Alfredo Margarido e
o Pensamento Crítico
António Branquinho Pequeno *
ma das facetas mais curiosas do Professor consiste
no facto de, quando fala,
ter coisas para dizer, o que não é
muito corrente, mesmo fora do discurso político. Coisas para dizer e
que merecem ser escutadas.
Um outra característica ajuda
também a definir o seu perfil: detesta
os chavões e as frases feitas. Nunca
o ouvi, por exemplo, interpelar
alguém com um “Então, tudo bem?”,
muito em moda agora, fórmula de
importação brasileira que os portugueses logo adoptaram sem pestanejar, expressão de um mecanismo
de defesa revelador de dificuldades
no relacionamento com o Outro.
Como se fosse possível esperar que
tudo estivesse bem na vida das
pessoas e em seu redor! Um outro
aspecto tem a ver com a escatologia. Nunca lhe ouvi dizer “que se f.
isto”, ou que “vá para o c.”, corrente
na praça por tudo e por nada.
Ora, mais do que as presenças,
é este tipo de ausências ou omissões, na linguagem como em tudo
o mais, que melhor permitirão
avaliar de um perfil. Tomemos o
exemplo de Sartre. Há nele duas
ausências fundamentais, que por
isso mesmo, dão muita informação:
a primeira é a Psicanálise, o modelo
teórico do Inconsciente era incompatível com a sua visão do livre
arbítrio, da liberdade do homem
que não está determinado, antes é
o construtor do seu próprio destino.
A outra ausência são as crianças que
não estavam no seu horizonte, não
pertenciam ao seu percurso e lhe
passaram ao lado. Também não
comia crustáceos. Tinha repugnância por “essa carne branca que não
é feita para nós, que foi roubada a
um outro universo”, mas que surgia
nos seus fantasmas, sob o efeito
alucinógeno da mescalina. As
ausências são reveladoras justamente porque não são calculadas,
contrariamente ao que se diz ou
U
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apresenta, que pode ser acautelado
ou preparado. Outro exemplo:
Alfredo Margarido nunca usou
gravata, nem sequer nas raras situações protocolares em que o vislumbrei. Para essas ocasiões ele tinha
uma dessas camisas de colarinho
asiático que a dispensava
Conheci-o em Paris em 1964-65,
já lá vão 40 anos. Nos primeiros
tempos desse exílio parisiense,
cruzámo-nos esporadicamente. Ele
era pouco dado, ainda é, a intermináveis almoçaradas e a convívios
barulhentos, avistava-o sobretudo
quando por ocasião de uma palestra, de um encontro organizado por
uma Associação de emigrantes, ou
na Ligue Française de l’Enseignement,
da rua Récamier, onde também
aparecia Emídio Guerreiro, agora
falecido com 105 anos de idade e
que, portanto, era nessa altura o
mais velho de todos, ou então
cruzava-o num daqueles cafés do
Quartier Latin, o Mahieu, já desaparecido, ou o Café du Luxembourg,
praça Edmond Rostand, que ainda
resiste, embora hoje remodelado e
de cara lavada. Foi aliás no Café du
Luxembourg que o avistei pela
primeira vez. Eram os primeiros
anos de um exílio, que alguns de
nós teimávamos em apostar ir durar
pouco, como no poema de Brecht,
mas que afinal se prolongou por 12
longos anos. Falta fazer a sociologia dos cafés do Quartier Latin
dessa época, mosaico político das
diferentes facções da oposição
portuguesa à ditadura. Havia vários,
cada um tinha os seus frequentadores habituais, do Lutèce, no Bd. St.
Michel, ao Saint Claude, no Bd St
Germain, do Tournon, junto ao jardim
do Luxemburgo, muito frequentado
pelo grupo de José Escada, aos cafés
de Montparnasse, o “Dôme”, o
“Select”, a “Coupole”, a “Closerie des
Lilas”.
