1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA CARLA MONYKE PEREIRA DE LIMA CAPITA A INFLUÊNCIA DO MODERNISMO BRASILEIRO NA LITERATURA ANGOLANA JOÃO PESSOA – PB JULHO DE 2011 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES LICENCIATURA PLENA EM LETRAS HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA A INFLUÊNCIA DO MODERNISMO BRASILEIRO NA LITERATURA ANGOLANA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. Profa. Dra. Elisalva Madruga Dantas, orientadora. JOÃO PESSOA – PB JULHO DE 2011 3 CARLA MONYKE PEREIRA DE LIMA CAPITA A INFLUÊNCIA DO MODERNISMO BRASILEIRO NA LITERATURA ANGOLANA Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua Portuguesa. 4 DEDICATÓRIA Ao Senhor JESUS, a quem devo tudo, até minha própria vida. ELE me fez chegar até aqui. Ao meu esposo Juliano Capita, uma das pessoas que me motivou a conhecer um pouco da literatura angolana. Sem palavras para descrevê-lo. Aos meus queridos pais, Carlos Lima e Solange Lima, pelo grande amor e apoio nos estudos. As minhas lindas irmãs, Camy Lima e Catry Lima, pessoas excepcionais, supercarinhosas e amorosas para comigo. A minha avó Alaíde, uma pessoa ímpar e de um coração enorme. Dedico esse momento de minha vida a todas essas pessoas, pessoas que me amam e pessoas pelas quais tenho um imenso amor também. 5 AGRADECIMENTOS Mais uma vez, minha eterna gratidão ao DEUS de minha vida. Aos meus amigos Paulo Aldemir Lopes e Camila Burgardt, pela ajuda e força que sempre me deram no decorrer do curso. A minha querida professora e orientadora Elisalva, um amor de pessoa, dona de uma simpatia sem igual. 6 As pessoas devem estudar, pois é a única maneira de poderem pensar sobre tudo com a sua cabeça e não com a cabeça dos outros. O homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar. [Pepetela] 7 RESUMO A monografia apresentada, a partir das pesquisas realizadas, visa mostrar, sobretudo, através da análise socioestilística do poema Exortação, do angolano Maurício Gomes, as relações existentes entre a poesia angolana e a brasileira e como as propostas estéticas e ideológicas dos poetas idealizadores do movimento modernista brasileiro, vazadas, principalmente, na consolidação da identidade brasileira, contribuíram de forma relevante para a construção da poesia angolana, empreendida pelos poetas reunidos em torno do lema Vamos descobrir Angola!, empenhados, por sua vez, na criação de uma identidade poética autenticamente angolana, liberta dos padrões europeus. Palavras-chave: Literatura; Modernismo; Ruptura; Identidade; Estética; Ideologia. 8 RESUMEN La monografía presentada, con base en las investigaciones realizadas tiene como objetivo mostrar, sobretodo, a través del análisis socio-estilístico del poema Exhortación, del angoleño Mauricio Gomes, las relaciones existentes entre la poesía angoleña y la brasileña y como las propuestas estéticas e ideológica de los poetas idealizadores del movimiento modernista brasileño, diseminadas principalmente en la consolidación de la identidad brasileña, contribuyeron de forma significativa para la construcción de la poesía angoleña, llevada a cabo por los poetas reunidos en vuelta del lema ¡Vamos a descubrir Angola!, comprometidos, por su vez, en la creación de una identidad poética auténticamente angoleña, suelta de las normas europeas. Palabras claves: Literatura; Modernismo; Ruptura; Identidade; Estética; Ideología. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE ANGOLA ................................................... 11 1.1. Primeiras Manifestações Literárias ................................................................................ 14 1.2. A importância de Cordeiro da Mata ............................................................................... 15 2. ANGOLA E BRASIL ...................................................................................................... 17 2.1. Movimento dos Novos Intelectuais de Angola ............................................................... 19 2.2. Presença do Modernismo Brasileiro .............................................................................. 21 3. ASPECTOS IDEOLÓGICOS E ESTÉTICOS DO POEMA “EXORTAÇÃO” ................. 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 31 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 32 10 INTRODUÇÃO Durante a graduação, tivemos contacto, através das aulas da Professora Elisalva Madruga, com as literaturas africanas de língua portuguesa e tomamos conhecimento da sua relação com a literatura brasileira. Interessada no assunto, decidimos realizar a minha monografia de conclusão de curso tendo como objetivo geral mostrar, através da leitura crítica de alguns textos poéticos, a presença marcante da literatura brasileira na literatura angolana ao longo do tempo e como objetivo específico, a repercussão do Modernismo Brasileiro no momento de criação da literatura angolana propriamente dita. Com relação à presença marcante da literatura brasileira, tentaremos mostrar como desde as primeiras manifestações literárias angolanas essa relação se encontra presente. Em seguida, nos deteremos no objeto central do trabalho que será, como dissemos, trabalhar a relação da Literatura Angolana com o Modernismo brasileiro. Para exemplificar bem esse elo que une a nossa literatura a deles, faremos uma análise do poema Exortação, do escritor angolano Maurício Gomes, cujo discurso deixa bem explícita a influência dos nossos poetas, tanto em termos ideológicos como em termos estéticos. Ciente do pouco conhecimento existente acerca das literaturas africanas de língua portuguesa, entre elas a angolana, consideramos importante em um primeiro momento traçar um pouco das coordenadas histórico/social de Angola, inclusive para entendermos a razão das afinidades dos escritores e poetas desse país com os escritores e poetas brasileiros. Para a realização desse trabalho, além de livros sobre Literatura Angolana, mais especificamente sobre a poesia, e de trabalhos críticos sobre a relação existente entre essa literatura e a brasileira, recorremos, também, a obras relacionadas com a Literatura brasileira, principalmente no que concerne ao Modernismo em sua primeira fase, ou seja, a produção modernista dos anos 20 e ainda a obras de cunho histórico e sociológico. 11 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE ANGOLA Nas sociedades humanas, muitas vezes nos deparamos com situações desiguais em que o homem é explorado pelo seu semelhante. Temos assim uma classe dominadora e uma dominada, classe de senhor e de servos ou escravos, de capitalistas e proletariados, de patrão e empregados. Essa diferença enseja e ensejou ao longo da história da humanidade muitos conflitos e muitas lutas, pois é inerente à natureza humana o desejo de liberdade. Colônia de Portugal durante cinco séculos, Angola conheceu de perto a situação de povo explorado e para chegar à condição de país independente, teve que, por muitos anos, enfrentar, através de lutas e guerras sangrentas, o regime colonizador. Conhecer, pois, sua história é “conhecer a vida dos povos de Angola, as suas lutas pelo progresso, a sua luta contra o domínio estrangeiro.” (HISTÓRIA DE ANGOLA, p. 05). Situado no continente africano, esse país pertencia ao reino do Congo, antes da chegada dos portugueses. O Congo tinha uma agricultura muito avançada e em estado de desenvolvimento e o comércio também estava em alta, produzindo até excedentes, gerando uma grande economia para a região. A sociedade tradicional que existia na África era bem diferente da sociedade colonial. A história de Angola está dividida em três períodos: Idade Pré-Colonial, Idade Colonial e Idade Pós-Colonial. A Idade Pré-Colonial começa no século XIII e vai até 1575 (ano em que ocorre a fundação da cidade e capital Luanda). Os portugueses chegaram ao Congo em 1482, liderados pelo capitão Diogo Cão, e logo se espalharam por toda região. As relações entre o rei do Congo e rei de Portugal eram amigáveis, havia uma troca de favores, o Congo recebia muita atenção e armas de fogo de Portugal que serviam para conter as revoltas da população e de outros países, por sua vez, Portugal recebia escravos vindos do Congo para aumentar sua riqueza de forma monopolizada, ou seja, apenas Portugal podia estar à frente dos negócios relativos à escravidão e a contribuição do rei era importante para “produção” e fornecimento dos escravos. A Idade Colonial vai do século XV, de aproximadamente 1575 e termina com a independência em 1975, quando então se inicia o período Pós-Colonial. Como todo colonizador, à medida que fortalecia seu poder em Angola, os portugueses iam modificando a forma de viver do povo angolano, através da imposição dos seus valores, seja em termos políticos, sociais, linguísticos e culturais. Para eles, a língua falada em Angola era “língua do cão” e o português passou a ser a língua obrigatória. Era ensinada nas escolas e 12 era com ela que se faziam todas as transações, fossem elas comerciais ou não, como bem o observa a crítica Inocência Mata, ao afirmar que, sendo língua do colonizador e, como tal, da administração e da imprensa, do ensino e da socialização, a língua portuguesa funcionou também como língua de assimilação e, por isso, de alienação cultural, de eficácia glotofágica reforçada pelas medidas proibitivas em relação à utilização das línguas africanas(autóctones e crioulas)e, consequentemente, contra o desenvolvimento e o funcionamento simbólico que qualquer língua tem, a de realizar interpretações culturais da realidade, para além da função comunicativa. (2007, p. 84) A história foi desprezada e até a religião Católica foi fixada nessas terras, o próprio Rei do Congo se converteu ao Catolicismo (ocasionando conflitos religiosos no povo que já tinha uma religião), além da existência de forte discriminação quanto à cor negra. A presença dos portugueses já era bem forte e evidente, já tinham o controle de toda extensão de terras angolanas. Os recursos agrícolas e minerais eram bastante explorados, aumentando assim, a ambição dos portugueses em lutar e conquistar prata para aumentar seu comércio. O comércio da colônia baseava-se no tráfico de escravos e na exploração de marfim, que tinham muito valor na Europa. Os comerciantes cresciam muito e o artesanato local e outros produtos como o sal, por exemplo, iam perdendo privilégio. Na verdade, Portugal estava interessado mais no ouro e na prata, os escravos vieram a calhar devido à precisão que se fazia de mão de obra na colônia portuguesa situada no Brasil. Os jesuítas enviados pelo Brasil (colônia de Portugal também) faziam o papel de fiscalizar todo o comércio de Angola e alguns procuravam escravos, pois tinham grandes fazendas. Com o tempo, a colônia achou melhor mudar o método econômico e começar a trocar os escravos por trabalhadores assalariados e também aumentar a produção de outras mercadorias que lhe aumentassem o capital, além dos escravos. Os colonos angolanos queriam organizar um comércio interno de onde eles pudessem retirar mais lucro e pudessem contar com a ajuda e apoio do governo. Alguns Estados não estavam dispostos a isso, pois iam ficar no prejuízo e era necessária uma maior segurança na região contra revoltosos que pudessem surgir. O governo resolveu construir indústrias, o trabalho escravagista iria acabar, os colonos iriam produzir e haveria um acordo mútuo, que de certa forma deu certo. A agricultura se desenvolveu também na tentativa de acabar com a escravatura e quem continuasse a usar escravos e a fazer guerra sofreria grande punição. Contudo, “militares e certos comerciantes continuavam nessas guerras e a apanhar escravos para vender no Brasil” 13 (HISTÓRIA DE ANGOLA, p. 108). Os escravos sofriam muito, passavam fome, ficavam doentes, morriam antes mesmo de começarem a “trabalhar”. Até a Igreja Angolana estava subordinada à Igreja Brasileira. Com o passar do tempo, Portugal já não exercia controle total sobre a economia de Angola, o povo angolano começa a se impor e a dominar seu próprio capital. No mundo havia uma grande divergência sobre o modo de trabalho. Alguns países começavam a extinguir o trabalho escravo porque o ramo industrial estava em crescimento e outros ainda continuavam, mas sempre pensando no melhor para a economia e não nos escravos que eram obrigados a viverem de tal forma. Um tratado foi assinado em 1825, no Brasil, deixando de lado as colônias portuguesas. A economia angolana deu um grande salto, com tudo isso. O tráfico de escravos continuava para as Américas, mesmo com a abolição da escravatura em Angola, que ocorreu no ano de 1836. Mas, aos poucos foi tendo fim, dando lugar a outros tipos de comércio. O povo angolano lutou muito para conquistar essa liberdade. A vida política foi mudando também quando o capital angolano foi se separando do Brasil. Os angolanos burgueses cultos escreviam em jornais e revistas criticando a economia, o governo, entre outras coisas. Iam aparecendo escritores, jornalistas que defendiam os que mais sofriam. A liberdade de imprensa já estava presente nesse momento. Em 1899, a escravidão foi extinta de forma oficial, mas deixou alguns vestígios. O comércio de borracha, de marfim, de gado, dentre outros, foi ficando fraco e o açúcar, café e milho estavam em alta. A vida livre dos africanos também não era tão fácil, tinham que pagar impostos ao governo e a jornada de trabalho que lhes era imposta, assemelhava-se