Estados-membros, tanto quanto o estágio de desenvolvimento econômico como, até as variações de sistema político ou jurídico.5 A ação política comunitária fundamenta-se em um princípio de interesse supranacional, estruturada por instituições que se comprometem em realizar interesses comunitários, exige esforços em favor de modos alternativos ao estatal de constituição de legitimidade da ação política, justificação do poder e identidade coletiva. Conforme disserta SALOMONI, “para uma proposta de integração se requer que as discusões se conduzam a um consenso e, por fim, à harmonização de visões, concepções, ordenamentos jurídicos, etc. Em suma, a conformação de uma cultura comum, a um sistema de valores compartilhado.”6 Para possibilitar a harmonização das legislações internas dos países componentes dos blocos econômicos, começa a se caracterizar um direito correspondente a tais relações, o “Direito Comunitário” que possui uma difícil tarefa de compatibilização interna em face das peculiaridades socioeconômicas de cada um dos países membros. Representa o trato dos respectivos Direitos Nacionais, ante a cooperação integracionista de Estados diferentes. A crise das estruturas de autoridade baseadas no Estado-nação e o questionamento de sua hegemonia, fazem surgir reflexões sobre as crises do conceito de soberania, da territorialidade das atividades estatais e avançam no sentido de se valorizar o papel das idéias comuns e das identidades na busca da compreensão das novas bases de legitimidade da identidade coletiva para a justificação da organização de um poder político. 2 A Tendência de Relativização do Conceito de Soberania A criação, organização e funcionamento de uma comunidade econômica, ou de um mercado comum, tem aparentado uma série de problemas jurídicos, que necessariamente devem ser resolvidos, tais como em definir se há primazia ou hierarquia dos ordenamentos jurídicos nacionais ou eventual autonomia do Direito Comunitário como verdadeira ordem jurídica autônoma e independente.7 Nesse sentido, disserta CAIELLA: A Constituição, em definitivo, ‘constitui’o Estado e o cria como entidade jurídica. Que esta entidade se vê profundamente alterada ao incorporar-se ao processo de integração é coisa evidente. Em primeiro lugar, porque essa alteração é a finalidade imediata da integração, enquanto esta implica em uma redução da soberania, uma redução, ademais, potencialmente indefinida, tanto pela reforma dos Tratados fundacionais como, à margem desta, através da interpretação expansiva das competências que estes Tratados atribuem à comunidade.8 Em qualquer comunidade econômica é imperativo que se estabeleça uma hierarquia entre as normas internacionais sobre as nacionais, pois de outra forma, inviabiliza a existência de um Direito Comunitário. Patrícia Luiza KEGEL, citando PESCATORE afirma que esta primazia do Direito Comunitário constitui, 3 SALOMONI, Jorge Luiz. Reforma Del estado y mercosur: hacia la construcción de um derecho público comunitário. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari. VIEIRA, Oscar Vilhena. (Coord.) São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 128. [tradução livre] 4 PECES-BARBA, Gregório. Introducción a la filosofia del derecho. Madrid: Editorial Debate, p. 84-86. Apud. SALOMONI, Jorge Luiz. Reforma Del estado y mercosur: hacia la construcción de um derecho público comunitário. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari. VIEIRA, Oscar Vilhena. (Coord.) São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 128. [tradução livre] 5 Cf. SOUZA, Washington Peluso Albino. op. cit. p. 197. 6 SALOMONI, Jorge Luiz. op. cit. p. 155. [tradução livre] 7 CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 49. [tradução livre] 8 Ibid, p. 50. [tradução livre] (...) un presupuesto lógico del sistema jurídico comunitario, su condición existencial y constituye por ello la condición de posibilidad de un derecho comun a los Estados Miembros de un derecho que no varie en la ordenación y ejercício de lãs competencias atribuidas a las Comunidades dependiendo de cada Estado Miembro y de sus proprias normas internas.9 Segundo Patrícia Luíza KEGEL, “a primazia (...) implica na prevalência absoluta do Direito Comunitário sobre os direitos nacionais em caso de conflito de normas de ambos os ordenamentos jurídicos”.10 Para Washington Peluso Albino