A Comunicação entre o Popular e o Massivo na Romaria do Santuário de São Severino dos Ramos Mariana Mesquita e Virgínia Sá Barreto* Neste texto, queremos desenvolver algumas reflexões relativas à comunicação na romaria ao Santuário de São Severino dos Ramos, em Paudalho, interior de Pernambuco, com o objetivo de apontar interações entre o popular e o massivo, tomando como base os dados obtidos em estudo exploratório1.Como referência básica adotaremos a teoria da indissociabilidade entre cultura e comunicação, desenvolvida por estudiosos latino-americanos como Néstor Canclini e Jesús MartínBarbero. Nos limites das atuais condições de nosso estudo e da coleta primária de dados que realizamos, pretendemos, essencialmente, perceber as inter-relações entre o massivo e o popular na romaria em São Severino dos Ramos. Em nossa tentativa de observar essa realidade, utilizamos como técnica a observação etnográfica e entrevista centrada - descrita por Haguette2 como sendo aquela onde o entrevistador, dentro de certas hipóteses e a partir de certos temas, deixa o entrevistado descrever livremente sua experiência a partir do assunto investigado. Por meios dessas técnicas de pesquisa, pudemos coletar dados que nos permitiram perceber as interações entre os elementos massivos e populares materializados no espaço físico da romaria e dados dessa inter-relação na vivência de comunicação religiosa dos romeiros. Assim sendo, é importante salientar que o que nos interessa aqui não é coletar objetos de uma manifestação religiosa para depois simplesmente descrevê-los, mas perceber as imbricações do processo da * Mestrandas em Comunicação Rural no Curso de Mestrado em Administração Rural e Comunicação Rural da Universidade Federal Rural de Pernambuco (CMARCR-UFRPE). Mariana Mesquita é jornalista e Virgínia Sá Barreto é professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. Endereços para contato: [email protected] e [email protected] 1 Estudo exploratório realizado por nós como exercício da disciplina Folkcomunicação, ministrada pelo Prof. Roberto Benjamin, no segundo semestre de 1997, no CMARCR-UFRPE. Os objetivos deste trabalho eram conhecer e descrever as formas simbólicas, religiosas e de comunicação presentes no espaço da pesquisa. 2 HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1987. P.77 comunicação entre massivo e popular que têm lugar no santuário. Pois, concordamos com Canclini, quando critica a concepção reducionista dos estudos culturais que se limitam à coleção e ‘preservação’ de objetos, muitas vezes de forma desvinculada de seu contexto original.3 A busca de uma perspectiva mais ampla para os estudos de culturas populares tem uma história. Nas décadas de 60 e 70, os teóricos ainda não levavam em conta a capacidade de réplica e autonomia dos componentes dessas culturas. Ao tratar das relações entre o massivo e o popular, utilizavam termos como ‘estratégias de dominação’ e ‘aparelhos ideológicos’, enxergando a relação entre as pessoas, objetos e espaços sociais como um simples lugar-pretexto para as ‘manipulações capitalistas’. Até a década de 80, portanto, analisar a cultura popular equivalia a descrever tais ‘estratégias de dominação’. Foi quando autores como Martín-Barbero e Canclini, com base nos estudos de hegemonia de Antonio Gramsci, construíram um referencial teórico que descarta a simplificação de que o massivo seria um lugar de negação do popular, substituindo os mecanismos de dominação/imposição pelos de hegemonia/consenso. O conceito de hegemonia, chave dessa mudança de concepção, compreende “un proceso de dirección política y ideológica en el que una clase o sector logra una apropiación preferencial de las instancias de poder en alianza com otras clases, admitiendo espacios donde los grupos subalternos desarrollan prácticas independientes y no siempre ‘funcionales’ para la reproducción del sistema”4. A partir desse conceito, as relações sociais passam a ser pensadas como sendo uma luta entre poderes que não pertencem a classes ou instituições absolutamente verticais. Com base na perspectiva gramsciana, Canclini redefine o conceito de cultura popular, tendo em vista aspectos como produção, circulação e consumo, deixando de lado enfoques reducionistas que a compreendem como ‘expressão da personalidade de um povo’, para compreendê-la como produto da interação das relações sociais, assim sendo, na perspectiva comunicacional: As culturas populares (termo que achamos mais adequado do que a cultura popular) se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores 3 CANCLINI, Néstor García. “Ni Folklorico ni Masivo: Que és lo Popular?” Dialogos de la Comunicación n. 17. Lima: FELAFACS, junho de 1987.P. 44. 