em muito ao trabalho escravo. Não havia respeito às leis que protegiam essas pessoas do trabalho escravo. Assim, foram surgindo revoltas contra esse tipo de trabalho e mesmo dessa forma, a colônia ficava em crise devido à escassez de escravos. Ao todo, foram cinco séculos de colonização, assim como no Brasil. Em dezembro de 1956 é formado o MPLA, Movimento Popular de Libertação de Angola, um partido do povo que lutava pela independência. Foi perseguido por Portugal, houve prisões, mortes. O povo começa a lutar de forma armada e com mais força em favor da liberdade nacional. Os escritores contribuíram e foram importantes para o MPLA, apesar de não ser um movimento literário, mas político. Angola tornou-se um país livre e independente em 11 de Novembro de 1975, depois de muito lutar para viver livre do domínio português. Tem o MPLA à frente do governo até hoje. 14 1.1. Primeiras Manifestações Literárias Embora haja notícia de um texto poético publicado em Angola por volta do século XVII, atribuído a um militar, filho da então colônia, os estudiosos da Literatura apontam como marco inicial da produção literária angolana o livro de poemas, Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas (1849), do escritor José da Silva Maia Ferreira. Nele, à semelhança do poema Canção do Exílio, do brasileiro Gonçalves Dias, Maia Ferreira exalta a terra africana, declarando seu amor por ela, enaltecendo as belezas naturais, a fauna, a flora e os habitantes do lugar. Essa semelhança com a poesia brasileira deixa entrever que a relação entre as duas literaturas data de muito tempo. A fundação do jornal Boletim Oficial, em 1845, sob a organização do governadorgeral Pedro Alexandrino da Cunha, deu início, ainda que de maneira simples, ao jornalismo em Angola. Através desse jornal, eram divulgadas histórias de Angola, literatura em verso e em prosa, artigos relacionados à religião, ao Catolicismo, ao comércio, à economia, etc. No entanto, só podia ser publicado o que fosse aprovado pelos portugueses para que não se escrevesse algo que atingisse Portugal. Mesmo assim, o jornalismo e a imprensa foram de suma importância, no final do século XIX, para a luta dos angolanos, pois serviram de porta para uma nova maneira de ver o mundo, um mundo mais próximo da realidade. Em torno de 1856, a imprensa passou a ter certa liberdade. Mais jornais e revistas foram sendo fundados, tais como, A Aurora (1855) e A Civilização da África Portuguesa (1866). Esse último teve curta duração, pois tanto defendia a colônia, como também defendia a abolição da escravatura, deixando insatisfeitos alguns governantes. Antônio Urbano Monteiro de Castro e Alfredo Júlio Cortez Mântua foram os fundadores desse jornal e mais tarde lutaram para reativá-lo. Urbano mereceu destaque por ser um grande literato, na poesia e na prosa, de uma imensa riqueza cultural e simplicidade e clareza ao mesmo tempo. Teve uma colaboração forte como jornalista e escritor na imprensa livre em Angola, escrevendo sobre diversos assuntos. Mântua também teve seu papel reconhecido, na luta pelo desenvolvimento do país. Muitos outros jornais foram surgindo, uns duradouros, outros passageiros, fundados até por europeus, que defendiam a liberdade de imprensa e abolição da escravidão, como por exemplo, Dr. Alfredo Trony, português e responsável pelo Jornal de Luanda (1878), que de fato lutava pelos interesses do povo, se afastando aos poucos do colonialismo, deixando, assim, o governo revoltado, sendo, por esse motivo, expulso do meio. Contudo, Dr. Alfredo continuou sua luta em defesa dos ideais dos habitantes locais e criou outros periódicos, além 15 de ser autor de novelas. Tudo isso foi concedendo voz aos intelectuais que estavam surgindo. Joaquim Dias Cordeiro da Mata (um dos primeiros idealizadores da literatura angolana), Pedro Machado, Fontes Pereira, entre outros, inconformados com a maneira como os portugueses estavam governando Angola, começaram então a se revoltar contra a colonização violenta que minava a identidade do povo. Foram poetas, jornalistas que usaram a palavra como aliada no combate ao domínio português. Muitos foram perseguidos e presos. Pedro Félix Machado foi responsável também pela revista Luz e Crença junto com outros jornalistas e escritores, em que ratificava os desejos de Cordeiro da Mata de uma literatura verdadeiramente angolana. A não aceitação do sistema presente na região e a necessidade de colocar na escrita o sentimento nativista que começava a se fortalecer moviam os intelectuais, sendo muito importante mais tarde para o desenvolvimento do processo de angolanização que será retomado por outros intelectuais. 1.2. A importância de Cordeiro da Mata Joaquim Dias Cordeiro da Mata, nascido em Angola, em 1587, autodidata, foi muito importante para o desenvolvimento da angolanidade. Dedicado totalmente à cultura angolana, publicou livros sobre a historia de Angola, escreveu romances, contos, poesias, estudos filológicos, contribuindo, através deles, para o conhecimento de Angola e do quimbundo, uma das língua nativas que era negada pelo colonizador. A preocupação com a língua, além de levá-lo a escrever uma gramática do quimbundo, leva-o também a adotar termos dessa língua no seu livro de poemas Delírios (1890), fortalecendo, assim, o sentimento nativista que norteava a produção da época. Tinha uma coluna no Jornal de Luanda, por meio da qual exortava os conterrâneos a se unirem em favor do desenvolvimento de Angola. Já que existia até escritor europeu interessado em escrever e cantar aquela terra, então, por que não os próprios nativos fazerem tal coisa? Contudo, poucos atenderam ao chamado. Em 1901, um artigo preconceituoso, “Contra a lei, pela Grey”, foi publicado no 4º número do Gazeta de Luanda, apontando o negro como preguiçoso, afirmando não ser ele "perfeitamente homem" e que colocá-lo na cadeia é "dar-lhe prêmio", pois ele vai gostar de "comer sem trabalhar". Como não poderia deixar de ser, esse artigo provocou uma profunda indignação entre os africanos que contra-atacaram com uma série de artigos que reuniram em um volume intitulado Voz de Angola clamando no deserto, ressaltando os valores do homem 16 negro e mostrando que o seu atraso é consequência da ação perniciosa do colonizador. Assim diz um desses artigos: "Acusam a raça preta de incapaz de civilização e desenvolvimento , quando se lhe não tem ministrado os meios de elevação, procurando conservá-la no estado de rudez e embrutecimento, explorando-a assaz os esclavagistas, para, à custa do seu suor e trabalho, não remunerado, medrarem enriquecerem!" (VOZ DE ANGOLA CLAMANDO NO DESERTO, 1984, p. 83) (sic). A literatura desse período foi muito importante. Através dela, começa a se ter ideia do sofrimento vivenciado pelo povo angolano em decorrência da opressão do colonizador. É também, através dela, que a semente da ruptura, desenvolvida mais tarde pela geração dos anos 40, germina vigorosamente. A partir dessa época, a literatura vai cada vez mais se tornando o canal por meio do qual tudo que estava silenciado começa a ser falado, ainda que para isso tivessem que enfrentar as duras punições infligidas pelos dominadores. 