Ser ou não ser kantiano A alternativa entre Kant e Frege1 Sofia Miguens 1. O slogan de Kant. Uma primeira comparação entre Kant e Frege em torno do juízo. Quero começar por explicar por que escolhi a expressão ‘Ser ou Não Ser Kantiano’ para título de uma tarefa do Projecto The Bounds of Judgement, a tarefa que iniciamos hoje, com este seminário. Ela alude à teoria do juízo. Para Kant um juízo é um acto2, um acto mental, um acto de síntese (Synthesis). Essa síntese é feita sob uma forma lógica. A forma lógica é dita ser forma de uma síntese discursiva, síntese discursiva essa que se relaciona com a síntese do diverso (Manifaltigkeit) na intuição (Anschauung), a síntese sensível. Nas palavras do próprio Kant no Parágrafo 10 da Crítica da Razão Pura, “A mesma função que confere unidade às diversas representações num juízo, dá também unidade à mera síntese de representações diversas numa intuição” (Analítica Transcendental, §10, A 79/ B 104-105). Esta é uma passagem emblemática, extremamente polémica e muito discutida e atacada, nomeadamente na actual filosofia da percepção3. Chamei-lhe, no projecto The Bounds of Judgement, o ‘slogan de Kant’, e ela é, para os presentes propósitos, central – tudo o que gostaria de dizer aqui hoje vai ter precisamente à interpretação dessa passagem. Segundo Béatrice Longuenesse, a filósofa francesa autora do livro Kant and the Capacity to Judge – sensibility and discursivity in the transcendental analytic of the Critique of Pure Reason (1998) que me proponho hoje tomar como guia, o slogan de Kant exprime a primazia da capacidade de julgar sobre as categorias. Porque a conferência que aqui se regista serviu também de introdução à série de seminários Ser ou Não Ser Kantiano, tendo tido por isso a função prática de explicitar a razão de ser do contraste entre Kant e Frege no Projecto The Bounds of Judgement, mantenho o estilo oral bem como as alusões ao tempo real em que a conferência teve lugar. 2 Um acto não é uma acção no sentido contemporâneo – é, sim, actividade. 3 Ela é, por exemplo, extremamente importante para a discussão entre John McDowell e Charles Travis acerca de dado em filosofia da percepção, que nos interessa numa outra tarefa do Projecto Bounds of Judgement, a tarefa Frege Father of Disjunctivism. Cf. o artigo de João Santos neste volume. 1 O que está então em causa no slogan de Kant? Está em causa a ligação directa, íntima, entre a síntese discursiva, i.e. o juízo, e a síntese sensível, a unidade da multiplicidade (Mannifaltigkeit) na intuição (Anschauung). Desta forma caracterizado, o juízo é uma função psicológica de unidade, que não apenas faz convergir e conceptualiza representações sob uma forma lógica (há, recorde-se, juízos universais, particulares e singulares; afirmativos, negativos e infinitos; categóricos, hipotéticos e disjuntivos; problemáticos, assertóricos e apodícticos) mas também sustenta como unidade a unidade do dado, nomeadamente a unidade de algo que é percepcionado – é isso que diz o slogan, é por isso que ele permite cruzar Kant com discussões hoje em curso na filosofia da percepção e na filosofia da linguagem. Obtemos então a seguinte leitura da expressão ‘ser ou não ser kantiano’: ser kantiano é pensar que o juízo é, no sentido referido, uma actividade e uma função psicológica de unidade. Isto deixa a porta aberta para vermos uma relação entre a tabela dos juízos (a Urteilstafel), apresentada na Secção 9 da Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura [§9 Da função lógica do entendimento nos juízos], que nos dá as formas lógicas dessa unidade e a forma como nós percepcionamos as coisas, os juízos de percepção (por exemplo “O quarto está quente” (Prol. §19)); e também a diferença entre estes e os juízos de experiência (por exemplo “O sol aquece a pedra”). Mas estou já a avançar. Volto ao slogan de Kant. O slogan diz-nos também o que é não ser kantiano: não ser kantiano é desde logo pensar que o juízo não é uma função psicológica de unidade. Frege, o nosso autor central no Projecto The Bounds of Judgement, decididamente não é kantiano: para ele não existe nenhuma função psicológica de unidade do juízo. Sublinho: isto significa que de acordo com Frege quando existe juízo não existe nenhum acto de unificação – certamente não existe nenhuma composição de partes (talvez seja preciso pensar melhor quanto a ‘acto’). Assim, o slogan de Kant, que na verdade tem implícita a relação, que é crucial na Crítica da Razão Pura, entre a receptividade da sensibilidade, a espontaneidade do entendimento e a unidade da auto-consciência, exprime uma forma de pensar sobre o pensamento que é totalmente estranha a Frege. Ou melhor: exprime uma forma de pensar sobre o pensamento que é explicitamente rejeitada por Frege, precisamente a forma para a qual Frege procura encontrar uma alternativa. O que é que Frege propõe em alternativa? Reportando-me à leitura de Travis longamente explorada no nosso seminário Frege and Frege interpreters4, a proposta de Frege é começar com o juízo, já como unidade, e portanto com a postura de um pensador perante o mundo, e não com buiding blocks, partes de um juízo que seriam unidas por algum tipo de acto. Isto é obviamente uma interpretação, e podemos inclusive legitimamente perguntar-nos onde é que o juízo propriamente dito aparece na filosofia de Frege5. Frege fala sobretudo de ‘pensamentos’ (Gedanken) e antes de falar de pensamentos falara de ‘conteúdo a julgar’ (urteilbarer Inhalt). Usa o termo ‘juízo’ (Urteil) por exemplo no contexto da explicação do judgement stroke [traço para juízo] na sua notação simbólica. Mas não há no centro da sua filosofia uma teoria do juízo; uma teoria fregeana do juízo é aquilo que perseguimos no projecto, mais do que algo que está decididamente lá, como em Kant. A propósito do judgement stroke fregeano (), embora eu vá falar mais à frente de lógica e da forma como Kant e Frege entendiam esta, este mesmo judgement stroke é uma razão para alguns verem psicologismo no sistema lógico de Frege (este faz entrar a inferência no próprio sistema, não se restringindo apenas a consequência, como hoje seria mais comum6). Falei no judgement stroke porque ele diz-nos algo de interessante sobre o que Frege pensa sobre o juízo: o judgement stroke marca as proposições que estão a ser asseveradas, i.e. utilizadas para exprimir juízos. Ora no núcleo de tudo o que nos propusemos fazer no Projecto The Bounds of Judgement está a consideração do espaço entre Gedanke (pensamento), Aussage (expressão) e Urteil (juízo). Para Frege, pelo menos numa leitura mais imediata, a asserção é um acto externo, o acto externo que corresponde ao acto interno do juízo: “Distinguimos: 1) a captura de um pensamento – pensar, 2) o reconhecimento da verdade de um pensamento – o acto Cf. o volume Frege e Intérpretes de Frege – Seminário de Charles Travis, editado por Sofia Miguens e Susana Cadilha, nesta colecção, e também Travis 2013, Perception – Essays After Frege (Oxford, OUP). 