A INTERFERÊNCIA DAS BARREIRAS NÃO-TARIFÁRIAS NO LIVRE COMÉRCIO
Por Mônica Pereira dos Santos
Advogada
Especialista em Direito do Estado pela ESMPDFT
1. Introdução:
Desde 1948, quando foram traçadas as primeiras regras sobre concorrência
durante a elaboração da Carta de Havana, a discussão sobre o protecionismo vem sendo
retomada em todas as rodadas de negociação, revelando a importância e, ao mesmo
tempo, a sensibilidade do tema.
Apesar da retórica liberal quanto a impedir qualquer limitação de acesso
aos mercados ou o favorecimento do controle monopolístico de práticas que afetassem a
expansão da produção e do comércio1, o sistema multilateral nunca teve um compromisso
realmente firmado com o livre comércio. Pelo contrário, por detrás dos debates sempre
esteve a defesa dos interesses de cada nação, fato evidenciado no desenrolar das próprias
rodadas de negociação.2
É fato que todos os países praticam alguma forma de protecionismo, a
despeito dos acordos firmados. Mas, segundo Prazeres, tendo sido possível alcançar a
redução de barreiras tarifárias, as barreiras não-tarifárias ao comércio vem sendo
utilizadas com uma freqüência cada vez maior, “em razão da ampla gama de modalidades
que podem tomar, da facilidade de serem dissimuladas, das possibilidades de se
enquadrarem nas exceções permitidas no livre comércio, e da dificuldade de as se
comprovar”3, características que as barreiras tarifárias não apresentam. Assim, medidas
"anti-dumping" e de salvaguardas surgiram como novos instrumentos de proteção para os
setores industriais ameaçados pela concorrência dos países em desenvolvimento.
Também o desenvolvimento científico e tecnológico contribuiu para a ampliação do
número de barreiras técnicas e a imposição de medidas sanitárias e fitossanitárias aos
produtos importados, sem falar nas barreiras decorrentes da evolução mundial do direito
do consumidor e naquelas outras definidas a partir da necessidade de proteção do meio
ambiente.
Se, por um lado, a aplicação dissimulada deste tipo de barreira permite que
a idéia de livre comércio seja enfraquecida, por outro, seu conteúdo legítimo revela a
evolução de critérios necessários para o comércio internacional, mostrando o caráter
multifacetário que tais barreiras podem assumir.
2. As Diferentes Facetas das Barreiras Não-Tarifárias
De acordo com Ricupero, as barreiras não-tarifárias surgiram para ocupar
o papel antes desempenhado pelas barreiras tarifárias. Nesta substituição, deixou-se de
utilizar as tarifas aduaneiras, que foram reduzidas pelo GATT (General Agreement on
Tariffs and Trade), de 1947, dando espaço a
medidas de "proteção comercial" (salvaguardas, anti-dumping,
direitos compensatórios contra subsídios) e [a] barreiras
teoricamente destinadas a fins legítimos específicos mas que, na
1
THORSTENSEN, 2005, p. 324.
BARRAL e REIS, 1999, p. 184.
3
PRAZERES, 2002, p. 62.
2
prática, se vêem desviadas para intuitos protecionistas (requisitos
sanitários e fitossanitários para alimentos e produtos agrícolas,
barreiras técnicas para manufaturas, exigências ambientais etc.). 4
A grande vantagem para os Estados na utilização de barreiras nãotarifárias está na amplitude de medidas que podem ser tomadas, sem falar no caráter
eterno e progressivo que tais barreiras podem ostentar.
Estes fatores fazem com que tais barreiras possam ser facilmente
dissimuladas, o que desperta preocupação já que, assim, podem constituir inegável
ameaça aos fundamentos do livre comércio.5
Tentando reduzir a ação negativa decorrente da adoção destas barreiras, a
Organização Mundial do Comércio (OMC), juntamente com seus países Membros, tem
regulado a utilização de determinadas medidas como as destinadas à proteção da saúde
humana, animal e vegetal, procedendo da mesma forma em relação às exigências
técnicas. Assim, o próprio órgão fiscalizador lhes reconhece a legitimidade, desde que
utilizadas na persecução de objetivos igualmente legítimos.6
Aplicadas neste sentido, as barreiras não-tarifárias não podem ser
consideradas per se, mas sim como diretivas regulatórias7, sem que importem em
qualquer arbitrariedade. Em sua forma legítima, podem garantir benefícios variados,
como a qualidade dos produtos e a segurança na sua utilização, os direitos dos
consumidores e até mesmo a promoção do próprio comércio e a difusão de novas
tecnologias.