Enquanto Alfredo Margarido
fazia investigação nas bibliotecas,
frequentava as livrarias e se familiarizava com editoras, nós vivíamos
nos cafés, depois do trabalho, pois
tinham a vantagem de terem aquecimento central para fazer face ao
frio parisiense e espaço, o que não
era o caso nas “chambres de bonne”
ou nas mansardas de um sétimo
andar sem elevador. Nesses cafés
se partilhava o convívio com outros
exilados, políticos e económicos
confundidos, os gregos, sob a ditadura de Patakos, os espanhóis sob
o jugo franquista. Data aliás dessa
altura a minha descoberta da comida
grega. Vicissitudes políticas várias
levaram-me depois a ir trabalhar para
Copenhague, Lausanne, na Suíça
francófona e Londres. Regressei a
Paris para o Maio de 68 e foi então
que voltei a encontrar Alfredo
Margarido, que não tinha arredado
pé da capital francesa. Foi a partir
desta data que o nosso relacionamento se estreitou, ao tempo em
que ele habitava rue de Savoie, um
pequeno apartamento que pertencera a Isabel Meireles e a dois
passos do que fora o atelier de
Picasso. Era um quinto andar sem
elevador, o que não facilitou as
coisas quando da mudança para a
rua Geoffroy- Saint-Hilaire, entre o
Jardin des Plantes e a estátua de
Jeanne d’Arc. Eu e a minha equipa
braçal encarregámo-nos de acarretar o grosso da coluna, isto é, os
milhares de livros que entretanto o
Professor já tinha acumulado. A tal
ponto que, para caminhar pela
pequena sala, era preciso saltitar
entre Sartre, Balandier, o Império
da Lunda e os dossiês acumulados
em pilhas pelo chão. A mudança
foi pois para Geoffroy Saint- Hilaire,
um sétimo andar, mas desta vez
com elevador! Anos mais tarde,
outra mudança, para a rua Fagon,
perto do Boulevard de l’Hôpital, da
Salpêtrière e da estátua de Pinel
onde, com o tempo, os livros se
foram reproduzindo como cogume-
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los, passou a haver zonas neutralizadas, só habitadas por livros e
onde já nem a saltitar se circulava.
Um dia perguntei-lhe para quando
estaria prevista a próxima mudança...
para que eu me pudesse organizar,
isto é, meter férias!...
Contrariamente à maioria dos
exilados portugueses de Paris, que
agarravam qualquer trabalho que
lhes aparecesse pela frente, mesmo
sem qualquer afinidade com as
anteriores actividades, desde o
“veilleur de nuit” nos hotéis até ao
“coursier livreur”, como foi o meu
caso, ele continuou a fazer, imperturbável - uma questão de coerência- o que sempre tinha feito, isto
é, investigação, docência universitária e escrita. A escrita foi aliás, até
à data, a sua mais antiga e persistente relação amorosa. 60 anos de
matrimónio, ultrapassadas as bodas
de oiro, a caminho das de platina.
Uma relação amorosa à antiga...
Ainda hoje, nada de computadores...
Encavalitado na velha máquina de
escrever, a combater com o teclado,
só com dois dedos. E sempre a
publicar, o que ficava na gaveta era
mais tarde retomado. E não se
vislumbra à vista qualquer separação ou divórcio nesta relação
amorosa. Quando, a partir de 1972,
comecei a dar os meus primeiros
passos docentes, as primeiras aulas
em Villetaneuse e, a seguir, na
Sorbonne, já ele de há muito era
figura notória no universo da sociologia francesa e se tinha “instalado”
com armas (as do pensamento
crítico) e bagagens, na École des
Hautes Études en Sciences Sociales.
A bagagem intelectual, essa já vinha
de Viana do Castelo, Lisboa, Luanda,
outra vez Lisboa e da Casa dos
Estudantes do Império, ao Arco do
Cego, este certamente o espaço
mais radicalmente anti-colonialista
desse período. Convém dizer que
essa Escola de Altos Estudos do Bd.
Raspail é uma das mais prestigiosas
instituições da Sociologia francesa,
onde se contavam pelos dedos -e
ainda se contam- os portugueses
que lá entraram, entre os quais
Fernando Gil. Eu fiquei-me pela
Sorbonne. Naturalmente, o relacionamento com Alfredo Margarido
facilitou-me alguma aproximação a
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LATITUDES
figuras gradas do pensamento
crítico francês, Joseph Gabel, Pierre
Vidal-Naquet, Daniel de Coppet e
Marc Ferro, com quem ele mantinha
em França relações muito próximas. Jean Mettais já eu conhecia de
longa data, Pierre Rivas também,
entre outros amigos comuns: os
brasileiros Celso Cunha e Gerd
Bornheim, o primeiro de Minas
Gerais, filólogo, catedrático da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, o segundo de Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul, filósofo,
especialista de Sartre e Heidegger.