5 Cf. os textos analisados e comentados no seminário Frege and Frege Interpreters, nomeadamente Begriffsschrift (1879), Über Sinn und Bedeutung (1892), Grundgesetze (Leis Básicas da Aritmética) (1893; 1903) e Der Gedanke (1918). 6 Cf. Nicholas Smith, “Frege’s judgement stroke and the conception of logic as the study of Inference, not Consequence”, to appear in Philosophy Compass. 4 do juízo, 3) a manifestação deste juízo – asserção”7. Se ‘acto’ aqui tem algo a ver com ‘acto’ em Kant é o que seria preciso analisar com cuidado. Mas voltemos a Kant e procuremos mais formulações relevantes na própria Crítica da Razão Pura. Uma definição fulcral de juízo é a que se encontra no Parágrafo 19 da Analítica Transcendental: “Um juízo não é senão a maneira pela qual representações [ou cognições; a palavra que Kant usa é Erkenntnisse] dadas são trazidas à unidade objectiva da apercepção.” [die Art gegebene Erkentnisse zur objektiven Einheit der Apperzeption zu bringen](B141). Kant culpa os lógicos seus contemporâneos de não terem chegado a esta definição – eles dizem apenas que o juízo é uma relação entre dois conceitos; Kant pensa que a sua definição é alguma coisa mais relativamente ao que se encontra na lógica da escola. O juízo é portanto para Kant o acto de trazer cognições para debaixo da unidade da auto-consciência – e é este reunir activamente elementos, building blocks, que contrasta com a ideia fregeana de juízo como postura global de um pensador perante a forma de as coisas serem. Uma nota acerca do nosso interesse pelo juízo no projecto Bounds: assumimos que uma teoria do juízo é central numa concepção do que é ser um pensador (ou do que é pensar) e parecia-nos que a diferentes concepções da natureza do juízo, como são as de Kant e de Frege correspondiam concepções profundamente diferentes daquilo que é pensar. Interessa-nos compreender exatamente como (e porquê) são diferentes. Aliás, por isso mesmo, quando nas formulações do Projecto, situando Frege historicamente sublinhávamos que ele tinha sempre em mente os kantianos (desde logo na bem conhecida contestação da concepção kantiana de juízos aritméticos como juizos sintéticos a priori nos Fundamentos da Aritmética), o que tinhamos em mente era que o seu ponto não era apenas combater uma dada concepção de analiticidade (e assim, é claro, uma dada concepção da natureza da lógica e da matemática) mas sobretudo o facto de ao fazer isso estar ao mesmo tempo a combater o idealismo, de forma transcendental ou outra. O juízo é uma chave para tudo isto, para discernirmos diferentes concepções metafísicas e ontológicas, diferentes concepções da relação pensamento-mundo – é aí que em última análise queremos chegar com a Cf. Frege, “Der Gedanke”, p. 35. “Wir untersheiden demnach: 1. Das Fassen des Gedankes – das Denken, 2. Die Anerkennung der Wahrheit eines Gedankes – das Urteilen, 3. Die Kundgebung dieses Urteils – das Behaupten.” (in Frege 1984, Frege 1918-1926, Logical Investigations, Collected Papers on Mathematics, Logic and Philosophy, ed. Brian McGuiness, Oxford, Blackwell, pp. 355-356). 7 comparação Kant-Frege em torno do juízo. É para tudo isto que a expressão ‘Ser ou não ser kantiano’ pretende dirigir o nosso olhar no Projecto The Bounds of Judgement. 2. Potências, poderes e actos: Vermögen zu urteilen, Urteilskraft, Handlung. Antes de entrarmos mais directamente na discussão de Longuenesse, que será hoje, aqui, a forma aplicada de procurar começar a compreender a teoria kantiana do juízo, queria recordar algo de bem conhecido quanto à teoria do juízo em Kant: em Kant a questão do juízo conduz da Crítica da Razão Pura à Crítica do Juízo (Kritilk der Urteilskraft), cujo objecto são não os juízos ditos determinantes (por exemplo juízos aritméticos, ou juízos de percepção), mas os juízos ditos reflexivos ou reflectintes, os juízos teleológicos e juízos estéticos (juízos acerca de finalidade e juízos acerca do belo e do sublime). Não sendo estes últimos uma questão para Frege, eles são no entanto um importantíssimo aspecto em Kant para se compreender globalmente a natureza da capacidade de julgar (e também, obviamente, para se compreender a sua obra como sistema). Beatrice Longuenesse não ignora isso, desde logo na consideração cuidadosa da capacidade de julgar – este é o seu tema, o título do seu livro, e também uma das pedras angulares do sistema crítico. No título do livro ela usa a expressão de Kant ‘Vermögen zu urteilen’, e distingue esta capacidade de ‘Urteilskraft’, i.e. da força (Kraft, vis) que se actualiza. Sublinho: a Urteilskraft é a actualização da capacidade, de vermögen zu urteilen, a capacidade de julgar. No vocabulário filosófico do tempo de Kant, Vermögen é facultas, tendência a agir, possibilidade de agir, própria a uma substância; associado a vermögen há um conatus, uma tendência ou esforço de actualizar-se (este é um termo de Espinoza e Leibniz muito presente no livro de Longuenesse). Quando essa tendência se actualiza torna-se Kraft, vis, força, sendo assim já acção, e não apenas tendência, disposição ou possibilidade. O termo de Kant para mente é Gemüt [ou, também, Geist]: porque a mente não é uma substância, nem é para ser entendida no quadro de uma metafísica da substância, a caracterização kantiana do mental é remetida para as faculdades: o mental não é uma coisa mas um ser capaz de fazer. Ora Vermögen é precisamente o termo de Kant para todas as faculdades: Verstand, Urteilskraft, Vernunft (entendimento, faculdade de julgar, razão). Assim, a Urteilskraft, que dá o nome à Terceira crítica kantiana é a actualização dessa mesma vermögen zu urteilen que ocupa Longuenesse no livro que nos interessa, e que é sobre a Crítica da Razão Pura. Não podia deixar de relembrar isto porque há aqui ligações a explorar: apesar de a comparação dividir usualmente territórios, o território da Crítica da Razão Pura e o território da Crítica do Juízo, Longuenesse está interessada naquilo que é comum a esses territórios, e aquilo que é comum é a capacidade de julgar (ou citando o próprio Kant da forma que interessa Longuenesse, aquilo que é comum é a comparação-reflexão-abstração que é característica do papel activo das formas lógicas do juízo8). Mas voltando à Crítica do Juízo, na Introdução (4)9, Kant afirma: «O poder do juízo [Urteilskraft]10 é em geral o poder de pensar o particular como contido sob o universal. Se o universal (a regra, o princípio, a lei) é dado, então o poder do juízo, que subsome o particular sob o universal, é determinante (o mesmo obtem quando, como poder transcendental do juízo, ele indica a priori as condições de acordo com as quais apenas se pode subsumir a esse universal (…) mas se o particular é dado, para o qual o poder do juízo deve encontrar o universal, então o poder do juízo é meramente reflexivo». Esta passagem refere o contraste mais óbvio e mais conhecido – mas omite o comum, que é o que mais interessa Longuenesse. Assim, o que Longuenesse vai dizer, como os olhos nessa ‘comparação-reflexão-abstração’ que é característica do papel activo das formas lógicas do juízo e que é comum, é que os juízos estéticos são apenas reflexivos, o que não impede os juízos determinantes de serem eles próprios também reflexivos11. 