Conferências da IGAI
O regime jurídico das polícias municipais∗
Catarina Sarmento e Castro
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Consultora do Gabinete do Presidente do Tribunal Constitucional
[email protected]
O regime jurídico das polícias municipais ....................................................................... 1
Introdução..................................................................................................................... 2
O que diz a Constituição............................................................................................... 3
A criação das polícias municipais ................................................................................ 3
A dependência orgânica e funcional............................................................................. 6
O território .................................................................................................................... 7
A organização ............................................................................................................... 9
O pessoal .................................................................................................................... 10
As competências ......................................................................................................... 17
A questão das polícias municipais.............................................................................. 24
O estatuto do pessoal de polícia municipal ................................................................ 26
Accountability ............................................................................................................ 28
A revisão da Lei n.º 140/99, de 28 de Agosto ............................................................ 30
Conclusão ................................................................................................................... 31
Bibliografia sobre polícias municipais ....................................................................... 32
∗
O presente texto corresponde à comunicação realizada por ocasião do ciclo de conferências organizado
pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), e apresentada em Lisboa, no Instituto Superior de
Ciências Policiais e Segurança Interna, a 22 de Outubro de 2003.
Agradece-se ao Centro de Estudos e Formação Autárquica, na pessoa da Senhora Dra Maria do Rosário, o
fornecimento de alguns elementos estatísticos que contribuíram para o enriquecimento deste escrito.
1
Introdução
Qualquer conversa de breves instantes com os elementos que hoje constituem o
efectivo das polícias municipais elucida de forma exemplar a confusão que em seu torno
se instalou na cabeça de muitos portugueses que, sem grande aviso prévio, se viram, de
repente, confrontados com um novo fardamento nas ruas: de funcionários dos correios,
a funcionários municipais do departamento de higiene e limpeza, passando por
seguranças privados, foram confundidos com quase tudo, os homens e mulheres das
fardas de instrução cinzentas. Se a sua identificação pelos portugueses ainda não é
imediata, menor é ainda o conhecimento da população acerca das competências das
polícias municipais.
Quanto a este último aspecto, não lhe será alheio a roupagem com que muitos
autarcas vestiram as polícias municipais no momento da sua divulgação: por força de
circunstâncias várias, as polícias municipais surgiram nos diversos programas eleitorais,
e na sua sequência, no discurso político, como a nova bandeira da segurança dos
munícipes.
Será, de facto, assim, ou poderá, apesar de tudo, haver outro papel para as
polícias municipais?
E contribuirá esse papel para um aumento da segurança das populações?
As polícias municipais encontram a sua regulamentação fundamental na Lei n.º
140/99, de 28 de Agosto, que estabelece o regime e forma de criação das polícias
municipais, no Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março, que regula a sua criação, e no
Decreto-Lei n.º 40/2000, de 17 de Março, que regula as condições e o modo de
exercício de funções de agente de polícia municipal.
São igualmente importantes, os vários regulamentos municipais de criação
destas polícias, por definirem, dentro do quadro da lei, algumas particularidades de cada
uma das polícias municipais.
Antes de passarmos a uma análise mais detalhada de alguns aspectos regulados
nestes vários instrumentos jurídicos, deveremos começar pela referência que a mãe de
todas as normas – a Constituição – faz às polícias municipais.
2
O que diz a Constituição
O n.º 3 do art. 237.º, da CRP, estabelece que “As polícias municipais cooperam
na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais”.
Este novo n.º 3 foi inserido no texto da Lei Fundamental na sequência da revisão
constitucional de 1997 no artigo que tem por epígrafe “descentralização administrativa”,
e que integra o Título VIII da Constituição, relativo ao poder local.
A inserção sistemática das polícias municipais na Lei Fundamental é, desde
logo, reveladora do seu âmbito territorial de actuação, que se pretende circunscrito à
área do município, mas fornece também indicações fundamentais acerca da dependência
orgânica das polícias municipais.
A sua denominação não é menos importante: a utilização de “municipais” em
vez de “locais”, reitera a clara intenção de fazer depender estes serviços da autarquia
local de tipo municipal (i.e., do município), furtando-os a uma dependência tipica dos
órgãos locais do Estado.
A criação das polícias municipais
O modo de constituição dos corpos de polícia municipal foi definido pela Lei
n.º 140/99, de 28 de Agosto, bem como pelo Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março.
Cada polícia municipal é criada pela assembleia municipal respectiva, que delibera sob
proposta da câmara municipal (art. 10.º, n.º 1 da Lei n.º 140/99, de 28 de Agosto; art.
1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março)1. Deste modo, à iniciativa do
executivo seguir-se-á a votação pelos deputados municipais. Da deliberação da
assembleia municipal que cria a polícia municipal constam o respectivo regulamento e
quadro de pessoal, cuja aprovação formaliza a criação do serviço.
Embora o acto formal de criação de uma polícia municipal seja uma prerrogativa
exclusiva do município, a eficácia da deliberação municipal depende da sua ratificação
1
Também refere esta competência da assembleia municipal o art. 53.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 5A/2002, de 11 de Janeiro, que introduz a primeira alteração à Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que
estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos
municípios e das freguesias.
3
pelo Conselho de Ministros, destinada a verificar a conformidade da decisão do órgão
da autarquia com as disposições legais vigentes (art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 140/99, de 28
de Agosto; art. 5.º do Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março)2.
Da Lei n.º 140/99 não resulta para o município qualquer carácter de
obrigatoriedade na criação de uma polícia municipal3. Até hoje, apenas uma fraca
percentagem de municípios optou pela sua constituição.
São hoje ao todo 33 os municípios cujos órgãos já deliberaram no sentido da
criação de uma polícia municipal, havendo a sua decisão sido ratificada pelo Conselho
de Ministros4.
2
As Deliberações das Assembleias Municipais que criaram polícias municipais e que foram ratificadas
por Resoluções do Conselho de Ministros, ainda em 2000, foram: Braga e Sintra, Deliberações de 17 de
Abril, Guimarães, de 17 de Maio, Gondomar, de 5 de Junho, Aveiro, de 6 de Junho, Amadora, Paços de
Ferreira e Vila do Conde, de 7 de Junho, Gaia, de 8 de Junho, Oeiras, de 12 de Junho, Maia, de 5 de
Julho, Cascais, de 31 de Julho, e Matosinhos, de 3 de Agosto, todas de 2000. As Resoluções do Conselho
de Ministros que lhes deram eficácia são as Resoluções n.º 124/2000 (Maia), de 11 de Outubro, n.º
125/2000 (Gondomar), n.º 126/2000 (Matosinhos), n.º 127/2000 (Póvoa do Varzim), n.º 128/2000 (Paços
de Ferreira), n.º 129/2000 (Vila do Conde), n.º 130/2000 (Aveiro), n.º 131/2000 (Cascais), todas de 12 de
Outubro, n.º 132/2000 (Vila Nova de Gaia), n.º 133/2000 (Guimarães), n.º 134/2000 (Sintra), n.º
135/2000 (Coimbra), n.º 136/2000 (Oeiras), todas de 13 de Outubro, e n.º 138/2000 (Amadora), n.º
139/2000 (Braga), ambas de 17 de Outubro. Foram ratificadas em 2002 as Deliberações das Assembleias
Municipais que criaram as polícias municipais de Cabeceiras de Basto, de 30 de Junho de 1999, de
Paredes, de 3 de Junho de 2000, de Santo Tirso, de 5 de Junho de 2000, da Trofa, de 8 de Junho de 2000,
de Vila Nova de Poiares, de 13 de Junho de 2000, de Felgueiras, de 19 de Junho de 2000, de Fafe, de
Valpaços, e de Viseu, todas de 30 de Junho de 2000, de Marco de Canaveses, de 3 de Julho de 2000, da
Figueira da Foz, de 7 de Julho de 2000, de Vila Nova de Famalicão, de 8 de Setembro de 2000, de Vieira
do Minho, de 29 de Setembro de 2000, de Loulé, de 10 de Novembro de 2000, de Lousada, de 24 de
Novembro de 2000, de Celorico da Beira, de 9 de Dezembro de 2000, de Albufeira, de 29 de Março de
2001, de Boticas, de 25 de Setembro de 2001. As Resoluções que as ratificaram foram, respectivamente,
as Resoluções n.º 20/2002, de 30 de Janeiro (Cabeceiras de Basto), n.º 29/2002, de 9 de Fevereiro
(Paredes), n.º 19/2002, de 30 de Janeiro (Santo Tirso), n.º 18/2002, de 29 de Janeiro (Trofa), n.º 23/2002,
de 2 de Fevereiro (Vila Nova de Poiares), n.º 32/2002, de 14 de Fevereiro de 2002 (Felgueiras), n.º
31/2002, de 13 de Fevereiro (Fafe), n.º 33/2002, de 14 de Fevereiro (Valpaços), n.º 44/2002, de 13 de
Março (Viseu), n.º 81/2002, de 12 de Abril (Marco de Canaveses), n.º 14/2002, de 28 de Janeiro (Figueira
da Foz), n.º 34/2002, de 15 de Fevereiro (Vila Nova de Famalicão), n.º 25/2002, de 2 de Fevereiro (Vieira
do Minho), n.º 60/2002, de 23 de Março (Loulé), n.º 87/2002, de 22 de Abril (Lousada), n.º 24/2002, de 2
de Fevereiro (Celorico da Beira), n.º 17/2002, de 29 de Janeiro (Albufeira), e n.º 30/2002, de 9 de
Fevereiro (Boticas).
