UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA TÍTULO DA DISSERTAÇÃO GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS Nome do Candidato António Pereira Rosa MESTRADO EM MATEMÁTICA PARA O ENSINO Ano 2008 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA TÍTULO DA DISSERTAÇÃO GEOMETRIAS NÃO EUCLIDIANAS Nome do Candidato António Pereira Rosa MESTRADO EM MATEMÁTICA PARA O ENSINO Dissertação orientada pelo Prof. Doutor Pedro Jorge Santos Freitas Ano 2008 Agradecimentos Quero agradecer ao meu orientador, Prof. Pedro Jorge dos Santos Freitas, pelo apoio que me deu e pelas numerosas sugestões que fez e que muito melhoraram este trabalho. Agradeço também à minha família, em particular à minha Esposa, Maria de Fátima, todo o apoio e compreensão que me deu. III Índice Resumo 1 1. Introdução 2 2. Geometria Projectiva 14 1. Breve introdução histórica…………………………………………… 14 2. Sistemas de axiomas para a geometria projectiva……………………. 15 3. Algumas consequências simples dos axiomas. Projectividades numa recta………………………………………………………………….. 3.1 Pontos harmónicos conjugados…………………………………….. 3.2 Separação e orientabilidade………………………………………… 3.3 Correspondências ordenadas. Projectividades e involuções……….. 21 21 25 28 4. Colineações, correlações e polaridades………………………………. 38 5. Cónicas……………………………………………………………….. 42 6. Geometria projectiva analítica: introdução de coordenadas…………. 6.1 Operações com pontos……………………………………………… 6.2 Coordenadas na recta projectiva; expressões analíticas das projectividades………………………………………………….. 6.3 Coordenadas homogéneas na recta projectiva; razão cruzada……… 6.4 Coordenadas homogéneas no plano projectivo……………………... 6.5 Representação analítica das colineações, correlações e polaridades.. 46 46 7. Alguns modelos do plano projectivo real…………………………….. 70 3. Geometria Elíptica 50 55 58 65 73 1. Introdução……………………………………………………………. 73 2. Geometria elíptica unidimensional…………………………………... 2.1 Translações e Simetrias ..…………………………………………… 2.2 Congruência de segmentos………………………………………….. 2.3 Comprimento de um segmento; representações analíticas das translações e simetrias………………………………………………. 73 74 77 3. Geometria elíptica bidimensional……………………………………. 3.1 Congruências, simetrias e rotações…………………………………. 3.2 Um modelo da geometria analítica unidimensional construído a partir da geometria bidimensional………………………………… 3.3 Caracterização das congruências do plano elíptico…………………. 3.4 Estudo analítico das rotações; quaterniões………………………….. 86 88 IV 81 90 92 96 4. Geometria Hiperbólica 105 1. Introdução……………………………………………………………. 105 2. Modelo projectivo da geometria hiperbólica plana………………….. 105 3. Alguns resultados de geometria hiperbólica…………………………. 113 4. Geometria analítica hiperbólica……………………………………… 129 5. Trigonometria e área 140 1. Introdução……………………………………………………………. 140 2. Breve revisão sobre polaridades……………………………………... 141 3. Trigonometria elíptica………………………………………………... 143 4. Trigonometria hiperbólica…………………………………………… 154 5. Área em geometria não euclidiana…………………………………… 160 6. Modelos 175 1. Introdução……………………………………………………………. 175 2. Modelos euclidianos unidimensionais……………………………….. 175 3. Modelos euclidianos bidimensionais………………………………… 3.1 O modelo elíptico de Beltrami……………………………………… 3.2 O modelo elíptico de Klein…………………………………………. 3.3 O modelo hiperbólico de Beltrami………………………………….. 3.4 O modelo hiperbólico de Klein e o modelo de Poincaré no semi-plano……………………………………………………….. 3.5 Comparação dos diversos modelos…………………………………. 3.6 Construção de modelos aplicando a teoria das funções de variável complexa……………………………………………….. 3.7 Modelos de geometrias não euclidianas em superfícies de R3 ………………………………………………………………... 181 181 184 189 4. Modelos em dimensões superiores…………………………………... 4.1 Generalidades sobre espaços pseudo-euclidianos…………………... 4.2 O modelo do hiperbolóide…………………………………………... 4.3 O modelo de Beltrami generalizado………………………………… 4.4 O modelo de Poincaré generalizado………………………………… 207 208 212 216 219 Apêndice A – Quaterniões……………………………………………... Apêndice B – Funções hiperbólicas………………………………….. Referências………………………………………………………………… 222 227 232 V 192 195 196 203 Resumo Esta dissertação foi elaborada com o objectivo de obter o grau de Mestre em Matemática para o Ensino, pela Universidade de Lisboa. O nosso principal objectivo é mostrar como se pode fazer um estudo unificado das geometrias não euclidianas planas (elíptica e hiperbólica) por meio da geometria projectiva. Assim, depois de analisarmos no primeiro capítulo os sistemas axiomáticos mais vulgares (o sistema de Hilbert e a axiomática métrica de Birkhoff), mostramos que o referido estudo unificado não pode ser feito nestes sistemas. No segundo capítulo, estabelecemos os resultados fundamentais de geometria projectiva (sintética e analítica) que vamos utilizar para o estudo da geometria elíptica e da geometria hiperbólica nos dois capítulos seguintes. O estudo da trigonometria não euclidiana é o objectivo principal do quinto capítulo: estabelecemos as principais fórmulas que são utilizadas para a resolução de triângulos tanto no caso elíptico como no hiperbólico e abordamos brevemente a noção de área em geometria não euclidiana. No último capítulo, estudamos alguns modelos das geometrias não euclidianas que podem ser obtidos tirando partido da estrutura do espaço euclidiano tridimensional usual e, de uma forma breve, referimos extensões a dimensões superiores do estudo feito. No fim da dissertação, apresentamos dois apêndices contendo alguns resultados fundamentais sobre quaterniões e funções hiperbólicas. Palavras-chave: geometria não euclidiana; geometria projectiva; geometria elíptica; geometria hiperbólica. Abstract The current thesis was written aiming at obtaining the Master of Mathematics for Teaching Degree at Universidade de Lisboa. The main purpose of this work is to demonstrate that it is possible to