4 CANCLINI, Néstor García. “Cultura Transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la investigación”. In CANCLINI, Néstor García e RONCAGLIOLO, Rafael (org). Cultura transnacional y culturas populares. Lima: IPAL, 1988. P.22. subalternos, e pela compreensão, reprodução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida5. Entendendo cultura como sendo o conjunto de processos simbólicos através dos quais se compreende, reproduz e transforma a estrutura social, a cultura popular seria estabelecida a partir da hegemonia, como fato e não como essência, como posição relacional e não substância. Já a cultura massiva seria uma modalidade do desenvolvimento das classes populares dentro de uma sociedade de massas, ou seja, “la forma que adoptan, estructuralmente, las relaciones sociales en una sociedad en la que todo se ha modificado: el mercado de trabajo, los procesos productivos y el diseño de los objectos, incluso las luchas populares”6. De massa são o sistema educativo, as formas de representação, de participação política, a organização das práticas religiosas, os modelos de consumo e de uso do espaço. E de massa é a cultura popular, quando vivencia as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão como no que as novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. Assim sendo, ou deixa-se de pensar a vigência cultural do popular ou, se ele ainda tem sentido, será não em termos de exterioridade resguardada, mas em sua imbricação conflitiva com o massivo7. Faz-se necessário, então, descobrir os papéis que o massivo assume na produção e reprodução da hegemonia, e no que estes papéis se diferenciam dos que as culturas populares realizam, como ocorre a luta pela hegemonia na época da cultura massiva, e como pode-se reivindicar os interesses populares não mais contra a cultura massiva, mas dentro dela8. Assim, cultura popular e massiva não serão idéias estanques na nossa reflexão. Elas se inter-relacionam e não são “puras”, pois se formam numa relação de embates e consenso para a consecução da hegemonia. Hibridização e consumo cultural: categorias de análise para a relação entre o massivo e popular em manifestações religiosas 5 CANCLINI, Néstor García. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. P. 42. 6 CANCLINI, Néstor García. “Cultura Transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la investigación”. Op. cit. p.40. 7 Vide MARTÍN-BARBERO, Jésus. De los medios a las mediaciones: Comunicación, Cultura y Hegemonía. Naucalpán: Gustavo Gilli de México, 1993, p.248. 8 Vide CANCLINI, Néstor García. Culturas hibridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Sudamericana, 1995, p. 283. Em consonância com essa visão que descarta o isolamento e, portanto, a imutabilidade das culturas populares, tomaremos o fenômenos religiosos na concepção de Eliade, quando admite que Éverdade não existirem fenômenos religiosos ‘puros’, assim como não há fenômeno única e exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana, é também, de fato uma coisa social, lingüistica e econômica - pois não podermos conceber o homem para além da linguagem e da vida coletiva.9 Com efeito, perceberemos o fenômeno religioso como parte da vida social, indissociável da comunicação e integrante de práticas culturais mais amplas. Neste sentido, analisaremos os fenômenos religiosos imbricados à comunicação, sem dissociar seus aspectos sagrados e profanos, míticos, de relação social e de vivência cultural. Assim, observaremos os fenômenos religiosos em sua conformação de mesclas de diversos componentes culturais, ou seja, na sua hibridez cultural. Canclini, preocupado em compreender as manifestações culturais advindas da transnacionalização das culturas, como os processos em que o culto, o popular e o massivo se inter-relacionam, chegou ao conceito de hibridização, um recurso explicativo para entender estas interações complexas e analisar as manifestações que brotam do cruzamento entre culturas, ou em suas margens: Mi propósito ha sido elaborar la noción de hibridización como concepto social.