3
É a solução mais utilizada noutros países. Fugiu a esta tradição a Bélgica, em virtude da especial
organização policial aí existente: a polícia municipal foi, durante muito tempo, a única polícia civil do
país. Sobre a questão: CASTRO, Catarina Sarmento e, A questão das polícias municipais, Coimbra
Editora, Coimbra, 2003.
4
O Relatório de Segurança Interna relativo ao ano de 2001, publicado no Diário da Assembleia da
República de 13 de Julho de 2002, II Série-C, refere que ao longo de 2000 e 2001 houve uma
comparticipação financeira do Estado superior a 8 milhões de Euros, tendo em vista a realização de
investimentos para a constituição e equipamento das polícias municipais.
4
Algumas destas polícias pertencem a municípios da área da grande Lisboa, como
Amadora, Cascais, Oeiras e Sintra.
No norte, a representação é muito forte, designadamente na área do grande
Porto: existem deliberações dos municípios de Boticas, Braga, Cabeceiras de Basto,
Fafe, Felgueiras, Gondomar, Guimarães, Lousada, Maia, Marco de Canaveses,
Matosinhos, Paços de Ferreira, Paredes, Póvoa do Varzim, Santo Tirso, Trofa,
Valpaços, Vieira do Minho, Vila do Conde, Vila Nova de Famalicão e Vila Nova de
Gaia.
No centro, Aveiro, Celorico da Beira, Coimbra, Figueira da Foz, Vila Nova de
Poiares e Viseu são os municípios que fizeram aprovar a constituição desta polícia.
Mais a sul, Albufeira e Loulé são os municípios algarvios que deliberaram criar
polícias municipais.
Outros municípios apresentaram, entretanto, candidaturas para o cofinanciamento estadual para criação de polícia municipal, como foi o caso de Loures5.
Deste conjunto de municípios apenas alguns têm já no terreno o seu efectivo das
polícias municipais. É o caso de Amadora, Aveiro, Braga, Cabeceiras de Basto, Cascais,
Coimbra, Fafe, Felgueiras, Gondomar, Guimarães, Lousada, Maia, Marco de
Canaveses, Matosinhos, Oeiras, Paços de Ferreira, Paredes, Póvoa do Varzim, Santo
Tirso, Sintra, Trofa, Vila do Conde, Vila Nova de Famalicão, Vila Nova de Gaia e
Viseu.
Apesar da existência de corpos de polícia municipal nos municípios de Lisboa e
do Porto, em exercício efectivo de funções, estas polícias municipais estão, actualmente,
sujeitas a um regime transitório especial, nos termos do art. 22.º, da Lei n.º 140/99, de
28 de Agosto. O mesmo artigo delimitou temporalmente a duração da situação de
excepção a um período de 5 anos que se completará em 2004. De acordo com o
estabelecido nesta Lei, cabe ao Governo definir, em diploma próprio, as condições da
eventual integração dos agentes da Polícia de Segurança Pública em funções naqueles
municípios. Actualmente, estas polícias são constituídas por oficiais e agentes da PSP
requisitados à Direcção Nacional da PSP pelas Câmaras de Lisboa e do Porto.
5
A referência é feita no sítio Web do município: http://www.cm-loures.pt/gp_PoliciaMunicipal.asp.
5
Antes mesmo da alteração introduzida pela Revisão constitucional de 1997, de
que resultou a expressa previsão das polícias municipais no mencionado art. 237.º, n.º 3,
e lhes definiu a possibilidade do exercício de poderes em matéria de tranquilidade
pública e protecção das comunidades locais, a Assembleia da República havia já
aprovado um diploma que possibilitava a criação de serviços municipais de polícia. A
Lei n.º 32/94, de 29 de Agosto, regulava a sua constituição, definindo-lhes
essencialmente competências de fiscalização da utilização de licenças, do cumprimento
de deliberações municipais, ou do trânsito. Na ausência da abertura constitucional
entretanto estabelecida, a leitura dos poderes que lhes eram permitidos deveria limitarse a matéria de mera polícia administrativa, e não de polícia de segurança.
Este diploma foi entretanto revogado pelo art. 23.º da Lei n.º 140/99, que
estabelece o regime e forma de criação das polícias municipais.
A dependência orgânica e funcional
A caracterização da polícia municipal como um serviço do município não resulta
apenas da sua criação municipal: esta polícia depende directamente do presidente da
câmara (art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 140/99), que desempenha, em última instância, o poder
de direcção e de controlo típicos de uma relação de hierarquia. Desta forma, as polícias
municipais actuam, como determina a referida Lei, “na dependência hierárquica directa
do presidente da câmara” que lhes pode dirigir ordens e instruções.
A lei possibilita, nos termos gerais, que os poderes do presidente da câmara em
matéria de polícia municipal possam ser delegados num vereador (art. 69.º da Lei n.º 5A/2002, de 11 de Janeiro), hipótese deixada em aberto também por alguns regulamentos
das polícias municipais.
Esta dependência orgânica explica, igualmente, o que há pouco referíamos a
propósito da utilização da designação “municipal”, em detrimento do vocábulo “local”:
as polícias municipais são serviços que integram a Administração autónoma, mais
concretamente, a pessoa colectiva “município”, estando sujeitas a uma relação de
hierarquia com um dos órgãos dessa autarquia (o presidente da câmara). A Constituição
e a Lei afastam a caracterização destas polícias como polícias meramente “locais”, i.e.,
6
como meros serviços desconcentrados da Administração do Estado, sublinhando o seu
afastamento da cadeia hierárquica da Administração estadual. As polícias municipais
não constituem uma peça do quadro de divisão de funções dentro da organização
administrativa da pessoa colectiva Estado.
As outras polícias – tomamos aqui como exemplo, a Guarda Nacional
Republicana e a Polícia de Segurança Pública – integram a Administração Estadual,
constituindo as respectivas brigadas territoriais e comandos metropolitanos, regionais e
de polícia, exemplo de serviços territorialmente desconcentrados (periféricos ou locais)
da Administração estadual central.
A caracterização das polícias municipais como resultado concreto da
descentralização administrativa tem como consequência directa a sua sujeição a um
mero poder de tutela da legalidade por parte da Administração estadual, assim se
afastando qualquer submissão a poderes de direcção ou de orientação por esta
exercidos. Nos termos do art. 242.º, n.º 1, da CRP, “a tutela administrativa sobre as
autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos
autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei”.
A Lei que estabelece o regime e a forma de criação das polícias municipais
concretizou este aspecto e estabeleceu o tipo de intervenção – “a verificação do
cumprimento das leis e dos regulamentos por parte dos municípios” e “a verificação da
legalidade dos actos” são as expressões empregues na lei (art. 9.º) -, bem como os
domínios em que este poder de fiscalização pode exercer-se – em matéria de
organização e funcionamento das polícias municipais, e quando haja indícios de
desrespeito dos direitos, liberdades e garantias por parte destas polícias. A esta matéria
voltaremos num próximo ponto.
O território
A competência territorial das polícias municipais coincide com a área do
respectivo município (art. 5.º, n.º 1 da Lei n.º 140/99). Atendendo à sua caracterização
como serviço da Administração autónoma de tipo autárquico, criado por iniciativa e
7
decisão dos órgãos do município, e sujeito ao poder hierárquico do presidente da
câmara, era natural que a lei assim o estabelecesse.
Cada polícia municipal pode actuar na área do seu município, e apenas nessa
área (a lei refere mesmo que “os agentes de polícia municipal não podem actuar fora do
território do respectivo município”), mas não necessariamente em todo o território
municipal. De acordo com o estabelecido na Lei, a deliberação através da qual se crie a
polícia municipal deverá definir a área do território do município em que esta exercerá
as suas competências (art. 12.º da Lei n.º 140/99).
