PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luciana Souza Carvalho Intimi(ci)dades Femininas em Piraju-SP nos Anos Dourados. (1950-1964) MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL São Paulo 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luciana Souza Carvalho Intimi(ci)dades femininas em Piraju-SP nos Anos Dourados. (1950-1964) MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História Social, sob a orientação da Profa. Dra. Yvone Dias Avelino. São Paulo 2008 Banca Examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ Toda Maria tem outro nome, porque Maria não é nome, é sinônimo de mulher. (Paulina Chiziane) Para Maria Conceição Pereira Martini (in memoriam) Agradecimentos Carreguei comigo durante muito tempo, desde muito antes da graduação, o desejo intenso de estudar “na Católica”. Um sonho que pensava nunca ia realizar. Mas cá estou eu: realizando meu sonho. Não foi fácil chegar até aqui. Não foi fácil encontrar meu caminho de pesquisa. Escrever um trabalho como esse exige tempo, dedicação, paciência, sentimento. Exige aquela centelha de vida a brilhar dentro da gente continuamente. Algumas vezes achei que não ia conseguir. Algumas vezes senti que a centelha estava se apagando. Mas todas as vezes que desanimei encontrei apoio e força pra continuar. Com todos e todas em quem busquei forças e inspiração desejo partilhar essa doce conquista. Tenho muito a agradecer. Agradecer ao Deus Pai de bondade e à Deusa Mãe de ternura pelo dom de amar a vida, de sentir as dores do mundo latejando em mim. Obrigada por me darem a oportunidade de encontrar em meu caminho pessoas que me tornam um ser humano melhor pelo simples fato de existirem. Obrigada por não me criarem indiferente a dor do próximo. Pai e mãe: obrigada pelo apoio incondicional de vocês que mesmo não entendendo muito bem os títulos da vida, se esforçaram sempre para que eu realizasse meus sonhos. Em especial ao meu pai, com quem partilhei dores e esperanças no processo de construção deste trabalho. Espero que se orgulhe de mim Pai! Márcio, meu companheiro, meu amigo, meu amor saiba que jamais teria chegado até aqui sem você. O desejo de ser melhor com você e pra você me inspiraram a desbravar arquivos, a tentar compreender processos históricos de um lugar tão novo para mim. Sua paciência, seu incentivo, seu amor foram minha base em todos os momentos. O trabalho do historiador é na maioria das vezes solitário. O meu não foi. Enquanto finalizava o texto a ser apresentado na qualificação, JD meu filhinho amado – chutava dentro de mim, ora como se me incentivasse a continuar, ora como se me dissesse “às vezes é preciso dar um tempo para colocar as idéias no lugar”. Depois, entre mamadas e trocas de fralda, muitas noites mal- dormidas e sorrisos que me ajudaram a esquecer todo o cansaço, iniciei as correções do trabalho. Me perdoe filho, pelo tempo que deixei de ficar ao seu lado, de ter você em meus braços. Espero que um dia você possa se orgulhar de mim. Matilde e Hélio, meus sogros, agradeço por toda a ajuda e por todo o carinho com que me acolheram. Obrigada pelo amor que dedicam ao JD e por cuidarem dele, especialmente nos dias de finalização da dissertação. À Selma Carolina Assaf, Fernando Pereira Martini e Sílvio Pereira Martini, meus mais sinceros agradecimentos. Obrigada pelo empréstimo dos livros, cadernos, fotografias, trabalhos manuais. Selma: obrigada pelas deliciosas conversas, pelos contatos que me ajudou a estabelecer. Muito, muito obrigada por compartilharem comigo as lembranças, as recordações, a vida da sua mãe. Espero não decepcioná-los. Ao Paulo Henrique da Silva, Diretor de Cultura do Município de Piraju, agradeço por abrir as portas do Arquivo Municipal, pelo incentivo e pela valiosa cópia dos filmes em cinemascope que tanto me ajudaram a conhecer e criar imagens dessa cidade tão nova para mim. À Cristina Seclker, em nome de todas as outras funcionárias da Biblioteca Municipal e do Arquivo Público: obrigada pelo carinho com que me trataram e por toda a ajuda nos meses de pesquisa intensa e por vezes, tão cansativa. Obrigada Cris, pelos chás que aqueceram meu corpo e minha alma enquanto me enveredava nas páginas do Comércio de Piraju. Ana Célia Romero, Nilza Maria Dell’Agnolo e Tânia Regina Assaf Guerra que gentilmente me cederam seus cadernos de Economia Doméstica. Aos professores Reinéro, Luís, Roberto, Alfredo e Pedro que na graduação na UENP (naquela época ainda era FAFIJA), plantaram em mim sementes da vontade de ir além, de voar mais alto. Aos três últimos, meu agradecimento especial pela leitura do projeto de pesquisa e pela ajuda para realizá-lo. Aos professores da PUC-SP, meu respeito e minha admiração. Márcia por todo o conhecimento que partilha sem temor, Heloísa pelas aulas deliciosamente instigantes, Denise pelo fascínio que desperta com sua capacidade de olhar a vida de maneira tão incrivelmente nova, Maria Odila a quem peço desculpas pela minha incapacidade de acompanhar seus passos, Olga por me sacudir e fazer escrever. Betinha, sempre Betinha! Obrigada por ser essa super secretária, pelo sorriso sempre estampado no rosto, mesmo quando todos os telefones estão tocando e há uma fila de gente esperando pra ser atendida. Você é incrível! Agradeço a professora Dra. Maria Izilda Santos de Matos e ao prof. Dr. Marcelo Flório pela leitura generosa que fizeram do meu texto de qualificação. Mais que isso: agradeço por iluminarem meu caminho de pesquisa. Tentei seguir à risca suas sugestões. Espero ter ficado ao menos perto do que vocês esperavam. À minha orientadora Professora Dra. Yvone Dias Avelino, por ter me acolhido no momento em que senti mais abandonada. Jamais cansarei de agradecer por tudo que fez por mim. O carinho, a suavidade, a voz macia, os apontamentos certos, as conversas, os conselhos. Tudo em você é bonito e digno de ser celebrado! “Agradeço ao meu Deus todas as vezes que me lembro de você”! À Capes pela bolsa de estudos que me possibilitou desenvolver este projeto que ora apresento em forma de dissertação. E por fim, agradeço à professora Maria Conceição Pereira Martini, que conforme disseram alguns de seus admiradores, deve estar fazendo artes no céu... Ao final do caminho me dirão: – E tu, viveste? Amaste? E eu sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes. Aos nomes no meu coração. É preciso recusar a idéia de que as mulheres seriam em si mesmas um objeto de história. É o seu lugar, a sua condição, os seus papéis e seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que pretendemos perscrutar, a diversidade de suas representações (...) que queremos captar nas suas permanências e nas suas mudanças. História decididamente relacional que interroga toda a sociedade e que é, na mesma medida, história dos homens. Michelle Perrot RESUMO A presente dissertação Intimi(ci)dades Femininas em Piraju-SP nos Anos Dourados, apresenta questões referentes ao universo feminino numa cidade do interior paulista, no período compreendido entre 1950 e 1964, conhecido por Anos Dourados. Num diálogo com a História das mulheres, o cotidiano feminino da elite pirajuense é analisado através da trajetória da professora de Economia Doméstica e poetisa Maria Conceição Pereira Martini, objeto desta pesquisa. Os discursos da modernização da cidade e dos sujeitos, do controle dos corpos e alma feminina são analisados nas poesias da professora, nos livros e cadernos de Economia Doméstica e nos jornais pesquisados. Palavras-Chave: Mulheres; Educação; Poesias; Modernidade. ABSTRACT Female Intimaci(ti)es in Piraju – SP in the Golden Years. This dissertation presents issues related do the female universe in a town of the state of São Paulo in the time span 1950-1964, that is, the Golden Years. In a dialogue with women´s history, we have analysed the female daily life of Piraju´s elite, through the trajectory of the housekeeping economy instructor and poetess Maria Conceição Pereira Martini, object of this research. The discourses of modernization of the town and subjects, of the control of female bodies and souls are analysed in her poems, in the books and notebooks on housekeeping economy and in the newspaper we have researched. Keywords: Women; Education; Poetry; Modernity. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................................15 CAPÍTULO 1 Uma vida de “Maria”, um olhar de “Maria” na Piraju dos Anos Dourados. ........................23 CAPÍTULO II A modernidade invade a intimi(ci)dade pirajuense ...............................................................45 2.1. Flanando pela cidade dos homens: um olhar feminino no projeto modernizador pirajuense.................................................................................................................................46 2.2. Intimi(ci)dades femininas em Piraju.........................................................................61 CAPÍTULO III De corpo e alma: uma breve história de corpos saudáveis e moral ilibada na Piraju dos Anos Dourados .........................................................................................................................79 3.1. Corpos.....................................................................................................................81 3.2. Silêncios do corpo feminino em Piraju.....................................................................95 3.3. Alma.........................................................................................................................98 3.4. Aprender e ensinar a ser esposa e mãe................................................................107 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................119 FONTES E BIBLIOGRAFIA......................................................................................................122 ANEXOS...................................................................................................................................140 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagem 1. Diploma de normalista de Maria Conceição Pereira Martini. 1946. Imagem 2. Maria Conceição Pereira Martini e os filhos Silvio, Selma e Fernando durante solenidade de entrega de título de Cidadã Pirajuense. Piraju, 17 de dezembro de 1996. Acervo: Fernando Pereira Martini. Imagem 3. Anúncio Regulador Fontoura. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 16 abr. 1950. Imagem 4. Anúncio Regulador Sedantol. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 14 set. 1952. Imagem 5. Anúncio Peitoral de Scott. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 14 jul. 1956. Imagem 6. Anúncio Heliogás. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. Anos 50. Imagem 7. Anúncio Lava Roupa Prima Econômica. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. 19 fev. 1963. Imagem 8. Anúncio Máquina de Costura com motor Arno. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. Anos 50. Imagem 9. Professora Conceição e alunas entregando roupas de bebê produzidas nas aulas de Economia Doméstica. 17 out. 1956. Fonte: Arquivo particular Família Martini. Imagem 10. Anúncio Lingeries Valisere. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. P.3. 21 jan. 1960. Imagem 11. Anúncio Geladeira Clímax. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 12 dez. 1957. Imagem 12. Anúncio Produtos Walita. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 04 mai. 1957. Imagem 13. Práticas esportivas femininas às margens do rio Paranapanema. Retirada de vídeo produzido nos anos 50. Imagem 14. Estudantes apresentando-se aos professores na Escola Normal. Retirada vídeo produzido nos anos 50. Imagem 15, 16, 17. Práticas e habilidades femininas: jardinagem, cozinhar. Fonte: Cadernos de Economia Doméstica. Imagem 18. Desfile em Piraju no final da década de 50. Retirada de vídeo produzido nos anos 50. Imagem 19. Fotografia: Exposição de Trabalhos Manuais em 1959. Fonte: Arquivo particular da família Maria Conceição Pereira Martini. Imagem 20. Fotografia: Exposição de Trabalhos Manuais em 1963. Fonte: Arquivo particular da família de Maria Conceição Pereira Martini. Imagem 21. Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 22. Lavadora de roupas Brastemp. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 23. Anúncio sabão Minerva. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 04 mai. 1957. Imagem 24. Anúncio Ferro de passar Walita. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. 15 mai. 1951. Imagem 25. Ferros de passar. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 26, 27 e 28. Enlatados, cozinhas americanas e eletrodomésticos. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo, Ana Célia Romero e Tânia Regina Assaf Guerra. Piraju-SP, 1957, 1959, 1960 e 1973. 15 CONSIDERAÇÕES INICIAIS “A real descoberta não consiste em visitar paisagens novas, senão em ver com olhos diferentes.” Marcel Proust, escritor francês (1871-1922) Ao intitular este trabalho Intimi(ci)dades Femininas nos Anos Dourados, desejei expressar as relações femininas cotidianas no coração da cidade. A cidade reside no centro da intimidade daqueles que nela vivem. Entendemos que a história não é cíclica com retornos a mesmos pontos, nem linear com passado, presente e futuro pré-definidos. Acreditamos que a História se delineia serpenteando em consonância com as construções humanas, sejam elas materiais ou intelectuais. Compreender a história de minha personagem, a partir de um olhar de pesquisadora constitui uma grande tarefa e um grande desafio. A novidade da História das mulheres não reside no fato de antes não ser presente: a novidade consiste num novo olhar sobre elas. As mulheres sempre estiveram presentes, mas encobertas pois não conseguiam falar de suas experiências, sentimentos e práticas com suas próprias vozes. Eram sempre representadas pelos homens. Foi especialmente a partir dos anos 60 que com o movimento feminista, a mulher conquistou o direito de contar, escrever e refazer sua história. Práticas, valores, sonhos, sentimentos e vivências femininas quando observadas por homens acabam por perderem sua essência e passam a ser desvalorizadas. E é em busca dessa essência e das particularidades que trazem em si que devem partir as mulheres para serem desveladas. Confesso que os novos objetos da História, entre eles a História das Mulheres, não estiveram profundamente presentes na minha formação na graduação. O pensamento marxista muito forte, não deixava outras idéias penetrarem, mas deixou indícios, grandes curiosidades e a vontade de conhecer e estudar outras formas de compreender o mundo e os processos históricos. 16 Comecei a me encantar com o tema, após a graduação, quando conheci a obra de Michelle Perrot. Decidi que gostaria de trabalhar com diários íntimos e autobiografias, mas a dificuldade em encontrá-los na região em que me propus pesquisar converteu-se em um entrave para a realização do desejo de um mestrado. Não havia fontes suficientes para escrever uma história das mulheres a partir de diários e autobiografias. Provavelmente neste ponto tenha vivenciado a dificuldade observada por Michelle Perrot em escrever uma história das mulheres e encontrar seus relatos, já que os arquivos privados tratavam quase que exclusivamente dos “grandes homens” e suas relações com a cidade e os arquivos particulares até pouco tempo tratados com indiferença, foram sistematicamente destruídos por herdeiros desligados de sua importância histórica ou mesmo pelas próprias autoras desses registros, talvez receosas que seus segredos pudessem vir à tona ou ainda num processo de autodesvalorização de suas memórias.1 Procurei várias professoras e mulheres idosas de minha região para tentar encontrar escritos autobiográficos que pudessem servir como fonte para este estudo, mas as respostas que encontrei foram bastante parecidas: “Diários? Sim, eu escrevia muito quando jovem e solteira, mas depois que casei, queimei todos eles. Imagina se meu marido visse o que estava escrito lá”. Nas respostas podemos vislumbrar uma representação do que é ser feminina. O diário é para as moçoilas casadoiras que, enquanto aguardam o marido vindouro, compartilham com o papel a sua espera. Depois de casadas, não lhes fica bem continuar escrevendo em diários, já que neles se registra a espera do marido e talvez mais que isso: de um grande amor. Após sua chegada – a do marido é quase certa, a do amor nem sempre – há então o abandono do hábito de confessar-se ao caderno, já que não cabe mais à mulher casada desejos pueris, conforme diagnosticava a sociedade machista. Após minha mudança de Ourinhos para Piraju e continuando a busca por fontes, percebi que esta pitoresca cidade do interior de São Paulo, distante 60 km de Ourinhos, 320 km da capital paulista, pertencente ao Vale do Paranapanema e quase na divisa com o estado do Paraná podia render bons frutos na pesquisa que eu ainda perquiria, ou seja, partir da idéia para investigar as fontes. 1 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. 17 Cidade antiga na idade, na arquitetura e em muitas de suas relações sociais, encontrei em Piraju, um bom material para realização do que desejava. Das mais antigas cidades da região do Vale do Paranapanema, no sudoeste de São Paulo, Piraju cujo significado vem do tupi-guarani e quer dizer “peixe dourado”, tem 135 anos de fundação e 127 desde que foi elevada à categoria de município. Primeiramente povoada por índios caiwá, reza sua tradição que foi desbravada por três pioneiros, que foram os fundadores da cidade atual. Um deles, Joaquim Arruda, é bisavô de Maria Conceição Pereira Martini – fio condutor que me auxiliou a desvendar o cotidiano feminino pirajuense nesta pesquisa, mãe de três filhos, separada, poetisa, “arteira e defensora do Paranapanema” – como foi definida. Professora de Economia Doméstica, entre as décadas de 50 e 80. Conceição Martini é a personagem que me ajudou a “dar liga” nesta tentativa de reconstrução histórica da vivência de mulheres pirajuenses durante os “Anos Dourados” entre 1950 e 1964. Sua vida, ações, produções e realizações ajudaram a iluminar meu caminho de pesquisa. Suas poesias, contos e a procura por sua presença e ausência na história da cidade me serviram de mote para olhar efetiva e afetivamente para outras mulheres que vivenciaram o mesmo tempo histórico neste chão de terra roxa. Me apoiei para realizar esta pesquisa além dos escritos da professora Conceição (a maioria deles publicados em 12 obras lançadas entre 1985 e 2002), também no registro cotidiano da cidade através das edições do jornal O Comércio de Piraju – que circulou de 1950 a 1964, em depoimentos de seus filhos, em fotografias de épocas e filmes em cinemascope produzidos durante o período pesquisado. Além disso, cadernos e livros de Economia Doméstica e Puericultura que pertenceram a Conceição Martini e outros de algumas de suas ex-alunas foram pesquisados e analisados. Decididamente, a professora Maria Conceição foi uma mulher comum. Extraordinariamente comum como tantas outras extraordinárias mulheres comuns que viveram e vivem, lutaram e lutam sozinhas pela sobrevivência numa sociedade estigmatizada pelo domínio masculino. Donas-de-casa, trabalhadoras, mães, consumidoras. Muitas, como Maria Conceição, abandonadas pelos maridos, começaram a trabalhar tardiamente para sustentar os filhos. 18 No pertencimento ao comum reside o interesse desta pesquisadora. Em aproximar-se da vivência cotidiana/comum de mulheres de uma época que não a sua para numa tentativa de compreendê-las, refletir seu próprio tempo, seu próprio caminho num diálogo espectador e protagonista. Muito já foi estudado sobre as questões do feminino, mas os estudos de gênero são além de um campo ainda aberto para ser explorado, uma forma de reencontrar as mulheres. A crítica feminista e os estudos de gênero comportam incontáveis trabalhos que se têm realizado no intuito de estimular o debate e transpor as fronteiras da alteridade. O universo masculino, das práticas patriarcais que passou a ser questionado efetivamente com o ativismo da década de 60, embora houvesse antes vozes isoladas de mulheres que se lançaram à escrita feminista como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. Desconheço a existência de um estudo específico sobre história das mulheres na região do Vale do Paranapanema. Jefferson Del Rios, em seu Ourinhos: memórias de uma cidade paulista2 traz alguns depoimentos de mulheres da sociedade ourinhense, em forma de testemunho oral. Tanto Del Rios quanto o professor Miguel Cáceres que publicou Piraju: memórias políticas e outras memórias3 tratam as mulheres como meras espectadoras do processo de desenvolvimento das cidades do Vale do Paranapanema.4 Creio por não haver nada semelhante escrito, nem por haver sido dada a importância devida ao papel da mulher na construção desta região de terra roxa, que outrora já foi berço do café e hoje é invadida pela cana; de grandes rios que, se antes representavam imensas belezas naturais, atualmente desfigurados, geram energia para o “estado locomotiva” e ferrovias por onde se transportavam riquezas e que agora vivem abandonadas. Esta dissertação de mestrado vem dar sua contribuição: auxiliando no aprofundamento da história das mulheres em especial, no Vale do Paranapanema historicizando experiências femininas, dentro da cultura 2 DEL RIOS, Jefferson. Ourinhos: memórias de uma cidade paulista. Ourinhos, SO: Prefeitura Municipal, 1992. 3 CÁCERES, Miguel. Piraju: memórias políticas e outras memórias. São Paulo: Pró-Texto Comunicação e Editora Ltda, 1998. 4 Ainda sobre Piraju, há: LEMMAN, Constantino Piraju: seu passado e seu presente. Piraju, SP: Gráfica Invicto, 1959. 2 vol. O autor que era russo e um ex-soldado da guarda imperial radicou-se na cidade após fugir da Revolução Russa. Constantino Lemman também foi editor de O Comércio de Piraju no período pesquisado. 19 própria dos Anos Dourados no século XX e buscando conhecer o lugar destinado às mulheres neste processo e as práticas e representações de que está embutido. O recorte cronológico escolhido para esta pesquisa engloba parte dos chamados “Anos Dourados”, compreendendo de 1950 a 1964, embora as digressões da memória permitam às vezes extrapolar estes limites. O pensamento inicial deste trabalho tinha uma divisão diferente desta que ora é apresentada em forma de dissertação. Durante a Banca de Qualificação, ocorrida em 25 de abril de 2008, uma nova proposta de divisão foi sugerida após a leitura generosa dos professores doutores Maria Izilda Santos de Matos e Marcelo Flório. Juntamente com minha orientadora Professora Dra. Yvone Dias Avelino aceitamos a sugestão que muito ajudou na organização do texto final e clareou caminhos que pareciam ainda obscuros. As poesias e contos da professora Conceição Martini foram ponto de partida para este estudo. Delas, foram extraídos indícios que permitiram acompanhar e compreender sua história de vida e a história das mulheres pirajuenses no tempo recortado para esta pesquisa. As entrevistas com os filhos de Conceição constituíram importante fonte para iniciar este trabalho. Posteriormente, realizei a leitura do jornal O Comércio de Piraju, no período compreendido entre 1950 e 1964, encontrando nele os apelos e os ícones da modernidade: anúncios e mais anúncios de geladeiras, fogões, máquinas de lavar, mas também de lingeries, reguladores menstruais. Vislumbramos as mulheres como consumidoras, como beneméritas (as da elite) e como trabalhadoras assalariadas (as populares). A leitura do jornal permitiu também visualizar como as mulheres eram vistas pela ótica masculina e as formas com que foram representadas por eles. Questões como a saúde dos corpos, a beleza, a docilidade esperada da mulher se revelaram nessa leitura. Os cadernos de Economia Doméstica de mulheres que foram alunas de Conceição Martini e os livros que ela utilizava em suas aulas ajudaram a traçar um paralelo entre o desejo de ser moderno5 e modernidade6 anunciada e a vivenciada 5 Segundo a Profa. Dra. Yvone Avelino: “O moderno se contrapõe ao tradicional. (...) As cidades transformaram-se em grandes centros privilegiados da produção de bens materiais e simbólicos, cenário para os grandes sociais, tanto ideológicos, quanto estéticos, morais, filosóficos e científicos. Entendemos a produção da modernidade como expressão de interesses em conflito, que de forma dialógica representam a totalidade do fazer social”. AVELINO, Yvone Dias & outros. Arte urbana e 20 no cotidiano feminino pirajuense. Neles observamos a reprodução das representações acerca da mulher ideal naquele momento histórico: aquela que devia ser a esposa perfeita, a mãe dedicada, a consumidora das novidades, a zeladora do lar, da moral e da Pátria, enfim, a guardiã da família e da sociedade. No primeiro capítulo traço uma trajetória da vida de Conceição Martini, dando ênfase ao período do recorte desta pesquisa. Para tanto, me utilizei de registros de outros sobre sua pessoa e feitos e em entrevistas com os filhos Fernando e Selma. Mas acima de tudo, meu encontro com Conceição Martini se deu através de sua escrita, das palavras que escreveu no silêncio da noite, “quietinha em seu quarto” conforme me narraram os filhos. Lendo seus contos e poesias, me tornei de certa forma, íntima de seus desejos, anseios, sonhos e desilusões. Procurei manter o afastamento recomendado do meu objeto, mas por certo, em muitas vezes, sorri e em outras me entristeci com ela. O segundo capítulo é basicamente uma tentativa de “tecer a cidade dos homens e a cidade das mulheres” em Piraju, revelando algumas de suas texturas e discutir a cidade que bradando modernidade deixou transparecer seus fantasmas de conservadorismo e exclusão. Cidade na qual poucas vezes as mulheres puderam ser vistas. Afastadas das decisões e disputas políticas, dos cargos de chefia, do acesso à palavra falada e/ou escrita. Procurei não fazer disso um grande problema, senão mais uma possibilidade para pensar as mulheres e seu papel em Piraju. Também as ausências e o silêncio podem ser reveladores dos discursos. Para conhecer a Piraju feminina nos Anos Dourados, flanei brevemente através do olhar de nossa personagem pela cidade masculina, na qual questões calcadas em cimento e modernização, água e progresso, saneamento e repressão se fizeram constantemente presentes nos Anos Dourados. E por fim, encontrei a cidade das mulheres nas questões da modernização de hábitos, do consumo, do trabalho. reminiscências rurais na obra de Tarsila do Amaral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. nº 19. São Paulo: EDUC, 1999. p.99. 6 Já modernidade, segundo a professora pode ser definida como “um conjunto de temporalidade, que teve como marca as mudanças constantes e ininterruptas em todos os níveis da experiência social.” AVELINO, Yvone. Op. Cit. 21 O paralelo entre o progresso da cidade e o progresso porta adentro invadindo a intimidade feminina em Piraju foi observado através da publicidade inserida nas páginas de O Comércio de Piraju, nos livros da professora Conceição Martini, nos textos e imagens dos cadernos de Economia Doméstica de suas alunas, nas lembranças de seus filhos e em algumas de suas próprias poesias. No terceiro capítulo busquei verificar as vivências, práticas e as representações sobre o corpo e a alma feminina na Piraju desse período. Mulheres que como Conceição Martini ensinava em suas aulas, eram intimadas a desempenhar um papel de relevância para a sociedade burguesa – o de esposa exemplar e mãe dedicada. Neste capítulo analiso questões referentes ao embelezamento feminino, a higiene dos corpos, a eugenia, as habilidades manuais e corporais esperadas de uma mulher e as formas de limitação e controle impostas sobre seus corpos. E ainda, uma análise da educação feminina e das representações dos saberes que se julgavam fundamentais na vida de uma mulher moderna: ser uma boa dona-de-casa, esposa e mãe, saber cozinhar bem, lavar roupa, cuidar da casa com bom gosto. Compreende também como ocorreu a transmissão destes saberes na Escola Normal de Piraju, com ênfase na disciplina de Economia Doméstica ministrada por Conceição Martini no período pesquisado. *** A escolha por um determinado caminho e não por nenhum outro dos que se apresentaram neste jardim de caminhos bifurcados, que constituem uma pesquisa histórica e a própria vida e que possibilitam uma série infinita de tempos que ao se entrelaçarem criam um número infindável de possíveis enredos (dos quais, na maior parte sequer existimos) tem um quê tanto emocional como racional, embora não se descuide em ser tanto afetivo em olhar quanto efetivo em analisar. Escolher pesquisar determinado lugar e sua gente, vivências, valores, representações cabe numa tentativa de assimilar um momento novo que se apresentou na trajetória de vida desta pesquisadora. E dessa forma, redescobrir a história e a mim mesma. Nos chamados Anos Dourados, a personagem objeto desta pesquisa se viu na condição de mulher abandonada pelo marido, com três filhos para criar. E como tantas outras Marias foi à luta com coragem. 22 Através de uma Maria e de sua luta na vida e seu amor e dedicação à educação como mestra e à família como mãe, a todas as mulheres pirajuenses busco, pois recontar um pouco de suas histórias. 