(...) encontré en este término mayor capacidad de abarcar diversas mezclas interculturales que com el de mestizaje, limitado a las que ocurren entre razas, o sincretismo, fórmula referida casi siempre a fusiones religiosas o de movimientos simbólicos tradicionales. Pensé que necesitábamos una palavra más versátil para dar cuenta tanto de esas mezclas ‘clásicas’ como los entrelazamientos entre o tradicional y lo modeno, y entre lo culto, lo popular y lo masivo. 10 Assim, utilizaremos esse recurso explicativo para compreendermos as interações entre o massivo e o popular no santuário. Outro conceito que adotaremos em nossas reflexõesé o de consumo, visto por Canclini como sendo “el lugar en el que los conflitos entre clases, originados por la desigual participación en la estructura produtiva, se continúan a propósito de la distribuición de los bienes y la 9 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993,p-1. 10 CANCLINI, Néstor García. “Culturas Híbridas Y Estrategias Comunicacionales”. Seminario ‘Fronteras Culturales: identidad y comunicación en América Latina. Universidad de Stirling, 16-18 de outubro de 1996. P.2. satisfacción de las necesidades”11. O consumo seria “uno de los espacios donde se constituye la cultura de las clases populares y se marcan sus diferencias respecto de otras”12. Ao estudar o consumo, Canclini busca construir uma teoria multidisciplinar, com contribuição de diversas áreas do saber. Dentro dessas contribuições, dois modelos nos interessam particularmente para os fins deste estudo: o consumo como sendo um ‘sistema de integração e comunicação’ - consumir é intercambiar significados culturais e sociais, reconfirmando valores e significados comuns - e como um ‘cenário de objetivação dos desejos’ - “além das necessidades culturalmente elaboradas, atuamos seguindo desejos sem objetivos, impulsos que não apontam à possessão de coisas precisas ou à relação com pessoas determinadas”13. Vamos considerar, em nosso trabalho, essa ‘dimensão desejante’ do consumo - procurando guardar os cuidados recomendados pelo autor, que orienta que as análises não desconsiderem as questões macrossociais nas quais os atos de consumo se inserem. Espaço e história do santuário de São Severino dos Ramos Em termos sucintos, o santuário é composto por um conjunto sacro (a Capela de Nossa Senhora da Luz, a Sala dos Milagres - onde se concentram os ex-votos - e a Fonte de São Severino, bem como uma plataforma onde se acendem fogos em louvor ao santo) e uma área profana, formadas por restaurantes, bares, barraquinhas de comércio diversificado (artigos religiosos, alimentícios e de uso pessoal), banheiros, lavatórios e local de piquenique. As formas de locomoção utilizadas para se chegar até o local são variadas. Antigamente, utilizavase o trem, mas o tráfego por via férrea foi interrompido. Atualmente, os peregrinos vêm de pau de arara, caminhão, bicicleta, ônibus ou mesmo a pé. Na manhã de nossa visita, haviam ônibus da região metropolitana do Recife, cidades do interior do estado e de outros estados nordestinos, fretados especialmente para a excursão ou cedidos pelas prefeituras. Encontramos dificuldades para historiar o surgimento do santuário de São Severino dos Ramos, a começar pela identidade do próprio santo: não conseguimos informações precisas sobre ele por parte da Igreja ou dos fiéis. O catolicismo venera nada menos que treze santos com o nome de Severino14. 11 CANCLINI, Néstor García. “Cultura Transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la investuigacuón.”Op., Cit.p-52. 