UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO EM POLÍTICA PÚBLICA E SOCIEDADE LEI JEREISSATI (1995a2003) GÊNESE, CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS: DAS CRÍTICAS ÀS PROPOSIÇÕES MARCOS VIEIRA Fortaleza – Ceará Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em Política Pública e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará – UECE, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO EM POLÍTICA PÚBLICA E SOCIEDADE LEI JEREISSATI (1995a2003) GÊNESE, CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS: DAS CRÍTICAS ÀS PROPOSIÇÕES ORIENTADOR PROF. DR. HORÁCIO FROTA MARCOS VIEIRA Fortaleza – Ceará UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO EM POLÍTICA PÚBLICA E SOCIEDADE LEI JEREISSATI (1995a2003) GÊNESE, CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS: DAS CRÍTICAS ÀS PROPOSIÇÕES ORIENTADOR: Prof. Dr. Horário Frota ALUNO: MARCOS VIEIRA Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Orientador ______________________________________________ 1o Examinador ______________________________________________ 2o Examinador ______________________________________________ 3o Examinador Defesa em ______ de ______ de______ AGRADECIMENTOS Inicialmente, agradeço aos meus pais, pelo incentivo ao estudo, especialmente minha mãe que, mesmo não estando mais entre nós, reconheceria mais este passo na minha aprendizagem. Ao meu filho Ravel Vieira e irmãos Marta, Márcio e Mário, pela compreensão e o afastamento físico em muitos momentos para a produção deste trabalho. Agradeço com muito carinho, a Angélica Luz, uma das pessoas que mais me incentivaram e ajudaram neste esforço de pesquisa. A todos os companheiros e companheiras de minhas experiências como gestor público municipal, tanto no Município de Itapipoca, como no Município de Maranguape; agradecimentos especiais a Antônio Pinheiro, Nair Soares, Flávio Paiva, Marcelo Silva, Virgínia Carvalho, Manoel Severo, Leandra Assunção, Cláudia Marinho e tantos outros. Agradeço a paciência do meu orientador, Prof. Dr. Horácio Frota, e a todos os professores do Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, em especial à professora Elba Braga Ramalho. Agradecimentos especiais à FUNCAP – Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo apoio dado a esse trabalho. Finalmente agradeço a todos os que contribuíram – artistas, produtores culturais, empresários entrevistados; responsabilizome diretamente pelas imperfeições que tenha cometido no decorrer desse trabalho. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 9 1 REVISÃO DE CONCEITOS .............................................................................. 11 1.1 Cultura e indústria cultural .................................................................... 11 1.2 Oriegens do mecenato privado ............................................................... 13 1.3 Mecenato e incentivo fiscal ..................................................................... 17 1.4 A economia da cultura ............................................................................. 19 1.5 Crescimento da oferta de bens culturais .............................................. 22 1.6 Vantagens e desvantagens do mecenato privado................................. 26 2 ESTRUTURA E CARACTERÍSTICAS DA LEI JEREISSATI ................... 39 2.1 Elementos comuns ao Fundo Estadual de Cultura e ao Mecenato Estadual ........................................................................... 39 2.2 A prioridade para os “produtos” culturais .......................................... 58 2.3 Os créditos publicitários do Estado e dos demais envolvidos no projeto cultural .................................................. 60 2.4 A prestação de contas .............................................................................. 61 2.5 As punições decorrentes de atitudes ilegais ......................................... 62 2.6 A possibilidade de recorrer das decisões .............................................. 63 2.7 O Fundo Estadual de Cultura-FEC....................................................... 64 2.8 As finalidades e os beneficiários ............................................................ 66 2.9 A gestão do FEC ....................................................................................... 70 2.10 Os recursos disponíveis no FEC............................................................. 72 2.11 O período de funcionamento do FEC .................................................... 74 2.12 O mecenato estadual ................................................................................ 75 2.13 A doação ..................................................................................................... 77 2.14 O patrocínio ............................................................................................... 80 2.15 O investimento .......................................................................................... 81 2.16 Os recursos ................................................................................................ 82 2.17 A gestão do mecenato cearense .............................................................. 86 2.18 O período de funcionamento .................................................................. 89 3 VISÕES DIVERSAS ............................................................................................ 90 3.1 Panorama nacional ................................................................................... 90 3.2 Os números da cultura ............................................................................ 92 3.3 Política cearense para o setor ................................................................. 93 3.4 As sugestões de especialistas ................................................................... 94 3.5 Ex-Secretário de Cultura, Paulo Linhares ........................................... 95 3.6 Ex-Secretário de Cultura, Nilton Almeida ......................................... 104 3.7 Entrevista com a atual Secretário de Cultura, Cláudia Leitão ...... 116 4 PERSPECTIVAS DAS LEIS DE INCENTIVO – DINHEIRO PARA A CULTURA .................................................................... 123 4.1 Leis ............................................................................................................ 146 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS – POR UMA POLÍTICA CULTURAL ....... 151 5.1 Indústria cultural ................................................................................... 153 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 155 ANEXOS ................................................................................................................... 160 INTRODUÇÃO A chamada globalização, além de enfraquecer e desmantelar estados nacionais, traz a mundialização da cultura, tão alardeada e anunciada nas últimas décadas. Como enfrentar o desafio de perceber a cultura não somente como fruição de poucos afortunados e intelectuais, mas como necessidade de uma visão nova das políticas públicas para o setor? Ao analisar a Lei Jereissati, de 1995 a 2003, período do seu surgimento, apogeu e declínio, motivado agora por uma reformulação contida no Plano Estadual de Cultura da SECULT, que tentará reorganizar a referida Lei, cujo que o mais importante é que com esse recorte histórico conseguimos visualizar as nuanças em três administrações diferentes. Inicio o trabalho fazendo uma revisão de conceitos fundamentais para o desenrolar da dissertação, como o de cultura e indústria cultural, mecenato e economia da cultura; tentando avançar conceitual e praticamente na construção de políticas públicas que venham a tratar a cultura como elemento fundante em nossa sociedade e nas prioridades das políticas públicas em nosso Estado e País, certamente um histórico das leis de incentivos fiscais no Brasil, que não pretende de maneira nenhuma detalhar todos os aspectos históricos relativos ao tema, mas, dá alguns sinais que facilitam a localização histórica em nosso País e em nosso Estado. Baseado na única pesquisa, feita sobre a economia da cultura no Brasil pela Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, houve possibilidade de, efetivamente dimensionar os impactos da cultura no Brasil, e, principalmente, captar as perspectivas dessas atividades em nosso País. No segundo capitulo, analisamos gênese, estrutura e características da Lei Jereissati; neste momento, o trabalho do professor Humberto Cunha, como advogado, operador do Direito, foi importantíssimo para que pudesse defrontar nossa análise de cunho mais qualitativo e sociológico ao seu esforço de detalhar juridicamente a Lei de Incentivo Fiscal à cultura do Ceará – Lei Jereissati. Certamente a experiência do autor como secretário de cultura de Guaramiranga, cidade serrana do Ceará, enriqueceu mais ainda sua análise e possibilitou que tivéssemos a possibilidade de expor um pouco dos resultados de entrevistas com artistas, produtores e empresários sobre algumas dificuldades com a Lei Jereissati, assim como refletir criticamente sobre alguns problemas e imperfeições. O que Humberto Cunha realizou como jurista destacado do Direito cultural conseguiu-se se detectar com depoimentos. Cabe-nos destacar que o nosso interesse não é de maneira nenhuma identificar a Lei Jereissati como experiência maléfica para a cultura do Ceará, ao contrário, o esforço é de detectar imperfeições e problemas, e ousar indicar proposições para o aperfeiçoamento da referida Lei para o engrandecimento de nossa cultura. No capítulo três, várias perspectivas sobre a temática que envolve a Lei Jereissati, desde o implementador, Paulo Linhares, passando pela administração de Nilton Almeida, até chegar à administração de Cláudia Leitão, atual Secretária. As opiniões, muitas divergentes, propiciaram ter um painel das visões variadas em cima da temática em questão e enriqueceram muito o trabalho. As perspectivas contidas na quarta parte da dissertação é a tentativa de expor, mesmo que sucintamente, as várias possibilidades das leis de incentivo no Brasil e em específico no Ceará, tanto com a reforma tributária, elaboração do Plano Estadual de Cultura, a quase total paralisação da Lei Jereissati no Ceará e a possível reativação em novos moldes previstos no Plano Estadual de Cultura, fruto de um encontro intitulado Cultura XXI, que contou com vários setores culturais do Estado e muitos encontros no interior, visando também a fundamentar estratégias mais propícias para a cultura no Ceará e logicamente para a reconstrução da proposta da Lei Jereissati; porém, o mais importante neste capítulo é a tentativa de superar as críticas e ousar nas proposições. Este é o maior desafio. Nas conclusões do trabalho, mais uma vez reafirmamos o caráter incompleto do trabalho, mas, novamente, explicitamos o esforço de transformar as conclusões num momento de firmar propostas exeqüíveis para a incrementação da Lei Jereissati; e, quem sabe, fortalecer a idéia de uma política cultural em que o incentivo fiscal seja uma parte complementar importante, não a alternativa, e o orçamento estadual contemple a cultura em sua dimensão estratégica e de pilastra para um desenvolvimento sustentável e sadio. 1 REVISÃO DE CONCEITOS 1.1 Cultura e indústria cultural Ao iniciar esse trabalho, faz-se necessário entrar no labirinto complexo de um conceito de cultura, ou vários, de acordo com o enfoque que se queira dar. Dentro do que nos propusemos, partiremos de uma definição de Cultura utilizada pela UNESCO,1 que tenta traçar ações estratégicas que a insiram no panorama político do Brasil. Segundo essa orientação, cultura pode ser entendida como um conjunto de características distintas, espirituais, materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Abarca, além das artes e das letras, as atividades, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Ela é o modo de vida distintivo de um povo, grupo ou sociedade. A cultura a tudo se vincula e aí está seu papel único, transformador e estruturante.2 Essa orientação dada pela UNESCO aproxima-se muito da tradição antropológica de definir cultura em sua dimensão mais ampla e como manifestação material e imaterial do indivíduo e do seu grupo social.3 Nosso trabalho, contudo, pretende identificar os agentes culturais e suas relações com as políticas públicas da área cultural, delimitando-os dentro das suas relações com a realidade que o circunda e são eles: agentes culturais, os grandes interessados em fomentar a diversidade, a manutenção de uma cadeia produtiva, a informação aos profissionais e o intercâmbio dos elementos do mercado e da cultura em geral, e procurar identificar os grupos que integram esse segmento. Cada um desses agentes possui um papel distinto, complementar e fundamental na composição de um setor cultural rico e produtivo, que contribua para o desenvolvimento social e econômico do País: criadores e produtores culturais: artistas, criadores; produtores, técnicos e demais profissionais envolvidos com o fazer cultural; organizações culturais: centros culturais, fundações, organizações culturais públicas, privadas e do terceiro setor; empresas investidoras – empresários e profissionais de empresas envolvidos com o investimento em cultura; poder público – órgãos do governo e os profissionais da gestão pública de cultura, responsáveis pela formulação e gestão 1 Organização das Nações Unidas Para a Educação, Ciência e Cultura. 2001. p. 21. 3 Ver os trabalhos de toda a tradição antropológica. 2 UNESCO; 12 de políticas culturais; imprensa cultural – veículos de comunicação de conteúdo cultural, jornalistas e críticos do setor; meio acadêmico – estudiosos sobre o tema; público de cultura – todos que devem experimentar e vivenciar a cultura.4 O capitalismo tardio brasileiro é denominado de pós-moderno (JAMESON, 1996), sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) ou ordem do simulacro (BAUDRILARD, 1995), que as indústrias de bens simbólicos alcançam um local estratégico. Não sem razão, a indústria cultural e seus produtos vêm recebendo renovada atenção de pensadores das mais diversas áreas (Antropologia, Economia, Sociologia, Comunicação, Psicologia) e no cruzamento entre elas.5 A cultura neste trabalho terá um recorte voltado pra sua dimensão econômica, sendo meramente operacional, pois bem sabemos da impossibilidade de separar esta dimensão de outras(simbólicas, estéticas e ideológicas).6 A “indústria cultural” é concebida por Adorno e Horkheimer, em 1947 e traduzido no Brasil com o título de Dialética do esclarecimento.7 De um modo geral, a teoria crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt é um instrumento teórico importante para a compreensão e crítica a essa racionalidade cínica e tecnicista que impera nesses tempos dos novos liberalizantes da economia e da realidade sociocultural (JIMENES, 1977, p. 28). A industrialização da cultura é a faceta da barbárie moderna, a ocupação do mundo da cultura pelo mundo administrado; criando uma mercantilização exacerbada vinculando-a a uma lógica mercantilista e racionalizada. Os produtos da indústria cultural são incorporados pelo mesmo conceito que qualquer bem de consumo possui no mercado (RÜDIGER, 1999, p. 17).8 A cultura industrializada, cultura de massa, segundo Edgar Morin, tem uma conotação diferenciada pelo autor francês, que reconhece nos produtos do mass culture o que ele denomina de Terceira Cultura; uma cultura não apenas tão legítima 4 Ver o IP – Instituto Pensarte – IP atua incisivamente na discussão, análise e proposição de políticas culturais, por considerá-las componentes essenciais na estruturação social e base para o desenvolvimento do País. A política cultural pode ser entendida como “programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas”, como nos ensina Teixeira Coelho. É por meio de políticas culturais bem elaboradas que se fazem possíveis a plena atuação de todos os agentes culturais e o desenvolvimento da espiral cultural. 5 BARBALHO: 2003. P 09. 6 Idem. P.10 7 OP. Cit. BARBALHO: 2003 . P.10 “ O conceito de indústria cultural foi elaborado por Adorno e Horkheimer para demarcar terreno com o de cultura de massa, uma vez que possibilita tanto a idéia de uma cultura surgida no meio da população, detentora de seu processo produtivo, quanto a de uma cultura de acesso democratizado”. 8 Idem. 13 quanto as clássicas e as nacionais, mas que representa “ a corrente verdadeiramente maciça e nova deste século” (MORIN, 1981, p. 16). Ao contrário de Adorno e Horkheimer, Morin vê na mercantilização da cultura um aspecto secundário. Na realidade, se mercadoria ou não, o que determina a terceira cultura é a introdução da técnica na sua produção, ou seja, por ser” produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial” (MORIN, 1981, p. 14). Sem dúvidas, o trabalho de Alexandre Barbalho9 faz um apanhado muito bem feito das categorias básicas dos frankfurtianos e da crítica de Morin, acentuando muito bem o fato de que o último é imprescindível para o estudo da indústria cultural, sem cair numa apologia da cultura de massas. Barbalho traz também a necessidade de compreender a indústria cultural como participante direta da acumulação de capital, na medida em que, ao permitir a ampliação da produção de bens culturais, possibilita, em um primeiro momento, a satisfação de novas necessidades nos setores de maior poder aquisitivo para depois expandir este consumo para as camadas sociais médias e baixas. Para finalizar, trazemos a contribuição do francês radicado no Brasil, Alain Herscovici, ao ressaltar o valor simbólico do bem cultural, indissociável de seu valor econômico. Em seu livro Economia da cultura e da comunicação, Hersovici traz, entre outras, a seguinte hipótese: “ A função do produto cultural é produzir sentido: o valor simbólico é determinante e precede, obrigatoriamente, o valor econômico (HERSOVICI, 1995, p. 32).10 As contribuições de Hersovici são muito pautadas nas obras de Pierre Bordieu, onde se coloca a importância de discutir o papel da legitimação e diferenciação dos bens culturais na sociedade capitalista, bem como de reprodução e manutenção dos poderes políticos. Estas questões podem ser tratadas em outras oportunidades, o que nos obriga a reafirmar a impossibilidade de trabalhar os aspectos econômicos isolados do simbólico e do político.11 1.2 Origens do mecenato privado Não pretendemos fazer um histórico detalhado da história do mecenato12 brasileiro, enquanto o Estado foi o grande e único mecenas das artes no Brasil, pelo 9 BARBALHO: 10 Idem. 2003. P. 24 /25 11 Idem. P.30. origem vem da Roma antiga, de Caius Cilnius Mecenas, ministro de Caio Júlio Augusto, imperador de Roma. Segundo o advogado carioca Cândido Mendes: Caius mecenas como estrategista de talentos 12 A 14 menos desde o início do século XIX. Com a criação da Biblioteca Nacional, em 1810, por D. João VI, o mecenato privado teve escassa ou nenhuma expressão entre nós. Só a partir dos anos de 1940 e 50 do Século XX, ele começou a surgir e, assim mesmo, ficou restrito a alguns poucos empresários que se projetaram inicialmente como colecionadores particulares, às vezes, mais conhecidos por suas excentricidades do que pelas importantes obras de arte de que eram possuidores. 13 O desenvolvimento cultural brasileiro difere bastante daquele dos Estados Unidos, por exemplo, onde, desde fins do século XIX, o mecenato privado e a filantropia começaram a ganhar importância, ajudando a estabelecer uma tradição que culminaria, nas primeiras décadas deste século, na criação de instituições tão importantes como a Fundação Rockefeller, a Universidade de Chicago, a Guggenheim Memorial Foundation, o Instituto Rockefeller de Pesquisa Médica, o Museu Guggenheim, além de iniciativas das famílias Vanderbilt, Morgan e Carnegie, às quais se juntaram, mais tarde, a Ford e a MacArthur Foundations, a Chase Manhattan Collection, o Museu Whitney e outras menos conhecidas (NAVAS, Cássia, 1999). Se o sentimento de responsabilidade por sua comunidade e a atitude de não-dependência de indivíduos e organizações diante do Estado são, certamente, traços marcantes da cultura americana, não se deve esquecer de que, na origem desse mecenato privado, teve papel crucial a introdução, já em 1917, de generosa legislação de incentivo fiscal à cultura que induziu a sociedade americana a consolidar uma cultura de mecenato, particularmente entre os indivíduos, isto é, as pessoas físicas que, segundo a legislação de tax deduction, descontam 100% dos recursos que se destinem a projetos de seus artistas ou instituições culturais preferidos. A legislação norte-americana de incentivo fiscal à filantropia, em cujo âmbito estão incluídas as artes, só mudou, no que tange aos descontos permitidos às empresas ou corporações privadas, em 1986, isto é, quase setenta anos depois da sua introdução, quando um vigoroso mercado cultural já estava consolidado naquele País e, ainda assim, manteve-se o princípio de múltiplos, é o responsável, entre 74 a.C. e 8 a.C , por uma política imediata de relacionamento entre governo e sociedade dentro do império. Para mecenas, as questões de poder e da cultura são indissociáveis e cabe ao governo a proteção às diversas manifestações de arte. Na equação de trocas, cabe à arte um papel no âmbito desse poder. Mecenas entende que o poder necessita se fazer cercar da criação artística e do pensamento, na busca de sua legitimidade. Neste sentido, são formados e mantidos os círculos de eruditos que gravitam em torno ministro e do governo. Cabe a este círculo a intermediação das idéias e ações imperiais junto à população. Por sua influência e prestígio junto aos cidadãos, os eruditos emprestam credibilidade, ao mesmo tempo em que disseminam a cultura imperial. Por meio da implantação do que se convencionou chamar de “maneira grega de pensar o poder no coração do Império Romano”, Mecenas arquiteta um dos mais sutis e eficientes sistemas de legitimação do poder da História. Ao transformar filosofia e arte em pensamento oficial, o ministro da propaganda de Augusto inaugura formalmente uma relação que iria prosperar nos séculos seguintes. 13 WEFFFORT, Francisco e SOUZA, Márcio. Um olhar sobre a cultura brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1999. 15 deduções estabelecidas pela legislação de 1917, aliás, ampliado após o segundo pósguerra. Tão importante quanto isso, no entanto, foi o fato de a legislação americana do início do século impedir a existência ou a formação de trustes econômicos, o que obrigou empresas como a Standard Oil, de propriedade de John D. Rockefeller, por exemplo, a dividir o conglomerado em 1911 e orientar os seus proprietários a investirem parte significativa de sua fortuna em artes e filantropia. Esses exemplos mostram o poder de indução de leis favoráveis à cultura, mesmo em contextos sociais complexos e competitivos, para a formação de fenômenos como o mecenato privado. Haja vista que, em 1995, por exemplo, as doações filantrópicas feitas por corporações, fundações e indivíduos, nos Estados Unidos, alcançaram a cifra astronômica de 150 bilhões de dólares, dos quais 7%, isto é, 10,5 bilhões foram destinados às artes e humanidades. Mais surpreendente, no entanto, é o fato de que, desse total, 79,6% foram de doações feitas por indivíduos.14 No caso do Brasil, bastante diferente dos Estados Unidos, o mecenato privado só começou a dar os seus primeiros passos no fim dos anos de 1940 e início dos 50, quando surgiram exemplos como os dos empresários de origem italiana Francisco Matarazzo Sobrinho e Franco Zampari que, em 1948, criaram o Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, como preparação para as comemorações do IV Centenário da Cidade, em 1954. O acervo inicial do MAM resultou de doações de ambos e de outros mecenas privados que eles estimularam a seguir seu exemplo. Os dois ainda criaram, em 1948, o Teatro Brasileiro de Comédia e a Cinemateca Brasileira e, em 1949, a Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Além disso, Cecillo Matarazzo, como o primeiro era conhecido nos meios artísticos, teve papel importante na criação da Fundação Bienal de São Paulo, em 1951, a mais importante mostra de artes plásticas da América Latina e uma das mais conceituadas do mundo; também atuou na formação do Museu de Arte Contemporânea – MAC, hoje pertencente à Universidade de São Paulo, quando ele, Zampari, e outros diretores do MAM desentenderam-se, provocando a divisão do acervo original em duas partes, a segunda delas sendo destinada ao MAC; mas não é um acaso que São Paulo, o maior centro industrial e econômico do País, tenha sediado esses primeiros ensaios de formação de um mecenato privado. As experiências de outros Países confirmam que a associação entre pujança econômica e o fomento às artes é um padrão de desenvolvimento do setor. São Paulo conheceria a formação de outra importante instituição através do nascente mecenato privado. O prestigioso Museu de Arte de São Paulo – MASP foi criado pelo jornalista Assis Chateaubriand. Certos relatos a 14 IDEM. Ibidem. 16 seu respeito testemunham que não apenas doou algumas das obras mais importantes do acervo do museu em formação, mas que teria induzido outras pessoas de posses a fazê-lo usando um meio de pressão sobre elas bastante eficiente, embora discutível: como proprietário de uma das mais importantes cadeias de jornais brasileiros de sua época, os Diários Associados, pedia ou exigia a doação de obras de arte para o museu em troca da inserção de notícias em seus jornais ou de sua omissão, em casos de informações delicadas sobre eles. O caso é anedótico e provinciano, mas serviu para reforçar o nascente mecenato brasileiro. Depois, aos exemplos paulistas somaram-se, no Rio de Janeiro, outros como o de Paulo Bittencourt e Niomar Moniz Sodré, proprietários do Correio da Manhã. Eles criaram, em 1947, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM. E a partir de meados dos anos 50, outras empresas como a Shell, a Petrobrás e o Banco do Brasil interessaram-se também em investir em cultura como forma de divulgar os seus produtos e como meio de exercerem um papel socialmente relevante.15 Portanto há autores que avaliam de outra maneira essa postura empresarial: É absolutamente compreensível que, dentro dos interesses absolutamente imediatistas de mercado, o empresário não vá investir recursos numa atividade experimental ou de pesquisa de linguagem artística, interessando-se, quando muito, pela arte-produto já testada, de larga inserção na mídia e nem sempre de mérito artístico. Portanto, as leis de incentivo fiscal também concorrem para um certo modo mercantilista de fazer arte, sua vulgarização e todas as caricaturas, malefícios e distorções que daí advêm. O Estado brasileiro, que já cumpria de forma desleixada suas tarefas com relação à produção artística e cultural, vai se tornando cinicamente omisso. Todos sabemos que os recursos orçamentários e financeiros destinados ao fomento da atividade cultural, ora escasseiam , ora desaparecem, e pior, sob o abrigo dos diplomas legais passam a competir, em situação de evidente privilégio, buscando ele também, Estado, na iniciativa privada, os recursos financeiros de suas próprias políticas na área. O interlocutor, o arrecadador, o executor das políticas públicas ou será o empresário? (LEITÃO, 2003). São reflexões da professora Cláudia Leitão feitas anteriormente no artigo “A gestão estratégica e os novos significados da cultura no novo século”.16 E hoje, como Secretária de Cultura do Estado do Ceará, terá a oportunidade de reverter o 15 FERREIRA, Sérgio Dàndrea.O incentivo fiscal como instituto do direito econômico in Revista de Direito administrativo. Rio de Janeiro. Janeiro e março de 1998. 16 LEITÃO. Cláudia. Gestão cultural: significados e dilemas na contemporaneidade. Fortaleza. Banco do Nordeste. 2003, p.115. 17 grave quadro relatado. Certamente esses aspectos serão retomados, principalmente ao tratarmos mais especificamente da Lei de Incentivo do Ceará. O debate traz à tona, porém, visões que discordam dessa perspectiva ao tratar das leis de incentivo. Vejamos: (...) não considero acertadas as críticas dos produtores culturais de que as verbas da cultura estão nas mãos da iniciativa privada. O envolvimento entre o ente privado e o governo nas relações com produtores culturais e artistas criou uma profissionalização do mercado. Ora, Michelangelo cresceu em seu trabalho vivendo sob os auspícios de um mecenas e nem por isso deixou de fazer uma obra consistente e inovadora. Acreditamos que os artistas e produtores culturais brasileiros hão de chegar a esta profissionalização e aprender a utilizar o diálogo moderno (CESNIK e MALAGODI, 2002). Portanto o debate apenas começou e já deu para perceber o espectro amplo de visões sobre a temática. 1.3 Mecenato e incentivo fiscal Os exemplos brasileiros são escassos e não tiveram o impacto de seus similares americanos do início deste século, mas mostram que, se as condições para o estabelecimento de uma cultura de mecenato privado são mais difíceis, no Brasil, elas não são irremovíveis. Com efeito, em meados dos anos de 1980, após a democratização do País, o presidente José Sarney conseguiu introduzir, pela primeira vez na experiência brasileira, uma legislação de incentivo fiscal à cultura baseada em um anteprojeto de lei que tramitava no Congresso Nacional desde os primeiros anos da década de 1970. A legislação era bastante liberal e apenas exigia, para viabilizar a captação de recursos privados para os projetos culturais, que a instituição ou o produtor cultural solicitantes fossem previamente cadastrados pelo Estado, deixando as negociações sobre valores, formas de captação e uso dos recursos ao mercado, sem interferência do poder público. A Lei Sarney, como ficou conhecida, teve duração curta, de 1986 a 1990, mas estima-se que tenha canalizado, em seus pouco mais de quatro anos de existência, cerca de 110 milhões de dólares em apoio às artes e à cultura do País, embora não se conheça a distribuição desses recursos por sua origem e destino. A Lei, contudo, foi extinta, no início dos anos 1990, acusada de permitir ou facilitar fraudes, mas dois inquéritos administrativos ou judiciais sobre o seu funcionamento concluíram pela inexistência de qualquer irregularidade, segundo o próprio ex-presidente Sarney. 18 O ineditismo da Lei Sarney, mesmo com todas as limitações e imperfeições, vislumbrou a oportunidade de um mecenato marcado pela impessoalidade e como elemento de uma política pública mais ampla. Reside neste aspecto, todavia, uma questão muito séria da distorção que acontece no Brasil em relação às leis de incentivos fiscais nos âmbitos federal, estaduais e municipais que é o de limitar a política pública ao incentivo fiscal e isentar o Estado de suas responsabilidades, inclusive constitucionais, de garantir os direitos culturais ao todos. A experiência criou, de qualquer modo, uma perspectiva para a tradição que, desde meados do Século XX, começara a se estabelecer e, mais tarde, influenciou a legislação introduzida pelo secretário de cultura da Presidência da República, embaixador Sérgio Paulo Rouanet, em 1991, cuja maior diferença em relação à lei Sarney são os mecanismos que, doravante, passaram a exigir que qualquer projeto a beneficiar-se de incentivos fiscais sejam previamente submetidos ao Estado. Não deixa de ser curioso que um governo ultraliberal e eminentemente antiestatista, como o do início dos anos 1990, tenha patrocinado uma legislação às vezes vista como intervencionista, mas o papel atribuído por ela ao Estado, na aprovação de projetos, prevaleceu como política de parceria adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (WEFFORT, 1999.) A introdução dessa política mudaria o panorama cultural brasileiro contemporâneo. A partir de 1995,17 o Estado começou a deixar de ser o único mecenas da criação artística brasileira e as instituições culturais, os produtores e os artistas passaram a contar com novas fontes de financiamento de seus projetos. Isso resultou de mudanças na Lei Rouanet – chamada assim por causa do seu criador – cujo funcionamento, entre 1992 e 1994, foi muito precário, não tendo o seu volume de captação de recursos ultrapassado 6% dos quase 250 milhões de reais que o Estado disponibilizou como renúncia fiscal para o setor. De fato, a lei só pegou, como se costuma dizer na tradição brasileira, com as reformas de 1995, cujos principais objetivos foram: (a) ampliar o limite de descontos permitidos às empresas patrocinadoras de projetos culturais de 2 para 5% de seu imposto devido; (b) desburocratizar os seus procedimentos, dando agilidade a autorização para captação de recursos e, finalmente, (c) estimular a formação de um mercado de intermediação, isto é, de venda de projetos às empresas, segundo padrões profissionais, uma tarefa necessária, para a qual artistas e produtores nem sempre estão suficientemente preparados para desempenhar. 17 É importante perceber que essa é data também do surgimento da “Lei Jereissati” no Ceará. 19 Essas reformas foram fundamentais para atrair mais e novas empresas para o sistema de mecenato privado. Enquanto em 1994 elas não eram mais do que 72, em sua maioria bancos e empresas multinacionais, em 1995 elas somaram 235, pulando para 640 em 1996, e chegando a 1.125 em 1997. Nas novas condições da lei, a lista passou a incluir, também, pequenas e médias empresas, que não se limitavam estritamente ao Sudeste que, desde a implantação do mecanismo e traduzindo as enormes desigualdades da estrutura econômica, regional e social brasileira em seu funcionamento, tem sido a região mais privilegiada na captação de recursos privados para a cultura. Por outro lado, as iniciativas do governo para criar um mecenato privado mais vigoroso não se limitaram às empresas privadas, mas atraíram decisivamente as empresas públicas também.18 1.4 A economia da cultura De fato, desde 1995, por determinação do Presidente da República, os Ministérios de Comunicações, Minas e Energia, Fazenda e outros orientaram as suas empresas para despender parcela significativa de seus recursos de publicidade no patrocínio a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura. Isso transpareceu, por exemplo, nos resultados de uma pesquisa encomendada pelo Ministério sobre as relações entre economia e cultura, segundo os quais o apoio de empresas públicas à cultura é contínuo, depois de 1995, como mostra o gráfico 2. Isso, porém, beneficiou-se de uma conjuntura econômica e política particular, isto é, enquanto algumas empresas públicas, como Telebrás, Eletrobrás, Telesp, Petrobrás e outras tiveram, nos últimos anos, taxas de lucro que aumentaram o seu montante de imposto a pagar – podendo, assim, ampliar o seu investimento em marketing cultural – algumas ainda não tinham sido privatizadas e, em função de sua saúde financeira momentânea, converteram-se, como mostra o Quadro 2, nas campeãs do patrocínio cultural, no País, em 1997. A pesquisa, porém, sobre o impacto da cultura na economia, feita pelo Ministério da Cultura, mostrou que, ao longo do período 1990-1997, o maior incremento de recursos do mecenato privado veio de empresas privadas e não há indícios de que essa tendência estrutural vá estancar. 18 IDEM.Ibidem. 20 QUADRO I Participação de Empresas Públicas e Privadas no Mecenato Privado entre 1996 e 2001 Investimentos em Cultura – 1996 a 2002 21 QUADRO 2 20 MAIORES GRUPOS DE EMPRESAS QUE PATROCINARAM PROJETOS CULTURAIS EM 1997 POSIÇÃO INCENTIVADOR VALOR R$ 01 Telecomunicações Brasileiras S/A – Telebrás 44.149.622,73 02 Petróleo Brasileiro – Petrobrás 11.429.231,28 03 Banco Itaú S/A 10.869.929,32 04 Volkswagen do Brasil S/A 7.437.974,76 05 Banco Bradesco S/A 7.094.501,40 06 Centrais Elétricas Brasileiras – Eletrobrás 6.539.565,21 07 Banco Real S/A 6.114.065,06 08 Souza Cruz S/A 4.594.330,00 09 Banco do Brasil S/A 4.493.712,48 10 Banco Unibanco 3.494.350,25 11 Banco Nacional de Desenvolvimento Social 3.415.237,77 12 Cia. Brasileira de Distribuição 2.066.369,00 13 Fiat Automóvel S/A 2.049.373,00 14 Cia. Cervejaria Kaiser S/A 1.757.274,40 15 Gerdau S/A 1.732.034,14 16 TV Globo 1.730.450,50 17 Cia. Cervejaria Brahma 1.707.142,84 18 Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais – USIMINAS 1.657.801,68 19 Banco do Estado do Rio de Janeiro – Banerj 1.640.757,55 20 Sharp S/A 1.608.700,00 Fonte: Secretaria de Apoio à Cultura, Ministério da Cultura No conjunto, o aumento do número de empresas participantes do mecenato privado expressa outra face da moeda, isto é, a confiança da comunidade cultural brasileira na nova política de incentivos fiscais aos seus projetos. Com efeito, enquanto em 1994, último ano do governo Itamar Franco, o Ministério da Cultura recebeu cerca de 425 projetos que solicitavam autorização para captar recursos de empresas, esse número cresceu para 1.255 em 1995, 2.450 em 1996 e chegou a quase 4 mil em 1997. Isso se deve, entre outras coisas, à divulgação da lei e de suas vantagens pelo Ministério da Cultura, através da realização de vinte fóruns empresariais em diferentes regiões do País, com o objetivo de estimular a sua utilização pelo empresariado local.Como afirma um empresário ligado ao setor de telecomunicações: (...) parece que há um interesse do governo em profissionalizar o setor da cultura e nós empresários temos o maior interesse de participarmos desse momento. Acredito também que muitos ao ver o sucesso de alguns vai se interessar e quem ganha com isso é a cultura brasileira e os artistas que terão mais recursos para viabilizarem seus projetos (FOLHA DE SÃO PAULO; 23/05/1995). 22 A avaliação do mecenato privado brasileiro, contudo, tem de considerar, também, que não foi apenas o número de projetos apresentados ao Ministério da Cultura que cresceu, mas também a captação global de recursos de empresas privadas e públicas para a cultura. Enquanto 1994 a Lei Rouanet mobilizou pouco mais de 14 milhões de reais em apoio às artes – somando os recursos de renúncia fiscal aos de contrapartida das empresas –, em 1995, esse valor chegou a quase 60 milhões, ultrapassando em 1996 a casa dos 116 milhões, e alcançando em 1997 a cifra recorde de 199 milhões de reais. Isso não tem nada de irrelevante, ainda que seja insuficiente para satisfazer as necessidades da cultura brasileira, se se considerar que, no início dos anos 1990, a política de incentivos fiscais não era efetiva e que, em conseqüência das tentativas de desobrigar o Estado de suas responsabilidades com a área, os recursos públicos alocados para o setor, em 1991, não ultrapassaram 131 milhões de reais. 19 1.5 Crescimento da oferta de bens culturais O alcance social e político desses resultados têm sido insuficientemente ressaltado. Com efeito, a mobilização de artistas e produtores culturais brasileiros para usarem a lei Rouanet, traduzida no crescimento do número de projetos submetidos ao Ministério da Cultura entre 1995 e 1997, da mesma forma que a disposição de muitas empresas de investirem na área e se beneficiarem das vantagens do marketing cultural, é algo que só pode ser adequadamente avaliado ao se levar em conta a enorme massa de bens culturais que, nos últimos anos, vem sendo oferecida ao público brasileiro. Grandes exposições de artes plásticas, como as de Rodin, Monet, Di Cavalcanti, Claudel, Botero, Barroco brasileiro, Dalí e muitas outras, mostraram que está acorrendo uma pequena explosão cultural no País: mais de 3,5 milhões de pessoas foram vê-las, a maior parte tendo ido a um museu pela primeira vez na vida. Também a oferta de concertos de música erudita, espetáculos de dança e até de óperas aumentou sensivelmente o programa de música no parque em grandes cidades, tendo alcançado, às vezes, 100 ou 150 mil pessoas, e as óperas Carmina Burana, Aída, O Guarani e Lídia de Oxum atraído 15, 20 e até 50 mil pessoas aos estádios de futebol onde foram apresentados. Grupos e festivais de teatro ressurgiram ou consolidaram-se, como O Galpão, Tapa, Giramundo ou os Festivais de Bonecos de Canela, de Teatro de Curitiba, e de Dança em Joinville. O cinema brasileiro ganhou novo impulso e, desse modo, maior competitividade nas 19 WEFFFORT, Francisco e SOUZA, Márcio. Um olhar sobre a cultura brasileira. Rio de janeiro: FUNARTE, 1999. 23 mostras internacionais, produzindo mais filmes sobre o Brasil como Carlota Joaquina, Central do Brasil, O que é isso companheiro, Sábado e tantos outros que, em pouco mais de três anos, tiveram uma platéia de quase 9 milhões de brasileiros. A isso acrescenta-se o vigor de alguns setores da indústria cultural brasileira, como o fonográfico que, que 1997, teve um faturamento de quase 1 bilhão de reais, tendo comercializado cerca de 100 milhões de discos, 75% dos quais de música brasileira; ou como a indústria editorial, que alcançou uma produção anual de mais de 40 mil títulos, tendo as duas últimas bienais do livro, de São Paulo e Rio de Janeiro, sido visitadas juntas por mais de 2,4 milhões de pessoas. Em todas essas áreas, o mecenato privado patrocinou projetos culturais. Em anos recentes, uma onda de afeição pela identidade cultural brasileira também tomou conta do País, traduzindo-se no restauro do patrimônio histórico ou na recuperação da memória cultural, em todos os estados, como mostram os exemplos do Centro Histórico do Recife, o Pelourinho em Salvador, a Estrada Madeira-Mamoré em Rondônia, a Fortaleza de Santa Cruz em Florianópolis, a Biblioteca Nacional, o Forte Copacabana e a sede da Fundação Oswaldo Cruz no Rio, a Pinacoteca do Estado, a Estação Júlio Prestes e o Teatro São Pedro em São Paulo e a Igreja da Boa Morte em Goiás Velho; ou ainda a celebração dos trezentos anos de Zumbi e o resgate de músicas e danças indígenas feitas por artistas como Marluí Miranda. Ao mesmo tempo, multiplicaram-se, nos últimos quatro anos, obras de construção que, em pouco tempo, entregaram ao público novas e mais modernas casas de espetáculo, centros culturais, teatros e salas multiplex de cinema como o Teatro Alfa-Real, o Instituto Itaú Cultural e a Via Funchal em São Paulo, o Centro Cultural Cau Hansen em Joinville, o Centro Cultural Farroupilha em Porto Alegre, as salas multiplex da Barra no Rio e muitos outros. 20 Peculiaridade importante da cultura brasileira é, também, a mais de uma centena de prêmios que, anualmente, são distribuídos por governos ou por empresas a artistas e instituições culturais que se destacam pelo ineditismo, experimentalismo e virtuosidade do seu trabalho. O crescimento do mecenato privado e dos gastos públicos com cultura fez os prêmios se multiplicarem e, algumas vezes, aumentou o seu valor em dinheiro. Entre os mais importantes, destacam-se o Prêmio Moinho Santista, de 50 mil reais para literatura e ensaística; o Prêmio Camões, de 70 mil dólares para autores de língua portuguesa, dado pelos Governos brasileiro e português; o Prêmio Ministério da Cultura, de 25 mil reais cada um, para artes cênicas, música, artes plásticas, audiovisual, literatura, patrimônio e cultura popular; o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, de 20 WEFFFORT, Francisco e SOUZA, Márcio. Um olhar sobre a cultura brasileira. Rio de janeiro: FUNARTE, 1999. 24 120 mil reais, para três categorias de escritores; o Prêmio Nestlé, no total de 270 mil reais para várias categorias de estreantes e autor consagrado; o Prêmio Sharp de música, teatro e cinema; o Prêmio Shell de música; e ainda o Troféu Mambembe, da Funarte; o Rodrigo Meio Franco de Andrade, do IPHAN; os Machado de Assis, Arthur de Azevedo, Sérgio Buarque de Hollanda, Alphonsus de Guimaraens, Mário de Andrade, Paulo Rónai, Aloísio Magalhães e Monteiro Lobato, da Biblioteca Nacional; o Prêmio Coca-Cola de Comics; o Prêmio APETESP de artes cênicas e inúmeros outros de Estados, municípios e instituições ou empresas públicas e privadas. Eles representam, em primeiro lugar, o reconhecimento da sociedade brasileira aos seus artistas, mas fazem parte também dos meios disponíveis de financiamento da cultura brasileira. 