Será, por força da lei, em cada um dos regulamentos das polícias municipais,
que encontraremos a definição área de actuação de cada uma delas. Da análise dos
regulamentos até hoje aprovados pelas assembleias municipais, e ratificados pelo
Conselho de Ministros, concluímos que a opção municipal teve quase sempre o mesmo
sentido: a maioria dos municípios optaram, à partida, por fazer corresponder a área de
actuação da respectiva polícia municipal com todo o espaço territorial do município.
Excepciona-se o caso do Município de Albufeira que limitou a actuação da polícia
municipal à área geográfica correspondente às freguesias de Albufeira e da Guia,
deixando de fora 3 outras freguesias.
Contudo, alguns regulamentos esclarecem que a actividade da polícia municipal,
apesar de abranger todo o território municipal, terá maior incidência na zona geográfica
correspondendo às freguesias com maior concentração populacional, como no caso dos
municípios de Coimbra, de Gondomar e do Marco de Canaveses, ou na área territorial
do perímetro urbano da cidade, como no município de Braga.
Poderia a opção do legislador português ter sido diferente? Poderia a Lei ter
facultado ao efectivo de cada uma das polícias municipais o exercício de competências
fora da sua área territorial? Afinal, existem no direito comparado exemplos de polícias
municipais/locais que exercem poderes fora dos limites da área do seu município, seja
de forma pontual6, seja mediante a constituição de corpos supramunicipais de polícia7.
6
Como previsto em França, ou em Espanha, neste último caso, para situações de emergência: CASTRO,
Catarina Sarmento e, A questão das polícias municipais, cit.
7
É o caso italiano: CASTRO, Catarina Sarmento e, A questão das polícias municipais, cit.
8
A solução portuguesa parece ter sido, por várias razões, a melhor solução. Desde
logo por razões de distribuição de competências entre os diversos municípios: como se
justificaria o exercício de poderes por parte dos elementos de uma polícia municipal
num território municipal que não é o seu, e no qual a autoridade máxima em matéria de
competências municipais de polícia é o respectivo presidente de câmara, que, em
território alheio, não seria o seu, devendo esta mesma polícia obediência ao seu superior
hierárquico máximo, que é o seu presidente de câmara?
Depois também por razões práticas importantes: o exercício de poderes de
fiscalização das polícias municipais assume uma importância especial no que respeita à
verificação do cumprimento das normas municipais. Estas são, em muitos casos,
específicas, porque emitidas ao abrigo do poder regulamentar autónomo do município.
Outra questão é a que respeita à possibilidade de actuação conjunta dos
elementos das polícias municipais, criando-se uma espécie de super polícia municipal,
de polícia supra municipal ou de polícia, v.g., das áreas metropolitanas. Também esta
solução foi liminarmente afastada pela Lei n.º 140/99, que estabelece, no art. 1.º, n.º 2,
que “as polícias municipais têm âmbito municipal e não são susceptíveis de gestão
associada ou federada”.
A organização
As deliberações das assembleias municipais que criam o serviço de polícia
municipal estabelecem, em alguns casos, o seu organigrama. Este é, muitas vezes,
elucidativo quanto às preocupações fundamentais do município, revelando a ênfase que
será dada à prossecução de algumas competências.
Tomemos como exemplo a organização da polícia municipal de alguns
municípios. Na Maia e em Loulé, a polícia municipal actua na dependência do
comandante, e é composta por um subcomando operacional dotado de serviços de
trânsito, operacionais e de armas), bem como um subcomando administrativo
(integrando a secretaria geral, o serviço de contra-ordenações e o serviço de
comunicações). A polícia municipal de Oeiras e de Coimbra têm uma secção de
expediente e informação, e uma secção de fiscalização. Em Cascais optou-se por
9
constituir três divisões: a divisão de polícia (integrando o sector de vigilância e o sector
de trânsito), a divisão de fiscalização (integrando o sector do urbanismo, o sector das
actividades económicas e o sector do ambiente) e o gabinete técnico.
O pessoal
O quadro de pessoal de cada polícia municipal é aprovado pela deliberação da
assembleia municipal que cria cada um destes serviços (art. 2.º, n.º 1, alínea b) do
Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março).
O número de efectivos de cada serviço de polícia municipal é fixado, de acordo
com o art. 11.º da Lei n.º 140/99, tendo em conta as necessidades do serviço e a
proporcionalidade entre o número de agentes e o de cidadãos eleitores inscritos na área
do respectivo município.
O Decreto-Lei n.º 39/2000 elencou os factores determinantes para a fixação do
número de efectivos: a extensão geográfica do município, a área do município sobre que
incide o exercício das competências do serviço de polícia municipal, a razão da
concentração ou dispersão populacional, as competências efectivamente exercidas pelas
polícias municipais, o número de freguesias do município, o número de equipamentos
públicos existentes na área do município sobre que incide o exercício das competências,
a população em idade escolar da mesma área, a extensão da rede viária municipal, a
delimitação da área urbana do município.
Este diploma estabeleceu um limite mínimo de 6 efectivos para cada polícia
municipal (art. 4.º, n.º 4), bem como um ratio máximo: da ponderação dos factores atrás
descritos não poderá resultar um número de efectivos que exceda a razão de 3 agentes
por cada 1000 cidadãos eleitores inscritos na área do município (art. 4.º, n.º 3).
A deliberação de cada assembleia municipal que aprovou o regulamento da
polícia municipal fixou, para cada caso, o número de efectivos com que cada município
pretende arrancar. São números muito modestos, embora quase todas as deliberações
tenham utilizado a significativa expressão “para já”, no momento da sua fixação,
deixando em aberto possíveis alterações.
10
Tomando como exemplo o município de Sintra, o ratio estabelecido foi de 1
agente por 6000 cidadãos eleitores8. Em Vila Nova de Gaia o Regulamento esclarece
que apesar de ser possível fixar em 660 o número máximo de efectivos, optou-se por,
numa primeira fase, fixar em 100 o número de agentes. Na Póvoa de Varzim o
Regulamento refere um máximo de 150 efectivos, mas opta por fixar em 30 o número
inicial. Na Maia, em vez dos 258 possíveis agentes, o Regulamento fixou em 70 o
número inicial de efectivos. Gondomar também não optou pelos 378 efectivos
possíveis, iniciando com uma previsão de 80 agentes, e em Coimbra, das quase 4
centenas possíveis, foi estabelecido um número de apenas 100 efectivos. O quadro que a
seguir se apresenta refere-se aos números fixados em cada uma das deliberações.
8
Esse ratio resulta do art. 17.º do Regulamento, publicado no Diário da República II, n.º 113, de 16 de
Maio de 2001.
11
Albufeira
Amadora
Aveiro
Boticas
Braga
Cabeceiras de Basto
Cascais
Celorico da Beira
Coimbra
Fafe
Felgueiras
Figueira da Foz
Gondomar
Guimarães
Loulé
Lousada
Maia
Marco de Canaveses
Matosinhos
Oeiras
Paços de Ferreira
Paredes 30
Póvoa de Varzim
Santo Tirso 30
Sintra
Trofa 32
Valpaços 24
Viseu 35
Vila do Conde
Vila Nova de Famalicão
Vila Nova de Gaia
Vila Nova de Poiares
Vieira do Minho
∗
63
53
42
9
65
12
54
14
100
40
35
30
80
60
∗
27
70
30
110
57
30
30
30
40
32
24
35
36
43
100
10
25
Da Deliberação aprovada pela Assembleia Municipal, e ratificada pelo Conselho de Ministros, não
consta qualquer número.
12
Numa intervenção recente o Senhor Inspector-Geral da Administração Interna
avançou números impressionantes relativos ao crescimento do pessoal da PSP e da
GNR, entre 1995 e 2000. Neste último ano, a GNR teria passado a contar com 25.904
elementos, e a PSP com 20.7129.
Tendo em conta os elementos das forças de segurança na dependência do MAI,
existiria, avançou também a IGAI, 1 polícia por cada 2 km e para 218 habitantes.
São, como se vê, assombrosamente diferentes os números respeitantes ao
efectivo das polícias municipais.
A distância acentua-se quando atendemos apenas ao número de efectivos que
estão, de momento, a trabalhar. Existem 25 municípios que já contam com agentes de
polícia municipal.
Eis a sua actual distribuição por município10:
Amadora
Aveiro
Braga
Cabeceiras de Basto
Cascais
Coimbra
Fafe
Felgueiras
Gondomar
Guimarães
Lousada
Maia
Marco de Canaveses
Matosinhos
Oeiras
Paços de Ferreira
Paredes
Póvoa de Varzim
Santo Tirso
Sintra
18
20
49
8
14
15
17
11
20
33
4
24
10
16
67
20
12
20
6
29
Trofa
4
9
Rodrigues Maximiano, Novos desafios para as forças de segurança – o modelo policial português – que
reestruturação?, http://www.igai.pt/publicdocs/IG_EPGNR_Jun2003.pdf.
