Nos limites da representação: a manipulação plástica como recurso de produção e
reavaliação histórica no romance Tree of Codes (2010)
Clara Zanirato – UNESP (Ibilce)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é prover uma pequena análise das estratégias
narrativas utilizadas pelo autor Jonathan Safran Foer no romance Tree of Codes (2010)
e fazer um exame de como foi feita a recodificação e re-acomodação histórica do
romance de Bruno Schulz, The Street of Crocodiles (1934), em uma nova narrativa. O
texto contemplará os recortes feitos por Foer, e como essas escolhas permitiram que se
tecesse um novo plano de fundo para o desenvolvimento da obra. Ainda, este texto tem
por finalidade analisar a obra de Foer por meio de um prisma teórico pós-moderno e
colocar em evidência a crítica que o autor faz aos horrores vividos durante o Holocausto
e como a sociedade (pós) moderna suprimiu e esqueceu as vozes que foram pouco (ou
não foram) própriamente representadas. A obra da vítima do Holocausto (e também do
Holocausto Ucraniano, ou Holodomor), Bruno Schulz, é uma série de histórias
conectadas, que quando recodificadas no trabalho de Foer, passam a ser uma única
história pós-Holocausto.
PALAVRAS-CHAVE: Jonathan Safran Foer, Tree of Codes, Bruno Shultz, The Street
of Crocodiles, Holocausto, Literatura e História.
ABSTRACT: The main goal of this paper is to provide a small analysis of the narrative
strategies used by Jonathan Safran Foer in the romance Tree of Codes (2010). It has also
the aim of making an analysis of how the recodification and the historic reacommodation of Bruno Schulz’s romance The Street of Crocodiles (1934) was made
into another narrative. The text will contemplate the cuts made by Foer, and also how
these choices allowed to create a new background for the narratives development. This
text will also analyse Foer’s work through a postmodern view and put in evidence the
critic the author makes concerning the horrors lived by Jewish people in the Holocaust,
and, therefore, how modern society has obliterated and forgotten these voices, who were
not properly represented. The work of the Holocaust victim (and also the Ukrainian
Holocaust, or Holodomor), Bruno Shulz, is a book made of different connected
histories, which are recodificated in Foer’s book and become one and only history about
the post-Holocaust period.
KEY WORDS: Jonathan Safran Foer, Tree of Codes, Bruno Schulz, The Street of
Crocodiles, Holocaust, Literature and History.
Esta pesquisa baseia-se no romance Tree of Codes, do autor americano Jonahtan
Safran Foer. O romance de Foer foi escrito a partir da narrativa The Street of Crocodiles
(1934) por meio de uma técnica plástica chamada Die-Cutting, na qual se faz recortes
geométricos em uma ou várias camadas de papel. O texto desejado por Foer ficou
impresso no papel, mas as outras partes foram “descartadas” a fim de que se
configurasse um novo texto, diferente da narrativa escrita por Schulz.
A obra The Street of Crocodiles (1934) trata da vida diária de uma personagem,
cujo nome não é mencionado. O romance narra como essa personagem observa sua
família, o mundo e a sociedade a sua volta. A obra de Schulz reúne vários contos curtos
que ilustram a sociedade onde o narrador e sua família vivem. Na narrativa, as
personagens não têm nomes (exceto o Pai e Adella, a ama da casa, que é a única que
consegue colocar a família e a casa em ordem), o nome da cidade também não é
mencionado e a sociedade é retratada em “tons de cinza”, sem vivacidade e
originalidade.
Foer escolhe essa coleção de contos de Schulz e aborda as dificuldades dessa
sociedade e as “hipocrisias” vividas pelo povo como uma forma de crítica ao governo
totalitário que estava em vigência na época. O fato mais interessante com relação à obra
de Schulz é que ela foi escrita durante o período da Grande Fome da Ucrânia. O autor, o
qual vivenciou o fato histórico conhecido como o Holocausto Ucraniano, também
passou parte de sua vida sob cárcere privado de um oficial nazista que, somente, poupou
o autor porque suas obras de arte lhe agradavam. Schulz foi vítima do terror Nazista e
também padeceu no Holocausto. Foi morto por causa de uma desavença que o oficial
nazista havia tido com outro oficial; este, por vingança, matou Schulz em 1942.