23 CAPÍTULO I: Uma vida de “Maria”, um olhar de “Maria” na Piraju dos Anos Dourados. Sempre costumo dizer que Arte é como cavalgar nas nuvens, esculpindo-as, lapidando-as e respeitando a sua forma poética de ser. Tenho certeza que pintada serão pelas mãos de quem tem talento e abnegação para aquilo que faz com tanta maestria. Dona Maria Conceição Pereira Martini foi uma dessas que fez da Arte projeto de vida e como ela dizia: “Eu sou arteira”. Grande artista, grande pessoa, sempre com a mesma postura simpática, alegre, disposta. Salve Maria, grande Conceição! Dona Maria “Artista” Conceição Martini... Agora em outras telas, outros quadros, outras paisagens... o infinito. Um sorriso eterno: Fará muita falta no nosso meio mas, sua lembrança, de uma história dedicada a Piraju, sua história, sua Arte, continuamente estará nos incentivando, norteando. Sua trajetória de vida nos respaldará para continuarmos sonhando e vivendo “arte em Piraju, artes no Brasil”. Não somos pequenos. Continue sorrindo querida, nossa gratidão e contínuo respeito em sua memória... “das lágrimas surgirá um quadro novo e muitos outros”.7 Inicio este capítulo apresentando a professora Maria Conceição Pereira Martini, personagem e objeto desta pesquisa pelo seu fim. Parece paradoxal, mas têm suas razões: recebeu a personagem uma homenagem póstuma, prestada por dois amigos e admiradores de sua história e obra na Piraju8 onde viveu a maior parte de seus anos. A crônica foi publicada no primeiro Natal passado na cidade, após a morte da “arteira” e defensora do Paranapanema, como foi apelidada pelos autores. Isto justifica também o título dado ao capítulo. Resolvi intitulá-lo Uma vida de “Maria”, um olhar de “Maria” na Piraju dos Anos Dourados na tentativa de nele abarcar tanto a vivência da professora Maria Conceição quanto a de tantas outras Marias – pirajuenses anônimas ou não – das quais não há registros disponíveis para recontar suas histórias. 7 MELLÃO; CUEBAS. Um Natal sem Maria. in: O Expresso, Piraju-SP. 30 dez. 2005. p.4. A crônica foi publicada por ocasião do falecimento da professora Maria Conceição Pereira Martini, ocorrido em 19 de dezembro de 2005. 8 Piraju, cidade situada às margens do Rio Paranapanema e distante 320 km da capital paulista. Segundo o IBGE sua população atual é de 28.067 habitantes. Fonte: Contagem da População 2007. Para melhor localizar a cidade, ver mapa em anexo. 24 Michelle Perrot já havia dissertado sobre os silêncios que encobrem as mulheres e dificultam a vida do historiador em reconstruir suas experi(viv)ências, já que: As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito.9 Maria Conceição é uma exceção neste universo de silêncio das fontes. É mister que deixou variados registros de sua vida, seja na forma das poesias e contos que publicou ao longo dos seus 91 anos de existência terrena, ou ainda nas autobiografias que escreveu, nas obras artísticas e sociais que realizou, nas entrevistas escritas e faladas que concedeu, nos livros e cadernos que usou para ensinar e, ainda, na forma de lembranças daqueles que com ela conviveram e ajudaram a recontar essa história. Através de Maria Conceição pretendo observar o cotidiano das mulheres em Piraju, através da análise dos vestígios das relações de Conceição Martini na vida pública/política da cidade. Por ser uma mulher comum e ao mesmo tempo, uma exceção, nos é possível, através dela, vislumbrar o papel das mulheres pirajuenses no âmbito dos estudos do cotidiano e recontar uma das muitas histórias possíveis dessas mesmas mulheres. A personagem escolhida para a realização deste estudo é única em sua capacidade criativa e em sua subjetividade, mas podia ser ao mesmo tempo qualquer uma das incontáveis mulheres que foram (e continuam indo) à luta cotidiana armadas, sobretudo de coragem, força e criatividade. Comum por ter sido uma mulher de seu tempo: mãe, religiosa, esposa devotada mesmo após o abandono do marido. Mas também uma exceção, pois esteve presente na vida política e social da cidade, atuando nas áreas de educação, arte e filantropia, além da militância ecológica. 9 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.17. 25 Os estudos do cotidiano vivem momento de expansão após a crise dos modelos; a busca por novas histórias e por outras memórias, que não as oficiais, tornaram possível um estudo como este, aqui apresentado10. As até então, invisíveis histórias, como as das mulheres enganadas no Tijuco Preto, no final do XIX, e as da professora Conceição e de outras mulheres já no século XX, ganham o interesse do historiador do cotidiano, segundo Michel de Certeau.11 Este não busca mais as grandes histórias legitimadoras, mas sim uma aproximação com as vivências dos excluídos, daqueles que antes não tiveram espaço para contar suas histórias, com as quais na realidade, poucos se importavam. Neste grupo excluído do poder e do saber é que se encontravam as mulheres, dentre outros tantos: operários, jovens, crianças, minorias. É uma dessas histórias que desejo recontar agora. E reconto como ouvi, como compreendi e acima de tudo, como senti... Piraju, década de 50 – vemos nossa personagem retornando à cidade, desembarcando na bela Estação do Ramal da Sorocabana, projetada por Ramos de Azevedo e inaugurada em 1915, mãos dadas com a delicada Selma e esta com o irmão Silvio, no colo o pequeno Fernando, trazendo nas malas além das roupas; sonhos, esperanças e promessas de tempos melhores que haviam de vir desde que o marido a abandonou – materializados num atestado de aprovação em concurso público para professor. Corta! Em outro plano, as lentes se abrem para uma cidade em ritmo de cinemascope: construções que se anunciavam aos montes, um frenesi de melhoramentos urbanos convivendo lado-a-lado a medidas sanitário-repressivas – brados da entrada pirajuense nas veredas da modernidade – apresentados nas telas de seus três cinemas e em outras telas Brasil afora. Em Fartura, cidade próxima à Piraju, 27 de abril de 1914, nasceu Maria Conceição Pereira, filha de José Duarte Pereira e de Adelina Pereira. Conceição Martini era bisneta de Joaquim Arruda, que junto com Gracianos e Faustinos são considerados os fundadores de Piraju, chegados em meados dos 1800. 10 HELLER, Agnes [et al.] A crise dos paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. 11 Ver: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1986. 26 O pai, José Duarte Pereira foi a primeira vítima da Gripe Espanhola12 residente na região: Em 1918, meu avô trabalhava na prefeitura de Fartura e chegou um viajante já com a gripe espanhola. Ele faleceu e meu avô foi um dos que conduziu o corpo ao cemitério. Já voltou de lá com os sintomas, chegou em casa puxou o chapéu da cabeça e disse: “Acho que peguei a danada.” E de fato foi para a cama e poucos dias depois faleceu, deixando a minha avó com quatro crianças. A minha mãe era a mais velha e inclusive um bebê recém-nascido.13 A mãe de Conceição ficou viúva com quatro filhos pequenos, tendo que trabalhar para sustentar a família. Maria Conceição, tempos depois, passou pela mesma situação: E a vovó ficou sozinha, lutando e labutando... ela arrumaram um emprego para ela na escola, costurava camisas, cuecas, pijamas, muito bem-feitos e fazia pirulitos para vender para a criançada. Então com essa luta, a mamãe foi criada, sem o pai presente, mas com a vovó muito firme, muito segura na criação, sozinha ali. Isso mesmo aconteceu depois mais tarde com ela, nós morávamos em São Paulo em 1950 (+) e meu pai saiu de casa, para aproveitar a vida moço novo, bonito e a mamãe ficou com os três filhos, inclusive o Fernando que era o menor com três anos, eu com 13 e o Silvio com 14. Minha mãe também lutou sozinha para nos criar. Muita fibra, muita firmeza e nos proporcionou uma vida muito boa.14 Menina prendada – assim como deviam ser todas as meninas de seu tempo – Maria Conceição aprendeu a pintar e bordar, cozer e coser, escrever e sonhar. Professora dedicada, ambientalista ferrenha, cidadã compromissada, artista polivalente lecionou saberes e prazeres, defendeu causas, pessoas e deveres, criou obras e deu vida a sonhos. 12 A Gripe Espanhola assolou a Europa e espalhou-se por outros continentes, chegando ao Brasil em setembro de 1918. Milhares morreram, a população assustada evitava sair às ruas e faltava gente até mesmo para enterrar as vítimas, tamanho o número de contagiados pela doença. Ver também: TEIXEIRA, Luis Antonio. Medo e morte: sobre a epidemia de Gripe Espanhola de 1918. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ Instituto de Medicina Social, 1993. 32 p. Série Estudos em Saúde Coletiva, n. 59. 13 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini Assaf: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 14 Idem. 27 Filha devotada, esposa perene e mãe afetuosa registrou em versos as saudades dos pais, a paixão eterna pelo marido e o amor incondicional aos filhos. Minha mãe Tão forte Tão íntegra Tão batalhadora Tão jovem, ficaste ao leme de um barco cujo capitão tão querido foi chamado por Deus Foi tua herança maior quatro rebentos pequeninos Que amaste, criaste e lhe deste sublime lição de vida Mãe. Na minha saudade vejo-te ainda Viva forte íntegra e batalhadora A me dizer como devo ser.15 Meu pai. Como me lembro! Moço alto moreno bonito Tão pouco usufrui de sua presença, pai E ainda me lembro: Na cama, não me deixaram Chegar perto de ti Vi homens te levarem Para onde? Esperei, pai, e não voltaste...16 Filha querida Botão de rosa rosa em botão perfume do meu jardim menina moça moça menina és um presente que Deus deu para mim17 15 Fonte: Caderno de Poesias de Maria Conceição Pereira Martini. Piraju-SP, s/d. Idem. 17 Idem. 16 28 Não sei Se sou poetisa não sei sei que ao olhar para o céu sinto o azul transcendental sinto a brisa no meu rosto qual carícia fraternal18 Um beijo na face um doce abraço e A pergunta que não consegue evitar: - Mamãe, onde está o Papai? – Ele não vai mais voltar? - Viajou, filhinho e vai demorar...19 Professor aposentado Vocação ou imposição ganha-pão ou profissão nossa vida foi sempre doação...20 Selma e Fernando, filhos da professora Conceição, narraram que em 1932, a mãe estudava Escola Normal em Botucatu e que durante a Revolução, quem transportava as moças do colégio para a cidade eram os soldados gaúchos, que iam e voltavam de Piraju ouvindo troças das normalistas. A cidade e em especial, a ponte, constituíram cenário de batalha entre as tropas do governo federal e os paulistas. Estratégica para ambos os lados, foi disputada, bombardeada e defendida pelos soldados aquartelados em suas duas extremidades, conforme me narrou numa entrevista a professora Carmem Machado, conterrânea e contemporânea à professora Conceição Martini.21 Invadida por milhares de soldados gaúchos, Piraju carrega como toda a região, marcas da Revolução, seja nos artefatos de guerra porventura encontrados até hoje, seja nos nomes das ruas e praças que prestam homenagem ao fato ou mesmo, nas rodas de conversas dos mais antigos que ainda fazem memória do acontecimento. 18 MARTINI, Maria Conceição Pereira. Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.43. 19 MARTINI, Maria Conceição Pereira. O segredo. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.12. 20 Op Cit. Caderno de Poesia, s/d. 21 DIAS, Carmen de Oliveira. Carmen de Oliveira Dias: depoimento [jan. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Ourinhos, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 29 Das lembranças dos conflitos presenciados nos anos 30, Conceição escreveu anos mais tarde a poesia Pola lei et pola grei: M arcaram com sangue M arcaram com a vida D oada à causa C onstitucionalista N a praça tombaram O rgulhosos V alentes E idealistas D eram tudo por São Paulo E pela Pátria querida J amais sereis esquecidos U fanamo-nos de vós L egastes à posteridade H eróica lição de amor O rgulho sóis dos paulistas – Martins, Miragaia, Drausio e Camargo.22 Maria Conceição aprendeu as primeiras letras na chamada “Escola Tradicional” e presenciou ainda como aluna as mudanças ocorridas na Educação Brasileira, através do movimento da Escola Nova23. Entre as mudanças anunciadas pelo movimento escolanovista, algumas já povoam imaginários escolares desde o final do século XIX, entre elas: (...) a centralidade da criança nas relações de aprendizagem, o respeito às normas higiênicas na disciplinarização do corpo do aluno e de seus gestos, a 22 MARTINI, M. C. P. Pola lei et pola grei. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: Scorttecci, 1992. p. 11. Em Pola lei et pola grei, cujo significado em latim é Pela lei e pela família, visualizamos além da exaltação dos soldados paulistas, a representação do universo que a autora considerava nos seus escritos como o ideal: a ordem e a família como pilares para a vida. 23 O grande nome da Escola Nova é John Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo americano. Pra ele, as escolas deviam deixar de ser lugares para a transmissão isolada de conhecimento e tornaremse pequenas comunidades nas quais o saber fosse construído. No Brasil, as idéias e ideais escolanovistas já estavam presentes em 1882 através da figura de Rui Barbosa (1849-1923). Em 1932, mesmo ano da Revolução Constitucionalista, foi divulgado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Entre os signatários podemos destacar nomes como Lourenço Filho (1897-1970) e Anísio Teixeira (1900-1971), grandes humanistas e nomes importantes de nossa história pedagógica. 30 cientificidade da escolarização de saberes e fazeres sociais e a exaltação do ato de observar, de intuir, na construção do conhecimento do aluno.24 Tais idéias se fizeram fortemente presentes nos métodos de ensino e nos saberes difundidos pela professora Conceição, mesmo que não tenham alterado significativamente o cotidiano escolar nacional, pois foram intensamente negociados e reapropriados na prática docente cotidiana.25 Seus estudos na Escola Normal foram interrompidos para casar-se com Américo Martini. Mais tarde retornou esses estudos, que só foram concluídos em 1946, já grávida de Fernando, seu terceiro filho. Segundo a filha Selma Carolina Martini Assaf, em entrevista realizada em 27 de janeiro de 2007: Lá [em Fartura, onde nasceu] ela fez as primeiras letras e depois foi enviada para Botucatu para o colégio e deu continuidade aos estudos, porém não terminou porque ficou noiva e o noivo não quis que ela estudasse. Só mais tarde, quando nós já éramos crescidos, eu e o Sílvio, os dois mais velhos, foi que ela voltou a estudar em São Paulo no Padre Anchieta. Ela formou-se em 1946.26 No final dos anos 40, a repercussão das idéias da Escola Nova já havia tomado grande alcance, o que significa que o pensamento educacional de Maria Conceição foi forjado dentro desse contexto. Esse ressoar pode ser sentido através da preocupação constante da professora com a eugenia27 e com a cientificidade dos saberes em lugar do empirismo nos cuidados com a casa, filhos, esposo, Pátria. 24 VIDAL, Diana Gonçalvez. Escola Nova e Processo Educativo. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira, et.all. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 2ª edição. 25 Ver: LOPES, Eliane Marta Teixeira, et.all. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 2ª edição. 26 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini Assaf: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 27 As discussões sobre a eugenia emergiram no Brasil durante as décadas de 1910 e 1920, associando-se diretamente às preocupações nacionais quanto ao estado de saúde, saneamento, higiene e da situação racial da população. Num primeiro momento, a eugenia foi entendida como um ramo da higiene, assim acreditava-se que “eugenizar era sanear”, mas os idéias eugênicos propunham mais do que isso, desejavam a criação de uma nova raça, adentrando assim nos trilhos do progresso e da modernidade cultural e acertando o passo para ser uma nação “realmente civilizada”. Os ideais eugênicos reapropriados pelos regimes nazi-fascistas foram utilizados para justificar o extermínio de milhões de seres humanos julgados como não aptos. 31 Da vida em São Paulo, sabe-se que Conceição e os filhos passaram grandes dificuldades frente às omissões de Américo Martini em seu papel de esposo e pai: ...meu pai saiu de casa, para aproveitar a vida moço novo, bonito e a mamãe ficou com os três filhos, inclusive o Fernando que era o menor com três anos, eu com 13 e o Silvio com 14. Minha mãe também lutou sozinha para nos criar. O papai ele quis viver a própria vida, aproveitar, não foi responsável, quando ele nos deixou, em casa faltava de tudo, inclusive eu e Sílvio perdemos um ano em São Paulo porque não tínhamos dinheiro para a condução para ir pra escola, faltávamos muito por esse motivo e faltava também alimentação dentro de casa.28 Entre 1950 e 1956, uma média de 100 casamentos anuais foi registrada nos livros do Cartório de Registro Civil de Piraju.29 Já os divórcios não puderam ser constatados em números reais visto que a maioria das mulheres preferia não assumir o labéu de “mulher largada” e continuavam casadas perante a lei, embora não vivessem mais com os maridos e já houvesse uma aceitação ainda tímida, é verdade, desse novo modelo de família que se apresentava. Segundo Carla Bassanezi: Os censos demográficos demonstram que as porcentagens de solteiras, casadas e viúvas, entre 1940 e 1960, são praticamente constantes. Quanto às mulheres separadas, sua proporção, ainda que pequena, vai crescendo a cada década.30 E ainda segundo Letícia Costa: O difícil é saber se de fato está ocorrendo uma proporção maior de dissoluções matrimoniais, ou se a maior aceitação da condição de mulher ex-casada está levando à declaração mais freqüente desse estado. Ou ambas as coisas.31 28 Idem. Dados fornecidos pelo Senhor Oficial do cartório do Registro Civil de Piraju, Jefferson Roberto De Chechi e registrados nos livros B18 a B20, de 04/11/1948 a 20/04/1956. 30 BASSANEZZI, Carla Beozzo. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. pp. 412-413. 31 COSTA, Letícia B. Participação da mulher no mercado de trabalho. Vol. 30. São Paulo, CNPQ/ IPEUSP (série ensaios econômicos), 1984. pp.40-41. 29 32 Em 16 de dezembro de 1946, após ter interrompido os estudos de normalista que havia iniciado na Escola Normal de Botucatu, Maria Conceição, grávida do filho mais novo, recebeu das mãos de Marcílio Gonçalvez Ferreira Mendes, diretor da Escola Normal e Ginásio Estadual Padre Anchieta, na capital paulista, o diploma que a habilitava ao magistério primário. Com o diploma de normalista nas mãos, pensou na carreira e prestou concurso público para o cargo de professora de Economia Doméstica e Trabalhos Manuais. Sua primeira nomeação, ainda interina, foi para a cidade de Registro, localizada no Vale do Ribeira, até hoje a região mais carente do Estado de São Paulo, cujo acesso era (e permanece) muito difícil. Os filhos maiores eram deixados com avôs e tios, o mais novo levado consigo. A disciplina Economia Doméstica e Puericultura foi introduzida nos currículos escolares nos anos 20, antes mesmo da Reforma Sampaio Dória.32 Com esta disciplina visava-se preparar a mulher além da profissionalização somente para o trabalho fabril: para desempenhar um papel de relevância para a sociedade burguesa – o de esposa exemplar e mãe dedicada. A introdução dessa cadeira [de Economia Doméstica e Puericultura] refletia a tendência daqueles anos de repudiar o ensino profissional feminino direcionado para atender exclusivamente as necessidades da indústria, ou seja, limitando a formação ao trabalho fabril.33 Com a introdução do trabalho feminino, especialmente a partir da primeira Grande Guerra, a mulher passou a encontrar seu espaço no mercado de trabalho em profissões consideradas ideais à sua condição feminina, ao mesmo tempo em que se preparava para assumir uma dupla jornada – no mercado e no lar. 32 Entre outros pontos a reforma proposta por Sampaio Dória reorganizava o ensino primário, introduzia e novas disciplinas no currículo. A reforma Sampaio Doria foi duramente criticada por teóricos da educação ao longo das décadas e acusada de “diluir o ensino primário na tentativa de democratizá-lo.” Ver: AZANHA, José Mario Pires. Democratização do Ensino: Vicissitudes da Idéia no Ensino Paulista. In: Revista Educação e Pesquisa, mai/ago, vol 30. nº 02. São Paulo: Universidade de São Paulo. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/298/29830212.pdf. Acesso em 15 de setembro de 2008. 33 MORAES, Carmem Sylvia Vidigal. Instrução “Popular” e Ensino Profissional: uma perspectiva histórica. In: VIDAL, Diana Gonçalves & HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. (orgs.). Brasil 500 anos: tópicos em História da Educação. São Paulo: Edusp, 2002. 33 Com quase 33 anos, iniciava sua vida profissional tardiamente, em decorrência da necessidade de sustentar os três filhos pequenos que, com ela, haviam sido abandonados pelo pai. Conceição que em consonância com a criação das mulheres de seu tempo, tinha sido educada para ser esposa e mãe, arregaçou as mangas e foi à luta: Por isso que a mamãe foi lecionar em Registro, foi com a vovó e levou o Fernando, eu fiquei na casa da minha tia em São Paulo e o Silvio veio pra cá na casa de um outro tio. Porque ela teve que inclusive (+) pagar três meses de aluguel que estava atrasado, (+) advogado, imobiliária, ela acabou vendendo os móveis, rádio, as coisas que tinha de melhor em casa ela vendeu para poder pagar (+) porque naquela época as pessoas começavam a lecionar e só recebiam seis meses depois. Então, não podia contar de imediato. Só quando nós viemos para Piraju, depois de ela passar por esses lugares que ela comprou toda a mobília da casa: fogão. Mobiliou a casa e lutou para trazer os filhos de volta.34 34 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini Assaf: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. Imagem 1: Diploma de normalista de Maria Conceição Pereira Martini. Logo após ter voltado a estudar tardiamente para garantir o sustento dos três filhos, abandonados pelo pai, Maria Conceição foi aprovada em concurso público para a cadeira de Economia Doméstica e Trabalhos Manuais dando início a uma nova fase de sua vida. A partir desse fato, nossa personagem ingressou na vida pública, edificando obras literárias e humanitárias. O reconhecimento por seus feitos veio em 17 de dezembro de 1996, com o título de Cidadã Pirajuense, oferecido pela Câmara Municipal. Conceição Martini foi uma das nove mulheres a receber tal homenagem na história do município. 34 35 Convém atentar que não há uma grande ruptura na escolha profissional de Maria Conceição, visto que a Escola Normal visava acima de tudo preparar as meninas-moças para exercer duas funções primordiais: serem esposas e mães. Para isso se argumentavam tanto a ascensão social quanto a preparação para a vida doméstica que a escola normal proporcionava como motivo que as levava a essa escolha.35 ... à medida que o discurso racionalizador invade o espaço social, propondo-se a domesticar a classe operária, surge uma nova concepção do papel a ser desempenhado pela mulher trabalhadora: o de esposa e mãe.36 Mais do que uma opção “natural”, as escolhas profissionais femininas estão intrinsecamente influenciadas por relações díspares entre os sexos, construídas social e culturalmente e marcadas pela distribuição desigual de poderes e influências: A escolha de ser professora, secretária, costureira, bordadeira, enfermeira, ou outras profissões consideradas como tipicamente femininas, longe de fazer parte de opções livremente “naturais”, participa do jogo de poder da sociedade, onde às mulheres compete a maioria dos trabalhos em cuidados e serviços para com os outros37. Logo no ano seguinte ao seu ingresso no magistério público, Conceição conseguiu uma remoção para Piraju. Seu retorno à cidade se deu especialmente por nela residirem os parentes de seu ex-marido (de quem, de fato, nunca se separou, apesar da Lei nº 968, de 10 de dezembro de 1949, que estabeleceu o desquite).38 35 Ver: CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza & SILVA, Vera Lúcia Gaspar. Feminização do magistério: vestígios do passado que marcam o presente. Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2002. 36 MORAES, op. cit. 37 REIS, Maria Cândida Delgado. Imagens flutuantes: mulher e educação (São Paulo, 1910/1930). In: Revista Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) São Paulo: 1994. nº 11. p. 48. 38 Segundo Marlene Fáveri, o divórcio foi instituído somente em 1977. A votação da emenda que estabeleceu o divórcio no Brasil, gerou polêmicas em torno da indissolubilidade do casamento religioso, e das mudanças no contrato civil. O clero e os parlamentares se enfrentavam, e, tanto posições divorcistas quanto antidivorcistas davam ênfase à manutenção e reprodução dos valores 36 Mamãe era bisneta do Joaquim Antônio de Arruda [um dos fundadores de Piraju]. E a família do papai também morava toda aqui. Ela quis vir de São Paulo pra cá pra ficar no núcleo familiar.39 A vida de Conceição não foi fácil, criar os filhos, sustentar a casa – tarefas genericamente masculinas – foram assumidas por ela. Trabalhar fora, colaborando para a manutenção da casa ou ainda provendo sozinha o sustento da família foi papel destinado não só à Conceição Martini, mas à muitas mulheres com o advento da modernidade: ...mulheres casadas se viram carregando o duplo fardo de velhas responsabilidades domésticas e novas responsabilidades no emprego, sem mudanças nas relações entre os sexos ou nas esferas pública e privada.40 Apesar de todas as dificuldades encontradas pelo caminho, nossa personagem criou os três filhos e deu a eles educação, carinho e conforto. Formouos: dois advogados (Sílvio e Fernando) e uma professora (Selma). O amor incondicional foi cantado diversas vezes em suas poesias: Silvio, Selma, Fer São meus três caros rebentos São meus três filhos queridos Fazendo feliz a minha vida41 familiares vigentes. Se a Igreja Católica lutava pela não aprovação do divórcio, os divorcistas apelavam para a imoralidade do desquite, propondo o re-casamento como forma de manter a honra da mulher, recolocando-a nos papéis de gênero. FÁVERI, Marlene de. Desquite e divórcio: a polêmica e as repercussões na imprensa. In: Caderno Espaço Feminino, v. 17, n. 01, Jan./JuL. 2007. 39 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini Assaf: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 40 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 306. 41 MARTINI, Maria Conceição Pereira. Nota escrita à mão no Caderno de Poesias. Sem data. 37 A luta da mãe não foi esquecida pelos filhos, que em entrevista relembraram como foi difícil o começo da vida em Piraju e todo o sacrifício de Conceição para criá-los com dignidade: Fernando: Foi aí que ela conseguiu comprar essa casa, tivemos umas três ou quatro casas alugadas, depois ela conseguiu comprar essa casa. A primeira vez que entrei nessa casa aqui, era uma tapera. Nós morávamos numa casa alugada, mas nova. Eu era criança e não conhecia a pobreza, eles [os irmãos] conheceram a dificuldade. Eu não me lembro da dificuldade porque eu era criança. Saímos de uma casa boa, que era alugada e viemos pra cá. Eu falei: Mamãe a gente vai morar aqui e ela falou você vai ver no que eu vou transformar essa casa! Selma: E ela transformou, ela não consultou ninguém, ela fez a reforma, agora está precisando de uma reformazinha, mas ela deixou a casa do jeitinho que ela queria só ela no papelzinho ali... Fernando: Lareira... Selma: Tudo ela mesmo foi idealizando, conversado com o construtor e modificando porque era tudo totalmente diferente.42 A reforma da casa e a aquisição de bens como a geladeira, que na imaginação dos colegas de infância do filho mais novo, os tornava “milionários” foram proporcionados também pela boa remuneração salarial que os professores tinham na época, relembrada pelos filhos durante a entrevista: Selma: Não era um ordenadinho de professora! [respondendo ao irmão que havia dito que a mãe os criara com um “ordenadinho de professora”] Porque quando a mamãe começou a lecionar professor ganhava bem! O professor foi perdendo isso com o tempo. Ela nos criou, nos deu uma vida super confortável porque ela ganhava muito bem! Só pra você ter uma idéia, eu me formei em 1957 no Curso Normal. Junto comigo formou-se uma senhora que era esposa do juiz daqui Dr. Dálcio. Dona Ana formou-se na minha turma. Mamãe ganhava na época oito mil cruzeiros (+) Não, mamãe ganhava 12 mil e o Dr. Dálcio ganhava oito. Eles estavam em luta para se equiparar ao professor. Por muito tempo, ela ganhou muito bem. Por isso ela pode nos dar uma vida boa, porque era um excelente ordenado. Ela ganhava como ganhava o Banco do Brasil. Naquela época, o Banco do Brasil também pagava bem, hoje já não paga. Fernando: E telefone? O nosso telefone era o 312. Selma: Ela nos deu todo o conforto. Fernando: Nós tínhamos geladeira e era a coisa mais gostosa, eu reunia os meus amigos e nas tardes de calor pegar o gelo pra gente fazer limonada, porque os 42 ASSAF, Selma Carolina Martini; MARTINI, Fernando Pereira. Selma Carolina Martini Assaf; Fernando Pereira Martini: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 38 meus amigos não tinham geladeira, então eu era considerado milionário porque nem os fazendeiros tinham geladeira nas fazendas. Selma: Você que sempre se achou rico Fernando! Nós nunca fomos ricos, mas nós sempre tivemos conforto. Era uma época em que o professor era valorizado, tinha um certo respeito da sociedade.43 A valorização social a que se referiu a filha em entrevista, o respeito adquirido na sociedade pelo fato de ser professora foram muito importantes para Conceição Martini. Em meados dos anos 50, ao professor eram atribuídas, em média, 12 aulas por semana. Tinha tempo de dar suas aulas, corrigir trabalhos, acompanhar seus alunos, e, talvez, ir ao cinema, freqüentar o teatro, tomar um bom vinho, viajar, ler como uma forma de lazer. O professor tinha um número de alunos que lhe permitia falar sem comprometer suas cordas vocais. Sabe-se que ser professor, na época, era ter um status social correspondente ao de um médico, ao de um juiz. Além disso, o salário era compensador.44 A conquista do respeito social não era tarefa fácil para uma mulher separada, nos anos 50, apesar do tema já estar presente no cotidiano, mesmo nas cidades do interior. Segundo Mary Del Priore: Nas primeiras décadas do século XX, toda a ameaça ao casamento era alvo de críticas. O tema do divórcio, por exemplo, era considerado “imoral”; “a pior chaga da sociedade”; “só em casos excepcionais e depois de rigorosíssimo processo”.45 Conceição Martini em entrevista concedida a um jornal local, em 1991, afirmou ser “o seu casamento desfeito” a página mais dolorosa de sua existência.46 As discussões sobre o divórcio travadas nesta cidade durante a década de 50 não lhe retiraram os valores anteriores que tinha sobre o casamento, por esse 43 Idem. ROMÃO, Eliana Sampaio. A expropriação do professor. Disponível em http://www.faculdadecomunitaria.edu.br/programasinst/Revistas/revistas2007/educacao/A_expropriac ao_do_professor.pdf. Acesso em 16 de setembro de 2008. 