A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO POR MEIO DA ANÁFORA: ESTUDO SOBRE A CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL Lúcia Mosqueira de Oliveira Vieira* Resumo Esta pesquisa é direcionada para a produção de texto escrito argumentativo, tendo como objeto de estudo a construção anafórica pelo mecanismo da coesão lexical. Analisamos 20 textos de alunos candidatos ao PAIES (Programa Alternativo de Ingresso ao Ensino Superior), pertencentes ao ensino médio. O objetivo da pesquisa é, no âmbito geral, situar a anáfora numa perspectiva cognitivo-discursiva. Especificamente, estabelecer a função argumentativa dentro da construção anafórica. Para atingir tal propósito, analisamos redações cujo tema versa sobre a mulher. O aluno deveria posicionar-se diante da seguinte questão: “A situação da mulher brasileira é justa?” ou “A situação da mulher brasileira é injusta?” As análises dos dados apontaram para os seguintes resultados: o espírito de união entre homens e mulheres foi o valor mais cogitado entre os alunos como o pilar para se construir uma sociedade mais justa. A análise dos dados mostrou, ainda, o emprego freqüente do recurso metonímico pelos alunos, revelando ser um importante recurso de seleção de foco e, conseqüentemente, argumentativo. Finalmente, há que se considerar que a construção anafórica, especificamente a anáfora indireta por metonímia, é resultado de operações mentais, implementadas no interior de um sistema de conhecimentos de mundo partilhado pelos interlocutores. Isso implica dizer que, para sua interpretação, é necessário estabelecer a ponte entre os universos lingüísticocognitivo-discursivos, possibilitando ao interlocutor preencher os vazios textuais. Palavras-chave: Anáfora, Foco, Argumentação, Cognição, Discursividade. Abstract This research is focused on the production of argument support texts with the purpose of the study of anaphoric construction by the lexical cohesion mechanism. Some 20 high school students, applicants for PAIES (an alternate way to be accepted in the Uberlândia Federal University) were analysed. The purpose of the research is, in a general sense, to place the anaphora in a cognitive-speech perspective. And specifically to set the argument support function within the anaphoric construction. To accomplish this, we analysed the students’ essays, whose themes were about women. The applicant was supposed to write on where he/she stands on the following issue: “Is the Brazilian woman situation fair?” or “Is the situation of the Brazilian woman unfair?” The data analysis showed the following results: the bonding spirit between men and women was the value most pointed out as the cornerstone to the development of a fairer society. The analysis also showed the frequent use of metonymy by the applicants as an important resource to set the focus and, consequentely, the reasoning. Finally, it is important to consider that the anaphora construction, specifically the indirect anaphora by metonymy, is the result of mind reasoning stablished within a world knowledge system shared by the interlocutors. Thus, for its understanding, it is necessary to set a bridge between the linguistic-cognitive-speech universes, enabling the interlocutor to fill up the text gaps. Key words: Anaphora, Focus, Argumentation, Cognition, Discourse. 1 Introdução O tema da anáfora não é novo; entretanto, ocupa os estudiosos que buscam explicações satisfatórias para a complexa questão do processo referencial. Pelo levantamento bibliográfico realizado, percebemos que a maioria dos estudos sobre a anáfora é feito levando em consideração um tratamento unicamente nos limites da frase, com referentes expressos lingüisticamente, sem considerar sua dimensão textual e seu papel discursivo que contribui para a construção da argumentação do texto. Podemos observar que, muitas vezes, a anáfora ocorre sem que o referente esteja explícito no texto. Desse modo, torna-se necessário e oportuno estudá-la como um processo de referenciação implícito. Em um processo de referenciação, a escolha lingüística não é aleatória; ao contrário, é extremamente significativa, pois se veiculam