Alfredo Margarido e o Pensamento Crítico António Branquinho Pequeno * ma das facetas mais curiosas do Professor consiste no facto de, quando fala, ter coisas para dizer, o que não é muito corrente, mesmo fora do discurso político. Coisas para dizer e que merecem ser escutadas. Um outra característica ajuda também a definir o seu perfil: detesta os chavões e as frases feitas. Nunca o ouvi, por exemplo, interpelar alguém com um “Então, tudo bem?”, muito em moda agora, fórmula de importação brasileira que os portugueses logo adoptaram sem pestanejar, expressão de um mecanismo de defesa revelador de dificuldades no relacionamento com o Outro. Como se fosse possível esperar que tudo estivesse bem na vida das pessoas e em seu redor! Um outro aspecto tem a ver com a escatologia. Nunca lhe ouvi dizer “que se f. isto”, ou que “vá para o c.”, corrente na praça por tudo e por nada. Ora, mais do que as presenças, é este tipo de ausências ou omissões, na linguagem como em tudo o mais, que melhor permitirão avaliar de um perfil. Tomemos o exemplo de Sartre. Há nele duas ausências fundamentais, que por isso mesmo, dão muita informação: a primeira é a Psicanálise, o modelo teórico do Inconsciente era incompatível com a sua visão do livre arbítrio, da liberdade do homem que não está determinado, antes é o construtor do seu próprio destino. A outra ausência são as crianças que não estavam no seu horizonte, não pertenciam ao seu percurso e lhe passaram ao lado. Também não comia crustáceos. Tinha repugnância por “essa carne branca que não é feita para nós, que foi roubada a um outro universo”, mas que surgia nos seus fantasmas, sob o efeito alucinógeno da mescalina. As ausências são reveladoras justamente porque não são calculadas, contrariamente ao que se diz ou U 24 apresenta, que pode ser acautelado ou preparado. Outro exemplo: Alfredo Margarido nunca usou gravata, nem sequer nas raras situações protocolares em que o vislumbrei. Para essas ocasiões ele tinha uma dessas camisas de colarinho asiático que a dispensava Conheci-o em Paris em 1964-65, já lá vão 40 anos. Nos primeiros tempos desse exílio parisiense, cruzámo-nos esporadicamente. Ele era pouco dado, ainda é, a intermináveis almoçaradas e a convívios barulhentos, avistava-o sobretudo quando por ocasião de uma palestra, de um encontro organizado por uma Associação de emigrantes, ou na Ligue Française de l’Enseignement, da rua Récamier, onde também aparecia Emídio Guerreiro, agora falecido com 105 anos de idade e que, portanto, era nessa altura o mais velho de todos, ou então cruzava-o num daqueles cafés do Quartier Latin, o Mahieu, já desaparecido, ou o Café du Luxembourg, praça Edmond Rostand, que ainda resiste, embora hoje remodelado e de cara lavada. Foi aliás no Café du Luxembourg que o avistei pela primeira vez. Eram os primeiros anos de um exílio, que alguns de nós teimávamos em apostar ir durar pouco, como no poema de Brecht, mas que afinal se prolongou por 12 longos anos. Falta fazer a sociologia dos cafés do Quartier Latin dessa época, mosaico político das diferentes facções da oposição portuguesa à ditadura. Havia vários, cada um tinha os seus frequentadores habituais, do Lutèce, no Bd. St. Michel, ao Saint Claude, no Bd St Germain, do Tournon, junto ao jardim do Luxemburgo, muito frequentado pelo grupo de José Escada, aos cafés de Montparnasse, o “Dôme”, o “Select”, a “Coupole”, a “Closerie des Lilas”. Enquanto Alfredo Margarido fazia investigação nas bibliotecas, frequentava as livrarias e se familiarizava com editoras, nós vivíamos nos cafés, depois do trabalho, pois tinham a vantagem de terem aquecimento central para fazer face ao frio parisiense e espaço, o que não era o caso nas “chambres de bonne” ou nas mansardas de um sétimo andar sem elevador. Nesses cafés se partilhava o convívio com outros exilados, políticos e económicos confundidos, os gregos, sob a ditadura de Patakos, os espanhóis sob o jugo franquista. Data aliás dessa altura a