12 Id. ibid. 13 CANCLINI, Néstor García. “Los Estudios sobre Comunicación y Consumo: El trabajo interdisciplinario en tiempos neoconservadores”. Dialogos de la Comunicación n.32. Lima: FELAFACS, 1992. P.11. 14 Entre eles, o patrono de Bordeaux; um famoso eremita do quarto século, cuja fama de santidade atraía a visita de muitos reis; um bispo de Septempeda; um chefe do mosteiro de Percy; um padre solitário perto de Paris; um monge cujas relíquias estão na igreja de São Lourenço de Trivole; um mártir em Aquele cuja imagem é venerada na Capela de N. S. da Luz do Engenho Ramos, construída no início do século XVIII em honra da padroeira do município de Paudalho, seria um soldado romano, espécie de mártir militar. As poucas afirmações que obtivemos a seu respeito encontram-se num folheto intitulado “São Severino Mártir”15. Trata-se de um documento apócrifo, mas que foi publicado com a aprovação da autoridade eclesiástica de D. Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, que concedeu a ordem de impressão em 10 de Abril de 1919. Atualmente, o folheto está em sua 26a tiragem e encontra-se à venda em barracas próximas à Capela. O texto é vago e baseia-se nas pesquisas de um “esclarecido” (mas não nomeado) sacerdote olindense. Não se pode afirmar que haja um consenso acerca da história do São Severino de Ramos, já que a grande maioria dos fiéis não faz associação entre o mártir romano e aquela imagem ali venerada. É uma imagem grande, com as proporções de um ser humano de estatura mediana, representando um homem agonizante e fardado como um soldado romano. Reza a tradição local que uma das proprietárias do engenho tinha um filho padre, que presenteou sua genitora com uma imagem de São Severino, trazida da Europa. Essa imagem é tida como milagrosa por milhares de romeiros, que desde o século passado acorrem a São Severino dos Ramos para fazer pedidos e pagar promessas. As origens do santo encontram diferentes explicações no imaginário popular. Uma vertente bastante difundida é a de que a imagem é a de um homem ‘vivo’, ou que pelo menos o era no passado, chegando a sangrar em determinadas ocasiões. Muitos afirmam que a imagem atual é diferente da original, e que o verdadeiro santo foi retirado do local - alguns dizem que levado para Roma. São Severino nãoé esse, é outro. Aqui, é um de gesso, o outro era vivo, rosado. ( Josina, 68, vulgo Dona Pequena, procedente de Nazaré da Mata-PE). A dificuldade de se obter informações sobre o santo, contudo, não parece abalar a fé dos devotos que vão ao santuário. Viena, sob o domínio de Marco Aurélio; outro, mártir em Campania, com 28 companheiros; um mártir na Córsega, cujo corpo encontra-se conservado em Savona. 15 Consta que este São Severino era soldado do imperador Maximiniano Hércules, governador de Roma entre 286 e 305 d.C. e célebre perseguidor do Cristianismo. Severino, cristão fervoroso, deixou o serviço daquele que perseguia sua religião, no que foi imitado por seu companheiro de armas e crença, Carpanhore, com quem se retirou para Como, na Itália. Esta atitude levou o imperador a prendê-los, interrogá-los e enfim, executá-los, depois que recusaram-se a renegar sua fé. Mortos no ano de 304, tornaram-se mártires venerados pela Igreja Católica. A gente veio fazer penitência.Éromaria, a gente tem que vir, reza o terço, parte da Bíblia e outras orações. Não sabemos a história de São Severino. A gente faz parte de um grupo de quinze mulheres da Irmandade (Devotas da Irmandade de Maria duas Marias e uma Teresa, na faixa dos 60 anos, provenientes de Conguaretama-PE). Quero obter uma graça. Vim porque tenho fé em Deus e em São Severino (Olindina, que ‘descambou de 70’ (sic), procedente de Poços-PE). A Comunicação na Romaria Cientes de que a religião tem ligação com o contexto sócio-cultural dos indivíduos, e de que no caso das culturas populares existe uma desigualdade de acesso aos bens, simbólicos ou não, do sistema hegemônico, percebemos que os pedidos e promessas refletem essa questão: seja na cura de doenças, para as quais o tratamento médico é, para as classes populares, de