10
Número de formandos que frequentaram, ou estão ainda a frequentar, os cursos de formação para a
carreira de polícia municipal (1.º curso - 8.º curso).
13
Vila do Conde
Vila Nova de Famalicão
Vila Nova de Gaia
Viseu
20
20
33
20
Podemos juntar alguns dados estatísticos que nos permitem ter uma ideia do
actual universo dos agentes de polícia municipal.
Quanto à sua distribuição por sexo, se atendermos ao total de agentes que
frequentaram o 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º cursos de formação para a carreira de polícia
municipal, temos:
Homens
Mulheres
242
96
Diga-se, por curiosidade, que apesar da exigência de habilitação mínima ser o
12.º ano de escolaridade ou equivalente, frequentaram os 6 primeiros cursos 12
formandos licenciados.
As carreiras de pessoal de polícia municipal integram as carreiras da
Administração local. São elas a carreira de técnico superior de polícia municipal e a
carreira de polícia municipal (art. 7.º do Decreto-Lei n.º 39/2000)11.
O pessoal da carreira técnica superior de polícia municipal desempenha
essencialmente funções de enquadramento técnico relativamente ao pessoal da carreira
de polícia municipal, cabendo-lhe ainda a realização de estudos que visam informar a
decisão superior, bem como de reflexão acerca dos regulamentos municipais. É
11
A Portaria n.º 247-B/2000, de 8 de Maio, fixou as normas relativas aos exames médico e psicológico de
selecção a efectuar nos concursos de admissão a estas carreiras. Nestes o candidato será avaliado,
designadamente, atendendo à tabela de inaptidões apresentada em anexo à Portaria.
14
sobretudo ao pessoal da carreira de polícia municipal que cabe o exercício das funções
no terreno12.
A Lei prevê a transição de fiscais municipais para a carreira de polícia
municipal, bem como a transição de outro pessoal municipal. Naturalmente, exigem-se
requisitos suplementares para a realização desta transição, designadamente a nível de
resultados de exames psicológicos de selecção que importa realizar, robustez física,
habilitação com o 12.º ano ou equivalente, e frequência do curso de formação, que será
um curso especial, no caso dos fiscais municipais.
Em vários municípios a criação das polícias municipais determinou a extinção
da carreira de fiscal municipal, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 7.º. Foi o caso dos
municípios de Braga, de Lousada, de Sintra, de Trofa, de Vieira do Minho, ou de Vila
Nova de Poiares. Ao contrário, municípios como o de Viseu mantiveram nos quadros de
pessoal da autarquia a carreira de fiscal municipal, admitindo, todavia, a sua transição
para a carreira de polícia municipal.
A formação teórica dos elementos das carreiras de pessoal de polícia municipal
está a cargo do CEFA (Centro de Estudos e Formação Autárquica), no que respeita à
formação cívica e administrativa, e da PSP, quanto à formação policial, através da sua
Escola Prática, no caso da carreira de polícia municipal, e do Instituto Superior de
Ciências Policiais e Segurança Interna, para a carreira de técnico superior de polícia
municipal13.
Até hoje apenas tiveram lugar cursos no âmbito da carreira de polícia
municipal, que vêm tendo lugar nas instalações do CEFA, mesmo quando a formação é
da responsabilidade da PSP, excepto, naturalmente, a formação relativa à utilização da
arma de fogo14. O primeiro curso teve início em Outubro de 2000, encontrando-se
actualmente a decorrer o 8.º curso de formação.
12
Veja-se o Mapa II e o Mapa III dos anexos III e IV, respectivamente, do Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17
de Março, que estabelecem o conteúdo funcional destas carreiras.
13
Sobre o regime de estágio das carreiras de pessoal de polícia municipal veja-se os artigos 10.º e 12.º do
Decreto-Lei n.º 39/2000, de 17 de Março.
14
Embora esta decorra, quer nas instalações da Direcção do CEFA, em Coimbra, quer de forma
desconcentrada, em Lisboa e no Porto.
15
O período geral de formação de estágio, que dura um ano, integra, além da
formação teórica, um período de formação prática. Findo o curso de formação (de um
semestre, no caso da carreira de polícia municipal), com aproveitamento, o estágio
prático será desempenhado ao serviço da polícia municipal respectiva.
Apesar da alusão inicial que fizemos à confusão que o fardamento das polícias
municipais vai provocando, a verdade é que a lei define regras acerca do seu
fardamento, dos distintivos a exibir nos uniformes e nas viaturas (art. 7.º da Lei n.º
140/99), bem como regras relativas ao equipamento. A Portaria n.º 533/2000, de 1 de
Agosto, fixou o Regulamento de uniforme e equipamento do pessoal da carreira de
polícia municipal, que se encontram sumariamente descritos nos artigos 6.º a 12.º do
Decreto-Lei n.º 40/2000, de 17 de Março.
Os agentes de polícia municipal exercem funções uniformizados, sendo
portadores de cartão de identificação pessoal que certifica a sua qualidade sempre que
exigido.
A Lei define o seu equipamento, e fixa, de forma taxativa, os meios coercivos
cuja utilização é admitida: bastão curto (e respectiva pala de suporte)15 e arma de fogo
de defesa (e coldre), sendo esta de calibre 6,35 mm, não podendo o cano exceder 8 cm.
É expressamente proibido o uso de outros meios coercivos (art. 8.º, n.º 2, do DecretoLei n.º 40/2000, de 17 de Março). Os agentes de polícia municipal só podem deter e
usar arma de fogo quando estão em serviço, sendo esta disponibilizada pelo município,
e devendo ficar guardada em armeiro próprio.
O elenco dos meios coercivos feito pelos diplomas referidos levanta uma
dificuldade prática importante, que resulta não tanto da frequência da potencial
utilização do meio em causa, mas sobretudo das circunstâncias especialmente delicadas
em que a necessidade sua utilização se poderá colocar: referimo-nos à ausência de
previsão da possibilidade do uso de algemas por parte dos agentes das polícias
municipais. A possibilidade do seu uso pelas forças de segurança foi prevista por
normas jurídicas (v.g. a Portaria n.º 810/89, de 13 de Setembro), mas é também
admitida para serviços que não são caracterizados como forças de segurança: é o caso
dos guardas-nocturnos (Portaria n.º 394/99, de 29 de Maio, que estabelece os requisitos
15
Também considerado bastão de defesa, distinto do bastão longo, de ordem pública.
16
gerais e específicos de atribuição da licença para o exercício da actividade de guardanocturno, bem como para o exercício da sua actividade), bem como dos guardas
florestais (Portaria n.º 1026/98, de 12 de Dezembro, que aprova o regulamento de
Uniformes do Corpo Nacional de Guarda Florestal).
Outro equipamento previsto é o apito e o emissor-receptor portátil. Quanto ao
uso deste equipamento de transmissão e recepção para comunicação via rádio, o art. 11.º
do Decreto-Lei estabelece que a rede de rádio própria da polícia municipal estará
obrigatoriamente conectada com as redes de rádio locais das forças de segurança,
bombeiros e protecção civil.
As competências
A Lei n.º 140/99, de 28 de Agosto, é o instrumento jurídico definidor das
competências das polícias municipais de maior importância.
Ainda assim, assume um papel fundamental cada um dos regulamentos das
polícias municipais, pois a Lei admite que este determine, para o caso concreto de cada
município, quais as competências legalmente admitidas que pretende ver ser
efectivamente exercidas.
Da leitura dos vários regulamentos retira-se que nenhum dos municípios excluiu,
à partida, o exercício de qualquer das competências permitidas: quase todos se limitam a
transcrever o elenco legalmente estipulado. Contudo, alguns regulamentos destacam, em
artigos autónomos, o exercício de certo tipo de competências, ou esse relevo torna-se
evidente mediante a análise da organização interna de algumas polícias atrás
mencionada, que, v.g., reservam um serviço especial só para o trânsito.
Alguns dos municípios que sublinham no regulamento da polícia municipal o
exercício de certas competências, pretendendo pôr em relevo aspectos particulares da
actividade da polícia municipal, são: Braga, Boticas, Celorico da Beira, Cabeceiras de
Basto, Fafe, Gondomar, Marco de Canaveses e Vila Nova de Famalicão, cujos
regulamentos definem artigos relativos a competências específicas nos domínios da
circulação rodoviária e do estacionamento de veículos, bem como no domínio da
17
edificação e urbanização. Albufeira e Loulé destacam apenas este último aspecto,
enquanto Fafe reservou artigos especiais para aqueles dois núcleos de preocupações,
bem como para competências de defesa da natureza, do ambiente e dos recursos
cinegéticos.