minha descoberta da comida grega. Vicissitudes políticas várias levaram-me depois a ir trabalhar para Copenhague, Lausanne, na Suíça francófona e Londres. Regressei a Paris para o Maio de 68 e foi então que voltei a encontrar Alfredo Margarido, que não tinha arredado pé da capital francesa. Foi a partir desta data que o nosso relacionamento se estreitou, ao tempo em que ele habitava rue de Savoie, um pequeno apartamento que pertencera a Isabel Meireles e a dois passos do que fora o atelier de Picasso. Era um quinto andar sem elevador, o que não facilitou as coisas quando da mudança para a rua Geoffroy- Saint-Hilaire, entre o Jardin des Plantes e a estátua de Jeanne d’Arc. Eu e a minha equipa braçal encarregámo-nos de acarretar o grosso da coluna, isto é, os milhares de livros que entretanto o Professor já tinha acumulado. A tal ponto que, para caminhar pela pequena sala, era preciso saltitar entre Sartre, Balandier, o Império da Lunda e os dossiês acumulados em pilhas pelo chão. A mudança foi pois para Geoffroy Saint- Hilaire, um sétimo andar, mas desta vez com elevador! Anos mais tarde, outra mudança, para a rua Fagon, perto do Boulevard de l’Hôpital, da Salpêtrière e da estátua de Pinel onde, com o tempo, os livros se foram reproduzindo como cogume- LATITUDES n° 24 - septembre 2005 los, passou a haver zonas neutralizadas, só habitadas por livros e onde já nem a saltitar se circulava. Um dia perguntei-lhe para quando estaria prevista a próxima mudança... para que eu me pudesse organizar, isto é, meter férias!... Contrariamente à maioria dos exilados portugueses de Paris, que agarravam qualquer trabalho que lhes aparecesse pela frente, mesmo sem qualquer afinidade com as anteriores actividades, desde o “veilleur de nuit” nos hotéis até ao “coursier livreur”, como foi o meu caso, ele continuou a fazer, imperturbável - uma questão de coerência- o que sempre tinha feito, isto é, investigação, docência universitária e escrita. A escrita foi aliás, até à data, a sua mais antiga e persistente relação amorosa. 60 anos de matrimónio, ultrapassadas as bodas de oiro, a caminho das de platina. Uma relação amorosa à antiga... Ainda hoje, nada de computadores... Encavalitado na velha máquina de escrever, a combater com o teclado, só com dois dedos. E sempre a publicar, o que ficava na gaveta era mais tarde retomado. E não se vislumbra à vista qualquer separação ou divórcio nesta relação amorosa. Quando, a partir de 1972, comecei a dar os meus primeiros passos docentes, as primeiras aulas em Villetaneuse e, a seguir, na Sorbonne, já ele de há muito era figura notória no universo da sociologia francesa e se tinha “instalado” com armas (as do pensamento crítico) e bagagens, na École des Hautes Études en Sciences Sociales. A bagagem intelectual, essa já vinha de Viana do Castelo, Lisboa, Luanda, outra vez Lisboa e da Casa dos Estudantes do Império, ao Arco do Cego, este certamente o espaço mais radicalmente anti-colonialista desse período. Convém dizer que essa Escola de Altos Estudos do Bd. Raspail é uma das mais prestigiosas instituições da Sociologia francesa, onde se contavam pelos dedos -e ainda se contam- os portugueses que lá entraram, entre os quais Fernando Gil. Eu fiquei-me pela Sorbonne. Naturalmente, o relacionamento com Alfredo Margarido facilitou-me alguma aproximação a n° 24 - septembre 2005 LATITUDES figuras gradas do pensamento crítico francês, Joseph Gabel, Pierre Vidal-Naquet, Daniel de Coppet e Marc Ferro, com quem ele mantinha em França relações muito próximas. Jean Mettais já eu conhecia de longa data, Pierre Rivas também, entre outros amigos comuns: os brasileiros Celso Cunha e Gerd Bornheim, o primeiro de Minas Gerais, filólogo, catedrático da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o segundo de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, filósofo, especialista de Sartre e Heidegger. Ambos infelizmente já falecidos. Figurava também dessas amizades comuns Lindley Cintra, de quem recordo a memória da boa convivência e os ensinamentos, a nossa passagem em Nápoles, mas sobretudo em Paris e no Rio de Janeiro. Das relações próximas de Alfredo Margarido com os portugueses de Paris, de citar Manuel Villaverde Cabral, que também conheci; Humberto Belo, Jaime Barbosa Monjinho e João Quintela, que eram igualmente das minhas relações muito próximas. E que continuam a ser, excepto João Quintela, recentemente falecido. José Mário Branco ainda, com quem também tínhamos grandes afinidades políticas. E Alberto Melo. Foi graças ao Professor que conheci Alexandre Pinheiro Torres e, em Carcavelos, já depois do 25 de Abril, Mário Henrique Leiria e os seus Contos do Gin Tónico, o Mário que eu “ajudei a morrer” mais cedo, porque lhe trazia o Gin que ele tanto apreciava e que bebia mesmo sem água tónica, já entrevado com a sua poliartrite crónica evolutiva, o que certamente lhe acelerou o desenlace . Obviamente, seria descabido fazer aqui o currículo do ensaísta Alfredo Margarido, isso é coisa de colegiais. Mesmo que isso se justificasse, como fazer o currículo de um investigador, em áreas tão diversificadas, que há mais de 50 anos escreve praticamente todos os dias, com obra publicada? E onde estão essas publicações dispersas por Portugal, França, Brasil? Seria necessário um secretariado para encontrar e coligir tudo isso, o que levaria no mínimo meses e, mesmo que se conseguisse recuperar essa escrita, seria fastidioso passar em revista milhares de páginas, em revistas da especialidade e universitárias, em periódicos, de modo a catalogar os temas sobre que se tem debruçado. Limitar-me-ei aqui a anotar algumas das preocupações que ele ultimamente me tem confidenciado em conversas, nomeadamente em torno da Lusofonia. Algumas são preocupações antigas que resistem e que voltam, retrabalhadas e reelaboradas, outras revelam-se agora. Situálas não é anódino, antes um excelente analisante. Porquê agora estas preocupações e não outras, ao fim de mais de tantos anos de investigação, de leitura e de reflexão? Por que é que Régio o interpela e surge agora no seu horizonte com tal veemência? Ou Kafka e as cumplicidades do autor checo com a cultura judia? Ou Van Gogh? Temas que certamente existiam em tela de fundo mas que agora irrompem? Não sei se sobre isso ele se interrogou. Comecemos pelas preocupações em torno da Literatura, com a qual ele parece ter algum contencioso. Não será por acaso ter ensinado em áreas tão diversificadas, da História das Mentalidades à Epistemologia, da Antropologia Cultural à Ciência Política, mas nunca ter querido reger uma cadeira de Literatura propriamente dita. Mais uma ausência que, tal como eu referia acima, não deixa de ser rica de significado. Isto não quer no entanto dizer que não se tenha ocupado de questões literárias, antes pelo contrário. A socio-semiologia da Literatura portuguesa sempre o acompanhou, manifesto o seu interesse pelo grupo do “Orfeu” e da “Presença”, o neo-realismo, de Redol a Carlos de Oliveira (Uma abelha na chuva), registos estes que estão no entanto, na sua pluma, ao serviço do ensaio e são pretexto para outros voos. E assim passaram muitos pela sua grelha analítica: Camilo Castelo Branco, Teixeira de Pascoais, Mário de Sá Carneiro, Eça de Queiroz, para além de Fernando Pessoa, naturalmente, incluindo o Pessoa político, um tema controverso. 25 Recentemente, aliás, foi ele quem apresentou em Lisboa o livro de Brunello De Cusatis sobre Fernando Pessoa, por ocasião do lançamento no Centro Cultural Italiano da rua do Salitre. Tive o privilégio de assistir a essa apresentação, de que guardei documento em vídeo, uma sala apinhada com a presença também de especialistas italianos. Tabucchi não veio, mas isso por razões que não vêm para o caso aqui invocar. Curiosamente, não estavam presentes alguns dos especialistas portugueses de Pessoa com mais visibilidade oficial, que bem conhecemos, nem enviaram qualquer mensagem para ser lida pela