17 2. ANGOLA E BRASIL A literatura angolana sofreu várias influências. Muitos fatores cooperaram para seu desenvolvimento. Se dentre as influências internas, temos os poetas e escritores, cujas produções serviram de importante subsídio para “a proposta dos responsáveis pelo movimento que, a partir dos anos 40, começa a agitar o meio cultural angolano em prol da construção de uma literatura marcadamente nacional.” (MADRUGA, 1998, p. 20), dentre as influências externas, são citadas como mais expressivas, o marxismo, o neorrealismo português e o modernismo brasileiro. À maneira dos modernistas brasileiros, os escritores começaram a se empenhar em trazer para a literatura, de modo crítico, a realidade angolana, o sofrimento do povo, sobretudo do povo negro, vitimado duplamente na condição de colonizado e negro. O aumento da produção jornalística e a utilização cada vez maior de termos da língua nativa constituíram fatores importantes para o crescimento e consolidação de um sentimento nacionalista que vai despertando nos angolanos uma imensa vontade de sair do papel de povo colonizado e de trabalhar em prol da construção de uma identidade própria. Na década de 30, surge um movimento revolucionário intitulado Negritude, liderado pelos estudantes negros Aimé Césaire, Leon Damas e Leopold Senghor. Composto ainda por outros estudantes que reivindicavam o papel e a presença do negro dentro da sociedade, tal como os brancos. Ganhou grande aceitação, pois colaborou muito no processo de afirmação do negro e da sua cultura, tendo em vista que, “o resgate da identidade africana implica a reestruturação do ser negro, mutilado ao longo dos séculos”. (MADRUGA, 1998, p. 69). A partir da década de 40, a literatura angolana começa a ganhar forças e a modificar o quadro da história literária do país e colaborar para a mudança também do quadro sociopolítico marcado pela opressão, pela exploração e pela subestimação, devido à colonização. Os movimentos anteriores servirão de base para tudo que vamos encontrar pela frente. A poesia será um meio de os angolanos cantarem sua terra e suas esperanças de se tornarem livres de um país preso a uma cultura europeia que se afirma superior a todas as outras. Na literatura que vai despontando, o negro já começa a se conscientizar de sua situação, um ser que foi violentado, colonizado, desrespeitado e discriminado pelos brancos europeus, e começa a lutar para mudar o rumo de tudo isso. 18 O escritor Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, quando o país se tornou república, e importante poeta angolano, retrata esse momento em um poema intitulado Adeus à hora da largada. Segue alguns trechos: “...Amanhã Entoaremos hinos à liberdade Quando comemorarmos A data de abolição desta escravatura.” Agostinho Neto utiliza o lirismo em seus poemas para expor a situação da África e de Angola, frente a tudo que tem se passado naquele continente e naquela colônia em decorrência dos desmandes do colonizador. Seus poemas nos falam do choro africano, apesar de ao mesmo tempo, paradoxalmente, utilizar de forma recorrente a metáfora dos “olhos secos” insistentemente repetida no poema Criar. Mas é um choro seco, desprovido de qualquer sentimentalismo, o coração do povo africano devido a todo sofrimento, precisava se tornar seco e duro, para que não se desviasse de seus objetivos. O povo africano desejava criar uma nova história para si. Agostinho trabalha em um de seus poemas termos semânticos com cargas positivas e cargas negativas, significando os dois extremos: afirmação e negação. Tentando desencadear no povo um processo de conscientização de luta por seus ideais, ele conclama as pessoas a viverem de acordo com suas realidades, de tal forma que, a língua de seus antepassados faça parte de suas vidas também. Sua obra mais importante foi Sagrada Esperança (1979) em que reunia poesias de caráter combativo e lírico. Ele tinha muita esperança na mudança da situação e no reconhecimento do seu povo. Um outro poeta muito importante para a nova literatura que emerge a partir dos anos 40 é o angolano Viriato da Cruz, que mais tarde vai liderar o movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Um de seus poemas bem conhecido é o que tem por título Mamã Negra (Canto da Esperança), em que é exposto o sofrimento da África devido à escravidão. Porém, como o próprio subtítulo – Canto da Esperança – anuncia, o poema traz também uma esperança e, mais do que isso, uma certeza do fim de todo aquele sofrimento, de toda aquela exploração. Segue exemplo: Mas vejo também que a luz roubada aos teus olhos, ora esplende demoniacamente tentadora-como a Certeza... cintilantemente firme-como a Esperança... em nós outros teus filhos, gerando, formando, anunciando -o dia da humanidade O DIA DA HUMANIDADE... 19 Tanto o poema Criar como o poema Mamã Negra revelam um futuro que está por vir, um futuro divisado pelos olhos desses poetas. 2.1. Movimento dos Novos Intelectuais de Angola Foi um movimento literário, surgido em 1948, composto por um grupo de jovens intelectuais, negros, brancos, mestiços, liderados por Viriato da Cruz. Eles aproveitaram os ideais nativistas de escritores passados, tais como, Cordeiro da Mata e Paixão Franco, para voltarem-se às suas raízes angolanas e estudarem a terra, as regiões geográficas, a língua e dialetos locais, a fim de que a população conhecesse um pouco da sua história. A realidade angolana tornou-se matéria de poesia, despertando nas pessoas a vontade de se libertarem da condição de colonizados e a de tornarem Angola livre das amarras europeias. Esse movimento, a partir de 1950, também ficou conhecido como o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, por tomarem como base as propostas dos chamados “Velhos Intelectuais”, aqueles intelectuais já mencionados, que no final do século XIX já tinham em mente essa libertação. O grupo dos Novos Intelectuais de Angola estava, pois, empenhado em propagar conhecimentos, instruir o povo de sua terra, para que não pensassem apenas no trabalho, mas sim, também, na cultura que estava permeando a vida pacata dos angolanos. O Modernismo brasileiro também serviu de grande influência para esse movimento, pois os encorajava a produzir uma literatura tipicamente angolana. De