21 Esse vigor cultural ocorreu sob o efeito da estabilidade econômica que o País conquistou nos últimos anos, e isso é algo que transparece dos dados apresentados no quadro 3 e no gráfico 3 abaixo. Eles mostram que, entre 1994 -um marco de referência cuja base de eventos não é muito baixa – e 1997, a oferta de bens culturais no Brasil cresceu, em quantidade, cerca de 898%!, isto é, uma taxa média linear anual de mais de 225%, como resultado da expansão dos meios de financiamento da cultura (WEFFFORT, 1999). Expansão da Legislação Estadual e Municipal de Incentivo à Cultura entre 1991 e 1998 GRÁFICO 1 Crescimento da oferta de bens culturais através do mecenato privado: 1992-1997 FONTE: Secretaria de Apoio à Cultura, Ministério da Cultura 21 FERREIRA, Sérgio Dàndrea.O incentivo fiscal como instituto do direito econômico in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. Janeiro e março de 1998 25 Observando-se o gráfico 1, chama a atenção o incremento verificado de atividades de certas áreas culturais, destacando-se, em particular, as atividades integradas, isto é, que envolvem mais de uma linguagem cultural, a área de audiovisual, humanidades e a área de patrimônio histórico e cultural. Essas áreas também foram relatadas como prioritárias para ações de patrocínio por empresas que investem em cultura, segundo a pesquisa de economia da cultura realizada, a pedido do Ministério da Cultura, pela Fundação João Pinheiro. QUADRO 3 Oferta de bens culturais, por áreas, através do mecenato privado: 1992-1997 ÁREA/ANO 1992 1993 1994 1995 1996 1997 CRESCIMENTO ARTES CÊNICAS 6 12 9 26 79 118 1.966 PRODUÇÃO AUDIOVISUAL 1 13 13 37 82 109 10.900 MÚSICA 2 13 10 24 71 108 5.400 ARTES PLÁSTICAS 1 7 9 12 37 58 5.800 PATRIMÔNIO CULTURAL 1 6 11 37 71 97 9.700 HUMANIDADES 1 3 11 25 62 103 10.300 ÁREAS INTEGRADAS 1 12 17 32 64 126 12.600 FONTE: Secretaria de Apoio à Cultura, Ministério da Cultura Essa vitalidade cultural origina, mais do que se está acostumado a admitir no Brasil, renda e emprego. A pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro permitiu estimar que a produção cultural brasileira movimentou, em 1997, cerca de 6,5 bilhões de reais, isto é, 1% do PIB do País e, mais significativo, que cada 1 milhão de real gastos na área cria 160 postos de trabalho diretos ou indiretos. A importância disso torna-se evidente quando se leva em conta que um dos resultados mais dramáticos do processo de globalização é o crescimento do desemprego, que aumenta em razão diretamente proporcional à introdução de alta tecnologia nas economias locais. Isso, porrém, não é apenas importante porque mantém o emprego de artistas e produtores culturais brasileiros, mas porque o mercado cultural cria mais postos de trabalho, diretos e indiretos, do que a indústria automobilística, de autopeças, elétrica e eletrônica do País. 26 Este capítulo mostra aspectos da explosão cultural que está ocorrendo no País, nos últimos anos, em conseqüência do crescimento do mecenato privado, e evidencia seus efeitos econômicos e sociais. Tão importante quanto isso, contudo, é o seu significado político. O mais importante objetivo do governo, na área, é a democratização do acesso da população aos bens culturais brasileiros, pois, além da cultura ser um modo de expressão dos diferentes grupos sociais que formam a Nação, ela é fonte de reconhecimento de suas identidades e, nesse sentido, é um pressuposto essencial da cidadania. Por isso, se é certo que o crescimento quantitativo não é o único, nem o mais importante indicador para se avaliar o desenvolvimento da cultura de uma sociedade complexa como o Brasil, seria equívoco maior, diante do insuficiente acesso da população brasileira de baixa renda à cultura e à educação, não utilizar o mecenato privado como ferramenta de política cultural para enfrentar o problema. Outra vez a comparação com a experiência internacional é útil. Ela mostra que, sem quantidade, é muito difícil alcançar-se qualidade no domínio das artes; assim, num País continental e tão diversificado regionalmente como o Brasil, seria desperdício o Estado não fazer aumentar a produção e a oferta de bens culturais através de sua política de parceria para a cultura. 1.6 Vantagens e desvantagens do mecenato privado A experiência brasileira de mecenato privado, contudo, não tem apenas virtudes. Existem objeções que sugerem uma pauta de problemas reais que exigem mudanças ou correção de rumo nos próximos anos. A primeira delas refere-se à concentração de recursos que um sistema de mercado, como o mecenato privado, acaba produzindo quando opera em uma sociedade de estrutura econômica, social e regional tão desigual como a brasileira. Como já mencionado, o efeito dessa tendência de concentração, no caso brasileiro, é que o Sudeste do País – e, particularmente, São Paulo e Rio de Janeiro – converteuse na região privilegiada de captação de recursos privados para a cultura. O problema preocupou o Ministério da Cultura desde 1995 e, embora algumas iniciativas tenham ajudado a atenuar a tendência concentracionista, isso ainda é insuficiente. De fato, enquanto em 1992 os recursos captados pelo Sudeste somaram 99% do total, esse percentual diminuiu para 85% em 1997. As outras regiões do País puderam, então, ficar com quase 15%, a região Sul sendo a maior beneficiária e a Norte conseguindo, pela primeira vez desde a criação do sistema, captar algum recurso para os seus projetos. 27 Esse enorme desequilíbrio mostra, em primeiro lugar, que o problema não tem solução no estrito terreno das políticas fiscais porque as empresas do Norte e do Nordeste, por exemplo, já se beneficiam de mecanismos de isenção fiscal ligados a programas de desenvolvimento dessas regiões e, por isso, têm pouca ou nenhuma capacidade de utilizar recursos de imposto de renda no apoio à cultura. Ao mesmo tempo, mesmo se o processo cultural qualifica a sociedade para perceber melhor a natureza das desigualdades e de suas causas – e, assim, para buscar a sua solução – não é plausível esperar que o problema possa resolver-se somente no terreno da cultura; ao contrário, os problemas de distribuição desigual de bens e recursos de produção cultural são, muitas vezes, conseqüência de distorções das estruturas econômica, regional e social que, como é sabido, passam atualmente por importantes transformações. A experiência recente mostra, contudo, que essa tarefa tomará mais tempo do que seria desejável (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1998). Por isso, além de divulgar as vantagens do mecenato fora do Sudeste e, assim, atrair a atenção de empresas privadas e públicas, cujas matrizes, mesmo se localizadas em São Paulo e no Rio, têm de articular-se com os mercados consumidores dessas regiões, é preciso fazer algo mais. Uma das políticas que terá cada vez mais importância, a exemplo de esforços já iniciados para criar eqüidade na distribuição de recursos do Fundo Nacional de Cultura entre as diferentes regiões do País, e da implementação de projetos de patrimônio e recuperação urbana, no Norte e no Nordeste pelo Ministério da Cultura, será indispensável aumentar os gastos a fundo perdido do Governo federal como forma de compensar o desequilíbrio gerado pelo mecenato privado. Nos últimos anos, esses recursos cresceram cerca de 140% mas precisam crescer mais ainda.22 A segunda objeção ao sistema de mecenato diz respeito às facilidades que a Lei Rouanet criou, desde a sua origem, para que grandes empresas possam investir os seus recursos fiscais em institutos ou fundações que, embora sem fins lucrativos, pertencem às próprias firmas investidoras. Argumenta-se que, enquanto os institutos ou fundações usam o patrocínio de suas empresas em suas próprias ações, artistas e produtores independentes não acolhidos por aquelas organizações perdem a oportunidade do apoio das empresas. Em última análise, isso implicaria uma disputa desigual pelos recursos, o que muitos esperariam que fossem disponibilizados em condições de igualdade para todos os competidores e não apenas para os institutos ou fundações. 22 IDEM. Ibidem 28 O problema é real e também ocupa a atenção do Ministério da Cultura. Por essa razão, ao considerar os planos anuais de atividades dos institutos, o Governo lhes tem solicitado a maior abrangência possível nas atividades, tanto em termos de áreas culturais como de regiões geográficas incluídas; e o Ministério também solicita que a contrapartida dos institutos aos benefícios fiscais sirva para que se ampliem efetivamente as oportunidades de acesso do público à sua programação cultural. Por outro lado, considerando-se que a criação dessas organizações decorre da própria lei, não seria razoável imaginar a criação de mecanismos de controle sobre a autonomia das empresas. Isso, porém, não é um impedimento para que o debate da questão, nos próximos anos, inclua, por exemplo, a meta de maximizar a qualidade e a extensão dos bens culturais oferecidos ao público. Finalmente, existe uma objeção que, a despeito de revelar o desconhecimento de seus formuladores sobre os efetivos mecanismos de decisão do mecenato, precisa ser considerada por causa da questão de fundo que implica. Trata-se da idéia segundo a qual o mecenato privado reservaria ampla margem de poder de decisão, quanto ao conteúdo e à forma dos produtos culturais beneficiados – para não falar dos seus custos – às empresas patrocinadoras que, nessas circunstâncias, somente consultariam os seus interesses comerciais, deixando de lado considerações sobre a qualidade do produto. Embora seja evidente que as empresas sempre escolhem os projetos que apóiam, o pressuposto dessa objeção não é inteiramente verdadeiro ou é impreciso. Qualquer projeto cultural submetido ao Ministério da Cultura passa por um complexo processo de avaliação que, usualmente, envolve cerca de vinte pessoas que opinam sobre ele, solicitam esclarecimentos sobre o seu conteúdo ou seu orçamento e fazem sugestões aos seus autores. Para ser aprovado, o projeto passa pelas seguintes etapas: (1) em primeiro lugar, é negociado – no conteúdo e na forma – entre o artista e o produtor cultural; (2) depois, vai à consideração de técnicos e pareceristas do Ministério que não examinam o seu mérito, mas a sua natureza cultural e a adequação do seu orçamento; (3) na etapa seguinte, é submetido à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, formada por 13 membros, dos quais a maioria, com direito a voz e voto nas decisões, é eleita pela própria comunidade cultural; (4) no fim, o projeto é aprovado, em última instância, pelo ministro da Cultura. Só então, após esse longo percurso em que é avaliado, discutido e referendado seja pelo governo, seja pelos representantes dos interessados, é submetido às empresas. 23 Imaginar, então, que a decisão de patrocínio leva em conta apenas interesses comerciais é minimizar o significado das diversas etapas pelas quais o 23 Secretaria de Apoio a Projetos do Ministério da Cultura. 29 projeto passa e não perceber que, no sistema vigente, ele é democraticamente negociado entre Estado, artistas, produtores e empresas. Nunca é demais insistir em o quanto isso é adequado a uma sociedade democrática, na qual, em vez de prevalecer única orientação de política cultural, o processo de criação e de desenvolvimento cultural resulta de sólida interação da sociedade civil com o Estado, o que exige, por definição, a intervenção de uma pluralidade de agentes que, como é natural que seja, têm diferentes concepções sobre a cultura. O mecenato privado brasileiro é uma experiência recente que tem vantagens e desvantagens. Enquanto tal, os seus mecanismos exigem aperfeiçoamentos que dependem do seu funcionamento; mas a sua rápida consolidação, em anos recentes, estimulando uma verdadeira explosão de atividades culturais no País, indica que, para sugerir conclusões mais significativas a seu respeito, não pode ser submetido ao destino de experiências brasileiras semelhantes que, antes de terem amadurecido suficientemente, foram eliminadas do cenário cultural do País (WEFFORT, 1999). Os indicadores quantitativos da cultura e um exame dos dados do PIB da cultura, e uma reflexão sobre as tendências macroeconômicas da sociedade da informação, num mundo crescentemente globalizado, surpreenderão com certeza aqueles que ainda consideram a cultura como uma espécie de ornamento de luxo, especialmente num País em luta contra enormes problemas sociais e dificuldades econômicas. Cultura, hoje, é um segmento cada vez mais importante para o desenvolvimento integrado das sociedades, e para o crescimento econômico propriamente dito.24 A sociedade industrial, com seu perfil de alto consumo de matérias-primas e de energia, e de emprego relativamente extensivo de uma mão-de-obra treinada para tarefas repetitivas e fragmentadas, está com seus dias contados. No mundo do futuro, o principal valor agregado dos produtos será a inteligência, a criatividade; os empregos irão requerer sempre mais versatilidade, capacidade de reunir e filtrar informações, lidar com situações novas, interpretar códigos e linguagens em permanente transformação. A cultura, nesse novo cenário, comparece tanto como importante segmento produtor e empregador nas áreas de bens e serviços (indústrias culturais, lazer e turismo cultural, valor simbólico agregado a outros serviços e mercadorias, como vestuário, móveis, arquitetura etc.), quanto como setor capaz de qualificar a nova mão-de-obra requerida pela economia ‘quaternária’. 24 IDEM. Ibidem. 30 Para um País como o Brasil, com pressa de acertar o passo com as grandes transformações do nosso tempo, nosso riquíssimo capital cultural – a diversidade e a criatividade do nosso povo, as diversas tradições que aqui coexistem harmoniosamente e se fecundam mutuamente – é um dos elementos mais positivos com que contamos para alavancar o grande salto que nossa marcha para o futuro requer. 25 Recente pesquisa da Fundação João Pinheiro, patrocinada pelo Ministério da Cultura, mostra que, em 1994, para cada milhão de reais aplicados no Brasil na área cultural, eram gerados 160 postos de trabalho. Nos últimos quatro anos (1995-98), apenas com a aplicação das leis de incentivo à cultura, estima-se que cerca de um bilhão de reais foram aplicados diretamente em atividades culturais. Isso significa que, mantida aquela relação, 160 mil empregos foram criados no período. Ainda em 1994, o conjunto das atividades culturais representava 1% do PIB brasileiro. Entretanto, a mão-de-obra empregada pela cultura (510 mil pessoas) era 53% superior à da indústria de material de transportes (incluída a indústria automobilística) e 90% superior à empregada pela indústria de equipamentos e material elétrico-eletrônico, embora a fatia no PIB desses segmentos fosse bem maior. Além disso, o salário médio pago na área cultural era quase o dobro (1,97) da média do conjunto das atividades econômicas. Esta parece ser uma tendência constante do setor, pois já em 1980 o salário médio das atividades culturais era 73% superior ao da média da economia. No que tange aos principais setores da indústria cultural, o panorama brasileiro é promissor. As indústrias cinematográfica, editorial e fonográfica, principais componentes desse segmento, apresentam um comportamento dinâmico, e estão sendo apoiadas pelas políticas públicas no sentido de enfrentar seus problemas específicos. Na área do cinema, a produção nacional havia parado, de 1990 a 1992. Com a aprovação da Lei de Incentivo ao Audiovisual, em 1993, e a instituição do Prêmio Resgate, em 1994, a produção do setor começou a reagir. Em 1993, foram realizados dois filmes; em 1994, dez. graças à política de consolidação e ampliação dos mecanismos de incentivo, a produção cinematográfica entrou em um crescendo. Em 1995, 14 filmes foram concluídos; em 1996, mais 14; em 1997,27. Em 1998, até julho, mais trinta filmes nacionais foram concluídos. 26 O número de espectadores de filmes brasileiros, que não passava de 350 mil em 1994, superou os dois milhões, em 1997. E em 1998, até maio, mais de 2,6 25 IDEM. Ibidem 26 GREENBERG, 31 Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. São Paulo. Ática, 1997. milhões de pessoas assistiram às produções nacionais, marca essa liderada por O noviço rebelde (1,5 milhão) e Central do Brasil, que levou em seis meses mais de um milhão de espectadores aos cinemas. Mesmo assim, ainda existem dificuldades nas áreas de distribuição e comercialização. A participação do filme brasileiro no nosso mercado audiovisual é hoje de apenas 5%, depois de ter chegado a 35% nos anos 70 e 80. O audiovisual está entre os 12 setores considerados estratégicos pelo Governo federal, que foram incluídos no Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade. A meta proposta é a de aumentar, até o ano 2.000, para 20% a participação do cinema brasileiro na bilheteria. Como o País gasta hoje 680 milhões de dólares na importação de filmes, este aumento representaria uma economia da ordem de 160 milhões de dólares. O PBQP também se propõe a criar estímulos para que a relação sala/ habitantes seja de 1/50 mil, dentro de padrões técnicos adequados. O País tem hoje pouco mais de mil salas de exibição, em geral maciçamente ocupadas por superproduções estrangeiras. Com a expansão do setor, deverá crescer também o emprego da mão-deobra especializada. Em 1990, com a virtual extinção da indústria cinematográfica, essa mão-de-obra migrou para a TV e a publicidade. Hoje, a carência de técnicos especializados já é considerada um dos gargalos da produção nacional. Para dar uma idéia da dimensão desse mercado de emprego, os Estados Unidos contabilizam a criação de 1/4 de milhão de postos de trabalho a partir de 1985, somente com o crescimento da indústria cinematográfica. A Europa lamenta a perda da mesma quantidade de empregos, no mesmo período, atribuindo-a à queda da posição do cinema europeu em relação ao americano, no mercado interno da comunidade européia (WEFFORT, 1999). Com a legislação de incentivo, entre janeiro de 1995 e junho de 1998, foi realizada uma captação de R$ 213.167.577,00 para o audiovisual, bem acima das verbas destinadas ao setor pela extinta Embrafilme. Tomando como base o ano de 1995, os totais captados tiveram um crescimento de 158% de 1995 para 96, e de mais 38% de 1996 para 97. Em 1998, a captação não está concluída (os maiores aportes se concentram no final do ano), não havendo portanto elementos para a comparação. O número de projetos subiu de 71, em 1995, para 426 só nos primeiros seis meses de 1998, num total de 1.171 no período. Foram concedidos, por meio do Ministério da Cultura, quarenta prêmios para a produção de filmes de curtametragem, 15 para a criação de roteiros, e 15 para o desenvolvimento de projetos 32 audiovisuais. O apoio à participação brasileira em festivais internacionais também vem crescendo: quatro em 1995, nove em 1996, 19 em 1997.27 A indústria editorial brasileira já é uma das mais importantes do mundo, pois tem mais de 40 mil títulos e cerca de 350 milhões de volumes publicados em 1997. No último Salão do Livro de Paris, este ano, o Brasil foi País-tema e compareceu com 10 mil títulos e cerca de setenta escritores. A produção do setor editorial representa 0,2% do PIB: fatura-se mais em livros do que em cerveja no Brasil. O valor das exportações do setor aproxima-se dos 6 milhões de dólares. As Bienais do Livro de 1996, em São Paulo, e de 1997, no Rio de Janeiro, tiveram, respectivamente, 1.44 milhão e 944 mil visitantes. Só nos cinco primeiros dias, mais de meio milhão de pessoas compareceram à 148 Bienal do Livro de São Paulo, em maio de 1998. Um Maracanã lotado de leitores por dia é motivo de orgulho, e parece indicador inquestionável de sucesso cultural e financeiro.28 Apesar dessas cifras animadoras, é preciso reconhecer que a leitura ainda não é um hábito cultural expressivo no conjunto da população. Consumimos apenas 2,4 livros por habitante / ano, enquanto a Argentina consome 7,3. O consumo anual do livro não didático, entretanto, não chega a uma unidade per capita: é de 0,8. A maioria dos lançamentos não passa dos 2.500 exemplares, e essas baixas tiragens encarecem o livro brasileiro. Faltam bibliotecas públicas: pesquisa realizada pelo Ministério da Cultura, em 1996, localizou 4.011 bibliotecas públicas em 3.268 municípios, mas identificou a ausência desse equipamento em 2.194 municípios (40% do total), com cerca de 22 milhões de habitantes.29 O País é o sexto maior mercado fonográfico no mundo, com o dobro do volume de vendas do italiano e três vezes o do México. O setor respondia em 1997 por cerca de 8 mil empregos diretos e 55 mil indiretos, e faturou 1,2 bilhões de dólares com a venda de CDs, LPs e fitas cassete.30 Pesquisa junto à Associação Brasileira de Produtores de Discos revelou que, em novembro de 1996,72% das vendas de discos no País eram de música brasileira. No mesmo ano, as emissoras de rádio dedicavam 85% de seu tempo à música nacional e, nas 15 principais estações de rádio de São Paulo, todas as dez músicas mais tocadas eram de intérpretes brasileiros, o que mostra não haver necessidade de reserva ou proteção de mercado para a música nacional. 27 Ministério da Cultura. 28 IDEM.Ibidem. 29 IDEM.Ibidem. 30 IDEM . Ibidem. 33 Em 1996, o CD já representava 93,4% dos suportes vendidos no mercado brasileiro, restando 1,6% para os discos de vinil e 4,8% para as fitas cassete. O grande problema desse setor é a pirataria. A indústria fonográfica esperava um aumento de 5% nas vendas em 1998, mas já contabiliza 15% de queda, e credita esse insucesso à reprodução ilegal. Estima-se que 98% das fitas cassete e 15% dos CDs comercializados no País são falsos. Os maiores prejudicados são os compositores e intérpretes brasileiros, responsáveis por mais de 70% da música vendida no Brasil. Uma das propostas em estudo, no âmbito de um conjunto de medidas que precisam ser tomadas para a proteção dos direitos nessa área, seria a obrigatoriedade da aposição, sobre as embalagens de CDs e fitas cassete, sem ônus para o comprador, de um selo impresso pela Casa da Moeda. Preservar os direitos relativos à produção artística, garantir a autenticidade do produto e reduzir a evasão tributária são os objetivos das medidas que estão sendo discutidas com todos os segmentos do setor. Um campo que pouco a pouco começa a interessar ao mercado cultural, a exemplo do que ocorre em outros Países, é o setor de lazer cultural. Afirma-se que o circuito dos rodeios (com a movimentação musical e a moda que o acompanham) movimenta um público de 25 milhões de pessoas anualmente no Brasil, quatro vezes mais do que o futebol, que leva seis milhões de torcedores aos estádios. Eventos como o Carnaval, as festas juninas, diversos tipos de manifestações religiosas de forte raiz cultural, além de envolverem um grande número de espectadores e participantes, empregam de forma permanente ou sazonal um expressivo contingente de mão-de-obra. O turismo está se transformando rapidamente na principal atividade econômica mundial, superando a indústria aeroespacial e o petróleo. É o setor que mais cresce, e onde é criado o maior número de empregos. Em 1994, deslocaram-se pelo Planeta 528 milhões de viajantes internacionais, sem contar o turismo interno. No Brasil, nesse mesmo ano, o setor de viagens e turismo movimentou 45 bilhões de dólares, ou seja, 8% do PIB, e empregou 6 milhões de trabalhadores (HALL, 1997). A valorização da nossa oferta cultural será fator crucial se quisermos aumentar nossa participação no mercado internacional, onde representamos apenas 1,3% do movimento total. A Festa do Boi de Parintins (AM) é um exemplo de aproveitamento desse potencial. A população da cidade, de cerca de 65 mil habitantes, quadruplica durante o fim de semana da festa. A economia local é dinamizada com os recursos do turismo: além do novo hotel, com quarenta apartamentos, um sistema de ‘cama e café’ nas residências dos habitantes locais se esgota, ao preço de 900 dólares pelos quatro dias. Em 1995, a arrecadação da festa foi três vezes a da Prefeitura. 34 Vôos extras das companhias regionais, cruzeiros fluviais pelo rio Amazonas, vendas de artesanato, ingressos para o Bumbódromo de quarenta mil lugares, e o próprio custo dos desfiles, de R$ 2,5 milhões para cada agremiação, beneficiam com trabalho e renda milhares de pessoas, além de proporcionar-lhes o prazer e a alegria de verem reconhecidos seus valores culturais locais. 31 Incluem-se também, entre as indústrias culturais, atividades que no Brasil relevam do setor de comunicações sociais, como a televisão, o rádio e a imprensa (jornais e revistas). Se considerarmos a dimensão econômica da publicidade veiculada por esses meios, além de seus serviços e produtos específicos, podemos formar uma idéia mais adequada do impacto que as atividades culturais já exercem no conjunto da economia, sem falar do potencial de crescimento que apresentam. 32 O total de recursos orçamentários do Ministério da Cultura, de 1995 a 98, foi de praticamente 840 milhões de reais. Estas cifras foram atingidas graças a uma evolução sustentada e extremamente sensível, por parte do governo, às necessidades da cultura e ao novo perfil de atuação do Ministério. O orçamento consignado pela Lei evoluiu, em números redondos, de 104 milhões de reais em 1995, para 274 milhões em 1998. Já no primeiro ano da atual gestão, a dotação inicial foi superada em 66%, graças à obtenção de um crédito especial de 85 milhões de reais. Parcialmente gasto no mesmo ano e em parte transferido para 1996, esse salto colocou os recursos orçamentários para a cultura em um novo patamar. Desde então, a evolução orçamentária – considerando recursos de todas as fontes e o saldo entre crédito e contenção – manteve e ampliou esse patamar, passando de 173 milhões em 1995 para 220 milhões em 1998. Numa situação de estabilidade da moeda, esse aumento de 27% em cima de um patamar já expandido representa um significativo incremento na capacidade de atuação do Ministério e de suas entidades vinculadas. Hoje, o orçamento do Ministério e de suas vinculadas é de mais de um milhão de reais por dia útil, número que se torna ainda mais significativo se se levar em conta que os recursos adicionais vieram a beneficiar, quase exclusivamente, as atividades-fim, e não o custeio administrativo (WEFFORT, 1999). Malgrado o importante aporte trazido pelo fato de o orçamento do Ministério da Cultura haver sido quase triplicado no quadriênio 1995/98, o grande salto – de trinta vezes – nos recursos para a cultura, nesses quatro anos, veio entretanto 31 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Incentivos Fiscais para o desenvolvimento. São Paulo: José Bshatsky editor. 2000. 32 Idem . ibidem. 35 das leis de incentivo fiscal: a lei Federal de Incentivo à Cultura e a Lei do Audiovisual, que permitem descontar do imposto de renda devido parte das contribuições feitas a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura. Essas deduções, em seu conjunto, não podem ultrapassar um teto, que é fixado anualmente. 33 O Ministério conseguiu, por um lado, que esse teto fosse progressivamente ampliado: de 85 milhões em 1994, chegamos hoje a 160 milhões de reais. Somados os quatro anos (1995/98), o Governo federal colocou à disposição da cultura 490 milhões de reais, o que permitiria carrear mais de um bilhão de reais para o financiamento direto de projetos culturais. Isso porque a renúncia, isto é, o abatimento do imposto, representa em média 33% do total que é efetivamente aplicado em projetos culturais, através da lei de Incentivo à Cultura. Por meio da Lei do Audiovisual, este percentual é de 100%. Somadas e ponderadas as duas modalidades, pode-se considerar que a relação renúncia/recursos aplicados é de pelo menos 2,5. Para utilizar esse benefício fiscal, foi feito um esforço importante, e bemsucedido, no sentido de simplificar, agilizar e normatizar os mecanismos de apresentação e de avaliação de projetos, e de divulgar as leis junto aos potenciais mecenas. Graças a essa política, a utilização da renúncia fiscal, que foi de cerca de 5,5 milhões em 1994 (6,5% do teto), já foi integral (100%) em 1997, e chegará em 1998 a 160 milhões, aumentando praticamente trinta vezes em quatro anos! 34 Um dos indicadores do crescimento desse mecanismo é o aumento do número de empresas que o utilizaram: cerca de duzentas em 1995, mais de mil em 1997. Também o número de projetos submetidos ao Ministério, na busca de apoio em suas diversas modalidades, apresentou um incremento notável: de 453 em 1994, para 21.589 entre janeiro de 1995 e julho de 1998. Quando se atenta para a estrutura necessária ao processamento administrativo e à avaliação técnica desse volume de projetos, pode-se avaliar o crescimento da produtividade nos diversos setores do Ministério, que não teve seu quadro ampliado para atender a essa expansão da demanda.35 ANO MECENATO APOIO A FUNDO PERDIDO TOTAL 1994 .................................................................................... 453.558 558 1.011 1995 ..................................................................................... 1.248 1.143 2.391 1996 ..................................................................................... 2.401 2.002 4.403 1997 ..................................................................................... 3.882 3.173 7.055 1998 ..................................................................................... 1.468 5.261 6.729 TOTAL .......................................................................... 9.452 12.137 21.589 FONTE: Secretaria de Apoio à Cultura, Ministério da Cultura 33 IDEM. Ibidem. 34 Fonte: Secretaria de Apoio à Cultura, Ministério da Cultura. 35 IDEM.Ibidem. 36 Com o aumento dos recursos e a ampliação da demanda, o Ministério da Cultura pôde se dedicar a expandir em todos os sentidos o apoio às atividades culturais. Aumentou de forma notável a quantidade de convênios celebrados, principal modalidade de descentralização de recursos para efetivar a execução das linhas de ação definidas pelas políticas do Ministério: de 31, em 1994, os convênios realizados cresceram para 1.533 no período 1995/98 (até julho). Aumentou igualmente, de forma ainda mais expressiva, a abrangência geográfica da atuação do Ministério, que passou a atuar em todos os estados da Federação. A quantidade de municípios atendidos chegou a 1.071 nos quatro anos, contra 14 em 1994 (WEFFORT, 1999). Tratada algumas vezes como algo prosaico, a questão do financiamento da cultura tem acompanhado o desenvolvimento das artes desde sempre, mas, pelo menos desde meados do século XIX, converteu-se em tema indispensável para quem quer que deseje assegurar as condições permanentes de continuidade da criação artística. Quem deve substituir, nas condições extremamente competitivas das sociedades de mercado, o papel outrora desempenhado pelos mecenas: o Estado solitariamente? As elites econômicas que há pouco mais de dois séculos começaram a substituir a nobreza na direção das sociedades modernas? Ou a sociedade como um todo – criadores, produtores, fomentadores e consumidores de bens culturais, isto é, o público pagante? A decisão de reconhecer o papel central da cultura para o desenvolvimento do País foi um compromisso assumido pelo presidente da República Fernando Henrique Cardoso antes do governo formar-se; e, em segundo lugar, porque, após a desastrosa intervenção do governo Collor de Mello no setor, entre 1990 e 1992, quando se fez uma tentativa de praticamente desobrigar o Estado de qualquer responsabilidade pelo financiamento da cultura – com a extinção de algumas das mais importantes instituições culturais públicas do País e a drástica redução de recursos para a área – a sociedade brasileira viu-se colocada diante de um falso dilema. Segundo esse dilema, haveria uma oposição insolúvel entre Estado e mercado em face das necessidades de custeio e fomento das artes e da cultura. Nos termos das crenças da época, o dilema teria de ser resolvido em favor do mercado, como se Estado e iniciativa privada fossem as únicas alternativas de seu financiamento e não pudessem, em nenhuma hipótese, combinar-se para custear a criação e a produção artística brasileiras.3637 A solução adotada pelo Ministério da Cultura, depois de recriado e consolidado pelo Governo em 1995, sem se esgotar naquelas duas opções excludentes, visou ao problema de fundo, isto é, a necessidade há muito sentida por artistas e produtores culturais brasileiros de criar-se, de modo permanente, um sistema de financiamento da cultura no País. O sistema deveria ser capaz de dar resposta à singularidade da cultura brasileira, isto é, a sua enorme diversidade, cujas ricas expressões étnicas, regionais e sociais são, por natureza, extremamente diferenciadas, e constitui algo que não pode depender de fonte única e exclusiva de financiamento; e, também, de assegurar a longevidade de mecanismos criados para assegurar o adequado financiamento das artes em suas diferentes expressões e linguagens, independentemente de maior ou menor afeição dos governantes do dia à cultura. 37 Fazer isso significou iniciar uma pequena revolução cultural. Por uma parte, foi necessário reafirmar as responsabilidades do Estado na área, sem deixar que isso servisse de estímulo para a mentalidade paternalista de setores da comunidade cultural, segundo a qual o Estado é percebido como mera fonte de dotação e como único responsável pelo financiamento do setor. Por outra, o setor privado foi estimulado a investir não apenas em atividades culturais rentáveis no mercado, mas também naquelas que fomentam um setor que necessita de investimentos de médio e longo prazos para dar resultados, gerar renda e emprego. Isso exigiu ações de governo, atitudes e comportamentos que, levando em conta as lições da experiência de outros Países, reconhecesse a legitimidade do novo papel das empresas. Agora, no entanto, as resistências às mudanças localizavam-se entre setores da própria administração pública federal. Para implementar suas propostas, o Ministério da Cultura enfrentou as duas mentalidades aferradas ao passado e, ao mesmo tempo, estimulou a formação de uma visão empresarial moderna, segundo a qual as vantagens dos incentivos fiscais para a cultura devem associar-se tanto ao marketing cultural como a um claro compromisso das empresas com a sua comunidade (WEFFORT,1999). Essa escolha traduziu-se na política de parceria entre Estado, produtores culturais e empresas privadas, adotada em 1995, com o objetivo de fortalecer os mecanismos de financiamento a fundo perdido – como o Fundo Nacional da Cultura – e, ao mesmo tempo, de iniciar a substituição do exclusivo mecenato de Estado no apoio às artes, à literatura e ao patrimônio cultural pelo mecenato privado. A política de parceria beneficiou-se da ampliação, modernização e desburocratização das leis 37 IDEM .Ibidem 36 RUBIM, Canelas. Dos sentidos do marketing cultural. Revista brasileira de ciências da comunicação, vol. XXI, 1998. 38 preexistentes de incentivo fiscal à cultura e estabeleceu um novo mecanismo de financiamento que, comprometido com critérios republicanos de uso de dinheiro público, atraísse novos recursos para a área. A idéia central do governo, no caso das empresas, foi oferecer-lhes benefícios fiscais generosos que ajudassem a criar as condições institucionais e o ambiente indispensável para que elas aportassem recursos mais volumosos no desenvolvimento cultural do País. A política não tinha – e não pode ter – o sentido exclusivo de oferecer vantagens contábeis às firmas – mesmo se suficientes para induzir a realização das contrapartidas definidas por Lei – mas visava a criar uma atmosfera propícia e uma mentalidade coletiva favoráveis à parceria entre Estado, produtores culturais e empresas com vistas à criação e à produção culturais – que, nesses termos, se converte em um compromisso das partes com o público. Aliás, os gastos públicos, nessas circunstâncias, cumprem a função de alavancagem de recursos privados para a cultura. 38 Além disso, a nova política do Governo federal procurou articular-se com as legislações de incentivo à cultura de estados e municípios, baseadas em descontos do ICMS, no primeiro caso, e do 155 e IPTU, no segundo, para empresas que investem em projetos culturais. Essa legislação tinha começado a surgir, no início dos anos 90, como alternativa à drástica redução de recursos verificada na esfera federal. Depois de crescer, nos primeiros anos da década, ganhou novo impulso – como mostra o gráfico 1 –, em anos recentes, ao consolidar-se no País uma atmosfera favorável à política de incentivos, resultante da modernização das leis federais de apoio à cultura. Isso ampliou a abrangência da política de parceria, criando opções de financiamento à cultura também nos planos regional e local, uma vez que os custos do patrocínio empresarial podem beneficiar-se, simultaneamente, de vantagens fiscais das esferas federal, estadual e municipal. A elaboração das Leis de incentivo surge nesse espírito, qual seja, reestruturar a União, estados e municípios no incentivo à produção cultural no Brasil, mas, retornaremos a esse aspecto quando tratarmos da Lei Jereissati em capítulos posteriores. 38 PORTUGAL, Leila e BORGES Moacir Carlos. Manual de prestação de contas de projetos incentivados. São Paulo: Ministério da Cultura, Secretaria de Audiovisual. S/D. 2 ESTRUTURA E CARACTERÍSTICAS DA LEI JEREISSATI 2.1 Elementos comuns ao Fundo Estadual de Cultura e ao Mecenato Estadual Para iniciar a análise da estrutura e funcionamento da “Lei Jereissati – LJ”, destacamos o trabalho realizado pelo Professor Francisco Humberto Cunha, que editou em 2002 o livro Análise da concepção, estrutura e funcionamento da “Lei Jereissati,” e outras publicações39 que tratam da sua experiência como Secretário de Cultura de Guaramiranga,40 enriquecida por sua experiência como professor da área de Direito da Universidade de Fortaleza. Sua análise de cunho deontológico ajudou a compreender meandros da LJ, principalmente em seus aspectos jurídicos, deixando o espaço aberto para uma compreensão mais qualitativa e sociológica do objeto de estudo. Antes de entrar na especificidade dos incentivos fiscais relativos à LJ, faz-se necessário fazer um breve comentário dos incentivos fiscais como um todo. Incentivos fiscais são estímulos concedidos pelo governo, na área fiscal, para a viabilização de empreendimentos estratégicos, sejam eles culturais, econômicos ou sociais. Tem ainda a função de melhorar a distribuição da renda regional (CESNIK e MALAGODI, 2002); a explicitação feita Antônio Roberto Sampaio Dória41 fala do incentivo como “instrumento de vitalização econômica dirigida” e acrescenta: (...) o estímulo tributário desdobrou-se no Brasil, na década passada, num leque de alternativas que em originalidade, amplitude e ambição de propósitos, não encontra símile no mundo contemporâneo.Programas de desenvolvimento lastreados em análoga instrumentação, como o do Mezzogiorno na Itália meridional e de porto Rico nas Antilhas, apequenam se diante da experiência brasileira que, ainda quase só potencial, entremostra apenas seus primeiros frutos. 39 CUNHA, Francisco Humberto. Normas básicas da atividade cultural (co-autoria com Artur Bruno), INESP/CE, 1998. Direitos culturais como direitos fundamentais na ordenamento jurídico brasileiro, Brasília Jurídica, DF, 2000. Teoria e prática da gestão cultural, UNIFOR/CE, 2002. 40 Informações sobre Guaramiranga, Área: 107,6km². População: 5.705.Distância da Capital em Linha Distância por Rodovia: 92km. Vias de Acesso à Capital: CE 356 e CE 065 (dados do IPLANCE- 2002). Hoje possuindo dois projetos inseridos no calendário cultural do Estado e da Região Nordeste: Festival Nordestino de teatro e Festival de Jazz. 41 DÓRIA,Antônio Roberto Sampaio(org). Incentivos fiscais para o desenvolvimento. São Paulo: José Bushatsky editor. 40 No ângulo positivo, revelou o incentivo fiscal extraordinária flexibilidade em se acomodar aos mais diversificados escopos. Constitui-se, ademais, excelente fórmula de compromisso para integrar no projeto comum de desenvolvimento de correção de desequilíbrios no País, o dinamismo no processo econômico privado e a necessária coordenação da receita, a mola que os impulsiona (DÓRIA, 2001). Certamente que os graves e profundos desequilíbrios regionais brasileiros ainda precisam ser enfrentados de forma mais ampla, especificamente os incentivos fiscais ligados à cultura no Brasil, onde a produção cultural nacional movimenta mais de 1% do PIB;42 mas esses aspectos já foram tocados e aprofundados no primeiro capítulo, cabendo nesse momento um olhar mais acurado da Lei Estadual de Incentivo do Ceará. Vivenciamos, todavia, na atual estrutura tributária brasileira um grave equívoco baseado na discriminação do município que cada vez mais é cobrado de sua função social, econômico e cultural, e cada vez menos tem acesso ao bolo da arrecadação. Desfazendo um pouco do “canto da sereia” da municipalização que repassa atribuições em forma geométrica e repassa os meios financeiros e econômicos em forma aritmética, temos que repactuar a Federação brasileira em parâmetros de maior respeitabilidade ao ente federativo primeiro e mais próximo dos problemas cotidianos, que é o Município, e para isso necessitamos sim de uma reforma tributária que pelo menos devolva os patamares de 1988.43 Outro aspecto a ser destacado é a importância do envolvimento dos municípios nas discussões e destinos e aplicações das leis de incentivo estadual para a cultura, mas, ainda retornaremos a essa questão mais adiante. O primeiro aspecto a ser destacado refere-se ao tributo escolhido para que os respectivos contribuintes possam deixar de pagar uma certa quantia devida ao Estado, a fim de favorecer um projeto cultural ou Fundo Estadual de Cultura. Este tributo é o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação-mais conhecido pela sigla ICMS (CUNHA FILHO, 2002). A tão propalada responsabilidade social, tanto governamental em suas várias esferas – união, estadual e municipal – tem que se expor de forma mais democrática possível, para que a população possa decidir também em que rumos e em que políticas culturais devemos seguir. Fazemos aqui um parêntese para sublinhar 42 Dados da Fundação João Pinheiro. Pesquisa: diagnóstico dos investimentos da cultura no Brasil – 1985 a 1994. 43 No Ceará a mobilização feita pela APRECE pode ser acompanhada pelo site: www.aprece.org.br 41 um elemento que julgamos muito importante, que é a responsabilidade municipal com o compromisso da criação de estruturas administrativas e profissionais direcionadas à cultura; nossa experiência no Fórum Municipal de Secretários de Cultura da Região Metropolitana de Fortaleza, idealizada pelo PLANEFOR,44 e particularmente envolvemo-nos com a Estratégia 5. Cultura, identidade e autoestima. Preservar e potencializar os valores, o patrimônio e as manifestações culturais como fatores de fortalecimento da identidade e da auto-estima da população, e da geração de emprego e renda; participando e formando o conselho gestor do Fórum Metropolitano de Secretários de Cultura da RMF e experiências anteriores apontam para a necessidade de montagem dessas estruturas e capacitação permanente das equipes da área cultural, mais adiante retornaremos a esses aspetos. CUNHA se refere assim a escolha do ICMS : Trata-se do principal e mais complexo tributo dos estados.45 Portanto, em princípio, foi correta a escolha do mencionado imposto, pela potência de recursos e pela quantidade de contribuintes. A limitação da renúncia, contudo, a até 2% (dois por cento) do valor do imposto a recolher mensalmente, para qualquer que seja o contribuinte, reduz a alguns poucos a possibilidade de fazer uso da renúncia fiscal para apoiar a cultura.46 Não obstante, o Decreto n. º 23.882/95 (e alterações posteriores), por seu Art. 20, inovado (ilicitamente) as prescrições da Lei, excluiu os produtos tributados com base em substituição tributária da pauta daqueles que podem beneficiar a cultura.47 Também o Decreto referido, como se fora autônomo, estabeleu o limite global de renúncia em R$ 320 mil mensais.48 Consideramos o 44 PLANEFOR – O Plano Estratégico de Fortaleza e sua Região Metropolitana (13 municípios), definido como um processo inovador de lançamento e participação, tem como objetivos “mobilizar a comunidade para, num exercício de cidadania, manifestar seus anseios e sonhos sobre a Cidade a ser construída; contribuir com os Governos Estadual e Municipais no planejamento para o próximo milênio, considerando sua inserção num contexto Metropolitano e sua função de Capital do Estado; projetar a Cidade para um crescimento intencional, conciliando o desenvolvimento econômico com a melhoria na qualidade de vida dos seus habitantes; e buscar eficácia nos investimentos, definindo prioridades na implementação dos projetos e estimulando a convergência das ações empreendidas pelos distintos agentes urbanos”. Dados contidos na Cartilha PLANEFOR: 2002. 45 Ver MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. Trata-se de um dos mais eminentes tributaristas do Brasil. Na obra mencionada, versa sobre a matéria (p. 251-76). 46 Art. 2º da Lei Estadual nº 12.464/95. 47 Ver VIANA NETO, Matteus. A Lei Complementar nº 87/96 Interpretada. São Paulo: LED-Editora de Direito Ltda, 1997. Este autor explica e classifica, com riqueza de detalhes, a substituição tributária (p. 8390). Uma justificativa para a exclusão dos produtos (ou pessoas) tributados com base na substituição tributária, na possibilidade de apoiar a cultura, reside no fato de que, neste caso, a arrecadação não está consolidada, podendo haver devolução ao contribuinte, por parte do Estado, de todo ou de parte do tributo recolhido por essa sistemática; contudo persiste a idéia de que somente a Lei (e não o Decreto) poderia determinar esta exclusão. 48 5º do Art. 7º do Decreto nº 23.882/95. 42 estabelecimento de um teto de abdicação de tributos algo razoável, legítimo, mas tal limite não pode ser fixado por um decreto, quando o legislador não lhe concede esta prerrogativa. A solução para o problema apontado seria o estabelecimento de uma proporcionalidade inversa do limite de renúncia, por contribuinte – ou seja, quanto menor a capacidade de recolhimento do ICMS, maior o percentual do imposto passível de renúncia em benefício da cultura. Fica sugerida também a ampliação do limite global de renúncia fiscal ou, quando menos, a sua fixação no índice que atualiza o ICMS (CUNHA, 2002). Os depoimentos colhidos com vários artistas e produtores culturais no decorrer da pesquisa corroboram a análise feita por Cunha, ao afirmarem: (...) antes da Lei Jereissati eu conseguia apoio maior e com essa limitação agora fica amarrada ao um percentual que um burocrata achou que era bom e que muitas vezes não consegue corresponder as minhas necessidades no momento da captação (inf. 01). (...) o Próprio empresário me disse e eu não vou aqui dizer o nome afirmou que podia contribuir com bem mais, portanto a Lei tem um teto e eu tenho que obedecer...