difícil acesso; seja em pedidos de bens materiais concretos. Fiz pedido pela saúde de minha filha, que tinha problema de ameba (Maria Venâncio, 34, procedente de Bezerros-PE) Fui curada de catarata (Lindomar Brasil, 73, procedente de Recife-PE) Eu tinha o corpo tomado de dor, aí miorei bastante por graça de São Severino (Luzia, 78, procedente de Macaparana-PE). Fiz promessa pra conseguir uma vaca. Primeiramente, Deus e Nossa Senhora, depois Padre Ciço, São Severino e minha mãe das Dores. ( Dona Pequena) O grande símbolo sagrado do santuário é a imagem de São Severino, conservada dentro de uma espécie de redoma sobre o altar lateral esquerdo da Capela. Diante do santo, os fiéis depositam suas oferendas, tais como flores e dinheiro, fazem seus pedidos e agradecimentos, via prece ou bilhetes, ou pagam suas promessas, através da entrega de ex-votos, cortes de cabelo, túnicas, etc. Através das expressões e gestos dos romeiros, percebemos o sentimento de pertencimento desta grande multidão de fiéis que lotava a igreja, manifestando sua fé a São Severino e integrando um momento de fé e de comunicação interpessoal. Outros símbolos através dos quais os peregrinos se comunicam com o sagrado também estão presentes em São Severino dos Ramos. O mais forte deles é aágua, símbolo de cura recorrente em outros santuários e religiões. A água está presente de várias formas no santuário, seja na fonte, seja nas garrafas que são vendidas aos romeiros, seja nos lavatórios. Os banhos a que as crianças são submetidas não objetivam só o refrescamento, a higiene momentânea, mas uma purificação mais profunda, uma espécie de batismo, de bênção. Da mesma forma, o fogo é um elemento presente em São Severino dos Ramos. Alguns fiéis costumam soltar fogos de artifício em louvor ao santo. Esta, entretanto, nãoé uma prática tão corriqueira entre os peregrinos, como é o contato com a água. Existe também um espaço ao lado da igreja, próximo à Sala dos Milagres, onde os devotos acendem velas e rezam. Assim como a água, o fogo tem sua simbologia ligada à idéia da transformação e regeneração, de mediação entre formas em desaparição ou criação. Segundo Cirlot16, este elemento está associado à vida eà saúde, ao calor corporal, à libido, à fecundidade. O fogo seria uma espécie de ‘agente de transformação’, a partir do qual se nasce e morre – o Bem (calor vital) e o Mal (destruição, incêndio) unificados. Os ex-votos e cânticos são os meios de comunicação mais utilizados pelos fiéis, evidenciando a relação entre cultura popular e religião. Em São Severino dos Ramos são encontrados os mais variados tipos de ex-votos, que podem ser comprados na sacristia da própria igreja. Os objetos são depositados no altar dedicado a São Severino e posteriormente expostos na Sala dos Milagres. O cotidiano do fiel se reflete na caracterização do ex-voto: os que vêm do litoral representam tempestades, naufrágios, ao passo que os do meio rural mostram quedas de animais, picadas de cobra, chifradas, sendo também comuns os ex-votos zoomorfos. Os fiéis, desta forma, reelaboram seus desejos e demonstram suas determinações estruturais, visto que a identidade pessoal é formada a partir das relações afetivas e simbólicas dos indivíduos e dos grupos aos quais pertencem. 16 CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de Simbolos. Barcelona: Labor, 1969. P. 219-220. Observamos que os visitantes costumam vir a São Severino dos Ramos em grupo, seja em família, seja com amigos em excursões ou dentro de irmandades religiosas. Assim, o símbolo que mais denota a integração entre os romeiros são os cantos, onde podemos observar a relação entre religiosidade e comunicação. Um deles, cantado por um grupo procedente de Carpina-PE, foi recolhido por nós e rezava assim: Foi chegar no outro dia / Tinha fome eu não comia / Tinha sede e não bebia / Só pra ver que eu alcançava / o Coração de Maria O canto permite a participação no coletivo, e se faz presente já durante a viagem dos romeiros ao santuário. Trata-se de um espaço perfeito para se trocar significados culturais e sociais, reconfirmando assim valores e