ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 O USO DA FORÇA NO DIREITO INTERNACIONAL: REFLEXÕES ACERCA DO PAPEL DA CORTE INTERNAICONAL DE JUSTIÇA Mikelli Marzzini Lucas A. Ribeiro1 Alexandre Magno Ramos Paiva2 RESUMO Este artigo tem como objetivo problematizar a questão do uso da força no direito intenraiconal, particularmente no âmbito da Corte Internacional de Justiça. Tendo como o método o dedutivo, de onde se parte de uma ideia de da existência de uma sociedade internacional que cria órgãos visando à manutenção da ordem intenracional estabelecida. O artigo centra-se em fontes secundárias, tanto bibliográficas como julgados da Corte. O trabalho divide-se em duas partes centrais: Na primeira, discutese a ideia de Teoria da Sociedade Internacional fazendo reflexões acerca do uso da força a partir dessa teoria. Posteriormente, adentra-se especificamente na temática do uso da força, evoluindo-se até a CIJ, discutindo casos que versaram direta ou indiretamente sobre o assunto. Ao final, é possível tecer reflexões preliminares sobre o papel da Corte na administração do uso da força no âmbito internacional, os quais poderão servir de ponto de partida para estudos mais aprofundados. Palavras-chave: Sociedade Internacional. Ordem Internacional. Uso da força. Corte Internacional de Justiça. ABSTRACT This article discusses the problem of the use of force in the international law, focus on the International Court of Justice. The method utilized is the deductive where it starts from the idea of the existing international society which creates organisms to preserve the international order. The article bases it analyzes at bibliography references and judgments of the Court. It is divided in two central parts: at first, it discusses the idea of an International Society Theory elucidating the aspects of the use of force in this theoretical approach; secondly, it goes specifically into the question of the use of force in international affairs, mainly at the ICJ, analyzing particular cases which deals direct or indirectly with the theme. As a result, it is possible to have some preliminary considerations about the role of the ICJ to the administration of the use of force at the international order, which could provide subside to further studies. Key-words: International Society. International Order. Use of force. International Court of Justice. 1 Bacharel em Direito e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Direito da Universidade do Estado da Bahia. 2 Advogado. Bacharel em Direito e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. Professor bolsista do IFPB. 2 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 INTRODUÇÃO A questão do uso da força esteve na gênese da sociedade internacional e do próprio direito internacional e continua sendo, de modo lato, ainda o maior problema nesse âmbito. A busca pela regulação do uso da força implica, em ultima ratio, na procura pela própria manutenção da ordem internacional e consequentemente a sobrevivência da sociedade de Estados. O conflito bipolar, que perfez quase todo o século passado, colocou as questões jurídicas de administração do uso da força muitas vezes subordinado a aspectos políticos. Porém, o fim desse conflito revelou uma maior busca pelos Estados em reafirmar o direito internacional, de modo geral, mesmo com relação à sensível problemática do uso da força. Isso fica evidente com o aumento das demandas perante a Corte Internacional de Justiça sobre a matéria após o caso da Nicarágua. Um estudo que visa a discutir a questão do uso da força na CIJ é, portanto, fundamental por diversos fatores. Quanto ao direito internacional, trata-se de uma amostra que pode revelar a intensidade do seu cumprimento, bem como o grau de judicialização das questões internacionais. No tocante à academia brasileira, tal estudo visa adentrar em uma seara ainda pouco explorada por internacionalistas do Direito, permitindo, de modo particular, obter uma noção mais aprofundada acerca do funcionamento da Corte. Já de modo mais amplo, a realização de uma pesquisa como essa, em última análise, possibilita mesmo uma maior cooperação acadêmica para os estudos sobre a paz internacional. Assim, presente