Ambos infelizmente já falecidos.
Figurava também dessas amizades
comuns Lindley Cintra, de quem
recordo a memória da boa convivência e os ensinamentos, a nossa
passagem em Nápoles, mas sobretudo em Paris e no Rio de Janeiro.
Das relações próximas de Alfredo
Margarido com os portugueses de
Paris, de citar Manuel Villaverde
Cabral, que também conheci;
Humberto Belo, Jaime Barbosa
Monjinho e João Quintela, que eram
igualmente das minhas relações
muito próximas. E que continuam a
ser, excepto João Quintela, recentemente falecido. José Mário Branco
ainda, com quem também tínhamos
grandes afinidades políticas. E
Alberto Melo. Foi
graças ao
Professor que conheci Alexandre
Pinheiro Torres e, em Carcavelos, já
depois do 25 de Abril, Mário
Henrique Leiria e os seus Contos do
Gin Tónico, o Mário que eu “ajudei
a morrer” mais cedo, porque lhe
trazia o Gin que ele tanto apreciava
e que bebia mesmo sem água
tónica, já entrevado com a sua
poliartrite crónica evolutiva, o que
certamente lhe acelerou o desenlace .
Obviamente, seria descabido
fazer aqui o currículo do ensaísta
Alfredo Margarido, isso é coisa de
colegiais. Mesmo que isso se justificasse, como fazer o currículo de um
investigador, em áreas tão diversificadas, que há mais de 50 anos
escreve praticamente todos os dias,
com obra publicada? E onde estão
essas publicações dispersas por
Portugal, França, Brasil? Seria necessário um secretariado para encontrar e coligir tudo isso, o que levaria
no mínimo meses e, mesmo que se
conseguisse recuperar essa escrita,
seria fastidioso passar em revista
milhares de páginas, em revistas da
especialidade e universitárias, em
periódicos, de modo a catalogar os
temas sobre que se tem debruçado.
Limitar-me-ei aqui a anotar algumas das preocupações que ele ultimamente me tem confidenciado em
conversas, nomeadamente em torno
da Lusofonia. Algumas são preocupações antigas que resistem e que
voltam, retrabalhadas e reelaboradas, outras revelam-se agora. Situálas não é anódino, antes um
excelente analisante. Porquê agora
estas preocupações e não outras,
ao fim de mais de tantos anos de
investigação, de leitura e de
reflexão? Por que é que Régio o
interpela e surge agora no seu horizonte com tal veemência? Ou Kafka
e as cumplicidades do autor checo
com a cultura judia? Ou Van Gogh?
Temas que certamente existiam em
tela de fundo mas que agora irrompem? Não sei se sobre isso ele se
interrogou.
Comecemos pelas preocupações
em torno da Literatura, com a qual
ele parece ter algum contencioso.
Não será por acaso ter ensinado em
áreas tão diversificadas, da História
das Mentalidades à Epistemologia,
da Antropologia Cultural à Ciência
Política, mas nunca ter querido
reger uma cadeira de Literatura
propriamente dita. Mais uma ausência que, tal como eu referia acima,
não deixa de ser rica de significado.
Isto não quer no entanto dizer que
não se tenha ocupado de questões
literárias, antes pelo contrário. A
socio-semiologia da Literatura
portuguesa sempre o acompanhou,
manifesto o seu interesse pelo
grupo do “Orfeu” e da “Presença”,
o neo-realismo, de Redol a Carlos
de Oliveira (Uma abelha na chuva),
registos estes que estão no entanto,
na sua pluma, ao serviço do ensaio
e são pretexto para outros voos. E
assim passaram muitos pela sua
grelha analítica: Camilo Castelo
Branco, Teixeira de Pascoais, Mário
de Sá Carneiro, Eça de Queiroz,
para além de Fernando Pessoa,
naturalmente, incluindo o Pessoa
político, um tema controverso.
25
Recentemente, aliás, foi ele quem
apresentou em Lisboa o livro de
Brunello De Cusatis sobre Fernando
Pessoa, por ocasião do lançamento
no Centro Cultural Italiano da rua
do Salitre. Tive o privilégio de assistir a essa apresentação, de que guardei documento em vídeo, uma sala
apinhada com a presença também
de especialistas italianos. Tabucchi
não veio, mas isso por razões que
não vêm para o caso aqui invocar.