crenças, mitos, valores, atitudes, posições, opiniões, enfim, como o produtor do texto compreende o mundo. Desse modo, consideramos que a referenciação, seja por um processo anafórico direto ou indireto, concorre para a construção da argumentatividade do texto. A anáfora será considerada, então, como uma relação sintático-semântica, cuja interpretação depende crucialmente de processos cognitivo-discursivos. O modo como representamos os nossos conhecimentos, crenças e experiências é fundamental para o estabelecimento das relações sociais. Assim, essas representações envolvem um exercício constante da língua, fazendo com que escolhamos, dentre uma vastidão de possibilidades, aquela que melhor se encaixe aos propósitos comunicativos. Desse modo, a construção anafórica é importante para percebermos esse movimento. O fato da existência de poucos trabalhos sobre as funções e os efeitos de sentido da construção anafórica motivaram a realização deste estudo. Além disso, a condição de mulher instigou-nos estudar a temática da situação da mulher no Brasil, por considerarmos ser um tema atual, interessante e polêmico. Tendo em vista essas considerações, esta pesquisa teve o objetivo de, no âmbito geral, situar a construção anafórica numa abordagem cognitivo-discursiva, especificamente estabelecer a função argumentativa dentro da construção anafórica. 2 Aspectos Teóricos e Metodológicos Neste trabalho, entendemos que o processo anafórico não se encerra no âmbito lingüístico; porém, é crucial estabelecer relações semântico-pragmáticas na interpretação de um dado elemento anafórico. Marcuschi (2001) lembra que a visão clássica da anáfora não dá conta da complexidade da referenciação textual, pois “nem sempre existe congruência morfossintática entre a anáfora e seu antecedente; nem toda anáfora recebe uma interpretação no contexto de uma atividade de simples atribuição de referente” (p. 220), como podemos verificar no exemplo abaixo: No quintal, as crianças brincavam. O prédio vizinho estava em construção. Os carros passavam buzinando. Tudo isto tirava-me a concentração (Koch, 1998, p. 32). Esse exemplo ilustra uma situação em que não há congruência entre o elemento anafórico e seu antecedente, já que as formas pronominais “tudo” e “isto” não remetem a nenhum elemento particular do texto, mas ao contexto como um todo. Marcuschi enfatiza, ainda, que a anáfora é um fenômeno de semântica textual de natureza inferencial, e não um simples processo de clonagem referencial. Observemos o seguinte exemplo: Hackers. Como eles atacam (e as melhores táticas para você se defender) (Revista Info ano 16, n. 179, fev. 2001, p. 33). Para a interpretação do elemento anafórico “eles” não basta somente identificar o referente “hackers”; ao contrário, esse exemplo esclarece a natureza inferencial da anáfora. A interpretação do pronome “eles” não depende somente do contexto lingüístico, porém, é fundamental relacioná-lo ao contexto extralingüístico – no caso, ao da informática. Sem esse elo inferencial, podemos incorrer em interpretações inadequadas. Quando se faz um estudo das relações anafóricas, geralmente parte-se do princípio de que o referente de uma anáfora está sempre expresso lingüisticamente, sendo inclusive comum que se procure identificar a qual sintagma se liga um determinado elemento anafórico. Supõe-se, além disso, que o antecedente seja sempre sugerido pela parte anterior à enunciação da anáfora. Porém, podemos observar que, muitas vezes, não se encontra no texto precedente nenhuma menção a um elemento que tenha o mesmo referente da anáfora em questão. Cornish (1996) defende que a anáfora não é uma relação puramente intra-textual entre as expressões, mas ela serve para acessar e controlar entidades mentalmente representadas dentro de um modelo de discurso. Entretanto, o autor acredita não ser dispensável a noção de antecedente, pois, para ele, os anafóricos de todos os tipos têm a propriedade de “índice remissivo”, ou seja, de significar e referir dentro de algum sentido e/ou referência estabelecidos, mais cedo ou mais tarde avaliáveis pelo contexto. O autor ressalta que “é dentro de uma representação conceitual na mente do falante e do destinatário que o referente é localizado e acessado – e não em qualquer co-texto ou contexto situacional físico” (Cornish, 1996, p. 38). Nesse sentido, a interpretação de um elemento anafórico não se deve somente a uma menção explícita no co-texto; porém, há todo um processo inferencial ao contexto situacional ou cultural mais amplo, que falante e destinatário vão delineando na mente. 