artigo tem como papel problematizar a questão do uso da força nas relações jurídicas internacionais, focando no âmbito da Corte Internacional de Justiça. Por ser um estudo inicial, de maneira alguma visa esgotar todas as esferas que envolvem a discussão dessa temática na CIJ. O que se pretende, de fato, é fazer ponderações iniciais que servirão de embasamento para futuros estudos aprofundados. Nesse sentido, tendo como fontes sobretudo as bibliográficas e julgados da CIJ acerca de questões (diretas ou indiretas) relacionadas ao uso da força, esse trabalho segue a seguinte trajetória: num primeiro momento, discute aspectos teóricos sobre a problemática envolvendo a ideia de uma Teoria da Sociedade Internacional e seus aspectos relevantes para o Direito. Em seguida, adentra-se na problemática do uso da 3 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 força na esfera internacional de modo geral, para posteriormente – por meio de um método dedutivo – problematizar a questão no âmbito da CIJ, dando enfoque ao caso da Nicaragua como importante marco temporal nessa discussão. 1. ASPECTOS TEÓRICOS: A TEORIA DA SOCIEDADE INTERNACIONAL Por muitas vezes, o Direito Internacional é apresentado como direito da “comunidade internacional”. Não obstante, a intensa heterogeneidade dos povos revela cada vez mais imprecisa essa determinação. Como salientam Dinh, Pellet e Dailler (2003, p. 40-41): Existe, por certo, entre todos os Estados, interesses materiais comuns, provenientes dos laços que a civilização técnica forjou. Mas uma comunidade deve também assentar numa base espiritual, que, neste caso, falta. Um vínculo comunitário só poderia nascer de relações entre Estados que apresentassem analogias suficientemente profundas para favorecerem a eclosão deste elemento subjetivo necessário. Quanto à comunidade universal dos Estados, ela continuaria a ser uma pura utopia. No entendimento daqueles autores (baseado na teoria sociológica alemã), a ideia de vínculo comunitário se centraria no sentimento, ao passo que a de sociedade estaria ligada apenas ao interesse. Enquanto comunidade implica nas relações confiantes e íntimas, a compreensão de sociedade estaria centrada num estado de tensão. Desse modo, “[à] escala universal, só o conceito de sociedade internacional assim seria concebível, não o de comunidade internacional” (DINH, DAILLER E PELLET, 2003, p. 41). “O que existe no âmbito internacional, é uma sociedade de Estados (e/ou Organizações Internacionais) que mantêm entre si relações mútuas enquanto isso lhes convém e lhes interessa” (MAZZUOLI, 2011, p. 46). A origem da sociedade internacional não pode ser encontrada em uma data precisa. A sua gênese coincide com o estabelecimento das primeiras coletividades organizadas. Estas coletividades compostas por homens, “por necessidade ou conveniência, estabeleceram relações contínuas entre si, originando a sociedade internacional e o Direito Internacional Público, uma vez que as relações só seriam possíveis havendo normas comuns à coletividade” (MELLO, 1997, p. 42). A sociedade internacional é, portanto, “o meio onde surge o ordenamento jurídico internacional” (MELLO, 1997, p. 41). De acordo com Martin Wight (2002), o 4 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 que torna mais evidente a existência de uma sociedade internacional é a verificação de que há um direito internacional. O direito internacional nasce então como garantia de equilíbrio entre a interdependência dos Estados e a preservação de sua independência (DINH, DAILLER E PELLET, 2003) De acordo com a Teoria da Sociedade Internacional, os Estados criam regras de coexistência visando a manter a ordem internacional. A ordem compõe-se de crenças compartilhadas e de comportamentos regulares, assim como de regras e instituições que conformam os comportamentos sociais dos indivíduos (BULL, 2002). Nesse ínterim, “a regra jurídica encontra-se no centro das relações sociais internas e internacionais” (AMARAL JR, 2011, p. 13). A Teoria da Sociedade Internacional avalia que o recurso de força por meio de intervenção militar é um artifício que busca ser evitado. A sociedade internacional vigente foi fundada a partir dos