acordo com Mata, é sabido que em sociedades emergentes, com um passado colonial recente, a literatura é um veículo muito importante na construção da identidade literária. Isto é: por razões que têm a ver com a especificidade do processo libertário, a identidade literária tornou-se uma componente fundamental do cadinho da identidade que se pretende nacional. (2007, p. 86) Os Novos Intelectuais de Angola tiveram algumas publicações, tais como, Antologia dos novos poetas de Angola (1950) e a revista Mensagem (1951-1952), entre outros. A revista Mensagem, organizada pela Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA), teve grande importância para a literatura angolana. Participavam dela Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade e outros autores. Outra revista que teve uma boa aceitação nesse período foi a Cultura (1957-1961), não mais organizada pela ANANGOLA, pois essa foi fechada por divergências políticas. Escritores bem reconhecidos faziam parte de sua elaboração, alguns já citados, como Viriato e Agostinho e mais outros, a exemplo de 20 Luandino Vieira, Carlos Ervedosa e Oscar Ribas. Alguns dos temas principais da revista Mensagem eram o reconhecimento do valor do negro e as críticas ao sistema colonial. Em Cultura essa não aceitação do colonizador foi bem marcante, os poetas confessavam seus sentimentos e o desejo de terem uma identidade própria. Em 1948, quando surgiu, o movimento dos Novos Intelectuais de Angola tinha como lema “Vamos Descobrir Angola”, pois constituíam objetivos principais do grupo a valorização da cultura angolana, a luta pelo término do colonialismo, além do reconhecimento da importância do negro para a construção do país, tudo isso de forma escrita, que em outras horas seriam silenciadas. O negro foi humilhado, menosprezado pelos colonizadores, tratado como uma mercadoria sem valor e esse movimento veio para lutar em defesa desse que colaborou com o crescimento do país. Criticou o branco colonizador, que obteve todos os favores dos negros, mas nem sequer soube reconhecer o trabalho deles, pelo contrário, afirmava com convicção que o negro não gostava de trabalhar. Queriam que até as punições fossem diferentes, que suas atitudes fossem julgadas pela cor carregada no corpo. O negro tinha que se sujeitar ao branco em tudo, não podia sequer reclamar se não fosse bem pago pelos serviços massacrantes e desumanos a que era obrigado a submeter-se. O poema Exortação, de Mauricio Gomes de Almeida, que será objeto de nossa análise nas páginas adiante, escrito no final da década de 40, teve bastante aceitação entre os que compunham o Movimento Vamos Descobrir Angola. Movimentos não só literários, mas também políticos apareceram, como o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), tendo por objetivo tentar mudar o percurso político em favor da libertação, contando com a adesão de muitos escritores, alguns, inclusive, foram até presos, exilados, mas não silenciados. No ano de 1975, Angola torna-se um país independente e a literatura contribuiu muito para essa vitória, ela trouxe de volta tudo que o colonizador apagou dentro da cultura dos angolanos. Surgiu O UEA, União dos Escritores Angolanos, responsável pelas publicações dos escritores e de muitas outras obras que não foram permitidas circularem no período colonizador. Apesar da libertação do país, a literatura apresentou uma diminuição na sua produção, devido às turbulências pelas quais passou a região com o fim do regime colonial. A exaltação da terra continuava existindo e se propagando mesmo que a passos lentos nesse período, agora de uma maneira mais livre. Inocência Mata chega à conclusão que 21 vale dizer que nesta fase actual de reconstrução de Angola no pós-guerra(...) as novas perspectivas devem passar, também, pela implementação dos direitos cívicos, pela pedagogia da diferença, pela reconstrução identitária, individual e colectiva, que se fragmentou de forma inexorável durante, sobretudo, as duas décadas de guerra civil. Começar pelas línguas pode ser coisa boa: afinal, a língua é a nacionalidade do pensamento, como já dizia o brasileiro José de Alencar no longínquo século XIX. (2007, p. 165) 2.2. Presença do Modernismo Brasileiro O Modernismo brasileiro serviu como base para a construção literária de Angola, por conta de suas propostas de valorização da cultura genuinamente brasileira e seu espírito de ruptura com o europeísmo vigente no país. A literatura modernista tinha um forte apelo nacionalista e isso era também o que estava impulsionando os angolanos. O Brasil foi tomado como exemplo por Angola, tanto no que diz respeito à literatura, como à sua independência do país colonizador. A partir desse período, se estreitou cada vez mais o vínculo entre esses países. A presença do Brasil na Angola foi bem marcante. Ambos com objetivos bem comuns: valorização da terra natal e do habitante local. Para o Brasil, o referencial de brasilidade eram os índios e para a Angola, os negros, como referência de Angolanidade. Angola, a exemplo dos nossos antropófagos, soube aproveitar o que a literatura brasileira pôde oferecer e mesclou-a a sua arte poética. Até porque, como sabemos, todo texto traz sempre marcas de outros já existentes. O projeto nacionalista dos modernistas brasileiros foi um dos principais pontos que levou à aproximação dos angolanos com a produção literária desse momento. As experiências de vida, a vontade de exaltar a natureza e a pátria impactaram as obras. A literatura angolana inicia um processo de rompimento com os modelos vigentes à época, modelos tradicionais portugueses, dando lugar a uma poesia totalmente autêntica, de cunho nacional. Essa ruptura seguiu os moldes brasileiros. O Brasil dos anos 20, apesar de independente politicamente, iniciou um processo de resgate de sua cultura que durante um bom tempo foi “escondida” pelo colonizador. As propostas ideológicas e estéticas dos nossos modernistas, como as de Mário e Oswald de Andrade, foram de grande importância para os angolanos, que também procuravam defender sua língua, lutar por novas formas poéticas, livres dos padrões europeus. Diferentemente de outras vanguardas, o passado, tanto para os modernistas brasileiros como para os angolanos dos anos 50, não era descartado, porém servia como reflexão para a 22 construção de um futuro diferente. Na literatura angolana, o quimbundo (língua nativa) que antes era visto como “língua do cão”, passa a fazer parte da composição literária. O tradicionalismo é importante na literatura, por buscar expor o passado e mesclar elementos atuais que constituem a realidade nacional, trazendo de volta todas as origens do povo, pois “desrecalcar os valores culturais reprimidos