3. Por que é que os juízos são importantes? – o Kant de Longuenesse e de Boyle. Outros intérpretes (nomeadamente Heidegger e Strawson). Kant, Jäsche Logik, Logik § 5 e 6 (p. 592). Kant fala de ‘Vergleichung’, ‘Überlegung’, ‘Abstraktion oder die Absonderung’ (ditas serem actos lógicos do entendimento). 9 Cf. Longuenesse 1998: 112. 10 A tradução inglesa (usada por exemplo por Paul Guyer) é power of judgement. 11 Aliás o uso do termo ‘reflexão’ em Kant é muito particular e muito pouco psicológico; ele usa-o para falar de formas lógicas do juízo e não por exemplo daquilo a que chamará o sentido interno. 8 Pondo as coisas de forma directa: Longuenesse considera a tabela dos juízos importantíssima para compreender a filosofia kantiana, e isto é uma originalidade sua, já que, frequentemente, na história da recepção de Kant, a tabela dos juízos foi considerada menos importante. Se para Longuenesse a tabela dos juízos é decisiva é porque por trás da tabela dos juízos estão os actos de pensamento ou o pensamento como acto, por contraste com a rigidez da tabela das categorias onde os conceitos puros aparecem dados, determinados (o mesmo que se passa com as categorias passar-se-ia com as outras ‘organizações quadripartidas’ da Crítica da Razão Pura, como a tabela dos schemata ou a tabela dos princípios do entendimento puro: em suma, há tabelas-rígidas e há uma tabela de actos12). A ideia de Longuenesse, repito, é que uma grande quantidade de intérpretes de Kant negligenciou o papel activo das formas lógicas do juízo (comparar/abstrair/reflectir) – ora é esse, na sua leitura, o fio condutor da Crítica da Razão Pura. A expressão ‘fio condutor’ é, como se sabe, uma expressão do próprio Kant. São em grande número os comentadores que decidem desconsiderar tal fio condutor. Eles vão desde os neo-kantianos do século XIX como Hermann Cohen13, até, por exemplo, os autores de duas muito conhecidas interpretações de Kant no século XX, Heidegger (em Kant et le problème de la métaphysique, 1929) e Peter Strawson (The Bounds of Sense, 1966), a quem prestaremos atenção neste seminário. O próprio Hegel foi o primeiro a afirmar (Logik 1812, 1813, 1816) que dado o character ad hoc e arbitrário da tabela dos juízos, mais valia que Kant tivesse olhado directamente para a experiência, em vez de ter ido buscar tal tabela aos manuais da escola. É interessante, diga-se de passagem – diz Longuenesse – notar que não há nenhum manual de escola específico onde Kant tenha ido buscar exactamente aquela tabela organizada em quantidade-qualidade-relação- modalidade que conhecemos. De qualquer forma, o que é aqui relevante, para Longuenesse é o facto de muitos leitores actuais de Kant o lerem de forma demasiado contemporânea, i.e. acusando-o simplesmente, directamente, de não dispor da lógica de que nós dispomos, de dizer apenas coisas perfeitamente desinteressantes e desactualizadas – é essa por exemplo a crítica que Longuenesse Na edição portuguesa: p. 104 (juízos), pp. 110-11 (categorias), pp. 184-6 (schemata), p. 197 (princípios). 13 Cf. por exemplo Kant’s Theorie der Erfahrung (1871). Para uma abordagem a Cohen, cf. Scott Edgar, “Hermann Cohen”, 2010, The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 12 dirige a Peter Strawson. Considera-se assim que a questão das relações categoriasexperiência continua viva e pertinente, que a experiência pressupõe conceitos que não provêm da experiência e que são a condição de possibilidade da experiência, e que é por isso que vale a pena continuar a ler e discutir Kant. No entanto, porque Kant tem uma concepção completamente desactualizada de lógica decide-se pura e simplesmente ignorar aquilo que é explicitamente dito vir da Lógica (i.e. da lógica geral), por exemplo especificamente, a tabela dos juízos. O problema de proceder assim, segundo Longuenesse, é que o argumento central da Crítica da Razão Pura (o argumento a favor da aplicabilidade das categorias à experiência na Dedução Transcendental das Categorias, na Analítica Transcendental), se apoia precisamente na relação que Kant procura estabelecer entre a síntese discursiva do juízo e a síntese da multiplicidade, i.e. a síntese sensível, e só pode ser plenamente compreendido compreendendo a teoria do juízo. Podemos, como diz Longuenesse14, considerar que o argumento é mentalista, ou psicologista (mesmo se o procedimento de Kant é tudo menos introspectivo), mas isso não é razão para abdicarmos de o compreender. A sua tese geral é portanto que sem atenção ao detalhe desse fio condutor que é o juízo, sem atenção ao que Kant diz sobre cada forma lógica do juízo, não se compreenderá nem a Dedução Transcendental, nem o esquematismo, nem o Sistema dos Princípios do puro entendimento. E, sobretudo, perder-se-á qualquer perspectiva da coerência do caso global de Kant na Crítica da Razão Pura. 4. Kant e a lógica Ora, se Longuenesse tem razão, compreender a teoria kantiana do juízo obriga-nos antes de mais a compreender o que Kant entendia por ‘lógica’. Ninguém nega que Kant concebia a lógica de forma muito diferente da nossa – é exactamente por isso que é muito importante termos do outro lado da nossa comparação entre teorias do juízo um dos pais da lógica contemporânea, Frege15. Mas se queremos, como Longuenesse 1998: 6. De entre os membros da equipa do Projecto, Maria Uxía Rivas Monroy (Universidade de Santiago de Compostela) tem trabalhado directamente sobre a teoria fregeana do juízo. 