45 DEL PRIORE, Mary. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. p.259. 46 Jornal O Expresso de Piraju. Piraju. 30 de dezembro de 1991. p.4. 44 39 motivo, a afirmação de que tenha sido o casamento desfeito a mais dolorosa de sua existência, vem comprovar que família e pátria para esta educadora eram os suportes mais significativos. Em 12 de julho de 1953, o editor de O Comércio, senhor Constantino Leman tratou do tema polêmico em artigo direto e bastante claro. Constantino declarou ser o divórcio necessidade em alguns casos, sobretudo quando a mulher, a quem considerava “o sexo fraco e merecedora de apoio e defesa” sofria maus tratos por parte do marido, fossem físicos ou psicológicos e ainda quando este era viciado em álcool ou jogatinas, não trabalhava e expunha esposa e filhos à necessidades e até mesmo à fome: Então, essas mulheres são obrigadas a suportar esse martírio? E os casos de adultério? Tantos e tantos, uns mais revoltantes que outros. Não merecem também o remédio da dissolução da sua infeliz união?47 Na semana seguinte, uma carta intitulada O Divórcio e sua desnecessidade foi enviada ao jornal refutando o artigo de Constantino Leman. Citando os mandamentos da Igreja Católica e a máxima de que “o que Deus uniu, o homem não separa”, o autor não-identificado da carta defendeu com muitos argumentos sua posição contrária ao divórcio: Adultério? Qual será o homem que, refletindo não perceberá a desnecessidade do divórcio em casos dessa natureza? Será possível que a sanção de uma lei atéia servirá para limpar a mancha nojenta da desonra? E notem bem, desonra, no sentido mais comum do conceito popular é adultério por parte da esposa. São tantos, hoje em dia, os esposos adúlteros e tolerados pela pobre esposa. Elas não fazem coro no vozerio a favor do divórcio.48 Honra, desonra – assuntos tão masculinos quanto o poder de decidir questões que interessavam também às mulheres. 47 O DIVÓRCIO E SUA NECESSIDADE por Constantino Leman. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 12 jul. 1953. 48 O DIVÓRCIO E SUA DESNECESSIDADE, carta anônima, Idem, p.2, 19 jul. 1953. 40 O assunto divórcio rendeu “pano para manga”, pois vários outros articulistas e cidadãos se dispuseram a emitir suas opiniões, contestando as idéias uns dos outros ou corroborando com aquelas a que eram simpáticos. Durante as semanas seguintes, vários artigos e cartas podem ser vislumbrados no jornal a este respeito. Pena que nem Conceição Martini nem nenhuma outra mulher enunciou sua opinião no bi-semanário sobre este assunto. Comportar-se como casada ou viúva, freqüentar espaços legítimos para esta categoria feminina, falar apenas sobre assuntos que lhes convém e atuar em convenção com o que se espera dela é forma de manter a distinção social cobrada da mulher. Conceição Martini ao recomendar “fé em Deus, moral ilibada, distância das drogas e muito trabalho e luta” aos mais jovens49 na mesma entrevista em que falou do casamento desfeito, demonstrou a representação do ideal para a professora em manter uma conduta sempre irretocável perante a tênue linha que separa uma mulher direita, porém só, da mulher “falada”. Para a mulher não era fácil se separar, levando em conta que a maioria dependia economicamente do marido. Além disso, ela perderia o status de mulher casada. As mulheres separadas eram chamadas de mulher largada, o que dá a idéia de abandono. Para se manter como uma mulher direita era exigido dela a castidade.50 Mantendo-se casta perante a sociedade e cuidando do pai de seus filhos, quando este voltou para casa, já doente, anos mais tarde, Conceição Martini equilibrou-se nessa corda bamba que era imposta às mulheres de seu tempo. A lágrima quente do arrependimento ao rolar de teus olhos veio molhar minha face unida à tua num gesto de compaixão por tua dor. [...] Meus lábios, como cálice sagrado receberam a hóstia pura da sublimação de tua dor 49 Jornal O Expresso de Piraju. Piraju. 30 de dezembro de 2005. p.3. VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira. Mulheres honestas, mulheres faladas: casamento e papéis sociais. In: FERREIRA, Silvia Lucia & NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador, BA: NEIM/ UFBA, 2002. Col. Bahianas, 7. p. 218. 50 41 num beijo incontestável do mais puro perdão. [...] Lábios nos lábios, braços se apertando com ardor nossas almas se fundiram novamente para o amor na felicidade da reconciliação.51 Mais que isso: conquistou respeito e admiração ao engajar-se em diversas frentes de ação, culturais e sociais. Lecionou por 30 anos nos colégios mais tradicionais da cidade: a antiga Escola Normal e Colégio Coronel Nhonhô Braga e o Grupo Escolar General Ataliba Leonel (hoje chamadas Escolas Estaduais). Aposentou-se nos anos 80, já como professora de Educação Artística, depois que a disciplina de Economia Doméstica e Trabalhos Manuais foi suprimida do currículo. Fundou e/ou participou de organizações de defesa e promoção da vida, da cultura e do meio ambiente. Ela foi professora de Trabalhos Manuais e Economia Doméstica. Então ela ensinou muita gente bordar, fazer tricô, fazer crochê e como ela tinha esse dom de professora, mesmo depois de aposentada, as pessoas vinham aqui e ela ensinava gratuitamente. Ela deu aula diversas vezes nas Casas Pernambucanas ensinando diversos tipos de trabalho. Assim que ela aposentou, formou um grupo de voluntárias da APAE que se reunia toda semana e fazia trabalhos que depois eram vendidos nas feiras, na FECAPI, para a APAE. Ela teve por muitos anos essa função. Depois ela fundou a Associação de Artesanato aqui, também ficou aí por uns sete anos como presidente da associação, é aquela casa que tem ali atrás da Igreja Matriz, é a Casa do Artesão. Ela fazia muitos trabalhos assim... ela lutou pelo rio, quando era para o desvio do rio. Ela lutou junto com a gente lá, ela também foi da primeira diretoria da ADEVIDA, batalhadora e [interrupção do irmão] ‘O AA’. Também foi fundado aqui na casa dela, aliás a primeira reunião foi aqui na casa dela com as autoridades e depois foi em frente e está aí até hoje. Ela se envolvia em tudo, porque ela era muito dinâmica, atenta a tudo (+). Ah sim, a FECAPI, a primeira FECAPI ela participou desde o início, levou as moças para São Paulo, as recepcionistas no canal de televisão, levou-as para conversar com os deputados, ela estava sempre ligada aos movimentos da cidade.52 51 MARTINI, Maria Conceição Pereira. Reconciliação. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.45. 52 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini Assaf: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 42 Escreveu poesias e contos. Publicou centenas e deixou outras tantas inéditas. Conceição escrevia à noite, quando se ausentavam as vozes e exuberavam os sentimentos, conforme narraram os filhos em entrevista: Selma: Era quietinha à noite, no quarto dela, ela ficava fazendo as poesias e os contos. Quando a gente via era tudo novidade, não falava nada, ficava lá quietinha, ela gostava muito de ler, de palavras cruzadas e à noite no quarto ela fazia suas poesias, seus contos... Nós temos aí treze livros, antologias né (+)... com os contos dela e um livro que é só dela. E tem aqui inúmeras poesias inéditas... umas 130 mais ou menos.53 Sua escrita esteve sempre embebida em sentimentos e religiosidade, constituindo-se, sobretudo, numa reescrita de si mesma capaz de fornecer pistas, indícios sobre o contexto em que viveu quando analisada juntamente com a vida da personagem e com outras fontes que possibilitem a reconstrução do seu lugar social.54 Fernando: Muitas vezes eu estava datilografando e ela ditando, e eu via que ela era muito apaixonada pelo meu pai, paixão eterna. Selma: Nós até falávamos que a poesia dela era muita dor de cotovelo. Fernando: Então eu brincava com ela, eu tava datilografando e ela ditando: Ê dorzinha de cotovelo! Ela ficava louca da vida, mas de mentirinha né”.55 Madrugada fria Fora só lamento do vento penetrando a persiana mexe a cortina vaporosa e fina. Cá dentro grita 53 ASSAF, Selma Carolina Martini. Selma Carolina Martini: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 54 PEIXOTO, Marta. Sereia de papel: Ana Cristina César e as ficções autobiográficas do eu. In: SUSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia & AZEVEDO, Carlito (org.). Vozes Femininas: gênero, mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: 7letras: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003. 55 MARTINI, Fernando Pereira. Fernando Pereira Martini: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 43 no silêncio ambiente o tic-tac do despertador e uma saudade grande de um grande amor. 56 Nos mais de 100 anos de existência do município, 77 pessoas foram homenageadas com títulos de cidadãos e/ou beneméritos pirajuenses57. Desse total, somente nove foram mulheres. Duas esposas de governadores e uma deputada. Das seis restantes que realmente viveram na cidade, três eram professoras (incluindo nossa personagem), uma envolvida com o apoio a grupos de terceira idade, uma jornalista, a atual presidente do Fundo Social de Solidariedade que também é a primeira-dama do município. Maria Conceição foi uma dessas mulheres singulares, que alcançaram destaque na vida da cidade e por essa feita, foi homenageada com tal graça. Pela singularidade de sua existência, por sua participação ativa na vida social e cultural pirajuense, pelas índoles que ajudou formar em seus 30 anos de magistério, por todas as obras (artísticas e humanas) que edificou e pela quantidade de registros disponíveis para recontar sua história é que Maria Conceição Pereira Martini vai ser o fio condutor que nos ajudará a contar uma das versões possíveis das trajetórias femininas em Piraju nos Anos Dourados. Também, nesse contexto, como as mulheres viam e sentiam as inovações que o processo modernizador naquele momento no Brasil trouxe porta adentro, em questões importantes à família, como a educação feminina. Entre os assuntos que esta educação pontuava, estavam os cuidados com o lar e com a família, a modernização de hábitos e práticas sociais, do trabalho doméstico através da introdução dos eletrodomésticos na vida cotidiana, as questões do trabalho feminino e as relações das mulheres com seus corpos. 56 MARTINI, Maria Conceição Pereira. Horas Tardias. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.30. 57 Fonte: Câmara Municipal de Piraju. 44 Imagem 2: Em 17 de dezembro de 1996, por decreto legislativo da Câmara Municipal de Piraju, Conceição Martini foi agraciada com o título de Cidadã Pirajuense. Posteriormente, em 23 de maio de 1997, recebeu a placa comemorativa do referido título em sessão solene da Câmara. Na imagem, Conceição Martini ladeada pelos filhos Silvio, Selma e Fernando. Fonte: Arquivo particular da família Martini. 45 CAPÍTULO II: A modernidade invade a intimi(ci)dade pirajuense Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo que sabemos, tudo que somos.58 Ao retornar para Piraju em 1950, qual foi a cidade que Conceição Martini encontrou e como era a cidade encontrada pelas mulheres que nela viveram neste período? Como ela (e as outras) vivenciaram as inovações que a modernização trouxe para Piraju. São questões relativas ao universo feminino que este capítulo vai descortinar: a modernidade porta adentro, uma nova mulher para um novo tempo – esposa/ mãe X trabalhadora/ consumidora. Para conhecer a cidade das mulheres foi necessário procurá-la nas entrelinhas da cidade dos homens, nas brechas em que perfis femininos delineiamse de maneira quase que casual, como se escapassem sorrateiramente das vistas masculinas, encobertos pelas penumbras que cercam a história das mulheres. Essa dificuldade segundo Michelle Perrot reside no fato de que: (...) as mulheres são menos vistas no espaço público, o único, que por muito tempo, merecia interesse e relato. Elas atuam em família, confinadas em casa, ou no que serve de casa. São invisíveis. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranqüila. (...) porque são pouco vistas, pouco se fala delas. Essa é uma segunda razão de silêncio: o silêncio das fontes. As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais.59 Para conhecer a Piraju das mulheres, faremos um breve flanar através do olhar de nossa personagem pela cidade masculina, na qual questões calcadas em 58 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 15. 59 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.16-17. 46 cimento e modernização, água e progresso, saneamento e repressão se fizeram constantemente presentes nos Anos Dourados. 2.1. Flanando pela cidade dos homens: um olhar feminino no projeto modernizador pirajuense. A cidade não pode ser pensada no singular, já que é lugar de convivência da diversidade. Pacífica ou conflituosa, ela se apresenta nas diversas imagens, sons, ritmos, cheiros, cores, sabores que podemos apreender dela. A cidade é lugar de beleza e de massacre, de natureza e de progresso, de cooperação e enfrentamentos, do cultural e natural, de proteção e insegurança, de influências diversas e resistências, de multiplicidades e de solidão, de opulência e medo, de coronéis e política, de ruas de terra e avenidas de asfalto, de casas antigas e projetos modernos, de repressão e liberdade. Nos 14 anos a que se referem esta pesquisa, Conceição Martini testemunhou a ascensão de quatro prefeitos ao poder, a passagem de três párocos pela Paróquia do São Sebastião do Tijuco Preto, o aparecimento e desaparecimento de um jornal de publicação regular (O Comércio de Piraju, que circulou de 1935 a 1938, e posteriormente, de 9 de abril de 1944 a 31 de dezembro de 1964)60. Presenciou as grandes inaugurações públicas da energia elétrica, de cinemas, praças, jardins e fontes, do calçamento e, além disso, inúmeras tentativas de resolver os problemas referentes à falta d’água e a posterior chegada da água encanada à maioria dos bairros do município, as orquestras tocando na praça Ataliba Leonel e os footings da juventude no mesmo local, pelo qual passava todos os dias em seu caminho de casa à Escola Normal. Viu também a febre de transformar a cidade de feições antigas numa outra, de aspecto moderno, através do incentivo à construção de prédios residenciais e comerciais que se adequassem às regras da arquitetura moderna, da abertura de 60 Outros jornais surgiram na cidade após o fechamento de O Comércio de Piraju. A saber: A Folha de Piraju, surgida em 8 de julho de 1965, o Observador, fundado em 31 de maio de 1990 e O Expresso, também fundado na década de 90. Todos em circulação atualmente. 47 largas avenidas e da instauração de medidas de saneamento por muitas vezes, repressivas e eugenistas. Sentiu ainda, as facilidades advindas das inovações tecnológicas e os apelos da modernidade veiculados nos anúncios de jornal. Vivenciou principalmente os reflexos dessa modernidade no cotidiano feminino “porta adentro”, como sugere Maria Izilda Santos de Matos61. A Piraju apresentada pelo único jornal em circulação neste período, pelo vídeo de caráter institucional promovido pela prefeitura, partidos políticos e por fazendeiros e comerciantes e ainda pelos livros de Constantino Leman – editor de O Comércio de Piraju, é uma cidade que desejava ser moderna e conviveu com tentativas de modernização ao mesmo tempo em que persistiram ranços de seu passado conservador/ coronelista. Professora Conceição Martini retornou a Piraju no mesmo momento em que Getulio Vargas voltava à Presidência da República pelo voto popular, mesmo contra a vontade e todos os lamentos daqueles que haviam se unido para derrotar o “ditador” 62, para recomeçar sua vida nova. Sozinha e com seus três filhos para criar. O final da década de 40 e o início dos anos 50 trouxeram para Piraju, dentro do pensamento modernizador que atravessou o país, um desejo de progresso, de futuro. Mas o modelo de modernização brasileiro não era qualquer um: era de cunho conservador em suas estruturas, baseado num populismo multifacetado de governantes como Getúlio, Juscelino, Jânio e Jango, isso sem contar as lideranças estaduais e municipais que seguiam à risca os mesmos princípios.63 Piraju não estava sozinha nessa ânsia de modernização conservadora. Inspirada pelo governo JK e seus “50 anos em 5” e seu apelo nacionaldesenvolvimentista, a cidade recebeu cara nova com construções de casas, praças, fontes, produtos e serviços. Ganhou ainda um apêndice ao nome: “Cidade jardim”. 61 Ver: MATOS, Maria Izilda Santos de. Porta adentro. Criados de servir em São Paulo de 1890 a 1930. In: BRUSCHINI, Cristina & SORJ, Bila (orgs.) Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1994. 62 GOMES, Ângela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, Lilia (org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. vol 4. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000. p.539. 63 Op.cit. p.546. 48 Enquanto no Planalto Central, Brasília ia tomando forma graças ao trabalho de milhares de migrantes nortistas e nordestinos, Piraju ganhou a Brasilinha – a praça recebeu o apelido pela rapidez com que foi construída.64 A década de 50 iniciou-se em Piraju aos brados da reconstrução e da retomada do crescimento perdido desde a crise do café que sempre foi (e permanece sendo) a base da economia local. Discurso que perpassou a história da cidade durante todo o período estudado e cujos ecos ainda podem ser ouvidos na Piraju atual. Na década e meia pesquisada, questões envolvendo a modernização foram constantes nos jornais, documentos, leis municipais que ajudaram a descortinar as vivências e preocupações que se fizeram presentes na cidade durante o período65: Piraju, destarte, dentro da mesma simbiose demográfica que felizmente caracteriza quase todas as cidades paulistas, é obra comum de brasileiros, italianos, espanhóis, portugueses e sírio-libaneses, nessa festa de raças que marca bem o nosso ‘facies’ étnico. Todas essas raças, no século passado, se mesclaram em audaciosa ‘bandeira’ à margem esquerda do rio Paranapanema, no pouso humilde de Tijuco Preto, para edificarem juntas, no decurso dos anos, através de lutas e sacrifícios sem conta, uma cidade moderna, bonita, aprazível, com lindas praças ajardinadas, com telefone, luz, água e esgotos, instituições filantrópicas e culturais, campo de aviação, comércio sólido, agricultura ativíssima, somando enfim, uma célula dinâmica e rica sobremodo atuante na grandeza do Estado-líder.66 Para atestar a onda de crescimento anunciado e a modernização que viria com ele, manchetes estampavam em primeira página a “reentrada pirajuense na senda do progresso”, prenunciando o aumento do número de construções tanto de casas quanto de prédios comerciais, a instalação de novas fábricas, o potencial elétrico, a fertilidade de suas terras nas quais “se plantando, tudo nascia”. 64 A preocupação com o embelezamento da cidade, através da construção de “novas e modernas” residências, dentro do movimento que mobilizou arquitetos e urbanistas por todo o país, motivados pela utopia de remodelar as velhas cidades transformando-as em cidades modernas, planejadas, funcionais e belas para o desfrute das elites e das camadas médias urbanas foi uma constante no período pesquisado. A um arquiteto de nome Alessandro Chiappero se atribuiu a grande responsabilidade pela modernização da cidade ao modificar sua fisionomia através dos projetos do edifício da Prefeitura Municipal inaugurado em 1959 e de várias residências e prédios comerciais da cidade. 65 Para tanto foram analisados 14 anos do Jornal O Comércio de Piraju e o Código de Posturas, Costumes e Bem-Estar do Município de Piraju, entre outras fontes que constam nas Referências Bibliográficas ao final deste trabalho. 64 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 11 jul. 1959. 49 Previsões sobre a supremacia pirajuense também eram freqüentes, apontando que a cidade logo alcançaria lugar de destaque sobre as demais que compunham a Alta Sorocabana. Tais presságios eram sempre justificados por números e fatos: as 77 fábricas presentes na cidade, as máquinas de beneficiamento, a produção de cereais e a exportação de aguardente, refrigerantes, calçados, artefatos de matérias de origem vegetal e animal, fogos e uma série de artigos de “boa aceitação no mercado”, eram afirmadas como valores que vinham pesar na balança comercial do município, aumentando-lhe a riqueza.67 Apesar de todo o alarde, eram tímidos os resultados reais e as previsões nunca chegaram a se concretizar. No final da década de 50, ainda faltavam na cidade “residências bonitas, modernas que valorizassem grandemente a fisionomia urbana”, uma casa de carnes, um moderno entreposto para a distribuição do pescado abundante do Paranapanema, um ‘jazz’, uma estação de rádio, serviços de transporte urbano fáceis e cômodos.68 O processo modernizador de Piraju esteve intimamente ligado com o embelezamento urbano através da construção de novas casas e edifícios, da abertura de avenidas largas, da instauração de medidas de saneamento e repressão e das tentativas de resolução dos problemas referentes ao calçamento urbano e à falta d’água. Desde o início dos anos 50, o problema habitacional foi uma constante na vida da cidade. Para ajudar a solucionar o problema, a prefeitura passou a oferecer plantas gratuitas para a construção de casas. As plantas “de dois ou três dormitórios, de fachadas modernas e bonitas” foram escolhidas pelo prefeito “com a finalidade de possibilitar a todos os pretendentes para construção de residência uma planta conveniente, sendo que a Prefeitura não permitia construções sem planta”.69 67 O crescimento da cidade é averiguado pelo número de construções. (...) Piraju como ponto de convergência de vasta região do País, está passando por notável surto de prosperidade, sendo até lisonjeiros os prognósticos a respeito de sua supremacia, em futuro próximo, sobre as demais cidades da Alta Sorocabana. (...) Pela sua localização e com o potencial elétrico que possui, Piraju poderá ser o maior centro comercial e industrial da região. Suas terras férteis produzem tudo. (...) Piraju cresce, em todo sentido. A cidade amplia suas avenidas, rasga terrenos baldios para construções, acelera o ritmo de progresso, moderniza o seu aspecto, não pode fugir ao destino que lhe está traçado. PIRAJU CRESCE. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 02 julho 1950. Grifo nosso. 68 1958 VERSUS 1957. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 28 dez. 1957. Apesar dos anos 50 serem considerados a década do rádio, em Piraju somente em 09 de outubro de 1960 é que foi inaugurada a Rádio Difusora, após anos de campanhas e promessas. 69 Os populares eram quem mais sofriam com a falta de moradias modestas, com preços acessíveis, visto que a preocupação da elite local era somente com a construção de casas luxuosas e modernas. 50 Já temos focalizado este assunto: a necessidade de se construírem em Piraju casas residenciais. Não palacetes, mas casas. Também, não cortiços, pois, já estão sobrando, e seria mesmo conveniente uma intervenção do poder público no sentido da sua proibição. Enquanto se permitir a construção de cortiços, não haverá construções decentes.70 Para além do incentivo às novas construções de residências modernas quanto das cobranças por moradias populares, outra questão presente no período e que pode ser visualizada através das leis municipais e das constantes referências feitas pela imprensa e discursos dos candidatos em época de eleições dizia respeito ao calçamento das ruas e passeios públicos, que até o fim da década de 50 e atravessando os anos 60, não passavam de caminhos de terra batida que ao menor sinal de chuva transformavam-se em verdadeiros lamaçais intransitáveis. Era já velho sonho do pirajuense, ver Piraju ostentando, como várias outras cidades do interior, a beleza e o conforto do seu devido calçamento. Muito justa aspiração de um povo civilizado, ordeiro, e trabalhador como este da boa terra, cuja fama de progresso batia record em outras eras. Piraju possuía quase tudo, mas, para completar seu ritmo de progresso e melhoramento faltava-lhe o embelezamento de suas ruas pelo necessário calçamento.71 O processo modernizador incluía não só obras de embelezamento da cidade tais quais o incentivo à construção de edifícios modernos e leis para regulamentar o espaço urbano, como também medidas repressivas de combate a velhos hábitos considerados anti-estéticos ou anti-higiênicos.72 Os apelos pela construção de casas acessíveis aos populares era justificado pelo fato de que nenhuma iniciativa que viesse a depender da mão-de-obra trabalhadora podia ser levada adiante já que não havia onde acomodar os braçais que eram necessários para concretizar os planos de modernização da cidade. A superlotação e a absoluta falta de higiene das habitações populares consistia em entrave para o progresso da cidade. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 27 out. 1956; CASAS, CASAS E MAIS CASAS! Idem, Piraju, p.1, 01 jun. 1957. 70 POPULAÇÃO E MORADIAS. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.4, 03 mai.1958. 71 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 07 mai. 1950. 72 Apesar das iniciativas com intuito de inovar a face da cidade, os problemas de habitação eram presentes e constantes, tanto pela escassez de moradias, quanto pela proliferação de cortiços, que iam contra as medidas saneadoras-modernistas que vigoravam com força neste momento. O foco desejado eram as construções de “bonitas residências”. Foram encontradas diversas cobranças para que o poder público proibisse a construção de cortiços e responsabilizasse os moradores que mantinham passeios estragados, portões quebrados e deixavam água esguichando de buracos nos muros em dias de chuva. A CIDADE E SEU ASPECTO EXTERNO. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 04 fev. 1961. 51 Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas, retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinha recursos suficientes para remover. Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.73 As palavras acima, extraídas de um relatório de Graciliano Ramos enquanto prefeito de Palmeira dos Índios e responsável pelo seu descobrimento como escritor, datam de 1928 e trazem em si condições importantes para o processo de modernização: saneamento, limpeza pública e combate a velhos hábitos considerados anti-higiênicos, como a criação de porcos, cães e gado pelas praças e ruas. Não só a presença de cães e gado solto nas ruas e porcos de engorda nos quintais foram proibidas, mas também a de migrantes nortistas e nordestinos como o era Graciliano Ramos. Modernizar incluía o saneamento da cidade, através de medidas repressivas à padrões/comportamentos considerados “atrasados” como a criação de porcos nos quintais tanto da zona urbana quanto da suburbana, sob pena de multa para quem desrespeitasse tal determinação74; outras medidas como a obrigatoriedade de comunicar ao Centro de Saúde todos os casos de moléstias transmissíveis (mesmo as já tratadas), as chamadas “doenças que pega” e a proibição expressa do “estacionamento de caminhões que transportavam famílias do Norte, dentro do perímetro urbano da cidade”75, demonstram além da preocupação com a higiene e 73 RAMOS, Graciliano. Relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios. In: Vivente das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 1962. p.30. 74 Em setembro de 1952, os senhores Vicente Laino e Bertholdo Ferreira de Campos, ambos residentes à Rua Cerqueira César, foram autuados por terem porcos de engorda no quintal de suas residências. Apesar das multas e até ameaças de prisão, vários foram os episódios de reincidências neste delito, o que demonstra que tais ações de saneamento e repressão não eram aceitas com passividade pelos populares. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 07 jul. 1952. 75 O senhor Bartolomeu de Andrade Silva em carta enviada ao jornal, criticou a decisão do chefe do Centro de Saúde, que proibiu expressamente a entrada na cidade de caminhões que traziam pessoas vindas do Norte do país. Dizia que se fosse para evitar a contaminação por doenças contagiosas, as autoridades sanitárias de cidades mais desenvolvidas como a capital paulista e Itapetininga teriam tomado medidas semelhantes, mas não o fizeram e que também não foram tomadas medidas como esta em relação aos caminhões de transporte de porcos e galinhas, cujo odor exalado era bem inconveniente. Cidade de imigrantes, sobretudo italianos, sírios, libaneses e espanhóis, as autoridades pirajuenses consideravam os migrantes nordestinos mais inconvenientes que os suínos. FAMÍLIAS DO NORTE. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 22 mai. 1952. 52 saneamento da cidade, um preconceito e o medo da contaminação pelos que vinham “de fora”.76 Afinal não adiantava modernizar as cidades, se as pessoas que lá moravam não passassem por uma reforma nelas mesmas. Ou seja, os hábitos e comportamentos deveriam também ser modernizados, porém, nem toda a sociedade estava incluída neste projeto. Apenas as pessoas das classes abastadas faziam parte desta modernização.77 Em julho de 52, o diretor do Centro de Saúde veio a público alertar para o perigo dos cães soltos pelas ruas, já que o número de casos de hidrofobia já hia passado de 20. Para resolver a situação e conter o surto de casos de raiva no município, foram propostas medidas de controle e fiscalização78, como o licenciamento do animal mediante pagamento de uma taxa em cujo preço estava incluída “uma focinheira com placa numerada e a vacina preventiva anti-rábica a ser aplicada exclusiva e obrigatoriamente pela Prefeitura Municipal”.79 E o último, mas não menos importante, dos pontos apontados como indispensáveis para a modernização pirajuense foram as tentativas de resolução dos problemas ocasionados pela falta d’água. 76 Tais medidas estiveram fortemente presentes e podem ser visualizadas no jornal em circulação no período e nas leis do Código de Posturas, Costumes e Bem-Estar do Município. 77 GELLACIC, Gisele Bischoff. Bonecas da moda. Um estudo sobre o corpo através da moda e da beleza. Revista Feminina (1915-1936). Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 2008. p.11. 78 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.4, 19 jul. 1952. Sobre este assunto ver: Código de Posturas, Costumes e Bem-Estar do Município de Piraju, artigos 283, 284 e 285 e seus parágrafos e incisos. 79 Entre as medidas de saneamento instauradas na cidade, o recolhimento de cães sem identificação a um local onde eram mantidos por alguns dias para serem reclamados e vacinados após as devidas taxas serem pagas pelo proprietário e caso não o fossem, serem exterminados não foi bem aceita entre a população. A imensa maioria dos cães que vagavam pelas ruas pertencia a pessoas da classe operária, impossibilitada de despender qualquer quantia pelo registro dos animais que acabavam exterminados sem que ninguém reivindicasse sua propriedade. Em setembro de 57, um funcionário do serviço de recolhimento de cães foi agredido por um proprietário que não desejava ter seu cão levado pela carrocinha. Ainda em relação a medidas regularizadoras de saúde e higiene, em janeiro de 56, a prefeitura municipal estabeleceu pontos para estacionamento de charretes, visando “diminuir a concentração desses veículos na Praça Ataliba Leonel, do que resultava graves transtornos à higiene local” e anunciou a apreensão de animais encontrados dentro do perímetro urbano. Cães e porcos representavam riscos de contaminação, já o gado solto pela cidade era uma preocupação antiga devido ao perigo que representava aos transeuntes; não raros eram os casos de estouro das boiadas e pisoteamento. As crianças e os populares da Vila Tibiriçá eram os que mais sofriam com a situação que demorou a ser controlada. Reclamações e protestos populares durante toda década de 50 e invadindo os anos 60 ponteiam a dificuldade em resolver o problema. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 14 jan. 1956; p.1, 21 jan. 1956 e p.1, 14 set. 1957. 53 Água que por ventura era (e continua sendo) abundante no entorno da cidade erguida às margens do Rio Paranapanema e atravessada por dezenas de córregos e ribeirões, mas mostrava-se sempre escassa nas torneiras.80 A falta d’água apareceu junto com os encanamentos recém-inaugurados e os moradores da rua Major Mariano, uma das principais da cidade e por onde trafegava o bonde, reclamavam que apesar do calçamento e encanamento novos, a água antes escassa, mas certa, havia deixado de existir.81 Em 1956, o prefeito eleito Joaquim Camargo, voltou de uma viagem a São Paulo, com garantias de que as obras da rede de água e esgoto e a construção da praça de esportes logo seriam iniciadas, com os recursos do empréstimo conseguido na gestão anterior para essa finalidade que encontrava-se parado à espera dos estudos pela Secretaria de Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo.82 Os anúncios das obras da estação de água e da instalação de uma nova usina hidrelétrica83 foram suficientes para engrandecer os ânimos, que viram a certeza da modernidade tão sonhada aproximando-se ao barulho das águas. A abundância d’água e consequentemente, de energia elétrica, deviam acarretar o desenvolvimento econômico e a expansão sem medidas para a cidade, já que muitas indústrias eram esperadas para se instalarem, aumentando não só sua riqueza quanto sua população. Mais que isso, a água ajudaria a cidade a disciplinar hábitos (seus e dos seus cidadãos), como era desejado numa cidade moderna.84 80 Durante o período estudado, a água mostrou-se quase que artigo de luxo, principalmente naquelas casas situadas nos bairros mais altos em relação ao rio. Dentre esses bairros, foi possível notar que a Vila Tibiriçá ficou sempre relegada ao último plano, quando das tentativas de resolver o problema. Os problemas de falta d’água, encanamento e saneamento básico ficaram pendentes até depois do ano 2000 no bairro popular mais antigo da cidade. 81 DAÍ-NOS ÁGUA, CARTA ANÔNIMA DE UM MORADOR DA RUA MAJOR MARIANO. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 27 nov. 1953. 82 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 1 mar. 1956. 83 A Usina Hidrelétrica Paranapanema foi a primeira a ser instalada na cidade, sendo inaugurada em 1937. A Usina Jurumirim, cujas obras se iniciaram em 1957 foi concluída em 1962. Fonte: site da Duke Energy do Brasil. Disponível em: http://www.duke-e.nergy.com.br/usinas/uhe_jurumirim.asp. Acesso em 10 junho de 2007. 84 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 11 fev. 1956. 54 Criar uma nova relação com a água, numa cidade onde as vivências estavam intimamente relacionadas a velhas formas culturais de perceber e se relacionar com esse elemento que era tão próximo, correndo livre pelo Paranapanema e pelos vários ribeirões que corta(va)m a cidade e atravessa(va)m os quintais não era tarefa fácil. Além das constantes quebras nos maquinários dos geradores da Companhia de Força e Luz, que constituíam um agravante no problema do abastecimento d’água e um entrave na tentativa da cidade em modernizar-se; havia ainda uma outra (e talvez mais grave) questão: a necessidade de enraizar nos habitantes novas formas de se relacionar com a água. Se motivações ecológicas como a necessidade de economizar água e reciclar o lixo são extremamente contemporâneas, nos Anos Dourados ela não se faziam presentes: o serviço de abastecimento apresentava vários problemas, motivados pelo entre outras causas pelo desperdício por parte de alguns moradores que tinham dois motivos para tanto: um era o de prejudicar quem estivesse no poder, por serem seus adversários políticos; o outro, era por “não quererem gastar alguns cruzeiros no conserto de torneiras e bóias, vivendo mesmo com as caixas de descarga estragadas dentro de casa” e havia ainda os “relaxados, que esqueciam torneiras abertas”.85 Como uma cidade que aspirava o futuro podia contentar-se em buscar água nas “biquinhas ou chafarizes”? – indagava o articulista de O Comércio, Seu desenvolvimento pleno exigia água abundante e permanente, tanto para abastecer as torneiras das residências, quanto para gerar eletricidade – fundamental para assegurar seu progresso.86 85 Os pressupostos modernos de higiene e asseio não estavam relacionados a uma consciência ambiental, antes a preocupações com a saúde da população através do impedimento da disseminação de doenças, cujas causas haviam sido recentemente descobertas. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 29 jun. 1957. 86 A construção da usina hidrelétrica de Jurumirim inspirou as projeções de um futuro grandioso para Piraju pois, a usina traria o progresso com letras maiúsculas: Chegou o momento das grandes realizações, o momento da concretização do sonho de todos os pirajuenses, o momento do PROGRESSO DE PIRAJU. Houve mesmo quem dissesse que “se Piraju não desapareceu da face da Terra, foi porque durante as altas horas da noite, se refazia sozinha dos estragos causados por maus administradores”. Piraju será em futuro próximo o maior centro hidrelétrico da América do Sul. Vamos portanto incentivar o progresso da nossa terra contribuindo social e financeiramente. Cerremos fileiras contra tudo o que possa prejudicar o progresso de nossa cidade e empatemos as nossas reservas aqui em Piraju, para que tenhamos um Piraju melhor, um Piraju gigante. TUDO POR PIRAJU. Jornal O Comércio de Piraju, p.7, 23 jun. 1956. Idem, Piraju, p.3, 24 ago. 1957. Grifo nosso. 55 Mais do que uma modernização real, foi o desejo de construir imagens de modernidade de si mesma e da cidade que perpassou a elite local por todo o período estudado. modernizar o país significava, para as elites pensantes brasileiras, tirar o Brasil do “atraso” em que ele se encontrava. Atraso identificado com base nos elementos formadores do povo ou da raça brasileira, atribuídos ao passado colonial e suas remanescências, e agravados pelo clima tropical – negritude, indolência, preguiça.87 No entanto, as relações sociais mantiveram os ranços do coronelismo e do conservadorismo, visualizados em práticas recorrentes como o oferecimento de benefícios em troca de votos. O tabu do ‘coronel’ ainda não desapareceu, no interior do Brasil. O pagé encabresta os coitados e, em troca de uma churrascada, tira-lhes o direito sagrado do voto secreto. (...) Infeliz do povo que conserva o tabu do ‘coronel’ e por ele se orienta.88 A emergência do desejo de um viver moderno não destruiu todas as outras experiências culturais e sociais, nem as subjetividades já existentes na cidade. Antigo e novo passaram a dividir espaço na vivência cotidiana. O moderno foi mais desejado do que significativamente vivido por todos, pois implicava em condições de acesso não disponíveis à maioria dos elementos desta sociedade em análise. Mesmo não sendo virtualmente acessíveis à maior parte da população, os ícones da modernidade invadiram o cotidiano pirajuense, através dos jornais, das conversas diárias e dos desejos de também participar dessa nova onda. 87 PERES, Maria Thereza Miguel; TERCI, Eliana Tadeu. Revisitando a modernidade brasileira: Nacionalismo e Desenvolvimentismo. In: Revista Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas. nº.29. vol.13. Piracicaba-SP: Editora Unimep, 2001. pp-137-154. 88 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 29 nov. 1953. A prática de oferecer churrascadas de fogo de chão era comum e muito utilizada durante os períodos eleitorais na cidade. Durante esses eventos, os populares cuidavam de seu espeto com um olho e com o outro acompanhavam os discursos políticos. Tais eventos acabavam por converterem-se em momentos de sociabilidade, nos quais aconteciam mais do que promessas políticas: rodas de jovens sentadas à grama com seus vestidos vaporosos e risinhos abafados flertavam com elegantes rapazolas em ternos de linho; crianças corriam por entre as pessoas; acordos eram firmados e fofocas disparadas, enquanto grupos folclóricos se apresentavam para deleite dos convivas. 56 O automóvel – símbolo desejado de modernidade e de status dava sua entrada na cidade com intensidade. O Comércio anunciou a chegada do “novo astro da indústria automobilística brasileira: o Aero-Willis” que oferecia uma “superclasse em matéria de automóveis com seu estilo arrojado, em harmonia com as linhas clássicas dos carros modernos”. O Aero-Willis, que recebeu esse nome por ter sido inspirado numa estrutura em monobloco como os mais modernos aviões a jato do período – foi um dos símbolos mais fortes da emergente indústria nacional.89 Elas também estavam ao volante em Piraju já no início dos anos 50. Se não na propaganda do Aero-Willis, na qual apareciam no banco do carona, mas de fato, guiando pela cidade: Sempre gostei de dar as minhas voltinhas pela cidade. (...) Mas o que me agrada, sobremaneira, é ver ao volante umas senhoritas, mocinhas; é bem mais agradável que ver marmanjos. Qualquer um, com prazer dá caminho, vendo um automóvel, ou uma camionete, guiado por senhoritas; todos gostam, param para olhar, esquecem até onde vão ou o que fazem.90 Muitos automóveis exalando fumaça (outro símbolo em potencial dos tempos modernos) e modernidade de seus carburadores, tornavam o trânsito complicado, pois dividiam espaço com caminhões vindos de fora, que trafegavam pela cidade “por causa da ponte sobre o Paranapanema – ponto de passagem obrigatório aos que se dirigiam ao Paraná e Alta Sorocabana”.91 Numa cidade cheia de contradições, desejosa em modernizar-se, mas indisposta a pagar os preços que esse processo exigia, eram constantes as reclamações por causa do tráfego de caminhões em suas ruas e acusações que estes destruíam o calçamento já que “os monstros de mais de uma dezena de toneladas, dia e noite, subiam e desciam suas ruas, ao sabor do capricho”.92 89 Fonte: Carros do Passado. Disponível em: http://www2.uol.com.br/bestcars/classicos/aero-1.htm. Acesso em 28 de outubro de 2008. 90 DIZ O CONDE DE PARANAPANEMA. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 22 jan. 1950. 91 UM APELO E SUAS RAZÕES. Idem, Piraju, p.1, 25 abr.1959. 92 Apesar das leis criadas para regulamentar e fiscalizar a utilização das vias públicas, o trânsito permaneceu complicado por todas as décadas de 50 e 60. O centro da cidade se encontrava praticamente sem fiscalização e podia-se ver “volta e meia dois caminhões parados um ao lado do outro, sem fazer mínima conta de que outros necessitavam de passagem” e tendo que subir em calçadas. CONTÍNUO PREJUÍZO CAUSADO PELO TRÂNSITO PESADO. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 14 fev. 1959 e p.4, 21 jul. 1956. 57 Agravando o estado já precário das vias públicas, havia ainda as “peripécias” dos motoristas locais, que segundo o delegado de trânsito, recém-chegado à cidade em 1959, bem podiam dirigir na Inglaterra, de tanto que transitavam na mão errada: O mais grave a meu ver, é a inversão da mão de direção, que a lei brasileira estabelece ser a direita, e grande parte de motoristas dirige incompreensivelmente, na esquerda. Tenho comentado a respeito dessa anomalia grave do trânsito de Piraju, pilheirando que muito motorista daqui se fosse guiar na Inglaterra, cuja mão de direção é a esquerda, guiaria na direita... (...) Quando se tenta explicar (...) a um motorista errado, ele olha com pose o policial e retruca: ‘Tenho vinte anos de carta’... (...) Entendo que a ocorrência de infrações, via de regra, é fruto da ignorância completa da lei, por parte de motoristas amadores e profissionais, que obtém sua cartas por telefone...93 Muitas coisas mudaram na cidade neste ensaio para adentrar na modernidade: comerciantes auxiliaram nessa tentativa reformando as fachadas das lojas, anunciando e trazendo para a cidade carros importados e eletrodomésticos dos mais variados tipos com a finalidade de facilitar a vida dos pirajuenses, sobretudo das mulheres que eram quem “operavam” tais inovações. Até mesmo a televisão, que muitos técnicos acreditavam ser inviável na cidade devido ao terreno acidentado não permitir uma boa recepção das imagens, marcava sua presença: A Casa Arbex continua com as experiências no campo da Televisão, obtendo resultados bastante satisfatórios. Atualmente está experimentando um moderno aparelho da Phillips que possui inúmeras vantagens, entre as quais: 50 ou 60 ciclos, funcionamento com oscilação de voltagem e outros. Interessante é observar que os técnicos e engenheiros das grandes firmas distribuidoras dos aparelhos da Televisão até agora não acreditam que seja possível em Piraju, obter uma boa recepção.94 Não só a televisão e as reformas urbanas ditavam o tom do moderno, mas também os cinemas, antenados com a “melhor programação da capital” e até mesmo levando o nome da cidade para projeção nacional. Em 1º de maio de 1952, o Cine Central, completamente reformado “com paredes revestidas e pintadas com bastante gosto, que davam-lhe um aspecto desses teatros modernos, em nada lembrando o antiquado salão com sua varanda, de onde os moleques costumavam 93 Custódio Pinto Sampaio ao Jornal O Comércio de Piraju, p.1, 31 jan. 1959. 94 TELEVISÃO EM PIRAJU. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 29 jan. 1955. 58 atirar na platéia o que lhes viesse às mãos” voltou a funcionar exibindo o filme Destino às Nuvens com o artista americano Glenn Ford. A renda da exibição (Cr$ 10.640,00) foi doada à construção da Igreja Matriz.95 Os proprietários do Cine-Central anunciaram em 1957, a instalação de novos equipamentos, apropriados para a exibição de filmes em “Cinemascope e de todas as modalidades modernas de filmes” e também a ampliação da tela “tanto quanto permitisse o prédio”.96 Além da exibição dos mais recentes lançamentos do cinema americano, que colaboravam para ditar o tom do moderno na sociedade brasileira, veiculando idéias e ideais norte-americanos e apresentando (e introjetando) o “american way of life”, a própria cidade se viu projetada além das telas e fronteiras locais, através da exibição “Brasil afora” do filme em cinemascope produzido pelo cineasta Primo Carbonari, que captou em sua objetiva diversos aspectos de uma Piraju em “franco desenvolvimento”, com o arrojo moderno de suas linhas arquitetônicas adentrando ao universo do progresso, conforme era anunciado no referido vídeo. Graças às notáveis e repetidas reportagens nos grandes jornais da capital (...) Piraju é conhecida e devidamente apreciada muito além das fronteiras locais. Agora, passando a ser exibido pelo Brasil afora o recente filme em cinemascope realizado pelo conhecido cineasta Primo Carbonari, a nossa cidade, sem dúvida, ganhará mais em popularidade, fazendo conhecer seus melhoramentos e sua beleza natural. Principiando por uma alegoria, o roteiro do filme dá a conhecer a origem do nome Piraju e, desfraldando em seguida belos aspectos da barragem e a vista geral da cidade, passa a apresentar o novo jardim da praça Benedito Silveira Camargo, a Praça Ataliba Leonel, a Praça Arruda, onde também surpreende as crianças no Parque Infantil na sua hora do lanche e focaliza o notável edifício da USELPA. Subindo mais, demora-se o cinegrafista na Estação de Tratamento de Água, frisando na parte sonora o arrojo moderno das linhas arquitetônicas de seu edifício. Penetrando no interior, apresenta ao público vários aspectos dos serviços de manobras e também o exame de laboratório pelo qual passa a água distribuída à população. Mais alguns passos para a frente e o telespectador acompanha as vistas apanhadas no Cemitério, desde o novo e imponente portão de entrada, quando o comentarista relata o fato de uma senhora idosa que ponderou a alguém que o Cemitério tão bem cuidado já se torna atraente para quem logo deverá repousar ali. Passa-se para o Estádio Municipal, Fábrica de lajotas, Grupo Escolar da Vila Cantizani, Posto Agropecuário, Parque Infantil de uma escola rural do Município, tudo produtos da Administração atual, sucedem-se como agradáveis panoramas, 95 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 06 mai. 1950. No dia 28 de fevereiro de 1953, foi inaugurado o Cine-Jardim, um dos três cinemas que Piraju chegou a possuir simultaneamente. 96 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 02 fev. 1957. 59 aparecendo ainda, aspectos de uma belíssima lavoura cafeeira e, finalmente, surge em toda a sua imponência, a Igreja Matriz, também filmada de dentro, onde foi dado um destaque especial ao altar. Viemos a saber neste instante, que o filme sobre Piraju está sendo exibido no Cine Marabá, em São Paulo.97 Num destes filmes gravados em cinemascope e recuperados pela Diretoria de Cultura do município é possível ver a quantidade de mulheres freqüentadoras dos cinemas. A cena as mostra em grupos animados ou na companhia de rapazes, deixando as dependências do Cine Central, após as exibições de romances, dramas e faroestes.98 Elas sonhavam não somente com artistas de cinema... outros símbolos da modernidade despertavam a atenção e o encanto feminino nos dourados anos pirajuenses. Como não participavam das decisões político-partidárias da cidade, as mulheres pouco apareciam nos jornais, a não ser nas páginas de crônicas sociais que anunciavam bodas, desfiles de modas, aniversários, noivados e nas reportagens sobre eventos em que colaboravam como beneméritas ou ainda nas notas sobre beleza e cuidados femininos. Foi-nos possível ainda conhecer sobre elas, seus desejos e vivências cotidianas através dos anúncios de produtos de toda sorte que apareciam no Comércio, nos fornecendo pistas sobre a modernidade que invadiu a intimidade feminina em Piraju. 97 PIRAJU EM CINEMASCOPE. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.7, 19 set. 1959. As contradições da modernidade podiam ser observadas ao ler as críticas às preferências cinematográficas dos pirajuenses. O gênero faroeste que viveu seu apogeu entre as décadas de 50 e 60, com filmes e séries como Bonanza (1959) e James West (1965), em Piraju foi duramente criticado pelos ditos “intelectuais”, mas estavam no gosto do povo que lotava os cinemas para ver um bom bang-bang. Os críticos atribuíam a preferência à juventude dos espectadores, demonstrando preconceito com a capacidade intelectual dos mais jovens. Apesar do orgulho que se pode perceber em possuir três cinemas, em exibir os mais recentes lançamentos de Hollywood e mesmo de ver a cidade divulgada nos grandes cinemas da Capital, inúmeras foram as reclamações registradas sobre o comportamento dos jovens dentro dos respectivos estabelecimentos durante todo o período pesquisado, os jovens e sua algazarra nos cinemas constaram como uma das grandes preocupações da cidade: “Não basta gritar que a nossa cidade é adiantada, que a nossa população é culta; é preciso que isto seja uma realidade” esbravejou um articulista por ocasião da “perturbação exercida por um certo grupo de jovens estudantes” durante a exibição do filme Mozart em novembro de 58. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 03 nov.1958. E em outra ocasião ao perguntar qual era a preferência cinematográfica do pirajuense: “Far West e muitos tiros! Não adianta trazer filmes que ficaram semanas inteiras em cartaz no cartaz, na Capital; esses aqui não interessam. É, como disse, filmes de cowboy, melhor quando coloridos. (...) Outro tipo que aqui todos apreciam imensamente – os filmes de Tarzan. (...) O público de Piraju, todo ele, é muito jovem?”. O GOSTO NÃO SE DISCUTE. Idem, p.3, 24 mai. 1958. Grifos nossos. 98 60 Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos, vestígios. E isso é uma dificuldade quando se trata da história das mulheres. Sua presença é frequentemente apagada, seus vestígios, desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit, uma falta de vestígios. Inicialmente por ausência de registro. Na própria língua. A gramática contribui para isso. Quando há mistura de gêneros, usa-se o masculino plural: eles dissimula elas.99 Assim, apartadas das discussões, dos documentos e das fontes oficiais, para compor este estudo, os tons da novidade e os reflexos da modernidade adentrando a intimidade feminina em Piraju foram observados através da publicidade inserida nas páginas de O Comércio de Piraju, nos livros da professora Conceição Martini, nos textos e imagens dos cadernos de Economia Doméstica de suas alunas, nas lembranças de seus filhos e em algumas de suas próprias poesias que fazem relatos da vida da mulher na modernidade. 99 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.21 61 2.2. Intimi(ci)dades femininas em Piraju. Anúncio Pílulas – ... de vida eternal - Gerovital ... de impedimento total - Anticoncepcional Pílulas? Ora pílulas...100 A bengala, as moedas, o chaveiro, A dócil fechadura, as tardias Notas que não lerão os poucos dias Que me restam, os naipes e o tabuleiro. Um livro e em suas páginas a seca Violeta, monumento a uma tarde Sem dúvida inolvidável e já olvidada, O rubro espelho ocidental em que arde Uma ilusória aurora. Quantas coisas, Limas, umbrais, atlas, taças, cravos, Nos servem como tácitos escravos, Cegas e estranhamente sigilosas! Durarão para além de nosso esquecimento; Nunca saberão que nos fomos num momento.101 Os poemas de Conceição Martini e Jorge Luis Borges refletem, cada um a seu modo, as preocupações de seus autores com o fenômeno da modernidade. O de Conceição chamado Anúncio, traz no nome uma das questões que tratamos neste capítulo: a venda de tudo que se possa imaginar, o consumo de tudo que estiver ao alcance e o desejo incontrolável de possuir tudo aquilo que não estiver – a qualquer custo. Expressa também a mudança que a modernidade trouxe aos corpos, sobretudo femininos, com o advento da pílula anticoncepcional e dos remédios para retardar os efeitos do envelhecimento. Ser moderno significa também não se deixar ultrapassar pela idade. O que antes significava respeito e sabedoria, agora significa atraso. E para ser moderno, tudo que é antigo deve ser descartado. 100 Poesia Anúncio. Caderno de Poesia de Maria Conceição Pereira Martini. Piraju, SP. s/d. BORGES, Jorge Luis. As coisas. in: Elogio da Sombra. Trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques. Porto Alegre: Editora Globo/MEC, 1971. pág. 24. 101 62 Nesse sentido o poema As coisas de Borges faz um retrato da rapidez com que tudo passa na modernidade: de coisas a ilusões, de objetos a sentimentos, tudo brevemente será mais do que esquecido, será substituído por algo muito mais novo e vibrante. O que é atual agora, logo perde suas cores. Ao falar de modernidade, do que é moderno levamos em conta que a experimentação desse conceito está carregada de subjetividades, sensibilidades, lutas, cooperações, resistências e imbricada pelas diferenças de sua vivência em variados espaços sociais. A modernização de hábitos e costumes no Brasil foi influenciada pelo modelo americano, o “american way of life”, que após a Segunda Guerra consolidou seu campo de ascendência em países subdesenvolvidos da América Latina e em parte da Europa.102 O estilo de vida americano, American way of life, foi adotado amplamente no Brasil, tanto economicamente, quanto socialmente no período de governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956 – 1961). O capitalismo foi definitivamente implantado no Brasil, estimulando o investimento privado e abrindo as portas ao capital estrangeiro. O Plano de Metas pretendia desenvolver o país na velocidade de 50 anos em 5.103 No início dos anos 50, a sociedade brasileira engatinhava rumo ao consumismo. Dos 51 milhões de brasileiros em 1950, somente 35% viviam nas cidades.104 Era para essa nascente classe média urbana, capaz de consumir eletrodomésticos, alimentos, bebidas, artigos de vestuário, produtos de limpeza e higiene, que se voltavam as atenções, especialmente através da publicidade. Segundo Maria Izilda Santos de Matos: 102 Sobre esse assunto ver HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.De todas as características do modo americano de vida, a que mais chama a atenção é o consumo: coisas que até então não faziam falta, passam a serem vistas como absolutamente necessárias. 103 ANDRADE, Maíra Zimmermann de. Transformação Social pela Cozinha: Consumo das Mulheres no Brasil do Desenvolvimentismo. Anais do 3º Colóquio de Moda. FEEVALE, Novo Hamburgo, RS. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/coloquio2007/anais_aprovados/transformacao_social_pela_cozinha. pdf. Acesso em 21 de outubro de 2008. 104 IBGE. Recenseamento Geral de 1950. 63 Nos anos 50, a emergência do desejo de ser moderno generalizou-se por toda a sociedade e passou à esfera do domínio da vida cotidiana. A produção tanto material quanto cultural passou a ter destino nos mercados de massa e ficou ligada às diversas necessidades do dia-a-dia. Da mesma forma, a idéia de moderno estava relacionada a novos estilos de vida, comportamentos e hábitos, difundidos mais amplamente pelos meios de comunicação de massa.105 Reflexo de uma modernidade desejada não somente por eles, mas também por elas que passaram a constituir alvo certeiro desta cultura sedutoramente moderna – a publicidade vinha com força impulsionar a ânsia do consumo – característica marcante destes novos tempos. Dispúnhamos, também, de todas as maravilhas eletrodomésticas: o ferro elétrico, que substituiu o ferro a carvão; o fogão a gás de botijão, que veio tomar o lugar do fogão elétrico, na casa dos ricos, ou do fogão a carvão, do fogão a lenha, do fogareiro e da espiriteira, na dos remediados ou pobres: em cima dos fogões, estavam, agora, panelas – inclusive a de pressão – ou frigideiras de alumínio e não de barro ou de ferro; o chuveiro elétrico; o liquidificador e a batedeira de bolo; a geladeira; o secador de cabelos; a máquina de barbear, concorrendo com a gilete; o aspirador de pó, substituindo as vassouras e o espanador; a enceradeira, no lugar do escovão; depois veio a moda do carpete e do sinteco; a torradeira de pão; a máquina de lavar roupa; o rádio a válvula deu lugar ao rádio transistorado, AM e FM, ao rádio de pilha, que andava de um lado para o outro junto com o ouvinte; a eletrola, a vitrola hi-fi, o som estereofônico, o aparelho de som, o disco de acetato, o disco de vinil, o LP de doze polegadas, a fita; a TV preto-e-branco, depois TV em cores, com controle remoto; o videocassete; o ar-condicionado.106 A casa da professora Conceição Martini e seus ensinamentos nas aulas de Economia Doméstica e Trabalhos Manuais que ministrava na Escola Normal de Piraju ilustram essa nova maneira de viver das camadas mais abastadas da sociedade pirajuense. Dois momentos de sua trajetória nos ajudam a descortinar um pouco desse viver: o primeiro ao retornar para Piraju, quando “vendeu os móveis, rádio e demais objetos de valor” para pagar o aluguel da casa que estava atrasado há três meses” e a posterior reaquisição desse tipo de bem, “inclusive o fogão a gás” e ainda o 105 MATOS, Maria Izilda Santos de. Pelas noites de Copacabana: Roteiro boêmio de Antonio Maria. Disponível em: http://copacabana.com/antonio-maria.shtml. Acesso em 26 de setembro de 2008. 