pelo colonizador tornava-se imprescindível” (MADRUGA, 1998, p. 40). No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, é vista a defesa da originalidade, a crítica ao academicismo, ao mimetismo, no que diz respeito à poesia e a movimentos anteriores, tais como, Parnasianismo e Naturalismo. Para esse manifesto, tudo que falasse do Brasil, da matéria-prima brasileira, seria assunto poético. Lutava contra a poesia importada (feita com material que vinha de fora) e se voltava mais para uma poesia baseada na realidade local e na valorização da língua nativa. Combatiam os modelos clássicos e visavam à liberdade de criação e de expressão. Já no Manifesto Antropofágico, percebemos uma reação ao aparelhamento colonial e à sociedade patriarcal, criticando a religião e a falsa moral, vai transformando o que é negativo em positivo (tabu em totem), pois há uma grande valorização da cultura indígena e negra. O índio é sempre exaltado, criticando, assim, a herança do colonizador que “acabou” com grande parte da cultura brasileira, que por muito tempo estava europeizada. O diálogo entre as literaturas brasileira e angolana acentua-se na década de 40 e a partir daí vai-se fortalecendo através dos textos poéticos a identidade do povo angolano. Muitos temas são comuns a essas literaturas: a valorização da natureza e da cor local. A terra é cantada nas duas literaturas, a fim de afirmarem suas nacionalidades, e os índios no Brasil, como os negros em Angola, passam a ter um lugar de destaque nas produções da época. Nos tempos do Romantismo, a terra já tinha sido assunto de muitas obras também em ambas as literaturas. No entanto, nesse período, os poetas e escritores ainda não tinham se libertado do viés europeu. A terra envolvia tanto o espaço geográfico do lugar, como o povo que vivia nela. A infância é outro tema bastante explorado por essas literaturas por simbolizar uma fase marcada pela liberdade. Metaforicamente, a infância nas literaturas africanas de língua portuguesa representa também o período anterior à chegada do colonizador. Essas literaturas mantiveram um elo muito forte. Jorge de Lima, escritor brasileiro, é apontado como um dos poetas que teve identificação com os poetas angolanos, pois trata do tema do negro. Segundo o crítico português Pires Laranjeira, os poemas Mamã Negra (Canto da Esperança) de Viriato da Cruz 23 e Olá!Negro de Jorge de Lima são bem semelhantes, são poemas longos, musicalizados num mesmo ritmo, buscando uma identidade puramente nacional, utilização de uma linguagem coloquial e vocabulário comum. Os dois poemas têm por tema o negro, o tempo e o espaço que são marcados de maneira também igual. Analisando esses poemas, a crítica Elisalva Madruga Dantas, ao mesmo tempo em que reitera as aproximações feitas pelo referido crítico, destaca algumas diferenças, a exemplo do tratamento dado às figuras representativas da raça negra por ambos os poetas. Enquanto para Jorge de Lima elas são vistas apenas como parte do folclore brasileiro, e mostram em dados momentos traços negativos, para Viriato da Cruz, essas figuras traduzem positividade. Em um dado momento, na poesia de Jorge, o poeta que canta o negro é visto como falso, como no trecho do poema Olá!Negro: “Os poetas, os libertadores, os que derramaram/ babosas torrentes de falsa piedade/ não compreendiam que tu ias rir!”, e na poesia de Viriato, ao contrário, ele é valorizado como voz que se ergue em favor do negro, no poema Mamã Negra. Percebemos isso no trecho que se segue: “Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais dos/[seringais dos algodoais...”. Em alguns momentos, a poesia de Jorge mostra-se mais preocupada com os sentimentos do homem branco do que com a desalienação do negro, mais uma vez exposto no poema Olá!Negro “... eu melhor compreendo agora os teus blues / nesta hora triste da raça branca, negro!”. Já em Viriato, vemos isso de forma contrária, pela maneira crítica como fala da opressão do negro e aponta para a construção da mudança dessa situação: Mas vejo também que a luz roubada aos teus olhos, ora esplende demoniacamente tentadora-como a Certeza... cintilantemente firme-como a Esperança... em nós outros teus filhos, gerando, formando, anunciando -o dia da humanidade O DIA DA HUMANIDADE... Olá!Negro traz dúvida, “O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem / vindo?”. Mamã Negra, poema já citado anteriormente, traz a certeza de um futuro diferente. Assim, percebemos como o negro no poema de Jorge de Lima continuava a ser apenas um objeto poético. Era aceitável no plano estético, mas, no plano social, era visto como um ser inferior em relação à raça branca. Em alguns aspectos se via ainda o preconceito em relação ao negro, presente no espaço brasileiro. Um outro escritor brasileiro que cantou o negro em sua poesia foi o gaúcho Oliveira Silveira. E o fez, identificando-se com o negro, ressaltando seus valores e, muitas vezes, 24 enfocando-o como sujeito e não como objeto, como no poema Negra Fulô. Segue um trecho do poema: A nega em vez de deitar pegou um pau e sampou nas guampas do sinhô. -_Essa nega Fulô! - Esta nossa Fulô!, dizia intimamente satisfeito o velho pai João pra escândalo do bom Jorge de Lima, seminegro e cristão. E a mãe-preta chegou bem cretina fingindo uma dor no coração. - Fulô! Fulô! ó Fulô! a sinhá burra e besta perguntou onde é que tava o sinhô que o diabo lhe mandou - Ah, foi você matou! -É sim, fui eu que matou – A língua, da maneira como era falada entre as pessoas, sem as marcas europeias, também está na base das preocupações, tanto dos modernistas brasileiros como dos poetas angolanos do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Como os brasileiros que trouxeram para a literatura a língua tipicamente brasileira, com todos os coloquialismos e gírias existentes, visando à sua valorização, os angolanos também passaram a inserir nos seus textos literários o quimbundo, língua falada em Luanda, antes menosprezada pelos portugueses, que passa a ser valorizada e inclusive a ter status literário. Com esse procedimento se fortalece o sentimento nacionalista. 