(...) o mesmo empresário disse que antes da Lei gastava mais com cultura que hoje (inf. 02). (...) sinceramente essa questão do teto tem que ser repensada e se não fosse demais era bom chamar os mais interessados: os artistas e o pessoal que vive da cultura pra emitir opiniões (inf. 03). A Secretaria cultura organizou um Seminário em 2003: Cultura XXI, quando foram discutidas várias questões relacionadas ao tema e está sendo colocado para a sociedade um Plano Estadual de Cultura que é fruto desse Seminário.49 A SECULT apresentou no dia 17 de novembro de 2003, o Plano estadual de Cultura que contou com uma programação que tentou incluir setores da sociedade que estavam excluídos das discussões ligadas ao setor.50 49 Plano Estadual de Cultura é fruto do Seminário: Cultura XII que foi organizado com o os objetivos de formar novos profissionais para a cadeia produtiva da arte. Este é o objetivo do convênio que o Centro Dragão do Mar e o SENAC assinarão durante o Seminário Cultura XXI, no período de 17 a 21 de março de 2003. Promovido pela Secretaria da Cultura, o evento contou com a participação do ministro Gilberto Gil, de representantes de entidades artísticas e movimentos culturais. Em palestras seguidas de mesas redondas e debates, eles discutirão a política pública de cultura que querem para o Ceará. Cinco temas-eixo: gestão, políticas de financiamento, Economia da cultura, municipalização e patrimônio cultural.Todo o conteúdo do seminário foi gravado para servir de base à elaboração do plano estratégico da SECULT . Segundo a secretária Cláudia Leitão, ‘o envolvimento da sociedade na construção do planejamento estratégico da SECULT nos próximos anos é de fundamental importância.’ ( Jornal O POVO, 16 de março de 2003) p. 12, Vida & arte. 50 Apresentação do Plano Estadual de Cultura e do Programa Valorização das Culturas Regionais com as presenças do Governador do estado de Ceará; prefeitos municipais. Apresentações do Conselho Estadual de Turismo; novo Conselho Estadual de Cultura; Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural – COEPA; apresentação da minuta do projeto de Lei para criação dos Conselhos Municipais de Turismo e Cultura; lançamento do Programa “ valorização das culturas regionais” etc. (informativo da SECULT, 2003). 43 As tentativas da SECULT de chamar os municípios para a discussão e participação do Plano Estadual de Cultura representa uma avanço, portanto necessitamos que esse plano se efetive e faça parte da pauta dos Governos estadual e municipais como um todo, pois as discussões e os planos sem compromisso político para a sua implementação são “letra morta”; mas voltaremos a essas questões na parte final dessa dissertação, quando abordaremos as perspectivas da política pública e da lei de incentivo no âmbito federal e no Ceará. O segundo aspecto trazido por Cunha Filho parece-nos muito sério, qual seja: “os erros” do Decreto n. º 23.882/95. Causa estranheza que uma secretaria que possui em seus quadros uma procuradoria incorra num “erro” tão elementar que é o de julgar um Decreto que tem como premissa maior a regulamentação de uma Lei anterior; ou demonstra a faceta de uma burocracia cultural que não abre espaços de discussões para possibilitar o que um dos informantes fala: ‘(...) que os mais interessados: os artistas e o pessoal que vive da cultura pra emitir opiniões’, transformando-se num feudo fechado para garantir que poucos tenham acesso. É importante também salientar que as críticas à Lei Jereissati feitas nesse trabalho não têm por objetivo colocá-la na lata do lixo ou mesmo satanizá-la, mas propiciar uma discussão aprofundada da sua estrutura, do seu desempenho e dos seus resultados, visando a antes de tudo contribuir para a sua otimização. Neste sentido, as opções colocadas por Cunha podem ser levadas em conta, assim como buscar outras fontes de impostos que poderiam ser revertidos para a cultura de forma fixa e sustentável, como, por exemplos, impostos oriundos das televisões e cinemas comerciais e outros. O quadro a seguir organizado por Cunha foi acrescentado por nós com o número de projetos que foram finalizados de 1995 a 2003, ressaltando o fato de que Fortaleza, pela importância social, política e cultural que exerce, continua dando mostras de uma fragilidade no trato da questão da política cultural, pois sua Lei de Incentivo nunca foi colocada em prática pelos dirigentes municipais desse período. Quadro comparativo do tributo sobre o qual incide o incentivo fiscal à cultura nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL CEARENSE FORTALEZENSE Imposto de Renda ICMS ISS FONTE: CUNHA:2002 44 Qualquer postulação dirigida às instâncias de incentivo fiscal à cultura no Ceará deve obedecer ao formato de um projeto, que pode e deve ser assentado em formulário fornecido pela Secretaria da Cultura.51 A tramitação dos projetos na Lei Jereissati segue o seguinte processo: projetos requeridos (veja tabela), aprovados (veja tabela) ou indeferidos, arquivados e finalizados. Em contato com a CAP (Comissão de Análise de Projetos) da SECULT obtivemos informações de que é difícil ter dados relativos aos projetos que foram aprovados e estão hoje sendo captados, exceto os que estão totalmente finalizados e sem nenhuma pendência. Os projetos requeridos de 1995 a 2003 somam 2.022. Desse total, 1.207 foram aprovados e somente 80 foram totalmente finalizados, o equivalente a 6.63%, apenas. Em relação aos projetos aprovados e em fase de captação, não há dados disponíveis, demonstrando a fragilidade do processo de acompanhamento dos projetos pela CAP. Ademais, a “obsoletização” dos recursos informacionais da CAP dificulta mais ainda que esses dados tenham consistência, com uma dificuldade maior para acessar aos dados relativos ao Fundo Estadual de Cultura-FEC e num grau menor de dificuldade os dados relativos ao mecenato. Cabe aqui ressaltar, porém, o esforço da equipe técnica da CAP para disponibilizar esses dados para pesquisa, apesar das condições de trabalho não permitirem uma excelência nesse atendimento. Outro aspecto a ser ressaltado é a total inconsistência dos dados disponíveis pela internet na página da SECULT (www.secult.ce.gov.br), pois, além de desatualizadas, levam o leitor a acreditar que os recursos destinados aos projetos aprovados tenham necessariamente sido captados e finalizados. Veja tabela: Quadro Anual de Projetos Captados pelos incentivos fiscais (1996 a 2003) ANO DE CAPTAÇÃO QUANTIDADE DE PROJETOS CAPTADOS VALOR TOTAL CAPTADO (R$) (%) 1996 66 2.053.226,08 1997 117 3.912.717,42 1998 137 4.003.103,97 1999 116 4.133.699,35 2000 114 3.677.026,26 2001 109 4.248.230,42 2002 104 4.221.943,14 2003 53 2.199.448,65 TOTAL 816 28.472.115,94 51 Cópia dos formulários, decretos e portarias e a íntegra da Lei estão nos anexos do presente texto. 45 FUNDO ESTADUAL DE CULTURA – FEC 1996/2003 ANO QUANTIDADE DE PROJETOS APROVADOS RECURSOS DISPONIBILIZADOS 1996 29 775.295,99 1997 52 1.230.722,00 1998 35 854.495,28 1999 47 1.387.948,56 2000 37 1.534.870,10 2001 35 2.379.802,70 2002 38 4.532.957,59 2003 15 560.000,00 TOTAL 288 13.256.092,22 Fonte: CAP – Lei Estadual de Incentivo à Cultura. www.secult.ce.gov.br , acrescentado pelo autor. Está demonstrado muito bem no quadro abaixo que a inconsistência dos dados demonstram um aspecto muito forte na máquina administrativa de todo o Estado brasileiro, em suas várias esferas de governo, que é a incompetência no acompanhamento dos recursos públicos. O que dizer das políticas públicas mais amplas? Quadro das situações dos projetos de 1995 a 2003 em relação ao mecenato da Lei Jereissati SITUAÇÃO QTD. PROJETOS VALOR TOTAL ( R$) (%) REQUERIDOS(1) 2022 150.765.907,40 APROVADOS(2) 1207 61.275.920,68 INDEFERIDOS(3) 602 ARQUIVADOS(4) 632 16.247.572,19 AVALIAÇÃO DA CAP 9 CANCELADO 189 5.355.276,31 CAPTADO 16 840.692,80 CAPTANDO 33 6.606.868,11 COM DECLARAÇÃO 42 1.218.823,71 CONCLUIDO 80 3. 387.364,72 DEFERIDO 3 253.108,00 EM DILIGÊNCIA 229 17.557.478,23 INADIMPLENTE 95 3.076.202,75 INADIMPLENTE TRIMESTRAL 14 2.341.181,34 NO CADINE(5) 12 1.573.441,69 RESTAÇÃO DE CONTAS 52 8.173.187,14 REAVALIAÇÃO DA CAP 0 SEM SITUAÇÃO 14 FONTE: Dados da CAP, organizados pelo autor. Notas: (1) Projetos requeridos – são todos os projetos que deram entrada em requerimento próprio para a CAP. (2) Projetos aprovados: são todos os projetos que obtiveram aprovação junto à CAP e portanto estão aptos a receberem os CEFICS; estando assim preparados para a captação, que se iniciará após carta de uma empresa disponibilizando-se para apoiar o projeto em um prazo de 1 ano. (3) Projetos indeferidos: são todos os projetos que não cumpriram as determinações legais previstas na Lei Jereissati.(4) Projetos arquivados; são todos os projetos que não conseguiram no tempo hábil de 1 ano a carta de interesse da empresa em relação ao projeto.(5) projetos que estão no CADINER – Cadastro de Inadimplentes do Estado do Ceará, ficando seus titulares impossibilitados de prestarem concursos públicos e outra sanções previstas. 46 Para melhor visualização da distribuição dos recursos no período de 1995 a 2003, tanto de projetos requeridos e aprovados, veja tabelas a seguir: Projetos requeridos por ano e seus respectivos valores (r$) ( 1995 a 2003) Ano Requerimento Qtde de Projetos Requeridos Valor Total Requerido(%) 1995 53 5.867.237,36 1996 380 15.643.679,27 1997 420 26.513.734,08 1998 449 32.913.933,01 1999 281 22.160.803,37 2000 124 13.469.301,70 2001 191 18.391.798,21 2002 101 11.310.979,77 2003 23 4.494.440,63 Total 2022 150.765.907,40 Projetos aprovados por cada ano e seus respectivos valores (r$) ( 1995 a 2003) Ano da Aprovação Qtde de Projetos Aprovados Valor Total Aprovado(%) 1995 14 1.035.058,55 1996 158 6.244.350,61 1997 263 12.179.668,29 1998 408 18.112.821,77 1999 52 3.322.296,45 2000 30 4.014.454,38 2001 187 8.399.541,58 2002 88 6.858.309,03 2003 7 1.109.420,02 Total 1207 61.275.920,68 Esses quadros referem-se a um dado que chama muito a atenção, qual seja, 40,31% dos projetos não são aprovados pela CAP, não ficando claro para nós os reais motivos dessa não-aceitação e após uma ano de busca por um empresário que aceite financiar o projeto, os projetos aprovados que não conseguirem uma 47 carta de aceitação do empresário em relação ao projeto serão arquivados, somando no período, 632, ou seja mais de 52%. Devem ser informados, em gênero, a) o nome do projeto; b) dados do proponente e do responsável direto – com as devidas comprovações, incluindo ato constitutivo (das pessoas jurídicas) e/ou curriculum vitae; c) indicação dos segmentos culturais abrangidos; d) descrição, justificativa e objetivos; e) cronograma detalhado do plano de realização; f) orçamento; g) outras informações indispensáveis. A rigor, o formulário ora referido recebe da legislação, também, a alcunha de requerimento e, em razão disto, está incompleto. Não dispõe, por exemplo, de espaço para que o proponente assinale que está remetendo o projeto para a Comissão Gestora do Fundo Estadual de Cultura (FEC) ou para a Comissão de Análise de Projetos do Mecenato Cearense(CAP). Se o remete para a CAP, não tem como informar, de plano, a modalidade de apoio preferida. Em síntese: se o proponente quer expressar alguma vontade prévia, solicitando o pronunciamento de uma autoridade específica, deveria fazer acompanhar o formulário de um requerimento autônomo (CUNHA FILHO, 2002) As observações feitas por muitos beneficiários da LJ se referem ao formulário como ‘complicado’, ‘extenso’, ‘burocrático em excesso’, ‘um verdadeiro vestibular’, ‘uma ‘loteria’ etc., porém cabe aqui destacar dois aspectos, abstendonos tanto das questões jurídicas, como das eventuais dificuldades dos artistas e produtores nos preenchimentos dos formulários; destacar a importância da SECULT em possibilitar para o agente cultural a capacitação necessária para o atendimento das necessidades de um projeto abalizado e tecnicamente aceitável. Numa oportunidade posterior retornaremos a essa questão, esclarecendo a necessidade da formação continuada dos setores da cultura para garantir a esses mesmos setores uma participação mais ativa nos parcos recursos que estão disponíveis, que muitas vezes não são acessados por incompetência dos mesmos. Localizamos na CAP, todavia, um texto organizado por um funcionário da SEFAZ intitulado: ‘Considerações sobre a cartilha de procedimentos para encaminhamentos de projetos à Lei de Incentivo à cultura – N.º 12464/95. Segundo funcionário da CAP, eram comuns, antes do texto, os propositores da Lei ligarem ininterruptamente ao setor para fazerem perguntas que hoje estão respondidas nesse texto.52 52 Texto; ‘Considerações sobre a cartilha de procedimentos para encaminhamentos de projetos à Lei de Incentivo à cultura – N.º 12464/95.’ 12 páginas. Mimeografado.S/D. Fortaleza.( autor desconhecido) 48 É também comum aos dois mecanismos de incentivo à cultura existentes no Ceará o rol de atividades culturais, composto por dez segmentos, a saber: 1) música; 2) artes cênicas (tais como teatro, circo-escola, ópera, dança, mímica e congêneres); 3) fotografia, cinema e vídeo; 4) literatura(inclusive a de cordel); 5) artes plásticas e gráficas; 6) artesanato e folclore; 7pesquisa cultural ou artística; 8) patrimônio histórico e artístico; 9) filatelia ou numismática; e 10) editoração de publicações periódicas de cunho cultural e informativo.53 Cunha se refere á lista de atividades culturais dessa forma: O que logo chama a atenção nesta lista de atividades culturais – que repete o padrão de leis similares, com as especificações concernentes à realidade local – é a possibilidade de apoio ao artesanato. O senão é que este setor é, desde há muito, no Ceará, vinculado à Pasta da Ação Social, havendo, inclusive, leis específicas tratando da questão, bem como um fundo próprio destinado a apoiar esta atividade – Fundo Especial para Desenvolvimento da Produção e Comercialização do Artesanato Cearense.54 Os artistas entrevistados posicionam-se diferentemente em relação a esses aspetos: alguns demonstram euforia na possibilidade do apoio ao artesanato, ‘(...) é uma coisa do Ceará que tem que ser valorizado e quanto mais apoio melhor.’ (...) tenho amigos artesãos que nunca viram a cor do dinheiro de nenhum lugar.’ (...) quando é que um artesão vai ter acesso a Lei Jereissati...eles ficam com as migalhas’ (...) a Lei Jereissati só tem dinheiro pra grande cultura, pode ver as pessoas que recebem, um dinheiro de um filme de cinema daria pra uns 20 discos.’ O quadro a seguir expõe os segmentos incentivados nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal e os demais quadros expõem de maneira sucinta o número total de projetos do período – 1995 a 2003 e o percentual de cada segmento finalizados pela Lei Jereissati. 53 Art. 6º da Lei Estadual n.º 12.464/95. Lei nº 10.606, de dezembro de 1981, criou o Fundo Especial para Desenvolvimento da Produção e Comercialização do Artesanato Cearense, e a Lei nº 10.639, de 22 de abril de 1982 o regulamentou, determinando, no Art. 2º, a respectiva constituição: créditos consignados no Orçamento do Estado ou em leis especiais; transferências de recursos em razão de convênios, acordos, ajustes e contratos firmados pelo Estado e/ou FUNSESCE e outros organismos, visando à expansão das atividades de desenvolvimento da produção e comercialização do artesanato, bem como ao financiamento de matéria-prima aos artesãos; receitas operacionais oriundas do superávit das operações do FUNDART; saldo de exercícios financeiros anteriores; doações, legados e outras receitas eventuais. 54 A 49 Quadro comparativo dos segmentos culturais passíveis de serem incentivados pelas legislações federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL CEARENSE FORTALEZENSE FONTE: CUNHA:2002 Teatro Dança Cirso Ópera Mímica Congêneres de Artes Cênicas Cinema Vídeo Fotografia Disco Congêneres de audio-visuais Literatura Obras de referência Música Artes plásticas Artes gráficas Gravuras Cartazes Filatelia Congêneres de Artes Gráficas Folclore Artesanato Patrimônio Cultural Patrimônio histórico Patrimônio Arquitetônico Patrimônio Arqueológico Bibliotecas Museus Arquivos Demais acervos Humanidades Línguas Clássicas (humanidades) Língua vernácula (humanidades) Literatura vernácula (humanidades) Principais Línguas Estrangeiras Principais culturas estrangeiras Historia Filosofia Rádio educativa e cultural, de caráter não comercial Televisão educativa e cultural, de caráter não comercial Cultura negra Cultura indígena Teatro Dança Circo-escola Ópera Mímica Congêneres Artes Cênicas Cinema Vídeo Fotografia Literatura Literatura de cordel Música Artes plásticas Artes gráficas Filatelia Numismática Folclore Artesanato Patrimônio Histórico Patrimônio Artístico Pesquisa Cultural Pesquisa Artística Publicações periódicas de cunho cultural e artístico Teatro Dança Circo Ópera Cinama Vídeo Fotografia Música Canto Artes Plásticas Artes Gráficas Computação Gráfica Artesanato Patrimônio arquitetônico (móvel e imóvel Museus Acervo Humanidades Comunicação 50 Quadro do número total de projetos do período e o percentual de cada segmento finalizados pela Lei Jereissati – 1995 a 2003 1995 Área Qtde % Valor (%) Artes Cênicas 2 14,3% 142.127,84 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 1 7,1% 177.000,00 Fotografia, Cinema e vídeo 2 14,3% 160.493,96 Música 8 57,2% 211.436,75 Pesquisa Cultural e Artística 1 7,1% 344.000,00 TOTAL DO ANO: 14 100% 1.035.058,55 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 1996 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 16 10,1% 339.799,40 Artes Plásticas e Gráficas 10 6,3% 377052,31 Artesanato e Folclore 7 4,4% 82.766,16 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 5 3,7% 181.760,00 Fotografia, Cinema e vídeo 25 15,8% 2.608.907,10 Literatura, inclusive de cordel 20 12,2% 302.563,60 Música 66 41,8% 1.770.313,12 Patrimônio Histórico e Artístico 5 3,2% 368.691,80 Pesquisa Cultural e Artística 4 2,5% 212.497,12 TOTAL DO ANO: 158 100% 6.244.350,61 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 1997 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 27 10,3% 837.888,56 Artes Plásticas e Gráficas 11 4,2% 247.642,42 Artesanato e Folclore 35 13,3% 250.541,20 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 6 2,3% 468.732,71 Fotografia, Cinema e vídeo 48 18,3% 5.410.621,89 Literatura, inclusive a de cordel 12 4,6% 178.405,00 Música 108 41,0% 3.606.240,29 Patrimônio Histórico e Artístico 8 3,0% 902.663,01 Pesquisa Cultural e Artística 8 3,0% 276.933,21 TOTAL DO ANO: 263 100% 12.179.668,29 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 51 1998 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 34 8,3% 1.778.736,20 Artes Plásticas e Gráficas 19 4,6% 1.111.865,72 Artesanato e Folclore 77 18,9% 1.177.868,12 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 9 2,2% 451.468,86 Filatelia e Numismática 1 0,25% 19.000,00 Fotografia, Cinema e vídeo 72 17,6% 3.811.555,32 Literatura, inclusive a de cordel 31 7,6% 730.161,30 Música 131 32,3% 6.388.468,32 Patrimônio Histórico e Artístico 10 2,9% 1.410.772,11 Pesquisa Cultural e Artística 24 5,9% 1.232.925,82 TOTAL DO ANO: 408 100% 18.112.821,77 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 1999 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 5 9,6% 425.503,00 Artes Plásticas e Gráficas 3 5,8% 471.523,25 Artesanato e Folclore 30 57,8% 194.810,75 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 1 1,9% 310.700,00 LIteratura, inclusive a de cordel 1 1,9% 20.000,00 Música 12 23,0% 1.899.759,45 TOTAL DO ANO: 52 100% 3.322.296,45 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 2000 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 4 13,3% 556.060,90 Artes Plásticas e Gráficas 3 10% 50.322,40 Artesanato e Folclore 2 6,7% 22.307,24 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 1 3,3% 17.952,90 Fotografia, cinema e vídeo 4 13,3% 1.419.830,00 LIteratura, inclusive a de cordel 2 6,7% 253.000,00 Música 14 46,7% 1.694.980,94 TOTAL DO ANO: 30 100% 4.014.454,38 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 2001 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 34 18,18% 2.293.301,05 Artes Plásticas e Gráficas 11 5,9% 416.430,90 Artesanato e Folclore 24 12,8% 266.357,05 Editoração de Publicações periódicas de cunho cultural 6 3,2% 237.650,00 Fotografia, Cinema e Vídeo 16 8,5% 781.868,60 LIteratura, inclusive a de cordel 20 10,7% 178.469,75 Música 69 36,9% 3.370.063,21 Patrimônio Histórico e Artístico 2 1,0% 700.000,00 Pesquisa Cultural e Artística 5 2,7% 155.401,02 TOTAL DO ANO: 187 100% 8.399.541,58 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 52 2002 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 11 12,5% 1..333.834,11 Artes Plásticas e Gráficas 3 3,4% 522.500,00 Artesanato e Folclore 11 12,5% 76.000,00 Fotografia, Cinema e Vídeo 15 17,0% 2.206.541,90 LIteratura, inclusive a de cordel 10 11,4% 90.419,82 Música 30 34,1% 2.448.785,65 Pesquisa Cultural e Artística 8 9,1% 180.227,55 TOTAL DO ANO: 88 100% 6.858.309,03 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. 2003 Área Qtde % Valor Artes Cênicas 2 28,6% 482.896,31 Fotografia, Cinema e Vídeo 1 14,2% 400.000,00 LIteratura, inclusive a de cordel 2 21,6% 99.976,00 Música 2 28,6% 126.547,00 TOTAL DO ANO: 7 100% 1.109.420,02 Total Geral: 12,07 61.275.920,68 FONTE dados da SECULT/CAP, organizados pelo autor. Analisando esses dados, vemos a presença marcante da área da música em relação ao número de projetos aprovados, totalizando em média 42% dos projetos captados e aprovados. A realidade de exclusão por que passa boa parte do povo brasileiro amplia cada vez mais suas bases e vai se consolidando como uma exclusão política e cultural, que pode não ter a voracidade da fome, mas ajuda a sedimentá-la e a perpetuá-la. Cunha chama ‘os excluídos da possibilidade de acesso ao incentivo à cultura’, os ‘desencentivados’, neologismo que pode simbolizar bem os que ao longo do tempo nunca tiveram incentivo nenhum para produzir sua arte e que a LJ não possibilitou um horizonte diferenciado.Cunha se refere assim: As normas ora em estudo excluem algumas pessoas (e seus respectivos projetos) de terem acesso a qualquer das formas de apoio instituídas (FEC ou Mecenato). As razões de tal exclusão referemse, em princípio, a motivos de natureza pública, bem como constituem tentativa de socialização do acesso aos recursos. Outras exclusões específicas, para o FEC ou para o mecenato, serão apontadas oportunamente. O primeiro tipo de exclusão tem natureza punitiva. Determina o Art. 10 da Lei nº 12.464/95 que os benefícios a que refere esta Lei não serão concedidos a proponentes ou financiadores inadimplentes para com a Fazenda Pública Estadual. Significa dizer que quem tem pendências (dívidas tributárias ou obrigações acessórias não 53 cumpridas) para com o fisco estadual não pode ser beneficiado pela Lei Jereissati, o que é razoável, desde que a pendência seja definitiva, tendo sido assegurado o direito de defesa para aqueles que é tido como inadimplente. O segundo tipo de exclusão “veda a utilização de benefício fiscal em reação a projetos de que sejam beneficiários o próprio contribuinte, seus sócios ou titulares” A proibição referida “estende-se aos ascendentes, descendentes em primeiro grau, conjugues e companheiros dos titulares e sócios”.55 O que objetiva o legislador com esta regra? A resposta mais ponderada me faz crer no intento de fazer circular a riqueza, transferindo recursos das mãos de um contribuinte do ICMS para um projeto cultural de um não-contribuinte deste imposto. Concernente a isto, por mais de uma vez, já escutamos o seguinte questionamento: “Uma pessoa é artista e ao mesmo tempo contribuinte do ICMS. Tem o projeto aprovado pelas instâncias da lei Jereissati. Dispõe do recurso para incentivo, do próprio imposto que irá recolher. Mas não pode faze-lo, porque a Lei o proíbe. Logo, irá procurar um outro incentivador?”. Quem admite esta situação reflete que o contribuinte pode apenas pagar menos imposto e não realizar o projeto cultural a que se propôs. Isto era verdadeiro no antigo regime da lei Sarney,56 mas não se aplica à nossa realidade, em que os projetos são previamente aprovados e fiscalizados durante sua execução, bem como prestam conta após sua conclusão. Não obstante todo este (hipotético) aparato de fiscalização, constata-se a seguinte burla, que torna nulos os objetivos da lei: os grandes contribuintes do ICMS, diretamente ou por interposta pessoa, criam suas próprias entidades culturais, nos termos da lei, e limitamse a apoiar os próprios projetos (CUNHA, 2002). Realmente a referida burla da Lei foi verificada em muitos depoimentos a que tivemos acesso, do tipo: ‘(...) conheço gente grande que coloca uma empresa cultural para se beneficiar da Lei. Apóia só as coisas que lhe interessam e que trazem retorno.’(inf.03) (...)está se criando uma situação que os empresário estão fazendo cortesia com o chapéu dos outros...assim é bom, pega o dinheiro público e utiliza e ainda bota sua marca.(inf.01). Temos que concordar com o autor com a idéia de que, na antiga Lei Sarney (nº 7.505/86), houve um verdadeiro descontrole em relação a esse aspecto.No mínimo, a proibição comentada deve ser mais bem especificada, segundo palavras do próprio autor. 55 Art. 11 e seu parágrafo único da lei Estadual nº 12. 464/95, o que é reiterado pelo Art. 16 e parágrafo único do decreto nº 23.882/95 56 Na antiga Lei Sarney (nº 7.505/86), os incentivos fiscais eram concedidos pelo simples fato de que entidades culturais se registravam ante o Poder Público, sem que os seus projetos fossem previamente aprovados e mensurados. Esta circunstância dificultava a fiscalização e ensejava práticas de sonegação e desvio de verbas incentivadas. 54 O terceiro tipo de exclusão tem um cunho de proteção da exclusividade da atividade cultural. Assim é que o Art.9º da Lei Jereissati prevê que fica vedada a aprovação de projetos que não sejam estritamente de caráter artístico e cultural. A redação deste dispositivo impõe algumas dúvidas: o que devemos entender por projeto cultural e por projeto artístico? Este não é uma espécie daquele? Qual a limitação para o entendimento do que seja projeto cultural? Abstraindo as reflexões conceituais, entendemos que os limites estão determinados pelos segmentos de atividades referidos em tópico anterior. Supostamente regulamentando a prescrição legal que ora examinamos, o parágrafo 2º do Art.1º do Decreto nº 23.882/95 deu direcionamento diverso ao que seria razoável. Em vez de confirmar a impossibilidade de aprovação de projetos de outras searas que não a artística e cultural, estabeleceu que “os projetos incentivados serão estritamente de interesse do desenvolvimento cultural do Estado do Ceará”. Como devemos entender a expressão “interesse cultural do Estado do Ceará?” Por certo não se coaduna com a interpretação do Estado como pessoa jurídica, tampouco está afeita aos interesses dos governantes presentes. Mas deve refletir o interesse da livre expressão da sociedade, que tem por limites tão-somente o dispositivo na Constituição. Mais uma exclusão baseia-se no princípio da moralidade. É a que veda aos participantes de comissões que analisam as postulações (FEC e CAP) de apresentarem projetos ou de julgarem os pedidos de parentes.Quanto à última circunstância descrita, o parágrafo único do Art. 16 do Decreto nº 23.882/95 literalmente prescreve: “Caracterizados quaisquer impedimentos relativos a parentescos consangüíneos ou afins até 2º grau com os membros das comissões constantes neste Artigo, o integrante das mesmas não participará da análise e votação do projeto”.57 Reconheço a boa vontade do legislador, mas a norma não cumpre o objetivo de afastar, quando menos, a suspeição sobre projetos aprovados, cujos postulantes sejam parentes de componentes das comissões. Uma simples oferta de troca de favores entre os membros da CAP ou da Comissão Gestora do FEC pode fazer com que um deles se afaste de suas funções, por ter que eximir-se da apreciação de um projeto por impedimento de parentesco. Hipoteticamente devolveria, em momento oportuno, eventual gentileza recebida de seus pares (CUNHA:2002). 57 Ver DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 5, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p.223-31. Estes parentes, segundo a regra do Art.333 do Código Civil Brasileiro, são: pais, avós, filhos, netos, irmãos, sogros, cunhados, genros, enteados e padrastos. 55 Aqui remontamos aos entrevistados para afirmarem e corroborarem o que foi dito há pouco: (...) conheço muita gente que teve parentes que tiveram seus projetos aprovados por parentes que faziam parte da comissão...é o velho Brasil que teima em ser assim!’ (inf. 04) ‘(...)a estória(é com e mesmo!) de que não tinha parentes analisando projetos...podia até não ser diretamente, mas existia.’(inf. 03). Estas afirmações demonstram o quanto temos que aprimorar na Lei para que venha a cumprir seu nobre papel, e a proposta de Cunha orienta uma postura para essa situação: “(...)Por outro lado, fica a questão: várias pessoas serão sacrificadas, pelo simples fato de estarem prestando um serviço de interesse público, ou simplesmente por serem parentes destas? A resposta, não indolor, é a seguinte: a democracia exige sacrifícios temporários...” Relativamente às limitações de projetos em virtude do tempo de duração, da repetição periódica e da identidade do proponente, o Decreto nº 23.882/ 95 determina uma série de limitações para os projetos que são submetidos às instânciais da Lei Jereissati. Logo de início, tais limitações, mesmo algumas sendo razoáveis, são ilegítimas, pois, mais uma vez, o Chefe do Executivo exorbitou de sua competência, diminuindo um direito – o que somente a Lei pode fazer (CUNHA FILHO, 2002). O Ceará no período que estamos trabalhando, 1995 a 2003, principalmente até 2002, foi extremamente marcado por uma ditadura do Poder Executivo que se sentia senhor absoluto de todas as vontades , idéias e ações. O propalado Cambeba – sede do Executivo Estadual – tratava a Assembléia Legistiva Estadual como mera sucursal dos seus interesses. Salvo raras exceções que servem mais uma vez para comprovar a regra, no tocante às arbitrariedades contidas no Decreto nº 23.882/95, é apenas uma amostra do que fez o ‘governo imperial’ que não levava em consideração a Assembléia e desrespeitava as ordens judiciais e tinham um controle quase absoluto das prefeituras municipais, leia-se prefeitos. Tais limitações se referem 1) à duração do projeto; 2) à quantidade de projetos por proponente; e 3) à quantidade de vezes que os projetos podem ser apoiados com o incentivo fiscal. Vejamos cada uma das situações. Quanto à duração do projeto, diz o Art. 17 do Decreto referido que “o prazo para conclusão do projeto cultural não poderá ultrapassar 12 meses, contados a partir da data da emissão do primeiro CEFIC ou da data da aprovação do projeto pela Comissão Gestora do FEC, prorrogável por até 6 (seis) meses, a critério da Comissão que o aprovou”, ressalvando o fato de que o projeto pode ter natureza periódica ou continuada. São os casos, respectivamente, de projetos que anualmente 56 se repetem ou cuja ação não possa ser interrompida. Exemplos são, no primeiro caso, um festival anual de teatro, no outro, uma escola permanente de artes. Ocorrendo uma destas situações (projetos continuados ou periódicos), segundo consta no Art. 25 do decreto, “estarão sujeitos obrigatoriamente à progressão da modalidade ‘doação para patrocínio’ e desta para” investimento “. Isto ocorre porque um mesmo projeto cultural não poderá usufruir o incentivo por um período superior a 3 (três) anos, contados da data de emissão do primeiro CEFIC ou de sua aprovação pela Comissão Gestora do FEC. Outra limitação consiste em que “um mesmo proponente não poderá apresentar mais de 3 (três) projetos culturais para fins de amparo do incentivo”,58 sendo que este número cai para 2 (dois) se os projetos tiverem prazo de execução concomitante, mesmo que parcialmente59 (CUNHA FILHO:2002). Temos como base novamente os depoimentos colhidos que afirmam: ‘(...) um projeto que vai pra Lei é tratado de acordo com os interesses da Secretaria e do Secretário...ele quem decide se é doação ou se é patrocínio.’ ( inf. 05) ‘(...) ainda tem uma coisa: alguns projetos vão ser liberados de acordo com a conveniência política do governo e 57 O inaceitável nesta regra é a autoridade deliberadora dos projetos que merecem o tratamento diferenciado: o Governador do estado. Este magistrado evidentemente chancelará indicações do Secretário de Cultura Não que as autoridades referidas sejam indignas e incapacitadas para selecionar projetos merecedores do benefício analisado, mas pela peculiaridade do princípio do pluralismo cultural, a sociedade civil também poderia ter sua quota de indicação”(CUNHA FILHO, 2002) A participação ativa da sociedade civil nos rumos de uma política pública séria em qualquer setor, especificamente a cultura, é de fundamental importância, não somente para corroborar o que já foi preliminarmente decidido, mas para planejar, discutir e acompanhar a execução dessa política. Sendo assim, claramente essas indicações teriam que ser compartilhadas por um grupo maior capaz de emitir um opinião abalizada sobre o que é melhor para a cultura do Ceará, ou simplesmente formando uma CAP que tivesse autonomia e condições de emitir opiniões e pareceres de uma foram mais independente. Dentre os temas da Lei Jereissati, um dos mais delicados é o dos prazos, por múltiplas razões, como veremos adiante (CUNHA FILHO, 2002). Classificando genericamente os prazos, tomando por critério a pessoa que deve cumpri-los, podemos dizer que estes são: a) prazos dos proponentes frente ao Estado, como o que fixa o máximo de 30 (trinta dias após a conclusão do projeto, para que seja realizada a competente prestação de contas;60 e b) prazos do Estado frente aos proponentes, como o interregno de 120 dias para todo o trâmite do projeto cultural.61 A primeira observação crítica que se faz com referência a prazos é que prevalece, por parte do Estado – e também dos proponentes de projetos culturais – a prática do desrespeito aos limites temporais fixados na lei. Quanto aos produtores culturais, é usual extrapolarem o cumprimento dos prazos estabelecidos na norma e, frente a isso, a SECULT dá seu jeitinho, até certo ponto (CUNHA FILHO:2002) Quanto aos prazos os proponentes se referem da seguinte forma: ‘(...) realmente tem que dar minha mão à palmatória , pois se não tivesse amizades na SECUL teria perdido os prazos....sei que isso não é correto. (inf.06); outros depoimentos falam da necessidade inclusive do cumprimento ‘britânico’ dos prazos, para tentarem reverter esses hábitos culturais começando pelos artistas; contudo, se tivermos interesse em aprofundar as raízes do jeitinho brasileiro e sua versão cearense vai necessitar muito mais tempo e espaço. E o autor aprofunda mais ainda o assunto referente aos prazos: 60 Art. 61 1º 18 do Decreto nº 23.882/95 do Art. 5º do Decreto nº 23.882/95 do secretário...e´ tanto que teve um que se candidatou, mas, tudo tem que ser revisto.’(inf.04) ‘(...) a gente espera uma enormidade de tempo para receber o CEFIC e sabe que essa liberação vai depender da boa vontade dos governantes...tem que ter mais respeito com a gente!’(inf.03). Certamente que a auto-sutentação deve ser uma meta para políticas públicas sérias na área de cultura, portanto, temos que compreender uma questão básica: há setores da atividade cultural que não podem ficar à mercê do mercado e que vão necessitar “sempre” do apoio e sustento governamental, como acrescenta Cunha Filho: “Mas a questão permanece: e quanto aos projetos culturais de evidente incapacidade de auto-sustentação e reconhecida importância cultural? Estes, em princípio, caberiam na situação excepcional vislumbrada pelo parágrafo 3º do Art. 25 de Decreto, redigido nos seguintes termos: “Não se aplica aos projetos culturais de interesse público do Estado do Ceará, assim declarados através do ato do Chefe do Poder Executivo, a obrigatoriedade de progressão da modalidade de incentivos referida no caput, nem o disposto nos parágrafos 1º e 2º deste artigo”, ou seja, estão livres de se submeterem involuntariamente a patrocínios e investimentos, bem como da limitação de apoio durante apenas 3 (três) anos e somente 2 (dois) projetos concomitantes. 58 Parágrafo 59 Art. 2º do Art. Do decreto nº 23.882/95 24 do decreto nº 23.882/95 58 “(...) frente aos produtores culturais, a situação é mil vezes mais calamitosa, pois o desrespeito é a regra e, do ponto de vista normativo, alguns prazos são inclusive inconstitucionais. Isto quando não agridem a própria lógica, por meio de circunstâncias que ameaçam violentamente a própria finalidade da Lei, uma vez que muitos projetos se inviabilizam em conseqüência da não-obediência aos interstícios previstos. Vejamos esta situação de forma mais minudente. Determina o Art. 8º. Da LJ que “os projetos culturais serão apresentados à Secretaria de Cultura e Desporto, que deverá aprecialos no prazo estabelecido em regulamento, ouvida a Secretaria da Fazenda”. Com efeito, o parágrafo 1º do artigo 5º do Decreto nº 23.882/95 estabelece o prazo máximo, já referido, de 120 (cento e vinte) dias para que a CAP decida sobre os projetos que lhe forem encaminhados. Note-se que este prazo é produto da duplicação introduzida pelo Decreto nº 24.168 – ou seja, originariamente o mesmo era de 60 (sessenta) dias” (CUNHA FILHO, 2002). Ainda há uma questão tão séria, todavia, quanto às irresponsabilidades dos proponentes em relação aos prazos: é quando o próprio Estado se exime de suas responsabilidades e também não cumpre os prazos. Um dos entrevistados afirma: ‘(...) falam dos atrasos dos artistas, mas, a SECULT atrasa tudo e não cumpre suas responsabilidades e no final das contas quem é que vai arcar com os compromissos que eu assumi.’(inf.05). Cunha Filho arremata essa questão, colocando os aspectos de cunho jurídico que mais uma vez apontam a necessidade do repensar o tratamento dispensado ao cidadão como um todo e ao proponente, especificadamente: “Analisando sem delongas esta prescrição, podemos concluir que é inconstitucional, pois agride o preceituado na Constituição do Estado do Ceará, quando esta, em seu artigo 7º, parágrafo 2º, prescreve que o cidadão postulante direto em processo administrativo “deverá ser informado da solução aprovada, por correspondência oficial, no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar nos termos da Constituição do Ceará. Referi-me, acima, a prazos sem lógica. Encontramos um exemplo no que fixa 15 (quinze) dias para apreciação de recursos referentes a projetos não aprovados, quando a CAP tem reuniões mensais.62 Em síntese, há que se cobrar de todas as partes envolvidas o adimplemento dos prazos, fator essencial à credibilidade do incentivo à cultura por parte do Estado do Ceará” (CUNHA FILHO, 2002). 2.2 A prioridade para os “produtos” culturais O Art. 8º da Lei Jereissati, em seu parágrafo 1º, estabelece curiosa regra que prioriza os chamados produtos culturais, em contraposição aos eventos culturais. 62 Art.9º da portaria SECULT nº 198/95 59 Literalmente, “os projetos serão aprovados na proporção de quatro destinados à elaboração de produtos culturais para cada um que objetive a realização de eventos”. Por meio de interpretação autêntica (aquele que o próprio legislador faz), a LJ delimita o que deve ser entendido por uma coisa e por outra, estabelecendo que “produto cultural [ é o ] acontecimento de caráter cultural de existência limitada a sua realização ou exibição” (CUNHA FILHO:2002). Os proponentes tiveram uma visão muito crítica em relação a este aspecto da LJ, pois alguns afirmam a necessidade de incluir a divulgação do produto, ou seja: ‘(...) fiz um disco e não tive condições de colocar nada relativo a um show de lançamento por que era encarado como evento...fiquei com CD nas mãos.’(inf.05) ‘(...) essa definição de produto cultural, o que é e o que não é tem que se melhor aprofundado.’ (inf.02). As várias opiniões sobre esse aspecto apontaram muito mais um desconhecimento do Art. 8.º, cabendo numa eventual revisão uma justificativa que esclareça e o torne claro. Cunha Filho acrescenta outros elementos importantes a essa discussão: “Há que se refletir sobre a imprecisão das definições, o que se faz por meio de simples questões: como enquadrar uma escultura efêmera, que é feita em suporte material, mas de rápido perecimento? Ou um espetáculo cênico com temporada que vara os anos? Contudo, esta não é a questão principal: relevando a imprecisão das transcritas definições, em decorrência da própria peculiaridade do setor cultural, o que importa saber é: qual a intenção do legislador ao criar essa norma? Menciono aqui uma hipótese, referente a uma tradição já constante na legislação federal, de haver mais rigor para com os eventos porque eles seriam potencialmente meros consumidores de recursos, sem deixar resultados práticos. Conforme este ponto de vista um congresso, um festival, uma mostra de artes muitas vezes alimentam apenas o estrelismo de uns poucos, não deixando qualquer marca positiva para os pósteros. Este fato já não se averiguaria quando da edição de um disco ou da personagem de um livro, pela própria natureza perene dos suportes. Se é este o motor dos que redigiram a LJ, não concordo com o mesmo. O pragmatismo interessa apenas ao veio da cultura enquanto indústria, olvidando os demais aspectos deste setor da vida. Projetos envolvendo produtos ou eventos deveriam ser aprovados se preenchessem os critérios da Lei, sem uma limitação quantitativa (de 4 produtos por um evento), o que, aliás, é materialmente falso, pois não há limites de aporte de recursos para cada tipo de projeto. Em palavras claras: um evento como o Cine Ceará ou o Festival de Teatro de Guaramiranga certamente consome recursos que seriam destinados, comparativamente, a uns cem projetos de produção de CD´s (CUNHA FILHO, 2002). 60 A subordinação da cultura aos interesses cegos do mercado não passa de uma sandice, que infelizmente no Ceará teve um laboratório político que subordinou os destinos do Estado aos interesses empresarias. Tudo isso foi sentido em várias áreas e, a cultura, então, sentiu os refluxos desse pensamento reducionista e defensor de um pragmatismo cancerígeno que coloca o lucro e a quantidade acima da qualidade e da vida. Quadro comparativo do tratamento dispensado aos eventos pelas legislações federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL CEARENSE FORTALEZENSE Exige a demonstração de Somente pode ser aprovado um evento Omisso continuidade, desdobramento e após aprovados quatro produtos participação da comunidade culturais local. FONTE: CUNHA,2002. 2.3 Os créditos publicitários do Estado e dos demais envolvidos no projeto cultural O Art. 12 da LJ determina que na divulgação dos projetos financiados “deverá constar obrigatoriamente o apoio institucional do Governo do Estado do Ceará”. Especificando esta prescrição, o Art. 19 do Decreto nº 23.882/95 estabelece que “será obrigatória a veiculação e inserção do nome e símbolos oficiais do Estado do Ceará em toda divulgação relativa ao projeto incentivado, além do crédito do seguinte texto: ESTE PROJETO É APOIADO PELA LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À CULTURA – Nº 12.464, de 29 de junho de 1995”. Note-se que os créditos devem ser feitos ao Estado do Ceará por meio de seus símbolos oficiais – no caso, o brasão ou a bandeira do Estado – porque o incentivo à cultura foi atribuído pelo próprio povo, por meio da lei elaborada pelos representantes, e não por um administrador em particular. O que se averigua, contudo, é que a divulgação veicula a logomarca da administração atual, o que consiste em agressão à Constituição Federal, que no art. 37, parágrafo 1º, estabelece de forma muito severa que “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. 61 Outras pessoas, além do Estado, fazem jus a créditos publicitários em decorrência da aplicação da LJ, o que veremos oportunamente, quando estudamos o FEC e o mecenato (CUNHA FILHO, 2002). Conseguimos constatar o que afirma o Professor Cunha Filho em mais de 36% dos projetos disponíveis na CAP, depois de finalizados, que a exigência legal não era cumprida e quase a totalidade colocava a publicidade governamental de forma errônea. 