106 MELLO, João Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia (org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. vol 4. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000, p. 564. 64 deslumbramento que a geladeira, que segundo Hobsbawm, nem na Europa a maioria das casas possuía em 1945107, causava aos amigos de Fernando, filho mais novo de Conceição quando se reuniam “nas tardes de calor e pegavam o gelo para fazer limonada.”108 Outros ícones da modernidade também estavam presentes na casa de Conceição Martini: o telefone (um dos primeiros da cidade), eletrodomésticos, móveis.109 Nos cadernos de suas alunas, tanto as lições remetem a esse novo estilo de vida, preparando-as para o exercício das magnas funções de esposa e mãe, quanto os símbolos recortados de revistas e jornais demonstram o afã que os novos objetos de desejo e consumo introjetavam, criando uma nova mulher: consumidora e moderna. O maior apelo da publicidade era voltado às mulheres, que constituíam o alvo principal das intensas campanhas que visavam atrair o público e criar hábitos de consumo na sociedade. Quem melhor que elas para experimentar e incorporar todas essas novidades na vida doméstica e cotidiana? O consumo, segundo Nancy F. Cott, seria antes de mais nada, uma característica da "mulher moderna"; é interessante como a autora citada começa a caracterizar a relação mulher/publicidade: "Os publicitários e os especialistas em técnicas de promoção referiam-se habitualmente ao consumidor como ela". Consumidor torna-se sinônimo de mulher.110 Enquanto no Brasil, os anúncios “ao vivo” durante a programação televisa e do rádio ganhavam força, em Piraju, as novidades se faziam conhecer especialmente através das páginas do jornal O Comércio de Piraju, já que a televisão além de ser privilégio para pouquíssimos, ainda não apresentava boa recepção e a primeira emissora de rádio só foi inaugurada em 1960. 107 HOBSBAWM, op.cit. p.260. ASSAF, Selma Carolina Martini; MARTINI, Fernando Pereira. Selma Carolina Martini Assaf; Fernando Pereira Martini: depoimento [fev. 2007]. Entrevistadora: Luciana Souza Carvalho. Piraju, SP: 2007. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para Dissertação de Mestrado. 109 Idem, ibidem. 110 BONADIO, Maria Cláudia. Publicidade de moda e tecnologias de gênero. Mappin Stores (19141930). NIDEM - Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Moda da UNIP. Disponível em: http://www3.unip.br/servicos/aluno/suporte/nidem/artigos/pub_de_moda.asp. Acesso em 18 de outubro de 2008. 108 65 Bombardeada de todos os lados por informações que tinham por intuito despertar-lhes o frenesi por ter, encontramos especialmente nas páginas de O Comércio anúncios e mais anúncios de “maravilhosas novidades” que iam desde “reguladores menstruais para que a mulher moderna vivesse sorrindo até enceradeiras que nunca mais obrigariam a mulher abaixar-se para dar brilho no chão de sua casa”. Isto significava mais que comodidade: era uma libertação, o colocar-se em pé, sem dores (nem menstruais nem na columa) senhora de seu destino e de seu lar e não mais, escrava deles. Mas ainda assim, parte intrínseca e indissociável do lar. A publicidade gera então uma nova relação: não é só o produto que a propaganda apresenta que é desejado; as consumidoras desejam, consomem, o que este produto passa a significar111, através dos significados a ele atribuídos por meio do anúncio publicitário: juventude, beleza, modernidade, praticidade. Propagandas como as de Menstrol, o regulador do Laboratório Santosin e Sedantol, calmante e regulador da saúde feminina prometiam resolver o “problema mensal feminino, combatendo regras dolorosas, cólicas e complicações, para que a mulher vivesse sorrindo”.112 Tais propagandas deixavam implícito que sem os “incômodos mensais”, a rainha do lar não tinha razões para queixar-se. Já a do Peitoral de Scott prometia acabar com a tosse, aliviando, expectorando e acalmando. Nela, um garboso cavalheiro aparece ajudando uma frágil senhorita a percorrer o caminho que se mostra atrás deles.113 A propaganda demonstra que sempre é necessária ajuda masculina para percorrer o caminho, pois não cabe à mulher caminhar sozinha, seu papel é o de companheira e nunca de liderança, já que a ela falta a centelha da razão.114 111 MIGUEL, Raquel de Barros Pinto. Corpos femininos e publicidade na revista Capricho (décadas de 1950-1960). In: Anais Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, SC: 2008. Disponível em: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST48/Raquel_de_Barros_Pinto_Miguel_48.pdf. Acesso em 18 de outubro de 2008. 112 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 15 jan. 1950 e p.3, 28 mai. 1950. 113 Idem, p.4, 1 mai.1954. 114 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.23. 66 Imagens 3, 4 e 5: Promessas de felicidade eterna. Medicamentos para que a mulher “vivesse sempre sorrindo”. Fonte: Anúncios Regulador Fontoura, Regulador Sedantol e Peitoral de Scott. In: O Comércio de Piraju, Piraju. 16 abr. 1950, 14 set. 1952 e 14 jul. 1956. Muitos modernos benefícios foram amplamente anunciados, como forma de poupar a mulher do trabalho pesado, auxiliando no processo de limpeza da casa. Produtos de higiene, tanto para o lar quanto para uso pessoal representavam a modernização de hábitos de consumo, das formas de realizar o trabalho feminino e de se relacionar com o próprio corpo enquanto instrumento de/ para o trabalho. Com estes produtos, a mulher não precisava mais descabelar-se nem estragar as unhas ao cumprir suas atividades domésticas, além de seguir os modernos preceitos de limpeza e higiene, abandonando velhas maneiras de executar tais atividades. Os anúncios analisados trazem sempre delicadas figuras femininas impecavelmente vestidas, maquiadas, com cabelos arrumados, trajando jóias e “em cima do salto”. As mulheres exibidas em anúncios dos anos 50, e também do início dos anos 60, retratavam o ideal da “moça prendada moderna”, uma vez que deveriam estar atentas aos cuidados da casa, dos filhos, do marido, devendo ainda, manterem-se 67 sempre belas. Para conseguirem cumprir todas essas tarefas, as mulheres contavam com importantes aliados: batedeira, máquina de lavar roupa, sabão em pó e enceradeira de um lado, e cremes contra rugas, sabonetes perfumados e poderosos dentifrícios de outro.115 Para as “senhoras donas de casa”, a Mercantil Santos anunciou um produto revolucionário para manter “o assoalho sempre limpo de brilhante, sem nunca mais ter de usar o antiquado e dispendioso processo de encerá-lo toda semana: Imperlax.” O produto para impermeabilizar pisos e assoalho foi apresentado como uma novidade sensacional que representava economia e comodidade para a dona de casa, que não mais precisava se preocupar em encerar o chão.116 Outros produtos com a mesma finalidade também apareceram diversas vezes: variados tipos de ceras e enceradeiras, de várias marcas: Arno, GE, Walita. A cera Cachopa, por exemplo, prometia valer por três pois “espalhava, rendia e brilhava mais”. Em sua propaganda uma mulher de cabeça desproporcional ao corpo, encerando o chão com enceradeira e um sorriso aberto no rosto117. Já a enceradeira representava uma economia imensa de tempo e principalmente de esforço físico ao passo que substituiu os pesados escovões. Alguns anúncios como o da Lava Roupas Prima Econômica iam além: procuravam demonstrar que com a tecnologia, os serviços domésticos se tornavam tão fáceis quanto “brincadeira de criança”, economizando o tempo e esforço da mulher moderna.118 Antes que a rede de distribuição de água chegasse às casas, e antes da popularização das máquinas de lavar e dos produtos de limpeza industrializados, o ritual da lavagem de roupas consumia horas de trabalho, representando um esforço hercúleo e um enorme desgaste físico que revela sem eufemismo o que também significava ser “rainha do lar”.119 115 MIGUEL, Raquel de Barros Pinto. op. cit. 2008. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju. p.1, 02 mar. 1957. 117 ANÚNCIO CERA CACHOPA. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 31 nov. 1952. 118 ANÚNCIO LAVA ROUPA PRIMA ECONÔMICA. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 19 fev. 1963 119 MALUF, Marina & MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando (org); SEVCENKO, Nicolau (org do volume). História da Vida Privada no Brasil, vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.409. 116 68 Convém lembrar que o trabalho doméstico infantil era uma prática aceitável neste momento.120 As meninas deviam aprender a cuidar da casa “desde cedo”. A novidade que o anúncio desejava demonstrar era a facilidade de operar o eletrodoméstico em questão e sua eficiência, já que muitas mulheres mostravam resistência quanto à sua utilização em substituição aos métodos tradicionais de lavagem de roupa. Como forma de desfazer esse receio, o anúncio da Lava Roupa Prima Econômica indicava que o produto era simples de “instalar, ligar, funcionar, manejar”. Por não ter mecanismos complicados, nem peças delicadas podia ser facilmente manuseado por mulheres. Mas seus mais importantes (e modernos) atributos eram anunciados por tornarem possível à mulher: “lavar roupas em casa de maneira rápida, higiênica e econômica”.121 Não foi só na área de serviço que chegaram as novidades: elas também se apresentaram de forma audaciosa na cozinha transformando o ato de cozinhar que mantinha grande importância nas atividades femininas, mas numa nova roupagem através dos fogões – primeiro a querosene depois a gás em detrimento do velho fogão a lenha – ícone do antigo e que devia ser superado, das geladeiras elétricas, das cozinhas “americanas” com seus ambientes planejados e integrados, das dezenas de eletrodomésticos para substituir o trabalho artesanal e também com: (...) o predomínio esmagador do alimento industrializado. O arroz, o feijão, o açúcar, as farinhas, de trigo, de rosca, de mandioca, já empacotados de fábrica em sacos de plástico e não mais na hora, retirados de tonéis, de sacos ou de vidros imensos e colocados em sacos de papel. Chegou o extrato de tomate; a lata de ervilha, de palmito, de milho, de legumes picados; o leite condensado; em pó, alguns só para crianças; o creme de leite; o iogurte; novas espécies de biscoito e de macarrão; os achocolatados, (...) o pão tipo Pullman, para fazer torradas ou sanduíches, agora em moda. A cerveja, agora também em lata (...) o guaraná, o da Antártica preferido ao da Brahma, (...) a Coca-Cola (...).122 120 Um outro anúncio encontrado nas páginas de O Comércio chama ainda mais a atenção no que tange à relação criança-trabalho: o dos Fogões Liquigás, no qual um bebê na ponta dos pés acende o fogo com um palito de fósforos para esquentar a mamadeira que está numa em um das bocas do fogão. O anúncio pretende chamar a atenção para a “facilidade” e a “segurança” que o produto represente, podendo ser operado até mesmo por crianças. ANÚNCIO FOGÃO LIQUIGAS. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 31 dez. 1955. 121 ANÚNCIO LAVA ROUPA PRIMA ECONÔMICA. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 19 fev. 1961. 122 MELLO, João Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia (org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. vol 4. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000, p.565. 69 Mas o cozinhar não transformou-se somente pela chegada dos eletrodomésticos, dos alimentos industrializados e pela sistematização dos conhecimentos: a própria cozinha transformou-se; se antes estava relegada aos fundos da casa e somente era “habitada por mulheres”, nos Anos Dourados ganhou destaque, cores, inovações: Nos anos 50, a preparação de alimentos e as refeições eram as principais atividades realizadas na cozinha, todavia, atividades sociais entre a família e amigos eram bastante comuns, tornando a Cozinha uma extensão da sala de estar. A área utilizada para as refeições era composta por bancos em uma bancada, por cadeiras em uma mesa ou por um canto confortável projetado como parte da cozinha. Quando não ocupado para as refeições, o espaço era utilizado para outras atividades, como a preparação de alimentos, organização das roupas vindas da lavanderia ou para servir aperitivos em encontros sociais. Ao longo dos anos os móveis antigos da cozinha foram sendo substituídos por plásticos e metais brilhantes em cores modernas como o amarelo, o rosa, o verde e o azul, sendo o branco ainda bastante utilizado. Os pisos, inicialmente de linóleo, também foram gradualmente sucedidos por plásticos de maior durabilidade. Este foi o período na história de maior aquisição de utensílios para cozinha e também de maior aprimoramento tecnológico, possibilitando mais tempo livre para dona de casa. Tamanhas foram as comodidades, que até maridos e filhos se punham a disposição para colaborarem com as tarefas domésticas.123 Inovações de todo gênero foram apresentadas às mulheres para facilitar seu trabalho na cozinha e modernizar também este ambiente da casa: O visual dos equipamentos era de extrema importância e acompanhavam o estilo moderno da época. A empresa General Electric, no final dos anos 40, revolucionou ao introduzir a geladeira com compartimento do freezer separado. Na metade da década de 50, surgiram as geladeiras que produziam cubos de gelo automaticamente e as com portas magnéticas em resposta a grande quantidade de casos de acidentes com crianças. A marca Frigidaire oferecia quatro séries em 10 tamanhos e em dois acabamentos: porcelana ou pintura de alta durabilidade. Na linha dos fogões, a empresa Kelvinator lançou um modelo elétrico com forno duplo e com controle automático de cozimento que permitia a dona de casa cozinhar uma refeição inteira em uma única vez.124 123 MOTT, Tatiana Guirar & RICCETTI, Teresa Maria. Anos 50: Usos e percepções do ambiente doméstico e seus objetos. In: Anais do 4º Congresso Internacional de Pesquisa em Design. Rio de Janeiro, RJ: 2007. Disponível em: http://www.anpedesign.org.br/artigos/pdf/Anos%2050_%20Usos%20e%20percep%E7%F5es%20do% 20ambiente%20dom%E9stico%20e%20seus%20ob%85.pdf. Acesso em 20 de setembro de 2008. 124 MOTT, Tatiana Guirar & RICCETTI, Teresa Maria. MOTT, Tatiana Guirar & RICCETTI, Teresa Maria. op. cit. Acesso em 20 de setembro de 2008. 70 Em setembro de 57, pela primeira vez foi apresentado às mulheres pirajuenses o Heliogás – o gás do subsolo brasileiro, oferecendo rapidez, limpeza e economia no trabalho da dona de casa.125 A propaganda anunciava que os fogões equipados com Heliogás eram “mais rápidos, limpos e econômicos” – características fundamentais na modernidade. A propaganda de Heliogás nos permitiu perceber ainda que o ato de cozinhar era considerado “uma tarefa” potencialmente árdua, difícil e atrasada, já que informava também que a utilização de carvão e lenha estava superada. Fora isso, oferecia uma novidade para “transformar a tarefa de cozinhar num verdadeiro prazer: grandes facilidades de pagamento”. Eram os crediários que chegavam (para ficar) em Piraju. A publicidade começava a sofisticar-se, preocupando-se com a linguagem direta e o apelo visual. Os grandes magazines estimulavam o consumo, oferecendo a novidade do crediário.126 Já presentes nas grandes cidades, o crediário aumentava o desejo de consumo e a facilidade em adquirir os novos produtos que eram diariamente anunciados. 125 ANÚNCIO HELIOGÁS. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 14 set. 1957. Livro Anos 50 – BNDES. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/conhecimento/livro50anos/Livro_Anos_50.pdf. Acesso em 18 de outubro de 2008. 126 71 Imagens 6, 7 e 8: Inovações para facilitar a vida da mulher moderna eram oferecidas o tempo todo, reforçando a imagem da nova sociedade de consumo que se apresentava. Anúncios: Heliogás, Lava Roupa Prima Econômica e Máquina de Costura com motor Arno. As propagandas apresentavam os novos produtos como máquinas tão fáceis de utilizar que até crianças poderiam operá-las. Fonte: Anúncios no Jornal O Comércio de Piraju, décadas de 50 e 60. 72 O ingresso de eletrodomésticos nos lares gerou um tempo útil que a partir de então precisava ser explorado permitindo às mulheres alçarem vôos nunca antes imaginados... Gastando menos tempo nos cuidados com a casa, nascia um novo tempo para cuidar de si, de seu corpo e alma. Segundo Maria Cláudia Bonadio: Antes associada ao ócio do lar, ela agora ganha uma imagem dinâmica, associada à cidade através do comércio. É a mulher quem vai às compras e é a ela que a publicidade se dirige. A indústria publicitária coloca a mulher mais perto da modernidade, anuncia os novos modelos de roupas, móveis e eletrodomésticos indispensáveis à mulher moderna, dinâmica e sociável. Antes restrita ao lar, a consumidora ainda tem as tarefas de mãe e esposa, mas de forma "reformada". A feminilidade é, portanto desconstruída, para ser reconstruída com nova embalagem.127 Neste (nem tão) novo cenário, antigas representações femininas calcadas num ideário tradicional foram revestidas sob a tônica modernizante do pensamento da época. A modernidade através da publicidade desconstruiu a imagem de uma mulher “somente” mãe-esposa, para criar outra imagem: a de uma mulher multifacetada: dona-de-casa, esposa, mãe, mas também consumidora e trabalhadora em outros espaços que não somente o doméstico. Ao mesmo tempo em que se apregoava a mulher como rainha do lar, muitas delas tiveram que sair para trabalhar fora, como foi o caso da própria Conceição Martini. Neste ponto o antigo e o moderno contrastavam: a mesma mulher que era inundada por anúncios e artigos pregando o bom gosto feminino, o cuidado com o lar e com a família, também recebia chamados para trabalhar fora, mas não em postos de comando, como foi o caso dos anúncios das máquinas de datilografar Remington128, que estampou a primeira página de O Comércio em 20 de setembro 127 BONADIO, Maria Cláudia. Publicidade de moda e tecnologias de gênero. Mappin Stores (19141930). NIDEM - Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Moda da UNIP. Disponível em: http://www3.unip.br/servicos/aluno/suporte/nidem/artigos/pub_de_moda.asp. Acesso em 02 de outubro de 2008. 128 ANÚNCIO REMINGTON. Jornal O Comércio de Piraju. Piraju-SP, p.1. 20 out. 1962. 73 de 1962 e convocou as mulheres ao trabalho, embora somente como “eficientes colaboradoras do mundo dos negócios” e nunca como protagonistas dele. Entre os fatores que colaboraram decisivamente para que as mulheres pudessem sair para trabalhar fora estava a diminuição do número de filhos e a mecanização das atividades domésticas. O que mudou na revolução social [do pós-guerras] não foi apenas a natureza das atividades da mulher na sociedade, mas também os papéis desempenhados por elas ou as expectativas convencionais do que deviam ser esses papéis.129 Analisando outros anúncios veiculados no Comércio, pudemos perceber que as mulheres não se portavam como simples receptoras de informações e apelos de consumo. Tais anúncios demonstravam sua participação na vida social e produtiva ocupando lugares como chefes de família, profissionais liberais, proprietária de imóveis, numa faceta da divisão sexual do trabalho.130 O trabalhar fora era destinado àquelas mais pobres; que em Piraju ocupavamse, sobretudo, no trabalho de costura e como empregadas domésticas.131 Às mulheres da elite reservava-se o trabalho beneficente ou então, o magistério, associado às “predisposições naturais femininas” também chamadas de “tendências naturais do servir”: 129 HOBSBAWN, op. cit., 1995, p. 306. Em 1950, a senhora Rosa Martinelli anunciou a venda de uma casa com dois quartos, sala cozinha, copa, banheiro e um pequeno quintal, situada à Rua Nhonhô Braga, 450 e em 1955, Julieta de Souza Netto anunciou seus serviços de parteira formada pela Escola de Enfermagem Obstétrica anexa à Faculdade de Medicina de São Paulo. Disponibilizava-se para realizar partos, fazer curativos e injeções, devendo ser procurada à rua Rubião Junior, 991 ou pelo telefone 431. Em outubro de 58, também apareceu pela primeira vez no Comércio, o anúncio de uma médica. Tratava-se da Dr.ª Sarah do Val, “especialista em senhoras, partos, esterilidade matrimonial e colposcopia (diagnóstico precoce do câncer). O anúncio informava que a médica tinha realizado longo estágio em hospitais de Buenos Aires era ex-médica da Clínica de Ginecologia do Hospital das Clínicas e da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Informava ainda que só atendia com hora marcada, no período da tarde, no consultório que funcionava em sua própria residência. O Comércio de Piraju, Piraju-SP, p.2, 2 jul.1950; 1955 e p.4, 18 out.1958. 131 Em julho de 1953, Dona Maria Modista oferecia emprego às moças com prática em costura. As candidatas deviam procurá-la, à Rua Cerqueira César, 637. O anúncio enfatizava que era inútil apresentar-se sem prática, o que pode indicar que havia um grande número de moças dispostas a trabalhar, porém nem todas com capacitação para operar a máquina de costura. O Comércio de Piraju, Piraju-SP, p.1, 5 jul.1953. 130 74 Embora tenhamos um número crescente de mulheres que se dirigem a profissões liberais como Medicina, Direito, Engenharia, Arquitetura, no exercício profissional, as escolhas das funções inerentes a essas profissões ainda são aquelas mais voltadas ao que tradicionalmente lhes foi inculcado. Temos, assim, médicas pediatras e ginecologistas, que cuidam de crianças, e mulheres advogadas que atendem à Vara de Família, engenheiras civis e arquitetas que cuidam de construir e decorar casas e residências, mantendo a tendência do cuidar e do servir, bastante associada à função de educadora.132 A Escola Normal destinava-se tanto àquelas que necessitavam profissionalizar-se numa “carreira respeitosa” como era considerada a professora normalista quanto às que se preparavam para assumir as funções de “esposa e mãe”. Neste sentido, a professora Conceição Martini contribuiu para a construção do pensamento modernizador da sociedade pirajuense. Como beneméritas da sociedade, é possível vislumbrá-las por todo o período analisado para compor esta dissertação, encabeçando campanhas que iam da construção do isolamento para tuberculosos133, da maternidade e reforma da Igreja Matriz às disputas político-partidárias quando organizavam comitês femininos de apoio aos candidatos, embora não houvesse entre os mesmos nenhuma mulher.134 A atuação beneficente era vista como positiva para as mulheres. Estreitamente ligada aos preceitos que deviam conduzir a família moderna dentro de uma moral cristã, era incentivada às jovens, mas sobretudo, às senhoras, já que estas dispunham de tempo para dedicarem-se aos intermináveis trabalhos que o voluntariado exigia, enquanto as senhoritas precisavam despender seu tempo para aprender a cuidar do lar e as jovens senhoras casadas ocupavam a maior parte dele com a casa, marido e filhos. Na Escola Normal participar e promover atividades caritativas, servia de laboratório, para que as alunas pudessem aprender e exercitar a caridade. Visitas a instituições de caridade, arrecadação e distribuição de alimentos, remédios, fabricação de roupas para bebês nas aulas, que posteriormente eram doadas e os 132 FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho. Gênero e escolha profissional. In: FERREIRA, Silvia Lucia & NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador, BA: NEIM/ UFBA, 2002. Col. Bahianas, 7. p.234. 133 A tuberculose afligiu os moradores durante a década de 50. Em junho de 1951, as normalistas da Escola Normal Nhonhô Braga foram levadas para visitar a clínica dos drs. Orlando Murari e Emilio Athié com vistas de conhecerem mais sobre a tuberculose e os estragos por ela provocados. Ibidem, p.3, 10 jun. 1951. 134 A primeira mulher eleita para participar da vida política pirajuense foi a vereadora Tatiane Trova nas eleições do ano 2000. 75 desfiles para arregimentar fundos para o trabalho social ajudavam a criar o hábito e passavam a fazer parte da vida e da rotina feminina.135 Imagem 9: Professora Conceição e alunas entregando roupas de bebê produzidas nas aulas de Economia Doméstica. 17 out. 1956. Fonte: Arquivo particular Família Martini. 135 PASSOS, Elizete. Crenças morais de uma educadora. In: FERREIRA, Silvia Lucia & NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador, BA: NEIM/ UFBA, 2002. Col. Bahianas, vol.7. p.223. 76 Durante o ano de 1950, a iminência das eleições para deputados, senadores e presidente mobilizou as senhoras e senhoritas pirajuenses, que sempre sob comando de algum homem, fundaram comitês femininos de apoio às candidaturas como a de Lucas Garcez e Erlindo Salzano (candidatos pelo P.S.P eleitos para o governo do Estado de São Paulo), cujo objetivo era o de “arregimentar o maior número de senhoras e senhoritas para trabalhar em prol das candidaturas paulistas”.136 Entre suas contribuições para a modernização da cidade, as senhoras encabeçaram campanhas como a do Comitê Feminino Pró-Matriz, cuja ação visava a arrecadação de verbas para reforma e ampliação da Igreja da cidade, campanha que foi iniciada na década de 40 e perdurou até fins dos anos 60. Também se envolviam com as ações de saúde pública, como em 1952, quando para auxiliar na construção do isolamento para os tuberculosos, doença que assolava a cidade e outros lugares do país, as senhoritas da sociedade pirajuense participaram do concurso “Rainha da Caridade”, patrocinadas por padrinhos influentes política e economicamente. 137 A escolha da comissão feminina pela construção do isolamento para tuberculosos se deu pela Revma. Madre Ester e pelo Dr. José Pedro. Praticamente todas as integrantes de tal comissão, com exceção de Madre Ester, responsável pela tesouraria, eram professoras. A comissão contou ainda com a presença de algumas professorandas em seu conselho deliberativo. Tal escolha demonstra que às professoras reservava-se papel de destaque e respeito na sociedade pirajuense.138 A Diretoria da CITEP (abreviatura de ‘Construção Isolamento Tuberculosos em Piraju’) realizou no dia 29 p.p. uma reunião, no clube 9 de Julho, tendo convidado para a mesma, senhoras de nossa sociedade. A finalidade da reunião motivou-se pela necessidade da constituição de fundos para o início da luta contra tuberculose no município. 136 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1, 20 ago. 1950. A senhorita Maria Helena Camargo Lopes, apadrinhada pelo Sr. Joaquim Ribeiro, que foi prefeito da cidade, ficou em primeiro lugar na disputa do concurso Rainha da Caridade 1952 obtendo 20.000 votos. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 21 dez. 1952. 138 Professora Conceição Martini não participou dessa Comissão. Sua chegada dois antes à cidade e o fato de trabalhar em Piraju e em outras cidades, como Registro, Tanabi e Lins nesse período talvez expliquem sua ausência da referida comissão. Posteriormente, esteve presente encabeçando diversas ações sociais, mas isto já bem mais pra frente no tempo pesquisado. 137 77 Compareceram elementos mais representativos da sociedade pirajuense, destacando-se entre os presentes as senhoras: Dra. Zuleica S. Keinworthy, promotor público da Comarca, D. Odette Gallo, Profa. Balbina Marques Galvão, diretora do Externato Paulista, D. Nair Esteves Lopes, funcionária do Posto de Puericultura, Profa. Diva Ciari, D. Yolanda M. Carneiro, e as srtas. Célia Pagnozzi e Ondina M. Carneiro. Foi na mesma reunião, instituído um interessante concurso, em que será eleita a rainha da Campanha e que terá o título de ‘Rainha da Caridade’, sendo propostas as candidatas, todas elas gentis meninas, filhas de elementos representativos da sociedade de Piraju, sendo ainda escolhido um padrinho para cada candidata.139 Os concursos de beleza figuravam e ainda hoje se destacam com grande status social na cidade, envolvendo as “mais belas e tradicionais filhas da terra” em desfiles não só de beleza, mas também de sobrenomes.140 Apesar de ser a profissão de modelo socialmente condenável nos anos 50 e 60141, quando a imagem e o corpo eram utilizados para promover “causas nobres”, o preconceito era deixado de lado. Em 1956, pela primeira vez, não somente fogões, geladeiras, rádios, televisões e emplastros foram anunciados para despertar o desejo de consumo das mulheres. Um anúncio da marca de lingerie Valisère142 mostrando uma dama trajando sensualmente uma camisola apareceu nas páginas de O Comércio. Delicada, magra, com ares românticos, sonhadores e sem encarar a fotografia, a representação da mulher que se veste em com “lindas cores modernas e modelos criados em Paris”, é uma exaltação de uma nova mulher, que consome e se exibe no recôndito do lar. E é dessa mulher emergente e das formas como se relacionou com seu corpo que tratará o capítulo seguinte. 