mesa. Refiro-me a Teresa Rita Lopes, Eduardo Lourenço e Yvette Centeno, entre outros. Não teriam certamente perdido o seu tempo pois, tal como disse no início destas linhas, Alfredo Margarido tem sempre algo de pertinente para dizer. Não era por acaso que, por ocasião das históricas palestras em Paris no Centro Cultural português do 51 da avenue d’Iéna, há longos anos, o Prof. Pina Martins, que dirigia e animava esses encontros, nunca perdia a oportunidade de, terminada a intervenção do conferencista, convidar Alfredo Margarido, na assistência, a colocar questões, pois sabia que isso ia animar o debate. Foi nessas ocasiões de que guardo boa memória, que tive a oportunidade de conhecer Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Armand Guibert, já falecido, o tradutor de Fernando Pessoa. Uma coisa é certa. No universo dos especialistas pessoanos, as análises de Alfredo Margarido não podem ser iludidas, quer se concorde ou discorde, como se tornou uma vez mais evidente quando da recente apresentação do livro de De Cusatis. A Literatura brasileira, a começar por Gregório de Matos, entrou, ela também, nos seus horizontes. Convém dizer que ele foi, durante largos anos, Professor convidado das Universidades brasileiras. Mais uma vez, ele não perdia uma oportunidade para sair da Literatura, tal 26 como o confirmam as suas reflexões, no campo dos estudos portugueses, sobre a sexualidade em Bocage, Cesário Verde (O livro de Cesário Verde) e Camilo Pessanha (Clepsidra) Aquém e além da Literatura, a sociologia da sexualidade tem-no levado aliás a se interrogar sobre a escatologia linguística na oralidade dos portugueses a que foi feita referência acima. Em suma, uma postura transdisciplinar da literatura, no sentido de a análise literária ser tributária de vários saberes conju- Dessin de Sonia Prieto gados e não de um só especificamente, contrariamente à visão pluridisciplinar, que é um sistema de guetos. Ele não faz uma abordagem vertical da Literatura, através de uma só grelha, seja ela sociológica, linguística ou psicanalítica, coloca antes todas essas disciplinas, transversalmente, ao serviço da literatura, que assim fica por todas elas atravessada e enriquecida. O que lhe permite colocar questões mais complexas que as colocadas pelos especialistas, cantonados nos seus saberes respectivos. Essa a sua especialidade, de um novo tipo, e que evita abordagens redutoras. Uma postura para a qual há que estar munido de ferramentas muito diversificadas. Daí algum despeito de muitos académicos, cuja tendência é analisar as questões literárias, ou outras, dentro das apertadas malhas de um saber específico. O caso de José Régio é paradigmático em termos de transdisciplinaridade. A leitura que faz do seu lugar nas Letras portuguesas ultrapassa as Letras propriamente ditas e dá lugar a análises inéditas (Cf. “O cinema e a criação plástica na vida e na obra de José Régio) em que é posta em evidência a apetência de Régio pela produção cinematográfica portuguesa e que não hesitou “em terçar armas críticas com os jovens do Cinéfilo e do Kino”. Uma criação plástica e cinematográfica que a Presença não registou na sua dimensão. Neste mesmo registo, ele analisa a contribuição da caricatura no movimento modernista, no contexto de uma revolução das representações plásticas. “A caricatura que, como tão amplamente demonstrou Charles Baudelaire, abriu caminho às formas modernas dessa criação plástica” e cuja irrupção molestou e pôs em causa, em França, o aparelho político de Napoleão III. Não foi a caricatura que levou para a cadeia Henri Daumier? E como explicar a manifesta ausência de criação ou de intervenção plástica tanto em Fernando Pessoa como em Sá Carneiro? E como entender que Brancusi, o grande escultor romeno, tivesse “liquidado” Rodin, ou ainda a leitura que faz da pintura física de Artur Bual, outros tantos temas que o interpelam. Na área linguística e semiológica, Alfredo Margarido é um profissional da