Luta pela Terra e Assentamentos no Sudeste do Pará1. Fernando Michelotti2 Resumo Neste trabalho, são analisados dados referentes a duas localidades rurais situadas em Projetos de Assentamento no Sudeste do Pará. Estes foram criados pelo INCRA como reação à pressão exercida por movimentos sociais que, além da luta pela terra em si, trouxeram novas dimensões à questão agrária regional, como a busca de condições de apropriação de bens e serviços definidos nos termos da política pública e de maior sustentabilidade ecológica da produção camponesa. O objetivo do texto foi evidenciar a heterogeneidade de situações que caracterizam esses assentamentos, tanto em seu processo de criação, como nas estratégias econômicas estabelecidas pelas famílias assentadas. Palavras-chaves: Sudeste do Pará – luta pela terra – assentamentos rurais Abstract In this work, data referred to two rural localities placed in Rural Settlements in Southeast Pará, are analyzed. They were created by INCRA (National Institute of Colonization and Land Reform) as a reaction to the pressure of social movements that, besides the struggles for the land itself, also brought up new dimensions of the regional land issue, such as the search for conditions of appropriation of goods and of services defined in the terms of the public policy and of a larger ecological sustainability of the peasant production. The objective of the text was to make evident the heterogenic aspect of situations that characterize these settlements, both in its creation process, as well as in the economical strategies established by the settled families. Key words: Southeast Pará - struggle for the land - rural settlements 1. Introdução Este artigo tem dupla origem. Ele retoma reflexões sobre a criação de assentamentos rurais no Sudeste do Pará iniciadas na construção do seu Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável – PTDRS3. Ao mesmo tempo, é uma análise preliminar e parcial de dados de uma pesquisa em andamento na Amazônia, intitulada “AMAZ - Serviços ecossistêmicos das paisagens agrossilvopastoris amazônicas: análise dos determinantes sócioeconômicos e simulação de cenários”4. 1 Trabalho apresentado no 3º Encontro da Rede de Estudos Rurais, realizado entre os dias 09 e 12 de setembro, Campina Grande - PB, Brasil. 2 Eng Agrônomo, Mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo NAEA-UFPA. Professor da UFPA / Campus de Marabá. End. Folha 17, Quadra e Lote Especial, Campus II da UFPA. CEP 68.505-080. Marabá-PA. Email: [email protected] 3 O PTDRS foi coordenado pelo Laboratório Sócio-Agronômico do Tocantins – LASAT da UFPA, a partir de um programa desenvolvido pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial – SDT do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Como resultado dessas reflexões 02 artigos foram publicados: Michelotti, F ; Ribeiro, B. e Florêncio, S.R (2006) e Michelotti, F. ; Ribeiro, B. ; Souza, H. e Freitas, R. L. de A. (2007) 4 AMAZ é um projeto interdisciplinar de pesquisa cujo objetivo é estabelecer relações entre as práticas de gestão de agricultores familiares e seus serviços ecossistêmicos em 06 diferentes localidades na Amazônia Brasileira e Colombiana. É Sobre a criação de assentamentos, em Michelotti et al. (2007) observamos que na região Sudeste do Pará, este tem sido um processo reativo à luta dos camponeses em busca de terra. No chamado “Território do Sudeste Paraense”5 a criação de assentamentos não obedeceu a um planejamento prévio, tendo sido uma resposta governamental à pressão social exercida através da luta pela terra ocorrida tanto regionalmente, como nacionalmente. De uma maneira geral, essa luta pela terra trouxe resultados importantes para os trabalhadores como a criação, entre 1987 e 2007, de 169 projetos de assentamento nos municípios do Território do Sudeste Paraense, representando 1.205.254,0 ha ou 32,4% da superfície total. Esse significativo resultado pode ser melhor compreendido através do conceito cunhado por Fernandes (1999) de ‘territorialização da luta pela terra’. De acordo com este autor, a conquista do assentamento, como fração do território, é um trunfo dos movimentos sociais camponeses na luta pela terra (idem, p. 241) e um trunfo na luta pela construção do próprio território (ibidem, p. 26). No entanto, é preciso ficar claro que a territorialização da luta pela terra não pode ser confundida com a territorialização do próprio campesinato. Pelo menos dois novos desafios são colocados a medida que os assentamentos são conquistados: um deles refere-se à possibilidade de estabilização relativa do campesinato nessas áreas frente às condições políticas e econômicas existentes ; o outro refere-se a construção de uma autonomia relativa do campesinato perante o padrão de subordinação do território pelo capital que predomina no agrário brasileiro6. Portanto, dois elementos importantes estão colocados. A criação dos assentamentos não é fruto de um planejamento prévio, tampouco é uma aplicação homogênea de uma política do Estado. Fruto das diversas formas de luta pela terra desenvolvidas por distintos movimentos sociais em diferentes contextos históricos, os assentamentos também expressam essa diversidade. O desafio da consolidação dos assentamentos, compreendido como a possibilidade de estabilização e conquista de uma autonomia relativa pelo campesinato, não pode ser tratado de maneira igual para o seu conjunto, reconhecendo que cada um deles possui uma trajetória própria que significa um certo acúmulo de trunfos específicos. O objetivo desse artigo é comparar alguns elementos de duas localidades camponesas distintas, situadas em dois diferentes projetos de assentamento que expressam essa um projeto inter-institucional, com envolvimento de cerca de 70 pesquisadores de diversas instituições do Brasil, França e Colômbia. A coordenação geral é exercida por Patrick Lavelle, do IRD, e a Coordenação no Brasil por Iran Veiga Jr., do NEAF-UFPA. Os dados utilizados neste artigo são oriundos do grupo de pesquisa em sócio-economia, coordenado por Xavier Arnauld de Sartre do CNRS. 5 O Território do Sudeste Paraense, criado pela SDT-MDA, foi recentemente incorporado como Território da Cidadania num Programa mais amplo do Governo Federal. Ele abrange os municípios de Marabá, Itupiranga, Nova Ipixuna, São Domingos e São João do Araguaia, Eldorado dos Carajás e Parauapebas. 