139 MOVIMENTO PRÓ-CONSTRUÇÃO DO ISOLAMENTO PARA TUBERCULOSOS. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 10 mai. 1952. 140 Em auxílio ao Hospital do Câncer de São Paulo, as cidades do Estado criaram o concurso “Miss Paulistinha”, evento que elegeu a mais bela menina paulista entre três e nove anos de idade. A Rede Feminina de Piraju participou entusiasticamente da campanha, arrecadando um total de Cr$ 104.488,00. A menina Maria do Carmo R. Blanco foi a primeira classificada no concurso municipal, conquistando assim o direito de defender Piraju na disputa estadual. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.4, 08 set. 1956. 141 Ver: BONADIO, Maria Claudia. Dignidade, celibato e bom comportamento: relatos sobre a profissão de modelo e manequim no Brasil dos anos 1960. In: Cadernos Pagu (22). Campinas, 2004. pp.47-81. 142 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 17 mar. 1956. 78 Imagens 10, 11 e 12: Expressões dos desejos femininos: geladeiras, enceradeiras, ferros elétricos, batedeiras, máquinas de costura com motor e lingeries. As inovações tecnológicas também se apresentavam nos novos tecidos das lingeries Valisere (jersey de rayon e naylon, com legítimo fio Rhodianyl). Fonte: Anúncios no jornal O Comércio de Piraju, Piraju-SP (21 jan. 1960, p.3; 12 dez. 1957, p.2 e 04 mai. 1957, p4) 79 CAPÍTULO III: De corpo e alma: uma breve história de corpos saudáveis e moral ilibada na Piraju dos Anos Dourados. Facto grave De São Sebastião do Tijuco Preto escreve-nos um amigo, a 21 do corrente, o seguinte, para o qual chamamos a attenção da autoridade competente: “Nesta terra da-se immoralidades que a imprensa deve denunciar. Já foi denunciado ao Dr. Governador do Estado e dr. promotor publico d’es a Comarca, um facto criminoso, altamente grave, e até hoje nem uma providencia foi dada no sentido de punir os criminosos. No dia 1º de Agosto do anno corrente, um individuo, por pandega certamente arvorou-se em Juiz de paz, e fez quatro casamentos, tendo como co-participante no crime, o escrivão do Juiz de paz, que é seu cunhado. Assim, por mero passatempo, foram atiradas a mancebia quatro mulheres, que de boa fé acceitaram o acto como ligítimo. Ora, o povo, que em sua totalidade é ignorante, não havendo acceitado senão com profundo desgosto a lei do casamento civil, por irde encontra com suas crenças religiosas, sendo testemunha deste facto immoral e escandaloso, abomina a lei a desespera, mórmente porque vê o silêncio das autoridades. Para mim é ainda mais criminoso o escrivão, por que é de sua obrigação saber quais são os Juizes de paz de sua parochia. Deixo o commentario á imprensa.”143 Desde 1890, quando “quatro mulheres anônimas foram atiradas a mancebia por pândega de alguns indivíduos na Paróquia de São Sebastião do Tijuco Preto” até 1950, quando Professora Conceição retornou sozinha com os filhos a Piraju, algumas coisas mudaram e outras permaneceram bem parecidas nas relações entre as mulheres e as formas de representação e limitação impostas sobre seus corpos. No final do século XIX, as mulheres que foram enganadas sofreram duplamente: primeiro o fardo do casamento somente civil, ato considerado “imoral e escandaloso”, pois “abominava a lei” e causava desespero na comunidade pelo “silêncio das autoridades” e depois pelo fato dos casamentos não terem validade nenhuma, já que o juiz de paz era um impostor. Não nos foi possível saber se outros casamentos foram realizados para regularizar sua situação ou ainda se os noivos sabiam da identidade falsa do juiz de paz e se aproveitaram da situação para ludibriar as incautas donzelas. Mas nos é 143 FACTO GRAVE. Jornal O Rio Novense: orgam imparcial e semanario, Rio Novo, p. 2, 25 dez. 1890. 80 possível imaginar o que essas mulheres devem ter sofrido com a discriminação social, especialmente se “perderam a honra” neste ínterim. De qualquer forma, o que nos interessa refletir é a forma como essas mulheres e seus corpos foram expostos socialmente. Mesmo que tenham casado novamente, desta vez com juiz de paz verdadeiro, seus corpos foram atirados à “mancebia” e seu lugar social na cidade ficou seriamente abalado. Nos 60 anos que se passaram desde o ocorrido com as quatro anônimas até o ano do retorno de Conceição à Piraju, as mulheres do Tijuco Preto tiveram avanços significativos nas suas condições como o acesso à escolarização e novas formas de se relacionarem com seus corpos. Mas também permanências em sua condição social e a necessidade de “andar sempre na linha” para serem consideradas “dignas de respeito”. São as formas de representação do corpo e da alma feminina na Piraju dos designados Anos Dourados que este capítulo visa reconstruir. Para tanto dividi-o em Corpos e Almas. Em Corpos analiso questões referentes ao embelezamento feminino, a higiene dos corpos, a eugenia, as habilidades manuais e corporais esperadas de uma mulher e as formas de limitação e controle impostas sobre seus corpos. Já em Almas procuro abranger uma análise da educação feminina e das representações dos saberes que se julgavam fundamentais na vida de uma mulher moderna: ser uma boa dona-de-casa, esposa e mãe, saber cozinhar bem, lavar roupa, cuidar da casa com bom gosto. Compreende também como ocorreu a transmissão destes saberes na Escola Normal de Piraju, com ênfase na disciplina de Economia Doméstica ministrada por Conceição Martini no período pesquisado. 81 3.1. Corpos A mulher é antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um corpo, um vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso se acentua mais porque, na cultura judaico-cristã ela é constrangida ao silêncio público. Ela deve ora se ocultar, ora se mostrar. Códigos bastante precisos regem suas aparições assim como as de tal ou qual parte de seu corpo.144 Mulher Ele a fez matematicamente mulher para ser somada ao companheiro multiplicada em sua prole dividida com a humanidade subtraída nunca em seu Eu maior: - ser mulher. Deu-lhe beleza ao corpo escultural bondade ao coração maternal doçura para vida matrimonial inteligência para ser do homem uma igual calor para vivência fraternal discernimento para ética e moral. Deu-lhe os parâmetros para ser feliz.145 A poesia Mulher, escrita pela professora Maria Conceição Martini traz referências importantes sobre o modo como nossa personagem entende o que é ser mulher e as funções de seu corpo e de sua alma. Entre os pressupostos da modernidade, encontramos a importância destinada à saúde e beleza dos corpos que podem ser entendidos como memória mutante das leis e dos códigos de cada cultura, registro das soluções e dos limites científicos e tecnológicos, o corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo.146 144 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.51. MARTINI, Maria Conceição Pereira. Mulher. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.07. 145 82 Na década de 50, os ideais eugênicos em voga pediam corpos saudáveis, dispostos, aptos. Para as mulheres estas características estavam intimamente ligadas ao bom cumprimento da missão maior que esperavam delas Pátria e sociedade: ser mãe. Não escapando aos discursos eugenistas dentro dos quais foi educada, professora Conceição os entende – corpo e alma – como fontes para a realização deste sagrado dever feminino. Para tanto, o corpo devia ser “escultural”, pois somente assim atrairia os melhores olhares e a alma educadamente doce para ser capaz de preservar a vida matrimonial. Primeiro mandamento das mulheres: beleza. “Seja bela e cale-se”, é o que se lhe impõe, desde a noite dos tempos talvez. (...) A beleza é um capital na troca amorosa ou na conquista matrimonial.147 Estar sempre bonita, bem-cuidada e antenada com a moda era visto como predicado da mulher moderna, que apesar de passar o dia todo envolvida com os afazeres domésticos não devia descuidar de sua imagem jamais, pois a imagem sedutoramente natural devia fazer parte de sua rotina, de sua intimidade. A beleza do rosto, a dimensão do pescoço, a desenvoltura do busto, das ancas, o torneado dos membros, a não-discrepância anatômica dos seios, das mãos, dos pés, a resistência das carnes, o modo de andar, de olhar, de falar... a beleza dos cabelos, o tamanho, a forma e a cor dos olhos, dos cílio, das sobrancelhas, o colorido, a forma e a dimensão dos lábios e dentes, do nariz e das orelhas, a forma das mãos, dos pés e das unhas, essas características eram consideradas adornos naturais que deveriam ser cultivados (...) para ditar o padrão que se almejava como estética da mulher brasileira.148 146 Sobre a inserção dos corpos na história e para encontrar mais pistas sobre uma “história dos corpos” ver Denise Bernuzzi de Sant’Anna: Políticas do Corpo e Corpos de Passagem e Maria Izilda Santos de Matos: Âncora de Emoções. 147 PERROT, Michelle. Op. Cit. 148 RAMOS, Marina Bernardete. Perfectíveis corpos – Corpo e Nação: Territorialidades Imponderáveis. In: Revista Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) São Paulo: 2002. nº 25. p.294. 83 Por ser a beleza feminina considerada capital simbólico e por vezes financeiro, a modernidade abriu um predicado para todas as mulheres: se antes “as feias caiam em desgraça”, a partir do século XX elas foram resgatadas, através dos cosméticos e das maquiagens, novidades para tornar todas as mulheres belas.149 A partir de meados dos anos 50 e começo dos anos 60, um novo discurso sobre a beleza e os cuidados com o corpo foi articulado e se propagou através da imprensa: a idéia de que modificar o corpo era não só possível, mas também necessário. Assim, neste momento, principalmente os anúncios de cosméticos e outros produtos para o cuidado com o corpo insistiam sobre a idéia do prazer da transformação corporal. (...) Era, portanto, mais necessário às mulheres a construção de uma aparência na qual deveriam ser observados cuidados com todo o corpo. Pele, cabelos, mãos, pescoço, etc, deveriam demonstrar o encanto, a suavidade e a graça, tidos como partes fundamentais e “naturais” do universo feminino.150 Em Piraju, as mulheres contavam com as dicas da Miss Poly Ponds151 publicada no Comércio. Os anúncios em forma de “conversas de mulher para mulher”, nos quais eram respondidas dúvidas femininas que tratavam desde as formas para manter a pele sempre bonita até como conversar comportadamente sem gesticular em excesso, serviam para divulgar os cosméticos da marca norteamericana e criar o hábito de consumi-los. Sou ainda muito jovem e já tenho uma cútis feia. Por favor, que devo fazer para melhorá-la? A melhor maneira de evitar que sua cútis se estrague é mantê-la bem limpa. Para todas as mulheres, principalmente as muito jovens a limpeza da cútis deve ser uma questão de hábito. Eis o tratamento obrigatório para você em várias horas do dia.152 149 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.50. Oliveira, Nucia Alexandra Silva de. A beleza que se compra... o gênero que se constrói. Uma análise de anúncios publicitários de produtos de beleza para homens e mulheres (1950-1990). In: Anais Fazendo Gênero 7. Florianópolis, SC: 2006. Disponível em: http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/N/Nucia_Alexandra_Silva_de_Oliveira_43.pdf. Acesso em 14 de setembro de 2008. 151 As dicas da Miss Polly Ponds eram uma forma de divulgar a marca de cosméticos norte-americana Pond’s, fundada pelo farmacêutico Theron Pond em 1846. 152 CANTINHO DA MENINA MOÇA. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 10 dez. 1962. 150 84 Também a marca de cosméticos Helena Rubinstein, representada em Piraju pela Casa Arbex, anunciada pela primeira vez em 1958, em letras coloridas, veio oferecer soluções para qualquer que fossem os problemas de beleza das pirajuenses: Helena Rubinstein Tem o prazer de convidá-la para uma consulta de beleza na CASA ARBEX, onde uma das suas melhores assistentes estará ao seu dispor, para analisar sua cútis e ensinar-lhe como usar seus produtos de beleza em casa. A consulta inclui, também graciosamente, a aplicação de um maquillage ‘sob medida’ para maior realce de seus encantos. Certa de que esta consulta resolverá qualquer que seja o seu problema de beleza, agradece a gentileza de sua visita.153 Não só a pele, mas também os cabelos eram objeto de discussões. No lugar de representação que é o corpo feminino, eles têm grande importância. Michelle Perrot afirma que ”o penteado transforma os cabelos em peça do vestuário, em objeto de arte e de moda, que passam a fazer parte da mise-em-scène da sedução, da elegância.”154 Embora em Piraju, tal empenho nem sempre fosse apreciado. Às vezes, as tentativas de “ficar no grito da moda” geravam comentários de deboche. Novo penteado surge em Piraju, neste fim de ano, com a encantadora Vera Lucia Petersen, mostrando-nos a evolução da moda feminina. Cabelos caídos na testa, e presos em forma de um ‘coque’. Vocês gostaram de vê-la? Muitos não. Porém, eu gostei!155 Outras seções destinadas ao embelezamento feminino e a outros “assuntos de mulher” como dicas sobre comportamento, alimentação, moda e sobre seu papel enquanto trabalhadora, esposa e mãe apareceram e desapareceram das páginas de O Comércio de Piraju durante o período analisado. Em comum, afirmavam que cabia à mulher moderna saber se comportar com “graça e encanto”.156 153 ANÚNCIO HELENA RUBINSTEIN, CASA ARBEX. Ibidem, p.6, 15 mar. 1958. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p.59. 155 SOCIETY. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 19 dez. 1959. 156 A seção Notas Femininas que era retirada da Santos & Santos Interpress, agência de notícias da capital paulistana, da qual O Comércio obtinha suas notícias nacionais e internacionais, foi publicada 154 85 Mas as novidades estéticas nem sempre eram bem recebidas. Na Piraju dos Anos Dourados, esse medo das novas expressões corporais femininas aparecia nas críticas da Coluna Espinafre, que eram anônimas. Apesar de não saber o nome do autor, podemos supor que era um homem ou uma mulher que se fazia passar por um. O tingimento dos cabelos, através dos novos produtos para essa finalidade que invadiram o mercado a partir da década de 50, não foram bem recebidos por todos: Mulher é a coisa mais incompreensível que Deus criou. São bonitas, lindas, mas fazem um esforço miserável para estragarem a beleza...ora pintando os cabelos, ora vestindo conjuntos absurdos e horrorosos etc. etc. Enfim... ‘nóis gosta assim mesmo’... Aliás essa mania de pintar os cabelos, além de horrível é um absurdo.... Não compreendo como certos pais permitem que isto aconteça a meninas mal saídas dos ‘cueiros’.157 Mas não bastava que os corpos femininos fossem somente bem talhados ou esculturais como afirmou a poesia de Conceição, acima de tudo, era necessário que fossem saudáveis. Somente corpos saudáveis podiam cumprir seu dever de procriar “crianças fortes e sadias – homens do porvir, concorrendo assim para melhorar a humanidade”, segundo artigo assinado pela professora.158 O artigo intitulado Eugenia e Puericultura, publicado no Prisma Escolar159, suplemento educacional de O Comércio de Piraju em 1953 tratava sobre as relações esporadicamente entre os anos 50 e 60. As Notas Femininas trataram desde informar qual era o “vestido que estava no grito da moda” e como deveria ser utilizado até que era “preferível sair com um lenço à cabeça, do que exibir grampos e rolinhos prendendo os cabelos”. Dicas de exercícios para afinar a cintura e da importância de escovar os cabelos durante meia hora por dia também constaram das Notas, além de testes para saber se a mulher realmente estava amando. As do início da década de 60 dedicaram mais espaço para a relação mãe e filho do que anteriormente dedicava aos cuidados femininos com o tipo de roupa correta, com os cabelos, maquiagem, etc. No ano de 63, surge uma sessão de “Conselhos Práticos”, assinada por Tia Cotinha, que tinha como objetivo reproduzir no jornal “dicas” culinárias, de moda e higiene, visando servir como instrumento de preparação para as moçoilas casadoiras. SEGREDINHOS DE MULHER. Ibidem, p.2, 21 fev. 1959; NOTAS FEMININAS, Ibidem, 11 nov. e 21 nov. 1959 e TIA COTINHA, CONSELHOS PRÁTICOS. Ibidem, p.2, 04 jun. 1963. 157 ESPINAFRE. Ibidem, p.2, 28 nov. 1959. 158 EUGENIA E PUERICULTURA, Maria Conceição Pereira Martini. Suplemento Estudantil O Prisma Escolar. In: Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 15 ago. 1953. 159 O Prisma Escolar - Jornal Estudantil do Colégio Estadual e Escola Normal de Piraju nasceu em 10 de maio de 1953 e foi apresentado à sociedade pirajuense pelo professor de Língua Portuguesa Hélio 86 entre eugenia e puericultura como forma de construir uma nação moderna através da geração de cidadãos mais fortes, sadios e capazes: Ensinar puericultura é ensinar eugenia. Ensinar puericultura à mãezinha, à adolescente e à garota de curso primário. Nunca será demasiado cedo para preparar a mulher para o bom desempenho da sublime missão que a vida lhe reserva – ser mãe. Nunca será demasiado cedo ensinar à mulher os meios e recursos com os quais poderá orientar e auxiliar criaturas menos esclarecidas, tornando-as capazes de oferecerem ao mundo rebentos sadios e fortes e de saberem criá-los e educá-los integralmente.160 Para Denise Bernuzzi de Sant’Anna, tais discursos revelam entre outras “as diversas nuanças do antigo sonho de ser moderno e civilizado, que há muito persegue as elites desse país”.161 Uma conduta moderada em relação à sexualidade, uma boa aparência do corpo, hábitos de higiene, aspirações de acesso social, educação, trabalho seriam índices para classificar homens e mulheres numa taxonomia étnica brasileira.162 Falar em eugenia, menos de 10 anos após o final da Segunda Grande Guerra pode ser uma demonstração de valores morais muito fortes nesse momento, que se refletem nas noções de patriotismo e religiosidade.163 Para criar e manter corpos belos e saudáveis as práticas desportivas eram amplamente incentivadas em Piraju, para homens e mulheres. Magdalena. O articulista Valdir Bittencourt Carvalho, na semana seguinte elogiou a iniciativa e desejou que a partir dela se fizessem novas assinaturas do jornal O Comércio já que O Prisma Escolar passaria a ser “indispensável no lar de todos os estudantes”... O suplemento que vinha encadernado juntamente com O Comércio constituiu-se em oportunidade de encontrar Conceição Martini escrevendo e revelando seus posicionamentos, dando maior visibilidade à nossa personagem. Na edição do dia 15 de agosto de 1953, a professora Conceição Martini aparece no Comércio de Piraju, pela primeira vez, assinando um artigo chamado Eugenia e Puericultura, dentro do Prisma. 160 EUGENIA E PUERICULTURA, Maria Conceição Pereira Martini. Suplemento Estudantil O Prisma Escolar. In: Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 15 ago. 1953. 161 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In: Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p.122 162 RAMOS, Marina Bernardete. Op. Cit. 163 PASSOS, Elizete. Crenças morais de uma educadora. In: FERREIRA, Silvia Lucia & NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador, BA: NEIM/ UFBA, 2002. Col. Bahianas, 7. p. 221 87 Para elas eram recomendadas as modalidades que ressaltassem a elegância, a graça e a leveza “natural” dos movimentos femininos: a natação desde que não se ultrapassasse os 400m, as corridas rasas até 200m, o ciclismo em provas de curta duração, esportes coletivos como o vôlei e o basquete, desde que fossem “obedecidas as novas regras, que procuravam evitar ao máximo o contato pessoal e os choques entre as disputantes. O futebol era seriamente contra-indicado, pois sua prática era considerada “absurda e nociva e o espetáculo oferecido anti-desportivo e antifisiológico”.164 É hoje ponto pacífico, a indicação e a necessidade da educação física feminina e mesmo fora do âmbito dos militantes especializados são bem conhecidos seus efeitos benéficos. Há, no entretanto, vários aspectos a serem observados, e uma orientação sábia e sensata é fundamental, pois a mulher não difere do homem só no seu aspecto morfológico, por ter ossos mais delicados, bacia mais larga, músculos menos potentes e formas mais arredondadas. Também em várias facetas de seu espírito, está bem caracterizada a individualidade feminina.165 Segundo Cláudia Maria de Farias: Através desta associação, onde se distinguia quais as atividades esportivas consideradas mais adequadas à condição feminina, o discurso médico-eugênico transformava o corpo feminino em objeto de discussão e análise, construindo paralelamente representações de feminilidade e masculinidade que apontavam para uma moralização dos corpos e uma diferenciação “natural” entre os sexos.166 Entre os desportos praticados em Piraju no período analisado observamos sobretudo, a natação nas águas do Rio Paranapanema. A prática que quase desapareceu (e atualmente vem sendo retomada na cidade através de provas e campeonatos esparsos), nas décadas de 50 e 60 era constante. 164 DESPORTOS PARA A MULHER, SECÇÃO ESCOLAR. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.4, 28 set. 1957. 165 Idem, Ibidem. 166 FARIAS, Cláudia Maria de. Projeção e emancipação das mulheres brasileiras no esporte, 19321968. In: Anais do Encontro 2008 da ANPUH. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1214931563_ARQUIVO_Texto2ANPUHRJ2008.pdf. Acesso em 10 de novembro de 2008. 88 Praticar natação no Rio Paranapanema às margens da Sociedade Atlética Paranapanema era uma atividade de lazer para a classe privilegiada. Os populares também podiam praticá-la, já que o rio atravessa a cidade, embora a prática não tivesse o mesmo glamour se não ocorresse no clube da elite. Provas de natação eram comuns e incentivadas aos jovens como forma de estimular o desenvolvimento físico e manter a saúde. Segundo os discursos, não havia sequer a necessidade da construção de piscinas como haviam em clubes de outras cidades, pois a natureza havia brindado Piraju com “lugares pitorescos, talhados tanto para o entretenimento do espírito quanto para a tonificação do corpo e a cultura da beleza plástica.” Enquanto em outras cidades, os clubes constroem piscinas para que seus associados possam dedicar-se à natação, a Sociedade Atlética Paranapanema, plantada à beira do majestoso rio, dispõe de excelente recanto para a prática do esporte e magnífica praça para exercícios destinados ao fortalecimento do físico. A mocidade ali se delicia com movimentos que desenvolvem os músculos sem violência, facultando-lhes gozar dos três fatores imprescindíveis à saúde: sol, água e ar. Crianças, jovens, adultos, todos se entregam a atividades benéficas ao organismo, com aquela alegria peculiar aos que sabem aproveitar os encantos que a natureza proporciona ao ser humano.167 Diferentemente dos tempos atuais, em que a quase totalidade dos indivíduos que podem ser vistos “saltando do Arvão” (uma árvore na qual está preso uma espécie de balanço improvisado) para um mergulho no “Panema” é composta de crianças e adolescentes oriundos dos bairros populares, no período pesquisado também a elite local mantinha um relacionamento intenso com o rio. Algumas vezes, andando pelo passeio público que circunda a orla do rio, podemos observar especialmente jovens que paravam seus carros para um rápido mergulho. Alguns cidadãos ilustres em conversas informais relataram que costumam dar um mergulho no Paranapanema para “aliviar o stress diário”. Tais atitudes mostram mudanças nas formas de relacionamento dos pirajuenses e seus corpos com o rio: se outrora a prática da natação no Paranapanema era motivada como atividade física para manter o corpo saudável e 167 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.6, 20 jan. 1952. 89 belo, atualmente é encarada como modo simples de “relaxamento”. Mas a natação no rio não é mais uma forma de lazer das elites, que agora dispõem de piscinas nos clubes, apesar de ainda ocorrer às margens do Iate Clube (nome atual da antiga Sociedade Atlética Paranapanema). Os cuidados com o embelezamento do corpo atualmente têm outros lugares para acontecer: as duas academias de ginástica próximas ao rio, que com suas paredes de vidro permitem aos indivíduos malharem observando o Paranapanema de uma distância segura, enquanto tonificam seus físicos em aparelhos pósmodernos para esse fim. A postura corporal da mulher da mulher moderna também constituía motivo de preocupação que apareceu ressaltada no artigo escrito pela professora de educação física do Colégio Normal Arlete Barreto Gatti em 20 de julho de 57, na Secção Escolar de O Comércio de Piraju. A ‘mulher mundana’ de nossa época – como pode facilmente ser comprovado pelo exame de qualquer revista de moda – distingue-se pelo seu porte absolutamente antinatural. Sendo o abdômen proeminente, a cintura côncava, as ancas avançadas, exerce-se uma pressão constante sobre os órgãos femininos mais avançados.168 168 SENHORITA, APRENDA A FICAR EM PÉ! Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.5, 20 jul. 1950. 90 Imagens 13 e 14: Corpos à mostra. A prática esportiva era incentivada, pois ajudava a tornar a mulher moderna forte e sadia. Entre os esportes recomendados, a ginástica e a natação, que em Piraju destacava-se por ser realizada no rio Paranapanema. As imagens capturadas de filmes em cinemascope produzidos no período deste estudo, nos permitir visualizar não só os corpos à mostra, em biquínis recatados e uniformes para a realização das aulas de Educação Física, mas também as práticas corporais femininas para manterem-se belas e saudáveis. As seqüências dos vídeos trazem respectivamente, as mulheres nadando no rio (imagem 13) e as estudantes apresentando-se aos professores na Escola Normal (imagem 14). Fonte: vídeo produzido nos anos 50. 91 Além dos cuidados com o corpo através da prática de esportes, cuidar da saúde também constituía dimensão importante do viver moderno dentro do pensamento eugênico. As idéias de Pasteur e Kock, os conhecimentos sobre micróbios e bactérias mudaram as formas se relacionar com a saúde dos corpos, pois tornaram possíveis: (...) outras formas de compreensão das causas das doenças, dos corpos e da higiene, bem como das formas de transmissão das doenças, da idéia de contágio e da sua cura. Era preciso mudar hábitos e atitudes.169 Na década de 50, o grande o número casos de tuberculose em Piraju demonstrou que o Hospital Municipal precisava encaixar-se nesse padrão desejado. Para tanto, buscou-se modernizar os serviços de saúde através de sua ampliação, iniciada no final dos anos 40 e concluída em 1959170, com a construção do isolamento para tuberculosos e da maternidade. Até mesmo a preocupação com as cores com que foram pintados os quartos correspondiam “às exigências modernas”. O tom azul-claro em predileção ao branco foi escolhido por que era considerado o ideal para “não cansar a vista”.171 Em suma, nos Anos Dourados a preocupação com a beleza corporal e a correção moral, estiveram presentes em Piraju, fosse através do incentivo à prática de esportes para o desenvolvimento físico, fosse através dos anúncios nos jornais e dos desfiles de modas já citados anteriormente, nos quais havia a exibição dos corpos femininos. Também os cadernos de Economia Doméstica pesquisados constituíam uma demonstração deste pensamento. Imagens e mais imagens de mulheres sempre impecáveis podem ser vistas neles – recortadas de jornais e revistas, em maioria de anúncios de eletrodomésticos, cosméticos: 169 MATOS, Maria Izilda Santos de. Corpos numa Paulicéia desvairada: Mulheres, homens e médicos. São Paulo (1890-1930). In: Revista Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) São Paulo: 2002. nº 25. p.383. 170 “Com a instalação da maternidade neste nosocômio, onde outrora se via um longo muro, ergue[u]se uma fachada de estrutura moderna, neste estilo que para Piraju veio junto com o bafo de realizações, (...) de progresso sem par.” Jornal O Comércio de Piraju, p.3, 05 set. 1959. 171 Idem, ibidem. 92 Não importava a atividade que estivesse sendo desempenhada: lavando roupa, costurando, cozinhando ou namorando, independente da situação as mulheres exibiam-se impecáveis, desde os pés até a cabeça.172 Imagens 15, 16, 17 e 18: A mulher moderna devia estar sempre irretocável, não importava a atividade que estivesse realizando. Fonte: Cadernos de Economia Doméstica e vídeo produzido na década de 50. 172 MIGUEL, Raquel de Barros Pinto. Corpos femininos e publicidade na revista Capricho (décadas de 1950-1960). In: Anais Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, SC: 2008. p.4. Disponível em: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST48/Raquel_de_Barros_Pinto_Miguel_48.pdf. Acesso em 18 de outubro de 2008. 