desmontagem dos signos, sejam eles semióticos ou linguísticos propriamente ditos, sejam eles marcadores sociais, culturais ou políticos. Um semiólogo mais perto de Barthes que de Kristeva, mas com a chancela da sociologia Em matéria de políticas linguísticas, igualmente polémicas são as suas análises sobre a já citada Lusofonia mas também, mais atrás no tempo, as razões que levaram o Marquês de Pombal a cortar caminho à “língua geral” no Brasil colonial do séc. XVIII e as conclusões que LATITUDES n° 24 - septembre 2005 ele tira da aliança entre uniformização linguística do português e o colonialismo, no Brasil de então. Nesta mesma vertente sociolinguística, a análise das mudanças de estatuto dos crioulos africanos, antes e depois das independências. Leituras e ilações linguísticas que, uma vez mais, se socorrem da visão do sociólogo e do historiador de África Transdisciplinar ainda em muitas das suas análises em Ciência Política, nomeadamente as cumplicidades entre Democracia e escravatura, não só na Europa de hoje, mas desde os Gregos. Ou ainda a análise do conflito entre o Islão e o Ocidente à luz da histórica batalha do Levante, ou a interrogação quanto à integração na Europa de um país como Portugal, de há séculos vocacionado para o Atlântico Sul. A vertente sociológica Muitas são pois as suas áreas de intervenção sociológica: Sociologia da Literatura, da Emigração portuguesa em França, emigração dos homens mas também das espécies vegetais, das técnicas e dos saberes. Sociologia do envelhecimento demográfico e da Terceira Idade (Universidade da “Terceira Idade” de Amiens, na Picardia), ou ainda as leituras do Outro, desde o séc. XVI (africanos, americanos e asiáticos) e a análise de como esse Outro entrou nas grelhas do Ocidente europeu. Tributário dos mestres franceses, a sociologia tem ocupado um lugar privilegiado no seu percurso, a menina dos olhos. Mestres franceses, alguns dos quais acabará por criticar mais tarde. Uma disciplina fundamental, a sociologia. Estou perplexo ao vê-la em Portugal em queda livre no ensino universitário, quando afinal um desenvolvimento económico sustentado não a pode dispensar. Sem se afastar da Sociologia, da dinâmica dos grupos humanos e das práticas sociais, Alfredo Margarido esteve sempre atento no entanto, no quotidiano, ao modo como se vive, trabalha, luta, à maneira de um L. Visconti, a reforçar o que Paul Nizan já dizia n° 24 - septembre 2005 LATITUDES em 1932 nos Chiens de garde, a propósito dos filósofos do seu tempo. Oiçamos as palavras do intelectual francês, de que agora se comemora o centenário do seu nascimento: “Os filósofos parecem ignorar como são feitos os homens, parecem desconhecer o que eles comem, as casas onde habitam, os fatos que usam, a maneira como morrem, as mulheres que amam, o trabalho que fazem no quotidiano. Parecem ignorar como os homens passam os seus Domingos, como se tratam na doença... quais os seus horários e os seus rendimentos, os jornais que lêem, os espectáculos e os divertimentos, os seus filmes, canções, provérbios. Esta incrível ignorância não incomoda minimamente o percurso preguiçoso da Filosofia. Os filósofos não se sentem atraídos pela terra, são mais leves que os anjos. Eles não tem o peso dos vivos que nós amamos e não sentem qualquer necessidade de caminhar por entre os homens ...esta Filosofia coloca um certo número de questões sobre o homem em geral mas nada sobre o homem em particular que existe e tem que comer. A liberdade para ela é um encadeamento de conceitos... mas que não dirão destes jogos os homens que trabalham nas cadeias de montagem para quem a liberdade é exclusivamente a dramática conquista de tudo o que não têm? As palavras de certos filósofos não traduzem qualquer realidade, qualquer “engagement”, não fornecem nenhuma saída porque elas só visam as Ideias, a ideia de Felicidade ou a ideia de Liberdade, aliadas à ideia de Homem. Mas nunca a felicidade ou a liberdade terrestres de tal homem ou