de SOUZA, “...o problema é mais complexo, pois as estruturas econômicas agora postas sob processo de ‘integração’ serão sujeitas a impactos transformadores que penetram até ao mais fundo das mesmas, envolvendo costumes, tipos e consciência de vida, e atividades econômicas.”11 Tomando por base a análise da questão para a Comunidade Européia12, os autores afirmam a existência de uma “Nova Ordem Jurídica”13, pela qual os direitos soberanos dos Estados-membros ficam limitados, uma vez que as entidades comunitárias formadas são independentes e possuem poderes normativos próprios. Em dezembro de 2001, a União Européia deu o primeiro passo para elaborar uma constituição do bloco, ao aprovar a realização de um intenso debate sobre sua reforma e expansão, havendo indicado o ex-presidente francês Valery Giscard D'Estaing para coordenar tal discussão, tendo a declaração final da cúpula daquela União defendido expressamente a futura adoção de uma carta para todos os países integrantes do conglomerado. Em 20 de junho de 2003, o chefe da convenção européia, Valery Giscard D'Estaing, encaminhou aos dirigentes europeus o "rascunho" que servirá de base para as negociações de uma futura e definitiva Carta Européia. Tal "projeto de constituição" foi aceito pelos chefes de Estado e de Governo reunidos na Grécia, devendo com base no "rascunho", as negociações se iniciarem a partir de outubro de 2003. Segundo o entendimento dos especialistas, não existe possibilidade de solução dos vários conflitos e questões institucionais, sem uma Constituição Européia. Assim, a Europa caminha, a largos passos, rumo à Constituição única, que será o documento máximo para o bloco como um todo, que certa e logicamente relegará a um segundo plano os atuais ordenamentos jurídicos parciais e soberanos. Segundo o entendimento de Alexandre Coutinho PAGLIARINI: Diante dos avanços da integração dos países europeus, vê-se que, se por um lado a Europa está discutindo abertamente a redefinição de soberanias tradicionais – como a francesa e a portuguesa –, por outro o Brasil ainda nem se encontrou internamente, pois aqui, até hoje, caminha-se numa constante desorientação constitucional quando se faz preponderar, mesmo diante de uma Carta que se autoproclama federalista, sérios desvios do chamado pacto federativo.14 O autor justifica essa disparidade entre a União Européia, que nasceu sob as ruínas da Segunda Guerra – portanto, a quase 60 anos –, e os demais blocos, como o Mercosul, por exemplo, afirmando que os países latino-americanos "nem mesmo alcançaram maioridade constitucional, fato esse que deve ser obtido antes de se fazer valer, na integração [desses países], o monismo jurídico puro que a União Européia preferiu em seu Direito Comunitário".15 9 KEGEL, Patrícia Luiza. O Sistema de Solução de Controvérsias na União Européia. CEIA, Eleonora in: Solução de Controvérsias: OMC, União Européia e Mercosul. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer- Stiftung. 2004. p.79 10 KEGEL, Patrícia Luiza. Op. Cit. p. 79 11 SOUZA, Washington Peluso Albino. op. cit., p. 195. 12 A União Européia é o resultado da unificação de três organizações internacionais distintas – a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), a Comunidade Econômica Européia (CEE e agora CE) e a Comunidade Européia de Energia Atômica (Euratom), sendo que a primeira foi instituída pelo Tratado de Paris (18/04/1951) e as demais pelo Tratado de Roma (25/03/1957). Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 798. 13 Cf. SOUZA, Washington Peluso Albino. op. cit., p. 196. 14 PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e Direito Internacional – Cedências possíveis no Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Florense, 2004. p. 224 15 Ibidem, p. 225 O Direito Comunitário sobrepõe-se aos direitos nacionais, pelo fato de algumas de suas normas serem diretamente aplicáveis. Segundo SOUZA, “em decorrência, foi criado um Tribunal que controla a sua interdependência e aplicação, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias (...). Seu poder normativo, portanto, é exercido diretamente, sem qualquer controle dos Estados-membros e submetido a uma “Ordem Jurídica” própria.”16 A noção absoluta de soberania que impede qualquer processo de integração, tem sido paulatinamente abandonada por uma noção relativa.17 KELSEN afirma que a noção