carry out a unified study of plane (elliptic and hyperbolic) non-Euclidean geometries through projective geometry. Thus, in the first chapter, after having analysed the most usual axiomatic systems (Hilbert’s system and Birkhoff’s metric scheme) we will demonstrate that such a study cannot be performed through them. In the second chapter we will delve into the essential results of projective geometry (synthetic and analytic), which we will use for the study of elliptic and hyperbolic geometry in the next two chapters. Chapter five is a close examination of non- Euclidean trigonometry: we will ascertain the main formulas used for the resolution of triangles, both in the elliptic and the hyperbolic cases. We will also briefly state the notion of area in non- Euclidean geometry. In the last chapter we will study non Euclidean geometric models that can be obtained exploring the usual three-dimensional Euclidean space structure. We will shortly refer some extensions and superior dimensions of the current research. At the end there are two appendixes which contain some elemental data on quaternions and hyperbolic functions. Key words: non-euclidean geometry; projective geometry; elliptic geometry; hyperbolic geometry. -1- Capítulo 1 Introdução No século III a. C., o geómetra Euclides de Alexandria publicou uma obra intitulada Elementos, na qual procurou sistematizar o conhecimento matemático do seu tempo e que veio a ter uma influência decisiva no estudo da Geometria. Partindo de um pequeno número de proposições assumidas como verdadeiras1, desenvolveu uma longa cadeia de 465 proposições, agrupadas em 13 livros2, tratando de assuntos tão variados como a geometria plana, a teoria dos números ou a álgebra (interpretada geometricamente, como era usual na matemática grega). O estudo da geometria plana é feito nos livros I a VI (os chamados livros planimétricos), interessando-nos especialmente o volume I, que contém, entre outros tópicos, a teoria das rectas paralelas. Euclides começa por apresentar 23 definições de vários termos que vai usar posteriormente, como ponto, recta (de início no sentido da linha recta finita, que corresponde ao nosso segmento de recta, admitindo depois a possibilidade do seu prolongamento infinito), plano, círculo, quadrado e outros. A título de curiosidade, reproduzimos algumas dessas definições: Ponto é aquilo que não tem partes. Linha é um comprimento sem largura. As extremidades de uma linha são pontos. Linha recta é aquela que jaz uniformemente com os pontos sobre ela. Linhas rectas paralelas são linhas rectas que, estando no mesmo plano e sendo prolongadas indefinidamente em ambos os sentidos, não se encontram em nenhum dos sentidos. (a famosa definição nº. 23). 1 Euclides não foi o primeiro a tentar sistematizar o conhecimento geométrico por via dedutiva. Sabe-se que, entre outros, Hipócrates de Quios, famoso pelas suas quadraturas de lúnulas, tentou desenvolver a Geometria do seu tempo partindo de um pequeno número de proposições aceites sem prova. Este autor escreveu uns Elementos, que se perderam; parte deste trabalho terá sido, porventura, incorporado na obra de Euclides. 2 A fixação do texto dos Elementos é um problema complicado, uma vez que as cópias mais antigas existentes são muito posteriores a Euclides e, de um modo geral, são deficientes e incorporam grande número de comentários, provas alternativas e contribuições de geómetras posteriores. Também diferem muito nas definições e no número de Postulados e Noções Comuns, bem como na sua organização (o que nalgumas é Postulado, noutras é Noção Comum, e vice-versa). A disposição que apresentamos é a mais usual, e deriva do famoso Manuscrito P, descoberto por Peyrard na Biblioteca do Vaticano no início do século XIX e que serviu para a primeira versão moderna do texto grego (J. L. Heiberg); sobre estes assuntos, pode-se consultar [HeT3] ou [Est]. -2- Em seguida, apresentou uma lista de cinco proposições de carácter geométrico, que aceita sem justificação e que constituem uma das bases do seu sistema dedutivo: os Postulados3. 1 – Traçar uma linha recta de qualquer ponto a qualquer ponto. 2 – Prolongar continuamente uma linha recta finita numa linha recta. 3 – Traçar um círculo com quaisquer centro e raio. 4 – Todos os ângulos rectos são iguais. 5 – Se uma linha recta incidir em duas linhas rectas fazendo ângulos do mesmo lado menores que dois rectos, então as duas linhas rectas, se prolongadas indefinidamente, encontram-se do lado em que estão os ângulos menores do que dois ângulos rectos. (Postulado das Paralelas de Euclides). Finalmente, seguem-se as noções comuns ou axiomas4, proposições também aceites como verdadeiras, mas que não têm conteúdo especificamente geométrico: 1 – Coisas que são iguais à mesma coisa são iguais entre si. 2 – Se iguais forem adicionados a iguais, então os todos são iguais. 3 – Se iguais forem subtraídos de iguais, então os restantes são iguais. 4 – Coisas que coincidem uma com a outra são iguais entre si. 5 – O todo é maior que a parte. Se compararmos com um sistema axiomático moderno, a diferença mais marcante é a tentativa de definir certos termos, como ponto, recta ou plano que, actualmente são considerados termos indefinidos do sistema. Euclides parece não se ter apercebido da impossibilidade de definir todos os termos usados5, o que não deixa de 3 Os três primeiros postulados devem ser entendidos como afirmações de existência, que não decorre das definições; por exemplo, o primeiro postulado afirma a possibilidade de traçar um segmento de recta unindo dois quaisquer pontos; Euclides assume implicitamente que tal segmento é único. 