2.4 A prestação de contas Quem recebe dinheiro decorrente de incentivo fiscal à cultura deve prestar contas. A regra geral determina que até 30 (trinta) dias após o término da execução do projeto cultural, o proponente apresentará à Comissão que o aprovou, em duas vias, detalhada prestação de contas dos recursos recebidos, dentre outros documentos aptos a provar os gastos ou despesas realizadas, inclusive extratos relativos à movimentação da conta corrente”,63 especialmente aberta para movimentar os recursos financeiros do projeto.64 De acordo com depoimentos de funcionários da CAP, mais de 95% dos projetos não cumprem suas prestações de contas corretamente, mas, admitem também que os artistas e produtores muitas vezes são prejudicadas pela morosidade do próprio Governo e da Secretaria de Cultura. A Comissão Gestora do FEC e a CAP estão aptas a apreciar as contas, mas estas contas estão sujeitas à auditoria do órgão estadual competente, quais sejam, aqueles com incumbência legal para fiscalizar o âmbito de abrangência do projeto, conforme o caso. Tal auditoria, geralmente contábil, pode ainda ter natureza fiscal e de proteção do patrimônio cultural, dentre outras (CUNHA FILHO, 2002). Note-se que, antes de findo o projeto, pode ocorrer prestação de contas de caráter parcial. É o que acontece nos projetos com prazo de execução superior a 3 (três) meses, cujos responsáveis deverão apresentar à comissão competente, trimestralmente, as contas respectivas, mas qualquer projeto pode ser fiscalizado e submetido à prestação de contas, em qualquer tempo (IDEM). O não-cumprimento da obrigação de prestar contas, nos prazos devidos, autoriza a autoridade pública a proceder ao cancelamento da autorização para reduzir o ICMS constante no Certificado Fiscal de Incentivo à Cultura (CEFIC), ou a 63 Caput do art. 18 do Decreto nº 23.882/95 2º do Art. 17 do Decreto nº 23.882/95 64 parágrafo 62 suspensão do incentivo através do FEC, e impedirá o proponente de ter projetos aprovados pelo prazo de 4 (quatro0 anos, contados da data em que ocorreu o seu descumprimento, sem prejuízo da comunicação do fato aos contribuintes do ICMS que, porventura, participem do incentivo ao projeto, bem como da eventual responsabilização civil e criminal·(IDEM. Ibidem). Outra antecipação de contas ocorre na hipótese de o projeto cultural não se realizar, caso em que o proponente deverá apresentar justificativa à comissão que o aprovou, devendo restituir ao erário estadual os valores do incentivo recebidos, corrigidos monetariamente de acordo com as normas aplicáveis ao ICMS, a partir da data de emissão do recibo ao incentivador, ou do recebimento do incentivo através do FEC.65 2.5 As punições decorrentes de atitudes ilegais O Art. 13 da LJ prescreve que “a utilização indevida dos benefícios concedidos (...) mediante fraude, simulação ou conluio, sujeitará os responsáveis às penalidades previstas nas leis civil, penal e tributária”. A norma está certa, por uma questão de competência, uma vez que a Constituição Federal (Art. 22, I) diz que, dentre outros, compete privativamente à União legislar sobre direito civil e penal. Isto quer dizer que o Estado não pode criar crimes ou pena para os que se locupletarem dos incentivos fiscais para a cultura, mas pode e deve aplicar a legislação penal e civil editada pela União. No que concerne à aplicação das sansões tributárias, a situação é um pouco diversa, em razão de que esta matéria está na esfera da chamada competência concorrente, aquela que permite tanto à União como ao Estado legislarem sobre o mesmo assunto, sendo que a primeira fica no campo das regras gerais e o outro no das regras complementares – salvo no caso de omissão da União, quando o Estado passa a ter a competência legislativa plena, até que o ente federal resolva criar a norma geral.66 Do ponto de vista material, e dependendo da gravidade da infração, aquele que se beneficia ilicitamente dos incentivos fiscais à cultura, ou que procede em desacordo com as normas previstas, sujeita-se a penas que vão desde a impossibilidade de acesso temporário a novos benefícios, passando pela devolução dos valores recebidos acrescidos de multas, até à privação da liberdade (CUNHA FILHO,2002). 65 Parágrafo 66 Conferir 1º do Art. 17 do Decreto nº 23.882/95. Art. 24 e respectivos parágrafos da Constituição Federal. 63 Atualmente, 12 projetos estão na lista do cadastro de inadimplentes do Estado do Ceará, estando assim impossibilitados de efetivar algumas ações dentro do Estado. (ver notas na página 9). Não tomamos conhecimento de projetos e responsáveis que tenham tido sanções mais severas. 2.6 A possibilidade de recorrer das decisões Da mesma forma que os envolvidos podem sofrer punições nos âmbitos administrativo, civil, criminal e tributário, relacionadas às decisões em qualquer destes setores que lhes forem desfavoráveis, podem também recorrer, pedindo, no todo em parte, a modificação destas. A faculdade de recorrer reside no princípio do duplo grau de jurisdição. Este princípio determina que, toda vez que alguém tem uma decisão do Estado contra si, pode pedir uma reapreciação desta, por outros julgadores diferentes e independentes dos que proferiram a primeira deliberação. Isto tem um sentido óbvio: quem gosta de ver uma decisão sua alterada? Convenha mos, se os mesmos julgadores apreciarem os recursos, as chances de êxito, para quem recorre, serão mínimas. Assentado isto, nos planos civil, criminal e tributário, qualquer pessoa envolvida em projeto cultural que receba condenação, para realizar um pagamento, cumprir uma obrigação ou até mesmo sujeitar-se à pena de prisão, pode pedir ao tribunal competente que modifique a decisão do juiz que o condenou. No plano da LJ, as decisões que não aprovam projetos ou que desaprovam contas prestadas podem ser objeto de recurso, mas, para a própria (FEC ou CAP) que deliberou acerca dos fatos referidos,67 ou seja, a mesma autoridade que decidiu inicialmente vai reapreciar sua própria decisão. Assim sendo, não podemos falar em direito de recorrer, mas, tão-somente, na possibilidade de pedir reconsideração. Solução para este defeito há, mas implica ampla mudança de concepção do papel de uma comissão plural na apreciação de projetos de incentivo à cultura. Este papel devera ser político e não técnico. Explicamo-nos: uma comissão de cultura deveria definir prioridades da política cultural, bem como fiscalizar a efetivação desta política. Desta última tarefa, decorreria o poder de apreciar recursos, frente a deliberações negativas, em face dos produtores culturais. Avaliar projetos, para aprová-los ou não, dentro de parâmetros previamente definidos, seria papel dos técnicos da SECULT. Contra a decisão desses técnicos é que deveria haver a possibilidade de recurso para a Comissão. Se assim 67parágrafo 3.º do Art. 5.º do Decreto n.º 23.882/95. 64 fosse, haveria maior agilidade no trâmite processual, bem como a definição de uma atribuição digna para um órgão que contém representantes do povo, o titular da democracia (CUNHA FILHO, 2002). O número de projetos que foram rejeitados e tiveram seus projetos representados foi nulo, porém com as mudanças efetivadas na Lei a partir de 1997, dificultando a doação, aumentou sensivelmente o número de reavaliações e chegou a quase 30% dos projetos. 2.7 O Fundo Estadual de Cultura -FEC A primeira observação que pode ser feita quanto ao FEC é de natureza terminológica. Note-se que este mecanismo é chamado de Fundo Estadual de Cultura, e não da cultura, como alguns acham mais apropriado. Dentre estes, encontram-se os que redigiram a legislação federal de incentivo à cultura, quando nominaram o mecanismo correspondente como Fundo Nacional da Cultura Um fundo financeiro é um mecanismo criado por lei, para reunir recursos pecuniários destinados a fins específicos. Assim, conheceremos o FEC se identificarmos os seguintes elementos: 1) os recursos pecuniários destinados a fins específicos. Assim, conheceremos o FEC se identificarmos os seguintes elementos: 1) os recursos que o compõem; 2) os fins a que se destina; 3) como funciona; 5) onde funciona; 6) a quem pode beneficiar; 7)quem o gerencia; e 8) que volume de recursos disponibiliza no todo, bem como para cada um dos possíveis beneficiários (CUNHA FILHO,2002). 2.7.1 Os recursos Segundo o Art. 4º da LJ, os recursos que compõem o Fundo Estadual de Cultura são os seguintes: “subvenções, auxílios e contribuições oriundas de organismos públicos e privados; transferências decorrentes de convênios e acordos; doações de pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas, nacionais, estrangeiras e internacionais; outras receitas”. Se bem que observarmos, que todas as fontes indicadas para compor o FEC poderiam ser classificadas como instáveis, pela razão de que se encontram sempre sujeitas à vontade de uma ou de várias pessoas. Em palavras claras, não há recurso que, mesmo variável em quantidade, seja certo e venha reforçar, periodicamente, as cifras do fundo (CUNHA FILHO,2002) Para uma comparação esclarecedora, basta expressarmos que, dentre os recursos que compõem o Fundo Nacional da Cultura, figura um percentual fixo sobre o valor dos prêmios de loterias e concursos prognósticos realizados ou 65 autorizados pelo Governo federal.68 Neste caso, como se vê, há sempre recursos no FNC. Assim, não chega a ser exagerado dizer que o FEC é um fundo sem fundos, e que uma correção deve ser operada para sanar esta patologia (CUNHA FILHO,2002). Como decorrência desta falha (inexistência de recursos estáveis), somada aos fatores 1) a possibilidade de dedução pelos contribuintes que os produtores culturais; 2) a possibilidade de que o fundo capte recursos dos mesmos contribuintes que os produtores culturais; 3) a pouca quantidade de recursos orçamentários destinados para a SECULT; 4) a prática intervencionista da referida Pasta na atividade cultural;69 5) o “prestígio” do Estado, em virtude do seu “poder de império” – ou seja, de determinar as regras de convivência e aplicar ditas regras, sobretudo frente aos contribuintes do ICMS; e 6) o reduzido valor de renúncia fiscal, resulta, a cada mês, a seguinte deformação: o Estado capta, direta ou indiretamente, quase todo o recurso disponibilizado pela legislação de incentivo à cultura, por esta razão praticamente inócua, para objetivos outros que não os do próprio Estado (CUNHA,2002). A construção de uma política centrada na necessidade de recursos previstos em orçamentos e repasses que possibilitem uma política cultural capaz de ser planejada em curto, médio e longo prazos, e, principalmente fundada na necessidade de investir na cultura como alternativa econômica com viabilidade de democratizar o acesso de uma grande parcela não somente aos bens culturais, mas, ao emprego e renda. Quadro comparativo dos recursos previstos pelas legislações federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura para os respectivos fundos (quando existentes) FEDERAL CEARENSE (FEC) FORTALEZENSE Recursos do Tesouro Nacional Não existe Fundo da Cultura Doações Doações Contribuições Legados Subvenções Subvenções Auxílios Auxílios Trasferências resultantes de acordos Saldos e devolução do mecenato 1% dos fundos regionais 3% das loterias e similares Reembolso de Empréstimo do FNC Rendimentos de aplicações Conversão de títulos da dívida externa Saldos anteriores Outros Outros FONTE: CUNHA FILHO, 2002. 68 Art. 5.º , VIII, da Lei n.º 8.313/91.Auxílios BARBALHO, Alexandre. Relações entre Estado e Cultura no Brasil. Ijuí (RS): Unjuí, 1998. Este autor demonstra com precisão a forte interferência do Estado brasileiro no setor cultural, sobretudo a partir da chamada Era Vargas. Idêntico fenômeno ocorre no Estado do Ceará desde a criação da Pasta da Cultura, em 1966. 69 Ver 66 Este quadro, demonstra mais uma vez a ausência da Prefeitura Municipal de Fortaleza da política pública de cultura, em específico, uma estratégia de financiamento dos fazeres culturais dos cidadãos fortalezenses. 2.8 As finalidades e os beneficiários A legislação cearense de incentivo à cultura, contrariamente ao que faz a respectiva legislação federal, não revela textualmente os fins para os quais o mecanismo em apreço – o FEC – foi criado, cabendo ao intérprete encontrar, pelos diversos meios investigativos, as aludidas finalidades. Cremos que somente podem acorrer aos recursos do Fundo Estadual de Cultura aqueles projetos que, por uma circunstância material ou legal não podem, em condições de igualdade, valer-se do mecanismo do mecenato. Embasamos esta convicção em alguns fatores. O primeiro deles é a equivalência com o Fundo Nacional da Cultura, que tem esta e disciplina. Outros fatores podem ser deduzidos intrinsicamente da própria Lei Jereissati. Dentre tais fatores sobressai o rol das pessoas habilitadas a recorrer ao FEC. Quem são elas? Responde o Art. 3º da LJ: “O Fundo Estadual de Cultura (FEC) destina-se ao financiamento de projetos culturais apresentados pelos 1) órgãos municipais; 2) órgãos estaduais de cultura; ou 3) por entidades culturais de caráter privado, sem fins lucrativos”. Para simplificar a compreensão de quem pode se valer do FEC, observemos, inicialmente, os que dele estão excluídos. Dentre os entes públicos, pelo princípio de federalismo cooperativista, afastam-se os de natureza federal. Também os estaduais, de qualquer outro estado que não o Ceará e, da mesma forma, os pertencentes a municípios que extrapolem nossas divisas, estes dois últimos por motivos diferentes: não pode o Estado do Ceará renunciar ao recebimento de tributos para o benefício de um de seus pares (CUNHA FILHO,2002). As questões levantadas por Cunha Filho, demonstram muito bem uma das críticas fundamentais à LJ, qual seja, a falta de espaços democráticos e permanentes para a utilização dos recursos e a legitimação de critérios que sejam discutidos, não somente pelos interessados no assunto, mas por toda a sociedade organizada. E acrescenta ainda CUNHA FILHO: Também não podem pleitear recursos do FEC as empresas, sociedades civis e quaisquer entidades com fins lucrativos. Estas não estão desamparadas do incentivo à cultura, uma vez que podem recorrer ao mecenato estadual, como será aprofundado adiante. 67 Do ponto de vista afirmativo, a análise minimamente atenta da relação de beneficiários expressamente mencionados comporta possíveis limitações ou extensões, fazendo denotar que a interpretação puramente literal é insuficiente para compreender-lhe as dimensões. Vejamos. 1) Quando a lei fala dos órgãos municipais de cultura, neste espectro devem ser compreendidos os da administração direta (secretarias e/ ou departamentos ou similares) e indireta (fundações institutos ou similares), que podem recorrer ao FEC porque suas atribuições são, geralmente, de interesse público e sem fins lucrativos. Somente nestes casos podem se valer das verbas do fundo: o legislador visou a distribuir recursos para a cultura em todo o território do Estado. 2) Os órgãos estaduais de cultura não gozam de qualquer limitação explícita de acesso aos recursos do FEC; contudo, tanto do ponto de vista lógico, como do ponto de vista ético, tais limitações existem, e mais uma vez são decorrentes da deficiente estruturação da normatividade. Observemos os seguintes aspectos: a) não há limites de acesso por beneficiário às verbas ora examinadas; b) o FEC completamente gerido por servidores do Estado, incluindo o secretário da Cultura. Destas circunstâncias, vê-se que todo projeto apresentado por órgão estadual de cultura é praticamente imbatível perante os demais. Assim, não é demasiado concluir que se deve entender restritivamente o acesso dos órgãos estaduais de cultura aos recursos do FEC, sendo admissível, quando muito, “aqueles da administração indireta, pois a SECULT dispõe (ou deveria dispor) de verbas orçamentárias para a sua atuação . 3) As entidades culturais de caráter privado, sem fins lucrativos que representam um enigma no confuso mundo jurídico nacional. São, em princípio, as associações de pessoas que disponham, em seus estatutos, a realização ou o atendimento de finalidades culturais. Também aquelas de natureza patrimonial – como as fundações – estão habilitadas. Exatamente o caso das fundações a questão se torna complexa, pois no direito brasileiro elas constituem um gênero, de que são espécies as fundações públicas e as fundações privadas. Estas últimas são, via de regra, criadas por um instituidor privado, mas o gênio sincretista nacional permitiu que também pudessem ser criadas pelo poder público. Além 68 deste caso, e seguindo o espírito neoliberal, com o intuito de fugir da chamada malha burocrática, o estado vem criando outras entidades, formalmente de direito privado, mas em essência públicas, para lhe fazer as vezes. Destas, sublinham-se as organizações sociais, mas conhecidas pela sigla O.S. ainda outras entidades são originariamente criadas por particulares, mas com o passar do tempo tem suas atividades completamente dirigidas e financiadas pelo Estado, sendo, por conseguinte substancialmente estatais. Neste emaranhado, que entidades podem efetivamente recorrer ao FEC? A prática demonstra que todas – mas a preferência deveria recair sobre aquelas efetivamente privadas e sem fins lucrativas, que já não dispõem de recursos públicos, que por força do orçamento, que em virtude de repasse. Isto porque não há (embora devesse haver) a fixação de um percentual de aporte de recursos para cada tipo de pessoa jurídica que pode ser beneficiada com recursos do Fundo Estadual de Cultura (CUNHA FILHO,2002). A falta de critérios públicos, como já foi colocado anteriormente, assim como um processo permanente de avaliação quantitativa e qualitativa das políticas públicas e recursos envolvidos, torna muito mais complexa nossa tarefa, como sociedade, civil e do governo na avaliação das metas e resultados a obter com investimentos públicos na área de cultura. Quadro comparativo dos objetivos estabelecidos pela legislação federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura para os respectivos fundos FEDERAL (FNC) CEARENSE(FEC) FORTALEZENSE • Dividir recursos de forma regionalizada • Valorizar a produção regional. Favorecer o intercâmbio entre Estados • Capacitar recursos humanos • Preservar e proteger o patrimônio cultural • Apoiar projetos de interesse coletivo • Estimular o pluralismo cultural • Estimular a criatividade • Promover a difusão internacional da cultura brasileira FONTE: CUNHA FILHO,2002. Não especifica Não existe fundo da cultura 69 Quadro comparativo das modalidades de financiamento estabelecidas pelas legislações federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura para os respectivos fundos FEDERAL (FNC) CEARENSE (FEC) FORTALEZENSE A fundo perdido .A fundo perdido Não existe fundo da cultura Empréstimo FONTE: CUNHA FILHO,2002. Quadro comparativo das pessoas que podem ser beneficiárias de empréstimos reembolsáveis de recursos oriundos dos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) CEARENSE(FEC) FORTALEZENSE Pessoas físicas Não contempla Não existe fundo da cultura Pessoas jurídicas de direito privado e natureza cultural, com ou sem fins lucrativos FONTE: CUNHA FILHO,2002. Quadro comparativo das pessoas que podem ser beneficiárias de empréstimos a fundo perdido de recursos oriundos dos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) Pessoas físicas (bolsa, passagem e ajuda de custo) Pessoas jurídicas de direito privado e natureza cultural, sem fins lucrativos Pessoas jurídicas de direito público e natureza cultural CEARENSE (FEC) Pessoas jurídicas de direito privado e natureza cultural, sem fins lucrativos Pessoas jurídicas de direito público e natureza cultural FORTALEZENSE Não existe fundo da cultura FONTE: CUNHA FILHO,2002. A previsão de arrecadação em âmbito pessoal previsto na lei federal poderia ser muito útil, tanto nos impostos estaduais como municipais facilitando a captação desses recursos. 70 2.9 A gestão do FEC O Art. 5º da LJ estabelece que “O FEC será administrado por uma comissão nomeada pelo secretário da Cultura e Desporto, com poderes de gestão e movimentação financeira”. Exercendo a legítima prerrogativa outorgada pelo artigo 14 da referida norma, o Chefe do poder executivo, através do decreto, estabelecendo a estruturação, organização e funcionamento do FEC, determinou a compleição da respectiva comissão gestora, “presidida pelo Secretário de Cultura e Desporto e composta por dois servidores da SECULT e um servidor da SEFAZ.70 Salta aos olhos o fato de que todos os membros da comissão vinculamse à administração do Estado, sendo uns, inclusive, subordinados a outros, donde se conclui que o caráter plural da referida Comissão não tem o sentido de representação da sociedade ou de segmentos desta. Estaremos diante de uma estrutura antidemocrática? Não obrigatoriamente. Precisamos entender o papel de um fundo de apoio à cultura dentro de uma legislação de incentivo fiscal. Um fundo de apoio à cultura representa um veio de controle do Estado para promover a eqüidade entre os que disputam os incentivos. Assim, é normal que, ao lado do mecenato – que deve ter o mínimo de interferência pública – deve figurar o fundo, sobre o qual a interferência oficial tem proporção estatal tem proporção acentuada. Isto não quer dizer que os princípios democráticos devam ser esquecidos ou negligenciados, mas que o Estado tem grande autonomia na gestão do fundo. Se os redatores da LJ tivessem esta compreensão, não teriam cometido equívocos na estruturação da comissão gestora do FEC, como o que determina mandato de um ano para seus membros.71 Logo se vê que esta disposição não funciona para o presidente; ou poderíamos imaginar que o secretário da cultura, após um ano, tenha que se afastar da chefia da comissão? Ou ainda, vindo a ser exonerado, antes do transcorrido o referido lapso, teria ele o direito de completar o mandato? É evidente que não. Quanto aos demais membros, a circunstância não parece mais diferente, vez que todos são servidores do Estado e, a rigor, não são titulares de um mandato representativo de quem quer que seja, mas exercem uma espécie de função de confiança dos gestores da cultura. Ademais, que sentido há nesta temporariedade da comissão, se os “mandatos” são interna corporis? Por mais que tente, não encontro um motivo razoável. 70 Art. 71 Ver 9º do decreto nº 23.882/95. o art. 14 do Decreto n.º 23.882/95, que remete para o parágrafo 5.º do Art. 2. º do mesmo diploma. 71 Dentre as competências da Comissão Gestora do FEC podem ser citadas: análise, avaliação e decisão sobre a aprovação de projetos culturais; solicitação de avaliações técnicas; e estabelecimento de critérios de avaliação dos projetos.72 O que há de mais polêmico na gestão do FEC vincula-se a uma omissão, de vulto tão elevado que impregna a LJ, neste ponto, de flagrante inconstitucionalidade. A Constituição Estadual datada de 05 de outubro de 1989, seu artigo 233, prescreve: “Fica criado o Fundo Estadual de Cultura, a ser administrado pela Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto, ouvido o Conselho Estadual de Cultura”. Como se vê, o constituinte cearense quis que o Conselho Estadual de Cultura tivesse papel ativo e destacado na gestão do FEC. Porém, o referido Conselho sequer é mencionado, em toda a LJ. Qual a razão disto? Que conseqüências provoca? Não há documentos que justifiquem a apontada omissão, nem mesmo a exposição de motivos para a criação da Lei Jereissati. Algumas hipóteses podem ser levantadas. Em primeiro lugar, descredenciar o Conselho de Cultura parece ter sido uma preocupação das últimas gestões da SECULT, não por mero desrespeito aos honoráveis integrantes, mas por uma espécie de afirmação de ruptura de paradigmas. O Conselho sempre foi ligado preferencialmente às belas artes e ao beletrismo, o que contrariava a tendência das novas gestões, vinculadas ao desenvolvimento da chamada ‘cultura popular’ e sobretudo da ‘indústria cultural’. Assim, com a pecha de ‘ultrapassado’ e ‘inoperante’, o Conselho foi descartado, não somente da gestão do FEC, mas de seu regular funcionamento, previsto em Lei. Os argumentos podem ser verdadeiros e a participação do CEC na gestão do FEC pode ser dispensável e supérflua, mas nada justifica, num Estado democrático, o desrespeito puro e simples às normas da hierarquia constitucional. Se se quer alijar o CEC da política cultural do Ceará, que se mude, primeiramente, a Constituição. Inserindo nossa opinião, sustentamos que o CEC deva ser remodelado, para se adequar à democracia, ainda assim sendo um organismo muito importante na gestão da cultura, sobretudo se vier a efetivamente representar o pluralismo das manifestações culturais emanadas de nossa sociedade (CUNHA FILHO, 2002). Reforçando as palavras de Cunha Filho, reafirmamos a necessidade de reestruturação do CEC, inclusive a administração da Cultura, a partir de 2003, fomentou uma proposta neste sentido; a participação mais ativa dos setores culturais 72 Art. 26 do Decreto nº 23.882/95, que remete para o parágrafo 5º do Art. 2º do mesmo diploma. 72 vinculados aos gestores culturais municipais é de grande importância e, na nossa óptica, o aspecto da diversidade dos atores culturais do Estado foi contemplado na referida proposta. Quadro comparativo dos órgãos gestores dos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) Órgão vinculante: Minc Gerente: Ministro da Cultura Autoridade aprovada dos projetos: Ministro da Cultura Papel das entidades vinculadas, na aprovação de projetos: emitir parecer CEARENSE (FEC) Órgão vinculante: Secult Gerente: Secretário de Cultura Autoridade aprovadora dos projetos: Comissão Gestora do FEC, assim composta: – Secretário de cultura (presidente) – 1 servidor da SEFAZ – 2 servidores da SECULT FORTALEZENSE Não existe Fundo da Cultura FONTE: CUNHA FILHO,2002. 2.10 Os recursos disponíveis no FEC Reza o Art. 15 da LJ que “o FEC financiará no máximo 80%(oitenta por cento) do custo total de cada projeto, devendo o proponente oferecer contrapartida equivalente aos 20% (vinte por cento) restantes”;73 Obviamente, se o projeto vier a obter o percentual máximo admissível, isto porque “o valor financiável pelo FEC dependerá da existência de recursos financeiros disponíveis”.74 Seguindo elogiável dispositivo da lei federal correspondente, a contrapartida de responsabilidade do proponente de um projeto cultural pode darse em bens, serviços ou dinheiro. Saliente-se que “a contrapartida feita mediante alocação de recursos financeiros deverá ser comprovada quando da apresentação do requerimento, previsto no anexo I”.75 O que é digno de aplauso, neste caso, é que obriga o proponente a carrear os próprios recursos para a realização do projeto, ao mesmo tempo em que admite 73 Art. 15 do Decreto n.º 23.882/95 2.º do Art 15 do Decreto n.º 23.882-95. 75 Parágrafo 1.º do Art 15 do Decreto n.º 23.882-95. 74 Parágrafo 73 que tais recursos sejam diferentes do dinheiro, este que, em muitos casos, realmente não existe, e, se fosse obrigatório, inviabilizaria muitas iniciativas. Algo que existe na LJ é a fixação de um teto de recursos, em valores absolutos, por projeto. Esta omissão pode induzir situações de discrepância inaceitável, bem como o açambarcamento das verbas do fundo por um número reduzido de projetos. Imaginemos duas situações. Primeira: um projeto de orçamento no valor de R$ 3 mil; se for aprovado no valor máximo possível de 80%, retirará do fundo R$ 2, 4 mil. Segunda situação: um projeto de orçamento no valor de R$ 300 mil; se for aprovado no valor máximo possível, 80%, retirará do fundo 240 mil. Comparando os dois casos, temos que o primeiro projeto retira do Fundo recursos numa medida suportável; o outro, certamente lhe consumiria todo o numerário. Como resolver esta situação? Fixando-se um teto por projeto, por exemplo, de 50 mil. Na hora de liberar a verba, prevaleceria este teto ou o teto percentual de 80% sobre o orçamento, devendo ser escolhido o que, em números absolutos, representasse a menor cifra. Penso que seria razoável uma exceção para os limites, tanto do percentual como em números absolutos, no caso de projetos de relevante interesse cultural (CUNHA FILHO,2002). Acredito sinceramente que um dos aspectos mais importantes para repensar na LJ, seja, além de seus aspectos participativos, a inclusão de parâmetros mais exeqüíveis para a nossa realidade, qual seja, de um Estado com um potencial cultural formidável que não pode ver mais os Poderes Executivos estadual e municipais tratarem o setor como o “primo pobre”, ou a política do “evento” e da “política do pires na mão...”. Esta mentalidade ainda impera em boa parte dos nossos mandatários. A LJ, como elemento importante da política cultural, tem que refletir essas preocupações. Quadro comparativo da quantidade de projetos (de um mesmo proponente) que podem ser apoiados pelos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FEC) Não há. O que determina é a capacidade operacional, respeitados os princípios de equidade e isonomia. Um mesmo projeto não pode ser apoiado por mais de três anos. CEARENSE (FEC) Um mesmo proponente não pode apresentar mais de três projetos (Excetuam-se em ambos os casos, os declarados de interesse público) FORTALEZENSE Não existe Fundo da Cultura FONTE: CUNHA FILHO,2002. 74 Quadro comparativo dos valores percentuais máximos que podem ser obtidos junto aos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) Regra Geral: Até 80% do projeto CEARENSE (FEC) Exceções: 1) Até 100% nos casos previstos em leis especiais 2) Até 100% nos casos de destinação específica Regra Geral: Até 80% do projeto FORTALEZENSE Não existe Fundo da Cultura FONTE: CUNHA FILHO,2002. Quadro comparativo dos tipos de contrapartidas aceitas pelos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) .Pecúnia (dinheiro) .Bens .Serviços CEARENSE (FEC) .Pecúnia (dinheiro) .Bens .Serviços FORTALEZENSE Não existe Fundo da Cultura FONTE: CUNHA FILHO,2002. 2.11 O período de funcionamento do FEC Em princípio, o fundo estadual de cultura funciona ininterruptamente, muito embora a sua Comissão Gestora reúna-se, ordinariamente, uma vez por mês.76 À primeira vista, isto seria uma vantagem para aqueles que lhe submetem projetos com o fito de serem aprovados, pois teriam chances de, durante todo o ano, verem suas postulações apreciadas. Contudo, um estudo comparativo com o Fundo Nacional da Cultura pode nos induzir a outras (CUNHA FILHO,2002). O Fundo Nacional da Cultura tem, entre as regras de financiamento, aquela determinadora de que somente serão apreciados os pleitos que obedecerem aos seguintes intervalos: projetos a serem realizados no segundo semestre somente concorrerão aos recursos do FNC se forem apresentados até o dia 31 de maio; e até 76 Art. 9. º do anexo da Portaria SECULT n º 50/96. 75 30 de setembro devem ser apresentados os projetos que serão realizados no primeiro semestre do ano subseqüente.77 Que vantagem tem esta sistemática sobre a do FEC? Percebemos algumas: 1) obriga os produtores culturais a praticarem as técnicas de planejamento; 2) permite que o fundo se abasteça de recursos, para equilibrar a constante sangria; 3) enseja uma análise mais cautelosa de cada projeto, em virtude do tempo disponível; 4) tranqüiliza os proponentes, pois estes tem a certeza de seguir um calendário; 5) permite o emparelhamento de projetos similares, para que a autoridade pública tome, frente a eles, uma das seguintes decisões: a) determine a aplicação de recursos naquele que se mostrar de maior interesse cultural; b) determine o rateio das verbas disponíveis, da forma mais justa possível. Quadro comparativo dos períodos de funcionamento dos fundos federal, cearense e fortalezense de incentivo à cultura FEDERAL (FNC) Até 31 de maio, para projetos a serem realizados no 2º semestre do ano em curso Até 30 de setembro, para projetos a serem realizados no 1º semestre do ano seguinte CEARENSE (FEC) Funciona ininterruptamente, em tese FORTALEZENSE Não existe Fundo da Cultura 2.12 O mecenato estadual A expressão mecenato estadual não consta do texto da legislação cearense de incentivo à cultura e sequer é utilizada pela SECULT, mas integrará a presente análise para se referir à sistemática de apoio a projetos culturais, realizada por contribuintes do ICMS, em troca da abatimento do referido imposto. Não é, contudo, sem razão ou aleatório o epíteto, que encontra paradigma na legislação federal, e assenta-se na idéia de fazer ressuscitar a era dos grandes apoiadores das artes, que tem como ícone os mecenas.78 A idéia-mater do mecenato consiste no seguinte: o Estado renuncia à parte do imposto que tem o direito de cobrar, para que a pessoa beneficiada com 77 Art. 8. º , parágrafo 2. º , “a” e “b” do Decreto n. º 1494/95. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de Política cultural. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 246-7: “O termo deriva de um nome próprio, Mecenas, aristocrata romano de Arezzo (...Caio Clínio Mecenas serviu ao imperador Augusto (... )”. 78 Ver 76 esta renúncia apóie um projeto cultural, assumindo, porém, a obrigação de somar a este recurso mais uma fatia do seu próprio patrimônio. Em contrapartida, o apoiador do projeto cultural recebe em retorno (conforme o caso) publicidade, bens ou direitos sobre o projeto. O que define, em espécie, o retorno que terá um incentivador é uma das modalidades de apoio possíveis, que são: 1) doação; 2) patrocínio; ou 3) investimento. Estas três categorias encontram definição no parágrafo único do Art. 2º. Da LJ, que especifica: “I – Doação: transferência definitiva de bens e recursos, realizada sem qualquer proveito para o contribuinte; II- Patrocínio: as despesas do contribuinte com promoção ou publicidade em atividade cultural, sem proveito pecuniário ou patrimonial direto; III – Investimento: a aplicação de recursos financeiros, com proveito pecuniário ou patrimonial para o contribuinte”. Também neste ponto a redação da norma padece de boa técnica, pois não expressa a realidade dos institutos que menciona, como demonstramos abaixo, nos tópicos pertinentes. Na prática, o mecenato cearense tem, sinteticamente, o seguinte caminho: 1) o produtor cultural apresenta um projeto à SECULT, dentro de 3 (três) dias, encaminha o projeto à CAP; 3) no prazo de 120 (cento e vinte) dias, aprovado o projeto, a CAP autoriza o proponente a captar recursos junto aos contribuintes do ICMS, por uma das modalidades previstas; 4) encontrando incentivador (es), o proponente do projeto pede a este(s) uma declaração de aceitação de incentivo, na qual fixará(ão) o montante de recursos com que apoiará(ão) o projeto; 5) a declaração de aceitação de incentivo é remetida à SEFAZ a fim de que seja averiguada a regularidade fiscal do(s) incentivador(es), e também do proponente; 6) contatada a regularidade fiscal do(s) incentivadore(es) e do proponente, a SEFAZ expede os respectivos certificados fiscais de incentivo à cultura (CEFIC); 7) os CEFICs, após passarem pela SECULT e pelo proponente, chegam às mãos do(s) incentivador(es) para que com eles realizem os abatimentos devidos do ICMS; 8) ao receberem os CEFICs, o(s) incentivador(es) repassam a verba respectiva ao proponente do projeto, contra a entrega de recibo com firma reconhecida; 9) o proponente deposita o incentivo em conta bancária específica, para poder movimentá-lo, na realização do projeto; 10) findo o projeto (ou mesmo durante este), o proponente presta as contas devidas à comissão competente. A análise reflexiva deste trâmite (e suas possíveis variantes) também é feita nos tópicos seguintes. 77 Quadro comparativo das modalidades de incentivo previstas no mecenato federal, cearense e fortalezense FEDERAL Doação Patrocínio CEARENSE Doação Patrocínio Investimento FORTALEZENSE Doação Patrocínio Investimento 2.13 A doação Ao mencionar a doação, como vimos, a Lei Jereissati diz que dela não resultará “qualquer proveito para o contribuinte”, o que não é verdade. O caput do art. 2º da LJ autoriza o incentivador a deduzir 100% do valor da doação, desde que este valor não ultrapasse 2% do imposto a recolher. Saliente-se que a dedução pode perdurar por um prazo de até 18 (dezoito) meses.79 Além disso, o parágrafo único do artigo 19 do decreto nº 23.882/95 assegura que pode haver menção de agradecimento, no material de divulgação do projeto, ao ‘doador’ de recursos. As informações contidas no parágrafo precedente ensejam inúmeras reflexões. Vamos às principais. A primeira reflexão a ser feita sobre este tema será antipática a diversos envolvidos nos mecanismos de funcionamento da LJ, mas o rigor científico não permite a omissão. Saliente-se que o referido rigor não espelha o prazer pelo positivismo, mas, do ponto de vista mediato, visa a que a legislação de incentivo à cultura produza os efeitos que efetivamente deve produzir. Dentre estes efeitos, interessa a multiplicação de recursos em favor da cultura. Uma simples reflexão lógica induz à conclusão de que uma pessoa que doa dinheiro para um projeto cultural e, em seguida, pode obter de volta todo o dinheiro doado, deixando de pagar um imposto, nada mais fez do que mudar o endereço de pagamento do tributo, inexistindo qualquer acréscimo, em termos patrimoniais, ao recurso disponibilizado pelo Estado.80 79 Art. 17 do Decreto nº 23.882/95. registrar a existência do fato de que, mesmo nestes casos de abatimento integral, as empresas têm o mérito de adiantar para o projeto cultural o dinheiro que somente pagariam ao Estado em data futura. 80 Devemos 78 Pela práxis da legislação em apreço, em muitos casos, a doação assemelha-se a um exercício de sadismo cultural em virtude dos seguintes fatos: como visto, o Estado extrai quase todos os recursos da LJ, tanto pelo FEC quanto pelo mecenato, por meio de projetos de seu interesse. Enquanto isso, outros proponentes, fora do espectro referido, podem até ter seus projetos aprovados, podendo ofertar aos incentivadores abatimento total do ICMS; mesmo com tal vantagem, não conseguem, entretanto, os recursos necessários, uma vez que já foram absorvidos, o que provoca dupla frustração. Se, no caso de doação, o contribuinte pode deduzir todo o montante doado – ou seja, se tudo o que dá para a cultura não pertence a si, mas ao Estado – é o caso de se perguntar: por que, no lugar de prever a doação, tal como descrita, não se faz, via FEC, uma dotação orçamentária para apoiar determinado número de projetos, a cada ano, que serão definidos dentro de critérios e sistemática constitucionalmente admissíveis? Note-se que este equívoco inexistia na legislação federal de cultura, na qual, até antes da MP nº 1.589, reeditada dezenas de vezes até ser transformada na Lei nº 9.874/99, qualquer doação contava com a participação patrimonial do doador. Depois da referida norma, é que, para alguns segmentos, admite-se também a dedução total do valor doado – o que consideramos um erro, pelos motivos apresentados.81 A “doação” da LJ apresenta ainda algo mais a ser recriminado. Como referido, o ‘doador’, além de deduzir tudo o que deu quando pagar o ICMS, ainda tem o direito de ver um agradecimento, em favor de seu nome, no material publicitário do projeto cultural. Este direito não consta da LJ, mas apenas do decreto que a regulamenta – tendo havido, em mais este caso, excesso de competência. É o caso de se perguntar: que diferença há entre a figuração no material de divulgação e a publicidade? A aposição de uma logomarca? De fato, mesmo nos casos de doação, em vez de simples agradecimento, os produtores fazem mesmo é publicidade, e não há qualquer reprovação em contrário. Mesmo, contudo, que o símbolo da empresa doadora não conste dos impressos do projeto, a simples menção do seu nome, conforme dizem os argutos em mídia, tem o mesmo ou superior valor, na fixação da imagem, para o imaginário do público. Em síntese conclusiva, podemos asseverar que um doador, via de regra, tem, de fato, as seguintes vantagens: 1) deduz toda a “doação” no imposto que 81 Parágrafo 3º do Art. 18 da Lei nº 8.313/91. Os segmentos referidos são: artes cênicas; livros de valor artístico, literário ou humanístico; música erudita ou instrumental; circulação de exposição de artes plásticas; doações de acervos para bibliotecas públicas e para museus. 79 pagaria e 2) obtém retorno de imagem com, no mínimo, menção de seu nome em forma de agradecimento. Isto infirma a definição legal de doação. Por fim, merece destaque mais uma inovação do decreto nº 23.882/95. Diz o Art. 28 do referido diploma que, nos projetos culturais aprovados para incentivo na modalidade ‘doação’, a SECULT somente remeterá à SEFAZ a Declaração de Aceitação de Incentivo, para fins de emissão do CEFIC, caso não tenha sido ultrapassado o valor equivalente a 50% do potencial de recursos para incentivo disponível. Traduzindo: ultrapassada mais da metade dos recursos disponibilizados para incentivar a cultura, em um dado semestre, o Estado somente liberará captação de recursos nas modalidades ‘patrocínio’ e ‘investimento’. A lógica e os efeitos desta decisão serão comentados nos tópicos a seguir. Quadro comparativo das mais importantes peculiaridades resultantes de doação (obtida no mecenato) nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL 1) Vantagens para o incentivador Regra geral: abatimento como despesa operacional; dedução tributária, nos limites: PF: 80%, até 6% do IR devido PJ:40%, até 4% do IR devido Exceção: dedução tributária de 100%, no limite de 4% do IR devido, nos segmentos do parágrafo 3º do Art. 18 da Lei 8.313 2) Excluídos de captar por doação: PJ com fins lucrativos Entidades instituídas ou mantidas pelo poder público CEARENSE 1) vantagens para o incentivador dedução tributária de 100%, até 2% do ICMS a recolher “agradecimento” no material de divulgação do projeto FORTALEZENSE 1) Vantagens para o incentivador Não especifica, remetendo para Decreto (que ainda não foi editado) inclusive a fixação do percentual de abatimento. O montante de abatimento por contribuinte não pode exceder a 15% do ISS a recolher, referente ao setor de diversões. 80 2.14 O patrocínio O sistema de patrocínio do mecenato estadual permite que o contribuinte abata até 80% do valor destinado a um projeto cultural, até o limite de 2% do ICMS a recolher. Neste caso, obrigatoriamente, o patrocinador deve entrar com recursos próprios, para complementar o total do orçamento do projeto. Esta contrapartida, ao contrário do que ocorre com a norma federal correspondente, não pode dar-se em bens e serviços, mas apenas em dinheiro – o que sem dúvida é um complicador para os produtores culturais. É mais cômodo, porém, para o Estado, que tem melhores condições de fiscalização, além do que desenvolve menor esforço do que para mensurar os valores de eventuais serviços e bens. Outra vantagem para o patrocinador, além do abatimento referido, é que tem o direito de ver sua logomarca veiculada em todo o material de publicidade do projeto apoiado. Consideramos o mecenato cearense adequadamente estruturado nos aspectos ora referidos. Quadro comparativo das mais importantes peculiaridades resultantes de petrocínio (obtido no mecenato) nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL 1) Vantagens para o incentivador Regra Geral: publicidade; possibilidade de receber até 25% dos produtos e direitos (exceto autorais) do projeto; abatimento como despesa operacional; dedução tributária, nos limites: PF: 60 %, até 6% do IR devido PJ: 30%, até 4% do IR devido Exceção: dedução tributária de 100%, no limite de 4% do IR devido, nos segmentos do parágrafo 3º do art. 18 da lei 8.313 CEARENSE 1) Vantagens para o incentivador dedução tributária de 80%, até 2% do ICMS a recolher Publicidade FORTALEZENSE 1) Vantagens para o incentivador Não especifica, remetendo para o Decreto (que ainda não foi editado) inclusive a fixação do percentual de abatimento. O montante de abatimento por contribuinte não pode exceder a 15% do ISS a recolher, referente ao setor de diversões. 81 2.15 O investimento No caso de investimento, aquele que contribui para o projeto cultural pode deduzir 50% do valor empregado, até o limite de 2% do ICMS a recolher. Esta informação, de teor meramente técnico, não revela os equívocos desta modalidade de apoio à cultura inserida na Lei Jereissati. Desvelemos tais equívocos. A modalidade ‘investimento’ obriga à formação de uma sociedade entre o produtor cultural e o contribuinte do ICMS. A comprovação desta assertiva reside no fato de que ambos participam dos resultados pecuniários do projeto. Note-se, porém, que o incentivador tem situação privilegiada, pois somente participa do lucro, se houver, e nunca de eventual prejuízo (que exceda o valor não incentivado de sua participação), pois, como prescreve a lei, o investimento é a “aplicação de recursos financeiros com proveito pecuniário ou patrimonial para o contribuinte”. Facilmente se vê aqui uma sociedade em desequilíbrio. Como se não bastasse, é clara a incompreensão, ou, no mínimo, equivocada, a designação desse instituto. Na regressão (curiosamente chamada, na LJ, de progressão) de nível de apoio a projetos que são apresentados mais de uma vez, na terceira apresentação o Estado determina a formação de sociedade entre incentivadores e produtores. Assim diz literalmente o Art. 25 do decreto nº 23.882/ 95 (e alterações posteriores): “Os projetos culturais de realização repetitiva periodicamente ou os de execução continuada, caso o proponente requeira renovação do incentivo para a continuidade de sua realização em prazo superior ao previsto no Artigo 17, estarão sujeitos obrigatoriamente à progressão da modalidade ‘doação’ para ‘patrocínio’ e deste para ‘investimento’. Fica evidenciado que o Estado determina a forma de relação societária entre contribuinte e produtor cultural. Isto é um erro, pois quem deve optar por uma das modalidades (doação, patrocínio ou investimento) seria o produto cultural, dentro de determinados critérios. Por exemplo: projetos de entidades com fins lucrativos não poderiam usufruir da modalidade ‘doação’, mas poderiam optar por ‘patrocínio’ ou ‘investimento’, conforme o interesse. Entidades sem fins lucrativos poderiam optar por qualquer uma das modalidades. Ao obrigar uma sociedade entre produtores e contribuintes, a LJ fere pelo menos duas regras da Constituição Federal. A primeira delas determina que ninguém será obrigado a associar-se82 e a outra diz que compete à União legislar sobre direito comercial.83 82 Art. 83 Art. 5º, XX, da Constituição Federal. 