Contudo, ainda é o protecionismo em sua forma mais pura o fim principal
buscado na aplicação destas medidas. Mas sua utilização como forma de garantir o
desenvolvimento econômico de uma nação, como ocorreu durante o final do século XIX
nos EUA, nem sempre representa a melhor estratégia. Para trazer efeitos positivos para a
economia de um país, é preciso que as medidas protecionistas estejam sempre
combinadas a um conjunto de fatores e medidas governamentais.
Ainda assim, a aplicação de barreiras com intuito protecionista e de forma
descompassada é comum. Em geral, falta para seu sucesso uma análise “mais sofisticada
do que às vezes é realizada por políticos enviesados para o mercantilismo, e que crêem
que meras barreiras ou vantagens fiscais podem promover o desenvolvimento de um país
ou de uma região”8, deixando de observar as suas conseqüências sobre o próprio mercado
interno.
3. Os Efeitos da Utilização de Barreiras Não-tarifárias no Mercado Interno
Internamente, o principal objetivo da criação de uma barreira não-tarifária
é promover o favorecimento dos produtores nacionais, tendo sido este, inclusive, o
primeiro efeito decorrente de sua aplicação.9
4
RICUPERO, 2002, p. 4.
PRAZERES, 2002, p. 62.
6
BARRAL, 2002, p. 17-20.
7
CARDOSO et al , 2005.
8
BARRAL, 2007, p. 82.
9
FUGAZZA e MAUR, 2008.
5
Mas, mesmo acreditando que as barreiras podem conceder um grande
benefício inicial ao mercado interno local, não se pode deixar de ter em mente que elas
também guardam para ele um futuro incerto.
Segundo Barral, é possível que, já de início, as barreiras estabelecidas
onerem os próprios produtores nacionais, tendo em vista as regras do GATT 1994 quanto
ao princípio do tratamento nacional aos parceiros externos. 10 Assim, as mesmas regras
obedecidas pelos importadores seriam suportadas pelos produtores nacionais, levando a
um provável aumento nos preços dos seus produtos.
Além disso, o próprio país importador teria de arcar com a estrutura
necessária para a adoção de barreiras não-tarifárias, muitas referentes a mecanismos de
averiguação ou a procedimentos administrativos, podendo gerar um custo superior ao
próprio benefício almejado.11
Uma vez aplicado para favorecer um setor ineficiente, o protecionismo
acaba gerando mais custos para toda a cadeia produtiva, principalmente no caso do setor
de insumos, afetando até mesmo a eficiência dos produtores nacionais.
Ainda, é possível notar o êxodo de empresas multinacionais para outros
territórios em busca de regulações mais brandas, como o que ocorre, a exemplo, com a
utilização de medidas protetivas sobre o meio ambiente.12
Conseqüentemente, com o abandono do mercado pelos competidores
internacionais, a economia local passa a sujeitar-se a uma futura formação de cartéis e à
eliminação de incentivos para a pesquisa, comprometendo também o aperfeiçoamento de
produtos, quer pela falta de incentivos financeiros, quer pela falta de interesse em fazê-lo,
tendo em vista uma concorrência inócua ou inexistente.13 Assim, fica claro que a adoção
de barreiras comerciais com o objetivo único de favorecer o mercado produtor interno
pode se revelar como um remédio bem pior do que os males que visa curar.
Para combater o protecionismo promovido por tais barreiras a estrutura
comercial internacional desenvolvida pelos acordos da OMC permite medidas de
retaliação como, por exemplo, o estabelecimento de barreiras aos produtos do país que
adota a medida pelos demais países Membros.14 Estas e outras medidas levam o
protecionismo local a um novo nível de debate, agora dentro da esfera internacional.
4. Os Efeitos do Protecionismo sobre a Economia Global
De acordo com Barral, a utilização de medidas protecionistas tem efeitos
sobre a produção local, preços mundiais, balança de pagamentos, estabilidade política,
custos de eficiência, alocação de recursos, transferência de tecnologia e padrões de
comércio, deixando claro que suas conseqüências vão muito além do mercado interno do
país que as adota.15
É fato que o protecionismo traz conseqüências positivas, como a promoção
da integração comercial, o que pode vir a ser observado principalmente quando se tem em
mente barreiras técnicas cujos padrões já estejam internacionalmente uniformizados. É
10
BARRAL, 2002, p.18-20
LIMA, 2005, passim.
12
BARRAL, 2002, p. 124.
13
Idem, p. 221.
14
IRWIN, 2008, p. 18
15
BARRAL, 2007, p. 83.
11
possível observar até mesmo a redução do custo do produto decorrente da acirrada
concorrência no mercado.
Todavia, o mais comum é que resultados negativos decorram da utilização
do protecionismo, principalmente quando o modelo adotado é o mais agressivo,
utilizando medidas além das necessárias.
Para além do território nacional, é comum que muitos exportadores
alterem seus produtos ou as formas de comercialização utilizadas ao enfrentar barreiras
protecionistas tentando aumentar suas chances naquele mercado. Contudo, vários são os
que optam por abandonar o mercado por não disporem de tecnologia e de fontes de
investimentos necessários, o que ocorre geralmente com produtores de países em
desenvolvimento.16
Outra conseqüência decorrente da aplicação de medidas protecionistas é a
alteração do preço do produto vendido em outros mercados além daquele protegido, já
que a barreira imposta “por um grande exportador, terá efeitos consideráveis no mercado
mundial - nos casos citados, o de pressionar para baixo o preço do produto.”17
Até mesmo os países que adotam o modelo protecionista para favorecer
sua indústria doméstica podem ser vítimas de sua própria política, uma vez que também
tendem a aumentar as reservar aplicadas por outros países às suas exportações18, dando
origem a um círculo vicioso de medidas protetivas.
Também é grande a preocupação quanto à aplicação de medidas
protecionistas em tempos de crises. Quando um país impõe uma medida de proteção à sua
economia nacional, conseqüentemente, outro país irá fazer o mesmo, como medida de
retaliação ou , até mesmo, seguindo o modelo de proteção utilizado.
Contudo, apesar de inicialmente serem beneficiados pelo aumento da
demanda interna de seus produtos, todos acabam perdendo em relação à demanda
externa. Em conseqüência à restrição do fluxo comercial, “aumenta o custo de obtenção
dos bens, reduzindo o poder de compra dos consumidores, e piora a alocação de recursos
produtivos dentro de cada país, reduzindo a produtividade” 19. Além disso, é inegável o
estremecimento de relações comerciais e políticas entre os países.
Foi exatamente este o cenário durante a Grande Depressão de 1930,
quando a política do ‘empobrecimento do vizinho’, naturalmente colocada em prática
com a adoção de medidas protecionistas, acabou fortalecendo ainda mais a crise.20 Cabe,
assim, lembrar a lição de que “o unilateralismo é o pior dos remédios para uma crise de
dimensões mundiais, e a cooperação uma das poucas alternativas para minimizar e
transpor os períodos de crise.” 21
Mesmo diante das lições históricas, quando a crise econômica explodiu, no
segundo semestre de 2008, nos Estados Unidos, uma das primeiras medidas adotadas foi
justamente promover a proteção interna daquele mercado. Neste sentido, o Congresso
norte-americano aprovou um pacote de US$789 e instituiu, entre as várias medidas para
acelerar o crescimento do país, o “Buy American”, criando uma reserva de mercado para
16
PRAZERES, 2002, p. 64.
BARRAL, 2002, p. 22.
18
BALDWIN, 2008, p. 8.
19
RIBEIRO, 2009, p. 2-3.
20
RIBEIRO, 2009, p. 37-38.