Curiosamente, não estavam presentes alguns dos especialistas portugueses de Pessoa com mais
visibilidade oficial, que bem
conhecemos, nem enviaram
qualquer mensagem para ser
lida pela mesa. Refiro-me a
Teresa Rita Lopes, Eduardo
Lourenço e Yvette Centeno,
entre outros. Não teriam certamente perdido o seu tempo
pois, tal como disse no início
destas linhas, Alfredo Margarido
tem sempre algo de pertinente
para dizer. Não era por acaso
que, por ocasião das históricas
palestras em Paris no Centro
Cultural português do 51 da
avenue d’Iéna, há longos anos,
o Prof. Pina Martins, que dirigia
e animava esses encontros,
nunca perdia a oportunidade
de, terminada a intervenção do
conferencista, convidar Alfredo
Margarido, na assistência, a
colocar questões, pois sabia que
isso ia animar o debate. Foi nessas
ocasiões de que guardo boa memória, que tive a oportunidade de
conhecer Vitorino Nemésio, Jorge
de Sena, Armand Guibert, já falecido, o tradutor de Fernando Pessoa.
Uma coisa é certa. No universo dos
especialistas pessoanos, as análises
de Alfredo Margarido não podem
ser iludidas, quer se concorde ou
discorde, como se tornou uma vez
mais evidente quando da recente
apresentação do livro de De
Cusatis.
A Literatura brasileira, a começar por Gregório de Matos, entrou,
ela também, nos seus horizontes.
Convém dizer que ele foi, durante
largos anos, Professor convidado
das Universidades brasileiras. Mais
uma vez, ele não perdia uma oportunidade para sair da Literatura, tal
26
como o confirmam as suas reflexões,
no campo dos estudos portugueses,
sobre a sexualidade em Bocage,
Cesário Verde (O livro de Cesário
Verde) e Camilo Pessanha (Clepsidra)
Aquém e além da Literatura, a sociologia da sexualidade tem-no levado
aliás a se interrogar sobre a escatologia linguística na oralidade dos
portugueses a que foi feita referência acima. Em suma, uma postura
transdisciplinar da literatura, no
sentido de a análise literária ser
tributária de vários saberes conju-
Dessin de Sonia Prieto
gados e não de um só especificamente, contrariamente à visão
pluridisciplinar, que é um sistema
de guetos. Ele não faz uma abordagem vertical da Literatura, através
de uma só grelha, seja ela sociológica, linguística ou psicanalítica,
coloca antes todas essas disciplinas,
transversalmente, ao serviço da literatura, que assim fica por todas elas
atravessada e enriquecida. O que
lhe permite colocar questões mais
complexas que as colocadas pelos
especialistas, cantonados nos seus
saberes respectivos. Essa a sua
especialidade, de um novo tipo, e
que evita abordagens redutoras.
Uma postura para a qual há que
estar munido de ferramentas muito
diversificadas. Daí algum despeito
de muitos académicos, cuja tendência é analisar as questões literárias,
ou outras, dentro das apertadas
malhas de um saber específico.
O caso de José Régio é paradigmático em termos de transdisciplinaridade. A leitura que faz do seu
lugar nas Letras portuguesas ultrapassa as Letras propriamente ditas
e dá lugar a análises inéditas (Cf.
“O cinema e a criação plástica na
vida e na obra de José Régio) em
que é posta em evidência a apetência de Régio pela produção cinematográfica portuguesa e que não
hesitou “em terçar armas críticas
com os jovens do Cinéfilo e do
Kino”. Uma criação plástica e
cinematográfica que a Presença
não registou na sua dimensão.
Neste mesmo registo, ele
analisa a contribuição da caricatura no movimento modernista,
no contexto de uma revolução
das representações plásticas. “A
caricatura que, como tão amplamente demonstrou Charles
Baudelaire, abriu caminho às
formas modernas dessa criação
plástica” e cuja irrupção molestou e pôs em causa, em França,
o aparelho político de Napoleão
III. Não foi a caricatura que
levou para a cadeia Henri
Daumier?
E como explicar a manifesta
ausência de criação ou de intervenção plástica tanto em
Fernando Pessoa como em Sá
Carneiro? E como entender que
Brancusi, o grande escultor romeno,
tivesse “liquidado” Rodin, ou ainda
a leitura que faz da pintura física
de Artur Bual, outros tantos temas
que o interpelam.