Para fugir à enumeração exaustiva, nos mesmos termos referidos pela Lei, como
modo de abordar as competências das polícias municipais, optámos por estabelecer três
grandes distinções iniciais, procurando saber se as competências legalmente atribuídas
às polícias municipais poderão caber nessas categorias gerais.
Pretendemos aferir se do leque de poderes legalmente atribuídos às polícias
municipais constam competências de polícia judiciária, de polícia administrativa, e de
polícia de segurança. Traçaremos, para tal, uma breve distinção16.
Consideraremos, de forma muito sucinta, funções de polícia judiciária aquelas
que são desenvolvidas com o sentido de “colher notícias dos crimes e impedir quanto
possível as suas consequências, descobrir os seus agentes, e levar a cabo os actos
necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova” (art. 55.º, n.º 2, CPP).
Acerca da investigação criminal estabelece a respectiva lei de organização: “a
investigação criminal compreende o conjunto de diligências que, nos termos da lei
processual penal, visam averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes
e a sua responsabilidade, descobrir e recolher provas, no âmbito do processo” (art. 1.º da
Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto).
Nenhuma norma jurídica atribuiu aos agentes de polícia municipal a categoria de
órgãos de polícia criminal, não lhe competindo o exercício de funções sob a direcção e
na dependência funcional das autoridades judiciárias. Pelo contrário, a Lei n.º 140/99
chega mesmo a referir que os agentes das polícias municipais devem assegurar os meios
de prova “até à chegada do órgãos de polícia criminal competente”. Ora se o aguarda,
não o é…
16
Para aprofundar estas distinções pode consultar-se: CASTRO, Catarina Sarmento e, Competências dos
serviços de polícia municipal, CEFA, Coimbra, 2002, p. 31 e segs., em especial A questão das polícias
municipais, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, mas também ''Segurança e legalidade democrática'', Revista
da Guarda Nacional Republicana, Outubro-Dezembro 2000, p. 4 ss..
18
Isto mesmo é confirmado pela impossibilidade de as polícias municipais
procederem à identificação de suspeitos, isto é de “toda a pessoa relativamente à qual
exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele
participou ou se prepara para participar” (art. 1.º, n.º 1, alínea e), CPP), poder que o art.
250.º, CPP, atribuiu aos órgãos de polícia criminal: a lei apenas possibilita aos agentes
de polícia municipal a identificação de infractores, o que acontecerá, v.g., no âmbito das
contra-ordenações (art. 14, n.º 2, da Lei n.º 140/99).
Desta pequena resenha podemos concluir que do leque de poderes atribuídos às
polícias municipais não resulta a atribuição de quaisquer competências de polícia
judiciária.
Pelo contrário, as polícias municipais “são serviços especialmente vocacionados
para o exercício de funções de polícia administrativa” (art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º
140/99), visando a prevenção de perigos para um vasto conjunto de bens legalmente
tutelados17.
Este exercício traduz-se, essencialmente, na fiscalização do cumprimento das
normas regulamentares municipais e das normas de âmbito nacional ou regional cuja
competência de aplicação ou fiscalização caiba ao município (art. 3.º, n.º 1 alíneas a) e
b)).
Naturalmente, em virtude da ligação umbilical das polícias municipais com as
competências dos órgãos do município, os poderes destas polícias são em boa parte
determinados pelos diplomas que as atribuem, designadamente em matéria de
fiscalização.
Assim, v.g., quando, em 2002, o Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de Dezembro,
atribuiu às câmaras municipais competência em matéria de licenciamento e de
fiscalização de actividades diversas até então cometidas aos governos civis, as polícias
municipais passaram a ser o organismo especialmente vocacionado para fiscalizar as
actividades de guarda-nocturno, venda ambulante de lotarias, arrumador de automóveis,
realização de acampamentos ocasionais, exploração de máquinas automáticas,
mecânicas, eléctricas e electrónicas de diversão, realização de espectáculos desportivos
17
Destaque nosso.
19
e de divertimentos públicos nas vias, jardins e demais lugares públicos ao ar livre,
designadamente espectáculos e actividades ruidosas, venda de bilhetes para
espectáculos ou divertimentos públicos em agências ou postos de venda, realização de
fogueiras e queimadas, realização de leilões18.
A própria Lei n.º 140/99 faz referência a várias tarefas de polícia administrativa:
acções de polícia ambiental (designadamente de sensibilização), acções de polícia
mortuária, fiscalização de regulamentos nos domínios do estacionamento e do trânsito,
do urbanismo, da construção, da defesa dos recursos cinegéticos, do património cultural,
da natureza e do ambiente (art. 4.º, n.º 1)…
Associadas ao exercício de algumas destas funções de polícia administrativa
estão ainda a elaboração de autos de notícia na sequência da operação de fiscalização ou
a execução coerciva dos actos administrativos das autoridades municipais.
Além da atribuição legal de funções de polícia administrativo em sentido estrito,
a Lei n.º 140/99 permite às polícias municipais o exercício de algumas funções em
matéria de segurança, que têm como objectivo a prevenção de perigos para pessoas e
bens, com origem em comportamentos ilícitos violentos. São basicamente tarefas de
vigilância referidas a aspectos locais: vigilância nos transportes urbanos locais,
vigilância de espaços públicos ou abertos ao público, designadamente de áreas
circundantes de escolas, guarda de edifícios e equipamentos municipais (art. 3.º, n.º 2;
art. 4.º, n.º 1, alínea b)). Esta deve ser entendida como uma vigilância indiferenciada, de
prevenção generalizada, distinta da vigilância associada à investigação criminal.
Outro poder em matéria de segurança respeita à possibilidade de proceder à
detenção, em flagrante delito, de suspeitos de crime punível com pena de prisão19. A
detenção deverá ser seguida da entrega imediata do detido a autoridade judiciária ou
policial (art. 4.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 140/99). Com esta formulação, a lei pretende
18
A lei prevê que o licenciamento destas actividades fique a cargo da câmara, ou do seu presidente,
podendo, consoante os casos, delegar poderes nos vereadores, podendo estes subdelegar nos dirigentes
dos serviços, i.e., algumas destas competências de licenciamento podem vir a ser cometidas ao próprios
dirigentes das polícias municipais.
19
Nos termos do art. 256.º do CPP, considera-se flagrante delito “todo o crime que se está cometendo ou
se acabou de cometer”.
20
vedar a condução do detido às instalações da polícia municipal, obrigando à sua entrega,
v.g., no posto da GNR ou esquadra da PSP mais próxima20.
Alguns regulamentos de polícias municipais – é o caso do Regulamento da
Amadora e do Regulamento de Vila Nova de Gaia – contêm disposições acerca do
tratamento de detidos. Estas disposições apenas poderão ser compreendidas se
vocacionadas para o tratamento no momento que medeia a detenção em flagrante delito
e a condução do detido às forças de segurança.
Chegados à conclusão de que as polícias municipais, não desempenhando tarefas
de polícia judiciária, têm, todavia, a seu cargo, fundamentalmente, o exercício de
competências em matéria de polícia administrativa, mas também algumas tarefas em
matéria de polícia de segurança, cumpre apurar, em jeito de conclusão, da
admissibilidade desta duas valências perante a abertura constitucionalmente
estabelecida a propósito das polícias municipais.
À luz da Constituição, “A polícia tem por funções defender a legalidade
democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos” (art. 272.º, n.º 1).
Relativamente às polícias municipais acrescenta o art. 237.º, n.º 3: “As polícias
municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das
comunidades locais”.
Estas duas disposições dão cobertura constitucional ao desenho legal de
competências atribuídas às polícias municipais.
O art. 237.º, n.º 3, permite o exercício descentralizado de funções relativas à
segurança (a tranquilidade pública e a protecção das comunidades locais), quando estas
possam ter alguma especificidade local.
O n.º 1 do art. 272.º da CRP é hoje, como já o era antes da introdução, em 1997,
da fórmula relativa às funções em matéria de segurança, o fundamento constitucional
20
Não estando as polícias municipais autorizadas a conduzir às instalações municipais os detidos, sendolhes vedada a utilização de espaços físicos de detenção próprios, não se lhes aplica o Regulamento das
condições materiais de detenção em estabelecimentos policiais aprovado por Despacho Ministerial de 20
de Abril de 1999, e publicado no Diário da República II, n.º 102, de 3 de Maio de 1999. Verifica-se, deste
modo, serem irregulares as instalações da polícia municipal que prevêem a instalação de uma área de
detenção.
21
para o exercício de funções de polícia administrativa por parte das polícias municipais,
quando estabelece que “a polícia tem por funções defender a legalidade democrática”.