4 A distinção entre axioma e postulado, inexistente na actualidade, já não era muito clara na Antiguidade. Segundo alguns comentadores, um postulado deveria ser uma afirmação de existência (e por esse critério, o postulado 4 não deveria ser considerado um postulado); outros afirmavam que um axioma deveria traduzir uma verdade geral do conhecimento, que não fosse de carácter especificamente geométrico (mas o axioma 4 é usado por Euclides como critério de igualdade de figuras….) e outros que um postulado é uma afirmação que não sendo obviamente verdadeira, ao contrário de um axioma, é admitida para o desenvolver da teoria (uma distinção insatisfatória, por demasiado subjectiva). Na prática, a distinção entre axioma e postulado acaba por ser meramente convencional e irrelevante, sobretudo se atendermos aos problemas de fixação do texto e organização que referimos na nota anterior. 5 A titulo de curiosidade (e como recurso didáctico útil para aqules que tiverem de ensinar estes assuntos), referimos aqui um jogo denominado Vish (de vicious circle), inventado por J. L. Synge ([Cox3], pág. 5) no qual se mostra como é fácil cair num círculo vicioso se procuramos definir todos os termos. Procurando num dicionário (no nosso caso, o Dicionário da Língua Portuguesa, 7ª edição, da Porto Editora, de 1994), encontra-se a seguinte cadeia de definições: Ponto: entidade geométrica sem dimensão alguma. -3- ser curioso, se tiver em atenção que a sua atitude (e a dos outros estudiosos da sua época, de acordo com as indicações de Aristóteles nos Analíticos Posteriores) em relação aos postulados/axiomas é essencialmente indistinguível da actual6. Os Elementos foram muito justamente considerados uma obra-prima e, apesar de alguns defeitos7, como insuficiências lógicas e propriedades admitidas implicitamente,8 que foram sendo descobertos ao longo do tempo, tiveram até ao século XIX o estatuto de obra definitiva em termos de Geometria. Houve, no entanto uma proposição que desde logo levantou controvérsia: o Postulado das Paralelas9. A sua natureza menos intuitiva, bem como facto de ser uma proposição muito mais complexa que qualquer dos outros postulados ou axiomas, levantou rapidamente a suspeita de que deveria ser possível prová-lo a partir dos restantes postulados, ou, pelo menos, substitui-lo por outra proposição mais simples e intuitiva que permitisse desenvolver convenientemente a teoria das paralelas e, em última análise, prová-lo, passando assim o Postulado das Paralelas a ser um teorema. Segundo Proclo (século V d. C.), a primeira tentativa neste sentido foi feita por Posidónio (século I a. C.), seguindo-se outros geómetras como Ptolomeu e Geminus. Mais tarde, os geómetras árabes abordaram também sem sucesso este problema, que depois constituiu tema de estudo para muitos matemáticos, como John Wallis (16161703), Girolamo Saccheri (1677-1733), Johann Lambert (1728-1777) e Adrien Marie Legendre (1752-1833). Nenhum conseguiu resolver satisfatoriamente a questão, ficando como resultado dos seus trabalhos uma longa série de proposições equivalentes (no contexto dos restantes postulados/axiomas) ao Postulado das Paralelas, os chamados enunciados geométricos10. A título de curiosidade, referimos algumas: a) duas rectas paralelas a uma terceira são paralelas entre si. b) por um ponto exterior a uma recta passa uma e uma só recta paralela à dada (postulado dito de Playfair, embora já fosse usado por Proclo). c) uma recta perpendicular a uma de duas rectas paralelas é perpendicular à outra. Dimensão: extensão em qualquer sentido. Extensão: porção de espaço ou tempo. Espaço: extensão indefinida. Extensão acaba por ser definida em termos de Extensão! 6 Refira-se no entanto que muitos matemáticos da actualidade consideram um sistema axiomático como um mero jogo formal, ao passo que na Antiguidade, por influência da Escola Platónica (cujas ideias Euclides partilharia), a Geometria era considerada como uma descrição formal da realidade. 7 Por exemplo, Leibnitz observou que Euclides admite sem prova a intersecção das duas circunferências referidas na proposição I do livro I (construção de um triângulo equilátero de lado dado); é fácil ver que num modelo constituído pelos pontos do plano de coordenadas racionais, as circunferências unitárias de centros (0, 0) e (1, 0) não se intersectam. 8 Por exemplo, Riemann observou que Euclides admite, sem prova, que uma linha recta tem comprimento infinito, o que, como veremos, tem implicações geométricas importantes. 9 Alguns autores consideram que a inclusão deste Postulado entre as proposições admitidas sem prova é obra do próprio Euclides, baseando-se nas afirmações de Aristóteles nos Primeiros Analíticos sobre o estado pouco satisfatório da Teoria das Paralelas na Geometria do seu tempo; se esta conjectura for verdadeira, é mais uma marca do génio do grande geómetra de Alexandria. 10 O leitor interessado na história destas tentativas bem como na da geometria não euclidiana em geral pode consultar com vantagem a referência [Bon]. -4- d) por quaisquer três pontos não colineares passa uma circunferência. e) a soma das medidas dos três ângulos internos de um triângulo é igual a dois rectos. f) um ângulo inscrito numa semi-circunferência é recto. g) existem rectângulos (hipótese do ângulo recto, de Saccheri). h) se três ângulos de um quadrilátero são rectos, o quarto ângulo também o é (hipótese do ângulo recto para os trirrectângulos de Lambert) i) dado um triângulo [ABC] e um segmento [DE], existe um triângulo [DEF] semelhante ao triângulo dado (postulado de Wallis). O falhanço de todas as tentativas empreendidas por tão distintos matemáticos para provar o Postulado das Paralelas levou já em 1763 (numa tese de G. S. Klüger) à suspeita de que este seria independente dos restantes. Esta ideia foi confirmada no início do século XIX com a descoberta das geometrias não euclidianas por diversos matemáticos, como Carl Friederich Gauss (1777-1855), Nicolai Ivanovitsch Lobatchewski (1795-1856), Farkas Bolyai (1775-1856) e seu filho János Bolyai11 (1802-1866), para citar apenas os mais