preceitos básicos da soberania, que prega igualdade soberana entre os Estados, e assim a independência entre os mesmos, assegurada por regras de coexistência. Essa é a tônica que rege essa sociedade. De acordo com Bull (2002, p. 83), as regras de coexistência são regras que procuram confinar o emprego legítimo da violência aos estados soberanos, negando-o a outros agentes ao afirmar que a violência legítima está limitada a um tipo particular chamado "guerra", onde a violência é praticada sob a autoridade de um estado soberano. Além disso, as regras procuram limitar as causas ou objetivos que conferem legitimidade à condução da guerra pelo estado soberano. Sem a obediência dessas regras de coexistência, o sistema internacional tende à desordem, minando a condição atual de “coabitação” dos Estados. No centro desse complexo de regras encontra-se o princípio o qual todos os Estados aceitam o dever de respeitar de modo recíproco a soberania ou jurisdição suprema de todos os demais Estados contidos no seu domínio territorial e os seus nacionais. “Um corolário, ou quase corolário, desta regra fundamental é o de que os Estados não devem intervir pela força ou ditatorialmente nos assuntos internos dos demais” (BULL, 2002, p. 84). Para regular essas regras de coexistência, os Estados também criam instituições. Sejam elas formais ou não-formais. Os organismos internacionais são considerados, portanto, instituições formais que buscam administrar essas regras (BULL, 2002). Nesse sentido, a própria Corte Internacional de Justiça foi um órgão criado, em última análise, 5 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 para a manutenção da ordem internacional por meio de regulação jurisdicional das regras de coexistência. Os casos de uso da força são sem dúvida os mais ameaçadores a essa ordem préestabelecida, sabendo disso, a Corte busca sempre que possível fazer uma análise restritiva do uso da força, buscando desenvolver critérios advindos da interpretação dos institutos criados no direito internacional para regular a agressão internacional. Fazendo jus das interpretações da regra que perfazem a não-intervenção, legítima defesa, e segurança coletiva. Feitas as devidas considerações, revela-se que a teoria basilar dessa proposta é a Teoria da Sociedade Internacional, trabalhada aqui entre uma combinação da perspectiva de Hedley Bull (2002) em Sociedade Anárquica, por um lado, e da doutrina internacionalista por outro (MELLO, 1997; DINH, DAILLER, PELLET, 2003; AMARAL JR, 2011; etc), busca-se, por meio dessa correlação, dar a essa teoria a interpretação jurídica adequada. 2. O USO DA FORÇA NO DIREITO INTERNACIONAL O âmbito das relações interestatais é marcado por uma situação de coordenação. Assim, diferente do que ocorrem em Ordenamento Jurídico interno – no qual as relações são marcadas por subordinação –, não existe aqui o monopólio legítimo da força (AMARAL JR, 2011). Não há, na esfera internacional, um superestado. Os Estados, visando a criar um ambiente no qual pudessem relacionar-se e satisfazer certos interesses compartilhados estabeleceram então, na concepção de Hedley Bull (2002), uma espécie de “sociedade anárquica”. Sociedade, pois há certos valores e interesses comuns, mas ainda assim anárquica, porque não há nela, como citado, um governo central. É verdade que por justamente não haver uma organização que detenha o monopólio do uso da força, o direito internacional tem um caráter, considerados por muitos, imperfeito (WIGHT, 2002). Mas, ao mesmo tempo, não há de se negar que apesar dessa “fraqueza” a maioria dos Estados busca cumprir na grande maioria das vezes o que foi estabelecido (AMARAL JR, 2011). Ademais, ordem jurídica seria, na verdade, “um conjunto de princípios e regras destinados a reger as situações quem 6 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 envolvem determinados sujeitos” (KELSEN, 2006, p. 358-359), ou seja, a ideia de monopólio de poder por um órgão central não é condição sine qua non para existência de uma de tal ordem. Nesse plano coordenativo de relações, a convivência histórica entre Estados fez perceber que para que se buscasse a paz, haveria a necessidade de serem criados órgãos que