de tradicional soberania é incompatível com a primazia do direito internacional e o estabelecimento de uma ordem jurídica internacional.18 LEAL verifica que “os Estados estão cada vez menos soberanos – e, com isso, mais civilizados e sintonizados com a vocação da modernidade”.19 Conforme CAIELLA, “a questão de soberania faz referência a necessidade de estabelecer se é compatível juridicamente a existência simultânea de duas ordens jurídicas: uma nacional e a outra internacional. A resposta em sentido positivo claramente se impõe.”20 A Constituição Brasileira de 1988, segundo Rosemiro Pereira LEAL21, contempla a soberania nos sentidos mais diversos, como por exemplo, no art. 1º a soberania é abordada como fundamento do Estado Democrático de Direito, no art. 14 estabelece que a soberania popular deve ser exercida pelo instrumento do sufrágio universal, e no art. 170, I a soberania é tratada como princípio da ordem econômica. Nos documento da Comunidade Européia não se menciona o conceito de soberania, uma vez que tal conceito se opõe a idéia de comunidade econômica. Nesse sentido leciona José Joaquim Gomes CANOTILHO: A estrutura do ordenamento jurídico-comunitário não é uma estrutura homogênea, pois devem ser tomados em conta os chamados três pilares da Comunidade. O primeiro pilar é formado pelo direito comunitário em sentido restrito, estruturado em normas dotadas de especificidade e eficácia própria. Os segundo e terceiro pilares (política externa e segurança comum no que respeita ao segundo e cooperação judicial e nos assuntos internos no que respeita ao terceiro) assentam em normas de cooperação interestatal fundamentalmente reconduzíveis a normas de direito internacional convencional.22 [grifos do autor] Da mesma forma, o conceito absoluto de soberania tem sido limitado pela nova disciplina jurídica do direito de integração humanitária que define claramente que a proteção dos direitos humanos pertence à ordem pública internacional que deixam de considerar a jurisdição doméstica exclusiva dos Estados.23 Igualmente, Alfredo VEDROSS sustenta que os Estados que integram a comunidade internacional são independentes e soberanos, porém essa soberania é relativa e plenamente compatível com o direito internacional, sem que seja necessário suprimir essa noção.24 Segundo LEAL: Poder-se-ia acrescentar que a soberania, na acepção moderna, como instituição condicionante e criadora do ordenamento jurídico dos povos em forma de Estados auto-determináveis e independentes, equivale a consciência coletiva que, por direito fundamental decorre da livre manifestação do povo para modelar o Estado, segundo princípios imanentes à (sic) essa própria consciência. Esses princípios, além de terem caráter jurídico, porque são ordenadores do Estado, devem guardar identidade com os postulados dos direitos fundamentais como caminhada histórica inexorável do homem à busca de sua plena libertação. [Grifo do autor]25 É necessário, portanto, para o fortalecimento do Direito Comunitário, que todos os Estados participantes de comunidades econômicas, transfiram certas parcelas de sua soberania em favor destas 16 SOUZA, Washington Peluso Albino. op. cit., p. 196. CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 51. [tradução livre] 18 KELSEN, Hans. Princípios de direito internacional público. Buenos Aires: Ed. El Ateneo, 1965. p. 97. Apud CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 52. [tradução livre] 19 LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e Mercado Mundial: a crise jurídica das economias nacionais. 2 ed. Ver e atual. Leme: LED, 1999. p.21 20 CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 52. [tradução livre] 21 LEAL, Rosemiro Pereira. Op. Cit. p. 35 22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 799. 23 CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 53. [tradução livre] 24 VERDROSS, Alfredo. Direito internacional público. Madrid: Ed. Aguilar, [xx]. p. 8 e ss. Apud, CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 53. [tradução livre] 25 LEAL, Rosemiro Pereira. Op. Cit. p. 39 17 comunidades, como de fato já ocorre na União Européia. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (União Européia), este entendimento já é pacífico: (...) a transferência operada pelos Estados de seu ordenamento jurídico interno em benefício do ordenamento jurídico comunitário, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do tratado, implica, portanto, uma limitação definitiva de seus direitos soberanos contra a qual não pode prevalecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de comunidade.26 A norma comunitária, quando posta em vigência, revoga as leis nacionais relacionadas. As leis nacionais editadas após a norma comunitária não são válidas. Assim, “a regra ‘lex postrior derogat legi anterior’ não se aplica quando se trata de uma antinomia envolvendo normas nacionais e comunitárias”.27 3 A Supremacia Constitucional Versus a Primazia do Direito Comunitário A integração entre os Estados tende a modificar a interpretação das fontes normativas do direito nacional, e, por conseguinte tem sua hierarquia alterada em função da celebração de Tratados internacionais que constituem as novas Comunidades. O constitucionalista José Joaquim Gomes CANOTILHO, ao discorrer sobre a posição hierárquico-normativa “tradicional”28 da Constituição no direito nacional, leciona: A lógica é a lógica da pirâmide geométtrica. A ordem jurídica estrutura-se em termos verticais, de forma escalonada, situando-se a constituição no vértice da pirâmide. Em virtude desta posição hierárquica ela atua como fonte de outras normas. No seu conjunto, a ordem jurídica é uma ‘derivação normativa’ a partir da norma hierarquicamente superior, mesmo que se admita algum espaço criador às instâncias hierarquicamente inferiores quando concretizam as normas superiores.29 O Tribunal Europeu, segundo KEGEL, “apesar de já possuir uma posição estruturada a respeito, inicia uma jurisprudência explícita e afirmativa da prevalência da norma comunitária sobre a nacional, mesmo que de status constitucional. Em outros termos, o Direito Comunitário não necessita coincidir com as constituições nacionais e nem pode ser avaliado por elas”.30 Seguindo a mesma corrente CAIELLA afirma que, no direito interno o princípio da supremacia constitucional representa o caráter de norma fundamental que adquire a Constituição, como fruto do Poder Constituinte, o que confere, no mínimo duas interpretações: (a) que a Constituição é a fonte da qual emanam as demais normas que integram o ordenamento jurídico do Estado; e (b) que uma norma ou ato jurídico serão válidos apenas se derivam validamente de uma norma ou ato superior até chegar na Constituição.31 Ocorre que, ao aderir à determinada comunidade, o caráter de hierarquia das normas internas dos países membros sofre influência dos Tratados integracionistas. No caso específico da Comunidade Européia, CANOTILHO afirma: Os Tratados institutivos da Comunidade, bem como as determinadas disposições comunitárias que são dotadas de aplicabilidade direta (self executing) constituem, no caso de Portugal, uma nova fonte normativa da ordem jurídico-constitucional portuguesa, em posição separada relativamente aos actos legislativos internos, podendo ‘desbancar’ ou afastar estes com base no princípio da especialidade ou da competência prevalente. Por outras palavras: a normativa comunitária tem preferência ou prioridade aplicativa relativamente à legislação estatal. Quando o princípio da especialidade não é suficiente, a doutrina mais recente afirma a superioridadedo direito comunitário, traduzida pela força activa dos regulamentos comunitários (podem revogar e modificar 26 Sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias de 15 de julho de 1964. Caso “Costa/ENEL”. KEGEL, Patrícia Luiza. Op. Cit. p. 81 28 Refere-se à análise tradicional da hierarquia das normas jurídicas, exclusivamente no direito interno, a partir da concepção de que os Tratados possuem status de norma infraconstitucional. 29 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 1116. 