conhecidos. As tentativas de provar o Postulado das Paralelas tiveram importantes consequências em Matemática para além da descoberta das geometrias não-euclidianas: levaram a um estudo cuidadoso dos fundamentos da geometria, tentando-se elaborar sistemas de axiomas que evitassem os defeitos descobertos nos Elementos de Euclides (por exemplo, explicitando o mais cuidadosamente possível as proposições admitidas tacitamente por Euclides). O primeiro sistema de axiomas satisfatório foi apresentado pelo alemão Moritz Pasch em 1882 e foi seguido por diversos outros, como os de G. Peano (1858-1932) e Mário Pieri (1860-1904). De todos os sistemas propostos, aquele que alcançou maior êxito foi o devido a David Hilbert (1862-1943) na sua obra Grundlagen der Geometrie (Fundamentos da Geometria12), publicada em 1899 e sucessivamente aperfeiçoada em diversas edições13. Hilbert construiu um sistema axiomático extremamente elegante, próximo da tradição euclidiana e com um mínimo de simbolismo, características que ajudam a explicar o seu êxito face aos sistemas rivais. Baseou o sistema em três termos primitivos (ponto, recta e plano, o último dos quais pode ser omitido se se deseja estudar apenas geometria plana) e três relações: “ser incidente a” (entre pontos e rectas ou pontos e planos), “estar entre” (entre três pontos colineares) e “ser congruente a” (entre dois segmentos ou entre dois ângulos) e em vinte axiomas, divididos em cinco grupos14. 11 Em húngaro, os seus nomes escrevem-se por ordem inversa: Bolyai Farkas e Bolyai János, respectivamente. 12 Existe tradução em Português, a referência [DHi]; duas obras que fazem o estudo da geometria segundo versões modernas da axiomática de Hilbert são [Dio2] e [Gre]. 13 Para um exemplo curioso e elucidativo destes aperfeiçoamentos, pode consultar-se [Adl], págs. 24 a 27. 14 Nesta versão dos axiomas de Hilbert, que foi adaptada de [Dio2]; em [DHi] os axiomas estão ordenados de forma ligeiramente diferente. -5- Grupo I (axiomas de incidência15) I – 1 Dados dois pontos, existe sempre uma recta que com eles incide. I – 2 Dados dois pontos, não existe mais que uma recta que com eles incida. I – 3 Com qualquer recta incidem pelo menos dois pontos. Há pelo menos três pontos que não incidem com a mesma recta (pontos ditos não colineares). I – 4 Para quaisquer três pontos não colineares, existe sempre um plano que com eles incide. Qualquer plano incide com pelo menos três pontos. I – 5 Dados três pontos não colineares, não há mais que um plano que com eles incida. I – 6 Se dois pontos incidentes com uma recta incidem com um plano, a recta incide16 com o plano. I – 7 Se dois planos incidem com um mesmo ponto, então ambos incidem com pelo menos outro ponto. I – 8 Há pelo menos quatro pontos que não incidem com o mesmo plano17. Grupo II (axiomas de ordem) II – 1 Se um ponto A está entre dois pontos B e C, então os três pontos são colineares e A está entre C e B. II – 2 Dados dois pontos A e B, há sempre algum ponto C tal que B está entre A e C. II – 3 Dados três pontos colineares, não mais do que um está entre os outros dois. II – 4 Dados três pontos não colineares A, B e C e uma recta r incidente com o plano que com eles incide e não incidente com nenhum deles, se a recta r incide com um ponto do segmento [AB], então certamente incide com um ponto do segmento [BC] ou um ponto do segmento [AC]18. 15 Rigorosamente falando, uma recta não se deve identificar a priori com o conjunto de pontos com ela incidentes (o chamado pontual da recta) e o mesmo se passa com os planos; no que se segue, não teremos necessidade de uma distinção tão fina, pelo que o leitor nada perderá se fizer a referida identificação bem como se interpretar a relação de incidência ponto-recta (ou ponto-plano) com a de pertença (∈). Assim, utilizaremos muitas vezes expressões como “a recta passa pelo ponto” e “a recta está contida no plano”. 16 Repare-se que a relação de incidência entre recta e plano já não é primitiva; uma recta incidir com um plano significa, por definição, que todo o ponto que incide com a recta incide também com o plano. 17 Se se pretende apenas estudar geometria plana, deve-se suprimir o axioma I – 8 e fazer adaptações óbvias nos restantes. 18 Axioma de Pasch; dados dois pontos distintos A e B, o segmento [AB] é a colecção de pontos que estão entre A e B (pontos interiores) mais os pontos A e B (ditos extremos). -6- Grupo III (axiomas de congruência) III – 1 Se A e B são dois pontos incidentes com a recta a e A' é um ponto incidente com uma recta a ' (que pode ou não coincidir com a recta a), então em qualquer das semi-rectas19 de suporte a ' e origem A' existe um único ponto B' tal que o segmento [AB] é congruente com o segmento [A' B'] (escreve-se então [AB] ≡ [A' B'] ). Os segmentos [AB] e [BA] são congruentes. III – 2 Dois segmentos congruentes com um terceiro são congruentes entre si. III – 3 Se o ponto B está entre os pontos A e C e o ponto B ' está entre os pontos A' e C ' , então da congruência entre os segmentos [ AB ] e [ A' B'] e os segmentos [BC ] e [B'C '] , infere-se que os segmentos [AC ] e [A'C '] são congruentes. III – 4 Dados um ângulo ∠{h, k } , um plano α' , uma recta a ' incidente com este, um ponto O' incidente com a ' e uma semi-recta h' de suporte a ' e origem O' , em cada um dos semiplanos de suporte α ' e aresta a ' , existe uma única semi-recta k ' , de origem O' , tal que o ângulo ∠{h, k } é congruente com o ângulo ∠{h' , k '}.20 Um ângulo é congruente consigo próprio. III – 5 Dados dois triângulos [ ABC ] e [ A' B' C '] , se ∠ A ≡ ∠ A' , então ∠ B ≡ ∠ B' e ∠ C ≡ ∠ C ' .21 [AB] ≡ [A' B'] , [AC ] ≡ [A'C '] e Grupo IV (axiomas de continuidade)22 IV – 1 Dados dois segmentos não congruentes, há um múltiplo do menor que excede o maior.23 IV – 2 Dada uma sucessão de segmentos [ An Bn ] (n = 1, 2,K) tais que: a) [ An+1 Bn+1 ]⊂ [ An Bn ] (n = 1, 2,K) ; b) Dado um segmento qualquer [CD], existe um número natural n tal que o segmento [An Bn ] é menor que o segmento [CD]. Então existe um ponto X que pertence a todos os segmentos da sucessão [An Bn ] (n = 1, 2,K) .24 19 Para as definições de semi-recta e ângulo, veja-se, por exemplo, [Dio2], págs. 33 a 36. As definições de semiplano e de ângulo podem ver-se em [Dio2], págs. 34 a 36. 