2.1 Da Relação entre Anáfora/Foco/Argumentação Podemos estabelecer um elo estreito entre anáfora/foco/argumentação, tendo em vista que o referente de um anafórico ou ainda a multiplicidade de representações de um mesmo referente, na verdade, põe em foco o que é relevante e pertinente para o produtor do texto e que ele deseja que seja compartilhado pelo seu interlocutor. Na produção de um texto, o processo de seleção dos elementos a serem inseridos na superfície textual não é feito aleatoriamente. Esse processo pode ser determinado por vários fatores, entre eles o objetivo do autor, o seu conhecimento lingüístico, a adequação de informações ao assunto abordado, o conhecimento do autor sobre o assunto, o ouvinte/leitor. Todos esses fatores podem determinar a focalização. Entendemos que focalizar é pôr em evidência o que se considera importante para atingir o propósito comunicativo. Nessa perspectiva, podemos dizer que focalizar é, também, um ato de convencer, pois o produtor/falante, ao salientar determinadas perspectivas particulares de um assunto, um objeto, um referente em questão, tenta fazer com que o receptor/ouvinte partilhe daquilo que ele considera importante. Nesse sentido, “o ouvinte é conduzido, então, a ver a entidade mais como um tipo de coisa do que como outra” (Grosz, 1981, p. 84). Assim, podemos estabelecer um vínculo entre anáfora/foco/argumentação, pois a construção anafórica coloca em foco o modo de representação de um determinado referente. É justamente o modo de representá-lo que agirá argumentativamente dentro do texto, concorrendo para determinados aspectos, conclusões sobre o referente com exclusão de outros. Para elucidar o viés cognitivo/discursivo e argumentativo da anáfora, os dados em análise foram coletados no PAIES (Programa Alternativo de Ingresso ao Ensino Superior), sendo consideradas 20 redações cujo tema versava sobre a mulher. O texto motivador estabelecia um paralelo entre a mulher brasileira e a oriental, em especial a dos países Arábia Saudita, Egito, Jordânia, Irã e Afeganistão. O aluno deveria, então, posicionar-se diante da seguinte questão: “A situação da mulher brasileira é justa?” ou “A situação da mulher brasileira é injusta?” As redações foram analisadas tendo em vista os seguintes critérios: anáforas, cujo referente fosse exclusivamente “mulher”; estabelecimento da relação entre construção anafórica e a linha argumentativa do texto; tipo de argumentação e sua contribuição para as relações semânticas do texto; relação da construção anafórica com os contextos cultural e ideológico que se presumem o mundo Oriental e o Ocidental colocados pelo aluno; e o uso da metonímia vinculado à linha argumentativa do texto. A seguir, apresentaremos a amostra de análise das redações que norteou esta pesquisa, de acordo com os critérios estabelecidos. 3 Análise dos Dados REDAÇÃO N. 11 A situação da mulher brasileira é justa “Atualmente na sociedade brasileira, enfrentamos o machismo, onde a mulher é julgada pelos homens inferior em todos os sentidos, mas nem mesmo por isso pode-se afirmar que são desvalorizadas ou injustiçadas. Analizando situações de países africanos e asiáticos percebemos a verdadeira injustiça, onde somente o direito de viver, mas somente viver é considerado. Mulheres mutiladas, são fatos que ocorrem frequentemente, homens no poder sem direito de mulheres opinarem. Como pode a mulher brasileira reclamar dizendo que no Brasil não se vive dignamente? Todas devem olhar para o restante do mundo e se imaginar em situações parecidas. Chegou a hora de parar de olhar para si mesma e pensar em mulheres como um corpo, uma nação a ser respeitada. Reconheçamos que no Brasil, muitas vivem infelizes, talvez porque o marido não a respeite, o filho escolheu caminhos contrários