O mesmo art. 272.º, n.º 1, da CRP, considera como funções da polícia a garantia
da segurança interna e dos direitos dos cidadãos. Por isso, a actuação das polícias
municipais, terá como objectivo garantir os direitos dos cidadãos.
Deverá considerar-se que em virtude da referência feita pelo n.º 1 do art. 272.º, à
garantia da segurança interna, toda e qualquer tarefa de segurança interna poderia estar
sob a responsabilidade das polícias municipais? Claro que não: afinal, o objectivo da
consagração de uma referência às polícias municipais no art. 237.º, n.º 3, da CRP, terá
sido duplo: atribuir funções em matéria de segurança às polícias municipais, mas,
simultaneamente, deixar claro que nem todas as tarefas de segurança interna lhe eram
admitidas: apenas as que respeitassem à tranquilidade pública e protecção das
comunidades locais. Isso mesmo confirmou a Lei n.º 140/99, quando estabeleceu que
“aos municípios é vedado o exercício das actividades previstas na legislação sobre
segurança interna e nas leis orgânicas das forças de segurança, sem prejuízo do disposto
na presente lei”21. As tarefas de garantia da tranquilidade pública e da protecção das
comunidades locais constituem apenas uma pequena parcela das tarefas de segurança
interna cometidas às forças de segurança.
O exercício de poderes de autoridade por parte dos agentes das polícias
municipais são um dos pontos de maior interesse prático. Note-se que não se pretende,
com esta ideia, defender que o exercício de poderes de polícia implique, em si mesmo,
para ser considerado como tal, o uso de força22. Mas parte-se de um ponto de vista
prático fundamental: a possibilidade do exercício de poderes de autoridade é um
mecanismo de que estas poderão fazer uso, dentro de determinados condicionalismos,
para garantia dos direitos dos cidadãos.
21
Destaque nosso.
Sobre o uso da força: MAXIMIANO, António Henrique Rodrigues, Os pârametros jurídicos do uso da
força, Biblioteca Museu República e Resistência, Lisboa, 1996; CLEMENTE, Pedro José Lopes, Da
polícia de ordem pública, Governo Civil do Distrito de Lisboa, 1998; CASTRO, Catarina Sarmento e,
Competências dos Serviços de Polícia Municipal, CEFA, 2002; Idem, A questão das polícias municipais,
cit.
22
22
O art. 14.º da Lei n.º 140/99, de 28 de Agosto, atribui aos agentes de polícia
municipal o poder de identificação de infractores (n.º 2). Já vimos que não se trata de
identificar suspeitos de crimes, mas do exercício de um poder que permite aos agentes
de polícia municipal exercer os seus poderes de fiscalização.
Para reforçar este poder de identificação, mas também com outras
operacionalidades práticas, o mesmo artigo (n.º 1) tipifica, em abstracto, um crime de
desobediência – que é, como se sabe, punível com pena de prisão, nos termos do art.
348.º do CP – no qual incorrerá todo aquele que falte à obediência devida a ordem ou
mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados pelo agente de polícia
municipal, previsão também constante do n.º 2 do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/2000.
O uso de meios coercivos, designadamente de arma de fogo, foi previsto no art.
16.º da Lei n.º 140/99, e em especial, no art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/2000, de 17 de
Março. A sua utilização está condicionada, só podendo ser usados “para repelir uma
agressão ilícita, actual ou iminente de interesses ou direitos juridicamente protegidos,
em defesa própria ou de terceiros”, ou “para vencer a resistência à execução de um
serviço no exercício das suas funções, depois de ter feito aos resistentes intimação
formal de obediência e esgotados que tenham sido quaisquer outros meios para o
conseguir”.
Perante o quadro traçado, poderemos afirmar que as polícias municipais são
forças de segurança?
Apesar de constitucional e legalmente legitimadas para o exercício de algumas
funções em matéria de segurança, essa prerrogativa não faz delas forças de segurança.
Por razões substanciais, porque as funções de segurança representam uma
pequena parte das incumbências atribuídas às polícias municipais, sendo estas “serviços
municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia
administrativa” (art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 140/99), ao contrário do que acontece com as
forças de segurança, que podendo realizar tarefas de polícia administrativa, pretende-se
que estejam mais vocacionadas para as tarefas de segurança. Foi, aliás, intuito da
criação das polícias municipais, o potenciar a criação de serviços que podendo tomar a
seu cargo tarefas de fiscalização em matéria de polícia administrativa, pudessem libertar
23
as forças de segurança para o exercício das funções de segurança, e até de investigação
criminal, para que estão particularmente vocacionadas
Mas também por razões formais: a Lei de segurança interna não integrou no seu
elenco de forças e serviços de segurança as polícias municipais, e a Lei n.º 140/99, em
diversas ocasiões, distingue o tratamento das polícias municipais do das forças de
segurança, considerando, v.g., que o armamento e o fardamento deverão ser distintos
(art. 8.º, n.º 4; art. 7.º, n.º 2). Por diversas vezes são feitas pela Lei referências às forças
de segurança das quais se pode retirar a não inclusão das polícias municipais nesta
categoria: as polícias municipais cooperam com as forças de segurança; a sua rede de
rádio estará conectada com a das forças de segurança… Mas também a Constituição
lhes dá tratamento distinto: o regime das polícias municipais integra as matérias de
reserva relativa da AR (art. 165.º, n.º 1, alínea aa), da CRP), enquanto o regime das
forças de segurança faz parte do núcleo de matérias da competência absoluta da AR (art.
164.º, alínea u), da CRP). Decisivo parece ser também o argumento de que o art. 272.º,
n.º 4, da CRP, exige que o regime organizatório das forças de segurança seja único para
todo o território nacional: as polícias municipais não têm, por natureza, o mesmo regime
organizatório, como, aliás, acima referimos.
A questão das polícias municipais
A verdadeira questão das polícias municipais é da sua relação com as outras
polícias.
Não restam dúvidas de que as polícias municipais desempenham funções de
cariz meramente administrativo, mas também funções que tocam aspectos de polícia de
segurança.
Quanto às primeiras, a sua atribuição às polícias municipais é feita pelo
legislador dentro de um espírito genuinamente municipal: as polícias municipais
zelarão, nesse ponto, pelos interesses próprios do município: e por isso controlam o
respectivo trânsito, fiscalizam o estacionamento, verificam o cumprimento de normas
relativas ao urbanismo, etc.
24
É no exercício de tarefas de segurança que uma referência a interesses próprios e
exclusivos do município – que são os interesses que prosseguem as pessoas colectivas
que compõem a Administração Autónoma – não pode fazer sentido. Mesmo quando se
considere que as polícias municipais desempenham funções de segurança de forma
territorializada, em ligação com o seu espaço municipal, em circunstâncias que
fundamentalmente importam ao município.
A Constituição parece não ter esquecido isso mesmo quando impõe que o
exercício de funções de segurança seja feito mediante cooperação: “as polícias
municipais cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das
comunidades locais” (art. 237.º, n.º 3, da CRP).
Por cooperação deve entender-se uma actuação em situação igualitária, em que
ambas as entidades têm interesses concorrentes/simultâneos a defender, mas que a
ambas respeitam. Procura-se a harmonização dos interesses municipais com os
interesses supramunicipais próprios de cada uma das entidades. A cooperação determina
que se procure evitar contradições, incompatibilidades, interferências que possam
prejudicar um resultado comum23.
A criação das polícias municipais não resulta num enfraquecimento das funções
de segurança dos corpos de âmbito nacional. Não pode entender-se a atribuição de
funções em matéria de segurança aos municípios como mais um exemplo onde se
verificaria a aplicação do princípio da subsidiariedade previsto no art. 6.º da CRP, que
ditaria que os municípios usufruíssem de um campo de actuação próprio e exclusivo,
agora em matéria de segurança interna, afastando as forças de segurança.
Foi intenção do legislador da Revisão consagrar a especialidade das polícias
municipais relativamente às forças de segurança - é essa a sua razão de ser -, afastando
neste campo o princípio da subsidiariedade24. Se assim não fosse, não teria valido a
pena referi-las no texto constitucional e, menos ainda, inserir a sua previsão em âmbito
diferente das demais polícias. A razão prática da criação das polícias municipais foi
desde logo libertar as forças nacionais de polícia para as tarefas de segurança, que mais
as caracterizam, sendo sua verdadeira vocação, reservando-as para as tarefas relativas à
23
24
CASTRO, Catarina Sarmento e, Competências dos serviços de polícia municipal, cit., p. 81.
Idem, A questão das polícias municipais, cit.