6 Para a discussão de estabilização relativa do campesinato, ver Costa (2000). Para o conceito de subordinação do território pelo capital, ver Oliveira (2004). diversidade de situações, posto que são resultados de distintas trajetórias de luta pela terra. Pretende-se ainda refletir como essas distintas situações podem influenciar nos seus processos de consolidação. 2. Perspectiva histórica da luta pela terra no Sudeste do Pará Um primeira forma de perceber a diversidade de situações que os assentamentos representam é observar os distintos períodos históricos de ocupação da região e sua relação com a luta pela terra. Para essa análise, será feito um recorte em três grandes períodos: (i) início do séc. XX até década de 1960; (ii) 1970 a 1989 ; (iii) 1990 até hoje. O primeiro período, será caracterizado pela existência de uma ‘frente de expansão da castanha e pecuária’ ; o segundo, pela existência de uma ‘frente de expansão agrícola - posseira’ ; o terceiro, pela luta dos ‘sem terra’. Todo o período de ocupação da região pela frente de expansão da castanha e da pecuária que predominou até a década de 1960 e a intensificação da frente de expansão agrícola até início dos anos de 1970 foram detalhadamente estudados por Velho (1972). A seguir será apresentada uma breve síntese desse processo histórico, com base nesse autor. A região da confluência do Rio Tocantins com o Rio Itacayunas, onde atualmente se encontra Marabá, foi ocupada inicialmente em fins dos século XIX, como resultante dos deslocamentos da frente de expansão pecuária do nordeste em direção à Amazônia, com o objetivo de tornar-se uma região de produção agrícola e pecuária. As necessidades de elevados investimentos para substituir a floresta por áreas agrícolas e pastagens, no entanto, dificultaram sobremaneira a consolidação dessa perspectiva. O aquecimento da atividade extrativista, no início do século XX, aniquilou completamente a experiência do chamado ‘Burgo Agrícola’, ao mesmo tempo que atraiu grandes quantidade de comerciantes para o local, tanto para fornecer o abastecimento no interior da floresta, como para comercializar a goma para fora da região. Com a crise da borracha, que teve início em 1912 e se arrastou até 1919, o interior da Amazônia sofreu enorme involução. Em Marabá, no entanto, a elite local de comerciantes conseguiu reestruturar a atividade produtiva, substituindo-a pela exploração da castanha. Para isso, aproveitou-se de uma elevada densidade de árvores dessa espécie na região e de toda a infra-estrutura que havia sido montada à época da borracha e que foi transferida para a exploração da castanha, posto que são atividades econômicas fundamentalmente do mesmo tipo. Assim, Marabá tornou-se o principal centro dessa produção. As terras nas regiões de exploração gomífera, ricas em árvores do gênero Hevea (seringueiras), como é o caso do Acre, por exemplo, logo sofreram forte pressão pela apropriação privada, embora nem sempre com titulação formal. Como a extração do látex das Hevea é feito preservando a árvore, o seringal se constituía numa área permanente de investimentos e lucros. A característica da exploração do caucho que predominava na região do Tocantins/Itacayunas, ao contrário, é que a árvore era derrubada para a extração, dificultando a formação de ‘cauchais’ permanentes e tornando-a uma atividade itinerante. Por isso, na primeira fase da exploração da castanha, herança da fase do caucho, predominaram os chamados castanhais livres e pouco ocupados de maneira permanente, sendo atrativos para os comerciantes basicamente pela manutenção do sistema de aviamento característico da época da borracha. No entanto, diferentemente do caucho, a exploração da castanha, embora sazonal, era fixa no espaço, havendo necessidade e justificativa para investimentos no local, como armazéns, estradas, portos, além das primeiras pastagens para as tropas de animais que faziam o seu transporte da floresta até os rios. Por isso, na década de 1920 começaram as pressões da elite de comerciantes locais pelo arrendamento dos castanhais, o que aconteceu efetivamente em 1925. Na década de 1950 iniciou-se uma terceira fase da produção da castanha, a partir de modificações na lei de aforamento dos castanhais, dando margem para o seu arrendamento perpétuo. Com a garantia de uma posse permanente da terra, não apenas os investimentos nas benfeitorias dos castanhais aumentaram, mas também ampliou-se a formação de pastagens artificiais e a criação de gado associado ao extrativismo da castanha. Esse movimento de incremento da pecuária associada aos castanhais, embora significativo, não transformou Marabá de imediato num exportador de carne. Até a década de 60, a produção servia basicamente para a formação do rebanho bovino e para o abastecimento do mercado local, com uma tímida comercialização para Belém. A inversão desse processo, com o gado assumindo a importância maior, ocorreu mais tarde, já em meados da década de 70, levando inclusive a uma significativa substituição dos castanhais por pastagens. Paralelamente à frente de expansão da castanha e pecuária, desde o início da ocupação da região havia um fluxo bastante intenso do sul do Maranhão para a região do Itacaiúnas, que se ampliou com a atividade extrativa do caucho e da castanha. Inclusive era comum migrantes que sazonalmente vinham à Marabá para a safra da castanha e retornavam na entressafra. Nessa esteira, começou a surgir uma frente de expansão de agricultores que vinham