ou a situação financeira não é uma das mais favorecidas, mas e como seria, qual seria a reação se o caso fosse de mutilação ou morte? Acredito que bem pior. Brasileiras tem direitos como o de chorar, sorrir, negar, escolher... Em Afeganistão as expressões não são sequer vistas, pois um véu as escondem, obscurecendo sentimentos. Pensar em mulher como uma nação e levantar uma sociedade feminina digna não só aqui no Brasil e sim em todos os países deve fazer parte do pensamento, ideais de uma brasileira, porque todas estão em situações justas.” A linha argumentativa dessa redação se desenvolve em dois eixos principais: hoje, a mulher no Brasil é pouco injustiçada; e a mulher no mundo oriental é muito mais injustiçada. O segundo e o terceiro parágrafos, em especial, traduzem bem essa argumentatividade que o aluno tenta instaurar. Utilizando-se da argumentação pelo exemplo, o aluno busca na mulher oriental a referência do que seja realmente injustiça. Essa injustiça está bem evidente, bem marcada no ato da mutilação ou morte, citado pelo aluno no segundo e no quarto parágrafos. Na verdade, o exemplo tem a função de estabelecer um contraponto entre a realidade da mulher brasileira e da oriental com a finalidade de “eufemizar” a situação em nosso país. No terceiro parágrafo, há um importante momento na construção do mundo argumentativo do texto quando o aluno utiliza a comparação. Ele, ao utilizar a expressão “mulheres como um corpo”, repudia a idéia da mutilação, expressa no segundo parágrafo, e defende a integridade física da mulher. Utilizando-se do processo metonímico, destaca-se uma parte do todo, ou seja, o ser físico. O todo representa o indivíduo como membro social e sujeito, idéia essa subjacente ao termo nação. Ao comparar a mulher como uma nação, o aluno busca preservar, garantir, resgatar os direitos que ela tem como cidadã, direito, inclusive, de expressar sua visão de mundo, negado, muitas vezes, como é ressaltado ao final do segundo parágrafo. Observamos, ainda, no quarto parágrafo, um argumento que reforça a tese de que a situação da mulher brasileira é bem mais confortável, isto é, mesmo a mulher vivendo sob condições adversas (o marido não a respeitando, os filhos optando por caminhos tortuosos e uma desfavorável situação financeira), ainda assim sua situação é justa. Notamos, também, no último parágrafo, o emprego de duas metonímias, respectivamente, pelos termos “brasileiras” e “expressões”. A metonímia expressa pelo termo “brasileiras”, ao mesmo tempo em que especifica o todo – a nação brasileira –, tem a função de generalizar a situação de liberdade que as mulheres no Brasil gozam. Além disso, o termo “brasileiras” introduz uma função de enumeração, pois são arrolados os direitos que elas usufruem e que o aluno deseja focalizar. Essa enumeração serve como suporte para o argumento que vem logo em seguida por meio de processo metonímico. Por sua vez, a metonímia “expressões” constitui um argumento forte da linha argumentativa do texto, pois ela refere-se a uma parte do corpo, a face, em que são passados vários estados de espírito do ser humano, pois, como sabemos, por meio do rosto, revelam-se raiva, alegria, tristeza etc. Tapar o rosto com um véu, como é de costume em alguns países orientais, é uma forma de sufocar, de anular a identidade da mulher, o que reforça ainda mais a tese do aluno de que a mulher no mundo oriental é muito mais injustiçada. Podemos considerar, então, que a função da metonímia aqui é de agravamento, ou seja, mostrar que até as necessidades biológicas primárias, de nosso ciclo vital, como chorar e sorrir, são negadas às mulheres afegãs, impedidas de externá-las publicamente. Podemos considerar que o exemplo da mulher afegã ilustra o sujeito althusseriano, ou seja, um sujeito assujeitado, predeterminado ideologicamente para, com resignação, aceitar os preceitos impostos pelos homens, pela Igreja e pelo Estado. Tal assertiva evidencia-se quando o aluno diz que: “Brasileiras tem direitos como o de chorar, sorrir, negar, escolher... Em Afeganistão as expressões não são sequer vistas, pois um véu as escondem, obscurecendo sentimentos”. E ainda “(...) somente o direito