Na área linguística e semiológica, Alfredo Margarido é um profissional da desmontagem dos signos,
sejam eles semióticos ou linguísticos propriamente ditos, sejam eles
marcadores sociais, culturais ou
políticos. Um semiólogo mais perto
de Barthes que de Kristeva, mas
com a chancela da sociologia
Em matéria de políticas linguísticas, igualmente polémicas são as
suas análises sobre a já citada
Lusofonia mas também, mais atrás
no tempo, as razões que levaram o
Marquês de Pombal a cortar caminho
à “língua geral” no Brasil colonial
do séc. XVIII e as conclusões que
LATITUDES
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ele tira da aliança entre uniformização linguística do português e o
colonialismo, no Brasil de então.
Nesta mesma vertente sociolinguística, a análise das mudanças de estatuto dos crioulos africanos, antes e
depois das independências. Leituras
e ilações linguísticas que, uma vez
mais, se socorrem da visão do
sociólogo e do historiador de África
Transdisciplinar ainda em muitas
das suas análises em Ciência Política,
nomeadamente as cumplicidades
entre Democracia e escravatura, não
só na Europa de hoje, mas desde
os Gregos. Ou ainda a análise do
conflito entre o Islão e o Ocidente
à luz da histórica batalha do
Levante, ou a interrogação quanto
à integração na Europa de um país
como Portugal, de há séculos vocacionado para o Atlântico Sul.
A vertente sociológica
Muitas são pois as suas áreas de
intervenção sociológica: Sociologia
da Literatura, da Emigração portuguesa em França, emigração dos
homens mas também das espécies
vegetais, das técnicas e dos saberes. Sociologia do envelhecimento
demográfico e da Terceira Idade
(Universidade da “Terceira Idade”
de Amiens, na Picardia), ou ainda
as leituras do Outro, desde o séc.
XVI (africanos, americanos e asiáticos) e a análise de como esse Outro
entrou nas grelhas do Ocidente
europeu.
Tributário dos mestres franceses,
a sociologia tem ocupado um lugar
privilegiado no seu percurso, a
menina dos olhos. Mestres franceses, alguns dos quais acabará por
criticar mais tarde. Uma disciplina
fundamental, a sociologia. Estou
perplexo ao vê-la em Portugal em
queda livre no ensino universitário,
quando afinal um desenvolvimento
económico sustentado não a pode
dispensar. Sem se afastar da
Sociologia, da dinâmica dos grupos
humanos e das práticas sociais,
Alfredo Margarido esteve sempre
atento no entanto, no quotidiano,
ao modo como se vive, trabalha,
luta, à maneira de um L. Visconti, a
reforçar o que Paul Nizan já dizia
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LATITUDES
em 1932 nos Chiens de garde, a
propósito dos filósofos do seu
tempo. Oiçamos as palavras do intelectual francês, de que agora se
comemora o centenário do seu
nascimento: “Os filósofos parecem
ignorar como são feitos os homens,
parecem desconhecer o que eles
comem, as casas onde habitam, os
fatos que usam, a maneira como
morrem, as mulheres que amam, o
trabalho que fazem no quotidiano.
Parecem ignorar como os homens
passam os seus Domingos, como
se tratam na doença... quais os seus
horários e os seus rendimentos, os
jornais que lêem, os espectáculos e
os divertimentos, os seus filmes,
canções, provérbios. Esta incrível
ignorância não incomoda minimamente o percurso preguiçoso da
Filosofia. Os filósofos não se sentem
atraídos pela terra, são mais leves
que os anjos. Eles não tem o peso
dos vivos que nós amamos e não
sentem qualquer necessidade de
caminhar por entre os homens
...esta Filosofia coloca um certo
número de questões sobre o homem
em geral mas nada sobre o homem
em particular que existe e tem que
comer. A liberdade para ela é um
encadeamento de conceitos... mas
que não dirão destes jogos os
homens que trabalham nas cadeias
de montagem para quem a liberdade é exclusivamente a dramática
conquista de tudo o que não têm?