O autor de Tree of Codes escolhe a obra de Bruno Schulz para que ele possa
reinventar The Street of Crocodiles e trazer à luz um ponto crítico da História (o
Holocausto) de maneira que se faça uma reflexão sobre os eventos ocorridos, o terror
vivido pelo povo judeu, o silêncio que foi imposto sobre essas pessoas, e a importância
do não esquecimento dos fatos; e propor uma representação da voz desse sofrimento e,
também, do discurso existente por trás dos “buracos” históricos relacionados ao evento.
Os cortes feitos por Foer vão do ínico ao fim da obra de Schulz, começando pelo
próprio título: THE STREET OF CROCODILES. E o autor faz questão de mencionar,
no pós-facio que Tree of Codes é uma exumação do livro de Schulz, e ainda afirma que
sua obra não é uma narrativa como a de The Street of Crocodiles: “This is in no way a
book like The Street of Crocodiles. It is a small response to that great book. It is a story
on its own right, but it is not exactly a work of fiction. It is yet another note left in the
cracks of the wall.” (p. 139). Tree of Codes é uma história.
Além deste motivo, o autor de The Street of Crocodiles vivenciou ambos os
eventos históricos nomeados de Holocausto, um ocorrido na Ucrânia (no qual Stalin e o
governo comunista impediram que qualquer alimento entrasse no país, para que
milhares de judeus morressem de fome: aproximadamente 3 a 3,5 milhões de mortes.); e
outro ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial (no qual o governo Nazista perseguiu
e assassinou aproximadamente 6 milhões de judeus, os quais nunca tiveram sequer a
oportunidade de ter sua história defendida e repercutida).
Foer utiliza em sua obra uma narrativa alocada em um tempo histórico
determinado e a subverte por meio de recursos plásticos para poder reposicioná-la em
um outro período. De acordo com Linda Hutcheon (1991), no dias atuais há um
repensar na forma como se faz a representação de fatos ocorridos no passado. Hutcheon
afirma que há uma linha tênue entre os conceitos de literatura e história uma vez que
não há acesso ao passado a não ser por meio da literatura. O objeto de representação
maior da História está condicionada intrinsecamente à literatura, e, de certa forma, ao
autor-historiador que a escreve. A autora escreve sobre a história em seu livro “A
poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção”, de 1988:
[...] seu acesso está totalmente condicionado pela textualidade.
Não podemos conhecer o passado, a não ser por meio de seus textos:
seus documentos, suas evidências, até seus relatos de testemunhas
oculares são textos. Até mesmo as instituições do passado, suas
estruturas e práticas sociais, poderm ser consideradas, em certo
sentido, como textos sociais. E os romances pós-modernos [...] nos
dizem algo sobre esse fato e sobre suas consequências. (1988, p. 34
grifo nosso)
Os romances pós-modernos têm o objetivo de contestar as estruturas sociais às
quais estão ligados em nossa cultura dominante do interior dos seus próprios
pressupostos. Essas narrativas não propõem a criação de uma estrutura mestre (ou
melhor, segundo Lyotard (2004) o pós-modernismo se recusa a propor qualquer
estrutura dominante). Segundo o autor a pós-modernidade cartacteriza-se pela perda de
fé nas narrativas-mestre, pela incredulidade nas estruturas rígidas e pela relatividade do
conhecimento de mundo. Na sociedade dos dias atuais temos o fechamento histórico e a
continuidade das narrativas contestados a partir do próprio romance.
Consequentemente, os romances pós-modernos também contestam as próprias
estruturas de passado que representam. À essa consciência, Linda Hutcheon cunhou o
termo “Metaficção Historiográfia”, que visa, não somente trazer à clareza a relação
próxima existente entre literatura e história, mas também utilizar o romance como meio
de subverção para as representações históricas existentes na narrativa. Em sua obra,
Hutcheon afirma:
Do mesmo modo, a metaficção historiográfia [...] insere, e só
depois subverte, seu envolvimento mimético com o mundo. Ela não o
rejeita, nem o aceita simplesmente [...]. Porém ela de fato modifica
definitivamente as noções simples de realismo ou referência por meio
da confrontação direta entre o discurso da arte e o discurso da história.