e se embrenhavam na mata, estabelecendo uma agricultura de subsistência muitas vezes complementada pela coleta de castanha na safra, pela caça comercial (peles) e por garimpos de diamante. Eles se estabeleciam de maneira isolada ou em pequenos aglomerados, normalmente em áreas não ocupadas por castanhais. Havia muitas dificuldades para essa frente se estabelecer em Marabá, onde as terras já eram cada vez mais amplamente ocupadas pelos castanhais associados a pecuária. Por isso, esta frente tendeu a se situar nos municípios menores e mais afastados como São João do Araguaia e Itupiranga. Apesar do relativo isolamento, começaram a surgir povoados que foram ganhando certas dimensões, sobretudo com a ampliação do fluxo migratório a partir da intensificação do comércio fluvial entre Marabá-PA e Imperatriz-MA, alcançada pela rodovia Belém-Brasília no início da década de 1960 e, posteriormente, pela abertura do ramal rodoviário entre Marabá e a Belém-Brasília em 1969 (rodovia PA-70) e, finalmente, a Transamazônica em 1971. A abertura dessas rodovias significaram uma ligação nacional direta, sem tantas intermediações como no caso anterior da ligação fluvial por Imperatriz. Uma diferença significativa foi que o processo de ocupação a partir desse momento não se deu exclusivamente pelos pequenos lavradores. A região foi ocupada por 3 estratos distintos: (i) os lavradores da frente maranhense ; (ii) os médios fazendeiros conhecidos como “baianos” ; (iii) os grandes fazendeiros de fora e também de Marabá, apoiados com crédito da SUDAM. Os médios e grandes fazendeiros tinham muito mais facilidade de legalizar as terras ocupadas, impulsionando a frente maranhense para se adentrar cada vez mais para o interior. Todo o impulso migratório observado começou a gerar uma escassez de terras disponíveis na região. Com isso, aumentou o número de lavradores que tentavam se estabelecer para cultivar em terrenos considerados de propriedade. Contraditoriamente, o INCRA – recém estabelecido na região – não priorizou o apoio aos lavradores que iam se estabelecendo por conta própria, mas sim concentrou todos seus esforços nos chamados Projetos de Colonização, implantados em áreas de maior extensão ainda não ocupadas (Velho, 1972). Segundo Hébette et al. (2002 p. 182), nesse momento iniciaram-se dois modelos de ocupação da região da PA-70 e Transamazônica, que se caracterizaram como ‘colonização oficial ou governamental’ e ‘colonização por força de vontade dos migrantes’7. A primeira forma, organizada pelo INCRA, levou a instalação dos colonos migrantes em lotes regularmente esquadrinhados, predominantemente de 100 ha, conformando um modelo de 7 Os autores, seguindo uma denominação comum à época, chamam esse tipo de colonização de ‘colonização espontânea’, embora os mesmos reconheçam os problemas desse termo: “ ... a colonização dita espontânea que, a despeito da expressão, não deixou de ser imposta pela necessidade, mas se desenvolveu por meio de iniciativas privadas ... pela força de vontade dos migrantes ...” (Hébette et al., 2002, p. 183). Para uma crítica mais aprofundada ao mito da ‘ocupação espontânea’ da fronteira ver Oliveira Filho (1979). Para evitar a idéia de ‘ocupação espontânea’, optei por usar o nome ‘colonização pela força de vontade dos migrantes’. ocupação que mais tarde viria a ser chamado de ‘espinha de peixe’ face a existência de uma via principal e inúmeras transversais onde eram distribuídas as famílias. Essa forma de colonização também criou as chamadas glebas, lotes maiores destinados às empresas agrícolas e grandes pecuaristas, de 500 a 3000 ha. Já na colonização por força de vontade dos migrantes, foram os próprios que demarcaram seus lotes a partir da ocupação de áreas devolutas ou áreas de florestas privatizadas (castanhais) ou grandes fazendas de criação de gado (Hébette et al., 2002 p. 183). A primeira forma de colonização predominou ao longo da Transamazônica em direção Oeste, no sentido de Altamira. Na região de Marabá, embora também tenha havido algumas experiências de colonização oficial, predominou a distribuição oficial de grandes áreas e incentivos para médias e grandes fazendas, por um lado, e a colonização por força de vontade dos migrantes, por outro. A existência simultânea na frente de expansão de três estratos, quais sejam, os camponeses posseiros, os médios e os grandes fazendeiros, criou um caráter extremamente conflitivo para esse processo. Hébette at al. (2004) mostram uma série de exemplos de conflitos, desde a expulsão indígena até a disputa de terras entre camponeses posseiros e médios e grandes fazendeiros, em casos famosos pela violência física, pela ação de pistoleiros e pelos assassinatos. Segundo esses autores, além do confronto de indivíduos ou grupos com suas respectivas forças e estratégias para conquistar parcelas de terra, também houve o envolvimento direto e formal do Estado, por meio de seus aparelhos e mecanismos de intervenção como as leis, decretos e portarias, os tribunais de justiça, o poder executivo e suas diversas instituições (INCRA, GETAT, IBDF, SUDAM) e as forças de repressão policial. Esse clima de violência não foi encarado passivamente pelos posseiros. Hébette (2004), num artigo chamado ‘A Resistência dos Posseiros’ sintetiza como a solidariedade de grupos que já migraram juntos para a região ou que se recriaram nela, muitas vezes evoluíram para a formação de associações independentes, enquanto os sindicatos eram dominados pelo governo e/ou fazendeiros. Essas organizações foram fundamentais para a garantia da posse da terra, embora lutassem de maneira isolada e dependentes da combatividade de seus líderes (Hébette, 2004, p. 193). Pereira (2007) chama a atenção para o fato de que nessa luta pela terra empreendida pelo posseiro, seja na resistência à expulsão, seja na ocupação de novas áreas, predominava uma relativo isolamento em pequenos grupos, cujo principal objetivo era a conquista do lote através do enfrentamento direto do fazendeiro-grileiro que o ameaçava. Quanto mais distante e isolada fosse a área a ser ocupada, melhor, pois diminuía o risco de conflitos, seja com um pretenso ‘dono’, seja com o próprio Estado, identificado como inimigo dos posseiros e favorecedor dos fazendeiros e latifundiários. Essa relação de desconfiança com o Estado, que segundo Velho (1972), era denominado pelos posseiros como a ‘Besta Fera’, expressando o risco de retorno ao cativeiro que a relação com o Estado trazia. Isso pode ser compreendido tanto pela ação repressiva direta do Estado na expulsão dos posseiros da terra, como na tentativa de enquadrá-los e subordiná-los nas áreas de ‘colonização oficial’. Ao longo da década de 1980, no entanto, esse tipo de luta foi se reconfigurando. Hébette (2004, p. 194-195) chama a atenção para o fato de que foram os militantes e as práticas das associações que permitiram a criação e a conquista de sindicatos independentes. Esse fato alargou a possibilidade de luta pela terra, quebrando o isolamento das diversas frentes de conflitos dos posseiros e permitindo paulatinamente estabelecer uma nova relação com o Estado, que passou a reconhecer os STR como interlocutores quase obrigatórios. Podese perceber, nesse processo, que foi havendo uma transformação da percepção do Estado pelos posseiros em luta, da ‘Besta Fera’, a quem se devia fugir, para um inimigo a ser enfrentado. O fortalecimento desse processo ganhou um reforço com a chegada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST na região e as novas formas de luta pela terra características desse movimento. Essas transformações permitem delimitar, a partir do final da década de 1980 e início da década de 1990, uma nova fase na periodização da luta pela terra na região, com a transformação da luta dos posseiros na luta dos sem-terra (Pereira, 2007). Diferentes elementos podem caracterizar essas mudanças, sendo os mais importantes sintetizados no quadro abaixo: Quadro 1: Comparação das características da luta dos posseiros e dos sem-terra. Posseiro Ocupação “Espontânea” Movimento Isolado Local Escondido (mata) Organização inicial Lotes Participantes Homens Objetivo concreto Conquista do lote Perspectiva Conquista do lote Enfrentamento “Proprietário” Fonte: Pereira (2007) – organização do autor FM. Sem Terra “Planejada” Sócio-Territorial Visível (beira de estrada e prédios públicos) Acampamento Família Conquista do assentamento Reforma Agrária Estado Em que pesem as diferentes estratégias e ações na luta pela terra entre os posseiros e os sem-terra, conforme caracterizadas no quadro 01, há alguns pontos em que as rupturas devem ser relativizadas, dado que suas mudanças foram processuais e o movimento sindical as foram incorporando ao longo da década de 1980. Hébette (2004 a), por exemplo, relativiza a diferenciação entre ‘ocupações espontâneas’ e ‘ocupações organizadas’, já que toda ocupação requer forçosamente um certo nível de organização e planejamento, embora isso nem sempre signifique a presença de alguma instituição organizadora. Um outro marco dessa transformação foi o ano de 1987, que marca a conquista dos primeiros assentamentos nos municípios que compõem o chamado ‘Território do Sudeste Paraense’, dando início à ‘territorialização da luta pela terra’ (Michelotti et al, 2006). Desde esse ano, os camponeses e suas organizações assumiram na região uma perspectiva de que as ocupações de terras e os acampamentos, visíveis e abertos à sociedade, passavam a se configurar como um novo instrumento de pressão ao Estado para a obtenção de posse formal da terra através da criação dos Projetos de Assentamento. A chegada do MST à região no final dos anos 1980 não pode ser vista como a única novidade, em termos de organização social camponesa. Pelo menos mais um componente deve ser acrescentado: o fortalecimento de movimentos organizados a partir de identidades tradicionais, sobretudo extrativistas, à exemplo dos seringueiros do Acre e das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. Além das novas perspectivas de organização social, esses movimentos trouxeram um forte componente ecológico, de preservação de recursos naturais enquanto necessidade de preservação de seus modos de vidas e de seus territórios, fortalecendo inclusive alianças com os movimentos ambientais da região e de fora dela. No Sudeste do Pará, essa nova organização deu-se a partir da articulação dos extrativistas da castanha ao Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, que vinha buscando ampliar sua base, dos seringueiros do Acre para outras categorias de extrativistas da Amazônia. Ambos movimentos, MST e CNS, são enquadrados por Scherer-Warren (1996, p. 6972) como ‘Novos Movimentos Sociais’. Para esta autora, os novos movimentos sociais no campo, que surgiram no Brasil a partir da segunda metade da década de 70, diferenciavam-se dos anteriores em função de sua formas de organização e dos encaminhamentos de suas lutas. Estes movimentos surgiram em função da construção de uma consciência dos seus direitos e da necessidade de lutar por eles, formando uma identidade social e política em torno de um projeto coletivo. O que caracterizou esse projeto não foi apenas os seus objetivos específicos, como por exemplo a posse da terra ou a resistência às tentativas de expulsão da terra, mas também a perspectiva de uma utopia de construção de uma nova sociedade, mais justa, participativa e democrática, com respeito à diversidade cultural e/ou de gênero. Uma questão importante para parte desses novos movimentos sociais foi a inclusão da preservação da natureza enquanto luta pela preservação de seus modos de vida, complexificando as reivindicações que anteriormente eram excessivamente totalizantes e centradas nos aspectos econômicas. Segundo Scherer-Warren (1996, p. 100-107), essa nova perspectiva abriu possibilidades de alianças entre os movimentos sociais do campo e os movimentos ecologistas e de direitos humanos, como no caso do Conselho Nacional dos Seringueiros. Nesse contexto, por exemplo, surgiram as Reservas Extrativistas e Projetos de Assentamento Agroextrativistas na Amazônia. O que é importante registrar, a partir desse breve histórico, é que esse processo de criação de assentamentos, a partir de 1987 no Sudeste do Pará, é altamente heterogêneo. Por um lado, sua heterogeneidade é fruto das variações no seu ritmo e intensidade, em função das modificações na correlação de forças entre movimentos sociais e sucessivos governos, dado que nunca se constituiu numa efetiva reforma agrária e sim numa regularização fundiária reativa às lutas pela terra. Por outro lado, porque nesse processo, houve regularização de terras ocupadas de maneiras completamente distintas, desde antigas ocupações de posseiros da década de 1970 até ocupações mais recentes organizadas por múltiplos movimentos sociais, orientados por estratégias diferenciadas. Sobre as mudanças em ritmo e intensidade no processo de criação de assentamentos no Sudeste do Pará, apresentamos em Michelotti et al. (2007) a existência de 05 períodos distintos: (i) 1987 – 1988: início da criação dos primeiros assentamentos na região ; (ii) 1989 – 1996, refluxo na criação de assentamentos na região, com retomada da pressão social a partir de 1994/95 ; (iii) 1997 – 1999, fruto da pressão nacional e local iniciada já em 1994/958, da criação da Superintendência Regional do INCRA em Marabá (SR-27) e da repercussão do Massacre de Eldorado dos Carajás inicia um período de criação de elevado número de assentamentos; (iv) 2000 – 2002 (final do Governo FHC), do ponto de vista da criação de assentamentos ocorre um declínio em relação ao período anterior ; (v) 2003 – 2006 a resposta do Governo Lula ao crescimento da pressão nacional pela reforma agrária, foi um deslocamento geográfico da criação de assentamentos, ou seja, a resposta às maiores mobilizações nas áreas mais densamente ocupadas foi a criação de assentamentos nas áreas de fronteira, como o interior da Amazônia. A seguir pretende-se ilustrar essa diversidade de situações a partir de duas localidades em dois projetos de assentamento, o PA Palmares e o PA Agroextrativista Praialta e Piranheira que estão sendo pesquisados no âmbito do projeto AMAZ. Além de ilustrar essa diversidade de localidades e assentamentos, pretende-se indicar como essas diferenças colocam certos desafios para as outras lutas que se seguem à conquista do assentamento, como a busca de sua estabilização relativa e a construção de projetos camponeses com maiores graus de autonomia. 8 Regionalmente, neste período, houve a criação da Regional Sudeste da FETAGRI – Pará e do MST – Pará, ampliando o nível de organização e o alcance da luta pela terra na região. 3. Elementos de Comparação entre as Localidades Limão/Três Voltas no Projeto de Assentamento Palmares e a Localidade Maçaranduba no Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta e Piranheira. A luta pela terra que levou à criação do Projeto de Assentamento Palmares iniciou-se em junho de 1994, quando cerca de 1500 famílias ocuparam uma área que o Governo Federal havia cedido para a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD no município de Parauapebas, conhecida como ‘Cinturão Verde’. Desde essa primeira ocupação até a desapropriação de parte da Fazenda Rio Branco, onde foi criado o PA Palmares, foram 1 ano e 4 meses de um acampamento que teve que se deslocar inúmeras vezes, incluindo paradas nas sedes dos municípios de Parauapebas e Marabá, além de marchas e mobilizações públicas (Monteiro, 2005, p. 13-15). Na fase final do acampamento o movimento dividiu-se, dando origem a dois assentamentos: o Palmares I e Palmares II. O Projeto de Assentamento Palmares II, organizado pelo MST, foi criado pelo INCRA em outubro de 1995, com uma área de 14.922 ha destinada ao assentamento de 517 famílias. As famílias estavam acampadas numa área fora do projeto, portanto a partir desse período começou o processo de ocupação inicial dessa área que em parte era formada por pastagens da antiga fazenda e em parte era coberta por florestas. Brito Filho (2004) apud. Monteiro (2005, p. 15) indica que a prioridade inicial foi a construção de uma agrovila e de sua infra-estrutura como casas de moradia, escola, posto de saúde, energia elétrica e agroindústrias. A demarcação dos lotes individuais só ocorreu depois, promovendo uma distribuição de lotes regulares de 25 ha para as famílias, seguindo o padrão das áreas de colonização oficial. O Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta Piranheira (PAE) teve uma história de criação bastante diferente. Essa área, que era formada por antigos castanhais da margem direita do rio Tocantins, teve um processo de ocupação complexo e heterogêneo, sendo que na época de criação do PAE era composta tanto por estabelecimentos e famílias oriundas do período dos castanhais, ou da sua desarticulação. Ao mesmo tempo, também existiam muitos estabelecimentos que surgiram a partir da década de 1980, com a expansão da ocupação pela terra firma, no sentido estrada – rio, sobretudo a partir da atividade madeireira nesta região específica. Nesses caso, houve tanto caso de compra de terras de moradores mais antigos, como ocupação de áreas, dando origem a pequenas posses, bem como fazendas de maior porte. A criação do projeto de assentamento foi, portanto, uma regularização fundiária das posses existentes, mas também levou a ocupação por outras famílias que chegaram com o assentamento, sobretudo nas áreas de algumas das antigas fazendas que estavam dentro do perímetro e foram desapropriadas. Pelo caráter agro-extrativista do assentamento, as famílias mantiveram-se dispersas nas suas unidades de produção, não constituindo agrovila. Parte dos lotes não foram demarcados pelo INCRA, respeitando ocupações antigas e áreas já