93 Desenvolver habilidades corporais e manuais era incentivado às jovens, especialmente na Escola Normal. Nas aulas de Economia Doméstica, por exemplo, a normalista aprendia a costurar, bordar, tricotar, mas também aprendia como comportar-se à mesa, como manter a (com)postura pois cabia a ela agir com graça e encanto. As exposições e mostras dos resultados obtidos em sala de aula eram uma constante na vida social da cidade. Diversos registros fotográficos demonstram o valor dado a tais eventos. Neles se apresentavam as produções das alunas que iam desde peças do enxoval e roupinhas de bebê cujas receitas estavam bem grafadas em seus cadernos, brinquedos, cartazes que apontavam os cuidados que a mulher deveria ter como esposa e especialmente como mãe ao atentar para a perfeita organização da casa, da higiene e do tratamento dispensado às crianças – que era aprendido nas aulas de Puericultura – chegando até as concepções de patriotismo fortemente presentes na professora Conceição e no ensino do período, através da apresentação de cartazes saudando os ideais revolucionários de 32. Imagem 19 e 20 : Fotografias de 1959 e 1963 retratam “a forma como se preparavam as alunas” para serem boas esposas e especialmente boas mães. Moldes e roupinhas de bebê, horários das mamadas, tabela de peso e altura. Além disso, a forte presença da religião e a representação da mulher/ mãe como “símbolo de pureza” e sua equiparação à “mãe do céu”. Fonte: Arquivo particular da família de Maria Conceição Martini. 94 95 3.2. Silêncios do corpo feminino em Piraju nos Anos Dourados O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica. Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não cai bem às mulheres, prefere-se que elas fiquem com as lágrimas) são objeto de uma perpétua suspeita. Suspeita que visa o seu sexo, vulcão da terra. Enclausurá-las seria a melhor solução: em um espaço fechado e controlado, ou no mínimo sob um véu que mascara sua chama incendiária.173 Proibidas de expor sua opinião publicamente em assuntos que certamente as interessavam, pelo sim ou pelo não, foram tratadas com desrespeito em diversas oportunidades. Em certa ocasião, um pai enviou carta ao jornal denunciando a realização de um banquete no qual as, sobremesas levariam os nomes de moças trabalhadoras da Escola Normal, Ginásio e do Posto de Saúde: Chegou ao meu conhecimento – como se tornou público em toda a cidade – que estava em preparo aqui em Piraju um grande banquete a ser realizado no domingo atrasado, dia 2, caso o Snr. Governador do Estado renunciasse a seu cargo – como se esperava – e o Snr. Vice-Governador o substituísse naquelas funções. Seriam participantes desse banquete os próceres do Partido Social Democrático, local, idealizadores do festim e o cardápio seria composto de vários pratos que iriam receber os nomes dos funcionários públicos estaduais, nomeados pelo atual governo do Estado, para esta cidade. Comentou-se, com ironia, com muita maldade e muita malícia, publicamente por ai, que os vários funcionários do sexo feminino da Escola Normal e Ginásio e do Posto de Saúde figurariam como os pratos de ‘SOBREMESA’. Essas funcionárias, nominalmente citadas publicamente, uma por uma, se constituem de moças e de senhoras casadas, quase todas professoras públicas, pertencentes a famílias mui dignas e radicadas, quase em sua totalidade, nesta cidade. Uma delas – minha filha – embora natural da capital do Estado, aqui se acha radicada há mais de 4 anos, formou-se pela Escola Normal, daqui, em 1948, em primeiro lugar, premiada pelo Estado e aqui se consorciou com filho de criação de Piraju. O Snr. Prefeito local, dirigente do Partido Social Democrático que seria o principal participante do banquete, foi o paraninfo da formatura dessa turma de minha filha...174 173 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. pp.317318. 174 CARTA DE BENEDITO TAVARES DE TOLEDO. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 16 abr. 1950. 96 O ataque não era exclusivo nem restrito às mulheres, mas aos funcionários com cargos de nomeação. Ainda quando destratadas, a elas não se reservava o status (de prato) principal, mas de suplemento, de sobremesa, que é servida depois e guarda características de beleza, doçura e prazer próprias das representações do feminino. Se havia falta de respeito mesmo em se tratando de moças e senhoras de “mui dignas famílias”, quando quem sofria o abuso pertencia a camada popular, a situação era pior ainda, como ocorreu no caso de uma menina que foi sexualmente abusada pelo pai. Por não ter ocorrido com algum representante da elite local, o fato se tornou motivo de piadas e deboches nas rodas da “high society”. Lamentável. Humilhante. Degradante. É a ‘chacota’, são os ‘xistes’ que se fazem com o caso, que é a vergonha de uma sociedade, que é o reflexo de uma época de horror, sofrimento e promiscuidade que a maioria sofredora vive. Piadas na rua, piadas no cinema, piadas no circo... sobre uma menina de 13 anos que teve o infortúnio de ser infelicitada pelo próprio pai. Silêncio em respeito à menina, em respeito à esposa, em respeito aos irmãozinhos... em respeito às nossas famílias...175 Não só para as mulheres violentadas moral ou fisicamente a cidade se apresentava pouco acolhedora. Mães solteiras e mulheres largadas também sentiram na pele o preconceito. Conceição Martini, nossa personagem retornou à “Cidade-Jardim”, com três filhos para criar sozinha, pois aqui se encontrava parte de sua família e de seu ex-marido. Não que Piraju fosse essencialmente acolhedora com mães solteiras... Muito eram os casos de mães solteiras na cidade, fato justificado por ser Piraju “uma cidade em crescimento, com elevado número de operários, situada na passagem do trânsito inter-estadual”.176 Tal argumentação demonstra a esquiva em reconhecer o problema da sociedade pirajuense como um todo, ao ler tais discursos 175 SILÊNCIO POR FAVOR (Coluna Espinafre). Ibidem, p.6, 05 dez. 1959. O não-reconhecimento do elemento popular na constituição social da cidade se dava não somente com as mães solteiras, também os operários e operárias moradores do bairro Jurumirim, que na época era majoritariamente habitado por essa parcela da população sentiram na pele o preconceito. Coibidos de adentrar aos bailes da alta sociedade por não trajarem roupas como as da elite e claro, por desejarem freqüentar um “ambiente selecionado” que não lhes pertencia: “Uma coisa que anotei e não posso deixar de observar, é sobre o pessoal da Jurumirim que também se achava presente [num baile de carnaval]. Será que a Jurumirim virou festança e o Clube ‘9 de Julho’ trabalho? Ou será que traje de trabalho é também traje ‘esporte’? Creio que não! o ‘it’ principal de uma sociedade é o ambiente selecionado “. SOCIETY. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.2, 13 fev. 1960. 176 97 temos a impressão que a questão não tem relação com a cidade em si, como se os operários e os populares não a compusessem. Não havia estrutura para ajudar mulheres que porventura engravidassem sem marido. A única instituição que abria suas portas era o Asilo, que mesmo assim não era apropriado para tal função. Seguidamente, surgem famílias sem o seu chefe natural e sem um determinado destino... (...) Mães, com filhos menores, que são os casos mais freqüentes, após procurarem as devidas autoridades, as quais, aqui na cidade não dispõem de organizações adequadas, vêm ao Asilo, como a única apropriada instituição de caridade em função.177 Numa sociedade que se orgulhava das riquezas geradas pelo café, a pobreza mostrava sua face cruel especialmente entre as mulheres, que constituíam a grande parcela dos miseráveis que se dirigiam até a Prefeitura Municipal para esmolar.178 As restrições eram feitas aos seus corpos, seus sexos e suas bocas. O direito à palavra é e sempre foi masculino. As mulheres falavam, mas não em público. Na esfera pública a palavra pertencia somente a eles. As mulheres falam, inicialmente entre elas, na sombra do gineceu ou da casa; mas também no mercado, no lavadouro, local de mexericos temido pelos homens que tem medo de suas confidências. (...) As mulheres contam, dizem – e maldizem – cantam e choram, suplicam e rezam, clamam e protestam, tagarelam e zombam, gritam e vociferam. (...) Mas sua palavra pertence à vertente privada das coisas... (...) O que é recusado às mulheres é a palavra pública.179 Sobre quais assuntos homens e mulheres podiam tratar? Aos homens competiam aqueles de interesse público, de “importância”. Banalidades, trivialidades 177 Ibidem, p.1, 13 fev. 1960. “Tivemos já a oportunidade de escrever sobre o grande número de pedintes que comparecem diariamente ao gabinete do Prefeito, para solicitar auxilio. Em maior número de casos, são mulheres quase sempre acompanhadas de crianças”. A POBREZA IMPERA. Ibidem, p.1, 08 fev. 1964. 179 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. pp.317-318. 178 98 é que eram assunto de mulheres, que não deviam ocupar-se dos assuntos masculinos, mas sim da casa e no máximo em escrever “receitas de pudim”.180 Quando se reuniam às soleiras das portas eram classificadas de “fuxiqueiras e causadoras de intrigas”. Um esclarecimento por desencargo de consciência... O C.M.F (Centro Municipal de Fuchico) do descidão da rua Cerqueira César (elas se reconhecem) é constituído só de saias, quero dizer sexo feminino. Masculino não. [...] Homem não.181 Tal atitude demonstra que o lugar da conversa feminina era da porta para dentro da casa, da igreja ou das reuniões sociais. A rua para elas era lugar de silêncio. Além disso, os assuntos a serem por elas tratados deviam estar relacionados às benesses que podiam proporcionar às suas famílias, à cidade e à Nação. Essa mulher, que não tinha direito à palavra pública, precisava ser ensinada e controlada cotidianamente. Afinal, o lugar de “mulheres de respeito” não era à soleira das portas, fazendo fofocas, mas sim, no reduto do lar, cuidando da casa, marido e filhos e para isso era necessário disciplinar também a alma feminina. 3..3. Alma Professora Conceição costumava iniciar o ano letivo da disciplina de Economia Doméstica com um excerto do Livro das Noivas de Julia Lopes de Almeida que dizia: A mulher não nasceu para adorno, nasceu para a luta, para o amor e para o triunfo do mundo inteiro. 180 “Mas, escrever o quê, então? Receitas de pudim? Que escrevam as senhoras, ou alguém que se esconde atrás de nome feminino, sendo barbudo mesmo”. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.5, 02 jul. 1954. 181 Espinafre. Ibidem, p.3, 21 nov. 1959. 99 (...) É a nos, como mães, que a Pátria suplica bons cidadãos. É de nós, quando esposas, que a sociedade exige o maior exemplo de dignidade e de moral. Com a educação superficialíssima que temos não meditamos nisto, e levamos de contínuo a queixar-nos que é nulo o papel que nos confiaram... como poderíamos, todavia, encontrar outro, mais amplo e mais sagrado? 182 Dentro do discurso racionalista-científico em voga desde o início do século XX, era à mulher a quem cabia desencadear a reforma de hábitos e comportamentos que conduziriam a sociedade à almejada modernidade através da criação de “bons cidadãos para a Pátria”. A mãe de família, a boa dona de casa, na aparente modéstia de suas tarefas, cuidando da economia do lar, acalentando o filhinho, alimentando-o, ensinando-lhe as primeiras palavras, instilando-lhe na alma os bons sentimentos, defendendo-o contra os perigos materiais e morais está realizando uma obra admirável de criação; a formação de uma criatura útil à sua Pátria e à humanidade.183 Tanto que para ela foram destinados os papéis de “esposa, dona-de-casa, mãe (da família e da Pátria), enfermeira, professora”. Filha, esposa e mãe, primeira mestra, administradora dos bens familiares, enfermeira, amiga de todas as horas, fiel e dedicada, companheira de alegrias e tristezas é realmente a mulher, a verdadeira “Rainha do Lar”.184 Em muitas de suas poesias, também Conceição Martini, uma mulher de seu tempo, deixou claro o que acreditava ser a “sublime missão” que a vida reservava à uma mulher: ser esposa e mãe. 182 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959. 183 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju-SP, 1957. 184 Ibidem. 100 Os rebentos chegaram cada um a seu tempo bemvindos chegaram deixaram o ventre e no coração se instalaram185 Amor Casamento Filhos - ventura - realização - continuidade186 Para criar esta sociedade moderna e higienizada, acreditava-se que devia ser respaldada pela organização social e moral, cujo pilar era a família. Convocou-se a mulher para que retornasse ao lar e assumisse a missão de ser “a mãe de uma nova Pátria”, aprender para tanto “noções indispensáveis de higiene, contabilidade, puericultura, enfermagem” entre outras. Para realizar tal missão era necessário que os saberes domésticos fossem sistematizados e não somente vivenciados empiricamente: Tão complexos se apresentam os problemas da família, que a dona-de-casa, no seu lar, no seu viver diário necessita de um conjunto de sistematizado e variado de conhecimentos científicos a fim de que as tarefas não sejam desempenhadas empiricamente. São lhe indispensáveis noções de: higiene, nutrologia, contabilidade doméstica, jardinagem, horticultura, enfermagem, puericultura e deveres sociais.187 A preocupação e a responsabilidade feminina em criar e manter um ambiente saudável e ordenado e, sobretudo, “homens de bens” era transmitida às jovens da elite pirajuense nas aulas de Economia Doméstica da Escola Normal, pela professora Conceição Martini: 185 MARTINI, M.C.P. Minha prole. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p.8. 186 MARTINI, M.C.P. Caderno de Poesias. s/d. 187 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju-SP, 1957. 101 A jovem deve compenetrar-se de que será responsável um dia por uma casa, um lar e uma família. É sobre os joelhos maternos que se forma o que de maior e de mais útil há no mundo: um homem de bem.188 A Escola Normal tinha duas funções principais: profissionalizar as moças para uma carreira “respeitosa”, como era considerada a docência primária e ensiná-las a desempenhar uma função importante dentro da sociedade burguesa: ser esposa, mãe e professora. A primeira lição do caderno de Ana Célia Romero, aluna da 7ª série em 1959 informava que o objeto de estudo da Economia Doméstica consistia na diferenciação entre casa e lar: Casa é o imóvel em que moramos e onde nos abrigamos contra as tempestades. Lar é muito mais que isso, é a casa e a vida sentimental e espiritual da família. Para que exista um lar no interior das paredes de uma habitação, é necessário que ali resida o verdadeiro espírito da família. Este espírito compete à mulher criá-lo e conservá-lo.189 As jovens pirajuenses deviam convencerem-se profundamente que seriam um dia “responsáveis por uma casa, um lar e uma família” e ainda pelo “futuro do Brasil”: (...) Em Piraju, bem se compreende a significação alevantada que possui a entrega de diplomas, mórmente às professorandas, que irão cuidar da infância, da seiva moça da nacionalidade, do futuro do Brasil.190 As mulheres brasileiras, já no século XIX, encontravam-se em situação semelhante às de Portugal: muitas eram impedidas de ler, mesmo já tendo conquistado esse direito, para que não aprendessem “o que não se devia aprender”. 188 Idem, ibidem. CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero, Piraju-SP, 1959. 190 Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.1,06 jul. 1952. 189 102 A elas cabia a educação para o lar: cozer e coser, lavar, bordar e os demais saberes necessários à futura esposa e mãe. O pouco caso pela educação no Brasil é herança histórica. A primeira escola normal surgiu somente em 1835, ou seja, 335 anos após a invasão portuguesa e 13 anos depois da Independência.191 Tais escolas seguiam ainda que precariamente o modelo francês. Não se verifica uma preocupação com métodos ou com a preparação sistemática dos professores, visto que isso: Refletia uma tendência geral da época de que o magistério não constituía uma profissão, mas sim, uma vocação, para a qual eram necessárias dedicação, qualidades morais e aptidão. Conhecimentos especializados não eram muito importantes e um sinal disso foi a ausência da disciplina de Metodologia do Ensino...192 Num primeiro momento, as escolas normais eram destinadas quase que exclusivamente ao sexo masculino, somente mais tarde surgiram os cursos para mulheres que aos poucos começaram a exercer papel principal nos processos educativos.193 Há uma grande contradição no caminho: a mulher que era privada da educação por não se considerar que houvesse necessidade de uma educação formal para exercer os papéis destinados a ela na sociedade: ser esposa e mãe; era por outro lado, vista como a mais capacitada para ensinar as crianças, já que possuía habilidades inatas para tal. Às mulheres reservavam-se duas possibilidades: casar ou ser professora. Ambas eram vistas como adequadas, sendo o magistério considerado uma espécie de extensão das atividades assumidas no lar, já que estava fortemente ligado a uma 191 Assegurada aos filhos da elite, restrita às camadas médias e proibida aos escravos até quase o final do Império, somente com a chegada das idéias trazidas pelo liberalismo francês, é que verificaremos uma preocupação com a educação no Brasil e um avanço no sentido de criar escolas para a preparação dos docentes para o ensino primário em expansão. 192 CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza & SILVA, Vera Lúcia Gaspar. Feminização do magistério: vestígios do passado que marcam o presente. Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2002. . p.18 193 “A escola normal de São Paulo, por exemplo, inaugurou sua sessão feminina em 1847, mas só passou a funcionar efetivamente em 1875. Destinava-se a jovens órfãs, que “aos dezoito anos, não tivessem sido pedidas em casamento e não quisessem se empregar como domésticas em casas de famílias de bons costumes” . CAMPOS, op. cit., 2002, p.19. 103 visão de maternidade, como se a professora ocupasse o lugar da mãe no dever de educar as crianças. No pós-guerra o pensamento eugênico emergente também despertou uma influência marcante no delineamento do papel da família, de homens e mulheres. Procurando difundir as idéias de melhoria de qualidade da raça, o discurso eugenista apoiou inicialmente a maternologia, reforçando que a função social e cívica da mulher era garantir a sobrevivência das futuras gerações, o aperfeiçoamento e fortalecimento da raça.194 Segundo Marina Maluf e Marisa Romero a maternologia podia ser entendida como: ...um discurso político que operava em relação a outros discursos e em relação a um arranjo de práticas políticas e sociais concretas, ou seja, ideologicamente acata a diferença entre os sexos, principalmente a identidade da mulher como mãe, cuja responsabilidade é a de levar para a sociedade como um todo os valores intrínsecos à maternidade. E mais, maternalismo era, naquele momento histórico, o núcleo central e definidor da visão que algumas mulheres tinham de si mesmas e da política.195 A preocupação em preparar a mulher para cuidar da infância residia na tentativa de diminuir os altos índices de mortalidade infantil reinantes no período e que, segundo o Livro de Puericultura utilizado por Conceição em suas aulas, estavam associados aos seguintes fatores: 1- ignorância das mães no modo de criar os filhos: a) dando alimentação errada em quantidade, qualidade e horário; b) dando ouvidos a conselhos de comadres, vizinhas, curandeiros, em lugar de procurar médicos especializados ou Centros de Saúde. 194 MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p.55. Grifo nosso. 195 MALUF, Marina & ROMERO, Marisa. A sublime virtude de ser mãe. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. nº 25. São Paulo: EDUC, 2002. p.238. 104 2- miséria que impede a criança de viver em ambiente adequado: habitação sadia, quarto arejado, roupa apropriada e falta de meios para comprar alimentos e remédios.196 No currículo das primeiras escolas normais femininas não encontramos disciplinas pedagógicas, o que nos permite perceber que se achava inerente à mulher o ato de educar. (...) a partir do predomínio de uma perspectiva sócio-cultural que reconhecia e valorizava o saber-fazer doméstico construído nas vivências comunitárias, as atividades e os afazeres de dona de casa e mãe de família eram encarados como um mister que as moças conheciam naturalmente.197 Em Piraju, a Escola Normal destinava-se às filhas da elite local e regional, que argumentavam tanto a ascensão social quanto a preparação para a vida doméstica que a escola normal proporcionava como motivo que as levava a essa escolha. Ser professora ainda no início dos anos 50 era considerado pela sociedade uma conceituada opção de profissionalização para as mulheres. O trabalho fora do lar, começava 198 a fazer parte da realidade de muitas mulheres. Para Maria Cândida Delgado Reis, “discursos mistificadores sugeriam – pela repetição exaustiva de imagens sacralizadas” e fundadas na retórica de um instinto naturalmente feminino para o tratamento de questões como cuidar de filhos, da 196 SECRETARIA DA EDUCAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA. DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO. DIRETORIA DO SERVIÇO DE SAÚDE ESCOLAR. – SÃO PAULO – O Ensino da Puericultura no 4º ano feminino primário (Planos de Aulas). Org. por Maria Antonieta de Castro, Educadora-Chefe do Serviço de Saúde Escolar, com a colaboração das Educadoras sanitárias Graziela M. Leite Vasconcelos e Moriza Menezes de Souza. Boletim da Revista “EDUCAÇÃO”, 1946. p.08. 197 OLIVEIRA, Sueli Teresa de. Uma colméia gigantesca: escola profissional feminina de São Paulo – 1910/20/30. Dissertação de Mestrado em História. São Paulo: PUC, 1992. p.50. 198 FUCKNER, Cleusa Maria. Magistério e Casamento: Memória e Formação no Colégio de Educação Familiar de Curitiba (1953-1986). In: Anais do IV SEMINÁRIO "PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA". Ouro Preto-MG: UFOP, 2001. Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/perspectivas/anais/GT1401.htm. Acesso em 13 de setembro de 2008. 105 casa199 – o papel da professora como guardiã do futuro ou ainda como “árbitro da verdade”. Papel que estaria afastado do homem, pois para ser professor primário era necessário possuir uma “proximidade espiritual” das crianças: intensidade de emoções, mas a curta duração das mesmas. Ao homem – ser racional não cabia o emocional, ficando assim reservado à mulher a educação das crianças: Completando o Lar vem a escola e dentro desta, o Professor: ficaria melhor, hoje em dia, dizer-se: a Professora. E por que não há mais tantos professores? Dizia-se, ainda há pouco tempo, que a carreira de professor não era boa para os homens, por questões econômicas pois os ordenados eram pequenos e só as moças se sujeitavam a eles. Mas há muitos professores, homens formados na Escola Normal, que enveredam para outras carreiras. Por que, então, essa dificuldade de homens para o magistério primário? É que ninguém é professor primário só por o querer ser; é necessária a vocação, e eu diria, quase a graça de Deus, para isso. Para esse mistér é necessário o espírito irmão do das crianças e só as mulheres podem tê-lo. A marca psicológica das mulheres é a intensidade das emoções, mas a duração muito curta delas. As impressões para os homens são mais duradouras, embora menos intensas. Assim, para irmanar-se com o espírito da criança que sente muito, por pouco tempo, que chora agora e ri d’aqui a pouco, só um espírito semelhante, servido por um cérebro potente, uma cultura às vezes invulgar, uma noção de responsabilidade que raramente um homem tem, em relação às suas obrigações e ao seu serviço.200 Semelhante afirmação evidencia a posição conservadora que enveredava a proposta de educação feminina, que não era vista como um instrumento emancipador da mulher, mas uma extensão dos espaços e funções a ela destinados socialmente. Seu lugar, lógico, permaneceria sendo o privado, o lar, mas o papel de professora poderia complementar tanto esse espaço quanto o orçamento familiar, que persistia sendo a maior responsabilidade do homem – chefe de família.201 Afora isso, expressa também outro elemento presente tanto na formação da professora Conceição quanto na das normalistas de sua época: a moral cristã. “É que ninguém é professor primário só por o querer ser; é necessária a vocação, e eu diria, quase a graça de Deus, para isso”. A abnegação, o desprendimento de si para a vivência do servir ao outro são características do cristianismo e estão presentes 199 REIS, Maria Cândida Delgado. Guardiãs do futuro: imagens do magistério de 1895 a 1920 em São Paulo. In: BRUSCHINI, Cristina & SORJ, Bila (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1994. p.112. 200 EDUCAÇÃO. Jornal O Comércio de Piraju, Piraju, p.3, 19 out. 1952. 201 PASSOS, op. cit., 2002, p. 223. 106 nos discursos do período. O serviço feminino, enquanto educadora é visto como uma predestinação, como algo natural ao próprio ser mulher. Apesar do movimento dos pioneiros da educação e da institucionalização de uma educação laica, a moral cristã ainda se refletia fortemente nas práticas e discursos das professoras. Em entrevista concedida ao jornal A Tribuna de Piraju, em 15 de setembro de 1991, a professora Conceição declarou-se, quando perguntada sobre sua religião: “católica, profundamente católica”. Também a baixa remuneração pelo exercício da profissão, coadunou para o afastamento dos homens da mesma, visto ser praticamente impossível manter um lar somente com o ordenado de professor primário, mas não era somente esse o motivo para que a função de professor primário fosse recomendada às mulheres. Corroboravam para isso discursos médicos do início do século que viam a mulher como um produto do seu sistema reprodutivo, base de sua função social e de suas características comportamentais: o útero e os ovários determinariam a conduta feminina desde a puberdade até a menopausa, bem como seu comportamento emocional e moral, produzindo um ser incapaz de raciocínios longos, abstrações e atividade intelectual, mais frágil do ponto de vista físico e sedentário por natureza, sendo que a combinação desses atributos, aliada à sensibilidade emocional, tornava as mulheres preparadas para a procriação e criação dos filhos.202 Foi neste contexto de uma prática educacional voltada à preparação da mulher para exercer a função de dona-de-casa que Conceição Martini viveu e compreendeu seu mundo. Sua pela Economia Doméstica também pode ser entendida dentro dele: uma mulher que saiu para trabalhar tardiamente, obrigada pela necessidade que lhe foi imposta, escolheu como profissão algo perto de seus valores e crenças. 202 MATOS, op.cit., 2005, p.53. 107 3.4. Ensinar e aprender a ser esposa e mãe A cadeira de Economia Doméstica e Puericultura foi introduzida nos currículos escolares nos anos 20, antes mesmo da Reforma Sampaio Dória. Com esta disciplina visava-se preparar a mulher para além da profissionalização somente para o trabalho fabril que esta vinha exercendo desde o início da industrialização: para desempenhar um papel de relevância para a sociedade burguesa – o de esposa exemplar e mãe dedicada. Trazer a mulher de volta ao lar, com capacitação para representar a nova face da burguesia capitalista era o anseio desse momento, visto que os preceitos para construir uma grande Nação residiam justamente na organização social através especialmente da colaboração de cada indivíduo dentro da comunidade e da família.203 Estudar na Escola Normal de Piraju fazia parte dos ideais e representações femininas da época.204 Os cadernos de Economia Doméstica analisados demonstram diferenças sociais latentes – recheados de imagens da modernidade tais como eletrodomésticos dos mais variados tipos, aparelhos de televisão, cozinhas em estilo americano – além é claro, das lições que iam desde a construção da casa com os cômodos necessários (entre eles, quarto de empregada, copa e cozinha conjugadas, sala de jantar), passando pelos elementos necessários para compor um enxoval que imprimisse respeito à família do noivo, até os modos de se comportar e administrar uma casa. É lógico que tais pressupostos não eram destinados à “qualquer uma”, e sim, tão somente, às “moças de família”, àquelas tidas para casar com os elementos mais notáveis da sociedade pirajuense e serem mães dos futuros homens de bem da cidade. Um caráter formado dentro dos ensinamentos e valores morais e cristãos – além de uma aparência razoável, um sobrenome tradicional e por vezes, uma 203 NOVELLI, Giseli. Ensino Profissionalizante na cidade de São Paulo: um estudo sobre o currículo da “Escola Profissional Feminina” nas décadas de 1910, 1920 e 1930. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt09/t0910.pdf. Acesso em 10 de agosto de 2007. 204 Fundada em 1946, a Escola Normal Nhonhô Braga era para poucas, lá estudavam as filhas da elite pirajuense e regional. Aos populares o que ficava destinado era o chamado primeiro grau no Grupo Escolar Ataliba Leonel. Algumas mulheres do povo me relataram que o laço no cabelo era obrigatório para entrar na escola, mas que apesar do laço iam de pés descalços. Mundos diferentes não se misturavam na Piraju dos Anos Dourados. 