NADA RESTARÁ DA TROPA A NÃO SER UMA VAGA LEMBRANÇA…
22/8/13
“Nenhuma coisa desta vida humana é tão
aproveitável aos viventes que a lembrança
e memória dos bens e males passados para
do mal nos guardarmos, regendo a vida para
nele não cairmos segundo os bons fizeram”.
Gaspar Correia, in “Lendas da Índia”
Fui, recentemente, acompanhar um camarada à sua derradeira morada terrena.
É um acontecimento que sempre acompanhou a minha vida militar (mesmo sem nunca ter
entrado em combate), mas que a roda da vida tende a tornar mais frequente relativamente
àqueles que nos são mais próximos.
Uma das características e prerrogativas que acompanham a “condição militar” é a do direito a
que cada um tem de lhe serem prestadas honras militares fúnebres, em função do seu posto –
e, até, de algumas condecorações que ostentem – segundo fórmula regulamentar (hoje já
muito simplificada em função dos cada vez menos efectivos e meios existentes).
Este direito é sustentado no dever dos que ficam, tanto individual como institucionalmente,
em as prestar, condignamente, constituindo uma tradição centenária, que nada nem ninguém
deve interromper.
Os cemitérios/talhões de militares são, também, uma homenagem póstuma e perene, a todos
aqueles que pereceram ao serviço da Pátria, incluindo os que, mortos em batalha, não
puderam usufruir das honras completas.
Mesmo aqueles cuja identidade se perdeu, têm direito a um túmulo a eles dedicado, que entre
nós se encontra no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, alumiado por azeite votivo
e guardado por sentinelas entre o nascer e o pôr - do - sol: o túmulo do soldado desconhecido.
O féretro do coronel, meu muito caro camarada de armas e de curso, passou o portal do
cemitério sem que vislumbrasse peugada da guarda – de – honra, como determinado e
previsto.
Enquanto o corpo aguardava a decisão de prosseguir para a tumba, coberto com a bandeira
das quinas – a que se devia seguir um militar transportando, numa almofada, o boné, as
condecorações e a espada (símbolo da autoridade), do defunto – chegou uma viatura militar
de onde saíu, atrasada, a dita guarda.
Uma rápida conferência entre alguns dos presentes, decidiu pelo “mal menor” que foi o de
reenviar à procedência o pelotão (menos), com a admoestação – apesar de tudo, simpática –
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de que o que aconteceu não podia ter acontecido, à qual o oficial comandante da força
retorquiu com desculpas contristadas.
Veio a saber-se, mais tarde, as razões do sucedido, que são bem o espelho da triste realidade a
que chegámos e que se continua a querer tapar do mesmo modo que se tenta tapar o sol com
uma peneira.
Dada a extrema penúria de praças resultado do fim do serviço militar obrigatório, e dos cada
vez maiores cortes (catastróficos) efectuados em tudo o que mexe nas FA, é muito difícil que o
efectivo das honras fúnebres esteja concentrado numa única unidade militar.
Tal implica que existam militares escalados/de alerta em vários quarteis que é preciso
convocar (por SMS, telefone, mail?) – deve aqui referir-se que o funeral se realizou em Lisboa,
em que a distância entre a Igreja, o cemitério e as unidades militares era mínima.
Acresce a isto que as unidades encontram-se hoje despidas de militares depois do toque de
ordem (se é que ainda existe), excepção feita para o modestíssimo número de pessoal de
serviço, pois fora do período de recruta, uma qualquer instrução ou treino, ou alteração do
grau de alerta, todo o mundo tem direito a ir para casa.
Tal deve-se (para além do já referido), à quase “regionalização” do serviço militar (a rapaziada
parece que não pode estar longe das famílias, tão pouco das escolas – um dos grandes
atractivos do voluntariado é a possibilidade de tirar cursos) e ao facto de, aos comandos, não
lhes desagradar a ideia de verem os militares fora dos quartéis, dado que se evitam problemas
disciplinares e, desde que as mulheres passaram a invadir a vida militar, sempre se minimiza a
hipótese de cópula intramuros (Já quando havia SMO abreviava-se sempre que possível a sua
presença nas unidades para poupar nas refeições...).
A abundância de transportes ajuda.
Bom, convocar pessoal nestas condições, para a cerimónia em causa aumenta enormemente o
risco de atrasos e de faltas.
Com o efectivo finalmente concentrado, o oficial encarregado desta missão teve a presciência
de indagar se todos os presentes estavam familiarizados com a “ordem unida” que teriam que
efectuar e rapidamente se apercebeu que uma parte das praças não estava, pelo que numa
tentativa de resolver o problema, decidiu, ali mesmo, proceder a uma instrução sumária.
Eis pois levantado o véu da causa do atraso. Caberá a quem de direito, tirar as ilações
adequadas.
As cerimónias fúnebres e as honras militares são realizadas em memória dos mortos, mas
ainda mais a pensar nos vivos. Ou seja o exemplo é para quem fica.
Para além de uma homenagem é uma manifestação de solidariedade de toda a família militar;
um sentimento de pertença, coesão, camaradagem, espirito de corpo, etc., de quem serviu
segundo os mesmos princípios no cumprimento de uma mesma missão.
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Passa por ser um elo que a todos liga – do passado para o presente com vista ao futuro – e que
mantém a instituição, que se pretende perene, focada nos seus valores.
Sem sombra de dúvida as FA são a instituição nacional por excelência, em que os seus
servidores são acompanhados e cuidados desde que “assentam praça” até que dão baixa para
a sepultura.
Só nessa data são desmobilizados…
Assim devia continuar a acontecer de modo a que o profissional das armas possa continuar a
“SER” em vez de apenas “ESTAR”.
Posicionamento e filosofia que faz confusão a muito boa gente e que, não poucos pretendem
mudar radicalmente.
A velha questão da “instituição” em contraponto ao “emprego”!
Por isso temo bem, que quando se olhar para o fundo da questão abordada, a decisão seja a
de não resolver as causas, mas a de iludir os efeitos. Ou seja acabam rapidamente com as
honras fúnebres…
Aconselho vivamente os oficiais e sargentos do quadro permanente a tornarem-se
historiadores. Só aí, terão futuro.
Pois a continuar a actual senda, da Instituição Militar Portuguesa, irá restar apenas uma (vaga)
lembrança.
João J. Brandão Ferreira
Oficial Piloto Aviador
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nada restará da tropa a não ser uma vaga lembrança…