14 15 Longuenesse, e por exemplo também Matthew Boyle16 pensam que devemos, levar Kant a sério, não podemos simplesmente dizer que ele tinha uma visão completamente desactualizada da lógica e ficar por aí. Já sabemos que encontraremos uma abordagem da lógica que (ao contrário do que o próprio Kant proclama) aparecerá, a olhos contemporâneos, como psicologista (psicologista porque tem como objecto actos do entendimento). Mas – é essa a proposta de Longuenesse – vale a pena ir mais fundo, vendo que mais encontramos. O que é que Kant pensa, então, que é a lógica?17 Toda a gente conhece a separação entre lógica geral e lógica transcendental que abre a parte da Crítica da Razão Pura intitulada Lógica Transcendental, que conterá a Analítica Transcendental e a Dialéctica Transcendental. A primeira (a lógica geral) teria chegado completa da ‘escola’, a segunda (a lógica transcendental) é de alguma forma o assunto da própria Crítica. É da primeira, a lógica geral, que Kant diz que ela é formal. A pergunta importante a fazer é em que sentido é que a lógica geral é formal. Ela é formal tanto quanto abstrai dos conteúdos da cognição e lida somente com a forma do pensamento em geral, i.e. com a cognição discursiva (A131/B170). Note-se que isto é completamente diferente do entendimento contemporâneo de ‘formal’ – ‘formal’ significa hoje ‘respeitante aos traços estruturais relevantes para a preservação da verdade, expressos num cálculo e dizendo respeito a consequência’ (i.e. ao-que-se-segue-dequê). Aquilo de que Kant fala quando fala de ‘formal’ é diferente: ao contrário dos lógicos contemporâneos, Kant está a falar de cognição. Como nota Longuenesse, a concepção kantiana de lógica está mais próxima da dos lógicos de Port Royal, para quem a lógica expunha a reflexão sobre as operações da mente, do que da nossa concepção de lógica. Em ambos os casos (o caso de Kant, o caso dos lógicos de Port Royal) seria aceitável descrever a lógica como “o auto-conhecimento [Selbsterkenntnis] do entendimento e da razão (…) meramente quanto à forma.”18 Cf. M. Boyle, “Kant on Logic and the Laws of the Understanding”, in Charles Travis & Sofia Miguens The Logical Alien At 20, Cambridge MA, Harvard University Press, no prelo. 17 Chamo aqui em meu auxílio não apenas Béatrice Longuenesse mas também Matt Boyle, em particular a sua contribuição para uma das conferências internacionais principais do Projecto The Bounds of Judgement, The Logical Alien at 20 (2011). 18 Arnault & Nicole, Art de penser, 37, 29. Kant, Logik, Ak IX 14: 259. Longuenesse deixa-se guiar nesta aproximação por Cavaillès, Sur la logique et la théorie de la Science. 16 Além de ser conveniente termos ideias claras quanto ao que Kant quer dizer com ‘formal’, é também conveniente ter ideias claras quanto ao que ele defende quanto a analiticidade e lógica: mesmo se Kant pode afirmar que todos os juízos lógicos são juízos analíticos, a verdade é que ele não equaciona o domínio da lógica com o da analicidade. Referi atrás uma das formas de Frege ter Kant em mente: Frege não aceitava a concepção ‘pobre,’ cognitivamente não produtiva, de analiticidade de Kant - essa mesma concepção de analiticidade que o levava a dizer de forma altaneira que a lógica é analítica e por isso daí não virá nada de novo19. Mas a discussão não pára aí porque as formas lógicas da tabela dos juízos não são apenas formas dos juízos analíticos no sentido de Kant. As formas lógicas da tabela dos juízos são formas quer dos juízos analíticos quer dos juízos sintéticos, dos juízos extensivos e dos juízos não extensivos (dos ‘que apenas explicam o que já está contido no conceito do sujeito’ e dos outros). É por isso que ao compreender a forma lógica dos juízos estaremos também a compreender a natureza das sínteses de intuições sensíveis, i.e. a forma como percepcionamos objectos. Isto não faz dos juízos empíricos, tais como os juízos de percepção (por exemplo ‘A sala está quente’) juízos analíticos – o que acontece é que mostra que as formas lógicas do juízos estão em acção nos juízos empíricos. Além de ser formal no sentido acima explicado, a lógica, diz Kant, estuda as leis necessárias do entendimento. O que é que isto quer dizer? Uma interpretação possível é a seguinte: para Kant a lógica não é nem uma investigação metafísica da natureza da realidade20, nem uma descrição psicológica da forma como os humanos raciocinam – a lógica é uma articulação dos princípios formais constitutivos do pensamento21, e por isso mesmo, enquanto tal, será a fonte, ou referência, da ontologia. Fiz reparos gerais sobre o estatuto da lógica em Kant, relativos ao sentido de ‘formal’, à não restrição ao domínio da analiticidade e à finalidade da explicitação das leis necessárias do entendimento. Olhemos agora para a especificade do que é Cf. Kant, Jäsche Logik, 535: “In present times there has been no famous logician, and we do not need any new inventions for logic, either, because it contains merely the form of thought.” 20 Ao contrário do que é o caso em Aristóteles ou Leibniz, para quem a lógica está fundamentada na ontologia, para Kant, em contraste, a lógica será, por ser a articulação dos princípios formais constitutivos do pensamento, a fonte dos conceitos ontológicos. 21 Cf. Conant 1991, o artigo em torno do qual organizámos em 2011 a conferência The Logical Alien – para Conant isto persistiria em Frege e seria desenvolvido em Wittgenstein, e opor-se-ia a concepções psicologistas de lógica que se encontram desde Descartes a Quine. 19 dito vir da lógica e estar completo: a tabela dos juízos. Uma das razões para intérpretes de Kant desconsiderarem a tabela dos juízos é, como já fiz notar, o facto de ser suficientemente claro o quão desactualizada é a concepção kantiana de lógica. Exactamente o quê, então, olhando a partir de hoje, nos parece como diz Boyle, slightly amusing, ligeiramente divertido, nisto? Ligeiramente divertido é ver Kant, com todo o seu génio, satisfeito com tão pouco, apenas um fragmento, um fragmento esconso, daquilo a que hoje chamamos lógica, e ainda mais pensando convictamente que nada de novo poderia vir desse lado. Eis alguns dos traços enumerados por Boyle do olhar pouco actualizado de Kant sobre a lógica: 1. Um foco em inferências envolvendo juízos categóricos do tipo Todos (ou alguns ou nenhuns) os As são (ou não são) Bs (em que um conceito do predicado determina um conceito do sujeito) 2. O facto de serem esses os juízos que ele vê como logicamente simples, ao contrário da visão standard que os trata como proposições complexas, envolvendo quantificação e composição verofuncional: ‘Todos os As são Bs’ teria a forma (x) (AxBx) 3. O facto de não dar atenção, ou dar pouca atenção, a proposições tipo Fa que hoje se tenderia a ver como simples e fundamentais 4. O facto de ter uma visão muito limitada daquilo que constitui uma prova (lógica): Kant pensa em termos de silogismos, e pensa que um silogismo tem de ser constituído por duas premissas e um terceiro juízo que será a conclusão; não pensa em termos de derivação de um teorema num sistema formal. A isto acresce o facto de Kant ter uma estranha forma de conceber os juízos negativos como uma forma específica de juízo (de qualidade), por contraste com conceber a negação como conectiva lógica, uma operação sobre o valor de uma proposição, e acima de tudo o facto de a sua forma primitiva de conceber a quantificação o deixar torna incapaz de representar relações, juízos multiplamente quantificados. Poder-se-ia continuar, mas a ideia básica, consensual para muitos estudiosos do campo, é que Kant é um momento perfeitamente indiferente na história da lógica, um momento em que nada de relevante se passa. É razoável não nos esquecermos destes detalhes quando queremos perceber por que é que um contemporâneo nosso fica slightly amused com a visão kantiana da lógica, e decide ignorá-la. Mas o ponto de autores como Longuenesse e Boyle é que essa sobranceria daqueles que vieram depois fecha a porta à compreensão daquilo de que Kant falava quando caracterizava a lógica, nomeadamente quando dizia que ela estudava as leis necesárias do entendimento em termos de poderes ou faculdades mentais, e portanto de actividade do entendimento. 