108 situação financeira familiar estável – constituíam valioso capital simbólico no mercado matrimonial. Aprender a ser esposa e mãe passava obrigatoriamente em aprender os preceitos modernos do gerenciamento do lar, do controle das contas, do cuidado com os filhos e o esposo e de tudo que estivesse relacionado ao ambiente doméstico. Mas não estamos falando de uma mulher que precisava cozinhar no fogão à lenha e lavar suas roupas às margens dos ribeirões ou dos chafarizes pirajuenses. A mulher-esposa-mãe (da elite pirajuense) dos anos 50 podia contar com poderosos aliados em sua missão: fogões a querosene e posteriormente à gás, máquinas de lavar roupas, além de geladeiras, cozinhas planejadas e aparelhos televisores para seus momentos de descanso, conforme já citado nas páginas anteriores. Entre os utensílios indispensáveis para compor uma casa moderna, a professora Conceição Martini recomendava: aparelhos completos para jantar, chá e café, batedeira elétrica, geladeira, máquina de café (preferencialmente elétrica), liquidificador, ferro elétrico.205 Os cadernos, como o da aluna Ana Célia Romero traziam ainda, figuras de descascadores, processadores de alimentos, misturadores de massas – todos movidos a eletricidade. Também panelas, assadeiras, travessas e faqueiros em alumínio ou em aço inoxidável eram indicados para figurarem numa casa “bem equipada” por causa das sensações de modernidade e leveza que transmitiam. Já a enceradeira, máquinas de lavar roupas e de costura, a panela de pressão eram tidos como utensílios “indispensáveis para auxiliar nos serviços domésticos nas diversas partes da casa”. As expressões habituais “serviços domésticos”, arrumação da casa, encobrem o trabalho de limpeza, lavar/ passar roupa, a cozinha e as compras. Essa é a ordem dessas tarefas vistas sob o ângulo da sua valorização social. Sua execução pela esposa (ou supervisionadas por ela) é considerada óbvia.206 205 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960. 206 PRADO, Danda. Ser esposa: a profissão mais antiga. São Paulo: Brasiliense, 1979. p.230. 109 Imagem 21: Além de ícones da modernidade, como a máquina de lavar, a máquina de costura e a enceradeira, a imagem da nova mulher – esposa e mãe comprometida com a perfeita organização de seu lar. No caderno, lições sobre como manter a casa em absoluta ordem e os acessórios necessários para realizar tal missão com extrema higiene, eficiência e sem “descer do salto”. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. 110 A introdução dos aparelhos eletrodomésticos e do avanço tecnológico no ambiente doméstico poupou esforços femininos, mas isto não significou que as mulheres passaram a trabalhar menos: o tempo economizado era reutilizado na educação dos filhos, no gerenciamento do lar, nas compras, nos cuidados para melhorar o ambiente doméstico.207 Os aparelhos domésticos destinados a poupar trabalho eram mais eficazes na elevação dos padrões de limpeza e de ordem – e em incentivar as donas de casa a atingi-los – do que propriamente na diminuição do número de horas de trabalho doméstico. (...) As expectativas em matéria de saúde e bem-estar excediam as gerações anteriores, e as donas de casa encaravam a sério a oportunidade de melhorar a saúde e a segurança de suas famílias, porque, à sua volta, os especialistas de economia doméstica e os publicitários proclamavam que se uma dona de casa cuidasse convenientemente do seu lar contribuiria para o conforto, o ajustamento e a eficiência de seus entes queridos.208 Atividades que outrora eram realizadas fora de casa, voltaram a acontecer no recôndito do lar, baseado principalmente no medo do contágio que a falta de higiene podia ocasionar. Lavar/ passar roupas Lavar roupas representava tamanha importância no cotidiano feminino que o livro de Economia Doméstica utilizado pela professora Conceição Martini, trazia um capítulo destinado somente para tratar desse assunto. Os saberes para essa atividade deviam ter embasamento teórico: O processo de lavagem não é tão simples como as pessoas leigas admitem; ao contrário, é uma prática que requer muito cuidado e algum conhecimento.209 207 COTT, Nancy F. A mulher moderna: o estilo americano dos anos 20.. In: THÉBAUD, Françoise (org.). História das Mulheres no Ocidente: O século XX. vol 5. Porto: Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1995. p.107. 208 Op. Cit, p.107. 209 SOUZA, Marina G. Sampaio de. Economia Doméstica (terceira e quarta séries – curso ginasial). 5ª ed. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1957. p.52. 111 Os ensinamentos repassados às alunas pela professora Conceição Martini, iam desde como executar os processos de lavagem para retirar cada tipo de mancha, a lavagem de roupas brancas, de tecidos como linha, lã e peças finas e ainda como elaborar um rol de roupas. O processo de lavagem podia ser tanto manual quanto mecânico (máquina de lavar), químico ou a vapor. O rol de roupas servia para conferir as roupas que fossem mandadas à lavadeira. Todas as peças deviam ser marcadas para que não houvesse confusão com peças trocadas. Mandar as roupas para lavar e passar fora de casa devia ser encarado como último recurso para a dona-de-casa moderna em face aos perigos que isso podia representar para a saúde da família: Se a roupa puder ser lavada no próprio domicílio, tanto melhor, isso será um grande benefício para a família. A lavagem de roupas, em comum, de diversas procedências, por profissionais ignorantes e privados do necessário para seu mister, constitui grande perigo para a família.210 210 Idem, p.57. 112 Imagens 22, 23, 24 e 25: Lavadora de roupas Brastemp, sabão Minerva e ferros elétricos: comodidades para a vida de dona de cada. Lavar mecanicamente as roupas e não precisar mais ficar o dia inteiro mexendo o tacho para o fabrico do sabão de cinzas, óleo ou outras substâncias anteriormente utilizadas para esse fim, nem passar roupas com os pesados e pouco práticos ferros de brasa, representava economia de tempo e de esforço físico para as mulheres que podiam despendê-lo então, no cuidado com a educação dos filhos e a organização do lar. Fonte: imagem retirada do Caderno de Economia Doméstica de Nilza Maria Dell’Agnolo e anúncios do sabão Minerva eFerro Elétrico Walita, publicados no Jornal O Comércio de Piraju (15 mai. 1951. p.3 e 04 mai. 1957. p.4). 113 Segundo Marina Maluf e Maria Lúcia Mott: Os médicos recomendavam às mães de família que não mandassem lavar a roupa fora de casa, entre outras razões pelo risco do contato com peças de uso de pessoas portadoras de doenças contagiosas. Julia Lopes de Almeida, no seu Livro das Noivas, ensina que os moradores das cidades mais populosas deviam dar suas roupas de uso para lavadeiras que morassem fora, em arrabaldes isolados, onde houvesse água corrente abundante e ervas, onde as roupas estendidas pudessem ter “frescor, viço e perfume”.211 Em Piraju, a lavagem e passagem das roupas, que antes ocorria nas bicas e às margens dos ribeirões, pelas mãos de lavadeiras que recebiam pelo trabalho e passavam com ferro de brasa adentrou o universo do lar e engrossou as atividades da dona de casa, especialmente com a chegada da água encanada a partir de 1956 e dos ferros elétricos de toda sorte, anunciados enfaticamente nas páginas de O Comércio. Cozinhar O ato de cozinhar além de ser considerado uma arte, era visto também pela Economia Doméstica como uma técnica científica. Se grandes cientistas, realizando estudo sobre a alimentação, concluíram que o valor nutritivo dos alimentos, depende em grande parte, da maneira como são preparados, concluímos logicamente que o cozinhar, além de ser uma arte é também uma técnica de base científica.212 211 MALUF, Marina & MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando (org); SEVCENKO, Nicolau (org do volume). História da Vida Privada no Brasil, vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.409. 212 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960. 114 Nas aulas de Economia Doméstica eram estudados assuntos como Alimentação e nutrição, adequação dos alimentos às idades, origem e preparo geral dos alimentos, horários em que deviam servir as refeições, cuidados especiais na alimentação das crianças, entre outros, além é claro, de sugestões e conselhos para sistematizar e facilitar o trabalho na cozinha. Receitas de doces e salgados também eram ministradas nas aulas, aliadas à importância de arrumar a mesa e utilizar os talheres corretamente. Segundo Anne-Marie Sohn, no período do entre-guerras “o modelo culinário burguês – entrada, carne e legumes, salada e sobremesa – difundiu-se amplamente, mobilizando a dona de casa”.213 O cardápio das segundas-feiras, por exemplo, era assim sugerido às normalistas pirajuenses pela professora Conceição Martini nas aulas de Economia Doméstica: Almoço 1- salada de alface e ovos cozidos 2- Dobradinha ensopada com lingüiça, batata e azeitona 3- frutas 4- Café Jantar 1- Frio com peti-poá 2- Bolo de batata com carne assada picadinha e bem refogada com tempero 3- gelatina de laranja 4- Café214 Era recomendada a adequação dos alimentos ao gênero de trabalho, já que “determinadas funções, determinadas atividades, exigiam maior dispêndio de energia do que outras, como por exemplo, o trabalho braçal que exigia muito maior energia que o trabalho intelectual.”215 213 SOHN, Anne-Marie. Entre duas guerras: Os papéis femininos em França e Inglaterra. In: THÉBAUD, Françoise (org.). História das Mulheres no Ocidente: O século XX. vol 5. Porto: Edições Afrontamento, 1995. p.126. 214 No final do cardápio havia a recomendação de que todas as refeições houvesse arroz, pão torrado e fresco e manteiga. CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960. 215 SOUZA, Marina G. Sampaio de. Economia Doméstica (terceira e quarta séries – curso ginasial). 5ª ed. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1957. p.65. 115 Novidades na cozinha, os fogões primeiro a querosene, depois a gás, a geladeira, o liquidificador, a batedeira, a cafeteira facilitaram o trabalho feminino na cozinha reduzindo o tempo de preparo dos alimentos. O caderno de Economia Doméstica recomendava às alunas que sua cozinha devia ser prática, moderna e higiênica: A cozinha é a parte da casa onde mais tempo passa a dona-de-casa. Deve ela apresentar o máximo de conforto e higiene. Pia, fogão, mesas, armários devem se possível, estar bem próximos para facilitar os serviços e poupar canseiras. O material desses móveis de cozinha deve ser de madeira ou laqueada ou chapa esmaltada para facilitar a limpeza. As cozinhas americanas de chapa esmaltada são o máximo em comodidade, beleza e higiene até hoje conhecidas. Na cozinha é indicada a cor azul para afugentar as moscas.216 Mesmo as mulheres que não precisavam cozinhar, deviam sabê-lo para que pudessem “dar ordens às empregadas, as quais em regra pouco entendiam de preparar alimentos”. Deviam conhecer também o valor nutritivo dos alimentos, como prepará-los e apresentá-los de acordo com o senso estético que era considerado de grande valor psicológico para despertar o apetite e facilitar a digestão.217 216 Cadernos de Economia Doméstica e Puericultura de Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju, 1957 e Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960. 217 Idem. 116 Imagens 26, 27 e 28: enlatados, cozinhas americanas e eletrodomésticos invadiram o cotidiano das famílias abastadas, facilitando o trabalho feminino. Fonte: CADERNOS DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960; Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju-SP, 1957 e Tânia Regina Assaf Guerra. Piraju-SP, 1973. 117 Arrumar a casa, organizar o lar Organizar a casa envolvia aprendizados que iam desde como arrumar perfeitamente a cama e dispor os talheres na mesa até como planejar o orçamento doméstico. Segundo Danda Prado: Em relação à manutenção de um lar, dentro de um orçamento preciso, de horários impossíveis de planificar e das mais variadas e imprevistas solicitações, poder-se-ia dizer que essa profissão (de responsável pelos serviços domésticos) goza de um valor inverso no critério de sua avaliação social. (...) não tem preço – porque a mulher (a esposa) cumpre-o com amor, esperando de volta somente reconhecimento e amor.218 O espaço físico da casa, que se possível devia ser “própria” e não alugada, devia ser construída para atender os modernos padrões de conforto e higiene: A casa deve ser construída atendendo mais ao conforto da família do que poderão dizer as vizinhas. Uma boa moradia deve apresentar (o máximo de conforto e higiene) além das salas e dormitórios necessários, as seguintes dependências: cozinha, copa, despensa, banheiro, quarto e banheiro para a empregada, áreas, tanques e se possível quintal e jardim.219 Manter a casa organizada incluía o equilíbrio no orçamento doméstico, que era visto com função feminina, mas devia estar sob o controle do marido: A organização e execução da contabilidade doméstica cabe sempre à mulher, quer lhe seja entregue todo o dinheiro, ficando com o marido apenas uma quantia que ele acha necessária para as suas despesas, quer fique somente com a verba 218 PRADO, Danda. Ser esposa: a profissão mais antiga. São Paulo: Brasiliense, 1979. p.231. CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju-SP, 1957. 219 118 destinada às despesas caseiras, mas em qualquer caso o marido deve ter conhecimento de todo o movimento financeiro.220 Limpar rigorosamente todos os cômodos, arejá-los, inspecionar móveis e objetos em busca de poeira e decorar a casa com bom gosto fazia parte da rotina ensinada nas aulas de Economia Doméstica: Todos os dias, pela manhã, deve-se proceder à limpeza da casa. (...) Todos os dias de manhã deve-se fazer o arejamento da casa. Portas e janelas devem ser abertas, para que o ar penetre em todos os seus cômodos, e que seja completamente renovado o ar contido em seu interior. (...) Quando se procede a retirada do pó de um móvel ou qualquer outra parte da casa, deve-se evitar que a poeira se espalhe. O uso de aspirador elétrico é o ideal. (...) De um modo geral, embora se disponha de uma grande verba, deve evitar o exagero na ornamentação, pois a casa ficaria parecendo mais a exposição de uma loja e perderia todo o seu encanto.221 Toda a organização da casa ficava ao encargo da mulher, mesmo as que não realizavam tais tarefas precisavam aprendê-las para que pudessem supervisionar o trabalho das empregadas. Neste universo, no qual as mulheres deviam ser espelhos da ordem almejada e anunciadoras das transformações que estavam ocorrendo, fossem os avanços tecnológicos que chegavam para facilitar a vida doméstica e o trabalho (no lar e fora dele), fossem os novos ideais de modernidade e prosperidade anunciados pela tentativa de inserir do país no modelo de desenvolvimento americano, é que moldaram corpos e almas femininos. Em Piraju, este processo foi analisado a partir do cotidiano das mulheres de elite, através da vivência da professora Maria Conceição Pereira Martini, cujos saberes transmitidos nas aulas de Economia Doméstica que ministrava na Escola Normal ajudaram na tentativa de disciplinar os corpos e almas das mulheres da elite, para que essas assumissem os papéis delas esperados neste momento histórico: o de esposa e mãe zelosas da família e da Pátria. 220 SOUZA, Marina G. Sampaio de. Economia Doméstica (terceira e quarta séries – curso ginasial). 5ª ed. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1957. p.93. 221 Idem. pp. 25 27 e 30. 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo de uma trajetória feminina num determinado espaço físico e histórico – Piraju, uma cidade do interior paulista – procuramos refletir o cotidiano das mulheres na modernidade conservadora dos Anos Dourados. A modernização de hábitos e costumes no Brasil ocorreu inspirada no modelo americano, o american way of life e foi direcionada especialmente para a emergente classe média, capaz de consumir de tudo: de artigos de higiene passando por eletrodomésticos até carros novos. Capaz de consumir também os ideais da modernidade: progresso, disciplina, rapidez. Especialmente durante os anos 50 e adentrando aos 60, que surgiram as melhores e maiores chances de ascensão social e econômica, para homens e também para as mulheres, graças ao desenvolvimento industrial do país, à urbanização e à modernização de aparelhos para o lar e para o trabalho, gerando um maior conforto e uma melhor qualidade de vida ao povo brasileiro. Uma mulher que retornasse ao lar, após ter saído dele e vivenciado o mundo do trabalho no período das Grandes Guerras, assumindo o papel de “condutora da sociedade burguesa à almejada modernidade” era a representação buscada neste momento. Nos papéis de esposa e mãe era a mulher responsável por criar os “homens de bem para a Pátria” e enquanto consumidora por introduzir nos lares os avanços tecnológicos – ícones da modernidade. Neste trabalho analisamos os reflexos dessa modernização em Piraju, uma cidade do interior paulista, cuja economia e relações sociais sempre giraram em torno do café, a partir do olhar e da trajetória de uma professora de Economia Doméstica, responsável por parte da formação das mulheres da elite pirajuense através de seus ensinamentos na Escola Normal. Educar as moças da classe média e alta dentro daquilo que era esperado para o perfil feminino durante os chamados Anos Dourados consistia em formar moças prendadas, adaptadas e bem preparadas para criarem aqueles que seriam o futuro da nação brasileira, gerirem seus lares ou até mesmo realizarem um trabalho apropriado a suas posições sociais, especialmente serem professoras primárias. 120 As mulheres de classe média e alta, normalmente permaneciam em casa, limitando-se a um ensino das chamadas prendas domésticas (cozinhar, bordar, costurar), enquanto as populares sempre trabalharam fora de casa para auxiliar na renda familiar. Para realizar este trabalho, descortinamos os viveres cotidianos das mulheres através da busca por suas presenças e ausências na sociedade pirajuense a partir de fontes diferentes, mas complementares entre si. Intitulamos esta dissertação de Intimi(ci)dades Femininas na Piraju dos Anos Dourados, pois acreditamos que as relações sociais acontecem no coração do lócus em que estão inseridas, nesse caso, numa pequena cidade do interior paulista ansiosa em adentrar à modernidade prometida dos Anos Dourados. Para que essa modernização acontecesse era importante criar novos hábitos e disciplinar os corpos e as almas de toda a sociedade e a mulher era quem devia conduzir essa transformação. Em Piraju, tais ideais foram difundidos e repassados às jovens sobretudo na Escola Normal, e as aulas de Economia Doméstica ministradas pela professora Maria Conceição Pereira Martini – fio condutor deste estudo – concorriam para isso. Voltada à formação das moças para gerir a casa, cuidar do esposo, prepararse para a maternidade e os cuidados com os filhos e ainda, para profissionalizar a mulher numa profissão considerada apropriada, a Economia Doméstica foi introduzida nos currículos das escolas normais, suas aulas eram destinadas somente às mulheres. A disciplina de Economia Doméstica foi suprimida dos currículos escolares nos anos 80. Professora Conceição passou então a ministrar aulas de Educação Artística, já que possuía grandes habilidades manuais que também eram repassadas às alunas anteriormente quando ensinava-as a costurar roupinhas para bebês, bordar diversos tipos de pontos, pintar, desenhar cartazes para ilustrar as aulas que porventura fossem lecionar um dia. A supressão da Economia Doméstica dos currículos significa que às mulheres do século XXI não cabe mais a representação de esposa e mãe? Essa questão é digna de ser refletida: as mulheres de hoje encontram-se no mundo do trabalho, em cargos de chefia, morando sozinhas, responsáveis por suas próprias vidas e sem dar satisfação dela pra ninguém. Mas ainda uma grande parte das jovens mulheres, quando beiram a casa dos 30 passam a preocupar-se se vão ou não “ficar para 121 titias”. A diferença é que as mulheres do século XXI aproveitam sua solteirice intensamente. *** Sobre o trabalho do historiador incidem luzes e sombras. E todo trabalho de pesquisa também lança luzes e cria sombras. As luzes que esta dissertação ajudou a acender residem principalmente no fato de quebrar o silêncio sobre as vivências femininas em Piraju num determinado momento histórico. Outro ponto importante foi ter sido este trabalho realizado por uma mulher, pois versões masculinas de histórias de Piraju já existem. As sombras que não conseguiu iluminar estão na sua limitação em ter se restringido à uma história das mulheres de elite e não ter conseguido trazer à tona as vivências femininas das classes populares – isto fica para uma próxima pesquisa. Também a história das mulheres é uma história de classes. As fontes pesquisadas não iluminaram as populares, os jornais pesquisados não as retrataram em quase nenhum momento e a Escola Normal não lhes era opção. Se não aparecem nos jornais, se não estudaram na Escola Normal... como encontrar as mulheres do povo que viveram em Piraju nos Anos Dourados? Algumas pistas sobre como fazê-lo este trabalho pode lançar... A História Oral é uma delas, pois poderá ajudar a incidir mais luz sobre questões femininas, especialmente se o desejo for reconstruir aquelas relativas às mulheres das camadas populares. Outras são procurá-las nos registros de processos-crime e ainda abrir bem os olhos e observar suas incidências nos filmes em cinemascope produzidos aos anos 50 e início da década de 60 que retrataram a cidade e foram recuperados pela Diretoria de Cultura do Município. As pistas estão lançadas, descortinar as vivências femininas em Piraju, seja das mulheres da elite, seja das populares em outros momentos históricos vai ser tarefa para nós: mulheres-pesquisadoras. Sim, acredito que esse trabalho deve ser feito por mãos femininas, pela ótica feminina (e talvez pelo viés do feminismo) com a sensibilidade que somente nós, mulheres possuímos para compreender e reconstruir nossa própria história e da sociedade a qual pertencemos. 122 Fontes I – Impressas a) Jornais Jornal O Comércio de Piraju. Piraju-SP (edições de 1949 a 1964, exceto ano de 1963 que não foi localizado) Jornal O Rio Novense. Rio Novo. 25 de dezembro de 1890. Jornal O Expresso de Piraju. Piraju-SP. 30 de dezembro de 2005. Jornal A Tribuna de Piraju. Piraju-SP. 15 de novembro de 1991. Jornal Observador. Piraju-SP. 07 de setembro de 2007. b) Cadernos de Poesia Caderno de Poesia de Maria Conceição Pereira Martini. Manuscrito. Piraju-SP. Sem data. c) Livros de Poesia MARTINI, M.C.P. Poesia: Na Noite. In: Poetas brasileiros de hoje. Coletânea de poemas. Vários Autores. Rio de Janeiro: Shogun Editora e Arte Ltda,1985. pg 70. _____ . Poesia: Rosa Mística. In: Oração e Poesia. Rio de Janeiro: Shogun Editora e Arte Ltda,1991, pg 91. _____ . Poesia Palavra Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. _____ . Poesias: Lua Cheia de Amor, Erotic, Definição, Recado do Amigo e Rosa Mística. Conto: Convites de Casamento. In: Antologia de Poesias, Contos e Crônicas Scortecci. Vol. V. São Paulo: João Scortecci Editora, 1997. pg. 6771. 123 _____ . Conto: Do sonho à realidade. In: O sonho: antologia literária. Rio de Janeiro: Litteris Ed., São Paulo: Casa do Novo Autor, 1999. pg. 370-371. ISBN: 85-7298-478-X. _____ . Poesias: Decepção e Vozes do meu silêncio. Conto: Meu pecado. In: Antologia de Poesias, Contos e Crônicas Scortecci – 16ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo 2000. vol II. Coletânea de poemas. Vários Autores. São Paulo: João Scortecci Editora, 2000. pg. 157-162. ISBN 85-7372-385-8. _____ . Poesia: Sonho de Garoto. In: Anuário de Escritores 2000: antologia literária. Rio de Janeiro: Litteris Ed., São Paulo: Casa do Novo Autor, 2000. pg. 178. ISBN: 85-7298-639-1. _____ . Poesias: Bendita sejas, Mar, Levanta Guerreiro e Canto da Cigarra. In: Antologia Poética 2001. Ordem Sereníssima da Lyra de Bronze. (Poemas e Contos Selecionados). Coletânea de poemas. Vários Autores. Porto Alegre: Shan Editores Ltda., 2001. pg. 111-114. _____ . Poesias: Insônia Atrevida e Milagre. In: Antologia Poética 2002. Ordem Sereníssima da Lyra de Bronze. (Poemas e Contos Selecionados). Coletânea de poemas. Vários Autores. Porto Alegre: Shan Editores, 2002. pg. 26-27. _____ . Poesias: Recordando e Minha prole. In: Nova Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: Shogun Editora e Arte Ltda. 1987. pg. 89. _____ . Poeta. In: Antologia Poética de cidades brasileiras. Shogun Editora e Arte Ltda. 1985. pg. 88. d) Cadernos de Economia Doméstica e Puericultura CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Ana Célia Romero. Piraju-SP, 1959 e 1960. 124 CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Nilza Maria Dell’ Agnolo. Piraju-SP, 1957. CADERNO DE ECONOMIA DOMÉSTICA E PUERICULTURA, Tânia Regina Assaf Guerra. Piraju-SP, 1973. e) Livros de Economia Doméstica e Puericultura SOUZA, Marina G. Sampaio de. Economia Doméstica (terceira e quarta séries – curso ginasial). 5ª ed. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1957. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA. DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO. DIRETORIA DO SERVIÇO DE SAÚDE ESCOLAR. – SÃO PAULO – O Ensino da Puericultura no 4º ano feminino primário (Planos de Aulas). Org. por Maria Antonieta de Castro, Educadora-Chefe do Serviço de Saúde Escolar, com a colaboração das Educadoras sanitárias Graziela M. Leite Vasconcelos e Moriza Menezes de Souza. Boletim da Revista “EDUCAÇÃO”, 1946. f) Livros e outras publicações sobre Piraju CÁCERES, Miguel. Piraju: memórias políticas e outras memórias. São Paulo: Pró-Texto Comunicação e Editora Ltda, 1998. CANTARIN, Márcio Matiassi. Piraju: cidade linda. Poesia de Cordel. (mimeo). Distribuído pela Diretoria de Cultura de Piraju por ocasião do aniversário da cidade. 2007. DEL RIOS, Jefferson. Ourinhos: memórias de uma cidade paulista. Ourinhos, SO: Prefeitura Municipal, 1992. 125 LEMMAN, Constantino. Piraju: Seu passado e Seu presente. Piraju, SP: Gráfica Invicto, 1959. _____ . Piraju: ontem e hoje. Piraju, SP: Gráfica Invicto, 1963. Piraju: fatos (Revista). Governo do Município de Piraju. Secretaria Municipal da Cultura, Turismo e Meio Ambiente. Piraju: Gráfica CGC Ind. e Com., 1991. g) Documentos e Leis Municipais Código de Posturas, Costumes e Bem-Estar do Município de Piraju. 1970. II – Orais a) Entrevistas Entrevista com Selma Carolina Assaf. Piraju-SP. 27 de fevereiro de 2007. Entrevista com Fernando Martini. Piraju-SP. 27 de fevereiro de 2007. Entrevista com Carmen Oliveira Dias. Ourinhos-SP. 10 de janeiro de 2007. III – Imagéticas a) Fotografias Imagem 1. Diploma de normalista de Maria Conceição Pereira Martini. 1946. Imagem 2. Maria Conceição Pereira Martini e os filhos Silvio, Selma e Fernando durante solenidade de entrega de título de Cidadã Pirajuense. Piraju, 17 de dezembro de 1996. Acervo: Fernando Pereira Martini. Imagem 3. Anúncio Regulador Fontoura. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 16 abr. 1950. Imagem 4. Anúncio Regulador Sedantol. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 14 set. 1952. 126 Imagem 5. Anúncio Peitoral de Scott. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 14 jul. 1956. Imagem 6. Anúncio Heliogás. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. Anos 50. Imagem 7. Anúncio Lava Roupa Prima Econômica. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. 19 fev. 1963. Imagem 8. Anúncio Máquina de Costura com motor Arno. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. Anos 50. Imagem 9. Professora Conceição e alunas entregando roupas de bebê produzidas nas aulas de Economia Doméstica. 17 out. 1956. Fonte: Arquivo particular Família Martini. Imagem 10. Anúncio Lingeries Valisere. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. P.3. 21 jan. 1960. Imagem 11. Anúncio Geladeira Clímax. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.2. 12 dez. 1957. Imagem 12. Anúncio Produtos Walita. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 04 mai. 1957. Imagem 13. Práticas esportivas femininas às margens do rio Paranapanema. Retirada de vídeo produzido nos anos 50. Imagem 14. Estudantes apresentando-se aos professores na Escola Normal. Retirada vídeo produzido nos anos 50. Imagem 15, 16, 17. Práticas e habilidades femininas: jardinagem, cozinhar. Fonte: Cadernos de Economia Doméstica. Imagem 18. Desfile em Piraju no final da década de 50. Retirada de vídeo produzido nos anos 50. Imagem 19. Fotografia: Exposição de Trabalhos Manuais em 1959. Fonte: Arquivo particular da família Maria Conceição Pereira Martini. Imagem 20. Fotografia: Exposição de Trabalhos Manuais em 1963. Fonte: Arquivo particular da família de Maria Conceição Pereira Martini. Imagem 21. Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 22. Lavadora de roupas Brastemp. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 23. Anúncio sabão Minerva. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.4. 04 mai. 1957. 127 Imagem 24. Anúncio Ferro de passar Walita. Fonte: O Comércio de Piraju, Piraju. p.3. 15 mai. 1951. Imagem 25. Ferros de passar. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo. Piraju-SP, 1957. Imagem 26, 27 e 28. Enlatados, cozinhas americanas e eletrodomésticos. Fonte: Caderno de Economia Doméstica de Nilza Dell’Agnolo, Ana Célia Romero e Tânia Regina Assaf Guerra. Piraju-SP, 1957, 1959, 1960 e 1973. b) vídeo DVD com vídeos recuperados pela Diretoria Municipal de Cultura de Piraju. Vídeos produzidos entre as décadas de 50 e 60. 128 Bibliografia ANDRADE, Liza Maria Souza de. O conceito de Cidades-Jardins: uma adaptação para as cidades sustentáveis. Disponível http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq042/arq042_02.asp. em: Acesso em 17/09/2007. ANDRADE, Maíra Zimmermann de. Transformação Social pela Cozinha: Consumo das Mulheres no Brasil do Desenvolvimentismo. Anais do 3º Colóquio de Moda. FEEVALE, Novo Hamburgo, RS. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/coloquio2007/anais_aprovados/transformacao _social_pela_cozinha.pdf. Acesso em 21 de outubro de 2008. AVELINO, Yvone Dias & outros. O bosque sagrado e o borrador. 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Fonte: www.faroldolago.com.br Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo