Nos limites da representação: a manipulação plástica como recurso de produção e reavaliação histórica no romance Tree of Codes (2010) Clara Zanirato – UNESP (Ibilce) RESUMO: O objetivo deste trabalho é prover uma pequena análise das estratégias narrativas utilizadas pelo autor Jonathan Safran Foer no romance Tree of Codes (2010) e fazer um exame de como foi feita a recodificação e re-acomodação histórica do romance de Bruno Schulz, The Street of Crocodiles (1934), em uma nova narrativa. O texto contemplará os recortes feitos por Foer, e como essas escolhas permitiram que se tecesse um novo plano de fundo para o desenvolvimento da obra. Ainda, este texto tem por finalidade analisar a obra de Foer por meio de um prisma teórico pós-moderno e colocar em evidência a crítica que o autor faz aos horrores vividos durante o Holocausto e como a sociedade (pós) moderna suprimiu e esqueceu as vozes que foram pouco (ou não foram) própriamente representadas. A obra da vítima do Holocausto (e também do Holocausto Ucraniano, ou Holodomor), Bruno Schulz, é uma série de histórias conectadas, que quando recodificadas no trabalho de Foer, passam a ser uma única história pós-Holocausto. PALAVRAS-CHAVE: Jonathan Safran Foer, Tree of Codes, Bruno Shultz, The Street of Crocodiles, Holocausto, Literatura e História. ABSTRACT: The main goal of this paper is to provide a small analysis of the narrative strategies used by Jonathan Safran Foer in the romance Tree of Codes (2010). It has also the aim of making an analysis of how the recodification and the historic reacommodation of Bruno Schulz’s romance The Street of Crocodiles (1934) was made into another narrative. The text will contemplate the cuts made by Foer, and also how these choices allowed to create a new background for the narratives development. This text will also analyse Foer’s work through a postmodern view and put in evidence the critic the author makes concerning the horrors lived by Jewish people in the Holocaust, and, therefore, how modern society has obliterated and forgotten these voices, who were not properly represented. The work of the Holocaust victim (and also the Ukrainian Holocaust, or Holodomor), Bruno Shulz, is a book made of different connected histories, which are recodificated in Foer’s book and become one and only history about the post-Holocaust period. KEY WORDS: Jonathan Safran Foer, Tree of Codes, Bruno Schulz, The Street of Crocodiles, Holocaust, Literature and History. Esta pesquisa baseia-se no romance Tree of Codes, do autor americano Jonahtan Safran Foer. O romance de Foer foi escrito a partir da narrativa The Street of Crocodiles (1934) por meio de uma técnica plástica chamada Die-Cutting, na qual se faz recortes geométricos em uma ou várias camadas de papel. O texto desejado por Foer ficou impresso no papel, mas as outras partes foram “descartadas” a fim de que se configurasse um novo texto, diferente da narrativa escrita por Schulz. A obra The Street of Crocodiles (1934) trata da vida diária de uma personagem, cujo nome não é mencionado. O romance narra como essa personagem observa sua família, o mundo e a sociedade a sua volta. A obra de Schulz reúne vários contos curtos que ilustram a sociedade onde o narrador e sua família vivem. Na narrativa, as personagens não têm nomes (exceto o Pai e Adella, a ama da casa, que é a única que consegue colocar a família e a casa em ordem), o nome da cidade também não é mencionado e a sociedade é retratada em “tons de cinza”, sem vivacidade e originalidade. Foer escolhe essa coleção de contos de Schulz e aborda as dificuldades dessa sociedade e as “hipocrisias” vividas pelo povo como uma forma de crítica ao governo totalitário que estava em vigência na época. O fato mais interessante com relação à obra de Schulz é que ela foi escrita durante o período da Grande Fome da Ucrânia. O autor, o qual vivenciou o fato histórico conhecido como o Holocausto Ucraniano, também passou parte de sua vida sob cárcere privado de um oficial nazista que, somente, poupou o autor porque suas obras de arte lhe agradavam. Schulz foi vítima do terror Nazista e também padeceu no Holocausto. Foi morto por causa de uma desavença que o oficial nazista havia tido com outro oficial; este, por vingança, matou Schulz em 1942. O autor de Tree of Codes