(1988, p. 39)
Foer, em Tree of Codes utiliza uma obra inserida em um período histórico préguerra e subverte essa história, por meio de manipulação plástica do texto, para que ela
seja decorrida em um outro tempo. A subverção do período histórico do texto visa
destacar o terror vivido pelas vítimas do Holocausto, todo o silêncio sobre o fato e ainda
dar voz aos discursos que não foram ditos pela comunidade judaica sobre o ocorrido.
Trazer à memória um fato que foi o ponto de ruptura de uma sociedade, e que por tanto
tempo se calou sobre a dor, faz de Tree of Codes uma crítica não só ao silêncio imposto
sobre essas vozes, mas também nos faz questionar o quanto realmente poderíamos
confiar em todas as coisas que ja foram ditas a respeito do Holocausto, da sociedade
Judaica e, acima disso, das consequências que foram acarretadas à esse povo. Fazendo
referência a Hutcheon, se somente podemos ter conhecimento do passado por meio de
textos, o quanto foi que a literatura contribuiu para que não nos esqueçamos (ou para
que, de fato, esqueçamos) as vítimas da quietude editorial?
Tree of Codes tenta quebrar a rigidez do “fazer história”. Por meio da
manipulação do texto, realocamos historicamente uma narrativa, para possivelmente
fazer uma crítica à fé que se confere tão cegamente às narrativas-mestres, subvertendo a
confiabilidade da representação histórica da obra.
A produção de obras literárias
obecede à uma edição e a um objetivo, que está atrelada à bagagem de mundo do autor
que relatou o fato histórico, ou seja, o registro histórico é sugestionado por quem o
escreve. Há o apagamento de fatos, bem como a criação de outros. A proposta, segundo
a narrativa, de Foer é subverter a narrativa de Schulz em prol do destaque de vozes que
foram caladas, ou não foram retratadas, de sociedades que sofreram um trauma de
terror. O recurso plástico usado no texto tem a finalidade de representar fisicamente o
que “deixou de ser dito” a respeito do sofrimento e do medo vivido pelo povo judeu
durante o Holocausto. Como na citação: “Who knows,” he said, [...] “How much
ancient suffering is there [...] in […] the […] smiles […] and glances […] ¿” (p. 61),
não há como conhecer totalmente o ocorrido por trás das “máscaras históricas”, não se
sabe quanta dor houve durante o trauma histórico vivido, mas os “buracos” deixados
podem nos ajudar a ver os discursos por trás do discuro. Tree of Codes é o discurso por
trás de The Street of Crocodiles, as entrelinhas decifradas sobre as coisas que foram
ditas, e também sobre as que não foram.
“A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na
ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedí-lo de ser
conclusivo e teleológico.” (1988, p. 147). Dessa maneira, mais uma vez baseando-nos
em Linda Hutcheon, observamos o texto como não hermético, aberto à interferências
tanto do presente quanto do passado. O texto retirado do passado, reinterpretado, e reinserido em um contexto presente faz o leitor refletir e fazer inferências sobre a
sociedade na qual está vivendo e também projetar um futuro.
Na passagem selecionada, Schulz descreve as peripécias do Pai que, já nos
primeiros capítulos do livro, apresenta comportamentos de loucura. O que é possível
perceber na obra de Schulz é que a figura do Pai é uma representação direta do
momento histórico no qual aquela família estava inserida. A loucura imposta pelo
governo totalitário à Ucrânia, com promessa de prosperidade, fez com que milhões
morressem de inanição:
During the long twilight afternoons of this winter, my father
would spend hours rummaging in corners full of old junks, as if he
were feverishly searching for something.
And sometimes at dinnertime, when we had all taken our places
at the table, Father would be missing. On such occasions, Mother had
to call ‘Jacob!’ over and over again and knock her spoon against the
table before he emerged from inside a wardrobe, covered with dust
and cobwebs, his eyes vacant, his mind on some complicated matter
known only to himself which absorbed him completely.
Occasionally he climbed on a pelment and froze into
immobility, a counterpart to the large stuffed vulture which hung on
the wall opposite. In this crouching pose, with misty eyes and sly
smile on his lips, he remained for long periods without moving, except
to flap his arms like wings and crow like a cock whenever anybody
entered the room. (p. 28)
O pai vive nos cantos da casa, procurando por algo que não consegue achar.