servissem de mediadores e estabilizadores. Desse modo, surgiu como órgão global inicialmente a Liga das Nações, que por fracassar foi substituída pelas Nações Unidas no pós-II Guerra. No contexto da ONU, os Estados buscaram aperfeiçoar a regulação do uso da força no âmbito da sociedade internacional, algo que já vinha sendo vislumbrado desde a proscrição da guerra no Pacto Briand-Kellog de 1928. Mesmo não havendo um monopólio dos meios coercitivos, por meio do estabelecimento das Nações Unidas, os Estados procuraram aperfeiçoar um sistema de segurança coletiva no qual se buscou disciplinar as situações as quais a força poderia ser utilizada. Assim, por coordenação, os Estados-membros estabeleceram como órgão de manutenção da paz e da segurança internacionais o Conselho de Segurança (CSNU). Trata-se de um instrumento político fundado nos termos do direito internacional pela Carta que constituiu a ONU. Por meio da criação do Conselho, os Estados estabeleceram uma das únicas formas possíveis de se utilizar o recurso da força no plano internacional: para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Uma ação desse tipo é legítima quando os membros do CSNU fundamentam-na no Capítulo VII da Carta – mediante resolução. O artigo 39 desse Capítulo estabelece que O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os arts 41 e 42, a fim de manter ou reestabelecer a paz e a segurança internacionais (ONU, 1945, art. 39). Desse modo, entendendo determinada ação como um ato de ameaça ou de ruptura da paz ou da segurança internacional, os membros do Conselho de Segurança podem determinar ações coercitivas. Todavia, tal situação não é a única prevista no direito internacional na qual a força poderia ser utilizada, o mesmo capítulo VII previu também o instituto da legítima defesa (tanto individual como coletiva). Na verdade, essa segunda categoria positivada na Carta da ONU correspondeu apenas à descrição de um direito que já era estabelecido 7 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 no âmbito do costume internacional (DINH, DAILLIER E PELLET, 2003). Não obstante, o art. 51 prescreveu que o recurso da legítima defesa deveria ser comunicado ao CSNU e só poderia se manter enquanto este órgão não tomasse as medidas necessárias. Logo, é possível verificar que apenas esses dois casos seriam considerados uso da força legítima e que a o órgão natural para regular tais situações seria o CSNU. Mas também é possível notar que a disciplina do uso da força não foi suficientemente precisa, os critérios de como se usar a força ou quais situações ensejariam uma legítima defesa, por exemplo, foram insuficientemente disciplinados. Caberia então a necessidade de melhor aprimorar tais regras – ou retirar suas nuanças do direito costumeiro. Nessa seara, a Corte Internacional de Justiça (CIJ ou apenas Corte), sobretudo a partir do final do século XX, vem tendo um papel fundamental. 2.1 O papel da Corte Internacional de Justiça Apesar de em regra a jurisdição da Corte para determinada lide ter de ser aceita pelo Estado que for parte – a chamada cláusula facultativa de jurisdição obrigatória – (Estatuto da CIJ, art. 36 parágrafos 1 e 2), as decisões da Corte têm sido muito importantes para a construção do direito internacional. De acordo com Campos et al (1999, p. 282), essa construção do direito internacional se dá essencialmente por três vias: 1. Pela própria fundamentação de acórdãos arbitrais e da própria CIJ em acórdãos proferidos anteriormente. 2. Pela influência na doutrina e, consequentemente, na formulação de conceitos que tendem a ser incorporados no direito convencional. 