estabelecidas, procedimento inspirado nas experiências das Reservas Extrativistas. No entanto, outros lotes, de ocupação mais recente, seguiram o padrão do INCRA de distribuição de lotes regularmente divididos. O processo de ocupação dessa área foi detalhadamente estudado por Felix (2009). Apesar da inspiração nas RESEX, há que se considerar que a situação desse assentamento difere-se bastante da proposta original elaborada pelos seringueiros e castanheiros do Acre, onde ela surgiu. A maior parte das famílias assentadas não era tradicionalmente identificada como castanheiros ou extrativistas, mas sim pequenos agricultores e criadores. Inclusive, a ocupação dessa área, por muitas dessas famílias, já ocorreu na fase da frente de expansão agrícola – posseira, quando a atividade extrativista já tinha declinado bastante. Outra diferença marcante, refere-se ao tamanho das áreas de cada família, que nesse caso são, em média, muito menores que as colocações de seringa das RESEX, dificultando a sua manutenção econômica com a atividade extrativista, que em geral, é bastante extensiva. O PAE foi criado para 440 famílias em uma área de 22.000 ha, ou seja, com uma média de 50 ha por família. A título de comparação, o PAE Chico Mendes, criado no antigo Seringal Cachoeira, palco da luta do movimento dos seringueiros acreanos, respeitou as antigas colocações de seringa e castanha. Nesse assentamento, a área média por família é de 277 ha, o que permite a obtenção de quantidade elevada de produtos extrativistas, dispersos pela floresta. No caso da RESEX Chico Mendes, na mesma região, a área média por colocação é ainda maior: 672 ha (UICN, 1995). O PAE Agroextrativista Praialta Piranheira, único dessa categoria na região, foi criado em 1997, a partir da mobilização e reivindicação de alguns grupos de moradores do local e do apoio direto do Conselho Nacional do Seringueiros – CNS e do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular – CEPASP. A justificativa da criação do PAE baseava-se na tentativa de imprimir uma outra direção produtiva aos assentamentos na região, que vinham cada vez mais sendo identificados como insustentáveis em função da predominância de um processo de pecuarização da produção camponesa. Sobre a questão da pecuarização, Hurtienne (1999) argumenta que esta foi fortemente influenciada pela instabilidade da posse da terra ocupada pelos camponeses graças à disputa acirrada com fazendeiros e grandes empresas, aliada à ausência de uma política mais ampla de colonização organizada a favor da pequena produção. Esses processos levaram a que entre os posseiros predominassem sistemas de produção pouco complexos, baseados no corte e queima da floresta para implantação de roças de arroz, precocemente substituídas por pastagens. No entanto, a regularização fundiária com a criação dos assentamentos não significou de imediato uma reversão desse processo, com a implantação ampla e imediata de sistemas de produção mais complexos e diversificados. A partir desse rápido histórico dos dois assentamentos em tela reforça-se a idéia da diversidade de situações que existem por trás da chamada política de criação de assentamentos. O PA Palmares pode ser considerado um exemplo da transição da luta dos posseiros para a luta dos sem terra na região, marcada pelas ocupações abertas e visíveis, na forma de acampamentos e marchas planejadas para pressionar o Estado pela criação dos assentamentos. Esse processo ocorreu entre os anos 1994 e 1995, considerados como um período de refluxo da política de regularização fundiária, mas onde os novos movimentos sociais vinham intensificando suas lutas e enfrentamentos ao Estado na região. O PAE Agroextrativista, criado em 1997, num período de crescimento da implantação de assentamentos em função da alteração da correlação de forças dos movimentos sociais com o Estado, ilustra também a incorporação, no âmbito da política fundiária regional, de preocupações de outras ordens que não apenas a formalização da posse da terra. Essa experiência expressa, mesmo que parcialmente, a preocupação com a dimensão ecológica e com a diversidade identitária e social dos assentamentos. Ambos podem ser considerados resultados da ação de novos movimentos sociais atuando na região, incorporando à antiga luta pela terra outras dimensões como a luta pela apropriação de bens e serviços definidos nos termos da política pública e a preocupação ecológica. Os dados a seguir serão apresentados com o objetivo de demonstrar a heterogeneidade das localidades estudadas e consequentemente dos assentamentos em que estão situadas, bem como ilustrar algumas questões que emergem de suas diferenças e que afetam as estratégias econômico-produtivas dos assentados. Esses dados são oriundos de entrevistas realizadas com uma amostra de 51 estabelecimentos em cada um dos assentamentos, realizados no âmbito do Projeto AMAZ. A escolha dessas localidades e estabelecimentos não foi ao acaso. A partir de informações prévias, foram selecionadas localidades que apresentassem uma paisagem mais diversificada, pois o objetivo do projeto era encontrar uma diversidade de situações que melhor apresentem as inúmeras possibilidades de tomada de decisão dos assentados. Dessa forma, evitou-se por exemplo, localidades em que já predominavam pastos desde os tempos da fazenda que antecedeu o assentamento ou ainda que tivessem sido completamente desmatadas pelos próprios assentados, limitando a atual tomada de decisões dos assentados pelos condicionantes do meio biofísico. Os 51 estabelecimentos são agrupados em 3 grupos de 17 vizinhos, o que na sua somatória permite melhores observações sobre as unidades de paisagem. Gráfico 01: Comparação das áreas dos estabelecimentos estudados nas Localidades Limão/Três Voltas (PA Palmares) e Maçaranduba (PAE Praialta Piranheira). Box plots 160 140 Q1 120 1o decil mediana 100 9o decil Q3 80 60 40 20 0 Limão/Três Voltas Maçaranduba Fonte: Projeto AMAZ (2007). Gráfico 02: Comparação das formas de aquisição dos estabelecimentos estudados nas Localidades Limão/Três Voltas (PA Palmares) e Maçaranduba (PAE Praialta Piranheira). 