de viver, mas somente viver é considerado”. Reportando-nos às considerações de Gibbs (1995), a metonímia não suporta qualquer referência para um determinado referente. O processo de referência flutua de acordo com a cultura. No caso em questão, cobrir o rosto com o véu é típico da cultura de alguns países orientais. O rosto encoberto é uma parte saliente do modelo metonímico da referência “mulher” naquela cultura, da mulher afegã. Contudo, se fôssemos metonimicamente representar a mulher brasileira, nosso modelo diferenciaria, comportaria outros elementos bem diferentes. O signo “mulher”, quando reavaliado em contextos sócio-histórico e cultural distintos, adquire outras nuanças, novos sentidos. Ao utilizar a metonímia “as expressões”, o aluno utilizou a técnica argumentativa da presença, que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), constitui um fator essencial da argumentação. A noção de presença está relacionada com o que está efetivamente ausente e o que, no caso o produtor do texto – o aluno –, considera importante para a sua argumentação. A presença pode se referir não só a um objeto real, mas, também, a um juízo ou a todo desenvolvimento argumentativo (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 134). Nessa perspectiva, a metonímia “as expressões” quer presentificar ao leitor o quão as vontades, os desejos e os sentimentos das mulheres afegãs são suplantados. Segundo Perelman e Olbrechts-Tytecea (1996), um dos recursos de uma boa argumentação consiste em tornar presente, por meio da palavra, aquilo que se encontra ausente. Isso porque a presença age diretamente sobre a sensibilidade das pessoas; exerce uma ação no nível da percepção. Dizem os autores que não é suficiente que uma coisa exista para que se tenha o sentimento de sua presença. Aquilo que está presente na consciência adquire grande importância. Por essa razão, o fato de selecionar certos elementos e de torná-los presentes na consciência do interlocutor já implica sua importância. A metonímia “as expressões” está em relação anafórica com o referente “mulher”, à medida que retoma parte dela – uma parte do físico (o rosto). O aluno coloca-a em foco com a finalidade de mostrar que a verdadeira injustiça está evidente no cotidiano das mulheres orientais. De acordo com Gibbs (1995), a metonímia reflete “um particular modo de pensamento”. Nesse sentido, o emprego do processo metonímico pelo aluno confere ainda mais legitimidade ao seu posicionamento defendido ao longo do texto, o de que a situação da mulher brasileira é justa. Podemos agrupar a linha argumentativa do texto em dois grupos, o que Perelman e OlbrechtsTyteca chamam de real e preferível2: o real comporta os fatos, as verdades e as presunções; o preferível conteria os valores, as hierarquias e os lugares do preferível. Podemos ilustrar essa divisão da seguinte forma: Machismo Homens julgam inferiores as mulheres Mutilação ou morte Homens no poder REAL Mulheres sem direito Mulheres infelizes Brasileiras: direito de chorar, Afeganistão – expressões encobertas com um véu sorrir, negar, escolher... Mulheres como uma nação Mulheres como um corpo PREFERÍVEL Levantar uma sociedade digna em todos os países No jogo entre o real e o preferível, subjaz a ideologia do aluno imprimindo o seu modo de representação e compreensão de uma dada realidade. Nesse processo, o aluno tenta instituir valores abstratos que possam ser compartilhados em todos os países. Subjacente a esses valores, a dignidade constitui o pilar pelo qual o aluno se ancora para eleger um paradigma de sociedade. A análise das redações nos permite afirmar que os alunos criaram uma escala de valores para embasar os seus posicionamentos sobre a situação da mulher na realidade brasileira. Para uma melhor visualização do que foi eleito para defenderem seus posicionamentos sobre a situação exposta, apresentaremos, a seguir, um quadro contendo os valores focalizados pelos alunos. Redação N. Situação Valores focalizados pelos alunos 01 Justa Cidadania/dignidade 02 Justa Autovalorização da mulher/liberdade de escolha 03 Justa Liberdade de escolha 04 Justa Livre-arbítrio 05 Justa Inversão de papéis entre homens