Tem pensamentos que a família não consegue compreender. E em última instância, tem
comportamentos estranhos, o que faz a família perder o interesse nele, a ponto de não
prestarem mais atenção às loucuras do pai. A família, que também foi vítima do
Holodomor, posiciona-se como uma representação da sociedade, que tenta lidar com as
“loucuras” diárias do governo. O pai, também respresenta a sociedade, mas tem o papel
de mostrar o sofrimento por trás das máscaras do dia-a-dia.
Uma das maneiras propostas por Foer para que percebamos o deslocamento
histórico presente na obra é a própria a figura do pai. Na narrativa notamos a
transformação de cenário histórico conforme o narrador descreve a mudança de
comportamento do Pai. A personagem tenta fugir e esconder-se da Mãe. Ele está sempre
procurando para que não tenha surpresas com o “governo”. Mas, eventualmente, é
levado e desaparece por dias, o que não é mais tão impressionante para sua família, uma
vez que já estão acostumados com o sumisso do Pai.
During [...] this winter, my father would spend hours [...] in
corners [...] as if [...] searching for [...] Mother [...] and [...] emerge
[...] covered with dust and cobwebs, his eyes [...] froze [...] for long
periods [...].[...] he plunged deeper [...] beyond our understanding [...]
and [...] with flushes on his [...] cheeks [...] did not notice us [...]
anymore. [...] from the margin of [...] time [...] he used to disappear
for many days into some [...] corner [...] and [...] these disappearances
ceased to make any impression on us, [...] we did not [...] count him as
one of us anymore. [...]. Knot by knot [...] he loosened himself
[...],[...] as unremarked as the grey heap [...] swept into a corner,
waiting to be taken [...]. (p. 32-34)
Também na obra de Foer, há a crítica quanto à passividade do povo judeu, bem
como o incentivo ao leitor para que reflita sobre a condição de perseguição desse povo.
Foer expressa bem essa aceitação no personagem do Pai: “he [...] was ready to accept
complete defeat [...] – a broken [...] exile [...].” (p. 40). Ainda em outra passagem, a
personagem reforça a idéia de que reduzir a vida não é um “pecado” e que às vezes é ate
necessário: “said my father, “[...] All attempts [...] are transient and [...] easy to [...]
dissolve. [...] reducing life [...] is not a sin. [...] It is sometimes [...] necessary [...].[...]
There is no dead matter,” he taught us,” (p. 49). Essa passagem ilustra o pensamento de
Bauman (1988) quando teoriza sobre o “agir pela razão” dos judeus. Eles, em seu
pensamento racional, abstrairam que seria necessário entregar alguns para que
pudessem salvar muitos.
Também nas primeiras escritas de ambos os livros é possível discernir a
atmosfera que envolve o plano de fundo de cada narrativa. O tom dado à The Street of
Crocodiles é descritivo e o autor critica a sociedade na qual estava inserido, faz isso por
meio da narração do dia-a-dia do narrador e da sua família. Schulz descreve o dia na sua
rua como ensolarado, uma cor dourada que “banhava” todas as pessoas passando na rua.
A atmosfera que o autor cria em sua narração é de que, ao sair na rua, os cidadãos ficam
embriagados por essa luz solar, por isso a referência à “Bacchus”, ou Dionísio, o deus
da mitologia responsável pela insanidade e da bebedeira.
On Sunday afternoons I used to go for a walk with my mother.
From the dusk of the hallway, we stepped at once into the brightness
of the day. The passers-by, bathed in melting gold, had their eyes half
closed against the glare, as if they were drenched with honey. Upper
lips were drawn back, exposing the teeth. Everyone in this golden day
wore that grimace of heart – as if the sun had forced his worshippers
to wear identical masks of gold. The old and the young, women and
children, greeted each other with these masks, painted on their faces
with thick gold paint; they smiled at each other’s pagan faces – the
barbaric smiles of Bacchus. (1934, p. 16)
Schulz retrata as pessoas cobertas com essa insanidade latente que envolvia a
sociedade no período histórico pelo qual eles estavam passando. Como a Ucrânia havia
sido isolada do resto do mundo economica e socialmente, não se tinha notícias do
“mundo exterior”. As pessoas usavam máscaras para encarar, e também como uma
forma de aceitação, os eventos políticos que vinham acontecendo em seu país. Não
havia o que pudesse ser feito, por parte das pessoas, para reverter o quadro de
isolamento de seu país. Ele estava sendo governado pelo regime totalitário de Stalin, e
os cidadãos somente podiam aceitar as condições às quais estavam sujeitos. Por isso
usavam “máscaras” durante o dia. Perambulavam em um limbo, quase como bêbados,
submetidos à fome.
Foer transforma esse trecho, o qual primeiramente desenha o plano de fundo da
Street of Crocodiles, em um contexto sombrio de Segunda Guerra Mundial:
The passers-by [...] had their eyes half closed [...] . Everyone
[...] wore [...] his [...] masks [...] . [...] children [...] greeted each other
with [...] masks [...] painted on their faces[...] ; they smiled at each
other’s [...] smiles [...] growing in this emptiness, [...] wanting to [...]
resemble [...] the [...] reflections [...] , [...] whole generations [...] had
[...] fallen asleep [...]. (2010, p. 8-9)
O tom que o autor dá a sua obra é sombrio e frio, retrata um povo que precisa viver sob
as máscaras pois estão vazias. As pessoas entreolham o contexto social no qual estão
inseridas, vivendo como sonâmbulos: meio acordados, meio dormindo. Não criticam e
nem têm uma opinião formada. O povo judeu retratado por dois autores, em contextos
diferentes, ainda tem o aspecto de mortos-vivos, sem opinião com relação às atrocidades
às quais estavam sendo submetidos. Segundo Bauman (1988), era mais fácil aceitar a
condição do que lutar por uma causa perdida. Os judeus preferiam “sacrificar alguns
para salvar muitos” sem saber o tamanho e a proporção que o extermínio tomaria.
Não só esse trecho refere-se à época da Segunda Guerra Mundial, mas também
faz projeções para a sociedade atual. Foer, como autor pós-moderno, critica também a
condição social judaica que não mudou durante os anos. A passividade ainda é uma
caracterítica latente do povo judeu; e o autor, pertencendo a essa comunidade, critica a
estrutura social na qual ele está inserido a partir de dentro.
Além de chamar atenção para a passividade intrínseca, Foer faz um alerta para o
perigo do esquecimento do trauma vivido por essa comunidade. A sociedade atual vive
em uma época na qual tudo acontece muito rápido, em um piscar de olhos somos
atingidos por tragédias e logo nos recuperamos, sem pensar duas vezes. O problema
posto em cheque com a narrativa de Foer é a velocidade com que nos esquecemos de
eventos que foram tão traumáticos para uma sociedade que não são comentados e, em
um nível mais profundos, são calados para que não se criem polêmicas. Segundo
Bauman (1988), vivemos em um tempo onde a auto-cura e o esquecimento são tão
corriqueiros que chegam a ser perigosos para a sociedade:
O Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade
moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do
desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema
dessa sociedade, dessa civilização e cultura. A autocura da memória
histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é por
isso mais do que uma indiferença ofensiva às vítimias do genocídio. É
também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida. (p. 12)
O perigo latente de um reincidente ainda percorre a veia dos nossos governos.
Uma vez que o Holocausto somente tenha ocorrido somente devido ao avanço da
modernidade, a não discussão e a falta de alerta para o horror que foi vivido contribui
para que não seja dada a devida importância ao sofrimento das vítimas e também para
um possível reincidente.
O olhar que Foer produz em sua narrativa é de questionamento e também
pessoal (uma vez pertencente à comunidade judaica) sobre o sofrimento, a paranóia e a
angústia da incerteza vivida por aquele povo. Não era possível saber quanto tempo
tinham de vida e não podiam reagir frente à um governo totalitário. O silêncio ao qual
foram obrigados a se submeter era, segundo Bauman (1988) e Hanna Arendt (1989), era
para que pudessem tentar se proteger e alongar por algum tempo o pouco da vida
“miserável” que estavam levando. Esse silêncio estende-se até os dias atuais, e Foer usa
a obra para chamar atenção para essa imposição que perdura:
submerged in the [...] green [...] and [...] blind with age, we
rediscovered [...] life [...], the quality of [...] blood, [...] the [...] secret
of [...] private time [...], the silent [...] sights [...] the comings and
goings [...],[...] we stepped into [...] the shadow [...] and did not fight
against it; [...] (p. 15-16)
Essa comunidade não teve seu sofrimento contato, historicizado o suficiente para
que não caia no processo de auto-cura coletiva. O autor usa um trecho de Schulz, no
qual descreve o mês de agosto e a vida diária de sua família e vizinhos, e o transforma
em um trecho da luta diária pela sobrevivência ao genocídio.