4. De A a B (na Crítica da Razão Pura) Kant afirma explicitamente numa famosa nota ao prefácio dos Fundamentos Metafísicos da Ciência Natural (1786), uma nota que Longuenesse toma como motivo logo no início do seu livro22, que o argumento da dedução transcendental das categorias da edição A poderia ser reformulado deduzindo-o de uma definição previamente determinada de juízo em geral. E é isso que Kant faz na edição B da Crítica: reformula o argumento, deduzindo-o de uma definição previamente determinada de juízo. Longuenesse é (ao contrário de, por exemplo, Heidegger) uma ‘fã’ da edição B. Como se sabe, aquilo que faz de alguém como Heidegger um fã da edição A é o papel da imaginação, que ele persegue na descrição psicológica da tripla síntese. Ora isso é algo que Longuenesse considera ter sido ultrapassado com sucesso na edição B. Não que ela não considere importante passar pela tripla síntese da edição A (síntese da apreensão na intuição, síntese da reprodução num produto da imaginação, síntese do reconhecimento no conceito): o Capítulo 2 do seu livro (The threefold synthesis and the mathematical model) é dedicado quase na totalidade a analisar e discutir essa tripla síntese. Mas se a edição A é interessante, segundo Longuenesse, é para ver Kant discutir com os empiristas e falhar, tendo de arranjar uma via alternativa, que é precisamente a via explorada na edição B, em torno do juízo. Uma forma útil de situar a leitura que Longuenesse faz da Crítica da Razão Pura em Kant and the capacity to judge é colocá-la em contraste com outros intérpretes de Kant; ora Heidegger é particularmente importante aqui: sem aceitar o seu foco, Longuenesse aceita muitas das suas teses específicas. Ao contrário de Longuenesse, nem Heidegger, nem Strawson, nem neo-kantianos como Hermann Cohen são fãs da tabela dos juízos. Vejamos porquê. No caso de Cohen e dos neokantianos, a razão é o facto de pensarem que o importante são as categorias, já que 22 Longuenesse 1998: 8. é em função delas que se pode ler a Crítica da Razão Pura como uma obra de epistemologia da ciência natural. No caso de Heidegger, a razão é o facto de pensar que o que é importante é a imaginação; só isso que lhe permite ler a doutrina da imaginação transcendental como uma analítica da finitude, e ver a Crítica da Razão Pura como um exercício de investigação da relação consciência-tempo. Já Strawson pensa que o importante são as relações categorias – experiência. A tese básica de Longuenesse é, pelo contrário, que o importante é o juízo; o juízo é importante acima de tudo porque não não há nenhuma unidade da autoconsciência, nenhumas categorias em relação com a auto-consciência estabelecendo a objectividade do conhecimento, que sejam prévias ao esforço, conatus, em direcção ao juízo23. O juízo é pois a verdadeira chave da Crítica da Razão Pura. Vou então finalmente procurar identificar de forma directa e sumária os traços gerais da interpretação que Longuenesse faz da Crítica da Razão Pura. O primeiro é a importância central do juízo. O segundo é o foco na Dedução B, como formulação a preferir do argumento central da Crítica, o argumento a favor da aplicabilidade das categorias à experiência. O terceiro é considerar que os pilares da Dedução B são, do lado do entendimento, as formas lógicas do juízo e do lado da sensibilidade a synthesis speciosa (síntese da imaginação, em contraste com a synthesis intellectualis) e a doutrina do sentido interno. Finalmente, o quarto é a ideia segundo a qual uma releitura da Estética Transcendental (do estatuto das formas da intuição, especialmente do tempo) faz parte do argumento da Dedução B. São estes traços que podem oferecer-nos instrumentos para aplicações de Kant a discussões contemporâneas sobre consciência, auto-consciência ou percepção. 5. Será Kant um conceptualista ou um não-conceptualista? Há muito a dizer aqui, vou dizer muito pouco, o meu mote é o seguinte: é interessante constatar que, quando se traz Kant para a arena dos debates contemporâneos em que muitas pessoas aqui presentes estão interessadas, ele é considerado quer um conceptualista quer um anti-conceptualista, ou nãoconceptualista. O que pode isso querer dizer? Para responder temos de procurar 23 Longuenesse 1998: 394. compreender o que tem Kant a dizer acercade conteúdo e consciência, o que significa, continuando a seguir Longuenesse, pôr em conjunto o que é dito sobre juízo e o que é dito relativamente a questões como a unidade sintética da apercepção, e o estatuto desta, o sentido interno, a imaginação (transcendental, synthesis speciosa, que é, repito, um dos grandes assuntos do livro de Longuenesse), e também acerca algo de que não vou falar mas é importante no livro: o estatuto relativo dos juízos de percepção e dos juízos de experiência (Longuenesse dedica a este assunto todo o Capítulo VII; Juízos de percepção são juízos para mim, no meu presente estado de consciência, juízos de experiência são juízos ‘para toda a gente’)24. Vou então resumir (demasiado...) aspectos importantes, e controversos, da leitura de Longuenesse. No horizonte está a ideia segundo a qual a análise pressupõe sempre a síntese25. A questão passa então a ser: e a síntese é função de quê ou de quem? Que são juízos ‘já prontos’ que nós classificamos como ‘analíticos’ ou ‘sintéticos’ é bem conhecido. O que é importante notar é que para se poder proceder a tal classificação o pensamento tem de ter estado já em marcha. Ora qualquer combinação da multiplicidade dada requer a intervenção de uma faculdade activa de síntese para poder ser levada a uma forma discursiva, para ser ‘reflectida segundo conceitos’. O que Longuenesse pensa que Kant defende é que as formas lógicas dos juízos são formas de uma síntese que deve ocorrer antes de qualquer análise discursiva, antes de qualquer classificação: essa síntese é requerida para as representações sensíveis dos Xs que podem ser reflectidos sob conceitos: «Uma razão maior para o mal-entendido generalizado acerca do papel das formas lógicas do juízo como ‘fio condutor’ para a tabela das categorias é o facto de os comentadores negligenciarem a sua função nas actividades de ‘comparação, abstracção, reflexão’. Se tomarmos esta função em consideração, ela ilumina cada passo da primeira Crítica. De facto, poder-se-ía resumir o argumento da seguinte maneira: considerese as formas da análise daquilo que é dado na sensibilidade (as formas de ‘comparação, abstracção, reflexão’, - as formas lógicas do juízo) e terse-á a chave para as formas da síntese que deve ocorrer previamente à análise, nomeadamente a síntese requerida para a representação sensível dos Xs que podem ser reflectidos sob conceitos de acordo com 24 25 Cf. neste mesmo volume o artigo de João Alberto Pinto. Longuenesse 1998: 64. as formas lógicas dos nossos juízos. Consequentemente, ter-se-á também a chave para o significado e o papel das categorias, conceitos que ‘representam universalmente’ as diferentes formas desta síntese.»26 Noutras palavras: antes de podermos fazer o que quer que seja com representações discursivas, por exemplo analisá-las (por exemplo formular um juízo analítico no sentido de Kant, como ‘Um triângulo tem três lado’), as coisas têm de ser dadas, e trazidas para debaixo de conceitos – ora isto, para Kant, é já o juízo (as formas lógicas do juízo) em acção (ele chama-lhe também ‘origem dos conceitos27). No livro – e esse é um trabalho minucioso que estou aqui a ignorar – Longuenesse analisa a contribuição de cada uma das funções lógicas para estas actividades. É neste sentido que a capacidade de julgar tem primazia relativamente às categorias: apesar de se poder dizer, como se diz vulgarmente, que os juízos são aplicações das categorias isso não quer dizer que as categorias estejam aí prontas a serem aplicadas; as categorias não são prévias à actividade do juízo; considerar que são prévias seria absolutamente inconsistente com a conhecida oposição de Kant ao inatismo. O que pensar então, nestas circunstâncias, acerca da unidade transcendental da apercepção, cuja correlação com as categorias permite, nas leituras mais frequentes do argumento da Dedução Transcendental, provar a objectividade destas? E o que pensar quanto ao estatuto do ‘eu penso’ que, numa das mais conhecidas formulações de Kant na Crítica da Razão Pura, tem de ‘poder acompanhar todas as minhas representações’? Dizer ou pensar ou julgar que representações ou cognições são minhas - o princípio da unidade necessária da apercepção – é uma proposição analítica. Isso é uma coisa. Mas o próprio pensar o serem minhas das minhas representações pressupõe uma síntese do diverso dado na intuição, e isso é uma coisa diferente. Esta unidade da apercepção é (originariamente) sintética segundo Kant, e isto é diferente da proposição analítica que exprime a minha propriedade das minhas cognições. Mais: esta unidade originariamente sintética da apercepção, que é um dos focos da Crítica da Razão Pura, não é para ser identificada de forma simplista com o sentido 26 27 Longuenesse 1998: 11. Kant, Logik §5. interno. O sentido interno é uma ideia com a qual, diz Longuenesse, Kant provavalmente ecoa Locke, que fala, no seu Essay Concerning Human Understanding da reflexão da mente sobre as suas próprias operações e representações. A ideia de sentido interno capta a intuição da mente por si própria, mas este captar não pode ser, em Kant, ao contrário do que é o caso em Locke, um espelhamento, um simples tomar de algo já em si determinado. Na verdade, apenas a doutrina da synthesis speciosa poderá pôr a ideia de sentido interno a funcionar plenamente, ao visar directamente o tempo como coordenação das afecções da mente por si própria. E assim colocará o tempo, como forma, ‘forma do sentido interno’, como sendo: 1. forma dos nossos actos de síntese, e 2. forma dos objectos eles próprios. A mente é receptiva ‘para dentro’ como é receptiva ‘para fora’; a forma da receptividade para dentro é o tempo. O tempo é assim a forma do sentido interno, não das coisas em si mesmas. Mas o sentido interno não é a Unidade Transcendental da Apercepção: aquilo que caracterizei pode ser chamado autoreceptividade, enquanto a apercepção a auto-consciência é consciência do acto de pensar, da espontaneidade do pensamento. Merleau Ponty afirmou de forma bem conhecida, na sua Fenomenologia da Percepção, que essa ideia de Kant é uma forma de reviver o racionalismo tradicional, enquanto suposição de que uma explicação total já foi conseguida em algum lado, uma garantia a priori já está dada de uma vez por todas, de que o sensível dado é acessível a conceitos a priori. Mas Longuenesse pensa que Kant não seria nunca um racionalista tradicional nesse sentido e que Merleau-Ponty está simplesmente enganado. O sensível garantidamente e de uma vez por todas acessível a conceitos a priori é para Kant algo que não existe fora ou para além do esforço, do conatus (o termo de Espinosa e Leibniz) em direcção ao juízo28. E o esforço tem como ponto de aplicação a síntese sensível; antes dessa ou sem essa não pode haver síntese intelectual, ou análise conceptual. Assim sendo, ver na espontaneidade da unidade transcendental da apercepção uma qualquer totalização racionalista, como faz Merleau-Ponty, é para Longuenesse, simplesmente uma má interpretação. É aqui que ganha corpo uma discussão específica (se se quiser, uma discussão travada sob o signo de Heidegger...): trata-se de uma discussão sobre a 28 Longuenesse 1998: 294. intelectualização ou não intelectualização do que acontece na mente quando há síntese, sobre intelectualização ou não intelectualização na consideração da relação pensamento-dado (uma parte importante e iluminadora da Crítica da Razão Pura é, para Longuenesse, de resto, a Anfibolia dos conceitos de reflexão, onde Kant analisa o erro de Leibniz – intelectualizar os fenómenos – e o erro de Locke – sensibilizar o entendimento –; o que ele faz na Crítica é procurar evitar quer o erro de Leibniz quer o erro de Locke). Voltemos agora ao ‘lado sensibilidade’ dos dois pilares da Dedução Transcendental na edição B que são o sentido interno e a imaginação. Considerando sentido interno e imaginação vamos procurar compreender aquilo a que Longuenesse chama ‘uma releitura da Estética Transcendental na Dedução Transcendental’; a ideia é que apenas este passo completa o argumento de Kant. A releitura tem a ver com o estatuto das (anteriormente, na Estética Transcendental, chamadas) formas puras da intuição. Elas tinham sido ditas serem intuições e não conceitos; o que interessa agora explicitar é a sua relação com a unidade da auto-consciência. Já fiz notar que uma grande parte do livro de Longuenesse é dedicado