e mulheres 06 Justa Espírito de luta das mulheres 07 Justa Liderança da mulher 08 Justa Imposição de limites para as mulheres 09 Justa Aliança entre homens e mulheres 10 Justa Sabedoria para resolver problemas de educação, emprego, saúde Redação N. Situação 01 Injusta Cidadania 02 Injusta Espírito de luta da mulher 03 Injusta Mudanças de ordem comportamental, política, social 04 Injusta Espírito de luta da mulher/autovalorização da mulher 05 Injusta Mulher se autovalorizar; discernimento Valores focalizados pelos alunos 06 Injusta Força de vontade da mulher; extinção do machismo 07 Injusta Mudança (pensar e agir) dos homens e mulheres; igualdade 08 Injusta Espírito de luta (homens e mulheres) 09 Injusta Revolução de idéias 10 Injusta Conscientização cultural e educacional; força da mulher Observando os valores focalizados pelos alunos, perceberemos que muitos se equivalem, outros se concentram somente na figura da mulher e, ainda, alguns deles buscam na consonância entre homens e mulheres a “chave” para provocar profundas mudanças na situação da mulher no Brasil. Das dez redações analisadas pertencentes ao grupo da situação JUSTA, podemos observar que as redações 2, 3 e 4 ancoram-se no valor do livre-arbítrio para se obter uma situação mais justa para as mulheres brasileiras. Curioso observar que, mesmo para aqueles alunos que se posicionaram afirmando ser a situação da mulher brasileira justa, reconhecem que a figura feminina em nosso país ainda vive num cenário de preconceitos e relegações. As redações pertencentes à situação INJUSTA nos permitem fazer o seguinte agrupamento: as redações 2, 4, 6 e 10 concentram na mulher a responsabilidade de guiar e definir sua condição, isto é, esteiam-se em seu espírito de luta para alterar sua situação. Também as redações 4 e 5 concentram-se na figura feminina, cabendo a elas se autovalorizarem. Observamos, ainda, um terceiro agrupamento que sugere mudanças de ordem mais gerais, mais profundas, que exigem a comunhão entre homens e mulheres para alterar o quadro vigente da mulher no Brasil. As redações 3, 7, 8, 9 e 10 defendem o esforço conjunto entre ambos os sexos. Especificamente, as redações 3 e 10 falam de mudanças numa abordagem mais ampla no âmbito político, social, cultural e educacional para alterar o quadro de injustiça que a mulher brasileira sofre. Assim, essas mudanças implicam uma revolução no cerne da sociedade, cogitando valores os mais variados com a finalidade de estabelecer um redimensionamento da sociedade, do papel do homem e da mulher. Observando os dois grupos (situação JUSTA/INJUSTA), um dos valores que mais se cogitaram para se efetivar uma profunda mudança na sociedade no que diz respeito à situação da mulher no Brasil foi a aliança entre homens e mulheres (cf. redações 9 (situação justa); 7, 8, 9 e 10 (situação injusta). O espírito de união entre ambos os sexos apareceu como o fator determinante para alterar o quadro de injustiça e preconceitos contra a mulher. Acreditamos que tal resultado transparece o desejo de vozes sufocadas, oprimidas, mas, também, de vozes inovadoras, que otimizam o convívio entre o sexo feminino e o masculino na vida em sociedade. Acreditamos, ainda, que esse resultado seja fruto de mudanças oriundas da atuação da mulher na sociedade. E por que não arriscar que tal postura dos alunos revele avanços da figura masculina? Um outro valor comum às duas situações foi o da cidadania, pelo qual os alunos circunscreveram a figura da mulher no âmbito social, com direito de ser reconhecida e representada como membro atuante da sociedade. Entendemos que tal resultado manifesta o clamor por uma sociedade mais emancipada e inovadora. Externa-se, ainda, o desejo de banir da história da mulher as páginas nas quais lhe arrancaram um dos princípios primários de sua existência – a cidadania, com todos os atributos que esse termo pode recobrir. Pela análise dos textos, percebemos que os valores focalizados pertencem à categoria do preferível, e não de uma realidade preexistente.Vimos que os alunos buscaram embasar os seus posicionamentos sobre a situação da mulher no Brasil, valendo-se de valores abstratos, que, de acordo com Perelman e OlbrechtsTyteca (1996), fornecem critérios a quem quer modificar a ordem estabelecida. A ordem estabelecida é a situação de incompatibilidade que as mulheres vivem, pois há uma enorme disparidade entre a realidade existencial das mulheres com relação à dos homens. Para alterar esse quadro, estearam-se em valores abstratos vislumbrando profundas mudanças na sociedade. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) dizem que “a necessidade de estribar-se em valores abstratos talvez esteja vinculada à mudança” (p. 89). Dificilmente, uma transformação significativa na sociedade se realizaria embasada em valores concretos. Observamos também o uso demasiado da anáfora indireta nos textos, sobretudo a metonímia. Provavelmente, tal emprego se deva ao amadurecimento do aluno que, no entendimento de Oliveira (2001), ao longo de sua vida, vai especializando-se na construção das estratégias discursivas. A análise dos dados evidenciou, ainda, que as metonímias selecionam focos. Podemos constatar que o aluno, ao empregar uma determinada metonímia em vez de outra, procurou chamar a atenção do interlocutor para um ponto específico. Desse modo, as metonímias também apontam as partes do discurso para as quais o interlocutor “deve voltar preferencialmente sua atenção a fim de estabelecer as conexões mais viáveis naquele momento (...) criando uma perspectiva preferencial de observação discursiva” (cf. Marcuschi, 1997, p. 158 apud Cavalcante (1998, p. 21). Para ilustrar a metonímia como um mecanismo de foco, tomemos como exemplo os elementos “as expressões” (redação 1 – situação justa) e “região genital” (redação 2 – situação injusta). O aluno focalizou a parte do rosto da mulher afegã justamente com a finalidade de evidenciar o quanto as mulheres naquela cultura são oprimidas; roubam-lhes, inclusive, o direito de expressão por meio da face. E, ainda, ateve-se na região genital para exemplificar o extremo da violência contra a mulher por meio da mutilação, prática comum no Egito. Acreditamos, então, que, se o aluno colocasse em foco outra parte da mulher, talvez não causasse um efeito argumentativo e, conseqüentemente, discursivo tão significativo. Na verdade, subjacente à construção anafórica se desencadeia um fantástico e irrestrito processo de correlações. Constatamos que os enunciados produzidos ativam correlações entre as formas lingüísticas e a estrutura de conhecimento de diferentes naturezas arquivada na mente dos indivíduos. Tomemos como exemplo as anáforas indiretas pelo processo metonímico (avental, cozinha e expressões) e pela descrição definida (o sexo frágil). A interpretação desses elementos anafóricos implica uma dinâmica rede de ligações em que se conjugam aspectos de ordem lingüística, cognitiva, social, cultural e temporal, dentre outros. A análise das redações nos mostrou, ainda, a importância da construção anafórica na constituição do texto, bem como em sua argumentação. Os elementos anafóricos analisados revelam em seu bojo crenças, atitudes, opiniões e posicionamentos do sujeito-aluno frente à situação comunicativa apresentada. Esses elementos agem como cicerones, orientando o produtor/leitor no complexo universo das relações textuais. Ao produtor, a construção anafórica constitui um canal precípuo para um exercício lingüístico dinâmico, contínuo, implicando determinadas escolhas, funções e intenções. Ao leitor, os elementos anafóricos clarificam o quão são importantes para a conexão enunciado/enunciação.Vimos que as múltiplas referências sobre a mulher atualizadas nos textos sob diversas representações delinearam o perfil argumentativo do aluno, desvendando o seu modo de refletir sobre o mundo. Consideramos que a construção anafórica constitui, então, uma fonte essencial igualmente importante para a produção/interpretação de um texto. 