escolhe a obra de Bruno Schulz para que ele possa reinventar The Street of Crocodiles e trazer à luz um ponto crítico da História (o Holocausto) de maneira que se faça uma reflexão sobre os eventos ocorridos, o terror vivido pelo povo judeu, o silêncio que foi imposto sobre essas pessoas, e a importância do não esquecimento dos fatos; e propor uma representação da voz desse sofrimento e, também, do discurso existente por trás dos “buracos” históricos relacionados ao evento. Os cortes feitos por Foer vão do ínico ao fim da obra de Schulz, começando pelo próprio título: THE STREET OF CROCODILES. E o autor faz questão de mencionar, no pós-facio que Tree of Codes é uma exumação do livro de Schulz, e ainda afirma que sua obra não é uma narrativa como a de The Street of Crocodiles: “This is in no way a book like The Street of Crocodiles. It is a small response to that great book. It is a story on its own right, but it is not exactly a work of fiction. It is yet another note left in the cracks of the wall.” (p. 139). Tree of Codes é uma história. Além deste motivo, o autor de The Street of Crocodiles vivenciou ambos os eventos históricos nomeados de Holocausto, um ocorrido na Ucrânia (no qual Stalin e o governo comunista impediram que qualquer alimento entrasse no país, para que milhares de judeus morressem de fome: aproximadamente 3 a 3,5 milhões de mortes.); e outro ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial (no qual o governo Nazista perseguiu e assassinou aproximadamente 6 milhões de judeus, os quais nunca tiveram sequer a oportunidade de ter sua história defendida e repercutida). Foer utiliza em sua obra uma narrativa alocada em um tempo histórico determinado e a subverte por meio de recursos plásticos para poder reposicioná-la em um outro período. De acordo com Linda Hutcheon (1991), no dias atuais há um repensar na forma como se faz a representação de fatos ocorridos no passado. Hutcheon afirma que há uma linha tênue entre os conceitos de literatura e história uma vez que não há acesso ao passado a não ser por meio da literatura. O objeto de representação maior da História está condicionada intrinsecamente à literatura, e, de certa forma, ao autor-historiador que a escreve. A autora escreve sobre a história em seu livro “A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção”, de 1988: [...] seu acesso está totalmente condicionado pela textualidade. Não podemos conhecer o passado, a não ser por meio de seus textos: seus documentos, suas evidências, até seus relatos de testemunhas oculares são textos. Até mesmo as instituições do passado, suas estruturas e práticas sociais, poderm ser consideradas, em certo sentido, como textos sociais. E os romances pós-modernos [...] nos dizem algo sobre esse fato e sobre suas consequências. (1988, p. 34 grifo nosso) Os romances pós-modernos têm o objetivo de contestar as estruturas sociais às quais estão ligados em nossa cultura dominante do interior dos seus próprios pressupostos. Essas narrativas não propõem a criação de uma estrutura mestre (ou melhor, segundo Lyotard (2004) o pós-modernismo se recusa a propor qualquer estrutura dominante). Segundo o autor a pós-modernidade cartacteriza-se pela perda de fé nas narrativas-mestre, pela incredulidade nas estruturas rígidas e pela relatividade do conhecimento de mundo. Na sociedade dos dias atuais temos o fechamento histórico e a continuidade das narrativas contestados a partir do próprio romance. Consequentemente, os romances pós-modernos também contestam as próprias estruturas de passado que representam. À essa consciência, Linda Hutcheon cunhou o termo “Metaficção Historiográfia”, que visa, não somente trazer à clareza a relação próxima existente entre literatura e história, mas também utilizar o romance como meio de subverção para as representações históricas existentes na narrativa. Em sua obra, Hutcheon afirma: Do mesmo modo, a metaficção historiográfia [...] insere, e só depois subverte, seu envolvimento mimético com o mundo. Ela não o rejeita, nem o aceita simplesmente [...]