25
segurança, em especial para as questões da prevenção da criminalidade25. Às polícias
municipais deve a lei distribuir tarefas de polícia administrativa e algumas especiais
tarefas de segurança. As primeiras são, como vimos, exercidas numa perspectiva de
autonomia mais alargada, exigindo-se relativamente às restantes o exercício em
cooperação com as forças de segurança. As diferenças substanciais entre as funções de
ambas já justificaram novas distribuições de competências.
Ao lado da delimitação funcional de poderes que a Lei vai estabelecendo, outra
delimitação, a orgânica, pode ter um papel crucial no desenrolar da cooperação entre
polícias municipais e forças de segurança. Os conselhos municipais de segurança podem
desempenhar uma função relevante enquanto ponto de encontro entre os diferentes
agentes em matéria de segurança, sejam eles as polícias ou outros agentes com um papel
relevante a nível de inserção social. Previstos pela Lei n.º 33/98, de 18 de Julho, estas
entidades de âmbito municipal com funções consultivas, de articulação, de informação
recíproca e cooperação, devem contribuir efectivamente para o aprofundamento do
conhecimento da situação de segurança no município, formular propostas de prevenção
ou actuação.
Sem prejuízo da necessária cooperação no exercício de tarefas para responder a
interesses coexistentes de entidades municipais e nacionais, torna-se necessário definir
uma coordenação que permita repartir tarefas, sem pôr em causa o efectivo exercício
destas. Assim, em matéria de coordenação, a Lei que estabelece o regime e forma de
criação das polícias municipais determinou que “A aplicação da presente lei não
prejudica o exercício de quaisquer competências das forças de segurança” (art. 6.º, n.º 3,
da Lei n.º 140/99).
O estatuto do pessoal de polícia municipal
25
Note-se, v.g., que a nova Lei de organização criminal - Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto, alterada pelo
Decreto-Lei n.º 305/2002, de 13 de Dezembro, publicado no Diário da República, I Série A, n.º 288, p.
7822-7823 –, que reforça as competências da GNR e da PSP na matéria, surge na sequência da criação
das polícias municipais.
26
A Lei n.º 140/99 submete os agentes de polícia municipal ao estatuto geral dos
funcionários da administração local (art. 19.º, n.º 1). Admite, contudo, que este possa
ficar sujeito a especificidades decorrentes do exercício das suas funções. A questão que
importa resolver é a de saber se estas especificidades comportarão a possibilidade de
estabelecer as restrições de direitos previstas para elementos de outras polícias, mais
concretamente, as previstas no art. 270.º da CRP, que podem ser determinadas
relativamente aos agentes dos serviços e forças de segurança.
O art. 270.º, da CRP, na sua redacção actual, determina que “a lei pode
estabelecer, na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções, restrições
ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição
colectiva e à capacidade eleitoral passiva por militares e agentes militarizados dos
quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e das
forças de segurança e, no caso destas, a não admissão do direito à greve, mesmo quando
reconhecido o direito de associação sindical”.
Não deve considerar-se que abertura constitucional à imposição de restrições aos
direitos dos elementos mencionados no art. 270.º seja aplicável aos elementos das
polícias municipais.
Desde logo pelo próprio elemento literal: são referidos no art. 270.º, os
“militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem
como por agentes dos serviços e das forças de segurança”. Os agentes de polícia
municipal não são enquadráveis em nenhuma destas categorias. É também significativo
que este art. 270.º tenha sofrido alterações na revisão constitucional de 1997, a mesma
que introduziu uma referência às polícias municipais no art. 237.º, sem que a nova
redacção lhes tenha feito qualquer menção. A alteração ao artigo 270.º, em 1997, e
depois, em 2001, pretendeu, aliás, clarificar que o aí disposto também se aplica aos
agentes da PSP.
Mas é sobretudo na essência das funções desempenhadas pelas polícias
municipais que deve procurar-se a resposta à questão. Ao levarem a cabo,
fundamentalmente, funções de polícia administrativa, muitas delas anteriormente
atribuídas a fiscais municipais, as restrições destes direitos, quando impostas aos
agentes de polícia municipal, sempre deveriam considerar-se desproporcionadas.
27
Assim, não deve considerar-se que as “especificidades” decorrentes das suas
funções a que se refere o art. 19.º, da Lei n.º 140/99, possam comportar restrições aos
direitos fundamentais referidos no art. 270.º da CRP, ou a quaisquer outros direitos
fundamentais.
Accountability
Importará ainda, em matéria de polícias municipais, reflectir acerca do controlo
da legalidade da sua actuação. A propósito da integração das polícias municipais na
Administração autónoma de tipo autárquico foi já feita referência ao exercício de
poderes de tutela por parte da Administração estadual relativamente às polícias
municipais. Quais os organismos a que competirá exercê-la, é o que deverá agora ser
resolvido.
No quadro do regime anteriormente previsto pela Lei n.º 32/94, de 29 de Agosto,
cabia fundamentalmente à Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT) e à
Inspecção-Geral de Finanças (IGF) o exercício da tutela administrativa por parte da
Administração estadual relativamente aos serviços de polícia municipal.
No quadro das actuais polícias municipais, traçado pela Lei n.º 140/99, estas
Inspecções-Gerais mantêm competências: o art. 9.º, n.º 1, refere que “A verificação do
cumprimento das leis e dos regulamentos por parte dos municípios, em matéria de
organização e funcionamento das respectivas polícias municipais, compete aos
membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e das autarquias locais”.
Esta verificação relativa à organização e funcionamento de cada polícia municipal
realizar-se-á por intermédio das respectivas Inspecções-Gerais.
O n.º 2 deste art. 9.º da Lei n.º 140/99 abre as portas aos poderes inspectivos de
uma outra entidade, a Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI), quando
estabelece: “Quando existam fundados indícios de desrespeito pelos direitos, liberdades
e garantias por parte das polícias municipais, a verificação da legalidade dos actos é
ordenada pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna
e das autarquias locais que, mediante despacho conjunto, determinam a realização do
inquérito ou sindicância”. Como sabemos, o Decreto-Lei n.º 227/95, de 11 de Setembro,
28
que cria a IGAI, instituiu um serviço especialmente vocacionado para o controlo da
legalidade e para a defesa dos direitos dos cidadãos. Trata-se, como refere o DecretoLei n.º 154/96, de 31 de Agosto de 1996, que alterou o Decreto-Lei n.º 227/95, de um
“mecanismo operacional de controlo e fiscalização da legalidade num dos domínios
seguramente mais delicados da actuação do Estado de direito democrático, isto é, no
domínio do exercício dos poderes de autoridade e do uso legítimo de meios de coerção”
que podem conflituar com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
As polícias municipais não constam da previsão legal que define os organismos
sujeitos aos poderes da IGAI (art. 2.º, n.º 2). O que é natural: quando foi criada a IGAI,
existiam apenas os serviços de polícia municipal, com vocação de polícia
administrativa.
Mas a instituição de polícias municipais, ao abrigo de nova previsão
constitucional e legal, com poderes que extravasam os meros poderes de polícia
administrativa e que justificam, por essa razão, a utilização de meios coercivos distintos
que criam condições para que possa ter lugar o desrespeito de direitos, liberdades e
garantias, deve determinar a sua inclusão no objecto possível de actuação da IGAI.
O art. 9.º, da Lei n.º 140/99, atribui ao Ministro da Administração Interna e ao
Ministro responsável pelas autarquias locais poderes de tutela partilhada em matéria de
desrespeito de direitos, liberdades e garantias, determinando que fique na dependência
de um despacho conjunto a decisão da intervenção tutelar (v.g. do inquérito ou
sindicância). Não parece que possa a IGAI, neste momento, por sua iniciativa, proceder
a fiscalizações não superiormente determinadas. E mesmo a concreta definição da IGAI
como organismo especializado com poderes de inspecção determinado pelos ministros
supramencionados, deveria obrigar à correspondente alteração das normas que mais
directamente se referem aos poderes de tutela, desde logo, o Decreto-Lei n.º 227/95, que
criou a IGAI, mas também a Lei de organização e funcionamento do MAI, na qual se
estabelecem os poderes de tutela do Ministro26. O próprio art. 9.º da Lei n.º 140/99
deveria ser clarificado.
26
Para maiores desenvolvimentos pode consultar-se a Informação acerca das polícias municipais (As
polícias municipais; enquadramento da actividade inspectiva), do então inspector superior principal da
IGAI Alberto Augusto A. de Oliveira, bem como o Parecer do técnico jurista da IGAI Eurico João Silva
(Polícia municipal – fundados indícios de desrespeito por direito, liberdades e garantias), disponíveis em
www.igai.pt.