22º, I, da Constituição Federal. 82 Note-se, por fim, que no mecenato federal não existe a modalidade ‘investimento’. E por que razão? Simplesmente porque se compreende que esta é uma esfera que deve ser resolvida exclusivamente pelo mercado, não cabendo ao Estado nela adentrar. Por este motivo, foram criados os Fundos de Investimento Cultural e Artísticos (FICARTs), espécies de ações que remetem toda a problemática da relação entre parceiros comerciais para eles próprios e, quando muito, para a Comissão de Valores Mobiliários. Quadro comparativo das mais importantes peculiaridades resultantes de investimento (obtido no mecenato) nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL 1) Observação: o investimento na legislação federal, é tratado em um mecanismo à parte, chamado FICART isto porque: . o Estado não pode determinar a formação de sociedades, entre particulares; . os ‘embates’ entre sócios devem ser por eles resolvidos 2) vantagens para o investidor: . irresponsabilidade pela gerência do fundo; . tratamento tributário mais benéfico quando da distribuição de dividendos CEARENSE 1) Vantagens para o incentivador . dedução tributária de 50%, até 2% do ICMS a recolher FORTALEZENSE 1) Vantagens para o incentivador Não especifica, remetendo para decreto (que ainda não foi editado) inclusive a fixação do percentual de abatimento. O montante de abatimento por contribuinte, não pode exceder 15% do ISS a recolher, referente ao setor de diversões. 2.16 Os recursos O mecenato cearense dispõe de uma renúncia fiscal limitada ao valor de 320.000,00 (trezentos e vinte mil reais) por mês.84 Este limite não existe na Lei Jereissati e foi inserido na legislação via Decreto, o que é inadmissível, pelas razões aqui apontadas. Este valor não está vinculado a qualquer índice de atualização, deixando entrever que somente pode ser alterado por outro decreto ou norma a ele superior. Ademais, o montante especificado constitui um teto que pode ou não ser atingido, uma vez que também existe a determinação de que “a SEFAZ informará à SECULT, a cada seis (6) meses, a previsão do montante de arrecadação do ICMS 84 parágrafo 5º do Art. 7º do Decreto nº 23.882/95. 83 e o respectivo potencial de recursos a serem disponibilizados para incentivo fiscal, no semestre imediatamente posterior”.85 O valor de R$ 320 mil mensais compreende os repasses feitos por contribuintes do ICMS tanto para o FEC como para os projetos dos produtores culturais. Diante de todas essas informações, nota-se a pequenez da renúncia fiscal do mecenato cearense – pequenez esta que adquire um grau superlativo quando, mais uma vez, fica constatado que o Estado, em vez de ser exclusivamente incentivador da cultura, assume freqüentemente o papel de incentivado. Quadro comparativo do montante da renúncia fiscal em favor da cultura nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL (FNC) Por Decreto, o Presidente da República fixa um valor anual – que, em 2002, atingiu R$ 160 milhões (Dec. Nº 4.410/2002) CEARENSE (FEC) Não pode exceder R$ 320 mil / mês ou R$ 3,84 milhões/ano FORTALEZENSE Não pode exceder 15% do segmento ‘diversões públicas’ do ISS/ano A Lei Jereissati não especifica fins para o mecenato cearense, de modo a diferenciá-lo do Fundo Estadual de Cultura, mas é claro que ele se vincula a outros propósitos, pois, se assim não fosse, o que justificaria a existência de dois mecanismos de incentivo em única lei? Não estando explícitos, como afirmado, os fins do mecenato, estes devem ser clareados pela dedução das linhas e entrelinhas da Lei, bem como pelo estudo comparado. A partir do primeiro parâmetro, a tarefa não é fácil, pelo laconismo da legislação neste aspecto. Resta, pois, uma comparação comas normas federais. No âmbito federal, o Artigo 18 da Lei n. º 8..3313/91 estabelece amplo objetivo para o mecenato federal: “incentivar as atividades culturais”, “mediante projetos aprovados de acordo com as diretrizes do Programa Nacional de Apoio à Cultura(PRONAC)”, complementa o Art. 17 do Decreto federal n. º 1494/95. Aqui se nota uma diferença essencial entre as leis federal e estadual de incentivo à cultura, o que pode justificar a ausência de objetivos específicos na norma 85 Art. 27 do Decreto nº 23.882/95 84 cearense. Enquanto a Lei nacional existe suporte um amplo programa cultural, em princípio elaborado democraticamente, com a participação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura(CNIC), a lei estadual é um fim em si mesma – ou como muitos têm declarado – suporte da política cultural definida exclusivamente pelo Governo. De qualquer modo, tem em comum, as duas leis, o referido e amplo objeto de incentivar indistintamente as atividades culturais, nos limites dos segmentos culturais nelas definidos. Os beneficiários do mecenato estadual também não estão explicitados na legislação e, da mesma forma, são apreendidos por dedução da competência da Comissão de Análise de Projetos(CAP), como se infere do parágrafo 3.º, I, do Art. 2.º do Decreto n.º 23.882/95, que diz: “compete à CAP analisar, avaliar e decidir sobre a aprovação de projetos culturais apresentados por pessoas físicas e jurídicas”. ‘Pessoas físicas e jurídicas’ compõem um universo imenso, que não se coaduna com o raio de abrangência da norma – e, portanto, deve ser simplificado, para responder à questão: quem, efetivamente pode se beneficiar do mecenato cearense? Quanto às pessoa físicas, o que determinará o acesso ao incentivo é principalmente o fato de que desenvolva atividade cultural no espectro da abrangência da Lei. Até o incapaz ou o relativamente capaz de usufruir dos benefícios, desde que devidamente representado ou assistido. Estas pessoas também não podem ser titulares de inadimplência para com a Fazenda Pública Estadual.86 Quanto às pessoas jurídicas, de pronto ficam excluídas; 1) as com pendências fiscais para com o Estado; 2) as que são constituídas apenas de fato; e 3) as irregulares. Não obstante esta grande quantidade de exclusões, ainda continua amplo e indefinido o âmbito dos possíveis beneficiários pessoas jurídicas do mecenato estadual. Se não, responda-se tranqüilamente a estas perguntas: quaisquer pessoas jurídicas, tirantes as há pouco eliminadas, podem concorrer às verbas do mecenato cearense? Precisariam elas se enquadrar na designação ‘culturais’? E as pessoas jurídicas de direito público, se incluem? Também estão incluídas indistintamente as que prevêem fins lucrativos e as que não o fazem? Para estas inquietações não há resposta na legislação cearense, o que remete tão árdua tarefa à doutrina e à jurisprudência. Visando contribuir para a solução da problemática referida, aprensenamos nossa opinião. 86 Art. 10 da Lei Estadual 12.464/95. 85 Às pessoas jurídicas que postulam verbas do mecenato estadual cremos ser imprescindível que disponham, em seus atos constitutivos (estatuto, contrato social e quejandos), do desenvolvimento de atividade cultural. Às entidades assim constituídas, a legislação federal atribui a designação pessoas jurídicas de natureza cultural.87 A observação, para o caso cearense, faz-se necessária, pois não havendo o limite referido, o que determinaria o acesso ao benefício fiscal seria não a natureza da empresa ou da associação, mas o simples fato de apresentar um projeto cultural nos termos da Lei Jereissati. Quanto às pessoas de direito público (Estado e municípios, por suas pastas da cultura), não obstante notícias em contrário,88 devem estar excluídas da possibilidade de captar por meio do mecenato, ao menos na modalidade ‘doação’, pois, sendo titulares de posição de superioridade sobre os contribuintes, gozam frente aos produtores culturais de situação privilegiadíssima. Para estas, já existe e deve ser fortalecido o apoio por meio do Fundo Estadual da Cultura, além de dotações orçamentárias próprias. Outra questão inquieta: pode e deve haver limitação de acesso aos benefícios fiscais às pessoas jurídicas com sede e atuação no Ceará? Não há na lei esta limitação e, operacionalmente, esta não é a prática.89 O benefício pode até ser estendido a empresas não fixadas ou atuantes no Ceará, desde que o retorno social decorrente do favor fiscal o justifique amplamente. Esta deveria ser uma situação excepcional, prevista na lei. FEDERAL Pessoas físicas Pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real CEARENSE Pessoas jurídicas excetuados os recolhimentos com base em substituição tributária FORTALEZENSE Pessoas físicas Pessoas jurídicas (Em ambos os casos, as do setor diversões públicas ) 87 Art. 18, II, “a” e “b”, do Decreto Federal nº 1.494/95 88 O Município de Maracanaú teve, no ano de 1997, projeto aprovado via mecenato estadual para realizar o seu mapeamento cultural. 89 É público e notório o apoio a empreendimentos cinematográficos de empresas do Sudeste, com recursos do mecenato cearense. 86 Quadro comparativo das pessoas que podem ser incentivadas (pelo mecenato) na realização de projetos culturais nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL Pessoas físicas Pessoas jurídicas de natureza cultural CEARENSE Pessoas físicas Pessoas jurídicas FORTALEZENSE Pessoas físicas Pessoas jurídicas 2.17 A gestão do mecenato cearense O mecenato cearense é gerido pela Comissão de Análise de Projetos, mais conhecida pela sigla CAP. A CAP tem a seguinte composição: presidente nato – o secretário da Cultura e Desporto; representantes do poder público estadual – (três (3) servidores da SECULT e um (1) servidor da Secretaria da Fazenda – SEFAZ; e (3) representantes da sociedade civil (indicados por associações civis de fins culturais ou entidades de artistas). Esta composição revela a quase completa inutilidade da participação da sociedade, a não ser como colaboradora, uma vez que concentra todos os poderes decisórios da comissão nas mãos do Estado – no caso, personificado pelo gestor da Pasta da Cultura. O Estado, na CAP, tem cinco membros, contra três da sociedade civil, que são submetido a critério de escolha no mínimo questionável, pois “as indicações de representantes serão apresentadas em listas tríplices (...), cabendo ao secretário da Cultura e Desporto a escolha dos membros da CAP”.90 Note-se que não há a exigência de que as entidades culturais hábeis a indicar membros para a CAP tenham caráter e atuação em todo o Estado, podendo representar – como usualmente ocorre – tão-somente as organizações da Capital. Tampouco há um critério de alternância entre as diversas entidades que eventualmente habilitem candidatos.91 Os contribuintes não se fazem presentes na composição da CAP e tampouco há representantes dos municípios. 90 Parágrafo 2º do Art. 2º do Decreto nº 23.882/95 (e alterações posteriores). CAP, segundo atos (inominados) do governador do estado, publicados no Diário Oficial do estado do Ceará, nas edições de 4 de dezembro de 1995, 3 de março de 1997 e 4 de maio de 1998, recrutou representantes da sociedade civil exclusivamente das seguintes entidades: Associação de Cinema e Vídeo, Associação dos amigos da Música Antiga e Fundação dos Amigos do Teatro José de Alencar. 91 A 87 Essa disparidade numérica de membros em favor do Estado já o exclui, de pronto, do potencial usufruto do direito representado pela “delegação“ prevista na Lei Federal. O que vem a ser isto? É a circunstância que permite a estados e Municípios que tenham leis de incentivo à cultura regidas por comissões, no mínimo, paritárias, entre membros da sociedade civil e do poder público, para decidir sobre a aprovação de projetos oriundos do seu território, renunciando a tributos federais. Segundo o critério de José Carlos Durand et al., a estrutura da CAP é das menos democráticas, dentre as similares no Brasil.92 Com referência à competência da CAP, aplicam-se as observações e informes expedidos quando da análise da Comissão Gestora do FEC. Quanto aos mandatos dos membros da comissão analisada, na parte da composição vinculada ao Estado, também é desnecessário repetir o que foi dito, aplicando-se igualmente similar argumentação, no sentido da ausência de necessidade da renovação dos mandatos a cada ano. Para os representantes da sociedade civil, contudo, é rota a legislação, pois textualmente prescreve que “terão mandato de um ano, permitida a recondução por igual período”.93 Sublinhe-se que a norma permite a recondução, e não uma, duas ou três reconduções, ensejando a quebra, deforma sub-reptícia, do princípio da temporariedade dos mandatos, inerente ao republicanismo adotado pelo Brasil. Os leitores hão de observar possível contradição em nosso argumento, passível de tradução pela seguinte pergunta: por que limitar os mandatos de uns e não de todos? A resposta é simples: os representantes vinculados ao Estado representam um interesse que, com as devidas desculpas a Marx, é perene, desenvolvendo, tais agentes, seu mister de forma impessoal, podendo ser substituídos por outros, a qualquer momento, sem que a finalidade da norma seja violada. Quanto aos representantes da sociedade, estes espelham um dado momento desta, que é muito mais dinâmica que o Estado e necessita constantemente das possibilidades de renovação. 92 DURAND, José Carlos; GOUVEIA, Maria Alice de; e BERMAN. Patrocínio Empresarial e Incentivos Fiscais à cultura no Brasil. Análise de uma Experiência Recente. Paper apresentado no XVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela INTERCOM/ Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Aracaju, 6 a 10/09/95. Atualizado com informações colhidas na cerimônia de abertura do evento Economia da Cultura: as leis de incentivo, promovido em São Paulo, em 12/09/95. Estes autores constataram, em estudo comparado: “Com exceção das leis municipais de São Paulo e Salvador, que admitem maioria para os representantes das entidades culturais (...), nas demais se vê um equilíbrio entre representantes do governo e das entidades artísticas. Como casos limites, as leis de Londrina, Estado do Paraná, e de Teresina, no Piauí, concentram poder em mãos de representantes das áreas de finanças, cultura e da chefia do executivo municipal”. E assentando posição axiológica própria, concluem, ironizando: “Ou os prefeitos de Teresina costumam ser mais envolvidos e versados em cultura que os do resto do País, ou a sociedade civil local está em nível tão baixo de estruturação que não existem entidades organizadas na área cultural, ou é clientelismo explícito mesmo.” 93 Parágrafo 5º do Art. 2º do Decreto nº 23.882/95 (e alterações posteriores). 88 Quadro comparativo da participação popular no gerenciamento das legislações de incentivo à cultura (principalmente no que concerne ao mecenato), nos âmbitos federal, cearense e fortalezense FEDERAL 1) É tentada através da CNIC, assim composta: .membros natos: ministro (presidente) . mresidentes das vinculadas (em número de 5) . presidente do Fórum de Secretários de Estado e Distrito Federal membros indicados: . (com mandato de 2 anos, renovável uma vez): . 1 representante do empresariado nacional . 6 representantes de entidades Artístico Culturais de caráter nacional 2) Competências da CNIC: . deliberar sobre os limites do PRONAC . apreciar recursos de projetos não aprovados . aprovar o plano anual de trabalho do FNC . ampliar o rol de ações do PRONAC . ampliar o rol de segmentos do PRONAC . fixar as entidades que podem apresentar planos de atividades no lugar de projetos . apreciar recursos sobre contas não aprovadas . estabelecer projetos prioritários, nas carências de recursos . avaliar o PRONAC 3) A SISTEMÁTICA DA DELEGAÇÃO, que consiste na possibilidade de que a análise, a aprovação, o acompanhamento e a avaliação técnica dos projetos – resguardada a decisão final pela CNIC – possam ser delegados pelo Ministério da Cultura aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, mediante instrumento jurídico que defina direitos e deveres mútuos.Contudo, a delegação dependerá da existência de: a. lei de incentivos fiscais para a cultura, no âmbito do ente delegado; b. órgão colegiado, cuja existência esteja prevista pela dita Lei, para análise e aprovação dos projetos; e c. que o referido órgão colegiado tenha representação da sociedade pelo menos paritária, e as diversas áreas culturais e artísticas estejam representadas. CEARENSE 1) É tentada através da CAP, assim composta: .membro nato: . secretário (presidente) membros nomeados: . 3 servidores da SECULT . 1 servidor da SEFAZ membros indicados, com mandato de 2 anos, sem limite de renovação: . 3 representantes de entidades artísticas e culturais Competência da CAP: -deliberar sobre projetos e, para tanto definir critérios e proceder a diligências, incluindo perícias . -apreciar pedidos de reconsideração. FORTALEZENSE 1) É prevista na Lei uma comissão composta por: . Técnicos do município, dentre os quais é obrigatória a presença de representantes da SEFIN; e . Artistas indicados por sindicatos e associações A Lei, contudo, remete toda a regulamentação para Decreto do executivo. Competências da Comissão: – analisar e avaliar projetos culturais. FONTE: CUNHA FILHO,2002. 89 2.18 O período de funcionamento Em tese, o mecenato cearense funciona ininterruptamente, apreciando e deliberando sobre projetos culturais durante todo o ano. Na prática, existem alguns fatores que podem determinar sua momentânea paralisação. São eles: 1) o atingimento dos valores permitidos para a renúncia fiscal; 2) a morosidade no trâmite dos projetos, com destaque para a nãoliberação dos CEFICs por parte da Secretaria da Fazenda; e 3) o encerramento do ano fiscal. 3 VISÕES DIVERSAS 3.1 Panorama nacional Há mais de um ano, quando o presidente Lula assumiu o governo, as políticas de incentivo à cultura foram postas em xeque. Muito antes disso, porém, a lei federal de incentivo à cultura, a chamada Lei Rouanet, em vigor há 13 anos, e as leis estaduais já mostravam falhas que indicavam a imperiosa necessidade de uma mudança de rumos. As duas legislações, tanto a federal quanto as estaduais, permitem que empresas apóiem produtos e eventos culturais, obtendo descontos em impostos, ou seja, via renúncia fiscal. É consenso, porém, que os instrumentos legais utilizados hoje, bem ou mal, suprem uma falta histórica das políticas públicas, que sempre trataram o setor cultural como secundário, como menos importante. Afinal, não se poder destinar mais verba para a cultura enquanto houver graves deficiências na saúde educação etc. Não havia a visão de que pode haver investimento em cultura sem que haja uma sangria dos cofres públicos que prejudique as demais áreas. As leis de incentivo são apenas exemplos (embora o maior dos exemplos) de como trabalhar a área cultural em parceria com a iniciativa privada e como é possível criar espaço para a implementação de uma indústria cultural – fazendo com que os segmentos deixem de ser vistos como sanguessugas do dinheiro público e se tornem, efetivamente, fator de desenvolvimento, gerador de emprego e renda. Por outro lado, o poder público não pode se eximir da função fundamental de norteador de políticas, de coordenador do processo de formação de uma cultura sólida e abrangente. O debate nacional tomou grandes proporções quando setores do próprio Governo federal começaram a questionar as leis de incentivo, sob a alegação de que elas estariam acirrando a guerra fiscal entre os estados – guerra que já ocorre há bastante tempo, principalmente no setor industrial. Paralelamente, foram divulgados na imprensa os pontos de vazamento das leis: a demora decorrente do processo burocrático, apoio a eventos internos de empresas privadas (o próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil, citou um caso de uso do dinheiro público, via Lei Rouanet, para patrocinar um livreto de marketing de um supermercado), produtores que não cumpriram o projeto ou deixaram de prestar contas ao Governo, uso da lei de incentivo para apoiar o próprio governo, critérios de seleção de 91 projetos duvidosos e outros tantos erros apontados pelos próprios beneficiados, empresários e imprensa. Havia algo emperrando o bom funcionamento do processo, pois dos 2007 projetos culturais aprovados pelo Minc em 2003, apenas 281deles conseguiram os recursos da Lei Rouanet, ou seja, apenas 14% das propostas aprovadas. Pelas mãos da Reforma Tributária, a questão das leis de incentivo chegou ao Congresso Nacional no ano passado sob ameaça de extinção – com a proposta de uma sobrevida de três, depois onze anos, a fim de que as políticas estaduais se preparassem para o baque. O projeto de reforma tributária foi aprovado no dia 04/09/03, com o fim da concessão dos incentivos fiscais à cultura. Seria o fim de uma fonte de recursos que representa um forte impacto na produção cultural nos 16 estados em que atua. Somente em 2002, segundo o site Cultura e Mercado, foram movimentados R$ 166 milhões. Resultados como esses fizeram com que artistas de todo o País realizassem protestos contra a extinção e o próprio Ministério da Cultura deixou de lado os deslizes e desvios causados pelo processo, para defender a permanência das normas legais e negar sua contribuição para a guerra fiscal entre os estados. Em novembro de 2003, através de uma emenda ao projeto de Reforma Tributária já aprovado, o senador Aloízio Mercadante manter as leis. Passado o alvoroço, o governo Lula achou por bem arrumar a casa. O ministro Gilberto Gil, como já havia anunciado desde o ano passado, no centro da crise, divulgou no dia 14/04/04, quais as mudanças na Lei Rouanet. Entre as principais modificações propostas pelo Minc está a adoção de mais rigor na avaliação dos projetos e artistas que pleiteiam o financiamento público. A nova avaliação inclui um parecer de especialista na área cultural, com pontuações para os diferentes concorrentes. Pelos novos critérios, artistas menos conhecidos e prestigiados pela mídia teriam maior peso, bem como os projetos voltados para as camadas mais carentes da população brasileira. Os limites para isenção serão diferenciados, de acordo com as regiões, numa tentativa de descentralização de verbas, que hoje se concentram, em sua grande maioria, no eixo Rio-São Paulo. O ano de 2003 é um bom exemplo disso: dos R$ 403,4 milhões captados em todo o País via Lei Rouanet, 67% foram destinados a eventos sediados na região Sudeste (em anos anteriores esse percentual já chegou a 80%). A idéia do Ministro é incentivar a produção cultural, principalmente, no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ainda por ser detalhada publicamente, a nova estrutura da lei federal foi elaborada depois de receber mais 92 de seis mil sugestões, colhidas ao longo do ano passado, nos seminários estaduais intitulados “Cultura para Todos”, realizados pelo Minc. A mãe de todas as leis de incentivo, a Lei Rouanet, de 1991, trouxe em seu código genético as principais virtudes e defeitos do mecanismo. O maior defeito é quase consensual, nacionalmente: as leis não poderiam ser utilizadas como a panacéia da cultura no Brasil.”Quando você centraliza todas as expectativas em cima da lei, sem criar em paralelo uma política para o setor efetivamente contundente, como as políticas públicas permanentes, isso acaba por desgastar o instrumento, já que os produtores independentes passam a concorrer com o governo e não vão conseguir recursos junto à iniciativa privada”, opina o especialista no assunto, Fábio Cesnik, autor do Guia do Incentivo à Cultura (O Povo, 28/07/02). 3.2 Os números da cultura Mesmo com a crise política enfrentada pela espinha dorsal das políticas culturais brasileiras, as chamadas leis de incentivo, os investimentos não refletem essas dificuldades: as maiores empresas do País divulgaram, em dezembro do ano passado, que irão destinar, em 2004, R$ 76,3 milhões para patrocínios culturais. Os estados apostam nas loterias e “raspadinhas” culturais para suprir as deficiências de caixa diante da possibilidade de extinção dos incentivos legais. Alguns estados lançam planos de cultura (como o Ceará), que a visam promover a inclusão social e fazer da cultura uma fonte de renda. Essas diretrizes seguem a linha do que o Ministério da Cultura tem divulgado como prioridade da atual gestão. O ministro Gilberto Gil já disse claramente: quer ser também o “ministro da economia da cultura”. A única pesquisa nacional que existe sobre economia da cultura, feita pela Fundação João Pinheiro em 97 (disponível no site do Minc), justifica a posição do Ministro: esse segmento movimenta cerca de R$ 10 bilhões/ ano no Brasil e contribui com cerca de 1% do PIB nacional. Na área musical, as gravadoras movimentam R$ 1,5 bilhão. O cineasta Luís Carlos Preste Filho, responsável pelo desenho da cadeia produtiva do Rio de Janeiro e coordenador do Núcleo de Estudos de Economia da Cultura da PUC, lançou o desafio para que cada estado realize sua pesquisa. No Ceará, o único estudo nesse sentido, feito pelo antigo Instituto de Planejamento do Ceará (Iplance), a pedido do então secretário Nilton Almeida, revela que no Ceará essa participação não ultrapassa 1,9%. No Rio de Janeiro, há uma movimentação de R$ 5 bilhões/ano em torno do segmento – o que representa 3,8% do PIB carioca. 93 3.3 Política cearense para o setor A permanência ou não das leis culturais, o debate que varreu por debaixo do tapete e trouxe à luz os lados mais obscuros do processo, a reavaliação do próprio Governo, tudo isso trouxe graves conseqüências para alguns estados, entre eles o Ceará. Enquanto não se definia a Reforma Tributária, enquanto o Minc não apresentava a reformulação das regras federais, a Lei Jereissati continuou em compasso de espera (veja a origem da Lei no quadro em anexo). Sem receber novos projetos desde maio de 2002 e com o limite mais baixo de sua história (R$ 150 mil), a lei estadual segue liberando os recursos de propostas aprovadas antes da suspensão, há dois anos. A mudança do nome para Lei Alcântara – para que o atual governador imprima sua marca – será apenas uma das alterações. Mas a secretária Cláudia Leitão ainda não revelou se a reformulação será similar à federal ou se a Alcântara terá as peculiaridades próprias de um dos estados mais pobres do País. Antes mesmo de mudar as diretrizes de uma lei em declínio (tanto pelo ponto de vista do teto do investimento quanto pela suspensão do recebimento de novos projetos desde 2002), mas que deverá ser revitalizada, a Secretaria de Cultura do Ceará anunciou novas tentativas de fortalecer a cultura – para que este fortalecimento não seja responsabilidade exclusiva da Lei Alcântara. Segundo a secretária, haverá um volume maior de recursos para os fundos estaduais (a proposta dos secretários de estado é de destinação de até 0,5% do ICMS), mas a principal novidade é o Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI), que pela primeira vez irá incluir a cultura como um dos requisitos para a concessão de benefícios fiscais. Investimentos culturais, em patrimônio material e imaterial, tecnologia aplicada à cultura, no setor fonográfico, audiovisual e outros podem contar com até 1% do ICMS da empresa que estiver se instalando no Estado ou ampliando sua capacidade produtiva. Ainda não se tem idéia de quanto esse estímulo poderá significar para a cultura cearense. Além do FDI, a secretária lançou o Selo de Responsabilidade Social, para as empresas que fazem investimentos relevantes em bens culturais, na tentativa de dar maior visibilidade aos investidores e estimular a participação de um maior número de empreendedores nas políticas de apoio às artes. A previsão, porém, é de que os quatro primeiros selos sejam entregues somente em novembro deste ano. Um dos percalços maiores da Lei Jereissati foi a restrição dos investimentos. Na origem, em 1995, os empresários que investissem em cultura podiam deduzir até 2% do ICMS devido ao Estado; em seguida, em 1997, esse teto 94 foi reduzido para apenas R$ 320 mil e, na gestão do jornalista Nilton Almeida, foi um pouco ampliado, chegando a R$ 416 mil. À época, o secretário Nilton Almeida afirmou ser “impossível implantar ou solidificar uma indústria cultural com R$ 416 mil”. Hoje, como já dissemos, esse teto encolheu para R$ 150 mil. Outro gargalo visível está na dependência da Secretaria de Cultura ante a SEFAZ. Historicamente, as secretarias de fazenda, através do CONFAZ, já se posicionaram contra as leis de incentivo. Os produtores reclamam que a maior demora, em todo o processo de financiamento, está justamente na liberação dos Cefics pela Secretaria da Fazenda. A falta de critérios bem definidos, a ausência da classe artística nas discussões para tomada de decisão, a carência de políticas estaduais permanentes para a área, são citadas pela imprensa como fatores que atrasam e até emperram o bom funcionamento da Lei Jereissati. Mesmo com todos esses entraves, contudo, ex-secretários, artistas e a própria imprensa são unânimes em reconhecer a importância das leis de incentivo para o desenvolvimento econômico, social e cultural brasileiro. As vantagens e os resultados alcançados em nove anos superam, e muito, os problemas. Apesar de externarem visões diferentes quanto às estratégias de ação que tornem possível esse desenvolvimento, eles também concordam que a legislação é um ponto de apoio relevante, mas que não deve ser o único – sob pena de ser estrangulado por extrapolar seus limites. 3.4 As sugestões de especialistas O cineasta Guilherme de Almeida Prado ajudou a elaborar a primeira lei que se valia da arrecadação do ICMS, em São Paulo. Dez anos depois, ele diz, em entrevista ao Vida & Arte, do O Povo (Fortaleza) (09/12/03) que elas têm um sério problema: não são democráticas. E a única maneira de democratizar a lei seria trabalhar com grandes limites de isenção, para que as pequenas e médias empresas também possam investir. Como as porcentagens de dedução são muito baixas, geralmente entre 1% e 3%, o número de pessoas para quem realmente compensa aplicar é muito pequeno. Ele prega a mudança nos coeficientes de dedução e o escalonamento dos investimentos, de acordo com o tamanho das empresas. Fábio Cesnik, estudioso do assunto, destaca que a continuidade da aplicação da lei é fundamental para não anular as conquistas anteriores. “O que tem acontecido com as leis estaduais é que nas mudanças de governo elas são suspensas. Eis o pior que pode acontecer. Porque depois fica difícil reconquistar a credibilidade 95 do empresariado. Por isso, vejo como fundamental o aspecto da continuidade”. Outro ponto crucial para o desenvolvimento, para ele, é a criação, pelos governos estaduais, de uma política paralela, forte, contundente e acima de tudo, permanente, que dêem o suporte indispensável às normas de incentivo, de acordo com as demandas sociais – e não de acordo com a vontade dos “amigos do rei”. 3.5 Ex-secretário de cultura, Paulo Linhares (1991 a 1997) O ex-deputado pelo PPS ( Partido Popular Socialista), Paulo Linhares, foi secretário de cultura do Governo do Estado do Ceará de 1991 a 1997. Até hoje, é lembrado pela criação do Centro Cultural Dragão do Mar e por ter implementado a Lei Jereissati durante sua gestão, em 1995. Naquela época, havia mais recursos orçamentários para a cultura cearense e houve um incremento da formação profissional na área, através de recursos federais destinados à capacitação.94 Nesta entrevista, Paulo Linhares aponta algumas perspectivas importantes para as políticas locais voltadas para o setor artístico. Uma delas é uma proposta sua, como deputado, e que já está em funcionamento em São Paulo e Brasília: a loteria cultural. Sobre a Lei Jereissati, é enfático:necessita de revisão de critérios e de amplas discussões permanentes de avaliação. “Acabam financiando coisa que não é criação, que não emancipa o homem. Isso é tarefa do estado, e é fundamental, mas também tem essa questão de compreender a cultura como um setor que gera emprego, nesse novo mundo em que a gente está vivendo, de destaque do terceiro setor”, conclui. Quanto às expectativas do governo Lúcio Alcântara, ou da gestão da pesquisadora Cláudia Leitão, não arrisca palpites. Diz apenas que o governo passa por uma crise financeira e que o crescimento do setor cultural depende de uma maior autonomia da SECULT dentro do Governo estadual. Marcos – O Sr. foi o secretário de cultura responsável pela implementação da Lei Jereissati. Como você avalia esse instrumento da política cultural? Paulo – A questão da Lei deve ser vista dentro de um contexto Porque ela é um instrumento de criação de um sistema de financiamento para a cultura. A questão é que quando eu peguei a Secretaria havia um mecanismo de financiamento bastante frágil, dependente de negociações semana a semana, mês a mês. Então eu comecei a pensar um sistema de financiamento que pudesse criar mecanismos mais ágeis e que tivesse uma lógica que possibilitasse um fluxo de recursos para o setor 94 Principalmente recursos provenientes do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador; sendo o primeiro Estado brasileiro a utilizar esses recursos para fins de qualificação cultural. 96 de cultura mais internamente. Evidentemente que encontrei diversas limitações. Eu estudei os modelos que existem de financiamento da cultura. O modelo clássico, que é o modelo francês; o modelo americano só com as leis de renúncia fiscal e de incentivo com base em herança, e o modelo inglês que é o modelo misto. Esse modelo tem um sistema de leis de incentivo e têm também o Conselho que aprova projetos de vanguarda, projetos de memória e de museus a fundo perdido. Há muitas organizações que trabalham há muito tempo nisso, estudos sobre políticas culturais. Na época, por coincidência, eu estava indo e voltando para a França, logo que eu assumi a Secretaria, porque ainda estava me desligando da Sorbonne. E estava em contato com o pessoal da Conferência Internacional da Economia da Cultura, que produz muitos documentos a respeito. Eu comprei vários documentos deles, analisei esses modelos e a partir daí fui ver o que tinha no Brasil: a Lei Sarney, que depois virou Lei Rouanet. Eu era presidente do Fórum dos Secretários, fiquei amigo do Marcos Mendonça. Vi a Lei Mendonça, trouxe esse material pra cá e chamei o Francis Valle, que é dessa área, para pensar num sistema de incentivo de cultura. Na época, era muito complicado porque precisava passar pelo Conselho de Secretários da Fazenda, o CONFAZ, e esse Conselho estava barrando os projetos novos, ninguém estava conseguindo mais agir, ai eu tive que fazer um grande convencimento ao Secretário da Fazenda. Marcos – Esse é um dado histórico interessante porque você fez todo um convencimento da área econômica sobre a importância do financiamento da cultura. Além do Francis Valle, alguém mais participou desse processo? Paulo – Havia uma comissão que criou a lei, composta por advogados e por mim. E aí essa discussão da Lei era muito contaminada por um debate da época sobre a viabilidade e o futuro das leis de incentivo. Eu mesmo sou crítico do governo onde o sistema de incentivo tem um peso muito maior do que deveria. Eu acho que deve ter sempre um sistema misto, onde o sistema de incentivo represente 50% e o Fundo Estadual sempre tem que ter um peso de 40 a 50%, porque se não você passa a depender muito do mercado. E o FEC (Fundo Estadual da Cultura), qual é a função dele? É financiar projetos que o Estado considere que são prioritários, projetos de vanguarda, projetos de cultura popular que para o mercado não se interessa. Marcos – O Sr. considera que conseguiu fazer isso no período? Paulo – Até eu pôr o FEC para funcionar como eu queria, demorou. Com o tempo ele absorveu parte do financiamento da Secretaria e muito mais 97 depois que eu saí. Porque você tem três instrumentos: o sistema de orçamento tradicional, estadual, tem os sistemas municipais e o sistema federal de investimento. Até vi umas análises que o Humberto95 fez de quem não conhece muito a máquina, dizendo que devia ser tudo federalizado. No mundo inteiro, você pode pegar vários documentos e ver que a tendência é de municipalização. È o inverso do que ele está dizendo. No mundo inteiro o sistema cultural tende a aumentar os investimentos locais e reduzir os investimentos federais e estaduais. Nos Estados Unidos, na Europa toda é assim. Evidente que seria interessante, do ponto de vista político, contar com investimentos federais, mas a tendência é priorizar os recursos municipais. Saiu um documento agora do Ceará, o último do IBGE, sobre os municípios, referente a 2001. Ele revela que o Ceará é o segundo estado do Brasil em investimentos de cultura municipais cultura. Só perde para o Rio de Janeiro. Alguma coisa aconteceu aí. Marcos – Esses estão sendo utilizados agora nesse Fórum que vai debater também a questão dos 2% do PIB ... Paulo – Pois é. Então, dentro do estado, você tem o orçamento, a lei de incentivo, as empresas e o FEC. A grande vantagem do sistema de incentivo é que ele não depende do sistema orçamentário, isso o pessoal foi descobrir agora. As entrevistas do Gilberto Gil tanto no Ministério da Cultura como na Secretaria eram questionando as leis de incentivo e hoje o discurso é “calma, vamos salvar a lei de incentivo”. Porque ela tem distorções, por causa da maneira como foi implementada durante o Governo Fernando Henrique, porque ela exagerou na dependência do mercado. Mas agora todo mundo, artistas e o próprio ministro defendem essa política. Qual é a correção que precisa ser feita? È reduzir a dependência que ela tem do mercado. O mercado tem que alimentar também o Fundo Estadual, o Fundo Federal. A relação federal é a seguinte: O Fundo Nacional de Cultura tinha mais ou menos uma verba de R$ 20,5 milhões que nunca era executada. E as Leis faziam 200 milhões. Não chegava nem a 10%, era de 8 a 7% de uma pra outra. Aqui era um pouquinho maior. Marcos – Eu tenho os seguintes dados: entre 1995 e 2003 foram inscritos 2024 projetos. Desses, 1203 foram aprovados. Vejo que há um problema hoje, por exemplo, de transparência, de divulgação desses dados... 95 Professor e advogado Humberto Cunha Filho, autor de vários livros ligados à área de direitos culturais e bastante utilizado no capítulo de análise da Lei Jereissati. 98 Paulo – Mas você tem uma fase grande, que você consegue ter os dados aí e analisar... Marcos – Um dado é muito importante e dá para estranhar: dos 1207 projetos em todo o período apenas 80 estão totalmente finalizados, sem nenhuma pendência. E os outros? Paulo – É, acho que aí tem problema mesmo. Eu não sou favorável a isso. Como já disse antes, a minha visão é de que esse sistema de incentivo deve representar, no futuro, no máximo 30% do valor investido pelo estado na cultura. Marcos – As informações que tenho é de uso político do FEC, ou seja, o governo usava o FEC de acordo nos municípios de seu interesse. Como é que o Sr. explica isso? Paulo – No FEC eu não vejo o que foi feito por interesse político. O FEC teve pequenos financiamentos de projetos do interior, coisas muito pequenas. Eu acho o seguinte: o FEC foi feito para o Estado fazer a política dele. O FEC foi pensado pra isso. O mercado faz o que ele achar melhor. E o Governo faz o que ele achar melhor com o FEC. Se essas políticas do estado são políticas digamos, boas ou ruins, cabe às pessoas analisarem. Agora, o uso do FEC em política? Tudo é política. Se esse uso político foi com objetivos eleitorais ou com outros objetivos quaisquer, ai tem que ver o critério mesmo que você está analisando. Se você pegar os projetos do FEC e os projetos da Lei, o FEC foi mais bem administrado do que o Mecenato. Ele escolhia mais criteriosamente. Agora, como o orçamento foi ficando politicamente complicado, houve uma tendência do FEC que tinha se esboçado no meu tempo e se fortaleceu depois, de financiar todos os projetos da Secretaria. Ele passou a ser instrumento de financiamento da Secretaria. Dos projetos que interessavam a Secretaria, como por exemplo, Festival de Guaramiranga, Festival de Cinema, se isso for a crítica eu acho que não quer dizer nada. Marcos – O próprio Estado financiava o Festival de cinema... O secretário posterior fala que juridicamente essas Associações não estavam vinculadas ao Estado. Por exemplo, a Orquestra Eleazar de Carvalho recebeu quase R$ 3 milhões em três anos, mas não era do Estado. Paulo – Eu vejo assim: alguns projetos de responsabilidade do Estado, que durante algum tempo, pelo menos na minha gestão, foram financiados pelo orçamento, passaram a ter uma dependência muito grande do FEC. 99 Marcos – Essa informação é muito importante. Paulo – Mas eu não vejo isso como um problema. É uma contradição muito grande, porque na época foi feita a crítica de que “a lei Jereissati é neoliberal”. Pelo contrário, neoliberal não tem política de subsídio. O Confaz,96 que tem uma visão neoliberal era contra subsídio. Todo Secretário da Fazenda acha um absurdo subsídio para a cultura. O sistema de subsídio obriga a uma grande dependência do mercado e eu concordo. Eu acho que o sistema de subsídio a médio e longo prazo tende a criar umas pessoas muito poderosas que são os diretores de marketing de empresas. Que criam os critérios, que são os grandes poderosos da definição. Eu sou favorável à revisão dos sistemas de incentivo do futuro, não acho que o atual modelo seja o ideal. Agora, ele permitiu que se montasse um sistema de financiamento e que as secretarias estaduais e o governo federal se beneficiassem. Quando tinha crise no sistema orçamentário, o primeiro prejudicado é o setor cultural. Marcos – O sistema de financiamento tinha uma visão mais ampla da política cultural. O Sr. falava em capacitação, em financiamento... Paulo – Formação, eu montei um sistema de financiamento, que até hoje é considerado bom. A secretária Claudia Leitão diz que naquele tempo tinha muito dinheiro, tinha o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador)... o FAT não existia no Brasil. Foi dinheiro que consegui com o Ministério, porque expliquei como a cultura era formadora de mão-de-obra e fomos o primeiro Estado do Brasil a conseguir isso. Isso é luta política, isso é capacidade de convencimento, isso é documento técnico. Como o ministro era muito bom, ele percebeu e liberou. Isso possibilitou o financiamento do sistema de formação, que era o Instituto Dragão do Mar. Tinha um dinheiro, mas não era dinheiro só do FAT, como eles dizem hoje, havia dinheiro do estado também. Marcos – Então a formação era um eixo... Paulo – Era o eixo Dragão. Depois o sistema de difusão que era ampliação do Dragão, ampliação do sistema de qualificação de mão-de-obra. A criação de um calendário de eventos que ficou, hoje em dia, todo mundo fala, mas ninguém consegue derrubar. Festival de cinema, a bienal, tudo que eu montei ficou até hoje. Cite algum grande evento que entrou no calendário de cultura do Estado depois que eu saí? Nenhum. Só fizeram reduzir ou acabar. Não criaram nada. No sistema 96 Conselho da Secretaria Fazenda para análise dos projetos de incentivo à cultura. 100 de formação é a mesma coisa. O Dragão que era bom tinha dinheiro, tinha os cursos de dois anos e o sistema de incentivo à produção – aí entra a crise de financiamento pra esse tipo de projetos e pra outros tipos de projeto. O próprio projeto do Dragão do Mar, de produção e reprodução. Quer dizer, cada época tem suas particularidades políticas e características que você tem que saber lidar com elas , como gestor da cultura, porque cultura é um negócio muito frágil, principalmente nessa parte de financiamento. Você tem que ter uma capacidade de compreender de onde é que sai o dinheiro e como fazer para que o dinheiro venha para a área de cultura. O sistema de incentivo, ele tem todos esses defeitos que a gente falou, é como se ele tivesse embuído do modelo americano, com todas as coisas ruins dele, e do modelo francês, que é estatal puro, nenhum sistema privado. O modelo inglês é um pouco a tentativa de fazer esse misto que o Brasil tentou fazer, mas acabou resvalando para uma visão em que predomina o modelo americano, porque o sistema de incentivo passou a funcionar, mas o sistema do orçamento do estado não acompanhou o volume, então ficou uma coisa muito dependente das leis. Marcos – Secretário, no seu período quais foram as principais perspectivas em relação à Lei? Paulo – Assim que eu assumi a cadeira de deputado, eu propus esse sistema novo, através de um projeto de loteria. Esse projeto foi vetado pelo próprio governador e pela Secretaria. Agora São Paulo está fazendo, Brasília está tentando fazer, o próprio Ministério da Cultura está discutindo o modelo, que é baseado no modelo inglês. Marcos – O Juca Ferreira97 deu uma declaração sendo contra totalmente, agora recuou. Você acha que esse sistema de loteria representa uma boa perspectiva para a cultura? Paulo – Esse capítulo aqui98 faz uma avaliação de um modelo de Conselho de Arte. O Conselho é um sistema de Fundo de Cultura que tem na Inglaterra e mesmo nos Estados Unidos, mas na Europa tem bem mais, que seria o Conselhão que tem gente representativa e que define os financiamentos, normalmente dinheiro a fundo perdido, para a manutenção de programa de arte e ao mesmo tempo, de escolas, pra manutenção de tudo e que não dependa de mercado. O Conselho faz os editais, Teatro, cinema, analisa quem tem competência, quem é bom, o que é socialmente relevante, dá. 97 Juca Ferreira- Secretário Executivo do Ministério da Cultura do Governo Lula momento mostra algumas publicações trazidas da França sobre o assunto em pauta. 