de tal mulher. Estes sábios incarnam ideias que os pais lhes transmitiram. Profetas de um progresso espiritual e social que só colocam questões às ideias eternas, mas nada de desvendar a realidade do mundo. Ao abrigo do eterno, estes filósofos cúmplices dos opressores, conspiram em todos os atentados.” Numa outra passagem Paul Nizan continua: “O que fazem os pensadores de ofício? Guardam o silêncio. Não alertam. Não denun- ciam o fosso entre o seu pensamento e o universo de catástrofes que nos rodeia aumenta e eles não dão o alerta. A distância entre as suas promessas e a situação dos homens nunca foi tão escandalosa. E não se mexem. Ficam do mesmo lado da barricada, continuam nas suas assembleias e publicam os mesmos livros...” Sempre conheci Alfredo Margarido, na vida como na mensagem, atento a esse quotidiano dos homens e a estabelecer a ligação entre o particular e os destinos colectivos. O universitário, o investigador, não ficaram enclausurados em nenhuma académica torre de marfim, como o prova a sua semanal colaboração jornalística, como colunista, no Semanário e no “Ribatejo”. E, tal como Nizan, sempre o ouvi dar o alerta. Muitas são as suas leituras sociológicas, algumas em torno de velhos temas que ressurgem -o luso-tropicalismo de Gilberto Freire- outras, recentes, como a crítica ao romance de Miguel Sousa Tavares, “Equador”, em seu entender e pelo que compreendi, um sucesso comercial em má literatura. Em jeito de conclusão E pelo que fica dito, o Professor não deixa de ser incómodo para muitos, o que não é de espantar, com a sua ousadia teórica e com tal folha de serviço, a afoitar-se em coutadas de caça sem pedir licença para entrar. Tanto mais incómodo quanto para os pensadores oficiais e oficiosos, a sua crítica assenta numa investigação aturada, sólida, abrangente, com critérios de exigência. Incómodo mas não espalhafatoso, antes pelo contrário, sóbrio. Incisivo e hábil no verbo e nas terminologias, ele desarticula e desmonta certezas e contesta a miopia das opiniões consagradas, sem eufemismos. A sua simpatia por Jorge de Sena, um estrangeirado, não era fruto do acaso. Notória ainda a sua capacidade de distanciação. Por tudo isto está condenado a ter inimizades em todos os quadrantes, quer políticos, quer 27 profissionais, o que não o impede de ser uma referência incontornável do pensamento crítico português Um outro aspecto merece aqui ser frisado no registo da diferença: a sua qualidade de “estrangeirado”, tal como eu, de modo análogo. Estatuto que assumimos, apesar das facturas elevadas que isso implica, inclusive em termos de empregabilidade no mercado português. Quem viveu e trabalhou durante mais de trinta anos em França não pode deixar de ficar marcado por essas vivências. Não se trata de ficar com cicatrizes, estilo Santana Lopes, mas com marcas culturais e sociais pela positiva, tributários que fomos de um modelo francês mais aberto e ventilado, numa terra que, apesar de tudo, nos acolheu e que, desse ponto de vista, não foi madrasta como Portugal, que nos expulsou. No modelo francês, fomos confrontados com uma outra sociedade, com outra consciência cívica e atitude, outro tipo de relacionamento e de humor. Claro, o exílio não foi pêra doce, nem a França um mar de rosas, mas aprendemos por lá, nomeadamente, a nos distanciarmos da mediocridade do “aférriá lusitano, aférrié, aférrii p. de fora”. Temos outros termos de comparação, um maior recuo relativamente a certos valores dos portugueses de Portugal que nunca saíram do país. Tudo isso nos deu uma outra distanciação, coisa que os turistas, apenas de passagem, fora do tecido das relações sociais e de trabalho, não podem interiorizar. Demos muito à França, enriquecemos o seu património universitário, mas também recebemos imenso, recebemos da cultura francesa o que Portugal não tinha para nos dar, nem tampouco nos queria dar. E ajudámos, lá fora, a minar o terreno da Ditadura salazarista e caetanista, com as armas que eram as nossas, incluindo as da escrita. Os Capitães de Abril, alguns cansados de tantas comissões de serviço nas fileiras coloniais e sujeitos a deixar a pele numa África que afinal não era a deles, limitaram-se a abanar e fazer cair um fruto já podre, o que não deixámos de lhes agradecer. 