21 Num triângulo [ABC], representa-se por ∠ A o ângulo cujos lados são as duas semi-rectas de origem em A e que incidem com os pontos B e C, respectivamente. 22 O uso destes axiomas permite evitar problemas como a objecção de Leibnitz (nota 6); nalgumas versões da axiomática, são substituídos pelo axioma de Dedekind, que encontraremos mais adiante. 23 É uma versão do conhecido axioma de Arquimedes; para outras versões e provas da equivalência entre elas, consulte-se [Dio2], págs. 99 a 105. 20 -7- Grupo V (axioma das paralelas) V – 1 Dados um ponto e uma recta que com ele não incide, no plano por eles determinado existe uma única recta que incide com o ponto e é paralela à recta dada.25 Nos anos que se seguiram à publicação de sistema de Hilbert, foram apresentados vários sistemas alternativos de axiomas para a Geometria (por exemplo, por Oswald Veblen em 1911, Henry Forder em 1927 e G. de B. Robinson em 1946), mas o sistema Hilbertiano prevaleceu até à apresentação em 1932 de uma nova série de axiomas pelos matemáticos americanos G. D. Birkhoff e Ralph Beatley, os chamados axiomas métricos. É uma versão moderna deste sistema que vamos agora considerar26. O sistema de axiomas métricos distingue-se do de Hilbert essencialmente porque pressupõe conhecido o sistema dos números reais, com todas as suas propriedades algébricas, de ordem ou topológicas. Isto permite um desenvolvimento da teoria que muitos consideram mais fácil para os estudantes, em contraposição com o sistema de Hilbert, que requer, pelo menos de início, a prova de toda uma série de resultados de natureza mais ou menos técnica, logicamente necessária mas muito morosa. Tal como o sistema de Hilbert, o sistema métrico tem termos indefinidos, ponto, recta e plano e relações primitivas, como a incidência. Os primeiros oito axiomas (de incidência) coincidem com os de Hilbert (rigorosamente falando, bastam-nos os três primeiros; decidimos, no entanto, manter a numeração anterior). Seguem-se-lhes os dois axiomas da distância. A9 – Axioma da medição linear: a cada par de pontos A e B, é possível associar um número real (que representaremos por d(A, B)), dito distância entre A e B, que verifica as seguintes propriedades: a) Para todos os pontos A e B, d ( A, B) ≥ 0 . b) d ( A, B) = 0 se e só se A = B . c) d ( A, B ) = d ( B, A) para quaisquer pontos A e B. A10 – Para cada recta l, existe um sistema de coordenadas, isto é, uma bijecção f entre l e R tal que, para quaisquer pontos A e B de l, se tem d ( A, B) = f ( A) − f ( B) . 24 Axioma de Cantor, que corresponde ao conhecido Princípio dos Intervalos Encaixados da Análise Real; no trabalho original de Hilbert, é substituído por um outro axioma, dito de completabilidade ([DHi], págs. 28 a 31). 25 É o já referido axioma de Playfair, que pode ser substituído por qualquer um dos enunciados geométricos que anteriormente mencionámos. É importante acrescentar que os enunciados geométricos apenas são equivalentes ao axioma das Paralelas se se admitirem os axiomas dos grupos I a IV, nomeadamente o axioma de Arquimedes; por exemplo, Max Dehn deu um exemplo de uma geometria (dita semi-euclidiana) na qual a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual a dois rectos e não se verifica o axioma das Paralelas (vejam-se [DHi], págs. 45 a 48 e [For], págs. 337 e 338). 26 Baseada em [Moi]; o leitor interessado no sistema original pode consultar [Eve], apêndice D. -8- Tem-se depois o axioma da separação (no espaço)27 A11 – Dado um plano α, o conjunto dos pontos do espaço que com ele não incidem é igual à união de dois conjuntos convexos H 1 e H 2 tais que para quaisquer pontos A e B verificando A ∈ H 1 e B ∈ H 2 (ou vice-versa), o segmento [AB] intersecta o plano α.28 Os quatro próximos axiomas dizem respeito à medição angular29: A12 – A cada ângulo ∠ABC está associado um único número pertencente ao intervalo ]0, π[ , chamado amplitude do ângulo, que representaremos por ABˆ C . A13 – Se A e B são dois pontos distintos, seja H um dos semiplanos de aresta AB; então, para cada número real r de ]0, π[ , existe um único ponto P em H tal que PAˆ B = r . A14 – Se D for um ponto interior de ∠BAC , então BAˆ C = BAˆ D + DAˆ C . A15 – Se os ângulos ∠ABC e ∠ABD forem suplementares adjacentes (isto é, se B, C e D forem colineares, estando B entre C e D), então ABˆ C + ABˆ D = π . Segue-se um axioma correspondente ao caso LAL de congruência de triângulos da Geometria elementar: A16 – Se, dados dois triângulos, houver uma correspondência entre eles tal que dois lados e o ângulo por eles formado num dos triângulos sejam congruentes com os elementos correspondentes do outro triângulo, os dois triângulos são congruentes.30 27 Se pretendermos estudar apenas geometria plana, devem fazer-se as alterações naturais aos axiomas de incidência, tal como no sistema hilbertiano e substituir a axioma da separação no espaço pelo axioma da separação no plano; a este respeito, pode consultar-se [APV], que é um excelente exemplo do estudo da geometria plana por meio de axiomas métricos. 28 Dados três pontos colineares A, B e C, diz-se que B está entre A e C se d(A, B) + d(B, C) = d(A, C); o segmento [AB] é o conjunto formado pelos pontos A e B (extremos) e por todos os pontos entre eles e o número real d(A, B) (que se representa usualmente por AB ) é o seu comprimento. Finalmente, um conjunto diz-se convexo se dados dois quaisquer dos seus pontos, o segmento que os tem por extremos estiver totalmente contido no conjunto. 