Segundo Hayden White, em sua obra Meta-História (1995), toda narrativa conta
uma história, que é influênciada por uma ideologia, e que também cria uma idelogia
outra: “Assim como toda ideologia é acompanhada por uma idéia específica da história
e seus processos, toda idéia de história é, também, afirmo, acompanhada por
implicações ideológicas especificamente determináveis” (p. 38). A “idéia” de Foer com
essa produção narrativa é contestar, a partir de dentro, as estruturas históricas/
ideológicas às quais a história do povo judeu estava/ está sujeita. A não representação, e
o silêncio forçado por anos de pessoas que sobreviveram à tragédia implica a falta de
discursos e memória sobre a “Solução Final”.
A ideologia representada na narrativa de Schulz é a de satirizar a sociedade na
qual vivia e que passava pelos horrores do governo Stalinista. Mas, de alguma forma
essa caos não era “levado a sério” por todas as partes da Ucrânia, uma vez que o maior
número de mortos pelo Holodomor foi entre os camponeses, os primeiros a serem
atingidos pelas direções do governo. Schulz retrata a família da tia do narrador como
sendo de classe média-alta e isolada dos problemas enfrentados pelo resto da população.
Ao descrever o primo, percebemos a condição da família:
His elegant, expensive clothes bor the imprint of the exotic
countries he had visited. His pale flabby face seemed from day to day
to lose its outline to become a white blank wall with a pale network of
veins, like lines on an old map occasionally stirred by the fading
memories of a stormy and wasted life.
He was a master of card tricks, he smoked long, noble pipes,
and he smelled strangely of distant lands. With his gaze wandering
over old memories, he told curious stories, which at some point would
suddenly stop, disintegrate, and blow away.
My eyes followed him nostalgically, and I wished he would
notice me and liberate me from the tortures of boredom. And indeed,
it seemed as if he gave me wink before going into an adjoining room
and I followed him there. He was sitting on a small low sofa, his
crossed knees almost level with his dead, which was bald like a
billiard ball. It seemed as if it were only hi clothes that had been
thrown, crumple and empty, over a chair. His face seemed like the
breath of a face – a smudge which an unknown passer-by had left in
the air. (1934, p. 21)
Além de retratar a condição da família, Schulz mostra em seus personagens a
hipocrisia por trás das aparências elegantes, da sensatez ou da loucura. No caso, o autor
descreve um personagem com roupas elegantes, mas é um pedófilo que tenta se
aproveitar do narrador. Schulz faz uma crítica ao governo totalitário que mantinha a
aparência de sobriedade, mas que, por trás das máscaras, cresceu ao custo do sacrifício
de comunidades subjugadas.
Foer altera esse contexto histórico ao retirar partes do texto, e coloca em destaque
a pergunta: até que ponto é possível manipular um contexto histórico ideologicamente
sugestionado para servir à um propósito?
[...] she closed her eyes and reddened even more deeply [...] ,
[...] a face from which life [...] was walking [...],[...] a pale network of
[...] lines on an old map [...] of distant lands [...] wandering over [...]
memories [...] which [...] would suddenly [...] blow away.