. Porém ela de fato modifica definitivamente as noções simples de realismo ou referência por meio da confrontação direta entre o discurso da arte e o discurso da história. (1988, p. 39) Foer, em Tree of Codes utiliza uma obra inserida em um período histórico préguerra e subverte essa história, por meio de manipulação plástica do texto, para que ela seja decorrida em um outro tempo. A subverção do período histórico do texto visa destacar o terror vivido pelas vítimas do Holocausto, todo o silêncio sobre o fato e ainda dar voz aos discursos que não foram ditos pela comunidade judaica sobre o ocorrido. Trazer à memória um fato que foi o ponto de ruptura de uma sociedade, e que por tanto tempo se calou sobre a dor, faz de Tree of Codes uma crítica não só ao silêncio imposto sobre essas vozes, mas também nos faz questionar o quanto realmente poderíamos confiar em todas as coisas que ja foram ditas a respeito do Holocausto, da sociedade Judaica e, acima disso, das consequências que foram acarretadas à esse povo. Fazendo referência a Hutcheon, se somente podemos ter conhecimento do passado por meio de textos, o quanto foi que a literatura contribuiu para que não nos esqueçamos (ou para que, de fato, esqueçamos) as vítimas da quietude editorial? Tree of Codes tenta quebrar a rigidez do “fazer história”. Por meio da manipulação do texto, realocamos historicamente uma narrativa, para possivelmente fazer uma crítica à fé que se confere tão cegamente às narrativas-mestres, subvertendo a confiabilidade da representação histórica da obra. A produção de obras literárias obecede à uma edição e a um objetivo, que está atrelada à bagagem de mundo do autor que relatou o fato histórico, ou seja, o registro histórico é sugestionado por quem o escreve. Há o apagamento de fatos, bem como a criação de outros. A proposta, segundo a narrativa, de Foer é subverter a narrativa de Schulz em prol do destaque de vozes que foram caladas, ou não foram retratadas, de sociedades que sofreram um trauma de terror. O recurso plástico usado no texto tem a finalidade de representar fisicamente o que “deixou de ser dito” a respeito do sofrimento e do medo vivido pelo povo judeu durante o Holocausto. Como na citação: “Who knows,” he said, [...] “How much ancient suffering is there [...] in […] the […] smiles […] and glances […] ¿” (p. 61), não há como conhecer totalmente o ocorrido por trás das “máscaras históricas”, não se sabe quanta dor houve durante o trauma histórico vivido, mas os “buracos” deixados podem nos ajudar a ver os discursos por trás do discuro. Tree of Codes é o discurso por trás de The Street of Crocodiles, as entrelinhas decifradas sobre as coisas que foram ditas, e também sobre as que não foram. “A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedí-lo de ser conclusivo e teleológico.” (1988, p. 147). Dessa maneira, mais uma vez baseando-nos em Linda Hutcheon, observamos o texto como não hermético, aberto à interferências tanto do presente quanto do passado. O texto retirado do passado, reinterpretado, e reinserido em um contexto presente faz o leitor refletir e fazer inferências sobre a sociedade na qual está vivendo e também projetar um futuro. Na passagem selecionada, Schulz descreve as peripécias do Pai que, já nos primeiros capítulos do livro, apresenta comportamentos de loucura. O que é possível perceber na obra de Schulz é que a figura do Pai é uma representação direta do momento histórico no qual aquela família estava inserida. A loucura imposta pelo governo totalitário à Ucrânia, com promessa de prosperidade, fez com que milhões morressem de inanição: During the long twilight afternoons of this winter, my father would spend hours rummaging in corners full of old junks, as if he were feverishly searching for something. And sometimes at dinnertime, when we had all taken our places at the table, Father would be missing. On such occasions, Mother had to call ‘Jacob!’ over and over again and knock her spoon against the table before he emerged from inside a wardrobe, covered with dust and cobwebs, his eyes vacant, his mind on some complicated matter known only to himself which absorbed him completely. Occasionally he climbed on a pelment and froze into immobility, a counterpart to the large stuffed vulture which hung on the wall opposite. In this crouching pose, with misty eyes and sly smile on his lips, he remained for long periods without moving, except to flap his arms like wings and crow like a cock whenever anybody entered the room. (p. 28) O pai vive nos cantos da casa, procurando por algo que não consegue achar. Tem pensamentos que a família não consegue compreender. E em última instância, tem comportamentos estranhos, o que faz a família perder o interesse nele, a ponto de não prestarem mais atenção às loucuras do pai. A família, que também foi vítima do Holodomor, posiciona-se como uma representação da sociedade, que tenta lidar com as “loucuras” diárias do governo. O pai, também respresenta a sociedade, mas tem o papel de mostrar o sofrimento por trás das máscaras do dia-a-dia. Uma das maneiras propostas por Foer para que percebamos o deslocamento histórico presente na obra é a própria a figura do pai. Na narrativa notamos a transformação de cenário histórico conforme o narrador descreve a mudança de comportamento do Pai. A personagem tenta fugir e esconder-se da Mãe. Ele está sempre procurando para que não tenha surpresas com o “governo”. Mas, eventualmente, é levado e desaparece por dias, o que não é mais tão impressionante para sua família, uma vez que já estão acostumados com o sumisso do Pai. During [...] this winter, my father would spend hours [...] in corners [...] as if [...] searching for [...] Mother [...] and [...] emerge [...] covered with dust and cobwebs, his eyes [...] froze [...] for long periods [...].[...] he plunged deeper [...] beyond our understanding [...] and [...] with flushes on his [...] cheeks [...] did not notice us [...] anymore. [...] from the margin of [...] time [...] he used to disappear for many days into some [...] corner [...] and [...] these disappearances ceased to make any impression on us, [...] we did not [...] count him as one of us anymore. [...]. Knot by knot [...] he loosened himself [...],[...] as unremarked as the grey heap [...] swept into a corner, waiting to be taken [...]. (p. 32-34) Também na obra de Foer, há a crítica quanto à passividade do povo judeu, bem como o incentivo ao leitor para que reflita sobre a condição de perseguição desse povo. Foer expressa bem essa aceitação no personagem do Pai: “he [...] was ready to accept complete defeat [...] – a broken [...] exile [...].” (p. 40). Ainda em outra passagem, a personagem reforça a idéia de que reduzir a vida não é um “pecado” e que às vezes é ate necessário: “said my father, “[...] All attempts [...] are transient and [...] easy to [...] dissolve. [...] reducing life [...] is not a sin. [...] It is sometimes [...] necessary [...].[...] There is no dead matter,” he taught us,” (p. 49). Essa passagem ilustra o pensamento de Bauman (1988) quando teoriza sobre o “agir pela razão” dos judeus. Eles, em seu pensamento racional, abstrairam que seria necessário entregar alguns para que pudessem salvar muitos. Também nas primeiras escritas de ambos os livros é possível discernir a atmosfera que envolve o plano de fundo de cada narrativa. O tom dado à The Street of Crocodiles é descritivo e o autor critica a sociedade na qual estava inserido, faz isso por meio da narração do dia-a-dia do narrador e da sua família. Schulz descreve o dia na sua rua como ensolarado, uma cor dourada que “banhava” todas as pessoas passando na rua. A atmosfera que o autor cria em sua narração é de que, ao sair na rua, os cidadãos ficam embriagados por essa luz solar, por isso a referência à “Bacchus”, ou Dionísio, o deus da mitologia responsável pela insanidade e da bebedeira. On Sunday afternoons I used to go for a walk with my mother. From the dusk of the hallway, we stepped at once into the brightness of the day. The passers-by, bathed in melting gold, had their eyes half closed against the glare, as if they were drenched with honey. Upper lips were drawn back, exposing the teeth. Everyone in this golden day wore that grimace of heart – as if the sun had forced his worshippers to wear identical masks of gold. The old and the young, women and children, greeted each other with these masks, painted on their faces with thick gold paint; they smiled at each other’s pagan faces – the barbaric smiles of Bacchus. (1934, p. 16) Schulz retrata as pessoas cobertas com essa insanidade latente que envolvia a sociedade no período histórico pelo qual eles estavam passando. Como a Ucrânia havia sido isolada do resto do mundo economica e socialmente, não se tinha notícias do “mundo exterior”. As pessoas usavam máscaras para