29 Para as definições de ângulo, semi-plano e interior de um ângulo no sistema de axiomas métrico, consulte-se [Moi], págs. 55, 64 e 65. 30 A fim de permitir a boa compreensão deste axioma, apresentamos sumariamente algumas definições relevantes: a) dois segmentos (respectivamente dois ângulos) são congruentes se tiverem o mesmo comprimento (respectivamente a mesma amplitude). b) dados três pontos não colineares A, B e C, o triângulo [ABC] é o conjunto formado pela união dos três segmentos [AB], [BC] e [AC] (lados do triângulo). Os pontos A, B e C são os vértices e os ângulos ∠ABC , ∠BAC e ∠ACB os ângulos internos; as suas amplitudes costumam representar-se por B̂ , Â e Ĉ , respectivamente. -9- A axiomática termina com o Axioma das Paralelas, na forma de Playfair: A17 – Dados um ponto e uma recta que com ele não incide, no plano por eles determinado existe uma única recta que incide com o ponto e é paralela à recta dada. É natural colocar-se agora a seguinte questão: até que ponto estas axiomáticas da geometria euclidiana (digamos plana, para fixar ideias e por uma questão de simplicidade) podem ser adaptadas para fundamentarem as geometrias não-euclidianas descobertas no século XIX? Para tentar responder a esta questão, recordemos que estas geometrias surgem da substituição do Axioma das Paralelas (Playfair) por uma das seguintes alternativas31: O axioma hiperbólico: Dados um ponto e uma recta que com ele não incide, no plano por eles determinado existem duas ou mais rectas que incidem com o ponto e são paralelas à recta dada. O axioma elíptico32: Com um ponto não incidente a uma recta, não incide nenhuma recta paralela à primeira. A primeira alternativa não apresenta problemas de maior: se substituirmos o axioma das Paralelas em qualquer das axiomáticas apresentadas pelo axioma hiperbólico, obtemos a chamada geometria hiperbólica, cuja consistência é provada pela existência de modelos, como veremos mais adiante. As geometrias euclidiana e hiperbólica têm um largo conjunto de resultados em comum, a chamada geometria neutra ou absoluta: se considerarmos (por exemplo) a axiomática de Hilbert, vemos que todos os teoremas que possam ser provados usando apenas os axiomas de incidência, ordem, congruência e continuidade são válidos em qualquer das duas geometrias33. Passemos a considerar o axioma elíptico, que é sugerido naturalmente pelo estudo da geometria na superfície de uma esfera34, sendo os pontos os pontos c) uma correspondência entre dois triângulos [ABC] e [DEF] é uma bijecção f entre os conjuntos dos seus vértices; uma congruência é uma correspondência tal que lados e ângulos correspondentes sejam congruentes. Mais precisamente, se f ( A) = D, f ( B) = E e f (C ) = F , então tem-se AB = DE ; Aˆ = Dˆ AC = DF ; Bˆ = Eˆ BC = EF ; Cˆ = Fˆ . d) dois triângulos dizem-se congruentes se existir alguma congruência entre eles. 31 Veremos posteriormente a razão das denominações destes axiomas, introduzidas no século XIX por Félix Klein. 32 Também conhecido como axioma de Riemann. 33 Como exemplos de resultados não triviais de geometria absoluta (evidenciando o muito que as duas geometrias têm em comum), podem citar-se o Teorema de Sylvester e o Teorema de Steiner-Lehmus ([Dio2], págs. 42 a 46 e 75 a 77, respectivamente); por outro lado, nunca é demais referir que muitos resultados simples da geometria elementar são específicos da geometria euclidiana - vejam-se os enunciados geométricos! 34 Um modelo extremamente importante, pelas suas aplicações à navegação e à Astronomia; não deixa de ser curioso notar que muitas das proposições da chamada geometria esférica, nomeadamente os processos - 10 - euclidianos e as rectas os círculos máximos (circunferências obtidas intersectando a superfície esférica por planos euclidianos que passam pelo centro). É imediata a inexistência de paralelas neste modelo, como também é imediato que não se verifica o segundo axioma de incidência: com dois pontos diametralmente opostos, incide uma infinidade de rectas35. Os axiomas de ordem também não fazem sentido neste modelo: já Gauss referiu, numa objecção à axiomática de Euclides nos Elementos, que dados três pontos sobre uma circunferência, não é razoável dizer que um deles está entre os outros dois…36 Finalmente, o sistema axiomático obtido juntando à geometria absoluta o axioma elíptico, é contraditório, já que a existência de paralelas é um teorema de geometria absoluta37 (veja-se [Dio2], pág. 63 ou [APV], págs. 35 e 36, conforme se prefira a axiomática de Hilbert ou o sistema métrico). Todos estes problemas ilustram a grande “distância” que separa a geometria esférica da geometria euclidiana (ou da geometria hiperbólica)38. Que fazer então para tentar estudar de forma tão unificada quanto possível os três tipos de Geometria plana apresentados? Duas alternativas surgem: a) tentar encontrar uma axiomática que seja aplicável às três, com um mínimo de alterações para cada caso; b) arranjar uma construção que permita obter de forma unificada e natural as três geometrias. A alternativa b) será estudada detalhadamente noutros capítulos; veremos uma construção partindo do plano projectivo real.39 Quanto à alternativa a), vamos apresentar de modo muito sumário e a título de curiosidade uma axiomática menos vulgar (axiomática da distância), que permite um tratamento relativamente unificado das três geometrias. Isto não quer dizer que advoguemos o seu uso, sobretudo com principiantes, já que, como vamos ver, é um tratamento muito pouco natural, difícil de motivar40 e extremamente pouco intuitivo: as geometrias planas surgem como casos particulares do estudo dos espaços métricos41. de resolução de triângulos, já eram conhecidos muito antes do início do estudo das geometrias não euclidianas, obtidos por métodos euclidianos elementares. A título de exemplo, já nas obras de Menelaus de Alexandria (fins do século I d. C.) surgem resultados sobre triângulos esféricos. 