significados comuns e satisfazendo à necessidade de pertencimento das pessoas - como propõe Canclini em seu ‘sistema de integração e comunicação’ para o consumo cultural17. Existem fortes indícios de que o espaço do Engenho Ramos também pode ser utilizado por pessoas ligadas a cultos afro, que fariam suas cerimônias nas matas e nos riachos que cercam o santuário. Em nossa visita, pudemos perceber que objetos ligados a esses cultos são vendidos no comércio local; encontramos inclusive um ambulante que vendia ervas utilizadas em rituais do gênero, mas que não soube ou não quis explicar o motivo de estar fazendo aquilo dentro do santuário, nem explicitou quem seriam seus fregueses. A desconfiança do vendedor e o mistério em relação a esses cultos se justificam quando levamos em conta as perseguições e preconceitos que estas pessoas vieram sofrendo até bem recentemente. Não pudemos, entretanto, precisar como esse sincretismo acontece em São Severino dos Ramos nem a qual entidade o santo viria a corresponder. O aspecto híbrido da manifestação religiosa no santuário é presente a começar pela sua distribuição geográfica, onde sagrado e profano se encontram no mesmo nível de experiência. Enquanto as pessoas rezam e pagam promessas, do lado de fora da igreja ambulantes e barraqueiros vendem artigos de uso variado, carros de som tocam pagode, forró, reggae e outros tipos de música popular, e as pessoas exercem seu lazer de diversas formas. 17 Vide CANCLINI, Néstor García. “Los Estudios sobre Comunicación y Consumo: El trabajo interdisciplinario en tiempos neoconservadores”. Op. Cit. P.11. A gente não foi à igreja, a gente veio tomar cerveja e passear. As patroas não puderam vir porque não tinha lugar na bicicleta (Grupo de cinco rapazes na faixa etária entre 25-30 anos, procedentes de Camaragibe-PE). A existência de um lado profano dentro do santuárioé vista de forma ambivalente. A convivência nem sempre está livre de críticas, como demonstra o depoimento que transcrevemos abaixo: Vim num ônibus com 43 pessoas. Vim pra fazer romaria, não vim para tomar cerveja. Passear, Jesus não quer isso não. São Severino, padre Ciço, Frei Damião, tudo que eu peço eu consigo. Mas é a fé, a fé cura (Sr. Manuel Inácio da Silva, 80, membro da Irmandade do Rosário, procedente de Areia-PB.) Um dos lugares onde a mescla entre o massivo e o popular se revela mais fortemente são nos artigos vendidos nas barracas. Além de saciar o desejo dos visitantes por símbolos religiosos (o que inclui, além dos santos católicos ligados à cultura hegemônica, imagens de orixás como Iemanjá e figuras da umbanda como a Pomba-Gira), o comércio fornece ícones de figuras míticas massivas, como Lady Diana, Michael Jackson, Roberto Carlos, e a cantora e atriz de novelas mexicanas Thalia, o que demonstra na prática que as culturas populares não podem ser vistas de forma isolada, mas sim dentro de seu aspecto relacional com o massivo. Produtos de beleza e enfeites para a casa são comuns e agradam ao vasto público de mulheres que vão ao santuário. Estas levam normalmente uma vida onde a oportunidade de lazer é escassa, em parte como reflexo de suas dificuldades financeiras. Nesse contexto, talvez o turismo por simples divertimento fosse mais facilmente descartado; São Severino dos Ramos, por sua multiplicidade de aspectos, lhes dá um motivo para a viagem - vão rezar, pagar promessas - e, ao mesmo tempo, a chance de outras oportunidades de diversão e realização pessoal em níveis que não o religioso. Chamou-nos a atenção o caso de uma senhora chamada Josina, vulgo Dona Pequena, que foi ao santuário rezar e tentar conseguir do santo uma vaca, o que provavelmente representaria grande melhora em sua vida. Acompanhada da neta, e viajando de pau de arara, aproveitou a visita para comprar brinquedos para a menina e para adquirir um jarro imenso para decorar sua sala. A dificuldade do transporte não pareceu ser levada em conta. Considerações Finais No contexto do santuário e nas falas dos entrevistados, onde transparecem sentimentos ambivalentes de fé, desejo de participação, consumo e realização