encarar, e também como uma forma de aceitação, os eventos políticos que vinham acontecendo em seu país. Não havia o que pudesse ser feito, por parte das pessoas, para reverter o quadro de isolamento de seu país. Ele estava sendo governado pelo regime totalitário de Stalin, e os cidadãos somente podiam aceitar as condições às quais estavam sujeitos. Por isso usavam “máscaras” durante o dia. Perambulavam em um limbo, quase como bêbados, submetidos à fome. Foer transforma esse trecho, o qual primeiramente desenha o plano de fundo da Street of Crocodiles, em um contexto sombrio de Segunda Guerra Mundial: The passers-by [...] had their eyes half closed [...] . Everyone [...] wore [...] his [...] masks [...] . [...] children [...] greeted each other with [...] masks [...] painted on their faces[...] ; they smiled at each other’s [...] smiles [...] growing in this emptiness, [...] wanting to [...] resemble [...] the [...] reflections [...] , [...] whole generations [...] had [...] fallen asleep [...]. (2010, p. 8-9) O tom que o autor dá a sua obra é sombrio e frio, retrata um povo que precisa viver sob as máscaras pois estão vazias. As pessoas entreolham o contexto social no qual estão inseridas, vivendo como sonâmbulos: meio acordados, meio dormindo. Não criticam e nem têm uma opinião formada. O povo judeu retratado por dois autores, em contextos diferentes, ainda tem o aspecto de mortos-vivos, sem opinião com relação às atrocidades às quais estavam sendo submetidos. Segundo Bauman (1988), era mais fácil aceitar a condição do que lutar por uma causa perdida. Os judeus preferiam “sacrificar alguns para salvar muitos” sem saber o tamanho e a proporção que o extermínio tomaria. Não só esse trecho refere-se à época da Segunda Guerra Mundial, mas também faz projeções para a sociedade atual. Foer, como autor pós-moderno, critica também a condição social judaica que não mudou durante os anos. A passividade ainda é uma caracterítica latente do povo judeu; e o autor, pertencendo a essa comunidade, critica a estrutura social na qual ele está inserido a partir de dentro. Além de chamar atenção para a passividade intrínseca, Foer faz um alerta para o perigo do esquecimento do trauma vivido por essa comunidade. A sociedade atual vive em uma época na qual tudo acontece muito rápido, em um piscar de olhos somos atingidos por tragédias e logo nos recuperamos, sem pensar duas vezes. O problema posto em cheque com a narrativa de Foer é a velocidade com que nos esquecemos de eventos que foram tão traumáticos para uma sociedade que não são comentados e, em um nível mais profundos, são calados para que não se criem polêmicas. Segundo Bauman (1988), vivemos em um tempo onde a auto-cura e o esquecimento são tão corriqueiros que chegam a ser perigosos para a sociedade: O Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. A autocura da memória histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é por isso mais do que uma indiferença ofensiva às vítimias do genocídio. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida. (p. 12) O perigo latente de um reincidente ainda percorre a veia dos nossos governos. Uma vez que o Holocausto somente tenha ocorrido somente devido ao avanço da modernidade, a não discussão e a falta de alerta para o horror que foi vivido contribui para que não seja dada a devida importância ao sofrimento das vítimas e também para um possível reincidente. O olhar que Foer produz em sua narrativa é de questionamento e também pessoal (uma vez pertencente à comunidade judaica) sobre o sofrimento, a paranóia e a angústia da incerteza vivida por aquele povo. Não era possível saber quanto tempo tinham de vida e não podiam reagir frente à um governo totalitário. O silêncio ao qual foram obrigados a se submeter era, segundo Bauman (1988) e Hanna Arendt (1989), era para que pudessem tentar se proteger e alongar por algum tempo o pouco da vida “miserável” que estavam levando. Esse silêncio estende-se até os dias atuais, e Foer usa a obra para chamar atenção para essa imposição que perdura: submerged in the [...] green [...] and [...] blind with age, we rediscovered [...] life [...], the quality of [...] blood, [...] the [...] secret of [...] private time [...], the silent [...] sights [...] the comings and goings [...],[...] we stepped