As palavras de certos filósofos não
traduzem qualquer realidade, qualquer “engagement”, não fornecem
nenhuma saída porque elas só visam
as Ideias, a ideia de Felicidade ou a
ideia de Liberdade, aliadas à ideia
de Homem. Mas nunca a felicidade
ou a liberdade terrestres de tal
homem ou de tal mulher. Estes
sábios incarnam ideias que os pais
lhes transmitiram. Profetas de um
progresso espiritual e social que só
colocam questões às ideias eternas,
mas nada de desvendar a realidade
do mundo. Ao abrigo do eterno,
estes filósofos cúmplices dos opressores, conspiram em todos os atentados.”
Numa outra passagem Paul
Nizan continua: “O que fazem os
pensadores de ofício? Guardam o
silêncio. Não alertam. Não denun-
ciam o fosso entre o seu pensamento e o universo de catástrofes
que nos rodeia aumenta e eles não
dão o alerta. A distância entre as
suas promessas e a situação dos
homens nunca foi tão escandalosa.
E não se mexem. Ficam do mesmo
lado da barricada, continuam nas
suas assembleias e publicam os
mesmos livros...”
Sempre conheci Alfredo Margarido,
na vida como na mensagem, atento
a esse quotidiano dos homens e a
estabelecer a ligação entre o particular e os destinos colectivos. O
universitário, o investigador, não
ficaram enclausurados em nenhuma
académica torre de marfim, como o
prova a sua semanal colaboração
jornalística, como colunista, no
Semanário e no “Ribatejo”. E, tal
como Nizan, sempre o ouvi dar o
alerta.
Muitas são as suas leituras sociológicas, algumas em torno de velhos
temas que ressurgem -o luso-tropicalismo de Gilberto Freire- outras,
recentes, como a crítica ao romance
de Miguel Sousa Tavares, “Equador”,
em seu entender e pelo que
compreendi, um sucesso comercial
em má literatura.
Em jeito de conclusão
E pelo que fica dito, o Professor
não deixa de ser incómodo para
muitos, o que não é de espantar,
com a sua ousadia teórica e com tal
folha de serviço, a afoitar-se em
coutadas de caça sem pedir licença
para entrar. Tanto mais incómodo
quanto para os pensadores oficiais
e oficiosos, a sua crítica assenta
numa investigação aturada, sólida,
abrangente, com critérios de
exigência. Incómodo mas não
espalhafatoso, antes pelo contrário,
sóbrio. Incisivo e hábil no verbo e
nas terminologias, ele desarticula e
desmonta certezas e contesta a
miopia das opiniões consagradas,
sem eufemismos. A sua simpatia por
Jorge de Sena, um estrangeirado,
não era fruto do acaso. Notória
ainda a sua capacidade de distanciação. Por tudo isto está condenado a ter inimizades em todos os
quadrantes, quer políticos, quer
27
profissionais, o que não o impede
de ser uma referência incontornável
do pensamento crítico português
Um outro aspecto merece aqui
ser frisado no registo da diferença:
a sua qualidade de “estrangeirado”,
tal como eu, de modo análogo.
Estatuto que assumimos, apesar das
facturas elevadas que isso implica,
inclusive em termos de empregabilidade no mercado português.
Quem viveu e trabalhou durante
mais de trinta anos em França não
pode deixar de ficar marcado por
essas vivências. Não se trata de ficar
com cicatrizes, estilo Santana Lopes,
mas com marcas culturais e sociais
pela positiva, tributários que fomos
de um modelo francês mais aberto
e ventilado, numa terra que, apesar
de tudo, nos acolheu e que, desse
ponto de vista, não foi madrasta
como Portugal, que nos expulsou.
No modelo francês, fomos confrontados com uma outra sociedade,
com outra consciência cívica e
atitude, outro tipo de relacionamento e de humor. Claro, o exílio
não foi pêra doce, nem a França um
mar de rosas, mas aprendemos
por lá, nomeadamente, a nos distanciarmos da mediocridade do “aférriá lusitano, aférrié, aférrii p. de
fora”. Temos outros termos de
comparação, um maior recuo relativamente a certos valores dos portugueses de Portugal que nunca
saíram do país. Tudo isso nos deu
uma outra distanciação, coisa que
os turistas, apenas de passagem,
fora do tecido das relações sociais
e de trabalho, não podem interiorizar. Demos muito à França, enriquecemos o seu património universitário,
mas também recebemos imenso,
recebemos da cultura francesa o
que Portugal não tinha para nos dar,
nem tampouco nos queria dar.
E ajudámos, lá fora, a minar o
terreno da Ditadura salazarista e
caetanista, com as armas que eram
as nossas, incluindo as da escrita.