35 Este problema pode ser ultrapassado identificando dois postos diametralmente opostos, uma ideia devida a Félix Klein. 36 Quando estudarmos a geometria projectiva, veremos que, para lidar com esta situação, os axiomas de ordem devem ser substituídos pelos chamados axiomas de separação. 37 Disto resulta, em particular, que a forma do axioma de Playfair que temos estado a usar pode ser substituída por uma forma mais fraca; o que está em jogo não é a existência de paralelas mas sim a unicidade. 38 Já Saccheri, ao pretender demonstrar o Postulado das Paralelas de Euclides não teve grande dificuldade em desembaraçar-se do equivalente ao Axioma elíptico no seu sistema (a chamada Hipótese do Ângulo Obtuso), se bem que admitindo implicitamente que uma linha recta tem comprimento infinito; o mesmo sucedeu com Lambert e Legendre ([Bon], págs. 29 a 58). 39 Para uma construção alternativa recorrendo ao corpo dos números complexos, pode consultar-se [ScH]. 40 Para uma tentativa neste sentido, vejam-se [Blu] ou [BuK]. 41 Pode ver-se em [Kay] um outro sistema axiomático que permite o estudo simultâneo das geometrias euclidiana, hiperbólica e esférica; é mais elementar que a axiomática da distância, mas é algo artificial. - 11 - Como preliminar, recordemos que se chama espaço métrico a um par ( X , d ) , onde X é um conjunto não vazio e d : X × X → R é uma aplicação (dita distância) tal que: 1) d ( x, y ) ≥ 0 ∀x, y ∈ X e d ( x, y ) = 0 ⇔ x = y; 2) d ( x, y ) = d ( y, x) ∀x, y ∈ X ; 3) d ( x, z ) ≤ d ( x, y ) + d ( y, z ) ∀x, y, z ∈ X . Um espaço métrico X diz-se completo se toda a sucessão de Cauchy42 de elementos de X for convergente em X. Vamos então considerar um conjunto não vazio X, cujos elementos chamaremos pontos. A tabela a seguir permite comparar as axiomáticas a usar para os três tipos de geometrias planas tendo X como suporte. Geometria euclidiana Geometria hiperbólica Geometria esférica 1. X é um espaço métrico 1. X é um espaço métrico 1. X é um espaço métrico completo, com distância d. completo, com distância d. completo, com distância d. 2. X é um espaço metrica- 2. X é um espaço metrica- 2. X é um espaço metricamente convexo.43 mente convexo. mente convexo. 3. X é um espaço externa- 3. X é um espaço externa- 3. O espaço X é mente convexo.44 mente convexo. diametrizado45; além disso, verifica-se que se x, y ∈ X então d ( x, y ) ≤ π. 4. Existem em X três pontos tais que nenhuma das distâncias entre eles é igual à soma das outras duas. 4. Existem em X três 4. Existem em X três pontos pontos tais que nenhuma a, b e c tais que o seu das distâncias entre eles é determinante ∆ é nulo. igual à soma das outras duas. 5. O determinante D de quaisquer quatro pontos de X é nulo. 5. O determinante H de quaisquer quatro pontos de X é nulo. 42 5. O determinante ∆ de quaisquer quatro pontos de X é nulo. Uma sucessão ( xn )n∈N de elementos de X diz-se uma sucessão de Cauchy se para todo o número real δ > 0 existir um número natural n0 tal que n, m > n0 ⇒ d ( x n , x m ) < δ . Um espaço métrico X com distância d, diz-se metricamente convexo se dados dois pontos distintos p e r em X, existir sempre um terceiro ponto q, distinto dos anteriores e tal que d ( p, q) + d (q, r ) = d ( p, r ). 44 Um espaço métrico X com distância d, diz-se externamente convexo se dados dois pontos distintos p e q em X, existir sempre um terceiro ponto r, distinto dos anteriores e tal que d ( p, q) + d (q, r ) = d ( p, r ). 43 45 Isto é, se p ∈ X , existe p * ∈ X tal que d ( p, p * ) = π . - 12 - Para a definição dos determinantes D, H e ∆ que, em certo sentido caracterizam cada uma das geometrias, para a justificação de que estes sistemas axiomáticos definem efectivamente as geometrias euclidiana, hiperbólica e esférica e uma extensão à geometria elíptica (um tipo de geometria que estudaremos no terceiro capítulo), o leitor pode consultar [Blu], páginas 149 a 187, bem como as referências aí citadas. - 13 - Capítulo 2 Geometria Projectiva Projective geometry is all geometry.46 Arthur Cayley 1. Breve introdução histórica Embora alguns matemáticos da Antiguidade clássica tenham obtido resultados que actualmente são considerados do âmbito da Geometria Projectiva47, o seu estudo começou realmente no século XVI, como consequência dos trabalhos sobre perspectiva de pintores da Renascença como Fillipo Brunelleschi (1377-1446), Leon Battista Alberti (1404-1472) e Albrecht Dürer (1471-1528). Johannes Werner (1468-1522), conterrâneo de Albrecht Dürer, colaborou com este em questões de perspectiva e publicou o primeiro grande tratado sobre cónicas desde a Antiguidade; embora inferior às obras de Apolónio de Perga, teve muita importância, dado que os trabalhos deste último só mais tarde foram redescobertos. Johannes Kepler (1571-1630) foi o primeiro a introduzir pontos e linhas no infinito para o estudo das cónicas. Dada a importância da perspectiva em pintura e arquitectura, não é de estranhar que o próximo grande passo tenha sido dado por um arquitecto e engenheiro militar, Girard Desargues (1593-1662), contemporâneo e amigo de Descartes, que foi o primeiro a empreender com sucesso o estudo das cónicas sob o ponto de vista projectivo, tendo introduzido diversos conceitos fundamentais, como o de involução, polar e quadrilátero completo. Reobteve e ampliou resultados de Apolónio de Perga, Fermat e Descartes e provou o célebre teorema que tem o seu nome48, mas o seu trabalho teve pouco impacto na época, devido ao seu estilo de exposição difícil e pouco convencional e ao facto de os seus métodos constituírem uma ruptura demasiado grande tanto com a tradição clássica como com a geometria analítica que começava a despontar. Os seus trabalhos perderam-se49 e durante séculos, o pouco que se soube acerca deles deveu-se ao seu ilustre seguidor Blaise Pascal, que desenvolveu os seus métodos, culminando na publicação do conhecido Essay pour les coniques, onde, entre 46 [Cay], pág. 592; é curioso notar que, no original, Cayley usa “Descriptive Geometry” em vez de “Projective Geometry”; no século XIX, os dois termos eram sinónimos. 