30 KEGEL, Patrícia Luiza. Op. Cit. p. 82 31 CAIELLA, Pascual. op. cit., p. 54. [tradução livre] 27 leis) e na resistência passiva dos mesmos relativamente a leis posteriores internas (não podem ser revogados nem modificados).32[grifos do autor] Ao instituírem a Comunidade, os Estados-Membros limitaram os seus poderes legislativos soberanos e criaram um sistema jurídico independente que os vincula, tal como aos seus nacionais. Nesse contexto, o direito comunitário tende a se tornar uma instância jurídica autônoma que se autoconstitui a partir de regras do direito internacional público, mas não corresponde à dimensão jurídica internacional nem à constitucional. Trata-se de um direito supranacional que dita normas coletivas que devem ser necessariamente respeitadas pelas Constituições dos Estados signatários do tratado que o constitui (no caso, o Tratado de Roma, de 1957) e aplicadas pelos tribunais nacionais. A autonomia da ordem jurídica comunitária tem um significado fundamental para a Comunidade Européia, pois constitui a única garantia de que o direito comunitário não será desvirtuado pela interação com o direito nacional e de que será aplicável uniformemente em toda a Comunidade. Por isso, os conceitos jurídicos comunitários são interpretados fundamentalmente à luz das exigências do direito comunitário e dos objetivos da Comunidade. Esta determinação especificamente comunitária dos conceitos é imprescindível, uma vez que os direitos garantidos pela ordem jurídica da Comunidade poderiam estar em perigo se os Estados pudessem ter a última palavra para decidir, segundo as diversas interpretações que fizessem das disposições comunitárias, quanto às liberdades instituídas pelo direito comunitário. Note-se que tal conceito representa uma mudança de paradigma e é visto, pela doutrina clássica, como sendo problemático sob o ponto de vista dos princípios das teorias jurídicas modernas que não admitem nenhuma norma jurídica positiva hierarquicamente superior às Constituições nacionais. O fato é que tais transformações vêm acompanhadas por outras que só podem se dar na esfera da sociedade, como a conscientização dos efeitos da unificação, a satisfação popular quanto aos limites de interferência no processo de integração, a aceitação da representatividade supranacional e o reconhecimento da legitimidade do direito comunitário. Quando se fala em identidade coletiva, isto implica uma personificação, uma organização de caráter próprio, do mesmo modo que, uma mudança no referencial da identidade coletiva pressupõe um processo de transformação. Considerações Finais Diante do exposto, é possível concluir que a formação e o reconhecimento do Direito Comunitário como fonte normativa superior ao Direito interno é pressuposto essencial para o sucesso da integração entre os Estados. Todavia, esse reconhecimento deve estar vivo e solidificado no corpo social de cada Estadomembro, como forma de garantir a estabilidade integracionista. Para isso, é necessário reconhecer a necessidade de mudança do paradigma da interpretação da hierarquia das fontes do Direito, sem, contudo, permitir a destruição dos valores fundamentais do Estado e dos Direitos Humanos, valores supremos conquistados ao longo da história. A permanência de determinados institutos do direito nacional como superiores ao direito comunitário no plano da hierarquia das fontes do direito, ou, no mínimo, em condições de igualdade, de forma a permitir o controle dos atos comunitários em face do direito nacional quando aqueles agridam seu núcleo essencial, poderia representar um caminho a ser trilhado pela comunidade jurídica dos povos dos Estados integrados na busca do Estado Constitucional Cooperativativo33, conforme leciona o mestre CANOTILHO. Referências Bibliográficas CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. 32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 801. Para CANOTILHO, essa forma de Estado não deixa de observar os padrões básicos do Estado constitucional (soberania popular, divisão de poderes, garantia de direitos, primazia da Constituição, superioridade da lei do parlamento), ao incorporar as competências normativas da comunidade. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1324. 33 KEGEL, Patrícia Luiza. O Sistema de Solução de Controvérsias na União Européia. CEIA, Eleonora in: Solução de Controvérsias: OMC, União Européia e Mercosul. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer- Stiftung. 2004. LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e Mercado Mundial: a crise jurídica das economias nacionais. 2 ed. Ver e atual. Leme: LED, 1999. PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e Direito Internacional – Cedências possíveis no Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Forense, 2004. SOUZA, Washington Peluso Albino. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTR, 2003. SUNDFELD, Carlos Ari. VIEIRA, Oscar Vilhena. (Coord.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999