Os Capitães de Abril, alguns cansados de tantas comissões de serviço
nas fileiras coloniais e sujeitos a
deixar a pele numa África que afinal
não era a deles, limitaram-se a
abanar e fazer cair um fruto já
podre, o que não deixámos de lhes
agradecer.
28
Francos não trouxemos de
França, mas ficámos “condenados”
a viver e a conviver com esse outro
capital cultural por lá acumulado
que muitos por cá ainda não nos
“perdoam”. Quelle importance! A
tal ponto assim é, que hoje muitos
dos exilados que regressaram a
Portugal são mais estrangeiros na
sua própria terra do que o foram
no país de acolhimento, com a apreciável diferença, entre outras, de
não serem mais obrigados a apresentar-se às autoridades -por
enquanto - para renovar a “Carte
de séjour” e “Carte de travail”, documentos que lá eram obrigatoriamente renováveis, embora nem
sempre renovados. Com a apreciável diferença também de não estarem sujeitos a ser expulsos do país
-por enquanto- por razões políticas
ou outras.
Em suma, primeiro pagámos a
factura do exílio do exterior. Agora
pagamos a factura do exílio do
interior, por pormos a descoberto
tanta descivilização nas práticas
sociais portuguesas, quando afinal
nos deviam estar agradecidos. Não
são assim tantos os que procuram
analisar o país do exterior, por um
outro prisma, o que não pode
deixar de o enriquecer.
Não cabe nestas linhas avançar
mais neste registo das problemáticas associadas à transculturação
emigrante e política, o que nos levaria longe, temas que muito nos
ocuparam em França e que foram
terreno de largas reflexões e debates, dentro e fora das Associações e
para alguns objecto de teses de
Doutoramento em Universidades
francesas. Temas que também se
estenderam, reverso da medalha, às
patologias da transculturação, com
as contribuições de Zulmiro de
Almeida, mas também de Mário
Barros Ferreira, com a sua larga
experiência clínica e psiquiátrica.
vera contactos estreitos com a Casa
de Estudantes do Império a que me
referi, há longo tempo desaparecida e por onde passou, antes das
independências das colónias, a
esmagadora maioria dos seus líderes africanos. Mais tarde, já em
Paris, de reter a sua estreita relação
com a representação do MPLA,
antes do 25 de Abril, rua Hippolyte
Maindron, no 14º bairro, um espaço
histórico, ao tempo de Câmara
Pires, representante do movimento,
há muito falecido, o velho anarquista dos tempos da guerra civil
espanhola, e que bem conhecemos.
Sucedeu-lhe Paulo Jorge.
Em Paris continuava o Professor
entretanto as suas pesquisa sobre o
império da Lunda, em Angola, sobre
Cabo Verde, as rotas do cacau de
São Tomé e do tráfico negreiro. De
assinalar ainda, em Paris, perto de
Saint -Paul, a sua colaboração com
o “Centre d’Études Africaines”, não
longe do “Ravaillac”, o familiar
restaurante judeo.-polaco da rua
“du Roi de Sicile”
Seria necessário um outro
número de “Latitudes” para situar o
anti-fascista que sempre foi Alfredo
Margarido, contra todas as ditaduras, a Oeste, como a Leste. É conhecido o seu anti-estalinismo, desde
as primeiras horas, mas nunca fez
paralelos grosseiros entre estalinismo e nazismo Em suma, o pensamento crítico não se ausentou da
política, antes se reforçou, tendo
ficado fiel ao que de melhor Marx
escreveu...E mais um outro número
ainda de “Latitudes” para as vicissitudes, encontros e desencontros
desse percurso político, as prisões,
os curros do Porto, o Aljube.
Quanto ao percurso dos seus já
longínquos amores, por terras de
França e que conheci de perto, não
quero falar. Ia borrar-lhe a escrita
toda! Milhares de páginas irrecuperáveis. Seria uma pena. E ia borrar
também aqui, a minha própria
escrita Os Estudos africanos
Julho 2005
Eles foram uma grande constante
do seu percurso, nomeadamente no
que respeita às literaturas africanas
de expressão portuguesa, de consulta
obrigatória. Já em Lisboa ele manti-
* Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias, Lisboa.
LATITUDES
n° 24 - septembre 2005
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LAT. 24 - Association des Revues Plurielles