3. Pelo reconhecimento da formação do costume internacional. A competência da Corte, de acordo com seu Estatuto, “abrange todas as questões que as partes lhes submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados ou convenções em vigor” (art. 36 (1) do Estatuto da CIJ). A Corte entende que, na qualidade de órgão das Nações Unidas, cabe a ela também o papel de satisfazer a função principal da ONU (qual seja, a manutenção da paz). Desse modo, entende que ela pode sim resolver sobre situações que cheguem à Corte as quais digam respeito ao uso da força – ver Caso da Nicarágua (CIJ, 1984). A CIJ entende que a Carta da ONU não atribuiu nenhuma exclusividade ao CSNU nesse 8 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 sentido, nem estabeleceu qualquer relação de hierarquia entre os dois órgãos – casos da Nicaragua e Lockerbie (CIJ, 1984, 1992). A primeira vez que a CIJ enfrentou a questão do uso da força em uma lide foi no chamado caso Corfur, de 1950 (DINH, DAILLER E PELLET, 2003). Mas o primeiro caso de relevância, no qual o mérito foi analisado e critérios mais precisos foram elencados pela Corte foi o caso da Nicarágua de 1984. Após este caso, houve um aumento significativo de lides que versam sobre o uso da força (GRAY, 2003). O caso da Nicarágua surgiu quando o governo do país entrou perante a Corte contra o governo dos Estados Unidos, alegando que o apoio dos norte-americanos à guerrilha de seu país, os Contras, violava normas internacionais. Na ocasião, uma das principais contra-alegações foi a de que a questão não era passível de julgamento tendo em vista que se tratava de situação política e era uma medida de legítima defesa coletiva fundamentada no artigo XX(1) d do Tratado de Comércio e Navegação entre os dois países (CIJ, 1984). A decisão da Corte foi elucidativa em diversos aspectos no tocante ao uso da força. Primeiro, a Corte refutou a alegação de questões políticas não poderiam ser discutidas judicialmente. No julgado, a CIJ (1984) trouxe critérios como: - legítima defesa deveria observar o costume internacional, no qual dois dos quesitos estabelecidos eram a necessidade e proporcionalidade do uso da força; - alegou assim que o caso não ensejava uso da força tendo em vista que o financiamento de guerrilhas em El Salvador por parte do governo da Nicaragua, apesar de configurar uma ingerência nos assuntos internos daquele país, não significava uma ação armada – não podendo assim a força ser utilizada; - a Corte estabeleceu, por outro lado, que o uso de apoio logístico e armamentos fornecidos pelos EUA configuravam-se uso da força indireto por parte dos norteamericanos – e nessa ocasião ilegítimo, pois não ensejava legítima defesa; - Além disso, a Corte estabeleceu outro critério que era o de que a legítima defesa só poderia ser utilizada de um Estado contra outro Estado, e não perante organizações não-Estatais. Assim, para que houvesse legítima defesa deveria haver o envio de grupos armados por um Estado ou em nome dele. Esses critérios foram observados em outros casos e alguns outros pontos passaram também a ser enfrentados pela a Corte tanto nas questões opinativas (requeridas pela ONU) como em julgamentos, e recomendações – essas ocorrendo até 9 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 mesmo quando não era possível chegar ao mérito por falta de jurisdição (ver D’ASPREMONT, 2007). De modo preliminar, essa atenção proativa dada pela CIJ no tocante ao uso da força pode ser vista em situações como: caso das Plataformas Petrolíferas EUA VS. Irã (1988); Lockerbie (1992), nos diversos casos acerca da Legalidade do Uso da força (exIugoslávia vs. OTAN) (1999), Atividades Armadas de Congo vs Uganda (1999); mais recentemente nos casos dos Drones de Paquistão VS. EUA. Assim como casos opinativos como no caso sobre as armas nucleares (1995) e acerca do muro de Israel (2003). Assim, no caso Lockerbie, a CIJ intenta reafirmar seu papel de órgão responsável também por tratar de questões concernentes ao uso da força. Nessa ocasião, o que se revela importante é a busca pela determinação de competências entre ela e o Conselho de Segurança (CSNU), como lembra Colerman (2003). É uma situação na qual a Corte deixou claro que não tinha competência revisional das decisões do Conselho de Segurança. Mas, por outro lado, enfatizou que não haveria nenhuma hierarquia entre o CSNU e a própria CIJ estabelecida pela Carta da ONU, na mesma linha também entendeu que não havia nenhuma proibição para tratar de certo assunto que estivesse já sendo objeto do CSNU. No opinativo sobre o uso de armas nucleares, por sua vez, a CIJ (1995) procurou versar sobre a questão do uso da força de forma mais sutil, porquanto, no caso, ela não disse que a utilização desse arsenal era vedada pela