às relações entre a synthesis speciosa e a synthesis intellectualis – toda a Terceira Parte, na verdade. A ideia geral é que o que torna as sínteses intelectuais possíveis (os juízos, o trazer das cognições à unidade da auto-consciência) é a synthesis speciosa, a síntese transcendental da imaginação. E é a interpretação da imaginação que leva a uma reinterpretação do slogan de Kant com que começámos. Como já disse, a tese geral é que faz parte da Dedução B uma reinterpretação da forma como as coisas são dadas, relativamente ao que foi dito na Estética Transcendental. É então preciso considerar o papel da imaginação para o juízo. O que faz a imaginação aqui? Há imaginação produtora e reprodutora, esta última, da psicologia, não interessa Kant (claro que poderíamos dizer que a outra só existe se tivermos já ‘aceite’ a filosofia transcendental kantiana). O ponto mais importante, para Longuenesse, acerca de imaginação é o seguinte (e é por isto que sem aceitar a leitura de Heidegger em geral, ela se diz bastante próxima dele em vários pontos específicos): a acção do entendimento afecta; há um acto de espontaneidade que afecta a sensibilidade e que tem o juízo por finalidade e que é efeito da imaginação (synthesis speciosa). Podemos dizer: o entendimento em acção afecta o sentido interno. Logo: não se pode dizer que é o juízo que afecta a sensibilidade; a imaginação é ‘em direcção’ ao juízo e afecta a sensibilidade – estas duas teses são razoavelmente polémicas, e de qualquer forma mostram que Longuenesse não faz grande caso da famosa ‘raíz comum’ (à sensibilidade e ao entendimento) que tanto entusiasma Heidegger; ela critica mesmo aquilo que considera ser uma pressuposição em Heidegger, a pressuposição de uma unidade originária da qual as categorias emergem. Na sua leitura, não há nenhuma unidade original ou originária de coisa nenhuma, apenas espontaneidade em acto. De qualquer forma, chegamos assim à reinterpretação do slogan de Kant de acordo com a qual há uma unidade e não um paralelismo das sínteses: «Na Dedução Transcendental Kant não se limita a repetir a dedução metafísica. Antes, avança o fundamento da unidade das sínteses discursiva e sensível fazendo desta correspondência mais do que um mero paralelismo: um efeito em acto do entendimento sobre a sensibilidade, ou uma afecção da sensibilidade pelo entendimento. A razão para a correspondência entre formas lógicas do juízo (formas de ‘síntese intelectual’, meras formas do pensamento, reflectidas nas categorias) e sínteses sensíveis (que só elas podem dar um conteúdo às categorias, i.e. tornarem-nas conceitos de objectos possíveis) é que as últimas são os efeitos dos actos que tendem a produzir as primeiras. O acto de pensamento cujo resultado é o juízo, porque a sua finalidade é o juízo, afecta a receptividade e assim combina o sensível dado com vista aos juízos. É dessa forma que a capacidade de julgar introduz ordenamento na percepção sensível: não tornando claro aquilo que já era percebido de forma confusa (como Leibniz pensava) mas gerando os ordenamentos sensíveis (figura, sucessão, simultaneidade,…) que tornam possível a reflexão segundo as formas das combinações discursivas.»29 Já não há apenas paralelismo das sínteses como na dedução metafísica: trata-se aqui de unidade orgânica. E é isso que é particularmente importante para Longuenesse: a Dedução Transcendental só está plenamente conseguida quando se deu a releitura da Estética Transcendental, que é uma releitura do ser-dado, sendo que essa releitura passa por perguntar qual é o ser do tempo. A resposta é que o tempo é a forma do sentido interno; a mente intui-se a si própria pelo sentido 29 Longuenesse 1998: 200. interno; não há uma alma-objecto que se dê, apenas forma de uma auto-afecção – tempo. Tudo o que for representado por uma mente assim será representado no tempo. Penso que quanto a auto-consciência e juízo identifiquei alguns dos pontos mais decisivos da leitura de Longuenesse, pontos que são relevantes para a polémica em torno de idealismo e rejeição do idealismo (por Frege) que nos interessa no Projecto Bounds of Judgement. Não quero deixar de sublinhar que, na sua leitura de Kant, Longuenesse aceita ‘de Heidegger’ a grande importância da imaginação transcendental, da synthesis speciosa, que enquanto síntese pura e original forma a unidade essencial da intuição pura (tempo) e do pensamento (apercepção). Diferentemente de Heidegger, no entanto, ela insiste sempre que o esforço é em direcção ao juízo, i.e. à synthesis intellectualis. Como ficamos quanto a conteúdo e consciência nesta leitura de Kant? Ficamos com a ideia segundo a qual nem toda a actividade da imaginação é apoderada pelo entendimento. Nem todas as representações são conscientes; apenas as representações por conceitos são conscientes, são pensamento30. Daí a ideia segundo a qual o pensamento no sentido próprio é diferente de outras coisas a que podemos talvez chamar ‘mentais’: 31 por exemplo relativamente a animais, a ideia é que animais não reconhecem (erkennen) embora discriminem32. Assim, perante o célebre ‘Eu penso’ que deve poder acompanhar todas as minhas representações, a leitura de Longuenesse étal não significa que ele necessariamente, actualmente, as acompanhe. 7. O horizonte ontológico: pensar sobre pensamento e pensamentos, conceitos e objectos em Kant e em Frege. Vou apenas dizer um pouco – muito pouco – sobre os compromissos ontológicos de Kant segundo Longuenesse. O propósito é apenas ordenar algumas coisas, já que no nosso horizonte está comparar tais compromissos ontológicos com os compromissos de Frege acerca de objectos e conceitos. Antes de mais, as noções fregeanas de conceitos e objectos, tal como ele as desenvolve na fase mais madura Cf. Kant, Crítica da Razão Pura, B94; B146; B283. A320; B376-7. Longuenesse 1998: 65. 