28 Francos não trouxemos de França, mas ficámos “condenados” a viver e a conviver com esse outro capital cultural por lá acumulado que muitos por cá ainda não nos “perdoam”. Quelle importance! A tal ponto assim é, que hoje muitos dos exilados que regressaram a Portugal são mais estrangeiros na sua própria terra do que o foram no país de acolhimento, com a apreciável diferença, entre outras, de não serem mais obrigados a apresentar-se às autoridades -por enquanto - para renovar a “Carte de séjour” e “Carte de travail”, documentos que lá eram obrigatoriamente renováveis, embora nem sempre renovados. Com a apreciável diferença também de não estarem sujeitos a ser expulsos do país -por enquanto- por razões políticas ou outras. Em suma, primeiro pagámos a factura do exílio do exterior. Agora pagamos a factura do exílio do interior, por pormos a descoberto tanta descivilização nas práticas sociais portuguesas, quando afinal nos deviam estar agradecidos. Não são assim tantos os que procuram analisar o país do exterior, por um outro prisma, o que não pode deixar de o enriquecer. Não cabe nestas linhas avançar mais neste registo das problemáticas associadas à transculturação emigrante e política, o que nos levaria longe, temas que muito nos ocuparam em França e que foram terreno de largas reflexões e debates, dentro e fora das Associações e para alguns objecto de teses de Doutoramento em Universidades francesas. Temas que também se estenderam, reverso da medalha, às patologias da transculturação, com as contribuições de Zulmiro de Almeida, mas também de Mário Barros Ferreira, com a sua larga experiência clínica e psiquiátrica. vera contactos estreitos com a Casa de Estudantes do Império a que me referi, há longo tempo desaparecida e por onde passou, antes das independências das colónias, a esmagadora maioria dos seus líderes africanos. Mais tarde, já em Paris, de reter a sua estreita relação com a representação do MPLA, antes do 25 de Abril, rua Hippolyte Maindron, no 14º bairro, um espaço histórico, ao tempo de Câmara Pires, representante do movimento, há muito falecido, o velho anarquista dos tempos da guerra civil espanhola, e que bem conhecemos. Sucedeu-lhe Paulo Jorge. Em Paris continuava o Professor entretanto as suas pesquisa sobre o império da Lunda, em Angola, sobre Cabo Verde, as rotas do cacau de São Tomé e do tráfico negreiro. De assinalar ainda, em Paris, perto de Saint -Paul, a sua colaboração com o “Centre d’Études Africaines”, não longe do “Ravaillac”, o familiar restaurante judeo.-polaco da rua “du Roi de Sicile” Seria necessário um outro número de “Latitudes” para situar o anti-fascista que sempre foi Alfredo Margarido, contra todas as ditaduras, a Oeste, como a Leste. É conhecido o seu anti-estalinismo, desde as primeiras horas, mas nunca fez paralelos grosseiros entre estalinismo e nazismo Em suma, o pensamento crítico não se ausentou da política, antes se reforçou, tendo ficado fiel ao que de melhor Marx escreveu...E mais um outro número ainda de “Latitudes” para as vicissitudes, encontros e desencontros desse percurso político, as prisões, os curros do Porto, o Aljube. Quanto ao percurso dos seus já longínquos amores, por terras de França e que conheci de perto, não quero falar. Ia borrar-lhe a escrita toda! Milhares de páginas irrecuperáveis. Seria uma pena. E ia borrar também aqui, a minha própria escrita Os Estudos africanos Julho 2005 Eles foram uma grande constante do seu percurso, nomeadamente no que respeita às literaturas africanas de expressão portuguesa, de consulta obrigatória. Já em Lisboa ele manti- * Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa. LATITUDES n° 24 - septembre 2005