50 45 40 35 Compra 30 Posse 25 Herança Troca 20 Doação de 3os 15 INCRA 10 5 0 Limão / Três Voltas Maçaranduba Fonte: Projeto AMAZ (2007). Os gráficos 01 e 02 retratam as diferenças entre os dois assentamentos em relação a distribuição dos lotes e a sua forma de aquisição. Nas localidades estudadas no PA Palmares, predominou a aquisição via INCRA, o que levou a uma distribuição bastante homogênea em termos de área, em torno dos 25 hectares. Na localidade Maçaranduba do PAE Praialta Piranheira predominou a aquisição via compra tanto antes, quanto depois da criação do assentamento. Em função desses históricos de aquisição diferenciados, na Maçaranduba há uma variação muito maior no tamanho dos lotes, que apresentam uma mediana de 60 ha e uma variação de 35 a 150 ha, considerando 90% da amostra total (entre Q1 e Q2) Além da distribuição dos lotes, um outro diferencial entre esses dois assentamentos refere-se à distância e facilidade de acesso. A agrovila do PA Palmares dista cerca de 20 Km da cidade de Parauapebas, sendo que metade desta distância é percorrida em estrada asfaltada. A outra metade começou a ser asfaltada em 2008, como resultado de uma jornada de lutas do MST. No PAE Praialta Piranheira, não há agrovila e os estabelecimentos entrevistados distam em média, cerca de 50 Km da sede do município de Nova Ipixuna, em estrada de terra que apresenta uma maior dificuldade de locomoção, sobretudo no período das chuvas. Essa estratégia de forçar a criação de assentamentos em áreas com melhores condições de acesso, facilita posteriormente o processo de comercialização da produção. Um bom exemplo disso é a possibilidade de participação, duas vezes por semana, de vários agricultores do PA Palmares na feira de Parauapebas, comercializando produtos agrícolas e olerícolas. Gráfico 03: Comparação entre o n° de famílias que receberam créditos reembolsáveis dentre os grupos estudados nas Localidades Limão/Três Voltas (PA Palmares) e Maçaranduba (PAE Praialta Piranheira). 14 Maçaranduba 37 Limão / Três Voltas 47 0 10 20 3 30 Sim 40 50 60 Não Fonte: Projeto AMAZ (2007). Do ponto de vista do acesso à política de crédito, há uma grande variação entre os dois casos. Nas Localidades Limão/Três Voltas no PA Palmares, dos 51 estabelecimentos entrevistados, 47 receberam algum tipo de crédito reembolsável. Na Localidade Maçaranduba no PAE Praialta Piranheira, numa amostra também de 51 estabelecimentos, apenas 14 receberam algum tipo de crédito reembolsável. Essas diferenças nos tamanhos dos estabelecimentos e na localização dos assentamentos, bem como o acesso aos bens e serviços definidos nos termos da política pública de apoio à produção, como o crédito, ajudam a explicar as opções de uso do solo que vem predominando em cada um deles. A comparação do Valor Bruto da Produção desses assentamentos (gráfico 03) indica que nas Localidades Limão/Três Voltas do PA Palmares a atividade econômica mais importante é o cultivo de lavouras anuais (61,8% do VBP), enquanto na Localidade Maçaranduba no PAE Praialta Piranheira é a pecuária (64,7% do VBP), contraditoriamente ao objetivo inicial desse modelo de assentamento agroextrativista. Pode-se afirmar, assim, que os estabelecimentos estudados do PA Palmares vem adotando um estratégia baseada na agricultura mais intensiva em termos de uso da terra do que no PAE Agroextrativista, onde predomina uma estratégia mais extensiva de uso da terra, baseada na pecuária. Gráfico 04: Comparação dos Valores Brutos da Produção Agropecuária Médios entre os estabelecimentos estudados nas Localidades Limão/Três Voltas (PA Palmares) e Maçaranduba (PAE Praialta Piranheira). 9.000,00 R$ 8.000,00 18,2% 7.000,00 Extrativismo 6.000,00 Cultivos Perenes 5.000,00 Cultivos Anuais 4.000,00 61,8% 3.000,00 64,7% Peq e Médios Animais Pec. Bovina 2.000,00 13,6% 1.000,00 0,00 Limão / Três Voltas Maçaranduba Fonte: Projeto AMAZ (2007). No entanto, as conclusões dessa comparação das estratégias de uso da terra devem ser feitas com cuidado. A trajetória terra-intensiva observada nas Localidades Limão/Três Voltas no PA Palmares, que aparentemente denota uma oposição ao processo de pecuarização dos assentamentos, gera, em termos médios, um Valor Bruto da Produção Agropecuário 33,9% menor do que o encontrado na Localidade Maçaranduba no PAE Praialta Piranheira. Fica claro, portanto, que no atual padrão tecnológico vigente as estratégias terra-extensivas de utilização do solo nos assentamentos do Sudeste do Pará, sobretudo baseadas na pecuária, ainda geram uma melhor renda total para as famílias camponesas. Portanto, mesmo considerando a melhor situação em termos de infra-estrutura e acesso aos bens e serviços definidos no âmbito da política pública verificada no PA Palmares, não se pode concluir que a consolidação dos assentamentos passa pela redução do tamanho dos lotes. Mesmo do ponto de vista ecológico, as estratégias mais intensivas de uso do solo observadas nas Localidades Limão/Três Voltas no PA Palmares não eliminam um dos problemas verificado no processo de pecuarização que é a redução significativa, no médio e longo prazo, das áreas de floresta dos lotes, que são a base para a manutenção da agricultura de corte e queima. Nas localidades estudadas nos dois Projetos de Assentamento, o desmatamento já ultrapassou os 50% da área total dos estabelecimentos, conforme Gráfico 05. Esses dados tornam-se mais preocupantes para o PA Palmares, dado que ali há maior dependência da atividade agrícola para a reprodução econômica das famílias do que no PAE Praialta Piranheira. Gráfico 05: Redução relativa da cobertura florestal primária no conjunto de estabelecimentos estudados nas Localidades Limão/Três Voltas (PA Palmares) e Maçaranduba (PAE Praialta Piranheira). 