21
BARRAL, 2007, p. 26.
17
produtos americanos como ferro, aço e manufaturados em todos os empreendimentos que
envolvessem dinheiro do pacote.22
O temor de que medidas como aquela se multiplicassem e autoalimentassem a crise teve grande repercussão e o tema ganhou atenção especial durante o
Brussels Forum 2009. Os discursos dos principais líderes mundiais foram uníssonos
quanto à necessidade de combater o protecionismo e promover a abertura de mercados
agrícolas e industriais, além de estabelecer regras que favorecessem a ampliação dos
fluxos de comércio dos países em desenvolvimento, todos temas sensíveis da agenda da
Rodada de Doha. Ainda assim, ao que parece, a comoção mundial não foi suficiente para
finalizar a rodada ou alcançar qualquer dos seus principais objetivos.
Ainda assim, mesmo que após quase 10 anos de negociação a rodada
permaneça inconclusa, é em Doha que se concentra a grande esperança de combate ao
protecionismo desmedido, promovendo o desenvolvimento em escala mundial e
removendo barreiras tarifárias e não-tarifárias, de forma a abrir mercados desenvolvidos
para os países em desenvolvimento.23
Para alcançar este e outros objetivos, é necessário que todos os países
repensem suas políticas econômicas, de forma a analisar o que foi obtido até então com
um comércio internacional parcialmente livre e o que pode ser perdido pela crescente
onda protecionista que vem se lançando pelo mundo.
Mas, principalmente, é necessário mudar a prática comercial políticoeconômico dominante em vários países, principalmente nas chamadas grandes potências,
que ainda se apegam a essas barreiras protecionistas e impedem que a globalização
econômica, de fato, ocupe o lugar de destaque que lhe vem sendo prometido desde o
GATT de 1947.
Conclusões
As barreiras não-tarifárias vêm se consolidando no comércio internacional
justamente pela multiplicidade de facetas que podem assumir e, também, pela
discricionariedade que os Estados têm em sua adoção, ainda que segundo as
determinações dos acordos multilaterais que as regulam.
Mas, se de um lado as barreiras não-tarifárias representam um risco para o
fluxo comercial, de outro é impossível negar que podem também constituir medidas
legítimas para a proteção do mercado interno, sendo tarefa árdua distinguir seus reais
objetivos.
Mesmo diante da reprovabilidade da conduta, observa-se que vários países
utilizam barreiras não-tarifárias como forma de limitar a ampla concorrência de
produtores internacionais no mercado local. Contudo, apesar de poder constituir
inicialmente relevante proteção para o mercado produtor interno do país que as adota, as
barreiras não-tarifárias trazem consigo uma gama de conseqüências negativas para o
mercado interno, principalmente quando o protecionismo decorre de planos de
desenvolvimento econômico que não adotem outras medidas.
As conseqüências da aplicação do protecionismo por meio deste tipo de
barreira têm o condão de se alastrarem para outros mercados, principalmente em se
tratando de grandes exportadores, mostrando a força que possuem sobre todo o mercado
internacional.
22
23
Revista Época, 2009, p. 72.
FUNCEX., 2007, p. 6
Para se atingir o nível desejado de liberalização comercial, é preciso que
os instrumentos comerciais nacionais sejam adequados às regras multilateralmente
estabelecidas, sem que os países utilizem de subterfúgios legítimos para promover o
protecionismo interno.
Ainda assim, é notório que todos os países utilizam algum tipo de medida
protetiva para seus mercados internos, constituindo um verdadeiro paradoxo o fato de
todos temerem que a proliferação de tais medidas de forma a obstaculizar o comércio ou,
até mesmo, fazer com que o multilateralismo conseguido nas últimas décadas se retraia.
Destarte, urge o avanço de novas negociações para a liberalização do
comércio promovidas pela Rodada de Doha. Mas, para seu sucesso, ainda é necessário
que os países Membros da OMC sejam mais maleáveis em relação a questões sensíveis
da liberalização comercial interna, possibilitando que regras mais eficazes de livre
concorrência possam ser traçadas e cumpridas.
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A interferência das barreiras não