25 3. ASPECTOS IDEOLÓGICOS E ESTÉTICOS DO POEMA “EXORTAÇÃO” O poema Exortação, do escritor angolano Maurício de Almeida Gomes, publicado cem anos depois do poema Minha Terra, de José da Silva Maia Ferreira, assinala bem o novo momento que se inicia nas décadas de 40 e 50. Um momento marcado por um forte sentimento nacionalista. Como se pode ver, a partir do título, o poema exorta, ou seja, convida de forma veemente os poetas angolanos a realizarem uma poesia voltada para sua terra e suas origens. Vejamos o poema: Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, poetas do Brasil, do Brasil, nosso irmão, disseram: “ – É preciso criar a poesia brasileira, de versos quentes, fortes, como o Brasil, sem macaquear a literatura lusíada”. Angola grita pela minha voz, Pedindo a seus filhos nova poesia! Deixemos moldes arcaicos, ponhamos de lado, corajosamente, suaves endeixas brandas queixas e cantemos a nossa terra e toda a sua beleza. Angola, grande promessa do futuro, forte realidade do presente, inspira novas idéias, encerra ricos motivos. É preciso inventar a poesia de Angola! Fecho meus olhos e sonho, abrindo de par em par o coração, e vejo a projeção dum filme colorido com tintas de fantasia e cenas de magia: As imagens são paisagens, gentes, feras. E sucedem-se lenta, lenta, lentamente... Assisto maravilhado ao despenhar gemente das quedas d´água do Duque de Bragança... Vejo crescer florestas colossais no Maiombe, onde o verde é símbolo de tanta esperança... 26 Amboim fecundo, Amboim cafezeiro, de alcantis envoltos sempre em nevoeiro denso, como um fumo cheiroso do seu café gostoso, tão famoso no mundo... O deserto de Namibe a espreguiçar-se num bocejo mole, estendendo tentáculos de areia como polvo gigante - visão alucinante, miragem no escrínio esquisito que guarda avaramente a jóia mais horrivelmente linda e única no mundo - a Welwitshnia mirabilis, que em si encerra mistério tão profundo... É preciso escrever a poesia de Angola! Vejo anharas infindáveis, onde noivam no capim, pelo amor amansadas, feras bravas, indomáveis... Vejo lagos de safira, tão calmos como olhos ternos, chorosos de tímidas gazelas... E terras rendilhadas do litoral, secas, rugosas, escalvadas, onde reina o imbondeiro, gigantesco Prometeu agrilhoado, visão estranha, infernal, horrenda, verde pálido, branco, cinzento, lembrando líquen mágico, colossal... Baías, cabos, estuários, praias morenas, mares verdes, mares azuis, e rios de aspecto inofensivo mas cheios de jacarés... Terras de mandioca e batata doce, campos de sisal, minas e metais, goiabeiras, palmeiras, cajueiros, areais imensos, cheios de diamantes, chuvadas torrenciais, filas tristes de negros carregadores gemendo, cantando tristemente seus cantares... planaltos, montanhas e fogueiras, feiticeiros dançando loucamente: Angola é grande e rica e bela e vária. É preciso criar a poesia de Angola! Terra enorme onde o inseto impera: mosquito da febre e mosca tzé-tzé, 27 cobrindo tudo de sono. Olhai o senhor arquiteto Salalé, tão pequenino, tão teimoso e diligente... Como ele projeta e constrói castelos, milhões de vezes maiores que ele é, para vergonha nossa, que pouco fazemos, presos de fútil, preguiçoso dandismo... Encostai o ouvido atento ao coração do povo negro, escutareis, só vós, poetas da minha terra, que estais por nascer, aquilo que para outros é segredo defeso, mistério da esfíngica, malsinada alma negra. Criai ânimo, ganhai alento, e vibrantemente cantai a nossa terra! É preciso forjar a poesia de Angola! Essa nova poesia, Será vazada em forma candente Sem limites nem peias, Diferente!... Mas onde estão os filhos de Angola, Se os não oiço cantar e exaltar Tanta beleza e tanta tristeza, Tanta dor e tanta ânsia Desta terra e desta gente? Essa nova poesia, Forte, terna, nova e bela, Amálgama de lágrimas e sangue, Sublimação de muito sofrimento, Afirmação duma certeza. Poesia inconformista, Diferente, será revolucionária, Como arte literária, desprezando regras estabelecidas, Idéias feitas, pieguices, transcendências... Poesia nossa, única, inconfundível, diferente, quente, que lembre o nosso sol, suave, lembrando nosso luar... que cheire o cheiro do mato, tenha as cores do nosso céu, o nervosismo do nosso mar, o paroxismo das queimadas, o cantar das nossas aves, rugir de feras, gritos de negros, gritos de há muitos anos, de escravos, de engenhos das roças, no espaço vibrando, vibrando... 28 Sons magoados, tristíssimos, enervantes, de quissanges e marimbas... versos que encerrem e expliquem todo o mistério desta terra, versos nossos, úmidos, diferentes, que, quando recitados, nos façam reviver o drama negro e suavizem corações, iluminem consciências, e evoquem paisagens e mostrem caminhos, rumos, auroras... Uma poesia nossa, nossa, nossa! - cântico, reza, salmo, sinfonia, que uma vez cantada, rezada, escutada, faça toda a gente sentir faça toda a gente dizer: 1949 - É poesia de Angola! O poema começa fazendo alusão a dois poetas brasileiros modernistas, Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, que se empenharam, sobretudo esse último, na criação de uma poesia que rompesse com os padrões europeus e se fizesse à luz da própria realidade brasileira. “É preciso criar a poesia brasileira, De versos quentes, fortes, como o Brasil, Sem macaquear a literatura lusíada”. Necessidade que passa a ser sentida entre os angolanos, conforme expressa veemente o eu-lírico nos refrões que perpassam todo o poema, relacionados com a criação de uma poesia verdadeiramente angolana. Ainda nessa primeira estrofe, com o verso “... do Brasil, nosso irmão...”, é visível a grande afinidade que existe entre os poetas angolanos e os brasileiros, principalmente no que concerne ao rompimento com a cultura colonizadora e com os seus modelos poéticos. O eu-lírico recorre a uma afirmação dos poetas brasileiros para mostrar como deveria ser construída a nova poesia de Angola, uma poesia o mais natural possível, tipicamente angolana, uma “Poesia inconformista / Diferente (que) será revolucionária, / Como arte literária, desprezando regras estabelecidas, / Idéias feitas, pieguices, transcendências...”. 29 O poema Exortação é uma metapoética, pois, além de ser uma poesia angolana, mostra como essa poesia deve ser feita. Esteticamente, como já foi dito, fala da ruptura e, ao mesmo tempo, a realiza, visando dar vez a uma poesia mais livre, construída a partir da realidade de Angola, com sua própria rima, sua própria musicalidade. Angola passa então a ser vista com outros olhos, não mais como uma realidade exótica, mas como uma realidade promissora. Nessa linha metapoética, observa-se que já a partir da segunda estrofe o eu-lírico começa a esboçar como deve ser feita, em termos estéticos e ideológicos, essa poesia. Esteticamente, deverá deixar de lado “moldes arcaicos”, “suaves endeixas”, “brandas queixas” e, ideologicamente, deve cantar a terra e sua beleza. Mas não de forma idealista, enfocando apenas as maravilhas, mas de modo também crítico, mostrando a realidade sofrida, amargurada e triste, que impede o desenvolvimento de Angola. A terra e tudo que nela se faz presente (fauna, flora, topografia, povo, etc.) é, portanto, fonte de inspiração para os poetas. A poesia deve ser um espelho de Angola, que é rica em histórias, em fatos que podem ser cantados. O eu-lírico, ao