direito internacional, pois não achou normas nem em Convenções nem no direito internacional costumeiro que vetassem tal uso. Não obstante, o caráter restritivo da Corte se revelou ao dizer que qualquer uso de armas nucleares deveria estar de acordo com o art. 2 (4) e art. 51 da Carta e ainda deveriam obedecer a normas referentes aos conflitos armados e ao Direito Humanitário (CRONIN-FURMAN, 2006). Mais do que isso, no referido caso, como bem destaca Matheson (1997), a CIJ lembrou aos Estados o dever de boa-fé em concluir os acordos para o desarmamento nuclear, de acordo com o Tratado de Não-Proliferação. Recomendações quanto ao respeito ao direito internacional no caso das normas de conflitos armados, assim como do Direito Humanitário também foram feitas nos casos da Legalidade do uso da força (Iugoslávia VS. Bélgica, 1999) – mesmo na situação a Corte ter reconhecido que não tinha jurisdição sobre a lide. 10 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 Em 1999, no caso da República Democrática do Congo VS. Uganda, a Corte demonstrou uma interpretação restritiva no tocante ao uso da força de modo mais incisivo. Na ocasião, houve uma ação na qual o governo de Uganda usou a força contra a soberania congolesa para evitar que grupos rebeldes, situados no território do Congo, atacassem-no. Nesse caso, a CIJ (1999) considerou que Uganda não tinha o direito de legítima defesa contra o governo do Congo, pois não era possível provar que o governo desse país estava apoiando os rebeldes. A Corte arguiu que Uganda violou “the cornerstone of the United Nations” (parag. 148), tendo em vista a transgressão do art. 2 (4). Além de violar também o costume internacional, fazendo referência o já citado caso da Nicaragua. Na ocasião também a Corte foi de encontro mesmo a posicionamentos do CSNU, pois este havia, em inúmeras resoluções, declarado que as ações armadas no Congo eram uma ameaça à paz e à segurança internacionais (GATHII, 2007). Já no caso no qual foi demandado à Corte parecer opinativo acerca da legalidade do Muro de Israel (CIJ, 2003), ela esclareceu que a construção do muro era uma violação do direito internacional, e Israel não poderia arguir legitima defesa para construí-lo. Nesse sentido, mais uma vez, a CIJ foi alvo de várias críticas no sentido em que ela estava sendo destoante com os posicionamentos do CSNU, já que o Conselho havia ensejado na resolução relacionada ao Afeganistão que os Estados poderiam tomar ações contra atores não-estatais como legítima defesa (ver POMERANCE, 2005). Recentemente, o posicionamento restritivo da Corte quanto ao uso da força foi revelado no caso dos Drones (Paquistão VS. EUA). Na ocasião – que ainda não está disponibilizada no site do órgão – a CIJ votou a favor da ilegalidade do uso da força pelos Estados Unidos, mas também fez recomendação ao Paquistão que procurasse restringir a ação de grupos terroristas em seu território. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Corte, a partir do caso da Nicarágua, passou a assumir um posicionamento proativo no tocante à interpretação restritiva do uso da força, inclusive, na opinião de alguns autores, em casos que pertenceriam muito mais à seara política do que a jurídica (ver GRAY, 2003). 11 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 De modo preliminar, o que se percebe é que a CIJ procurou posicionar-se de forma mais afirmativa no tocante aos casos que versam direta ou indiretamente sobre o uso da força, no sentido de buscar sempre que possível tomar partido sobre a matéria. Mas o que seria possível afirmar de modo material (no tocante aos julgados, precisamente)? Os casos revelam necessariamente uma ideia nuclear que regeria os julgados da CIJ, demonstrando assim alguma característica central nos posicionamentos da Corte a partir do caso da Nicarágua? Há evidentemente indícios que a Corte passou a atuar por meio de uma interpretação restritiva a qual, quando necessário, se chocaria inclusive com os entendimentos do órgão político responsável – o CSNU – como afirma Gray (2003). A Corte desde a Nicarágua procura entender que ações de grupos não-estatais não são suficientes ao recurso da força, bem como que ela tem competência