My eyes followed [...] the tortures [...],[...] the breath [...] left in
the air. (p. 19-20)
O mesmo trecho previamente selecionado no livro de Schulz é modificado por
Foer para que o personagem relembre um vítima do holocausto que passa por torturas,
enquanto o narrador assiste a cena. O que se pode notar nos trechos que o autor
seleciona é que o texto remanescente destaca, além do terror vivido pelos personagens,
a passividade do narrador diante de tudo o que observa e descreve. Essa era uma
característica marcante do povo judeu, que não se defendeu e não teve também quem os
defendesse. O pensamento mais corriqueiro que se passava na mente dessa sociedade
era o de “sacrificar alguns para salvar muitos”, sendo assim aceitavam o destino de
alguns e até mesmo entregavam seu próprio povo para que se pudesse ter a ilusão de
salvar os outros que haviam ficado. Como enuncia Bauman (2008):
Paradoxalmente, portanto, a situação dos judeus nos estágios
preliminares da Solução Final parecia mais a de um grupo
subordinado dentro de uma estrutura normal de poder do que a de
vítimas de uma operação genocida “ordinária”. [...] Os judeus podiam
portanto brincar nas mãos de seus opressores, facilitar a tarefa deles e
apressar a própria perdição, enquanto guiados em sua ação pelo
propósito racional de sobreviver. (p. 147)
A falsa esperança provida pelo governo nazista alemão alimentava a expectativa
de sobreviência deste povo. A característica de passividade latente, também presente na
obra de Foer, ocorre uma vez que a comunidade judáica esteve sempre no papel das
margens da Europa. Os judeus são considerados um povo sem pátria, e onde quer que
fundassem moradia, incomodavam os habitantes daquele país. Sendo assim, devido à
prosperidade do povo que invadia o país alheio, vinha com sua cultura e práticas sociais
“amedrontar” os cidadãos, foram logo acomodados nas periferias das cidades. E a
aceitação dessa alocação foi sem luta e sem discórdia. Apesar dos poderes aquisitivos
do povo judeu serem grandes, eram comunidades marginalizadas por não possuirem
espaço próprio e “usarem” locais que eram de direito dos nativos de cada país. No
próprio livro de Schulz, o autor descreve a rua onde mora com características de
periferia, sendo cinzenta e apenas uma mera imitação de papel da metrópole, o que
marca o lugar de moradia das personagens.
O que não fez com que o governo nazista poupasse as pessoas que entregaram
seus companheiros, muito menos seus familiares. O sofrimento do povo judeu, que em
vários episódios históricos, desde a Diáspora, vive opressões, culmina em um ponto
maior: a “monumentalização” do sofrimento. Uma vez que se haja, por meio da obra, a
transformação da narração/ memória em história (em forma de monumento literário)
não haverá esquecimento. Como afirma Achugar (2006) em seu livro “Planetas sem
boca”:
O esquecimento não é um (no sentido de único) nem atua de
uma só maneira. Esse é o esquecimento incosciente, o esquecimento
por âmbito do indivíduo e o esquecimento exercido por uma
comunidade, ou por uma corporação. [...] A atual discussão, a presente
batalha dos sujeitos sociais – por longo tempo silenciados,
marginalizados e esquecidos por exercer a memória coletiva e contruir
um espaço público e privado democrático e multicultural – tem
reagido contra o esquecimento imposto por uma comunidade
hegemônica, cujos horizontes ideológicos muitas vezes o impediam de
ver ou ler a diferença do Outro. (p. 163)
Schulz vivenciou o Holodomor e, anos mais tarde, foi vítima do extermínio
nazista. Foer produz um “monumento literário” cuja origem vem de uma outra obra
literária escrita por um autor igualmente judeu, vítima de dois massacres cometidos
contra seu povo. E essa monumentalização serve como marco para que não haja
esquecimento histórico, e nem indiferença, quanto aos atentados cometidos contra “seu
povo”.
Em conclusão, este trabalho, baseando-se em ambos os romances e os meios de
produção de Tree of Codes, visa abrir uma pequena reflexão sobre os limites da
manipulação histórica na escrita literária e a linha tênue existente entre os campos de
literatura e história. É necessário que se preste atenção em como Foer amarra ambas as
narrativas por meio das escolhas de recorte que faz para produzir o livro. Com um
caráter fragmentado, o romance Tree of Codes faz uma representação à construção da
imagem do povo judeu ao longo da história. Com uma trajetória interrompida por vários
eventos que marcam a memória deste povo, temos uma obra povoada de “buracos” e
“incompletudes” que traduzem em imagem os cacos da história judáica. Foer faz uma
crítica à má expressão (e à falta de representação) que perpetua a história deste povo;
sendo assim escolhe uma narrativa escrita por um autor judeu, o qual vivenciou os dois
maiores massacres da história judáia: o Holodomor, e o Holocausto. Recorta da história
de um, os horrores vividos por outro.
Download

Nos limites da representação: a manipulação plástica como recurso