into [...] the shadow [...] and did not fight against it; [...] (p. 15-16) Essa comunidade não teve seu sofrimento contato, historicizado o suficiente para que não caia no processo de auto-cura coletiva. O autor usa um trecho de Schulz, no qual descreve o mês de agosto e a vida diária de sua família e vizinhos, e o transforma em um trecho da luta diária pela sobrevivência ao genocídio. Segundo Hayden White, em sua obra Meta-História (1995), toda narrativa conta uma história, que é influênciada por uma ideologia, e que também cria uma idelogia outra: “Assim como toda ideologia é acompanhada por uma idéia específica da história e seus processos, toda idéia de história é, também, afirmo, acompanhada por implicações ideológicas especificamente determináveis” (p. 38). A “idéia” de Foer com essa produção narrativa é contestar, a partir de dentro, as estruturas históricas/ ideológicas às quais a história do povo judeu estava/ está sujeita. A não representação, e o silêncio forçado por anos de pessoas que sobreviveram à tragédia implica a falta de discursos e memória sobre a “Solução Final”. A ideologia representada na narrativa de Schulz é a de satirizar a sociedade na qual vivia e que passava pelos horrores do governo Stalinista. Mas, de alguma forma essa caos não era “levado a sério” por todas as partes da Ucrânia, uma vez que o maior número de mortos pelo Holodomor foi entre os camponeses, os primeiros a serem atingidos pelas direções do governo. Schulz retrata a família da tia do narrador como sendo de classe média-alta e isolada dos problemas enfrentados pelo resto da população. Ao descrever o primo, percebemos a condição da família: His elegant, expensive clothes bor the imprint of the exotic countries he had visited. His pale flabby face seemed from day to day to lose its outline to become a white blank wall with a pale network of veins, like lines on an old map occasionally stirred by the fading memories of a stormy and wasted life. He was a master of card tricks, he smoked long, noble pipes, and he smelled strangely of distant lands. With his gaze wandering over old memories, he told curious stories, which at some point would suddenly stop, disintegrate, and blow away. My eyes followed him nostalgically, and I wished he would notice me and liberate me from the tortures of boredom. And indeed, it seemed as if he gave me wink before going into an adjoining room and I followed him there. He was sitting on a small low sofa, his crossed knees almost level with his dead, which was bald like a billiard ball. It seemed as if it were only hi clothes that had been thrown, crumple and empty, over a chair. His face seemed like the breath of a face – a smudge which an unknown passer-by had left in the air. (1934, p. 21) Além de retratar a condição da família, Schulz mostra em seus personagens a hipocrisia por trás das aparências elegantes, da sensatez ou da loucura. No caso, o autor descreve um personagem com roupas elegantes, mas é um pedófilo que tenta se aproveitar do narrador. Schulz faz uma crítica ao governo totalitário que mantinha a aparência de sobriedade, mas que, por trás das máscaras, cresceu ao custo do sacrifício de comunidades subjugadas. Foer altera esse contexto histórico ao retirar partes do texto, e coloca em destaque a pergunta: até que ponto é possível manipular um contexto histórico ideologicamente sugestionado para servir à um propósito? [...] she closed her eyes and reddened even more deeply [...] , [...] a face from which life [...] was walking [...],[...] a pale network of [...] lines on an old map [...] of distant lands [...] wandering over [...] memories [...] which [...] would suddenly [...] blow away. My eyes followed [...] the tortures [...],[...] the breath [...] left in the air. (p. 19-20) O mesmo trecho previamente selecionado no livro de Schulz é modificado por Foer para que o personagem relembre um vítima do holocausto que passa por torturas, enquanto o narrador assiste a cena. O que se pode notar nos trechos que o autor seleciona é que o texto remanescente destaca, além do terror vivido pelos personagens, a passividade do narrador diante de tudo o que observa e descreve. Essa era uma característica marcante do povo judeu, que não se defendeu e não teve também quem os defendesse. O pensamento