pra discutir os assuntos de uso da força de forma paralela ao CSNU. Ou, ao menos, ela passou a fazer recomendações que visivelmente restringe a possibilidade de coação por parte dos Estados. São características preliminares que poderiam levar reflexões sobre a Corte, mas que demandariam investigações mais detalhadas. Portanto, como dito inicialmente, o objetivo desse artigo esteve muito mais em problematizar a questão do uso da força perante a CIJ do que trazer respostas definitivas. Trata-se de uma base inicial para que estudos referentes a essa temática possam ser evoluídos no âmbito das reflexões sobre direito internacional na academia brasileira. 4. REFERÊNCIAS AMARAL JÚNIOR. Curso de Direito Internacional Público. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2011. BULL, Hedley. Sociedade Anárquica: um estudo da ordem na política mundial. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. CAMPOS, João Mota de (coord); PORTO, Manuel Carlos Lopes; FERNANDES, Antonio José; MEDEIROS, Eduardo Raposo de; RIBEIRO, Manuel de Almeida; 12 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 DUARTE, Maria Luíza. Organizações Internacionais: teoria geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1999. ___. Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda), 1999. Disponível em: http://www.icj- cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 ___ Estatuto da Corte Internacional de Justiça. 1945. ___. Questions of Interpretation and Application of the 1971 Montreal Convention arising from the Aerial Incident at Lockerbie (Libyan Arab Jamahiriya v.United States of America). 1992. Disponível em: http://www.icj- cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 ___. Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory, 2003. Disponível em: http://www.icj- cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 ___. Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons, 1995. Disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 ___. Legality of Use of Force (Serbia and Montenegro v. Belgium), 1999. Disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 ___. Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of America). 1984. Disponível em: http://www.icjcij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3 acesso em 07 de agosto de 2013 COLERMAN, Andrew. The International Court of Justice and Highly Political Matters. Melbourne Journal of International Law, v. 4, n. 1, 2003. 13 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 CRONIN-FURMAN. Kathleen Renée. The International Court of Justice and the United Nations Security Council: Rethinking a Complicated Relationship. Columbia Law Review, v. 106, n. 2 2006, pp. 435-463. D’ASPREMONT, Jean. The Recommendations Made by the International Court of Justice. The International and Comparative Law Quarterly, v. 56, n. 1, 2007, pp. 185-198. DINH, Nguyen; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. Trad. por Vitor Marques Coelho. 2º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2003. GATHII, Thuo. Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v.Uganda). The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, 2007, pp. 142-149. GRAY, Christine. The Use and Abuse of the International Court of Justice: Cases concerning the Use of Force after Nicaragua. EJIL, v. 14 n. 5, 2003, pp. 867–905 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MATHESON, Michael J. The Opinion of the Internacional Court of Justice on the Threat or Use of Nuclear Weapons. The American Journal of International Law. V. 91 n. 3, 1997, pp. 417-435. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional. 11 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. ONU. Carta das Nações Unidas. 1945. 14 ORBIS: Revista Científica Volume 4, n. 1 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 POMERANCE, Michla. The ICJ's Advisory Jurisdiction and the Crumbling Wall between the Political and the Judicial. The American Journal of International Law. V. 99 n. 1, 2005, pp. 26-42 WIGHT, Martin. A Política do Poder. tad. Carlos Sérgio Duarte. 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 Recebido em outubro de 2013 Aprovado em fevereiro de 2014 15