98 Neste 101 Marcos – Já que o Sr. falou em critérios, às vezes não ficava muito claro para os proponentes quais seriam os critérios e essa é uma crítica recorrente que se faz à Lei Jereissati. O processo era aberto o ano todo, todo mundo podia entrar, independente de qualquer coisa e depois não ficava muito claro... Paulo – Essa é uma grande questão. Eu fui do Conselho Nacional da Lei Rouanet e tentei constituir um conselho estadual com especialistas, para dar um parecer na área de teatro, etc. Aí você começa a criar críticos de cultura, que dizem o que é culturalmente relevante. Complicado demais. Olhe esse projeto é ruim, porque que é ruim? E porque que é bom? Como é que a gente monta um sistema de critérios desses? A gente devia discutir isso lá em Brasília também. Marcos – A dissertação do Alexandre Barbalho fala da Secretaria de Cultura no Estado do Ceará que foi a primeira no Brasil e teve apoio no período getulista... Paulo – Mas aquele período do Getúlio foi um grande momento de repensar o País e a educação. Você tem que ver isso dentro do contexto da época. O Capanema foi um dos maiores Ministros da Educação que o País teve. Seu chefe de Gabinete era Carlos Drummond de Andrade. Marcos – A Fundação João Pinheiro99 fez uma pesquisa sobre a economia da cultura num período da sua gestão. Qual o resultado? Paulo – Antes de eu entrar já tinha um pequeno estudo da Fundação João Pinheiro sobre o assunto. Fiz uns acordos, e a partir daí nasceu esse Seminário que inclusive é uma sugestão minha também. E essa questão que você perguntou, da economia da cultura......essa discussão hoje, ela está muito fértil, muitas propostas......eu mesmo estou organizando agora com a equipe......um encontro no BNB em janeiro pra reunir todos os mecanismos de economia da cultura, pra criar um centro de debate de economia da cultura......ficou muito dessa discussão.... Marcos – Mesmo que o Sr. questione esteticamente os grupos de forró no Ceará, você saberia dizer quantitativamente quanto representa a participação desse pessoal? Paulo – O que eu acho complicado aqui é o seguinte: você vê que a elite intelectual baiana tem uma relação com o que é popular muito forte. E a nossa elite intelectual, eles imitam Jorge Vercilo, imitam Djavan e não conseguem fazer uma 99 Pesquisa da Fundação João Pinheiro – Minas Gerais, que faz um balanço da economia da Cultura e está disponível no site do Ministério da Cultura 102 coisa com o povão, um forró legal... A elite baiana vai lá nos morros e bebe na fonte deles. E é isso que eu estou dizendo que é complicado aqui no Ceará. O mais difícil hoje é você juntar essa coisa do popular com o erudito. Marcos – Como era a relação com o ex-governador Tasso (que acabou dando o nome à Lei Jereissati)? Ele via a questão da cultura e acreditava nela como desenvolvimento? Paulo – Ele tinha uma compreensão dessa parte econômica, principalmente em relação a audiovisual, ele achava que isso era uma coisa muito forte. Isso pelo prazer estético, que acho que ele sempre gostou, e outra porque ele entendia que era um negócio de dinheiro mesmo, quem dominasse isso ia dominar outro setor, entendeu? Ele tinha, essa percepção de que essa era uma área estratégica, agora ele não tinha paciência muito para a formação, o Instituto foi meio na marra, mas nunca foi uma coisa que ele compreendesse. Marcos – O governador Lúcio Alcântara teve um trabalho excelente no Senado Federal e é muito mais ligado à cultura. Isso possibilita algum crescimento nessa área? Paulo – É difícil dizer. Marcos – O Sr. gostaria de ter sido Secretário de novo? Paulo – Não. Eu acho que já fiz o que deveria. Acho ótimo não estar lá e não participar. Marcos – Na sua opinião, quais as perspectivas desse Governo para a cultura? Paulo – O governo começou num momento de uma crise financeira muito grande no Estado e no País e isso afetou muito o desempenho da Secult. Há alguns equívocos também em relação principalmente ao sistema de financiamento, equívocos que eram naturais. Também um certo desmonte que começou no final do governo Tasso que aprofundou essa crise. A Secretaria foi perdendo fôlego do ponto de vista estratégico. A questão fundamental é que eu tinha acesso direto ao Tasso, era um dos poucos secretários que tinha acesso ao Tasso. E quando o Assis (Machado) fez um determinado acordo com o Nilton Almeida contra mim foi para vetar isso. Essa é a chave da questão política. Isso está no livro que eu vou lançar. Isso, para mim, é claro. Foi uma jogada de burocracia de bastidor pra me alijar do 103 processo. O Orlando (Senna) até fala nisso no Pasquim. Ele fez uma análise que não tem nada a ver comigo, ele ficou de fora, é a visão dele. E eu concordo com ele. Houve uma vontade política do tipo “esse cara está com autonomia demais na área da cultura, está tornando a cultura a cara dele, vamos cortar aqui....Muito menos uma decisão do Tasso e muito mais uma decisão daquele meio de campo, Assis e aquele grupo ali que controlava o poder intermediário. Pra mim isso é claro, hoje. Marcos – Voltando para a questão das leis de incentivo, o que dever ser feito para que elas funcionem a contento? Paulo – Eu acho que o sistema de financiamento deve ser discutido permanentemente, mas em aquiescência com o financiar o quê e pra quê, pa que a discussão fique mais racional. Acabam financiando coisa que não é criação, que não emancipa o homem. Isso é tarefa do estado, e é fundamental, mas também tem essa questão de compreender a cultura como um setor que gera emprego, nesse novo mundo em que a gente está vivendo, de destaque do terceiro setor, que não seja preciso desempregar pessoas criativas. O setor cultural tem que ser visto como negócio. Marcos – ...e a gestão cultural do município? Paulo – É o que eu estava te falando: as coletividades locais e o financiamento da cultura na França, o financiamento da cultura na Itália, os modos de financiamento cultural nos Estados Unidos. Todo sistema de financiamento cultural municipal eles analisam aqui nesse negócio que eu estou te dizendo... Marcos – Pra relocalização....e ai é muito fácil para o prefeito dizer que não tem Secretaria de Cultura no Estado mas ele também não tem estrutura......Eu sou presidente do Fórum de Secretários de Cultura da região metropolitana, ai eu já penso na região metropolitana, onde foi que melhorou, Maranguape, Aquiraz, exatamente onde tem Fundações de Turismo, Esporte e Cultura porque é um dinheiro aprovado pela Câmara Municipal, rubricado por sessão da Câmara. Se você pegar esse dado, 90% é Departamento de cultura na Secretaria de educação do Município.100 Paulo – Se você quiser usar como gancho dessa pesquisa esse dado do IBGE...isso aí chama Informações municipais, nova pesquisa, tem saúde, não sei que 100 Dados referentes ao levantamento feito pela APRECE ( Associação dos Prefeitos e Municípios do Estado do Ceará), através da UNDIME (União dos Dirigentes Municipais de Educação do Ceará). 104 e tem uma parte só de cultura. Se tu ligar pro cara do IBGE daqui, ele te fornece todinho por escrito. Ai tu pega a parte de cultura ai pergunta a ele: porque o senhor já tirou esse número, ele mesmo já falou no rádio....o cara do IBGE é daqui. Tendo isso como gancho, dá pra montar o projeto. Porque que existiu essa emergência, se localiza... Marcos – O Fausto Nilo falou, quando foi construir o Dragão do Mar, que uma das coisas que levou à escolha do local foi a circulação das pessoas, que vinham pela avenida, que terminava ali não tinham mais para onde ir. Isso realmente foi uma das motivações? Paulo – Se você pegar a primeira entrevista minha no Vida & Arte (caderno cultural do Jornal O Povo), eu dizia que iria fazer um grande Centro Cultural onde hoje funciona a 10ª Região Militar. Meu projeto era usar a fortaleza e transformar num Centro Cultural. Quando foi feita a sondagem com os militares, eles não toparam. Aquela área ali foi a área que eu comecei a pesquisar, mas o espaço não estava à venda. Aí optei por um projeto que não usasse aquela, mas que fosse por ali, onde havia o fluxo da avenida Monsenhor Tabosa Era um projeto bem maior. 3.6 Ex-secretário de cultura, Nilton Almeida (1998 a 2003) O jornalista Nilton Almeida assumiu a SECULT em 1998, quando o limite mensal para a liberação das autorizações de captação já estavam reduzido dos iniciais 2% do ICMS (cerca de R$ 2 milhões/mês) para apenas R$ 320 mil. Em 2002, através de um acordo entre secretarias, ele conseguiu ampliar o teto para R$ 416 mil. Em 14/ 05/2002, suspendeu o recebimento de projetos culturais que pleiteavam financiamento via Lei Jereissati, com a justificativa de que não poderia haver um acúmulo de Cefics, gerando uma expectativa falsa para o meio cultural. A intenção era zerar o estoque de projetos até que o novo governo assumisse. Durante a entrevista, o ex-secretário rebate veementemente as acusações feitas pela imprensa de que o FEC estaria sendo desvirtuado ao financiar projetos do próprio governo estadual, o que, segundo a imprensa local, estaria causando uma concorrência desleal entre setor público e produtores culturais. Ele defende maior aproximação entre Estado e Prefeitura de Fortaleza, uma revisão da Lei Jereissati, para que ela possa voltar a impulsionar a cultura cearense, e uma maior autonomia da SECULT para dar agilidade à liberação dos Sefics. Ele também defende a conscientização do empresariado para investir recursos próprios e não somente através de renúncia fiscal. 105 Marcos – Existe um prazo para que um projeto obtivesse a captação dos recursos? Caso contrário ele perdia a validade? Nilton – No início não tinha um prazo determinado para conseguir a captação e o projeto não perdia a validade. Depois de um determinado período, houve uma normatização e o projeto tinha um ano para conseguir a captação. Não conseguindo, o projeto era automaticamente arquivado. Almeida fez um balanço de sua gestão e rebateu críticas. Marcos – Os dados que eu tenho revelam que cerca de 600 projetos não conseguiram captar recursos em um ano e foram arquivados. Inclusive uma tabela mostrando também alguns projetos que já estão sub judice, com problema sério de prestação de contas. Há um questionamento feito por pessoas da área jurídica, em relação ao decreto 23.882/95 e a Lei. Segundo esse questionamento o decreto não pode falar pela lei, se sobrepor ou contrapor a lei. Qual o seu posicionamento sobre essa questão? Nilton – Todo decreto assinado pelo Governador passa pela Procuradoria Geral do Estado, ou seja, existe uma instância especializada, que tem o conhecimento dessa área e que conseqüentemente analisou, avaliou e deu referendo, deu aval. Então eu acredito que nada do decreto se contrapõe ao que está na lei, nem mesmo a questão dos valores. Porque os valores estão lá previstos mas eles só podem ser usados de acordo com a disponibilidade do Estado. Marcos – Mas há questionamentos... Nilton – Parece-me que essa análise eminentemente jurídica, tecnicista demais, não analisa questões de caráter político, não analisa questões de possibilidades concretas, e fica tentando validar a lei por um aspecto que muitas vezes não é o suficiente.101 Marcos – Isso o Sr. se refere também em relação ao FEC, não é? Em relação à Lei como um todo, principalmente no período em que o Sr. foi Secretário, como é que você avalia a Lei Jereissati, o que ela significou para a política cultural no Ceará? Nilton – A Lei, a concepção da Lei, que nasceu no bojo de uma legislação federal e de legislações estaduais que já existiam no País, como é o caso da Lei 101 Há referências aos trabalhos feitos pelo professor e advogado Humberto Cunha. 106 Mendonça do Estado de São Paulo, então, esse princípio, esse pressuposto da Lei, ele é muito importante. E ajudou a concretizar, a viabilizar muitos projetos importantes das políticas culturais no Estado do Ceará, ajudou a movimentar economicamente o campo cultural. A Lei foi fundamental nesse determinado período histórico, para que o Ceará se inserisse dentro de uma política ousada, que viabilizasse projetos, que concretizasse algumas idéias dos produtores culturais, dos eventos culturais. Agora, uma coisa é observar que há falhas, há fragilidades, há equívocos, há necessidade de correções. Parece que a Lei aqui no Ceará nunca surgiu com esse espírito de substituir a responsabilidade que o estado tem com as políticas culturais, até mesmo porque investimento infra-estrutural é muito difícil de ser realizado com a ajuda da iniciativa privada. O Estado teria que arcar ele mesmo com essas responsabilidades. Desse ponto de vista, ela foi muito importante porque se voltou para eventos, para pequenos grupos. Tinha uma ponta, que era o Fundo Estadual de Cultura, que financiou muitas atividades no Estado, algumas áreas importantes que a iniciativa privada não financiaria por hipótese alguma. Então, me parece que a Lei deixou bons resultados, deixou importantes lições que devem ser analisadas criteriosamente e sem amadorismos. Ela tem que ser analisada sob o ponto de vista não apenas legal, mas sob o ponto de vista do que é possível aperfeiçoá-la e mantê-la, desde que ela não se proponha a substituir a responsabilidade que o Estado tem no investimento da cultura. Ela é um instrumento a mais, ela é um canal a mais que pode facilitar, que pode ajudar e que pode ter particularmente o efeito pedagógico, que é tentar fazer com que a iniciativa privada perceba que o investimento cultural é importante e que eles, os empresários, têm uma parcela de contribuição a dar. Marcos – Você quer dizer que a política cultural não pode ser substituída pela Lei? Nilton – Não pode. As Leis de incentivos, elas são um instrumento, são um elemento a mais, não podem ser o único elemento. O discurso, hoje, de que o Estado não pode passar a responsabilidade para as empresas é um discurso mentiroso, porque nunca foi assim. A Lei era um instrumento a mais. Agora, a expectativa com que ela surgiu, não só aqui no Ceará, mas no País todo, a ansiedade com que o ambiente cultural esperou pela legislação, era natural que criasse uma demanda muito grande que o Estado não ia ter capacidade de atender. E aí entram os velhos filtros, entra a velha peneira que vai fazer a triagem do processo. Mas a Lei nunca foi pensada como um instrumento único. Pelo menos nas discussões que participei, 107 era essa a tônica. Sempre se batalhou, como se batalha ainda hoje, por um orçamento digno para a área cultural. Sempre se discutiu a necessidade da cultura ter um orçamento maior, independentemente de um instrumento de incentivo cultural que tenha a participação da iniciativa privada. Marcos – Por falar em “peneira”, a comissão de análise dos projetos é constituída por quais profissionais? Nilton – Existe, não sei se é um decreto ou uma portaria,102 que fala da composição da comissão. Há uma representação do Estado e uma representação da sociedade civil por intermédio das fundações, das Associações de Amigos de Entidades Culturais. Então, a Secretaria publicava um edital esperando a inscrição por parte destas instituições. Inclui a Fundação dos Amigos do Teatro José de Alencar, Academia Cearense de Letras, Associação Cearense de Cinema e Vídeo, essas organizações que têm já um poder de organização muito maior e se interessam em participar do processo. Era uma representação com maioria do Governo do Estado, porque havia representante da Secretaria da Cultura, representante da Secretaria da Fazenda e representantes dessas entidades culturais. Marcos – Há uma crítica muito freqüente nos jornais, não só relativa ao seu período, mas até 2003, de que a Lei serviu para financiar os projetos do próprio Estado, que o Estado era um concorrente dos produtores culturais. Como é que o Sr. avalia isso? Nílton – Esse é um discurso equivocado, enganoso. Vamos analisar: alguns casos são emblemáticos, têm uma força e uma visibilidade muito grandes dentro do calendário cultural do Estado e dentro das políticas culturais. Um exemplo é o Festival de Teatro de Guaramiranga, que recebia recursos da Lei Estadual de Incentivo a Cultura, mas quem é o proprietário da marca do Festival de Teatro em Guaramiranga? É o estado? Não, é a Associação de Amigos da Arte de Guaramiranga, uma entidade sem fins lucrativos. Festival de Cinema e Vídeo no Ceará, quem é a entidade proponente desse Festival? É a Associação Cearense de Cinema e Vídeo, que é composta por produtores, criadores, roteiristas. A Orquestra Eleazar de Carvalho, não é do Estado, também foi proposta por uma entidade da sociedade civil. Agora, essas entidades da sociedade civil trabalhavam em parceria com o Governo do Estado e vive-versa porque um não poderia funcionar sem o 102 Portaria 45-1998. 108 outro, numa economia frágil como a nossa. Ainda há uma falta de consciência do empresariado em investir na cultura. Então, essa ação era necessária era necessária. Esses projetos não poderiam sobreviver sem o Estado, eles não aconteceriam sem a chancela do Estado. A chancela do Estado se dava na medida que esses projetos eram aprovados, na medida em que os projetos eram executados. O que ocorre é que alguns gestores culturais tentam trazer para si a visibilidade do projeto e aí se confunde, de certa forma, no imaginário público, que aquele projeto pertence ao Estado, não pertence a uma entidade civil. Eu acho que isso também é uma forma míope de observar a realidade, no sentido de dar demonstração de que as pessoas não são capazes de se organizar, não são capazes de se mobilizar, não são capazes de realizarem, sem que o Estado esteja presente. E isso não é verdade. As pessoas estão organizadas nas suas entidades, nos seus municípios, propuseram e os eventos cresceram e com uma parceria. Então não há, a rigor, nenhum projeto que as pessoas possam dizer que é do Estado. Há uma confusão nesse sentido. Os projetos são discutidos, eles têm que ser discutidos. Se eles vão usufruir dos recursos públicos, se eles vão ser beneficiados com o dinheiro do contribuinte, é necessário que haja uma discussão. Até mesmo porque o Estado não podia propor projeto à lei de incentivo. Houve caso em que alguma Secretaria de Estado fazia proposta de projeto para ser analisada pela Comissão e era vetado. Vi isso várias vezes. Projetos de outras Secretarias com atividades relacionadas com a Cultura que apresentavam projetos que eram vetados, porque havia um princípio de que esses projetos deviam ser financiados com recursos das suas Secretarias específicas. O Festival de Cinema é da Universidade Federal do Ceará, juntamente com a Associação Cearense de Cinema e Vídeo. Se você analisar todos os grandes projetos, eles têm uma marca. A Bienal do Livro talvez seja a que tenha, exatamente por essa coisa da imagem que se superpõe, há essa confusão, mas a Bienal do Livro foi um projeto que o atual governador levou como sugestão para o Estado e tratou de juntar as partes, negociar, discutir e levar o projeto à frente. Mas hoje quem administra o projeto é o Sindicato dos Livreiros. Marcos – Existe uma questão que eu detectei durante a pesquisa. Alguns projetos aprovados envolviam pessoas faziam parte da CAP e isso dentro a lei fala que não pode. Nilton – Aí só vendo o caso específico pra confirmar, porque a Lei é muito clara sobre isso. Se uma pessoa da comissão tiver um parentesco com as pessoas daquele projeto, esse projeto não pode ser aprovado. Ou então a pessoa se abstém de votar naquele projeto. Eu não tenho conhecimento de nenhum caso. 109 Marcos – No caso de revisão, a mesma equipe que analisou e aprovou é a mesma que vai revisar... Nilton – Não é bem assim. Em 99, mais ou menos, nós iniciamos duas questões importantíssimas. A primeira foi tentar mudar a lógica de que o projeto era financiado exclusivamente com recursos públicos, ou seja, a categoria de doação que era prevalecente naquele momento. Começamos a aprovar projeto na categoria patrocínio. A Lei surgiu com esse princípio, com essa noção de que você adota uma modalidade de doação então aquilo serve como experiência, como projeto piloto. Num segundo momento, a empresa privada que trabalhou de início só com a renúncia fiscal, já entraria com um percentual, inclusive para ter direito ao uso de marca (porque projeto de doação não deveria ter uso de marca, pela Lei e houve uma complacência em se deixar que as marcas fossem usadas desde o início, deixar que fizessem propaganda com o dinheiro do Estado). Então, em 99, quando estava começando a ter um estrangulamento muito forte, essa foi a forma de não só tentar fazer com que a iniciativa privada participasse com os 20% do valor total do projeto, mas ela agora também teria que fazer um filtro. Marcos – Qual foi a reação? Nilton – Houve muitas dificuldades, tanto por parte dos produtores, dos agentes culturais como por parte das próprias empresas, que passaram a lidar com uma outra realidade, a observar que estavam sendo agora, passados três anos utilizando a renúncia fiscal, incentivando projeto, mas sem efetivamente aportarem recursos. Quer dizer, até aquele momento o recurso era exclusivamente do Estado, por intermédio da renúncia, conseqüentemente o recurso era exclusivamente público. Quando houve essa mudança de postura houve muita dificuldade de relacionamento, houve muita pressão tanto de artistas, como de produtores, quanto de empresas que estavam habituadas àquela modalidade de doação. Mas na verdade a doação era do Estado. Essa foi uma mudança de paradigma muito forte. A outra mudança foi quando começou a haver muito pedido de revisão, por força dessa mudança na aprovação. Nós chamávamos a pessoa que fosse fazer seu pedido lá na frente da comissão, para a comissão ouvir os contra argumentos. Mas a rigor, um projeto desse quando ia para a comissão, a comissão tinha especialistas, pessoas que entendiam de determinadas áreas, quando não havia especialista era contratada uma pessoa de fora para dar um parecer. Por exemplo, na área de livro, se pagava uma pessoa de renome pra dar parecer em relação a livro. 110 Marcos – Na sua opinião, quais os entraves da Lei Jereissati e quais as perspectivas de aperfeiçoá-la? Nilton – Entraves há em todos os Estados e em todos os municípios onde as Leis de incentivo à cultura foram implementadas. Porque há uma disputa de poder aí que envolve a Fazenda, área da Fazenda, área que coleta os tributos e que é pressionada por diversas outras áreas, para atender as necessidades das demais Secretarias. Por isso houve entrave de operacionalização, de dominar essa cultura da avaliação. Porque em toda avaliação há riscos de erro, de equívocos. Você tem que maturar por um determinado período as experiências e hoje a informação que eu tenho é que há uma paralisação, há uma estagnação que me parece negativa porque se interrompe um processo. Ainda em maio do ano passado, nós tivemos a coragem de, num ano eleitoral, não recebermos mais projetos. Porque havia um grande acúmulo de propostas e não queríamos que acumulassem mais ainda para a gestão seguinte. Foi feito um acordo internamente no governo, proposto por nós Secretaria da Cultura e Secretaria da Fazenda para suspender o recebimento de novos projetos. É uma outra mudança de paradigma, porque o Ceará foi muito benevolente nesse aspecto, já que em todos os outros estados os projetos tinham um tempo para captar o projeto e aqui nós passamos um longo período abertos, totalmente abertos. Tinha projeto que passava de três, quatro anos para captar. Depois uma portaria acabou determinando um prazo com base nas experiências federais e de alguns outros Estados. Marcos – A informação que temos é que em 96 foram 600 projetos arquivados por não terem conseguido captar recursos. Nilton – Esse número precisamente eu não sei. Eu sei que, com o volume de apresentação de projetos, a demanda crescente e o envolvimento crescente também de empresas querendo apoiar projetos, era natural que esse bolo inchasse. Naquele momento, propusemos uma paralisação no recebimento de projetos para que fossem analisados os projetos já recebidos. Aí teríamos um tempo para que o projeto que não captasse fosse arquivado. A lógica era essa. O ideal é que esses problemas fossem analisados e que se considerasse realmente a Lei de incentivo como um instrumento importante, que pode agregar valor, o que é fundamental. Pode agregar valor não só na medida em que permite a realização de projetos, mas na medida em que a área cultural vai envolvendo mais agentes, mais empresários, mais produtores e artistas. E na medida em que isso cresce, há a possibilidade de mais acerto, você tem grande possibilidade de descobrir talentos, muitas 111 possibilidades de abrir janelas para pessoas que, em outras situações, não teriam essa oportunidade. A lei tem que ter o perfil de funcionamento para trabalhar por esse tipo de projeto que não é tarefa precípua do Estado, porque manter uma Biblioteca pública por exemplo é uma tarefa precípua do Estado, é uma tarefa fundamental e exclusiva do Estado. Se há um empresário que pode apoiar, que quer apoiar, ótimo. Manter um Teatro, como o Theatro José de Alencar funcionando é uma tarefa precípua do estado, é o estado que tem que fazer. Manter um Arquivo público funcionando com a documentação em condições de preservação adequadas, manter um museu, essas são tarefas do Estado. Criar novos equipamentos, no sentido de ampliar a rede cultural do Estado, de adequar espaços necessários a apresentação das diversas manifestações e expressões artísticas, isso é fundamental. Agora, gravar um CD, publicar um livro, isso ai já exigiria um marketing cultural para o qual os empresários teriam que ser sensibilizados. Então, a Lei na minha visão, ela funcionaria nesse braço, com essa visão, com esse norte. Marcos – A Lei também foi importante no sentido de profissionalizar, de criar grupos de profissionais para fazer um trabalho de produção cultural, capazes de montar esses projetos e captar recursos. O Sr. acha que no período em que você trabalhou houve esse preocupação? Nilton – Com certeza. Eu acho que hoje nós temos muito mais produtores qualificados com capacidade de analisar cenários do que antigamente. Isso é positivo, muito positivo. Não acredito que nós tenhamos dado um passo atrás não, pelo contrário, nós avançamos muito. Hoje há um pequeno exército de produtores culturais que estão que estão capacitados, que estão vivenciando as experiências com todas as dificuldades inerentes a essa atividade que é a produção ou o financiamento da cultura. Hoje a realidade é completamente diferente. Eu acho que temos bons profissionais nessa área em função da experiência que foi feita nesse período. Que há necessidade de mais profissionalização, de mais treinamento ai é uma outra questão que precisa ser vista. Marcos – Em relação ao Fundo Estadual da Cultura, não resta a menor dúvida, que o Secretário tinha um poder maior na aprovação dos projetos. Além da questão regional, há algumas análises de que esses recursos serviam aos interesses políticos da Secretaria de Cultura ..... Nilton – Esse dinheiro é recurso público, então nada mais justo que esses projetos fossem analisados com critério e rigor para que eles atendessem às políticas 112 culturais do estado. Todo projeto, seja via mecenato ou via Fundo Estadual, eram analisados pela Comissão e tinha que estar dentro das políticas culturais do Estado. O Fundo Estadual de Cultura era utilizado prioritariamente para as políticas de infraestrutura. Em muitos momentos ele foi fundamental para a realização de alguns projetos, como o acervo do Djacir Menezes, a sede do museu, no Cariri, o solar Bonifácio Câmara em Maranguape, a restauração da Igreja do Rosário, o Instituto do Ceará. Vários projetos de infra-estrutura que dificilmente seriam realizados com a contribuição do Mecenato se tornaram possíveis, não houve erro nisso. O que há é uma crítica sem fundamentação, talvez porque a pessoa não tenha a informação adequada. Marcos – Eu fui Secretário de dois municípios, participei disso aí e posso dar uma opinião minha. No meu trabalho há muita análise qualitativa. Será que não faltou visibilidade do trabalho realizado pela Secult? Nilton – Essa questão da visibilidade não é muito simples porque quando você trabalha com o Estado, ele quer ser o objeto de difusão jornalística. Você só consegue atingir a massa, o grande público, se você utiliza, rádio, jornal e televisão. É a única forma de você atingir o público. Quando é o estado que faz, há sempre uma desconfiança de que está fazendo porque quer aparecer. Hoje mesmo o jornal O POVO anunciou que o atual governo vai lançar as bases do memorial da governança com o material do acervo Virgílio Távora. Esse acervo do Governador Virgílio Távora estava totalmente acabado lá na sede da Fundação Virgílio Távora. Eu fui lá como secretário e propus ao presidente da Fundação, Jorge Cartaxo, começamos a trabalhar, fizemos todo trabalho de limpeza, de higienização e de catalogação do material que hoje vai ser utilizado pela atual gestão. Isso foi divulgado, mas o problema é que há uma aceleração muito grande de informação que muitas vezes as pessoas não gravam. Você divulga que foi comprado o acervo do Dejacir Menezes e você divide o apadrinhamento com a FIEC que colaborou, com outras empresas. Isso faz parte do perfil do administrador. No meu caso particular o importante para mim era que fizesse. É lógico que tentava divulgar, conseguia algumas coisas, mas o mais importante pra mim era que as coisas acontecessem e que conseguíssemos resolver alguns problemas que a sociedade apontava. Alguns setores pediam uma intervenção, alguns setores reclamavam, então nós tentamos resolver esses problemas. Marcos – Na esfera do poder municipal nós temos uma debilidade maior. O Sr. não acha que faltou um envolvimento maior de entidades como a Aprece na Lei de incentivo? 113 Nilton – Tudo isso é falha que pode ser detectada e corrigida. O que eu discordo é você interromper um processo de aprendizagem. Um processo que tem resultados, que tem problemas, mas que tem um relatório positivo de grandes projetos desenvolvidos. É bom ter representação dos municípios, é importante, concordo plenamente. Vamos colocar representação dos municípios, vai ter representação de determinado segmento, vamos colocar. Eu acho que todos esses processos fazem parte do amadurecimento da sociedade que vai se organizando, percebendo que é possível participar mais de determinados fóruns, determinadas instâncias, vai cobrando e vai conseguindo. Marcos – Nem sempre a relação entre o Estado e o município foi tão amistosa como é hoje, mas a política cultural no Ceará sofre com essa dificuldade de trabalho conjunto. É difícil trabalhar com a Prefeitura? Nilton – Não. A dificuldade é que o Município de Fortaleza nunca teve políticas mais agressivas para a cidade, políticas de criação de novos equipamentos. É uma necessidade de Fortaleza, nesse ambiente altamente competitivo com outras cidades da região como Salvador e Recife. A falta dessa agressividade em Fortaleza, o Estado acabava tendo que, de certa forma, suprir, arcar com essa carência e isso acabava prejudicando a própria participação do Estado em outros municípios. E você não pode esquecer que Fortaleza tem um terço da população do Estado, então de uma forma ou de outra, a capital é um núcleo central que estabelece fronteiras para o restante do Estado. Marcos – Você sabe que a Lei Patrícia Gomes, uma Lei de incentivo fiscal do Município de Fortaleza nunca saiu do papel... Nilton – Pois é, um município com políticas mais agressivas, com mais recursos liberaria o Estado para trabalhar projetos da mesma natureza nos municípios do interior, onde a carência é muito mais grave. Agora do ponto de vista do relacionamento institucional, pessoal, dos gestores, isso é balela, sempre houve relacionamento. No meu período, por exemplo, eu cheguei ao Barros Pinho, ele como Presidente da FUNCET.103 Ele ia realizar o Festival de Teatro e não ia usar o Theatro José de Alencar, o que eu achei uma coisa absurda. Liguei pra ele e disse que não admitia que fosse realizado um Festival de Teatro em Fortaleza e que fosse na principal casa de espetáculo da cidade. Nós nunca tivemos problemas de 103 Fundação de Cultura e Turismo de Fortaleza. 114 relacionamento, dificuldade de trocar idéia, de colaborar um com o outro. Essa coisa é mais na cabeça das pessoas. Marcos – Mas o Sr. conhece a Lei de incentivo municipal? Nilton – Conheço a Lei da Patrícia. Marcos – Em relação à Lei Jereissati, o que o Sr. considera seu maior erro? Nilton – A principal dificuldade foi a falta de compreensão de determinadas instâncias dentro do próprio governo de que o financiamento da cultura é fundamental, principalmente no caso do Ceará, que é necessária uma repercussão pedagógica, que desse exemplo, que mostrasse ao empresariado que era possível trabalhar nesse campo em forma de parceria. A dificuldade foi de compreensão interna, no sentido do próprio governo compreender que estava sendo ousado, criativo, estava com uma postura avançada, querendo quebrar um paradigma anterior que era aquele do pedido no balcão. E também por parte do empresariado, que não entendeu que além de ter o uso de sua marca sem estar financiando nem um centavo para os projetos culturais, ele estava dando uma contribuição a mais à sociedade da qual faz parte. Essa falta de compreensão no âmbito interno é um conflito histórico, no mundo todo. A área que arrecada, a área que é responsável pela coleta dos tributos, a área que tem que fazer caixa, ela está sempre em conflito com as demais áreas. E num Estado que tem dificuldades como o nosso, na área de saúde, na área de educação, a cultura acaba sendo vista como algo superficial. Mas isso é uma falta de visão, de informação e de conhecimento. Marcos – Apesar da dificuldade de obter dados nessa área, alguns deles registram que a cultura corresponde a 1% do PIB... É isso mesmo? Nilton – Já que você falou nisso, tivemos o cuidado de subsidiar o discurso dos gestores culturais, o cuidado de criar estudos, ter base de dados. No nosso período iniciamos um estudo que deve ser concluído agora e apresentado pela Secretária Claudia Leitão, sobre a participação da cultura no PIB do Estado. Esse trabalho foi feito pela Fundação IPLANCE. Marcos – Há um trabalho em nível nacional feito pela Fundação João Pinheiro que fala em torno de 1% do PIB. Nilton – O nosso trabalho teve uma consultoria do IBGE, é um trabalho interessante. Eu acho que é um pontapé inicial para que os gestores culturais no 115 Ceará tenham dados, números concretos para a hora da negociação. É importante ter um estudo como esse, que está avaliando o desenvolvimento de uma Lei de incentivo cultural no Ceará. Pesquisas como essa vão demonstrar erros, falhas, mas vão demonstrar os acertos. E fora isso, é importante frisar que para o Ceará, um Estado pobre, um estado que tem dificuldades de gerar emprego, de gerar receita, ainda mais vivendo uma crise como essa de caráter nacional e que precisa se inserir tanto no contexto nacional como criar parcerias internacionais, ter de certa forma um caminho, um projeto claro, um projeto preciso de como resolver os problemas sociais concretos que existem aqui. Então, estudar a possibilidade da cultura como um fator que contribui para o desenvolvimento é fundamental. Da mesma forma como fizeram os coreanos, como fizeram os Países desenvolvidos, que investiram em ciência e tecnologia, em educação mas sempre tiveram um apreço muito grande pelo cultural, que é o que forma a identidade, que é o que promove a auto-estima. E hoje, com essa visão associada à economia, com a possibilidade de geração de emprego, se torna cada vez mais crucial estudar e que os governantes tomem consciência dessas possibilidades. Marcos – Nesse meu trabalho, no Mestrado em Políticas Públicas, eu quero sair das críticas às proposições. Não tenho a pretensão de fazer um trabalho que vai resolver os problemas da cultura, mas que possa dar uma contribuição. No momento, está havendo muitas discussões sobre a Lei, por conta da reforma tributária. Há propostas muito interessantes do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, vi uma entrevista da Leonora104 muito interessante. O que o Sr. acha disso tudo? Nilton – O grande conflito que aconteceu foi em 97 quando o potencial de 2 milhões/mês, considerando a arrecadação do Estado, que poderia ser alavancado via incentivo cultural foi reduzido para R$ 320 mil/mês, o que equivaleria a R$ 3.860.000,00/ano. O primeiro decreto, de 97, limitou esse montante e estipulou um teto máximo de R$ 320 mil. Eu gostava tanto dessa lei como um instrumento, eu tentava preservar porque era um canal importante que nós conseguimos. Em 2002, depois de muita discussão nós conseguimos elevar esse teto para R$ 416.mil/mês. Hoje eu não sei como é que está, parece que reduziram drasticamente, para R$ 150 mil. Esse é o quadro geral atual. 104 Ex-secretária de Cultura de Belo Horizonte. 116 3.7 Entrevista com a atual Secretária de Cultura, Cláudia Leitão (2004) Pressionada pela falta de recursos que enfrenta o governo Lúcio Alcântara, pela crise das leis de incentivo e indefinição das regras federais, que acabaram intensificando o momento de certa estagnação na cultura cearense, a titular da SECULT, a professora e antropóloga Cláudia Leitão, tem grandes planos para o setor. Quer descentralizar as atividades, criando um Festival (dos moldes do que é realizado em Guaramiranga) na região da Ibiapaba e criar núcleos de difusão artística nos municípios cearenses. Sobre a Lei Jereissati, que será denominada, em breve, Lei Alcântara, ela não adianta muito: aguarda a definição dos rumos que estão sendo tomados no plano federal pelo MINC. Cláudia Leitão assumiu a direção da SECULT no ano passado e quer redefinir o apoio do Estado aos grandes eventos culturais como o Cine Ceará, o Festival de Guaramiranga, entre outros, que segundo ela, absorvem boa parte dos recursos estaduais destinados ao setor, em detrimento dos eventos menores. A idéia é pulverizar a verba e priorizar os projetos voltados para a população de baixa renda – a exemplo do que vem sendo feito pelo Ministério. Marcos – Qual a sua opinião sobre a crise atual das leis de incentivo? Cláudia Leitão – A partir da Cultura XXI105 , nós levantamos todo um diagnóstico da Lei Jereissati. Mas não adiantava que nós fôssemos trabalhar na reformulação da Lei, eu particularmente que representei Ceará em Brasília, junto aos demais Secretários de Cultura e com o Relator da Reforma Tributária, que nos disse que as Leis de incentivo favoreciam a guerra fiscal entre os Estados e que elas iam acabar. Nós reagimos imediatamente, todos os Secretários, junto ao Secretário executivo Juca Ferreira, secretário executivo do Minc), junto ao Ministro Gilberto Gil e isso foi uma luta muito importante dos Secretários de Cultura. Tanto foi importante que as leis de incentivo à cultura ficaram fora e nós estamos aí praticamente fechando a Reforma Tributária, e se Deus quiser essa área já não será mais tocada. Mas nós preferimos esperar, porque não adiantava mexermos numa lei que morreria. Vamos esperar e assim que a Reforma Tributária estiver fechada e sacramentada, aí sim é que nós vamos ter uma proposta da chamada Lei Alcântara, já que ela não vai acabar com a Lei Jereissati, o que ela vai fazer é dar um aperfeiçoamento. Toda lei é fruto de um momento histórico, nenhuma lei é perfeita, todas são imperfeitas como o próprio homem é imperfeito e, como a própria história, 105 Seminário Cultura XXI que serviu de base para o Plano Estadual de Cultura realizado no início do mandato em 2004. 117 são dinâmicas. A Lei Jereissati vai sofrer algumas clarificações, algumas retificações, mas ela por essência é muito boa e positiva. Marcos – A senhora tem clareza do quadro da Lei Jereissati, no período de 1995 a 2002? Cláudia – Acho que sim. Marcos – Dos 2024 projetos 1207 foram aprovados. Depois com a reestruturação 634 foram arquivados. Finalmente, desse quadro apenas 80 projetos foram totalmente finalizados pelo mecenato. Em relação ao FEC, que era uma outra parte vinculada à Lei, pergunto como é que a senhora vê a questão do financiamento da cultura pela lei, tendo como beneficiários os próprios equipamentos do próprio Estado? A senhora fala no seu livro Gestão Cultural sobre isso de maneira veemente. Parece-me que um dos problemas da Lei Jereissati é que, num determinado momento, devido ao problema orçamentário, a Lei serviu para financiar os próprios produtos do Estado. A Senhora tem noção do quanto foi pra Eleazar de Carvalho, por exemplo? Quase R$ 3 milhões em dois anos e meio. Cláudia – Nós percebemos que é um projeto difícil. Tanto é que nós vamos ajudar a Eleazar de Carvalho a se tornar uma Oscip106 e ela vai ter que procurar novos financiamentos. O Estado não pode manter tudo. É impossível, num estado pobre como o Ceará, a manutenção de projetos caríssimos. Nós precisamos de parceiros e parceiros, confiando absolutamente na presença da iniciativa federal para os projetos do Ceará. Todos os nossos projetos daqui de dentro estão indo pra Lei Rouanet. Nós não podemos mais imaginar que a Lei Jereissati vai resolver tudo. A demanda é imensa e os recursos de um Estado pobre são escassos. Eu acho que é um dado fundamental. Houve um momento em que o Ceará vendeu uma estatal extremamente importante e lucrativa, no caso a COELCE.107 Com a venda dessa estatal o Estado do Ceará teve a possibilidade de fazer importantíssimos investimentos. Fez estradas, um Porto do Pecém, um Dragão do Mar, que hoje é o equipamento cultural talvez mais importante desse País. Quer dizer, não podemos dizer que esse dinheiro foi mal empregado, de maneira alguma. O Ceará entrou numa plataforma de uma modernidade infra-estrutural fundamental. A questão é que o dinheiro acabou. Não há mais como imaginar mega projetos e 106 Organização 107 Companhia Social de Interesse Público. Eletricidade do Ceará. 118 quando se pensa no investimento na cultura é preciso olhar pra o investimento na saúde. Investimento na estrutura, na educação, quer dizer, investimentos que são garantidos inclusive constitucionalmente, o que é muito bom. O ideal pra nós é termos um sistema integrado de cultura também. Como há um sistema nacional de saúde, você ter um sistema nacional de cultura e o ideal seria que esses recursos fossem garantidos por lei, fossem garantidos constitucionalmente. Essa é a luta do ministro, um dinheiro que fosse blindado, expressão que eu uso muito e que o ministro Juca gosta demais dela. Eu não posso ter um dinheiro no Fundo de Cultura que não vá todo para Cultura. Marcos – Mais objetivamente, quais são as perspectivas para o setor no plano federal? Na minha pesquisa eu pude ver também um projeto do deputado Paulo Linhares, que sugere a questão da Loteria... Cláudia – Ah, a loteria. Nós estamos com a loteria pronta pra funcionar no ano que vem. O governador pediu um tempo, porque ele é muito prudente e gostaria primeiro de ver essa loteria dando certo num outro Estado. A Loteria já é um sucesso, já está dando certo em São Paulo. Eu estive com a Claudia Cochine e se Deus quiser ela vai ser lançada em março. É uma raspadinha, uma coisa muito simples, mas ela está dizendo que vai ter 10 milhões líquidos por ano para a cultura por causa da raspadinha. Esse é um dinheiro mais permanente. Nós não podemos mais acreditar que vamos encontrar outras soluções senão as de dentro, as do governo. Procurar soluções fora, parcerias fora, por isso eu estou lançando um selo de responsabilidade cultural, como eu lancei ontem. Porque vou trazer a empresa privada para patrocinar, não é somente uma questão de uma renúncia fiscal que na verdade é dinheiro do Estado, que é meramente blindado da empresa para a cultura, mas que é dinheiro público, estamos tirando do mesmo saco. Às vezes isso cria um mal entendido. As pessoas pensam que a empresa é que está investindo seu, mas não é a empresa. Marcos – Segundo o Humberto Cunha, pela lei não era nem pra colocar a marca nos projetos de doação, mas houve concessão nesse sentido. Agora, não estou querendo lhe colocar em situação difícil, mas, veja, em relação aos projetos governamentais, até porque há setores que dizem que é certo que esse dinheiro vá para os entes governamentais porque é dinheiro público mesmo. Ao mesmo tempo... Cláudia – Se você analisar um pouco a situação dos FECs e das leis incentivadas nos Estados, há um meio a meio. É o que nós devemos ter aqui no 119 Ceará. Meio a meio significa: tudo que é lei incentivadora de projeto engloba os projetos da sociedade civil e o FEC, que é o Fundo da Cultura, inclui os projetos que o governo deve fomentar porque o governo estabelece políticas e diretrizes, mas ele tem que ter recursos pra implantar essas políticas. Marcos – Mas na realidade não se interessa... Cláudia – Se eu quero levar cultura para a periferia, como é que eu vou fazer? Você acha que vai vir algum empresário aqui, me colocar um projeto na Lei Jereissati pra fazer esse tipo de iniciativa? Não vai, não. Nós precisamos ter a vontade do governo para realizar isso. Nós atendemos os artistas, os produtores culturais, as pessoas que fazem o protagonismo da cultura no Ceará, mas o Governo também tem que ter um rumo e apostar no seu projeto. Por exemplo, nós estamos querendo criar eventos culturais regionais. Porque só Guaramiranga? Porque nós não podemos ter também um grande evento em Tauá, porque nós não podemos ter um grande evento em Limoeiro do Norte? Temos que criar um calendário cultural cearense. Você acha que algum produtor vai chegar aqui com um projeto desse? Não, então é preciso – e aí vamos ser bem claros – que haja recursos para os projetos que vêm de fora e que haja recursos para que os governos deixem sua marca, executem sua política. O governo sempre irá desenvolver programas referentes aos seus projetos e as suas políticas. Marcos – Em relação a administrações passadas, eles falavam num certo diálogo, outras pessoas falavam em pressão, que havia da parte da Secretaria de Cultura para determinadas Empresas, pedindo depósitos para o FEC – essa não é uma informação pública, está no meu projeto e gostaria de consultá-la a respeito. Claúdia – Nós temos que fazer isso. Eu faço campanha o tempo todo. Eu quero aumentar cada vez mais, eu quero sensibilizar as empresas pra depositarem no FEC, é importante. O importante é que as empresas cada vez mais compreendam que se elas apostarem nesses investimentos culturais, elas vão ter retorno de marketing. A idéia do selo é muito simples. Eu vou fazer uma festa no ano que vem, e vou selar empresas e vou trazer o Ministro Gilberto Gil pra entregar esses selos. Eu quero mostrar que as empresas cearenses ou empresas que se instalaram aqui e que estão buscando renúncia fiscal, que se elas contribuírem para a cultura, elas vão ter inclusive, uma imagem muito positiva. Você sabe que a questão do Bonifácio Câmara com o BIC Banco, nós estamos lutando ai, quer dizer, uma empresa dessa que vai chegar junto e que vai dizer que a Biblioteca Bonifácio 120 Câmara está voltando aos maranguapenses. Essa empresa tem que ter um selo. Essa empresa faz cultura. Eu não estou falando de gravar um cdzinho não, eu estou falando de projeto de peso. Marcos – Já que a Senhora falou aí de gravar um cdzinho, há uma polêmica grande na área de música. É um área que quantitativamente recebeu um apoio nesses 8 anos, porém do ponto de vista financeiro, nem tanto. Em 95, houve oito que somaram 211.000,00 e um único projeto, só na área de pesquisa cultural, que recebeu R$ 344.000,00. Os recursos da área de cinema são bem maiores, portanto, a gente sabe também que alguns projetos eles já teriam guarida no mercado, sabe de apoio aos Trapalhões, sabe de apoio alguns projetos que teriam guarida tranqüilamente no mercado. A Senhora pensa em alguma forma de excluir da lei projetos que já têm guarida garantida no mercado e que já são amplamente aceitos pela mídia? Cláudia – Nós estamos trabalhando nisso. Eu não vou poder de adiantar muito o que irá significar essa nova Lei Alcântara. Mas eu diria que nós estamos trabalhando dentro de uma lógica de apoio ao pequeno, ao médio e ao grande. No sentido do que isso significa de investimento para os Fundos de Cultura. E o que nós vamos trabalhar em cada um desses eventos são suas características, como a viabilidade, a sustentabilidade e a questão econômica. O que isso deixa de economia para aquela região onde o evento for realizado. A idéia é inclusive criarmos uma lógica e pedir o apoio pra ajudar a criança a andar. E aí nós temos de criar realmente um critério que significa: o evento é construído, ele precisa crescer, a Secult apóia e isso deve diminuir ao longo do tempo. Há eventos que jamais se sustentarão. E pra isso também precisa ter critério, porque há eventos que não se sustenta e não adianta. Uns têm uma característica mais turística. Por exemplo, se você pensar num evento lá do homem que virou santo, ele tem tudo pra se tornar um evento sustentável. Agora o Festival Eleazar de Carvalho vai se sustentar? Nunca. Talvez eu esteja exagerando dizendo nunca, mas quando o Ceará tiver uma cultura de música erudita que não tem ainda. Então é preciso criar critérios eqüitativos. Isso não é simples, mas nós estamos trabalhando para isso. E eu queria dizer o seguinte. O que nós estamos fazendo, no sentido de tratar todos com os mesmos critérios, é que nós lançamos editais em todas as áreas e eu peço a você então que veja com a Secretária Adjunta. Está faltando os valores das artes plásticas, artes visuais. Aí você vai ver que os valores são os mesmos, para música, para literatura, para audiovisual etc. 121 Marcos – Você falou que o acompanhamento e avaliação das ações, isso é fundamental. Você falou, o que para mim é uma grande novidade, na questão de tentar avaliar o impacto disso. Fale um pouco mais sobre isso. Cláudia – O Nilton Almeida fez já uma primeira pesquisa com o antigo IPLANCE pra tentar definir uma metodologia de um PIB da Cultura no estado do Ceará. Ele chega ao valor de 2% que é um valor interessante. Nacionalmente, PIB da cultura está em torno de 1% o que já é muito grande. Então, é um diagnóstico muito interessante. A questão da avaliação do PIB está disponível inclusive no segundo volume da coleção Nossa Cultura. Voltando ao PIB, nós queremos e é fundamental isso, repensar porque há uma metodologia levantada pelo IPLANCE, O SEBRAE trabalha com outra. O Luis Carlos Prescilo tem uma que ele faz um trabalho com outra metolodogia. Existem critérios diferentes, nós precisamos definir uma coisa mais ou menos clara e simples e factível, porque queremos, já a partir do primeiro evento apoiado pela Secretaria esse ano, ter o levantamento de quanto é que o evento deixa para aquele município. Vamos fazer isso a partir de agora, porque no ano passado não deu, já que eu recebi o bonde andando, os eventos aconteciam e dava-se o dinheiro e o evento acontecia. Mas eu preciso saber e eu espero que o secretário que ficará no meu lugar comece a fazer uma memória. Olhe deixei esse ano tanto, no outro ano tanto, então se está deixando, então vamos integrar, porque aquilo ali está gerando emprego, está melhorando o comércio, está segurando a rede hoteleira, está levando turista e é isso que nós temos que saber. Então, não posso fazer isso de uma forma aleatória só porque o evento é bacana, isso não é gestão. Marcos – Isso tem a ver com a Lei também. Cláudia – Só tem a ver. Então isso vai fazer parte dos critérios. Nós só apoiaremos o evento e eles próprios se avaliarão, eles próprios vão aplicar a metodologia que nós vamos dar para ele. Marcos – E como é que a Senhora vê essa questão da música, dos CDs? Cláudia – Quando eu digo “apoiar um cdzinho” é porque às vezes você pode achar que uma empresa é muito mecenas quando ela gravou o CD de seus funcionários. Eu acho que é preciso pensar critérios de apoio, porque você precisa inclusive, veja bem, quando você está com um projeto de adoção de um teatro, quando você está assumindo uma orquestra, isso tem um valor. Então existem apoios 122 e apoios. A gente tem que separar até porque nós vamos selar. Quem quiser esse selo também vai ter que acreditar nesse marketing cultural. Marcos – Isso é intuição, mas se nós pegarmos todos esses setores envolvidos aqui no Ceará, como o forró. É do conhecimento da Senhora que uma das poucas rádios nacionais do segmento saiu daqui do Ceará e está tocando forró em São Paulo. Por exemplo, número de bandas de forró, dançarinos.... Cláudia – Eu não tenho uma noção de quantas dessas bandas existem. Você tem? Marcos – Não. Eu vou lhe dar uma dica. Tem um Fórum de Música criado pelo Flávio Paiva e pelo Ivan, da Prodisc, que fez uma pesquisa do setor musical junto com o Sebrae. Cláudia – Eu tenho. Mas nós estamos querendo agora fazer com que o fórum volte a se reunir. Nós chamamos o Flávio, ele se aproximou da Concilia, está caminhando. Nós queremos que esses fóruns passem a ter vida própria. Marcos – Porque se nós observarmos, aqui abstraindo a questão estética, a elite cultural da Bahia e de Pernambuco tem uma outra relação com o popular. E se cria uma indústria, que produz empregos. Qual sua opinião sobre essa questão? Cláudia – Seu trabalho é valiosíssimo. Como são poucas as reflexões sobre essas questões! Seu trabalho é magnífico. Quando eu organizei esse livro eu fui lançá-lo em São Paulo e o lançamento lotou. Reflexões sobre Gestão Cultural são muito importantes. Fizemos o Cultura XXI no mês de março e temos a consciência de que estamos chegando para ouvir opiniões, ouvir as pessoas. A reunir as três últimas administrações da área cultural, compreendendo o período que trabalhamos em nossa dissertação, 1995 a 2003. Das dúvidas geradas pela implantação com Paulo Linhares; a continuidade de Nilton Almeida e um certo declínio com a administração de Cláudia leitão que inicia-se em 2004, mas ainda em 2003, a Lei Jereissati tem seus trabalhos totalmente paralisados. Certamente, nosso objetivo em deixar as entrevistas praticamente na íntegra, cabendo aos questionamentos feitos mim nas perguntas ou alguma nota de esclarecimento que facilite a leitura das mesmas. O quadro demonstrado pelos administradores demonstram suas convicções, mas dá pistas para repensar a Lei Jereissati em sua especificidade, mas, contribui de sobremaneira para a construção de um política pública de cultura para o estado do Ceará. 4 PERSPECTIVAS DAS LEIS DE INCENTIVO – DINHEIRO PARA A CULTURA As perspectivas para a Lei Jereissati passam por toda a discussão que se dá em âmbito nacional de financiamento da cultura, reforma tributária e a criação de fontes de financiamento para o setor. E temos acompanhado as mesmas em periódicos locais e nacionais com opiniões que se pautam, seja por interesses de produtores e artistas, entes governamentais e setores empresariais, como demonstra matéria abaixo: Com a principal fonte de recursos, a Lei Jereissati, ameaçada pela Reforma Tributária, a cultura no Ceará procura novas formas de financiamento. Uma delas está inserida no novo Fundo de Desenvolvimento Industrial, elaborado pelo governo do Estado. Mas ainda não se sabe o verdadeiro impacto que isso poderá gerar na produção. Momento de definição para a cultura. A política de investimentos para o setor que passou praticamente o ano de 2003 em compasso de espera começa a ser norteada. Em nível estadual, uma novidade: a Política de Desenvolvimento Econômico acena com uma nova fonte de recursos para a cultura. Em outra frente, a Reforma Tributária entra na reta de chegada – já passou pela Câmara dos Deputados e se encontra no Senado. Pelo que estabelece a Reforma, as leis de incentivo à cultura estaduais têm um prazo para expirar: 11 anos. No Ceará, a Lei Jereissati, que não recebe novos projetos desde maio de 2002, segue liberando os recursos de propostas aprovadas anteriormente (Jornal O Povo: Sílvia BESSA e Patrícia KARAM da Redação; 04/10/2003). O quadro recessivo e de ajustes macroeconômicos marca o primeiro ano do Governo Lula e afetou os governos estaduais de uma maneira geral, em específico, o Governo do Ceará. A área da cultura, como é muito comum nas políticas públicas, é sempre uma das mais afetadas, como resume a Secretária Cláudia Leitão: A Lei daqui está parada porque governo passado recebeu muitos projetos que não tinha como honrar. Como estamos passando por um ano de recessão financeira, isso passa devagar. Ano que vem, esperamos uma recuperação na arrecadação do Estado e aí sim poderemos liberar mais projetos’’, explica a secretária da Cultura, Cláudia Leitão, acrescentando que ‘’está passando em média 150 mil por mês’’. A Secretaria da Fazenda (SEFAZ) divulga um volume bem maior. Somente este ano, já teria sido liberada uma quantia de R$ 3 milhões. Isso corresponde a mais da metade da ‘’dívida’’ herdada pelo atual Governo que foi de R$ 5 milhões. (Jornal O Povo: Sílvia BESSA e Patrícia KARAM ; 04/10/2003). 124 Cabe ressaltar nesse momento que o futuro da Lei Jereissati passa pela esfera federal e os destinos da política pública de cultura, e ressaltando também que a estruturação do Plano estadual de cultura representa um avanço significativo na otimização das atividades da SECULT e uma sintonia maior com os fazedores da cultura no Ceará, onde a descentralização das atividades e eventos da cultura, visando principalmente o ao restante do Estado parece-nos o ponto alto o Plano, e acrescenta ainda a matéria já citada: De qualquer forma, o futuro da Lei Jereissati passa pela esfera federal. ‘’A reforma tributária altera basicamente os impostos dos Estados e afeta, portanto, o funcionamento das leis estaduais de incentivo à cultura. A proposta de emenda à constituição apresentada pelo Presidente da República prevê que os estados estão proibidos de conceder incentivos fiscais, que são a base das leis de incentivo estaduais à cultura’’, explica o advogado Fábio Cesnik. O fim dessa fonte de recursos representa um forte impacto na produção cultural. Segundo levantamento do Site Cultura e Mercado, em 2002, os 16 estados em que a legislação permite o patrocínio a partir do abatimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) movimentaram R$ 166 milhões. A morte das leis é anunciada. O texto da Reforma Tributária, aprovado pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado determina: os estados poderão manter suas leis por até três anos. Depois disso, os projetos culturais já aprovados nessas leis poderão ser captados por mais oito anos, no máximo. Daí, a pressa em liquidar o acúmulo de projetos no Ceará. Caso contrário, não haverá tempo hábil para aprovar novas propostas. A última esperança dos secretários estaduais da cultura é que o Senado altere a Reforma. ‘’No Senado o processo começa novamente. É montada uma nova comissão, escolhido um novo relator para discutir a reforma. Depois segue ao plenário do Senado. As alterações devem ser reenviadas à Câmara para serem reapreciadas’’, esclarece Cesnik. A única compensação conseguida até agora é o estabelecimento de um fundo nos estados – em alguns, a exemplo do Ceará, ele já existe e seria apenas fortalecido. Para este fundo, seria destinado um percentual do ICMS do Estado. De acordo com Cláudia, a briga dos secretários é de que valor chegue a 0,5%. ‘’A grande vantagem é que este dinheiro seria blindado para a cultura’’, acredita a secretária. (Jornal: O Povo: Sílvia BESSA e Patrícia KARAM da Redação; 04/10/2003). As discussões avançam no Congresso Nacional para um tempo mais elástico para a transição do término das leis de incentivo fiscal de uma maneira geral, em específico para a Cultura. O que realmente há de novo em todas essas discussões é a possibilidade concreta de inclusão de uma nova fonte de recursos para a cultura advinda do Fundo de Desenvolvimento Industrial, que pela primeira vez inclui a cultura como um dos requisitos para a concessão de benefícios fiscais, 125 que juntamente com critérios como a geração de empregos, volume de investimentos e localização geográfica, há um item de ‘’responsabilidade social, cultural e ambiental’’. Investimentos em aparelhos culturais, em patrimônio material e imaterial, tecnologia aplicada à cultura, no setor fonográfico, audiovisual e outros podem significar o desconto de 1% do ICMS da empresa que estiver se instalando no Estado ou ampliando sua capacidade produtiva (Jornal O Povo: Sílvia BESSA e Patrícia KARAM; 04/10/2003). Portanto, há uma indefinição muito grande em relação ao valor para a cultura, demonstrando mais uma vez a indiferença dos setores governamentais nas formatações dos seus orçamentos em relação à cultura. Sintetiza muito bem a matéria, quando expõe a opinião de setores ligados à economia, mas que não percebem a cultura como um elemento vital para esta, explicitando mais uma vez os aspectos alegóricos da cultura. Vejamos: A questão é que não se pode calcular ainda o quanto isso significará para a cultura no Estado. O coordenador de desenvolvimento setorial da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), Eduardo Neves, explica que não há relação direta entre o desconto no imposto e o investimento da empresa. ‘’Não há relação de valor. Vamos supor que 1% do ICMS é R$ 1 mil. O empresário não tem que investir R$ 1 mil, pois aí zeraria a conta e não seria benefício nenhum. Ele tem que investir em cultura e existirá um monitoramento para tudo isso’’, afirma. (Jornal O Povo Sílvia BESSA e Patrícia KARAM da Redação; 04/10/2003). O advogado Humberto Cunha, em artigo intitulado A cultura e a bala perdida, publicado no Jornal O Povo, 04/10/2003, analisa a possibilidade do fim das leis de incentivo à cultura. E afirma de uma forma contundente que a forma de compensação é indispensável: “Vários estados e municípios, seguindo o modelo federal, criaram suas próprias leis de favorecimento à cultura, sendo que os resultados variaram bastante de uma a outra unidade da federação, indo do sucesso, em alguns casos, ao fracasso, em outros. No caso dos Estados, o imposto adequado para a renúncia fiscal, pelo volume de recursos e de contribuintes, é o ICMS (sobre mercadorias e alguns serviços), e a partir dele foram criadas as leis de incentivo à cultura. Ocorre que justamente o ICMS foi acusado de ser o causador de disputas desiguais entre os Estados, que o utilizam para atrair investimentos. Esta situação ficou conhecida como ‘’guerra fiscal’’. Resultado: sob a alegativa de que deveria ser combatida a guerra fiscal, o Governo Federal encaminhou um projeto de emenda à Constituição Federal, proibindo toda e qualquer renúncia sobre o ICMS. Decorrência disso, a cultura, que tem uma de suas principais fontes de sustentação na 126 renúncia fiscal sobre o ICMS iria (ou vai?) sofrer um duro golpe, com a abrupta eliminação deste incentivo. O irônico disso é que o favorecimento tributário da cultura em nada está relacionado com a guerra fiscal, mas sim com a função social da propriedade, no caso a propriedade pública sobre o tributo, em favor do desenvolvimento humanístico e social da população, através das manifestações artísticas e congêneres. Num paralelo à situação de violência de nossos dias, poderíamos dizer que, no fogo cruzado da guerra fiscal, a cultura está sendo alvo de bala perdida! (Jornal O Povo; 04/10/2003). Mais uma vez Humberto Cunha analisa as questões ligadas à cultura de uma forma muito realista e profícua, pois a guerra fiscal impetrada pelos estados brasileiros em nada se relaciona com as questões ligadas aos incentivos fiscais à cultura, sendo também muito adequado o título A bala perdida, acrescentando que, nessa guerra, quem sai baleado de morte é novamente a cultura. Reações advindas dos setores ligados à cultura tem gerado uma revisão do Congresso Nacional e dos setores ligados ao governo, Ministério da Cultura, como anuncia matéria abaixo: Claro que esta ameaça recebeu a repulsa da comunidade cultural que conseguiu, já na Câmara dos Deputados, reverter parcialmente o quadro, não evitando a eliminação da renúncia fiscal favorável à cultura, mas criando uma compensação consistente na autorização para que os estados, se quiserem, façam a vinculação (aplicação obrigatória) até meio por cento do seu ICMS para a cultura, dinheiro este a ser depositado em um fundo, cuja gestão deve ser fiscalizada por um órgão (conselho) composto de representantes do Estado e dos diferentes segmentos culturais. Esta providência compensatória é indispensável porque, sendo a cultura um direito fundamental, a forma de apoio pode até mudar, mas não pode ser negligenciada, sob pena de inconstitucionalidade. Devem ser observados mais dois detalhes: a reforma tributária ainda não está aprovada de forma definitiva (falta ser votada no Senado) e o pequeno resguardo que a cultura obteve na Câmara não é o ideal. Os senadores da República, alguns deles mecenas, imortais e até pioneiros no incentivo à cultura (José Sarney e Tasso Jereissati, por exemplo) poderiam se valer da oportunidade para dar ao segmento cultural a importância que realmente ele tem, inclusive no aspecto econômico, aprovando as regras a seguir enunciadas. 1a – a vinculação obrigatória, no lugar de não faculdade de vinculação de recursos para a cultura; 2a – o valor da vinculação de pelo menos 1% (o que a cultura representa no PIB Nacional) do imposto, em vez de até 0,5%, como até agora está aprovado; terceira: a vinculação deve ser ordenada não apenas para os Estados, mas também para a União, municípios e Distrito Federal, sobre o principal imposto de cada um; quarta: os recursos vinculados devem ser destinados especificamente para 127 atividades-fins da cultura e não para atividades-meio da burocracia cultural; quinta: deve ser mantida e fortalecida a fiscalização social sobre estes recursos; sexta: o modo operacional do fomento à cultura não deve ser padronizado pela União (que quer exclusivamente um fundo), mas organizado por Estados e Municípios, segundo suas peculiaridades. Cabe à comunidade cultural demonstrar aos políticos que a adoção destas atitudes representa uma revolução humanística (porque o desenvolvimento da cultura aprimora a pessoa), mas é também econômica, porque todo o pensamento de vanguarda aponta a cultura como a mais valiosa moeda deste recém principiado Século XXI (Jornal: O Povo: 04/10/2003; Humberto CUNHA FILHO). Portanto, cabe ressaltar que as opiniões que gravitavam no Governo federal inicialmente apontavam para a seguinte situação: O Governo Federal bateu o martelo: as leis estaduais de incentivo à cultura fazem parte da guerra fiscal que o Executivo pretende extinguir com a Reforma Tributária, atualmente tramitando no Congresso. Com isso, elas ganharam um prazo para saírem de cena. Por três anos, as secretarias estaduais da cultura ainda poderão aprovar projetos, que têm suporte financeiro no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Em seguida, terão oito anos para honrar os compromissos assumidos. Depois disso, elas acabam de vez. Isto inclui a Lei Estadual de Incentivo Fiscal à Cultura do Ceará, também conhecida por Lei Jereissati. (Jornal O Povo:04/10/2003). Opiniões como as do advogado Fábio Cesnik, autor do livro Guia do Incentivo à Cultura, 1997, critica severamente o fim das leis de incentivo estadual e acrescenta: As leis constituíram-se em elemento essencial para o fomento da atividade cultural em nosso País, nos diversos níveis federativos. Em meio ao processo de consolidação dos seus efeitos e de sua prática, vê-se a possibilidade de que com a reforma tributária que se anuncia extinguirem as próprias leis. Entretanto, há que se considerar as peculiaridades deste mecanismo, que se aparta da lógica da guerra fiscal e se inscreve como importante componente das políticas públicas de cultura (Jornal O Povo, 04/10/2003.) No âmbito federal, o secretário –executivo do MINC, Juca Ferreira, afirma categoricamente que o Estado não tem mais recursos para a cultura, que o sistema de renúncia fiscal está falido. Vejamos: No primeiro seminário com artistas, produtores e gestores culturais do programa “Cultura para Todos”, realizado na sexta, 11 de julho 128 de 2003, no Rio de Janeiro, o ministro interino da Cultura, Juca Ferreira, anunciou que se reunirá com secretários de Cultura e Fazenda de todo o Brasil para discutir o destino das leis estaduais de renúncia fiscal e sua possível substituição por fundos de financiamento direto. O encontro será na próxima segunda-feira, dia 14, em Brasília. “O Estado não tem mais recursos; não pode ser o mecenas das obras de arte”, afirmou Ferreira. De acordo com o Ministério da Cultura, cerca de 600 pessoas participaram da etapa carioca do seminário Cultura para Todos.108 Houve e ainda está havendo muitas reações dos setores culturais às mudanças. Uma das principais aconteceu no Rio Grande do Sul, com a criação do Comitê de Mobilização em defesa das leis de incentivo criado por artistas e produtores culturais da região; aqui no ceará houve manifestações esporádicas, que consegui capta-las principalmente nos jornais impressos. Outro pólo de resistência em defesa do incentivo fiscal está no Rio de Janeiro. De acordo com o informativo da empresa FilmeB, artistas e produtores daquele estado, entre eles Luiz Carlos Barreto, organizaram no dia 8 uma comitiva a Brasília para pedir ao relator da reforma tributária, deputado Virgílio Guimarães, a sobrevivência das leis de incentivo baseadas em ICMS (Folha de São Paulo: 05/10/2003). De acordo com o presidente da Associação dos Produtores Culturais do Rio Grande do Sul (APCERGS), Henrique de Freitas Lima, a proposta do governo de criar fundos de investimento direto, abastecidos por uma porcentagem do ICMS em cada Estado, “complicou ainda mais a situação” das leis estaduais. Para ele, isso “obscureceu a questão e instaurou um debate inoportuno no momento”. O presidente da APCERGS afirma ter conseguido apoio “garantido” do senador Pedro Simon e do presidente do PMDB, deputado federal César Schirmer, na luta pela manutenção do incentivo fiscal à cultura (Zero hora; 06/10/2003). Aqui no Ceará houve manifestações esporádicas de artistas e produtores sobre o assunto em pauta, o que demonstra mais uma vez o caráter desorganizado e atomizado que os setores da cultura atual no Estado. Mesmo assim selecionamos algumas opiniões em matéria já citada anteriormente: Produtores culturais discutem o impacto do provável fim das leis de incentivo, previsto pelo texto original da Reforma Tributária, o fortalecimento dos fundos estaduais de cultura e a nova política do Estado do Ceará. Os produtores culturais e artistas não estão a par das mudanças no Fundo de Desenvolvimento Industrial que abriu uma possibilidade 108 . (Site : http://www.culturaemercado.com.br/) 129 de financiamento para a cultura. Mesmo quem conhece a proposta ainda tem dúvidas. ‘’A lei ainda necessita de uma instrução normativa que esclareça: quais são as diretrizes e os critérios para recebimentos dos projetos; quem aprova os projetos; como se dá o repasse na conta do projeto; se o montante investido pelo empresário terá de ser o valor referente ao percentual de 1% que ele terá de rebate do FDI no caso da cultura’’, afirmam Honorato Feitosa e Dora Freitas, produtores da Lumiar Comunicação (Jornal: O Povo: 4/10/2003). De acordo com Eduardo Neves, coordenador de desenvolvimento setorial da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, os projetos não passam por aprovação prévia. Devem apenas ser descritos no protocolo de intenções da indústria que procura benefício fiscal junto ao Governo do Estado. A empresa é quem escolhe onde investir, podendo, inclusive, ter um projeto próprio. E não se trata de um repasse. A empresa investe em cultura e consegue 1% de abatimento no seu ICMS (idem). O chamado “grande erro” da Lei Jereissati recorrente nas opiniões tanto de artistas e produtores do setor cultural que é o de confundir ‘política cultural’ com ‘incentivo fiscal à cultura’; tendo declarações que afirmaram da não existência de uma política cultural no estado, estando a mesma vinculada às vontades dos que estão ocupando os cargos de secretários momentaneamente; esclarecendo que os traços personalistas estão presentes em todos os setores da política nacional e a cultura não é uma exceção. A queixa mesmo é em relação ao fim das leis de incentivo à cultura. A produtora Maria Amélia Mamede, da Via de Comunicação, avalia que o Ceará perde muito com o fim da Lei Jereissati. ‘’Acho que o fim das leis de incentivo significam um retrocesso a processos culturais que vinham se consolidando seja no segmento musical, teatral, dança e cinema. Nos últimos oito anos assistiu-se no Ceará a uma efervescência cultural, especialmente na capital. Bem ou mal existia uma forma de financiar projetos culturais. Muitos projetos saíram do papel e tornaram-se realidade. É claro que já se fazia necessário algumas revisões: estabelecer critérios mais claros, cumprir os prazos determinados pela Lei para aprovação de projetos, incentivar a descentralização cultural, definir melhor as formas de enquadramento dos projetos nas categorias doação, patrocínio e incentivo, impedir o financiamento de projetos do próprio Estado, cumprir com mais rigor a publicidade dada às empresas de acordo com estas categorias’’. (Idem) Dora e Honorato também acreditam que a lei fomentou a cultura local mas depois apresentou problemas. ‘’A instituição do decreto que limitou a emissão de Certificados de Incentivo à Cultura à R$ 320.000,00, posteriormente R$ 416.000,00 e, mais recentemente, para R$ 150.000,00 distorceu completamente a relação de parceria entre o Estado e a iniciativa privada que reverteuse em uma fila de produtores/ artistas buscando entrar na lista para não ver seus 130 projetos fenecerem’’, afirmam. (IDEM) De acordo com os produtores, foi entender a lei como uma forma de financiamento para a cultura, até mesmo de projetos governamentais. ‘’Falta uma dotação orçamentária meritória ao entendimento sobre a importância que tem a cultura para um País e destinar uma verba que ultrapasse pelo menos a casa dos centésimos dos gastos públicos’’, diz Maria Amélia.(Idem) O ator e produtor Carri Costa, diretor da Cia. Cearense de Molecagem, desafina o coro. ‘’Em nosso Estado, e especificamente no teatro, o fim das leis nacionais terá um impacto imperceptível, repito, se falamos produções teatrais de companhias, não de eventos. Se falarmos de leis estaduais dá no mesmo, basta termos acesso aos projetos aprovados que verificaremos um número pouco representativo. Essas leis sempre nos foi passada de maneira bastante ininteligível, sempre foi complicado entendê-la, ser selecionado, captar recursos e prestar contas’’, critica. Nesse sentido, ele acredita que a extinção das leis de incentivo e o fortalecimento do Fundo Estadual de Cultura pode ser um bom negócio para o teatro no Ceará. Isso se o governo estadual aumentar repasse for feito de forma transparente. ‘’O acesso às informações, critérios bem especificados e a participação da comunidade artística nas decisões tornarão qualquer produção cultural em nosso Estado (...). (Idem) Os produtores da Lumiar criticam a mudança sugerida pelo Governo Federal. Eles acreditam que ‘’o fim da lei estadual acarretará o fim do estado indutor e o retorno ao estado como tutor das verbas, dos projetos e da produção através do Fundo Estadual de Cultura que é o mecanismo que está sendo colocado como intermediador entre poder público e classe artística’’. Maria Amélia também teme que o Estado volte a concentrar o poder sobre os recursos. ‘’A crítica maior que se faz é que as empresas passaram a definir o investimento para a área cultural. Mas a lógica da lei é essa – possibilitar que outras instâncias da sociedade civil se envolvam nas questões culturais e isso deve ser pensado de uma forma positiva. Deixar para o Estado a seleção dos projetos também recai em troca de interesses políticos, moeda de negociação em tempos de eleição, visão de quem ora está no poder’’, afirma. Carri Costa deseja que os novos mecanismos criados para substituir as leis sejam menos burocráticos e democráticos. ‘’É preciso atingir quem produz cultura em todos os seus aspectos, independente de postura política ou ideológica’’ ( Sílvia BESSA, 2003). Onze anos a contar da reforma tributária. Este é o prazo de validade das leis estaduais de incentivo à cultura, caso o lobby dos secretários da cultura não surta efeito no Senado (Gazeta Mercantil: 07/10/2003). 131 “As leis constituíram-se em elemento essencial para o fomento da atividade cultural em nosso País, nos diversos níveis federativos. Em meio ao processo de consolidação dos seus efeitos e de sua prática, vê-se a possibilidade de que com a reforma tributária que se anuncia extinguirem as próprias leis. Entretanto, há que se considerar as peculiaridades deste mecanismo, que se aparta da lógica da guerra fiscal e se inscreve como importante componente das políticas públicas de cultura’’, Fábio Cesnik, advogado especializado em cultura e terceiro setor e autor do livro Guia do Incentivo à Cultura. 109 Gerando recursos aproximados de R$ 166 milhões por ano, as leis estaduais nasceram na década de 1990 com a redução do apoio federal às políticas culturais levadas à cabo pelo governo Collor. O princípio é o mesmo para as esferas federal, estadual e municipal: estes renunciam de parte de seus impostos para que empresas privadas ou públicas participem do processo de investimento. ‘’A iniciativa é vencedora. Os números de investimento em cultura ao longo dessa mais de uma década são bastante significativos e os resultados estão estampados na mídia da quase totalidade das produções em todas as áreas e nas obras de preservação de nossa memória. Os divergentes das leis de incentivo em nenhum momento propõem a sua extinção, mas o aperfeiçoamento de seus critérios e prioridades’’, analisa Cesnik. Opinião semelhante tem Cláudia Leitão, secretária da cultura do Ceará: ‘’A Lei Jeireissati é ótima. você pode até discutir alguns pontos. Mas o fato é que ela movimentou o estado no âmbito cultural” (Jornal: O Povo; 04/10/2003). O lobby dos secretários da cultura concentra-se agora no Senado, que pode modificar o teor da Reforma Tributária aprovada pela Câmara dos Deputados. ‘’Os secretários se mobilizaram a partir de um encontro em Foz do Iguaçu e continuam acompanhando todo o processo. Tiveram reunião com a liderança do Governo e tentam reverter o quadro’’, informa Cesnik, que enxerga nos incentivos à cultura ‘’políticas transversais de base social, com beneficiários dispersos em uma sociedade’’. Portanto, na visão do advogado, ‘’por não terem relação com a atividade econômica direta da empresa, não são mecanismos para atraí-las a um Estado ou outro’ (Folha de São Paulo: 08/10/2003). Patrícia Karam110 Na esfera federal, a principal legislação (Rouanet) também está sendo analisada pelo Ministério da Cultura (MINC). A Lei Rouanet tem por base a renúncia do Imposto de Renda. ‘’Ela passa por uma imensa reestruturação já que as pesquisas mostram que os recursos não são distribuídos de 109 Guia do Incentivo à Cultura. MINC, 1997 O Povo: 04/10/2003) 110 Jornal: 132 forma igual e, sim, concentrados no eixo Rio-São Paulo. É preciso abrir espaço para que um projeto lá de Reriutaba chegue a Brasília’’, acredita Cláudia Leitão. Os incentivos fiscais à cultura favorecem o aumento da produção cultural local e podem servir de instrumento para reduzir a inadimplência.111 A falta de recursos é uma das principais dificuldades enfrentadas tanto por aqueles que estão envolvidos na gestão da política cultural, quanto pelos que estão empenhados na produção cultural. Os governos enfrentam uma crônica falta de recursos para investimentos, o que impede a ampliação do orçamento das áreas de cultura como seria desejado. O setor privado é apontado como solução, mas a prática do patrocínio ou da participação de capitais privados no financiamento de produções culturais ainda é incipiente. Essas dificuldades em obter recursos atingem produções culturais de vários portes. É necessário criar formas para captar recursos que atraiam investidores e patrocinadores, dinamizando a produção cultural no município, sem provocar sobrecarga e aproveitando mais eficazmente o potencial dos produtores, sem depender, necessariamente, de verbas estaduais e federais. O que fazer? Nos últimos anos, alguns municípios iniciaram a aplicação de leis de incentivo fiscal à produção cultural. O princípio adotado é da renúncia da prefeitura de arrecadar impostos em valores correspondentes ao total ou a parcelas dos valores de investimentos ou patrocínios em produções culturais.112 Um aspecto que deve ser destacado aqui deve ser a total exclusão do Município de Fortaleza que, apesar de ter uma lei específica para o setor, nunca foi regulamentada.113 O resultado mais evidente da implantação de uma lei de incentivo fiscal à produção cultural é, obviamente, o aumento da produção e do acesso dos cidadãos aos bens culturais. Deve-se observar, no entanto, que este resultado só é conseguido se houver um cuidado para que o projeto leve à produção de eventos que sejam acessíveis mesmo aos cidadãos sem condições de pagar por eles. Pode-se, diretamente no texto da lei, ou através da ação da comissão encarregada da seleção de projetos, incentivar a produção cultural local. Assim, um projeto de lei de incentivo à cultura pode ter um diferencial importante se criar formas de captar 111 Publicado originalmente como DICAS nº 43 em 1995. no plano federal. Existe a Lei nº 8.313, de 23/12/91, que regulamenta os incentivos 112 Experiências fiscais federais para projetos culturais. Pode-se obter informações no endereço:Secretaria de Apoio à Cultura / Ministério da Cultura / Esplanada dos Ministérios / Bloco B – 3º andar / Telefone: (061) 224-6529 / Fax: (061) 225-9162. 113 A chamada lei ‘Patrícia Gomes’, então vereadora de Fortaleza. 133 recursos para apoiar não só grandes produtores, mas também produtores com projetos menores ou mesmo produções de caráter amador ou semiprofissional. A adoção da gestão conjunta entre governo e sociedade dos recursos destinados ao incentivo à produção cultural contribui para a democratização da gestão da cultura, pela possibilidade de discussão dos projetos culturais com um ator coletivo da sociedade, que pode ser o Conselho Municipal de Cultura ou uma comissão formada especificamente para este fim. É um desafio para o governo municipal fazer com que o processo de seleção dos projetos tenha um elevado grau de transparência, obtendo legitimidade junto à sociedade. Deve-se ter em mente, porém, a noção de que a adoção do incentivo fiscal à produção cultural implica uma perda de arrecadação direta para o município; entretanto, se geridos convenientemente, estes recursos tornam-se investimentos aplicados diretamente na produção cultural, sem desperdícios por conta de ineficiências da administração municipal. Os incentivos fiscais à cultura podem servir como instrumentos para redução da inadimplência, se forem previstos mecanismos de renúncia fiscal de impostos atrasados em troca de patrocínio de produções culturais. A participação do município não pode ser mais de um ente federativo passivo na construção de uma política pública de cultura que inclua brasileiros e brasileiras que necessitam dessa política. Fluxograma sugerido para andamento de projeto cultural FONTE: José Carlos Vaz .Consultores: Valmir de Souza e Hamilton Faria Proponente de Projeto Promotor Cultural Secretaria ou Fundação Cultural Projeto atendimento requisitos Comissão ou Conselho de Avaliação Projeto qualificado com certificado para captação de recursos Financiador Recursos Idéia Projeto 134 Uma política cultural que formate intervenções fundamentais na política pública de forma transversal, e que as compreenda como essenciais na estruturação social e base para um desenvolvimento sustentável e com princípios fincados na pluralidade do nosso povo e de nossas culturas. Desenvolvendo todos os entes federativos de forma conjunta e autônoma; repassando para os Municípios não apenas os ônus, mas, as condições materiais para efetivar essas políticas. O mercado cultural pode representar o início de uma alavancagem na política de emprego, ocupação e renda, pois o setor no Brasil já representa um pouco mais de 15 do PIB e gera mais de 510 mil empregos, tendo potencial para empregar muito mais pessoas. É evidente, portanto, a importância da cultura em seus aspectos econômicos, cabendo à cadeia produtiva da cultura uma política pública estatal de apoio à capacitação permanente para a compreensão desse momento novo que a realidade nos apresenta. Algumas pesquisas114 apontam e demonstram com dados a pujança econômica da área cultural; mesmo que os empresários de uma maneira geral ainda percebam a área como ‘lantejoulas’, numa visão ainda bastante pragmática e instrumental da cultura. Mesmo assim já se constitui num momento rico para discutirmos a função social e cultural dos empreendimentos privados, muitos até subsidiados pelos dinheiros públicos. O desenvolvimento de pesquisas, que dão suporte a diagnósticos, alicercem as ações dos diferentes agentes culturais e ofereçam ao setor cultural e seu mercado dados para investimentos, ações de sensibilização de públicos e formulação de políticas. Formando redes, realização de fóruns, debates e publicações que permitam a sensibilização do público em relação à questão cultural e a formação de um pensamento nacional a respeito da cultura. Transmissão de conhecimento Publicações, cursos, seminários e website que forneçam insumos necessários à inserção da cultura na agenda nacional, contribuindo para o alargamento do significado da cultura na sociedade brasileira. Para tudo isso faz-se necessário criar estratégias que sejam exeqüíveis e, principalmente, adaptáveis às peculiaridades regionais, estaduais e locais, quais sejam: identificar as necessidades do setor cultural para o constante desenvolvimento de ações que visem à sua articulação; sensibilizar os diversos agentes para o cumprimento do seu papel social segundo 114 Como a da Fundata Cultural – Pesquisa realizada em parceria com a FIPE acerca do setor de Fundações atuantes na área Cultural, seu perfil, sua atuação e suas atividades. Investidores Culturais- levantamento de 160 empresas que investem em cultura no País e análise de seu perfil de investimento (Coordenação de Carolina Ramos 1995 a 2001). 135 os conceitos de ética, responsabilidade social e cidadania; qualificar os agentes culturais para uma melhor atuação no setor; mobilizar os agentes culturais para o melhor desenvolvimento do setor; articular o setor cultural, com objetivos bastante claros que visem ao desenvolvimento do setor cultural; inserção da cultura na agenda pública e privada; integração e interação dos diversos agentes do setor cultural; conscientização do papel estruturante da cultura na sociedade brasileira. Sem dúvidas instituições como o Instituto Pensarte115 e outros são fundamentais para efetivação de todos esses objetivos (anexo listagem de todas as instituições públicas , privadas e não governamentais ligadas ao setor). “Me congratulo com o senador Aloízio Mercadante, que tem tido uma posição combativa, responsável e cuidadosa com a Cultura brasileira. Ele é um dos grandes parceiros do Ministério da Cultura. Foi uma vitória importantíssima”, declarou o ministro da Cultura, Gilberto Gil, de Maputo, Moçambique, ao saber da aprovação da emenda apresentada na quarta-feira (5 de novembro) pelo senador no plenário da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. Isto significa que o novo texto da Reforma Tributária garantirá a manutenção das Leis Estaduais de Incentivo à Cultura, não só para aqueles Estados que já possuem como, também, para aqueles cujos governantes queiram criar suas Leis. Além disso, a aprovação da emenda garante R$ 160 milhões por ano ao mercado cultural do Brasil (média da verba destinada à Cultura com a vigência das Leis Estaduais existentes). (Folha de São Paulo:08/11/2003) Deve-se ter em mente, porém, que a adoção do incentivo fiscal à produção cultural implica uma perda de arrecadação direta para os municípios e estados; entretanto, se geridos convenientemente, estes recursos tornam-se investimentos 115 Missão de articular o setor cultural contribuindo para transformar a sociedade por meio da cultura. Promover a transformação da sociedade por meio da cultura significa, para o Instituto Pensarte, encadear esforços de todos esses agentes de forma a permitir a consolidação de um setor qualificado, capaz de produzir e consumir cultura. Por isso, o IP desenvolveu o conceito de Espiral Cultural, uma investigação teórica sobre a qual norteia a sua ação estratégica. O processo cultural é percebido pelo IP como sendo contínuo, cíclico e progressivo, construindo a imagem do espiral e envolvendo a atuação dos diversos agentes culturais no encadeamento das seguintes esferas: – Ambiente: entorno social que favorece a interação entre os agentes culturais, propiciando as condições para o acesso. – Criação: pesquisa, idealização de produtos, projetos e processos, desenvolvimento de repertório, processo criativo. – Atuação: mobilização inicial, identificação das necessidades de produção, viabilização, difusão, ambiente e acesso. – Produção: preparo do produto, projeto ou processo para a experimentação e consumo, para o acesso. – Viabilização: viabilização do produto, projeto ou processo, seja ela financeira ou de recursos humanos e materiais. – Difusão: veiculação da presença do processo cultural ao público. – Acesso: oferecimento de produtos e processos culturais a todos. – Experiência: vivenciar os processos culturais em sua plenitude – recebendo, refletindo, criando e atuando – o que propicia um ambiente favorável ao processo em que se desenvolve o espiral. 136 aplicados diretamente na produção cultural, sem desperdícios por conta de ineficiências da administração municipal. Os incentivos fiscais à cultura podem servir como instrumentos para redução da inadimplência, se forem previstos mecanismos de renúncia fiscal de impostos atrasados em troca de patrocínio de produções culturais. No lugar de leis estaduais, o MINC propõe fundos Representante do Ministério no Rio fala sobre projeto de destinar uma porcentagem fixa de ICMS a fundos de cultura, que seriam geridos pelas secretarias (Gazeta Mercantil: 08/09/2003). Para Leitão, as secretarias de cultura podem administrar os fundos de forma mais democrática que a “selvageria do mercado”. Ele prevê que, caso a proposta seja levada adiante, provavelmente a porcentagem de ICMS não será a mesma para todos os estados, pois aqueles que têm menor receita não teriam condição de sustentar projetos consistentes. Em alguns tem que ser maior; em outros, pode ser menor”, explica. ( Folha de São Paulo: 09/09/2003) Ao avaliar os Caminhos e Descaminhos Culturais do Governo FHC, Yacoff Sarkovas, explicita: (...) O sistema perdulário de financiamento do Ministério da Cultura do governo FHC ao menos re-comprovou nossa fertilidade cultural: em se plantando, dá. Os recursos ampliaram expressivamente a oferta cultural e resultaram em muitos projetos de qualidade. O desafio do Ministério da Cultura de Lula será atingir os objetivos estabelecidos, há mais de dez anos, no Artigo 1º do Programa Nacional de Apoio à Cultura: – “facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais”; – promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com as valorizações de recursos humanos e conteúdos locais; – apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores; – proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional; – salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; – preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro; 137 – desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações; – estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória; – priorizar o produto cultural originário do País.” Como se vê, não há muito mais o que prometer. Só a fazer.116 Sarkovas, que é Presidente da Articultura Comunicação e consultor de patrocínio empresarial, levanta uma questão interessante para refletirmos: não há a necessidade de a cada governo fazermos um plano totalmente diferente para para termos os resultados esperados. Em outra oportunidade, ao se referir ao ‘Financiamento público da cultura e leis de incentivo’. Por que a reforma tributária pode provocar um colapso econômico na área cultural? Por que as leis de incentivo são o principal assunto da agenda do Ministério da Cultura? Aliás, por que o Ministério da Cultura é, na verdade, o “Ministério das Leis de Incentivo”? Por que, afinal, no Brasil, e somente no Brasil, a cultura é afetada tão diretamente por questões fiscais? Porque no Brasil, e somente no Brasil, a dedução fiscal é o principal mecanismo de financiamento público à cultura. Desvirtuadas da função de estímulo suplementar do patrocínio empresarial às artes, as leis de incentivo tornaram-se uma forma insensata de financiamento do Estado. Os governos têm a responsabilidade de estabelecer objetivos e elaborar estratégias para sua ação nos processos de pesquisa, criação, produção, circulação, intercâmbio e preservação dos diversos segmentos artísticos, e garantir a todos os extratos da população e a todas as regiões do País amplas condições de fruição e expressão cultural. Estas políticas devem orientar o investimento do dinheiro público suficientemente previsto nos orçamentos dos municípios, dos estados e da federação. Mas nada disto acontece. Salvo exceções, raras e pontuais, não há diretrizes. E os minguados recursos alocados sequer cobrem os gastos de manutenção dos próprios aparelhos culturais do Estado. O dinheiro público que movimenta nossa produção cultural percorre o tortuoso caminho do incentivo fiscal por meio da dedução de impostos federais, estaduais e municipais, e sua distribuição obedece à lógica e ao interesse empresarial. Não há nada de errado nisto, quando o dinheiro é, de fato, privado. A associação 116 Valor Econômico – 3 de janeiro de 2003 138 das marcas a projetos culturais é uma poderosa estratégia para atingir objetivos corporativos e mercadológicos, o que motiva as empresas em todo mundo, inclusive no Brasil, a investir parte de seus orçamentos de comunicação em patrocínio. Mas as leis de incentivos fiscais permitem a dedução integral do imposto a pagar, tornando a empresa, neste caso, mera repassadora dos recursos do Estado, despendidos sem atender objetivos coletivos e parcialmente consumidos por um sistema de intermediação que envolve aprovadores, captadores, auditores, entre outras atividades úteis e dignas no regime do mercado, mas não necessárias para o investimento público. Se grande parte dos recursos de projetos com incentivo fiscal é 100% do Estado (125% na famigerada Lei do Audiovisual!), por que pulverizá-los e transferilos aleatoriamente para o caixa das empresas, obrigando o meio cultural a peregrinar em território privado à cata do dinheiro público? Esta pergunta óbvia não é formulada pela maioria dos produtores, promotores, artistas, ministros, secretários, deputados, senadores e jornalistas. Como que possuídos por um encantamento, nada enxergam além das leis de incentivo, limitando o debate à busca de fórmulas mágicas para “corrigir suas distorções”, “ampliar sua abrangência”, “beneficiar regiões carentes”, “democratizar o acesso”, “eliminar a intermediação”, “fazer o controle social” (VALOR ECONÔMICO – 11 de Julho de 2003) O autor é muito feliz ao afirmar que no Brasil tem-se a cultura de resolver problemas estruturais com ‘ações cosméticas’; sendo impossível atender a extensão das demandas culturais brasileiras com um sistema baseado em incentivo fiscal. E acrescenta: Enquanto este paradigma não for quebrado, tudo continuará como está. Se a premissa para a política cultural fosse o investimento direto, a agenda seria outra. A discussão estaria centrada na constituição de fundos de financiamento, nas garantias de sua sustentabilidade orçamentária, nos critérios técnicos de avaliação de projetos, nos mecanismos independentes de seleção, no planejamento da transição sem sobressaltos (Idem). O meio cultural não se mobiliza para instaurar a transferência dos recursos públicos despendidos na dedução de impostos para fundos de financiamento municipais, estaduais e federais, ação que não afetaria o equilíbrio fiscal? Uma parte, por mero desconhecimento desta possibilidade. Outra parte, por temer que o dinheiro seja gasto pelo próprio governo, tragado na sua insolvente infra-estrutura cultural ou distribuído aos seus apaniguados políticos. E uma minoria, com amplo 139 acesso à mídia e ao poder, porque urdiu o sistema em vigor sob medida a seus interesses pecuniários. Ao contrário do que apregoam estes donatários da verba estatal que amedrontam os incautos com o velho fantasma do dirigismo, é possível, sim, estruturar um sistema de investimento cultural eficiente, plural, democrático, transparente, regido pelo mérito e pelo interesse público. Não faltam modelos em funcionamento em diversos Países, não só do “Primeiro Mundo”. E, mesmo no Brasil, é possível se espelhar nos mecanismos de financiamento da área científica, como a FAPESP. Quanto ao patrocínio das empresas, o fim do anabolizante fiscal revelaria sua verdadeira dimensão econômica. Livre de um cipoal de normas e de seus parasitas, deixaria de ser matéria tributária para tornar-se exclusivamente ação estratégica. Cresceria estimulado pela necessidade de gerar resultado, irrigando a cultura com recursos privados reais, como ocorre nas áreas ambiental, social e esportiva, que não sucumbiram, ainda, ao perverso encanto das leis de incentivo e desenvolveram formas concretas de sustentabilidade. O financiamento à cultura provém de quatro fontes distintas e complementares: o Estado, o investimento social privado, o patrocínio empresarial e o mercado consumidor. No Brasil, a falta de compreensão sobre a natureza e as motivações dessas fontes levou boa parte do meio cultural a cometer equívocos estratégicos, como abrir mão de fundos públicos de financiamento e se tornar cúmplice de um sistema de incentivo fiscal que transfere dinheiro e responsabilidade públicos para o interesse privado. Por ser um gênero de primeira necessidade e fator condicionante da transformação individual e coletiva, a criação intelectual e artística é questão de interesse público, o que exige e justifica investimentos públicos. No Brasil, os ínfimos orçamentos para a cultura do Estado são dragados por sua própria estrutura, anacrônica e ineficiente, pouco ou nada restando ao investimento direto. Mais grave do que a falta de recursos é a falta de visão estratégica do papel do Estado na cultura de uma sociedade inserida no mundo globalizado. Não há diretrizes nem planos de ação cultural para os diversos segmentos artísticos, populacionais, geográficos etc. Não há estratégias públicas para formação, pesquisa, criação, produção, circulação, fruição, intercâmbio, preservação. O último governo atingiu o ápice dessa omissão. Sem dispor de projetos para o setor, o Ministério da Cultura de FHC instaurou um sistema de financiamento baseado na dedução integral do imposto, que subverteu o princípio elementar do 140 incentivo fiscal, que é o de usar recursos públicos para estimular o investimento privado. Transformou as leis de incentivo em repassadoras perdulárias do dinheiro público, condenando o meio cultural a peregrinar pelas empresas em busca de recursos do erário que deveriam estar disponíveis em fundos de financiamento direto. Ao transferir para as empresas capital e responsabilidades do Estado, o Ministério da Cultura comete múltiplos equívocos: investe sem a efetiva garantia de atender o interesse público; não forma reais investidores e patrocinadores privados, pois ninguém aprende nada usando a carteira alheia; deforma o mercado de patrocínio, inoculando na cultura empresarial a isenção sem contrapartida. As empresas têm motivações próprias para investir em ações de interesse público, independentemente de dedução fiscal. Um estudo do IPEA revelou que 59% das empresas brasileiras estão desenvolvendo ações em benefício da comunidade, aplicando cerca de R$ 4,7 bilhões (dados de 2000). Na ponta desse movimento, o mecenato e a filantropia cedem lugar ao conceito de investimento social privado que incorpora ferramentas típicas do setor empresarial, como o planejamento e o monitoramento, para buscar soluções sistêmicas e estruturais. Nos EUA, os institutos e fundações empresariais estendem suas atividades ao campo cultural, dispondo fundos para os mais variados projetos e segmentos artísticos. No Brasil, um dramático quadro de desigualdade induz a maioria do investimento privado para ações relacionadas à pobreza e à exclusão social. O estudo do IPEA revela que 76% das empresas declaram realizar atividades sociais por rmotivos humanitárias, sendo que 62% se voltam ao segmento infantil. Se não justifica, esse cenário ao menos explica por que aqui esses recursos só beneficiam a arte como meio ocupacional e/ou educacional de populações carentes. Para ter acesso ao investimento social privado, o setor artístico terá de convencer indivíduos, empresas e instituições de que a inclusão cultural é, em si, transformadora. De que as artes estimulam os sentidos, formam a identidade, constróem a cidadania. Acomodados em oferecer dedução de imposto, os produtores culturais perderam espaço para as organizações sociais e ambientais, que, sem dispor de leis de incentivo, profissionalizaram-se para buscar esses fundos. Ainda fora do alcance da ação social privada, o campo cultural é irrigado por recursos de outra natureza. Desde a década de 1980, fatores de mercado induzem as empresas a associarem suas marcas a ações de interesse público, como estratégia para atingir objetivos institucionais, promocionais e de relacionamento. Isso resulta na aplicação de verbas de marketing e comunicação empresarial em projetos comunitários, ambientais, esportivos e culturais. Em 2001, o patrocínio nessas áreas movimentou, 141 no mundo, US$ 23,6 bilhões. No Brasil, o patrocínio à cultura floresce antes do incentivo fiscal, inaugurado pela Lei Sarney, em 1986. As distorções produzidas pela dedução integral do patrocínio no imposto a pagar, adotada na gestão Weffort, no Ministério da Cultura, turvam a percepção de que um número expressivo de ações culturais, que atendem à identidade e ao interesse do público-alvo de marcas de empresas, é realizado com dinheiro empresarial. A obtenção do patrocínio exige conhecimento das estratégias e objetivos de comunicação e a interação com as áreas de marketing corporativo e de produto das empresas. A compreensão do universo da transação comercial, mesmo que básica, ajuda o gestor cultural a considerar e lidar com seu próprio público, financiador direto da sua atividade. Adquirindo ingressos para filmes, shows, espetáculos e exposições, obras de arte, livros, revistas, jornais, CDs, vídeos, DVDs ou assinaturas de TV a cabo, o público é agente econômico, tanto da indústria cultural como da mais singular e alternativa expressão artística. Reconhecendo que a cultura depende, em maior ou menor escala, do seu mercado de consumo, o gestor cultural acabará por se render ao domínio da ciência que rege as transações: o marketing. Entender e atender o público não é só tarefa para fabricantes de sabonetes e automóveis, mas também para administradores de museus, orquestras e companhias de dança. Isso não significa pasteurizar a criação artística ao gosto do freguês, mas saber onde disponibilizá-la, por quanto apreçá-la, como promovê-la. Agora que diversos segmentos artísticos se mobilizam para discutir políticas culturais, que pequenos grupos tramam para manter privilégios e que o Ministério da Cultura de Lula abre discussão sobre investimento público, é hora de buscar formas reais de sustentabilidade da cultura brasileira, diversificando suas fontes de financiamento. Para tanto, é fundamental exigir que o Estado assuma sua responsabilidade de formular e financiar políticas culturais públicas; esclarecer os investidores privados de que a inclusão cultural promove a inclusão social; compreender que a relação da cultura com a comunicação empresarial não depende de incentivo fiscal; e considerar que o acesso público é premissa para a produção cultural (Folha de S.Paulo – 9 de Julho de 2003). Criadora da lei mineira defende “mais verba menos verbo”. Eleonora Santa Rosa defende engajamento real do Ministério da Cultura em defesa do atual modelo de incentivo fiscal e propõe a implantação de um Sistema de Abastecimento 142 Cultural. Eleonora Santa Rosa é peça fundamental no desenvolvimento da produção artística e cultural de Minas Gerais, seja como produtora, seja como pensadora de políticas públicas. Pelas suas mãos tomaram forma, por exemplo, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte (1993) e a Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, esta última, o principal mecanismo de financiamento cultural em vigor hoje no Estado pelo menos até que se defina o tamanho do estrago na área trazido pela reforma tributária, que proíbe qualquer forma de incentivo baseado em renúncia de ICMS, cerne das 16 leis estaduais existentes. Fazendo uso da lei estadual mineira e da federal Rouanet (que também pode virar fundo), Eleonora ajudou a viabilizar projetos como o Fórum Internacional de Dança (o FID, para o qual definiu estratégias e viabilizou a captação de cerca de R$ 900 mil, para três edições, entre 2000 e 2003) – Mostra Internacional de Cinema Independente (R$ 288 mil para duas edições, em 2002 e 2003), Museu do Oratório (R$ 960 mil, de 2001 a 2003) e Arte no Ônibus (R$ 462 mil, em 2002 e 2003). Atualmente, dedica-se especialmente à coordenação executiva da implantação do Museu de Artes e Ofícios, projeto idealizado e dirigido pela empresária e ex-secretária de Cultura de Minas Gerais, Angela Gutierrez, responsável também pela criação do Museu do Oratório, em Ouro Preto. O novo museu ocupará a estrutura da Praça da Estação, um dos cartões postais de Belo Horizonte. Boa parte do orçamento, de R$ 12 milhões, está sendo viabilizada por recursos oriundos das leis estadual e federal de incentivo à Cultura. Em sua iniciativa de contribuir para a massa crítica sobre a polêmica em torno da provável extinção das leis estaduais, a sua posição “duplamente de dentro” de Eleonora Santa Rosa, que acompanha de perto a questão. Eleonora avalia as dificuldades da substituição do modelo atual por fundos, critica a condução das mudanças e apresenta, entre outras propostas, a idéia do que chama de Sistema de Abastecimento Cultural. A proposta de criação de um fundo em substituição às leis concentraria nas mãos dos governos a decisão dos projetos que receberiam verba. Há estrutura e maturidade para essa mudança? Realmente temos que avaliar se o momento por que passamos comporta uma mudança desse nível, Eleonora Santa Rosa avalia que: A questão dos fundos é complexa e merece consideração criteriosa. Em tese, são instrumentos democráticos que refletiriam, com transparência, as regras do jogo, os princípios e condições de concorrência de determinada verba, possivelmente ao alcance de todos os interessados (SANTA ROSA, 2003). 143 Inúmeros outros fatores poderiam ser arrolados nesse sentido, mas não cansemos o leitor e vamos ao ponto: a experiência adquirida tem mostrado a verticalização da decisão, a concentração de poder e a nefasta manipulação, para fins políticos, das parcas verbas disponibilizadas nos fundos (vide o Fundo Nacional de Cultura, frustrado e frustrante nas suas finalidades). Todos os que a ele acorreram sabem bem, na prática, como a decisão era tomada e a quem beneficiava. De um lado, a deliberação, quase sempre, era favorável ao poder político e clientelístico dos que tradicionalmente tinham e continuam tendo poder de barganha. De outro, os ingênuos e incautos participantes de uma interminável e crescente fila de espera, aguardando, desesperadamente, a liberação de recursos ínfimos de um Fundo falido. Mesmo com esses problemas, não podemos nos dar ao luxo de excluir qualquer mecanismo, sobretudo este. Assim, necessitamos de um sistema de financiamento híbrido, composto por fundos (reestruturados e devidamente alimentados), incentivos de mercado, empréstimos reembolsáveis, linhas de crédito, loteria específica, arrecadação de multas e investimentos advindos de empresas interessadas em prestar serviços ao Poder Público, por intermédio de pontuação em editais. Este último mereceria, quando oportuno, tratamento à parte, em função do potencial que apresenta. A gestão da verba no modelo dos fundos facilita ou dificulta o benefício de grupos artísticos ou correntes estéticas? De que forma seria possível evitar cartorialismos? No que toca a projetos de caráter experimental comunitário e patrimonial (restauração, equipamentos, construção de museus etc), sem dúvida, o caminho é este. O acesso principal seria esse; entretanto, preocupa-nos a questão do cartorialismo e do poder desmesurado exercido pelos gestores, geralmente secretários e assemelhados. Nesse sentido, a adoção desse tipo de mecanismo terá de vir acompanhada de competente, moderna e profissional estruturação, de modo a garantir, com ética e transparência, os critérios e o real acesso a verbas dignas e expressivas. É possível pensar num modelo ideal de financiamento público da Cultura? Como ele seria? (...) estamos engatinhando nesse campo em nosso País, em que pesem contribuições competentíssimas, em termos de estudos e ensaios, de gente do porte de Isaura Botelho, por exemplo. Seria muito interessante que o MinC voltasse a promover, com regularidade e planejamento, a realização de fóruns especializados, com gente de capacidade comprovada e histórico de atuação no Brasil e no exterior, voltados ao tema do financiamento, da regionalização de mecanismos de incentivo, da gestão de verbas compartilhadas, de fomento à produção cultural, do aporte de pessoas físicas, dentre outros. Por outro 144 lado, seria muito interessante que introduzíssemos nesses debates a noção de um Sistema de Abastecimento Cultural, entendendo toda a cadeia de produção, distribuição e consumo nessa área. Introduziríamos, assim, o princípio de menos verbo e mais verba. Como se estruturaria este Sistema de Abastecimento Cultural? À semelhança de outros existentes, como, por exemplo, o de alimentos. Assunto complexo, exigiria espaço específico para sua apresentação. Podemos voltar a este assunto em outra oportunidade. Como você vê a condução do debate em torno do fim das leis, nas diferentes instâncias do governo e da sociedade civil? Em primeiro lugar, já é um bom sinal a preocupação dos secretários da fazenda estadual em relação à preservação das leis de incentivo baseadas no icms. É claro que nem todos compartilham este pensamento. Sabemos que a área fazendária, normalmente, é refratária à renúncia fiscal de qualquer espécie. Assim, é chegada a hora da mobilização dos secretários da Cultura, dos governadores de Estado e do setor cultural para a manutenção de mecanismo similar quando da adoção do novo tributo que irá substituir o ICMS. Que benefícios as leis estaduais trouxeram que as federais não contemplariam, caso só existissem elas? As leis estaduais, respeitadas as suas particularidades, são responsáveis pelo florescimento da atividade Cultural nas diversas regiões do País. A partir do exemplo da lei mineira, podemos afirmar que as iniciativas mais significativas no universo cultural do estado só foram viabilizadas em função da existência desse mecanismo, que não pressupõe a renúncia integral do patrocínio. Pelo contrário, no nosso caso, a legislação estabelece quatro alternativas reais e concretas de contrapartida para as empresas, que podem deduzir 80% do valor a ser aplicado no projeto cultural. Além disso, a lei mineira possibilita o uso do patrocínio cultural para negociação da dívida ativa e a compra da dívida de terceiros. No caso do Ceará, a Lei Jereissati fez com que os instrumentos de incentivo estaduais permitem a descentralização (circulação e itinerância) das ações e bens culturais (mesmo que ainda existam sérias distorções a serem equacionadas), bem com o incremento direto na geração de emprego e renda. Resultados de recente pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, instituição com credibilidade e experiência na realização de estudos e diagnósticos consistentes dedicados ao segmento cultural, aponta que o volume de gastos efetuados no período de 1998-2001 (tempo de vigência da lei mineira), excetuados os projetos incentivados por intermédio da dívida ativa, foi de 145 aproximadamente R$ 44 milhões, a preços médios de 2001. Soma-se a este montante o valor de R$ 11 milhões, a título de contrapartida dos patrocinadores. Qual o peso da produção cultural regionalmente, em termos de geração de renda? O impacto econômico na cadeia de fornecedores diretos e indiretos das atividades culturais é superior ao proporcionado pelos demais setores (comércio, transportes, comunicações etc). Para o conjunto da economia, gastos em Cultura, em Minas, geram mais emprego e renda que outras atividades, em que pese que os efeitos não sejam sentidos de forma significativa devido ao seu reduzido produção dessas atividades, superior aos 2,6% de comunicações e a 0,8% de material de transporte, incluindo aqui a indústria automobilística). Resumo da ópera: as áreas culturais contempladas pela lei estadual de incentivo têm grande capacidade de gerar emprego, renda e impostos. É correto dizer que as leis estaduais são mais ágeis e atendem a uma outra a demanda da produção cultural? Não sei se a questão principal é a agilidade pois, salvo engano, essas leis abrem edital uma vez por ano e a Lei Rouanet recebe projetos durante todo o ano. Na verdade, o principal argumento é que elas são concentradoras, mais viáveis no suporte à negociação do patrocínio com os setores diretivos das empresas, colaborando, de modo inequívoco, para a democratização do acesso e circulação da produção cultural, oportunidades impensáveis se só existisse o mecanismo federal. Vários circuitos de cultura, programas de capacitação de recursos humanos, restaurações, dentre outros que vêm sendo realizados no interior do País, só foram e são possíveis graças às leis estaduais e municipais. O recorte desse tipo de legislação também é distinto, guardando sintonia mais apropriada com as demandas e as características locais. Você acredita que haverá articulações para reverter o processo no Congresso? Acredito que é possível a reversão, sobretudo se já existe a consciência dos impactos que a mera extinção dessa legislação irá causar. Regra de transição deve e tem de ser adotada. Creio que cabe ao Ministério da Cultura, em articulação com as Secretarias de Estado da Cultura, encabeçar o movimento de reavaliação das possíveis medidas negativas, levando ao Ministério da Fazenda e à Presidência da República os pleitos do setor. Essa é uma tarefa inquestionável do MinC. Não é possível o desempenho de papel secundário nesse enredo. Ao mesmo tempo, cabe aos produtores culturais organizados pressionar suas bases no Congresso e nas 146 Assembléias Legislativas, para que o assunto seja tratado de forma específica e conscienciosa. O seminário “Cultura para Todos”, promovido pelo MinC? Será que ele pode reunir contribuições e trazer mudanças conseqüentes? Evidentemente, a intenção é louvável, mas o resultado fica aquém do esperado. Posso estar enganado, mas acho que fóruns setoriais e bem planejados, pautados e articulados trariam resultado mais consistente. 4.1 Leis Secretários propõem “plano C” ao MinC representantes dos estados do Centro-oeste e de Tocantins sugerem a Gilberto Gil novo modelo de financiamento, diferente de todas as propostas até agora apresentadas. Os secretários estaduais de Cultura da região Centro-oeste e de Tocantins reuniram-se com o ministro Gilberto Gil e apresentaram uma nova proposta de financiamento à cultura, diferente dos fundos estaduais, sugeridos pelo MinC, e das leis de incentivo fiscal a patrocinadores, mecanismo predominante atualmente. Eles propõem que o sistema de financiamento público à cultura parta do modelo do Fundo de Investimento em Cultura (FIC), do Mato Grosso do Sul. “Vou levar toda a documentação do FIC para que o Ministério possa utilizá-lo da mesma forma que nós usamos aqui”, diz o secretário de Cultura sul-mato-grossense, Sílvio Nucci (CRESPO, 30/07/2003) Diferente da proposta inicial do MinC, de criação de fundos geridos pelas secretarias estaduais de cultura, Nucci sugere que o Fundo Nacional de Cultura destine metade de suas verbas a projetos do governo federal (como o Monumenta e o Documenta). A outra metade seria dividida entre os estados, proporcionalmente ao PIB (Produto Interno Bruto) e à arrecadação de cada um. Na proposta original do MinC, os fundos estaduais seriam abastecidos com uma porcentagem fixa de ICMS (cerca de 0,5%) em cada estado. Essa proposta já vem sendo discutida entre os secretários da região Centro-oeste desde maio, quando formaram, juntamente com o Estado do Tocantins (que pertence à região Norte), um grupo de desenvolvimento de políticas culturais conjuntas. Os secretários ouviram a comunidade cultural da região, em reuniões públicas, e escreveram, durante o seminário Cultura para Todos da cidade de Bonito (MS), um documento intitulado “Carta de Campo Grande”, entregue “A nossa pauta 147 é a reivindicação de que os estados do Centro-Oeste tenham sua parte na divisão do bolo, [...] deforma justa. Que o dinheiro arrecadado em MS, destinado à Lei Rouanet, fique aqui, que não vá para o eixo Rio-São Paulo”, afirma Sílvio Nucci. Além dele, participaram da reunião com o ministro os secretários Benedito Paulo de Campos (MT), Pedro Henrique Bório (DF), Nars Nagib Sayad Chaul, presidente da Agência Goiana de Cultura, e Meire Maria Monteiro Reis, presidente da Fundação de Cultura do Tocantins.117 Durante audiência pública realizada no Senado Federal no dia 09/11/ 2003, o presidente da Comissão de Educação, senador Osmar Dias (PDT-PR), leu publicamente documento escrito pelo presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema), Gustavo Dahl, solicitando a elaboração de um pesquisa detalhada sobre o funcionamento das leis estaduais de incentivo à cultura. O requerimento foi aprovado primeiramente pelos participantes da audiência e depois pela própria Comissão (Gazeta Mercantil: 10/11/2003) A cultura não é do Estado, é do povo. Depende essencialmente da iniciativa das pessoas, artistas, escritores, igrejas, terreiros de candomblé, sinagogas, empresas, clubes populares, escolas, bibliotecas públicas, movimentos de leitura, sindicatos, escolas de samba, maracatus, CTGs, bandas de música das cidadezinhas do interior, orquestras de música erudita, institutos históricos e geográficos, academias de letras, universidades, de todas as instituições do nosso País. O Estado pode e deve apoiar a cultura. Contra os preconceitos estatistas de alguns, estes últimos oito anos provam também que o Estado não deve jamais dirigir a cultura. Mais do que isso: não deve jamais tentar dirigi-la; porque, de fato, mesmo que o queira, jamais conseguirá dirigir uma cultura que é, em si mesma, expressão da liberdade do povo. Cremos que é este o caminho a seguir. E esperamos que o novo governo tenha êxito. Uma das principais críticas que têm sido feitas à antiga administração Weffort refere-se ao uso excessivo das leis de incentivo fiscal, no lugar de uma atuação mais direta do Ministério da Cultura. O problema é que essas leis carregam algumas distorções. Como o investimento é determinado pelas empresas, os projetos que não atendem à estratégia de marketing empresarial, ou que de alguma forma não podem ser úteis a nenhuma empresa, estão virtualmente excluídos da possibilidade de obter financiamento, ainda que tenham notável qualidade artística. Se observarmos os dados do MinC, vemos que essa exclusão é manifesta na 117 Jornal: Gazeta Mercantil: 10/11/2003. 148 concentração dos recursos das leis de incentivo no eixo Rio-São Paulo, que recebe 85% desses recursos. Agora, entre os principais desafios do novo Ministério da Cultura, está a busca de recursos alternativos. O MinC tem o menor orçamento de todos os Ministérios: menos de 0,3% do orçamento total da União. De acordo com o programa de governo do PT para a cultura, intitulado A Imaginação a Serviço do Brasil, a nova equipe do Ministério deverá atuar mais diretamente no campo cultural, para que o setor não dependa apenas das leis de incentivo. A busca pelos recursos se dará principalmente por meio de parceria com os demais Ministérios e com a iniciativa privada. Além disso, o MinC estuda também a possibilidade de implantar uma loteria cultural, com o objetivo de aumentar os recursos do Ministério. O que foi dito, porém, é suficiente para colocar em discussão um outro aspecto tão importante quanto inovador. Trata-se da questão do financiamento da cultura. Desde meados de 1995, o Governo Federal vem implementando, na área cultural, uma vigorosa política de parceria entre o Estado brasileiro, os produtores culturais e a iniciativa privada. Tal política se apóia na legislação de incentivo fiscal às atividades artísticas e culturais e permite, no caso do cinema, que os investidores privados deduzam 100% do que aplicam e, no caso das outras áreas culturais, entre 66 e 76%, dependendo da natureza das empresas, podendose chegar aos mesmo 100% para o caso das artes cênicas, música erudita e instrumental, livros de arte, acervos de museus, itinerância de exposições de artes plásticas e acervos de bibliotecas públicas. É uma política fiscal generosa e adequada pois, em função do conhecido déficit fiscal do Estado brasileiro e das enormes carências de recursos para áreas prioritárias, as empresas privadas são convidadas a se associarem ao Governo Federal e aos produtores culturais para garantirem o desenvolvimento da cultura. Com efeito, a partir de importantes reformas introduzidas em 1995 e 1996 na legislação de incentivo fiscal à cultura, e só a no plano federal, onde o incentivo ocorre a partir de deduções no Imposto de Renda dos patrocinadores privados, o Governo atraiu investimentos que ultrapassaram os 180 milhões de reais nos dois primeiros anos de administração. E a atual política de financiamento da cultura está longe de se limitar apenas a estimular os investimentos privados na área. O Governo Federal reconhece que também lhe cabe papel fundamental no financiamento a fundo perdido da cultura, particularmente no que diz respeito às atividades que, pela sua natureza, não chegam ou não têm atrativo no mercado. 149 Por essa razão, pela primeira vez em muitas décadas, aumentou-se em mais de 100% o orçamento do Ministério da Cultura de um ano para o outro, fazendoo passar de R$ 104 milhões, em 1995, para R$ 212 milhões, em 1996. Além disso, através de suplementações orçamentárias e de um acordo inédito com o BID, ao final de quatro anos, em 1998, o Governo Federal aplicou quase 300 milhões de dólares no restauro de sítios históricos e na recuperação de áreas urbanas, em vários estados do País, onde há forte interação entre a cultura e partes do tecido urbano deteriorado ou em deterioração. Ainda, através de investimentos diretos, o Ministério da Cultura tem apoiado a recuperação de arquivos públicos, fomentado produções na área das artes cênicas, estimulado a renovação e a consolidação de orquestras sinfônicas e apoiado a reforma de museus, teatros e espaços culturais de natureza diferentes. São todos sinais de que o Estado e a sociedade percebem, cada vez mais, a importância da cultura para a qualidade de vida das pessoas. Tal política de financiamento é adequada à realidade cultural brasileira? Para justificá-la, podemos mencionar algumas razões. O Brasil é um País de cultura extremamente rica e diversificada. A origem dessa característica está no peculiar processo de formação da sociedade brasileira, que, desde o seu nascimento no século XVI, recolheu a generosa contribuição de povos e etnias tão diferentes quanto os índios autóctones, os portugueses descobridores, os africanos feitos escravos e, depois, franceses, espanhóis, holandeses, italianos, japoneses, árabes e tantos outros que, como conquistadores ou aventureiros, vieram deixar a sua marca cultural aqui, acrescentando valores novos aos trazidos pelos pioneiros desbravadores. Tudo isso fez da cultura brasileira um formidável e curioso caleidoscópio, em que se mesclam raças e se misturam múltiplas concepções de vida, expressando uma enorme variedade de influências. O mais interessante, no entanto, é que toda essa diversidade não implica, ao contrário do que ocorre em algumas sociedades, conflitos ou exclusões de qualquer natureza em relação ao diferente, isto é, àqueles que expressam identidades culturais distintas. Ao contrário, uma das mais extraordinárias características da cultura brasileira está em seu caráter acolhedor e integrador. É um sinal de que, no Brasil, as diferentes origens do povo brasileiro servem para integrá-lo e não para excluí-lo ou dividi-lo. Por isso mesmo, é indispensável que a política de financiamento da cultura, no Brasil, seja vigorosa o suficiente para impulsionar o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, capaz de assegurar a realização plena da riqueza e diversidade formadoras da sua matriz. Com efeito, o financiamento da cultura em Países 150 pluriculturais como este tem de ser tarefa de fontes distintas de financiamento: o Estado, os produtores culturais e as empresas privadas. Isso assegura tanto que o interesse público seja preservado, através da ação do Estado, como que a sociedade civil possa intervir no processo de criação artística, através de seus projetos e de seus investimentos. A política de parceria é o fundamento da atual política cultural que se baseia na essência da cultura brasileira, isto é, a sua riqueza e diversidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS – POR UMA POLÍTICA CULTURAL É realmente muito reduzida a atenção dada por políticos em geral e cientistas sociais às políticas públicas da área cultural, sejam elas oriundas de órgãos federais, estaduais ou municipais. No âmbito das Ciências Sociais, raras são as pesquisas sobre o assunto, cabendo destacar a de Sergio Miceli e Maria do Carmo Campelo de Souza sobre a atuação do Ministério da Educação e Cultura, e as realizadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte. Essa carência, possivelmente, é um reflexo do pouco desenvolvimento, que ainda existe entre nós, dos estudos empíricos de políticas públicas em geral, com a exceção, obviamente da maior importância, dos estudos sobre políticas econômicas (embora geralmente realizados pelos próprios economistas, e não por sociólogos, antropólogos e cientistas políticos). Também no âmbito da vida política, e apesar de estarmos às vésperas das eleições municipais, raríssimos são os candidatos que têm algo a dizer sobre o assunto. E quando o fazem, é sempre em nível bastante acentuado de generalidade e falta de informação adequada. Evidentemente, é compreensível que a política cultural não ocupe lugar de destaque na agenda pública de uma sociedade que enfrenta ainda muitos problemas fundamentais de organização democrática. Não se trata, portanto, de apontar a baixa visibilidade do assunto como uma simples crítica, mas como constatação da necessidade de ações corretivas no sentido de retirar a política cultural do relativo limbo em que se encontra, e trazê-la para o debate político e acadêmico. E era exatamente esta a preocupação que os organizadores deste seminário tinham em mente quando resolvemos promovê-lo. A nossa expectativa é que o interesse pelo tema venha a aumentar muito em breve, e que outras iniciativas possam somarse a esta. Meu segundo comentário, já agora abordando diretamente o assunto, é que não me parece adequado falar sobre a existência de uma política cultural no País, hoje em dia, da mesma maneira como, por exemplo, se fala da existência de uma política econômica, com suas características de comando centralizado, metas definidas e aferição de resultados. Melhor seria, na verdade, falar sobre a existência de políticas culturais. Essas políticas públicas são implementadas por órgãos os mais variados, que mantêm poucas relações entre si. Nem todos os órgãos federais que atuam na 152 área, por exemplo, estão no Ministério da Cultura, e nem todos os órgãos culturais desse Ministério estão em sua Secretaria da Cultura. E isto sem falar dos órgãos estaduais e municipais, alguns dos quais – como os do Estado e da cidade de São Paulo – têm orçamentos bem maiores do que os seus similares federais. Aliás, a pobreza dos orçamentos destinados à área cultural é mais um componente desse quadro, que bem revela a baixa prioridade da política cultural nos planos governamentais da União e da quase totalidade dos estados. Some-se a isso, também, o fato de inexistirem diretrizes claras sobre os limites da intervenção do Estado na área cultural, o fato de inexistir uma ideologia, democraticamente aceitável, que possa legitimar e orientar essas ações, o que provoca, em muitos casos, ou um confronto aberto de posições radicalmente antagônicas levando à paralisia decisória, ou certa tendência a evitar projetos mais ousados e a privilegiar grande número de pequenas ações, que, se não ajudam muito o desenvolvimento cultural, também não prejudicam demais... Disto resulta uma atuação das agências de fomento da área cultural com duas características fundamentais. Em primeiro lugar, essa atuação é clientelística, pois se restringe a atender, de maneira geralmente passiva (donde a ausência de dirigismo), as demandas da clientela própria da área artística em geral. O objetivo dessas demandas é sempre o mesmo: recursos financeiros para um determinado projeto cultural. Em recente artigo, adequadamente intitulado “Artista precisa é de dinheiro”, o cineasta Arnaldo Jabor citava a opinião de Orson Welles sobre a matériaprima dos cineastas: “De l’argent, monsieur, de l’argent”. Mas se a demanda é sempre a mesma, a clientela é no entanto bastante variada: órgãos públicos os mais diversos, fundações culturais, associações de bairro, organizações profissionais, artistas, produtores, diretores, etc. E essa multiplicidade de clientes acaba fazendo com que a atuação dessas agências, por força da distribuição fragmentária de recursos, assuma uma acentuada natureza pluralista. De fato, a crítica de “sectarismo” não é formulada contra essas agências, que normalmente gozam de apoio sensível nas suas respectivas clientelas. A segunda característica fundamental dessas agências, além de seu clientelismo pluralista, é o seu caráter assistencial: elas tendem a apoiar atividades que, por várias razões, encontram grandes dificuldades para sobreviver no mercado da indústria cultural. É o caso, por exemplo, do teatro, da ópera, da dança, do circo, da música de concerto, de algumas manifestações das artes plásticas, e do chamado “folclore” em geral. Aliás, essa atividade assistencial não é própria apenas do caso brasileiro, pois a literatura existente a evidencia como sendo universal, independentemente do tipo de sistema econômico da sociedade. 153 É preciso destacar, ainda, que a ausência de uma política cultural definida por parte do Estado, e de uma estrutura organizacional hierárquica, gerou uma autonomia bastante ampla para essas agências, autonomia que foi ainda mais acentuada pelo fato de alguns setores da sociedade as terem adequadamente percebido como “agências de socialização política” ou “aparelhos ideológicos do Estado” e, pois, como arenas políticas, como espaços a serem democratizados. Da multiplicidade de atores assim envolvidos no processo de decisão dessas agências, resultou um insumo constante de novas idéias, muitas das quais deram origem a um número expressivo de programas e projetos culturais de inegável qualidade. Apesar dos inevitáveis “acidentes de percurso” da difícil fase política atualmente vivida no País, o fato é que o saldo da ação dessas agências, a julgar pela própria opinião de seus muitos beneficiários, e da imprensa em geral, é nada desprezível. Diria mesmo que é positivo. 5.1 Indústria cultural Eu me referi acima à inexistência de uma política cultural explícita no Estado hoje em dia, uma política que integrasse organicamente as diversas ações executadas pelas agências de fomento da área. Não só não percebo a existência de uma tal política, como também não acredito que ela venha a ser formulada no futuro próximo – pelas mesmas razões já expostas. Ao que tudo indica, aquelas ações continuarão a ser diversificadas, clientelísticas, pluralistas e assistenciais. O que possivelmente se verificará a curto prazo em alguns Estados, em decorrência de resultados eleitorais previsíveis, será uma mudança na composição da clientela preferencial das agências, na justa medida em que suas ações passem a privilegiar demandas de camadas menos favorecidas da população. Tal correção é certamente necessária, e a meu ver inevitável. as a inexistência de uma política orgânica substantiva na área da cultura não significa que não exista no País um projeto cultural em execução. Esse projeto existe, é o projeto do mercado, é a indústria cultural. Não é um projeto engendrado e implementado pelo Estado, mas sim por empresas privadas, sendo por ele consentido. E não sem poucos conflitos: conflitos entre produtores de espetáculos artísticos e a censura; entre empresas nacionais e multinacionais na área do cinema; entre instituições privadas e órgãos públicos no campo da preservação do chamado patrimônio histórico nacional; etc. endo em vista o rápido crescimento da indústria cultural, é possível que a questão da sua regulação pelo Estado venha a transformar-se em tema de debate público nos 154 próximos anos. A questão é delicada. De um lado, existe o temor, compartilhado por todos, de que uma política cultural que vá além da prática hoje em execução possa pôr em perigo a liberdade de criação, possa deixar de fomentar e passar a dirigir o processo cultural. De outro lado, a ausência de ações estatais tendentes a regular o mercado, permitindo assim o seu arbítrio completo no que diz respeito à produção, circulação e consumo de bens culturais, acarretaria a reprodução das grandes desigualdades que caracterizam esse mesmo mercado. É que se aplica à distribuição da riqueza cultural o mesmo raciocínio aplicável à distribuição da riqueza material: ou bem existe uma vontade política de alertar o processo, ou este, entregue à sua própria lógica, não resolverá o problema nem na rapidez nem na profundidade necessárias a uma sociedade que se quer democrática. O argumento é ponderável dos dois lados, e é evidente que a solução não dependerá do esforço de introspecção dos dirigentes das agências públicas da área cultural. O problema, não sendo individual, mas político, só se resolverá democraticamente através de amplo e livre debate de todos os interessados. O certo é que qualquer reorientação de profundidade na atuação das agências de fomento da área da cultura terá necessariamente de passar por essa questão fundamental: como posicionar-se ante uma sociedade crescentemente de massa e dotada de uma forte indústria cultural, sem querer competir isoladamente com essa indústria (sob pena de fracasso, como exemplificado pelas televisões educativas), e sem recusar a sua realidade, voltando-se para o passado na busca idealizada de um patrimônio histórico e artístico “nacional”. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Cândido José Mendes de. Arte é Capital, 1994, Rio: Roco ARTICULTURA COMUNICAÇÃO ILIMITADA. Curso Básico Intensivo de Marketing Cultural, 1995. BARBALHO, Alexandre. Relações entre estado e cultura no Brasil. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1998 BARBOSA, Lucia Machado; BARROS, Maria do Rosário Negreiros; BIZERRA, Maria da Conceição (Orgs.) Ação Cultural: idéias e conceitos. Recife: Editora Massanguana, 2002 BARROS, José Márcio. 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