usar termos como, “corajosamente”, “inspira”, “ricos”, demonstra que o povo angolano tem uma bravura, uma fortaleza, que os possibilita se libertarem das algemas portuguesas e construírem um futuro diferente. A partir da quinta estrofe até a décima quarta, o eu-lírico faz uma descrição de Angola, cantando emocionado os aspectos da região, as paisagens locais, mostrando de forma detalhada o que as constituem, a exemplo da região do Amboim, onde é cultivado o café “tão famoso no mundo”; as quedas d´água do “Duque de Bragança”, “o deserto do Namibe”, entre tantas outras realidades. Apropriando-nos das imagens do poema, para nós a terra angolana cantada pelo poeta, por sua grandeza, pode ser vista, assim como o deserto de Namibe, “como um polvo gigante”, e seus filhos como a “Wellwitshnia Mirabilis”, ou seja, como “jóias” que só ela a possui. Já as imagens de Angola, retratadas na nona estrofe, confirmam o que dissemos acima acerca da visão crítica do poeta, na medida em que mostram uma realidade um tanto adversa, em decorrência das “terras rendilhadas do litoral, / secas, rugosas, escalvadas / onde reina o imbondeiro, / gigantesco Prometeu agrilhoado, / visão estranha, infernal, horrenda, / verde pálido, branco, cinzento, / lembrando líquen mágico, colossal...”. Na estrofe 11ª, a referência aos negros, ao mesmo tempo em que revela a dureza da exploração, mostra a forma por eles encontrada de resistirem ao sofrimento, através do canto, da dança, dos seus cultos religiosos, conforme podemos deduzir da menção aos “feiticeiros dançando loucamente”, como a expurgar todo o mal. 30 Chamando a atenção para o trabalho do “Salalé”, ou seja, do cupim, inseto “tão pequenino, tão teimoso e diligente...”, em resumo, tão sem importância, mas que é capaz de construir castelos altíssimos, o eu-lírico critica a preguiça do povo angolano, entre o qual se inclui, por fazer muito pouco por sua terra, não cantar “tanta beleza” e “tanta tristeza”. A partir dessas considerações em torno da terra e do seu povo, o eu-lírico retoma a preocupação com o fazer da poesia angolana e dedica as oito estrofes finais à metapoética. A ideia de ruptura mais uma vez fica claramente explícita ao dizer que “Essa nova poesia, / Será... / Sem limites nem peias, / Diferente!...”. Portanto, uma poesia liberta de qualquer cerceamento, voltada para tudo que diz respeito à realidade angolana e que “faça toda a gente sentir / faça toda a gente dizer: / - É poesia de Angola!”. Observe-se que, ao finalizar o poema com um refrão que diz É poesia de Angola!, o eu-lírico quebra a estrutura dos refrões anteriores que sempre traziam um verbo que remetia à necessidade de inventar, escrever, criar, forjar a poesia angolana, reiterando, desse modo, o caráter metapoético, a partir da homologação entre o que diz e o que faz. Se a todo o tempo, o eu-lírico, imbuído de uma esperança no dia de amanhã tão grande quanto a floresta de Maiombe, mostra como se deve fazer estética e ideologicamente a poesia angolana, ao finalizar o poema, ele termina fazendo a poesia de Angola. O poema Exortação além de ser de fato um poema angolano, comprova indiscutivelmente a relação existente entre a literatura de Angola e a nossa literatura. 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS As investigações por nós realizadas, comprovaram o quanto a literatura brasileira contribuiu para a consecução dos objetivos pretendidos pelos angolanos no concernente à angolanização da literatura, seja em termos estéticos, seja em termos ideológicos. Vimos também que a identificação entre os poetas angolanos e os brasileiros, embora remonte ao final do século XIX, intensificou-se bem mais a partir da década de 40 do século XX, quando começa o movimento liderado por poetas e escritores angolanos de se voltarem para sua terra, de criarem uma poesia construída, a partir de sua própria realidade e não mais à maneira da cultura colonizadora. Desse modo, Angola iniciava um processo, que embora tenha motivado também os intelectuais do final do século XIX, agora ressurgia com mais força: o de não deixar que suas histórias e suas raízes se perdessem. Para melhor compreensão desse momento e das razões que aproximavam os poetas e escritores angolanos dos brasileiros, é que procuramos mostrar um pouco do contexto sócio/histórico/literário de Angola. A literatura foi, como fica bem evidenciado no trabalho, uma maneira dos escritores exporem os seus sentimentos, sobretudo o seu desejo de serem livres e independentes. A poesia era, pois, uma forma de lutar por todos os anseios daquele povo. Aliás, é a partir da literatura que surgem os grupos políticos que mais adiante conduzirão à independência política de Angola. Os poetas, os escritores eram também os líderes do MPLA, ou seja, do Movimento Popular de Libertação de Angola. Registre-se que o primeiro presidente de Angola, após a independência foi um dos poetas dessa geração das décadas de 40 e 50, Agostinho Neto, uma das grandes vozes da negritude africana de língua portuguesa. A busca pela nacionalidade literária e política foi um dos grandes pontos de aproximação entre as literaturas brasileira e angolana. Finalizamos afirmando que ao adentrar no espaço literário angolano, a literatura brasileira, sem dúvida, deixou uma contribuição riquíssima para emergência da literatura de Angola, para a consolidação das suas propostas nacionalistas e para a concretização dos seus ideais libertários. Ideais esses pelos quais tanto batalharam os modernistas brasileiros e os poetas angolanos, visando, como já dissemos a preservação de suas raízes. 32 REFERÊNCIAS ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1979. GOMES, Maurício. Exortação. In: FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban. Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa. Angola e São Tomé e Príncipe, 2º volume. Lisboa: Seara Nova, 1976, p. 85 – 89. MADRUGA, Elisalva. Nas trilhas da descoberta: (repercussão do Modernismo brasileiro na literatura angolana). João Pessoa, PB: Ed. Universitária/UFPB, 1998. MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. São Paulo – Luanda, Angola: Edições de Angola, Lda. 2007. OLIVEIRA, Silveira. Outra nega Fulô. In: Cadernos Negros. Os Melhores Poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998, p. 109 – 110. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas metalinguísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. VÁRIOS. História de Angola. Porto: Edições Afrontamento, 1975. VÁRIOS. Voz de Angola clamando no Deserto. Lisboa: Edições 70/União dos Escritores Angolanos, 1984. SITE CONSULTADO <http://www.consuladodeangola.org/index.php?option=com_content&task=view&id=33&Ite mid=58> Acesso em: 05 set. 2010