32 Kant, Jäsche Logik, Introd. VIII. 30 31 da sua obra, são noções do nível de Bedeutung, da referência, que é o nível das coisas aí, no mundo – elas foram objecto do seminário Frege and Frege Interpreters, no contexto da análise da evolução do pensamento de Frege quanto a Sinn. Só depois de termos isto claro é que podemos perguntar-nos como podem tais noções de objecto e conceito ser cruzadas com a questão das relações entre conceptual e não-conceptual na filosofia de Frege. Será assim para Kant? O que é pensar para Kant? Pensar é representar por conceitos, identificar e reconhecer objectos sob conceitos, e ao fazer uma análise da capacidade de julgar, Vermögen zu urteilen, estamos precisamente a dar substância a esta resposta. Pensar para Kant é algo de mediato, em contraste com a imediatidade da intuição, que no nosso caso é sempre intuição sensível, o que significa entre outras coisas algo que é feito via imaginação transcendental, esquematismo e sentido interno. Disse que pensar é identificar e reconhecer objectos sob conceitos (acerca de conceitos exploraríamos agora os conceitos puros, conceitos empíricos, uns sendo os ‘moldes’ dos outros). Devemos agora perguntar: mas o que é que significa objecto para Kant? Consideremos uma coleção de afirmações na Crítica: ‘objecto’ é isso no conceito do qual a multiplicidade de uma intuição dada é reunida; ‘objectos’ são objectos representados por nós de acordo com as formas lógicas do juízos, ‘objecto’ é um x que indica o lugar da intuição sensível no juízo. Um objecto é um algo em geral, não é nada de específico antes de ser pensado por conceitos33. Como devemos pensar a determinação deste objecto X? Ele é dado como determinável, ou dado determinado, omo unidade? Perante estas e outras definições, Longuenesse chama a atenção34 sobre os ‘dois aspectos de objecto’: 1. Objecto como aparência. Objecto é o objecto indeterminado de uma intuição empírica; o indeterminado por conceitos. Objecto é o determinável. 2. Objecto como fenómeno35. Um objecto é aquilo no conceito do qual a multiplicidade de uma intuição dada é unida (pense-se na tripla síntese da edição A, na síntese do reconhecimento no conceito) Em função disto Longuenesse atribui a Kant aquilo a que chama uma ontologia do pensamento imanente 36, recrutando aliás uma expressão do próprio Kant37. Como 33 Cf. Kant, Logik, comentado em Longuenesse 1998: 107. Longueness 1995: 69. 35 Kant, Crítica da Razão Pura, Secção 17, Dedução B (B137) 34 fica a tradicional ontologia? Esta ontologia, a ontologia de Kant, é uma ontologia feita via a lógica, e portanto via a capacidade de julgar. A pergunta que nos interessa fazer aqui é: será isto uma forma de idealismo? São de qualquer forma estas as ideias ontológicas de Kant que desejaríamos no Projecto Bounds of Judgement comparar com (o esboço de) uma ontologia fregeana. Recapitulo então brevemente alguns pontos do seminário Frege and Frege Interpreters que nos orientaram na nossa leitura inicial de Frege, de forma a poder enfrentar esta questão. Primeiro: há uma história do pensamento de Frege sobre objectos e conceitos, uma história que não pode ser ignorada. Objectos e conceitos são noções do nível da referência (Bedeutung), a serem consideradas em contraste e como contraparte da evolução do pensamento de Frege sobre sentido (Sinn). Em segundo lugar, o ‘conceptual’ não se identifica com os conceitos fregeanos, nem o ‘não-conceptual’ com os objectos fregeanos. De novo, uma das razões por que isto é assim é o facto de conceitos e objectos serem para Frege do nível de Bedeutung, a referência, i.e. o nível das coisas aí. Outra razão éo facto de a lógica e, assim, a linguagem, fazerem parte da história completa de Frege sobre pensadores e pensamentos, o que não é o caso em Kant. ‘Lógica’ significa algo completamente diferente para Frege; o mínimo que podemos dizer é que a lógica de Frege não é uma história acerca de acções do entendimento como em Kant (a questão da natureza da lógica em Frege e do que isso envolve numa teoria daquilo que é é pensar ocupa toda uma outra parte do Projecto38). Não vou hoje continuar a exploração o lado fregeano da comparação que nos interessa. Estamos a trabalhar nisso (estamos a trabalhar nas Lecture Notes do Curso Frege and Frege Interpreters com que começámos o projecto39). Queria terminar dizendo que uma das grandes utilidades do estudo de Longuenesse sobre a capacidade de julgar é o facto de ela diagnosticar desde logo dificuldades que vamos encontrar: aqui não vieram ao caso algumas das que são exploradas em Kant and the Capacity to Judge (como a suposição de que a intuição formal do espaço tem os traços do espaço euclidiano; a permanente inferência da continuidade nas formas da intuição para a continuidade da mudança na natureza; Longuenesse 1995: 394 (Conclusão). Kant utiliza-a numa carta de 1792, dirigida a Beck. 38 Cf. Travis & Miguens, The Logical Alien At 20, Harvard UP, no prelo. 39 É o volume Frege e Intérpretes de Frege (MIguens & Cadilha coords.) desta mesma colecção. 36 37 o uso desta continuidade na defesa da necessidade das conexões causais40). Terá no entanto começado a aflorar pelo menos uma dificuldade, que Longuenesse considera a maior: aquilo a que chama a ambiguidade da noção de ‘aparência’ e que considera estar ligada à internalização do objecto da representação na representação. É assim que ela própria fala do ponto de chegada da sua interpretação de Kant: aquilo que encontramos é uma internalização do objecto da representação na representação. E é isso que é mais relevante para a comparação entre Frege e Kant, cabendo a Frege o combate ao ‘idealismo’ que se infiltra imperceptivelmente na concepção kantiana de aparência e fenómeno e que se reflecte, como procurei mostrar, a partir da interpretação de Béatrice Longuenesse, na própria concepção kantiana de juízo. Referências Boyle, Matthew, “Kant on the Laws of Thought and the Power of Thinking”, in Travis & Miguens, The Logical Alien At 20, Cambridge MA, Harvard University Press, no prelo. Edgar, Scott, "Hermann Cohen", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2012 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/win2012/entries/cohen/>. Frege, Gottlob, 1918-1926, Logical Investigations, in Frege 1984, Collected Papers on Mathematics, Logic and Philosophy, ed. Brian McGuiness, Oxford, Blackwell. Frege, Gottlob, 1993, Der Gedanke, in Logische Untersuchungen, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht. Ginsbourg, Hannah, “Kant’s Aesthetic and Teleology”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu Heidegger, Martin, Kant et le problem de la métaphysique, Paris, PUF. Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, tradução Alexandre Morujão). Longuenesse, Béatrice, 1998, Kant and the Capacity to Judge– sensibility and discursivity in the transcendental analytic of the Critique of Pure Reason, Princeton, Princeton University Press. Longuenesse, Béatrice, 2006, Interview with Béatrice Longuenesse, The Dualist, Stanford Philosophy Department. Miguens, Sofia & Cadilha, Susana, 2014, coords. Frege e Intérpretes de Frege – Seminário de Charles Travis, Lisboa, Colibri. Smith, Nicholas, “Frege’s judgement stroke and the conception of logic as the study of Inference, not Consequence”, to appear in Philosophy Compass. Strawson, Peter, 1989 [1966], The Bounds of Sense – An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason, London, Routledge. Travis, Charles, 2013, Perception – Essays after Frege, Oxford, Oxford University Press. Travis, Charles, & Miguens, Sofia, The Logical Alien At 20, Cambridge MA, Harvard University Press, no prelo. 40 Cf. Longuenesse 1995: 399.