29
Ainda que podendo a IGAI dispor de competências de fiscalização relativamente
às polícias municipais, a especial dependência hierárquica, e consequentemente
disciplinar, das polícias municipais (que se estabelece com o presidente da câmara,
enquanto órgão da Administração autónoma e não com o Governo) deve determinar que
não deva a IGAI exercer poderes com relevância disciplinar directa, como proceder à
instrução de processos disciplinares a agentes das polícias municipais ou propor a sua
instrução, muito embora a matéria apurada pela IGAI possa vir a ser utilizada pela
Administração autónoma em processos disciplinares.
A Inspecção-Geral da Administração Interna terá um papel importante a
desempenhar. Será um papel mais modesto do que aquele que lhe cumpre realizar junto
das forças de segurança – basta pensarmos, v.g., que as polícias municipais não podem,
como vimos, conduzir detidos às suas instalações, pelo que a fiscalização das condições
materiais de detenção reduzir-se-á ao mínimo -, mas será, ainda assim,
importantíssimo. O uso de meios coercivos por parte das polícias municipais,
designadamente de arma de fogo, assim o justificará.
A revisão da Lei n.º 140/99, de 28 de Agosto
De parte do que foi dito resulta a necessidade de proceder a algumas alterações à
lei das polícias municipais, que possam contribuir para clarificar o seu regime.
Destacamos o prosaico aspecto da possibilidade da utilização de algemas, ou a
clarificação dos poderes de tutela.
À necessidade de algumas adaptações no regime das polícias municipais acresce
a questão respeitante à situação especial das polícias municipais de Lisboa e do Porto,
que nos termos do art. 22.º da Lei n.º 140/99, beneficiam de um regime especial
transitório por um período não superior a 5 anos. No Verão de 2004 completar-se-á esse
período. Relembre-se que um regime especial para estas polícias estava já previsto
durante a vigência da Lei n.º 32/94, que fixava o quadro jurídico dos serviços
municipais de polícia, e que já então este diploma previa, no art. 13.º, um prazo de
30
conversão dos corpos de polícia de Lisboa e do Porto27. Estaremos perante um caso em
que o regime transitório se tornou definitivo?
Conclusão
Qualquer texto escrito deve ter uma conclusão. Mas esta é, premeditadamente,
uma narrativa deixada em aberto. Encerra-se o que acabou. No caso das polícias
municipais, estamos agora a assistir à lenta conquista do seu espaço próprio.
Um espaço que em virtude da sua especial territorialização, bem como do
carácter essencialmente preventivo da sua actuação, pode ser de solidariedade e
proximidade ao cidadão.
À pergunta que nos primeiros dias mais vezes colocam as mulheres e os homens
que um dia escolheram este caminho – “o que pensam de nós as outras polícias?” –
saberá este auditório responder, bem melhor do que ninguém. Posso apenas
confidenciar aqui o conselho com que tento apaziguar os primeiros tempos de incerteza,
designadamente em matéria de gestão de competências comuns: “diálogo e bom senso.
Diálogo e bom senso, é o que é preciso”. Estou certa que todos juntos cumprirão aquele
que é, afinal, o seu desígnio comum constitucionalmente traçado: o exercício dos seus
poderes, funcionalizado à garantia dos direitos dos cidadãos.
27
Mediante integração no corpo de polícia municipal ou pelo regresso à entidade requisitada (art. 13.º, n.º
2).
31
Bibliografia sobre polícias municipais
Em português:
CASTRO, Catarina Sarmento e, Competências dos serviços de polícia municipal,
CEFA, Coimbra, 2002.
CASTRO, Catarina Sarmento e, A questão das polícias municipais, Coimbra Editora,
Coimbra, 2003.
CLEMENTE, Pedro José Lopes, ''A polícia municipal em Portugal'', Polícia
Portuguesa, n.º 127, Janeiro/Fevereiro 2001, p. 2 ss..
COIMBRA, David Rosa, ''O processo de criação e implementação das polícias
municipais'', Revista de Administração Local, n.º 172, Julho-Agosto, 1999, p. 503 ss..
Noutras línguas:
ALEMANNO, Giuseppe Salvatore, La polizia local, Cel Editrice, Bergamo, 1996.
BARCELONA LLOP, Javier, ''Policías locales y competencias municipales en materia
de seguridad y policía'', Revista Espanhola de Derecho Administrativo, n.º 95, JulhoSetembro 1997, p. 365 ss..
BARCELONA LLOP, Javier, ''Sobre algunos aspectos de la ordenación jurídica de los
cuerpos locales de policía'', Administración (Ciberevista de Derecho Administrativo),
n.º 18, Abril-Junho, 2001.
BATSELÉ, Didier, La loi du 11 février 1986 sur la police communale, Editions
Nemesis, Bruxelas, 1989
BLOCK, Maurice, ''La Police et L’Autorité Municipale'', Revue Politique et
Parlementaire, Ano I, Vol. I, 1894, p. 353 ss..
BON, Pierre, ''Les lois de décentralisation et la police locale'', in MODERNE, Frank
(Org.), Les Nouvelles Competences Locales, Economica, Paris, 1985, p. 353 ss..
BON, Pierre, ''La Police Municipale'', Collectivités Territoriales (Dir. Francis-Paul
Bénoit), Vol. III, p. 2201-1 ss..
BRUNEAU, Pierre, Le maire, autorité de police, Delmas, Paris, 1995.
32
CHAMBRON, Nicole, ''Les polices municipales en France'', Cahiers de la Sécurité
Intérieure, n.º 16, 2.º trimestre 1994, p. 48 ss..
CHAPONNEAUX, Françoise / GIRAULT, Pascal / RICHARD, Évence, La police
Municipale, Éditions Imprimerie Nationale, Paris, 1999.
DE VALKENEER, Christian, ''Les relations de la police avec les autorités locales: la
décentralisation policière en Belgique'', Les Cahiers de la Sécurité Intérieure, n.º 14,
Agosto-Outubro de 1993, p. 67 ss..
DIEZ-PICAZO, Luís Maria, ''Policía Local'', in MUÑOZ MACHADO (Org.), Tratado
de Derecho Administrativo Civitas, Madrid, 1988, p. 1433 ss..
ENTRENA CUESTA, Rafael, ''Limites de la actividad de policía municipal'', Revista de
Estudios de la Vida Local, Vol. 21, 1962, p. 802 ss..
MALLO, Francisco López-Nieto y, La Policía Municipal, 2.ª Edição, Abella, Madrid,
1998.
MANGIAMELI, Stelio, ''La polizia locale urbana e rurale: materia autonoma o potere
accessorio e instrumentale?'', Giurisprudenza Costituzionale, Ano XLI, n.º 1, JaneiroFevereiro 1996, p. 457 ss..
MARIANI, Marco, Manuale di tecniche operative per la polizia municipale, Laurus
Robuffo, Roma, 1997.
MATTARELLI, Luciano/ GIANNICOLA, Dario, La Polizia Municipale, Egaf
Didattica, Rimini, 1997.
MOR, Gianfranco, ''Policia local'', Documentación Administrativa, n.º 191, JulhoSetembo 1981, p. 445 ss..
MOSCATO, Eleonora, PORTA, Diego, Manuale di Polizia Municipale, 6.ª Edição,
Edizioni CieRre, Roma, 1998.
PADULA, Silvio, Polizia Municipale, 2.ª Edição, Laurus Robuffo, Roma, 1998.
PIAN, Francis, Connaître les pouvoirs de police du maire, Les éditions de l'atelier,
Paris, 1996.
PICARD, Étienne, ''Collectivités territoriales et exercice de la police'', Cahiers de la
Sécurité Intérieure, n.º 16, 2.º trimestre 1994, p.61 ss..
PIELOW,
Johann-Christian,
Autonomía
Local
in
Spanien
Selbstverwaltung in Deutschland, Verlag Vahlen, Munique, 1993.
33
und
Kommunale
PIELOW,
Johann-Christian,
Autonomía
Local
in
Spanien
und
Kommunale
Selbstverwaltung in Deutschland, Verlag Vahlen, Munique, 1993.
RICHIER, Daniel, Le maire et la police municipale, Litec, Paris, 1994.
SAYOUS, Jean-Louis, ''Le statut juridique des polices municipales en France'', Cahiers
de la Sécurité Intérieure, n.º 16, 2.º trimestre 1994, p. 72 ss..
TEITGEN, Pierre-Henri, La Police Municipale, Librairie du Recueil Sirey, Paris, 1934.
VIGNOLA, Henri-Paul, ''La police, un service municipal comme les autres'',
Criminologie, Vol. XVIII, n.º 1, 1984, p. 127 ss..
VOGEL, Marie, ''Des polices municipales à la police nationale: les limites d'une
interprétation'', Cahiers de la Sécurité Intérieure, n.º 16, 2.º trimestre 1994, p. 82 ss..
34
Download

O regime jurídico das polícias municipais