mais corriqueiro que se passava na mente dessa sociedade era o de “sacrificar alguns para salvar muitos”, sendo assim aceitavam o destino de alguns e até mesmo entregavam seu próprio povo para que se pudesse ter a ilusão de salvar os outros que haviam ficado. Como enuncia Bauman (2008): Paradoxalmente, portanto, a situação dos judeus nos estágios preliminares da Solução Final parecia mais a de um grupo subordinado dentro de uma estrutura normal de poder do que a de vítimas de uma operação genocida “ordinária”. [...] Os judeus podiam portanto brincar nas mãos de seus opressores, facilitar a tarefa deles e apressar a própria perdição, enquanto guiados em sua ação pelo propósito racional de sobreviver. (p. 147) A falsa esperança provida pelo governo nazista alemão alimentava a expectativa de sobreviência deste povo. A característica de passividade latente, também presente na obra de Foer, ocorre uma vez que a comunidade judáica esteve sempre no papel das margens da Europa. Os judeus são considerados um povo sem pátria, e onde quer que fundassem moradia, incomodavam os habitantes daquele país. Sendo assim, devido à prosperidade do povo que invadia o país alheio, vinha com sua cultura e práticas sociais “amedrontar” os cidadãos, foram logo acomodados nas periferias das cidades. E a aceitação dessa alocação foi sem luta e sem discórdia. Apesar dos poderes aquisitivos do povo judeu serem grandes, eram comunidades marginalizadas por não possuirem espaço próprio e “usarem” locais que eram de direito dos nativos de cada país. No próprio livro de Schulz, o autor descreve a rua onde mora com características de periferia, sendo cinzenta e apenas uma mera imitação de papel da metrópole, o que marca o lugar de moradia das personagens. O que não fez com que o governo nazista poupasse as pessoas que entregaram seus companheiros, muito menos seus familiares. O sofrimento do povo judeu, que em vários episódios históricos, desde a Diáspora, vive opressões, culmina em um ponto maior: a “monumentalização” do sofrimento. Uma vez que se haja, por meio da obra, a transformação da narração/ memória em história (em forma de monumento literário) não haverá esquecimento. Como afirma Achugar (2006) em seu livro “Planetas sem boca”: O esquecimento não é um (no sentido de único) nem atua de uma só maneira. Esse é o esquecimento incosciente, o esquecimento por âmbito do indivíduo e o esquecimento exercido por uma comunidade, ou por uma corporação. [...] A atual discussão, a presente batalha dos sujeitos sociais – por longo tempo silenciados, marginalizados e esquecidos por exercer a memória coletiva e contruir um espaço público e privado democrático e multicultural – tem reagido contra o esquecimento imposto por uma comunidade hegemônica, cujos horizontes ideológicos muitas vezes o impediam de ver ou ler a diferença do Outro. (p. 163) Schulz vivenciou o Holodomor e, anos mais tarde, foi vítima do extermínio nazista. Foer produz um “monumento literário” cuja origem vem de uma outra obra literária escrita por um autor igualmente judeu, vítima de dois massacres cometidos contra seu povo. E essa monumentalização serve como marco para que não haja esquecimento histórico, e nem indiferença, quanto aos atentados cometidos contra “seu povo”. Em conclusão, este trabalho, baseando-se em ambos os romances e os meios de produção de Tree of Codes, visa abrir uma pequena reflexão sobre os limites da manipulação histórica na escrita literária e a linha tênue existente entre os campos de literatura e história. É necessário que se preste atenção em como Foer amarra ambas as narrativas por meio das escolhas de recorte que faz para produzir o livro. Com um caráter fragmentado, o romance Tree of Codes faz uma representação à construção da imagem do povo judeu ao longo da história. Com uma trajetória interrompida por vários eventos que marcam a memória deste povo, temos uma obra povoada de “buracos” e “incompletudes” que traduzem em imagem os cacos da história judáica. Foer faz uma crítica à má expressão (e à falta de representação) que perpetua a história deste povo; sendo assim escolhe uma narrativa escrita por um autor judeu, o qual vivenciou os dois maiores massacres da história judáia: o Holodomor, e o Holocausto. Recorta da história de um, os horrores vividos por outro.