pessoal, observamos o fenômeno religioso imbricado à comunicação e, deste modo pudemos perceber algumas interações entre o sagrado e o profano e o massivo e popular. O fato ocorre no santuário como um todo, seja pela própria geografia religiosa, seja pelas ações - pagamento de promessas paralelamente à compra de produtos diversificados, de ambas culturas, e freqüência a bares com consumo de bebidas alcóolicas. Os romeiros parecem buscar o prazer e a aproximação com o sagrado, misturando elementos do popular e do massivo dando origem a uma híbrida manifestação de cultura popular que envolve elementos de comunicação, turismo, lazer e religiosidade. Assim, encontramos indícios que nos permitem entender que os fenômenos comunicacionais presentes na romaria do santuário de São Severino dos Ramos podem ser refletidos à luz do conceito de hibridização cultural exposto por Canclini, já que em todos os momentos percebemos as misturas, as mesclas, entre o popular e o massivo, assim como as necessidades indicadas pelo autor em seu modelo de “consumo como integração e comunicação,” quando o sentimento de pertencimento, de “estar juntos”, é encontrado nos atos da multidão de romeiros, que vão ao santuário em grupos de amigos, família e irmandade religiosas, e juntos procuram partilhar seus sentimentos religiosos e de prazer, quer seja nos cantos, orações, e nas compras de objetos religiosos e de variados usos, ou conversas em bares; bem como a ‘dimensão desejante’ do consumo: ansiando por participar da ordem hegemônica e satisfazer seus desejos, os participantes dessa manifestação religiosa popular guiam-se por razões por vezes subjetivas, nem sempre presumíveis ou dotadas de lógica aparente, como pudemos perceber nas compras de grupos femininos de produtos de beleza como batons, esmaltes de unhas, e adornos para casa, a exemplo do grande jarro que Dona Pequena nem se importou em levar no pau de arara em que veio para a romaria. Presumível, talvez fosse a compra de objetos religiosos que viessem a participar dos seus cotidianos, como uma forma de avivar a fé em São Severino dos Ramos. Por fim, queremos enfatizar que, embora os dados colhidos não permitam análises conclusivas, poderão ser retomados para serem explorados em outras pesquisas sobre essa rica manifestação de religiosidade e comunicação entre culturas. Neste trabalho, tivemos, essencialmente, a intenção de chamar atenção para esse contexto que poderá ser analisado mais profundamente em estudos posteriores, aplicando ao empírico uma perspectiva teórica que vem possibilitando que as culturas populares cada vez mais sejam enxergadas sob uma nova ótica, situando-as nas suas relações com o massivo quando assimilam, impugnam ou ressignificam seus códigos culturais. Referências Bibliográficas CANCLINI, Néstor Garcia. “Culturas Híbridas Y Estrategias Comunicacionales”. Seminario ‘Fronteras Culturales: identidad y comunicación en América Latina. Universidad de Stirling, 16-18 de outubro de 1996. ---------------------------------. Culturas hibridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Sudamericana, 1995. ---------------------------------.“Los Estudios sobre Comunicación y Consumo: El trabajo interdisciplinario en tiempos neoconservadores”. Dialogos de la Comunicación n.32. Lima: FELAFACS, 1992. ---------------------------------.“Ni Folklorico ni Masivo: Que és lo Popular?” Dialogos de la Comunicación n. 17. Lima: FELAFACS, junho de 1987. ---------------------------------. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. CANCLINI, Néstor García. “Cultura Transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la investigación”. In CANCLINI, Néstor García e RONCAGLIOLO, Rafael (org). Cultura transnacional y culturas populares. Lima: IPAL, 1988. CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de Simbolos. Barcelona: Labor, 1969. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993. HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1987. MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones: Comunicación, Cultura y Hegemonía. Naucalpán: Gustavo Gilli de México, 1993.