120,0 100,0 % 80,0 60,0 40,0 20,0 Limão / Três Voltas 07 20 05 20 03 20 01 20 99 19 97 19 95 19 93 19 91 19 89 19 87 19 85 19 19 83 0,0 Maçaranduba Fonte: Projeto AMAZ (2007). 4. Considerações Finais Neste artigo, argumentou-se que a mera criação de assentamentos não pode ser considerada como reforma agrária, posto que não é uma ação planejada para uma mudança de grandes proporções na estrutura agrária nacional. O que se verifica é uma ação reativa dos diferentes governos ao processo de luta pela terra existente no campo brasileiro. No chamado Território do Sudeste Paraense a situação não é diferente, embora, dada a intensidade e sucesso do processo de luta pela terra, tenha havido uma criação significativa de assentamentos que chegam a ocupar 32, 4% da sua área total. A grande quantidade de assentamentos criados e a extensa área ocupada não pode ser vista como a aplicação homogênea de um mesmo programa de criação de assentamentos. Cada assentamento tem uma trajetória distinta em seu processo de luta pela criação, em função do momento histórico em que esta se iniciou e do tipo de movimento social que a organizou. Estas diferenças são importantes não apenas para explicar as especificidades do assentamento em si, como também influenciam as possibilidades e estratégias de estabilização relativa das famílias assentadas. As localidades estudadas nos Projetos de Assentamento Palmares e Agroextrativista Praialta Piranheira, são resultados de lutas pela terra em momentos históricos mais recentes, posteriores à década de 90, quando as características do tipo de organização dos camponeses havia se modificado de um padrão do ‘posseiro’ para o de ‘sem terra’. Além disso, ambos foram processos coordenados por organizações que se enquadram na categoria de Novos Movimentos Sociais, que além da luta pela terra em si, inovaram na perspectiva de construção de uma nova sociedade, mais justa, participativa e democrática, com respeito à diversidade ecológica, cultural e/ou de gênero. Nesta perspectiva, o PA Palmares, organizado pelo MST, priorizou estratégias que garantissem o acesso pelos camponeses a benefícios sociais mais amplos, como por exemplo, a infra-estrutura de estradas e os bens e serviços definidos pela política pública. O PAE Praialta Piranheira, cuja luta foi organizada através de uma parceria entre entidades locais com o Conselho Nacional dos Seringueiros, priorizou a preocupação com a sustentabilidade ecológica dos assentamentos criados. Esses processos influenciaram a conformação desses assentamentos em várias dimensões, dentre elas a econômica-produtiva, como o tamanho dos estabelecimentos, o acesso ao crédito rurale as facilidades de transporte e comercialização. A facilidade de transporte em função da localização e as possibilidades de comercialização que isso abre, o maior acesso ao crédito e o menor tamanho dos estabelecimentos levou a predominância entre as famílias entrevistadas nas Localidades Limão/Três Voltas no PA Palmares de uma estratégia de uso da terra mais intensiva. Isso foi verificado pela importância que a agricultura temporária tem na composição do Valor Bruto Agropecuário Total. No PAE Praialta Piranheira, as maiores distâncias e dificuldades de escoamento da produção e o acesso mais restrito ao crédito rural, aliado à inexistência de uma identidade extrativista em parte significativa das famílias que vieram a compor o assentamento, parecem ter dificultado o surgimento de sistemas de produção agroextrativistas, como foi idealizado inicialmente. O tamanho dos lotes, maior em relação ao PA Palmares, mas bem menor do que as unidades de produção fortemente extrativistas, como no caso do Acre, acabaram por contribuir para a configuração de um sistema de produção bastante influenciado pela formação de pastagens e criação de gado, que pouco se diferenciou do processo mais comum de pecuarização observado na região. Estas análises, não podem ser compreendidas como conclusões definitivas sobre esses assentamentos, mas apenas como a explicitação de elementos que, conformados a partir de suas diferentes trajetórias de luta pela terra, influenciaram as estratégias e projetos econômico-produtivos que foram se formando. A menor importância econômica da atividade pecuária na amostra estudada do PA Palmares não pode ser confundida com sinal de sua consolidação, risco comum às análises que apresentam a ‘pecuarização’ como o maior problema dos assentamentos. Frente ao atual padrão tecnológico e dos sistemas de produção familiares nos assentamentos, o seu mais baixo valor bruto médio da produção agropecuária e o desmatamento elevado dos lotes mostram que a sua consolidação econômico-produtiva ainda é um desafio de grandes proporções. Contudo, estas estratégias e projetos estão em constante reformulação, posto que a realidade é extremamente dinâmica, desautorizando projeções muito rígidas de futuro. De qualquer forma, parece que as inovações trazidas nos processos de luta desses dois assentamentos, quais sejam, a importância do acesso aos bens e serviços definidos pela política pública e à infra-estrutura social pelos assentados e a preocupação com a sustentabilidade ecológica dos sistemas de produção, têm sido incorporadas de maneira mais ampla no processo geral de luta pela terra nesta região. Fato que pode ser decisivo na luta pela consolidação dos inúmeros assentamentos criados. 5. Referências Bibliográficas Costa, F. de A. (2000) Formação Agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento sustentável. Belém: NAEA – UFPA. 355 p. Felix, G. A. (2009) O Caminho do mundo: mobilidade espacial e condição camponesa numa região da Amazônia Oriental. Rio de Janeiro: EDUFF. Fernandes, B.M. (1999) MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: formação e territorialização em São Paulo. São Paulo: Ed. Hucitec. 285 p. Hébette, J ; Abelém, A. ; Paraense, M. e Emmi, M. 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