4 Considerações Finais Este estudo procurou elucidar a natureza cognitivo-discursiva da construção anafórica. Para tal propósito, analisamos 20 redações, centrando o interesse nos elementos anafóricos pelo mecanismo da coesão lexical que fazem menção ao referente “mulher”. Pelo resultado das análises, há três pontos importantes que devem ser salientados. Primeiramente, a constatação de que a anáfora envolve relações cognitivodiscursivas. Posteriormente, o fato de os elementos anafóricos em estudo poderem funcionar como um canal argumentativo paralelo à linha de construção do texto. Além disso, a construção anafórica se constitui como uma fonte precípua para se observar as relações discursivas entre enunciado/enunciação. Em vista dessas considerações, faz-se necessário comentar a importância desta pesquisa para os estudos sobre produção textual, mais especificamente a função argumentativa dentro da construção anafórica e apontar algumas contribuições. Do ponto de vista teórico, entendemos que o presente trabalho poderá contribuir para os estudos que consideram a anáfora como elemento de produção de sentido, sendo um elo fundamental do processo cognitivo-discursivo em que as relações a serem estabelecidas ultrapassam a esfera lingüística. Os resultados levaram à constatação da importância dos elementos anafóricos em estudo como portadores de informações, crenças, opiniões e posicionamentos do aluno, sendo cruciais para a construção do sentido do texto. Contribuem, ainda, para mostrar as possíveis funções que uma determinada construção anafórica pode exercer dentro do texto. Além disso, os resultados evidenciaram o quanto esses elementos são importantes para o processo de interpretação de um texto. Tendo em vista a prática escolar, este trabalho pode fornecer subsídios ao professor nas atividades de produção textual, que tem o árduo e desafiante ofício de conseguir que o aluno utilize os recursos da língua de forma adequada, com clareza e eficiência nas mais diversas situações. Assim, pode auxiliá-lo a deixar claro para os alunos que a construção anafórica constitui uma importante estratégia de referenciação, que se manifesta por múltiplos recursos lingüísticos. O presente estudo permitiu verificar, na prática, as várias referências que um mesmo referente pode recobrir, fazendo com que o aluno escolhesse aquela que melhor se encaixasse aos seus propósitos comunicativos. Desse modo, a construção anafórica revela-se como um caminho fecundo para se investigar as questões discursivas no texto, bem como a inserção do sujeito na linguagem. O aluno é também um usuário da língua que precisa ter consciência da necessidade e adequação de suas escolhas lingüísticas em todas as situações comunicativas, dentre elas no momento das atividades de produção de texto na escola. Desse modo, entendemos que o material disponível sobre a construção anafórica pelo mecanismo da coesão lexical pode auxiliar o professor a fomentar caminhos para que os alunos percebam a complexa rede que envolve a produção/interpretação de um texto. Notas [1] Todos os textos destacados estarão transcritos exatamente como foram produzidos, sem qualquer correção. 2 Optamos por lançar mão da divisão real/preferível pelo fato de considerarmos ser um caminho pertinente para a tentativa de se delinear a percepção do aluno sobre o referente “mulher”. Os elementos apresentados dentro dessa categoria foram retirados na íntegra dos textos dos alunos. Referências CAVALCANTE, Mônica Magalhães. A dêixis discursiva e o plano subjetivo da linguagem. In: JORNADA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, 16., Anais... Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 1998. CORNISH, Francis. “Antecedentless” anaphors: dêixis, anaphora, or what? Some evidence from English and French. Journal of Linguistics, v. 32, n. 1, p. 19-41, mar. 1996. GIBBS, J. Raymond W. The poetics of mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. GROZ, Barbara J. Focusing and description in natural languagem dialogues. In: JOSHI, Webber; SAG (Ed.). Elements of discourse understanding. 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Dados da autora: Lúcia Mosqueira de Oliveira Vieira * Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – e Professora – UNICERP Endereço para contato: Centro Universitário do Cerrado Patrocínio Rua Artur Botelho, s/n Chácara das Rosas 38740-000 Patrocínio/MG – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Data de recebimento: 31 maio 2007 Data de aprovação: 10 set. 2007