47 Apolónio de Perga introduziu o conceito de pontos harmónicos e Pappus de Alexandria demonstrou o teorema que tem actualmente o seu nome, embora num contexto diferente daquele em que hoje é estudado. A hipótese de que Euclides e os seus sucessores conheciam a geração projectiva das cónicas, aventada por alguns historiadores, é hoje encarada com cepticismo; sobre este assunto, veja-se [Kno], págs. 137 e 138. 48 É interessante notar que o teorema de Desargues não surge nos seus trabalhos, mas sim num livro publicado em 1648 por um dos seus poucos seguidores, Abraham Bosse, que o atribui explicitamente a Desargues. 49 A sua obra principal, “Brouillon project d’une atteinte aux événements des rencontres d’un cone avec un plan” sobreviveu apenas numa cópia feita por um seu díscipulo, o matemático e arquitecto Philippe de LaHire (1640-1718), descoberta em Paris em 1847. - 14 - muitos resultados de grande interesse, surge pela primeira vez o teorema do hexagrama místico e seus corolários. Depois da morte de Pascal, a Geometria Projectiva foi esquecida (à parte um tratado sobre cónicas tratadas projectivamente por Philippe de LaHire e alguns resultados obtidos por Braikenridge, Maclaurin50 e Newton no início do século XVIII, sobre um problema muito antigo, fazer passar uma cónica por cinco pontos dados) e quase totalmente substituída pela geometria analítica cartesiana, ressurgindo apenas no início do século XIX. O ressurgimento da Geometria Projectiva ficou a dever-se a um grupo de alunos da École Polytechnique, onde Gaspard Monge (1746-1818) e Lazare Carnot (17531823) tinham feito uma autêntica revolução no ensino da Geometria: foram eles Charles Jules Brianchon (1785-1864), o descobridor do teorema que tem o seu nome51, Michel Chasles (1798-1880), Joseph Gergonne (1771-1853) e, sobretudo, Jean Victor Poncelet (1788-1867), grande defensor dos métodos sintéticos em Geometria. A Geometria Projectiva atraiu a atenção de matemáticos de nomeada fora de França, como o suíço Jakob Steiner, (1796-1863) especialista em métodos sintéticos e descobridor da geometria inversiva e de K. G. C. von Staudt (1798-1867), que mostrou como se podia desenvolver a geometria projectiva sem recurso à noção de distância. O passo seguinte foi dado por Arthur Cayley (1821-1895), que em 1859 mostrou como se podia aplicar a geometria projectiva ao estudo das geometrias não euclidianas, definindo a noção de distância em termos projectivos de forma conveniente. Foi um desenvolvimento extremamente importante, pois, ao apresentar as geometrias nãoeuclidianas a partir de uma teoria bem aceite, contribuiu para dissipar as dúvidas existentes sobre a sua consistência. Os seus trabalhos forem retomados e desenvolvidos por Félix Klein (1849-1925), o proponente do famoso Programa de Erlangen. É o método de Cayley-Klein para o estudo das geometrias planas que vamos abordar neste trabalho. 2. Sistemas de axiomas para a geometria projectiva Embora estejamos interessados essencialmente em geometria plana, vamos fazer uma pequena digressão, apresentando brevemente um sistema axiomático para a geometria projectiva no espaço, com o objectivo de pôr em evidência uma notável diferença entre a Geometria Projectiva e as geometrias consideradas no capítulo anterior. Entre os diversos sistemas de axiomas para a Geometria Projectiva no espaço (sobre o corpo dos números reais), escolhemos a versão de Coxeter do sistema de Pieri, Vailati e Dedekind que se pode encontrar em [Cox1]52. Baseia-se em duas noções indefinidas, ponto e linha e duas relações indefinidas, incidência e separação. Os axiomas estão divididos em três grupos: axiomas de incidência, de separação e de continuidade. Só consideraremos aqui o primeiro grupo53. Axiomas de incidência54 Inc1 – Há pelo menos dois pontos. 50 Veja-se [Cox2], páginas 91 e 92 ou [Cox3], página 81 a 85, para a solução de Braikenridge e Maclaurin, um resultado muito importante para a introdução de coordenadas no plano projectivo. 51 É o dual do teorema do hexagrama místico de Pascal; estes dois teoremas constituem o primeiro exemplo relevante de um par de teoremas duais. 52 Uma alternativa muito usada é o sistema de Veblen e Young, que pode ver-se em [VY1]. 53 Porque os axiomas de separação e de continuidade são praticamente iguais nos casos do plano e do espaço. 54 Essencialmente, descrevem as propriedades da relação indefinida homónima. - 15 - Inc2 – Dois quaisquer pontos incidem com uma única linha55. Inc3 – Qualquer linha incide com pelo menos três pontos. Inc4 – Há pelo menos um ponto que não incide com uma linha AB dada. Inc5 – Se A, B e C são três pontos não colineares e D é um ponto incidente com BC distinto de B e C, e E é um ponto incidente com AC distinto de A e C, existe um ponto F na recta AB tal que D, E e F são colineares (ver Figura 1). Inc6 – Existe pelo menos um ponto que não está no plano ABC. Inc7 – A intersecção de dois planos quaisquer é uma linha (logo, não há planos paralelos). A F E B C D Figura 1 Para a compreensão destes axiomas, devemos ter em conta as seguintes definições: Definição 1: Pontos incidentes com a mesma linha dizem-se colineares; o conjunto dos pontos incidentes com uma linha diz-se o pontual da linha. Definição 2: Duas linhas que têm um ponto em comum dizem-se concorrentes. Definição 3: Chama-se feixe (de rectas) de centro num ponto O ao conjunto de todas as rectas incidentes com O. Definição 4: Um plano é o conjunto formado pelos pontos incidentes com as rectas de um feixe, juntamente com as rectas determinadas por pares desses mesmos pontos. Definição 5: Pontos ou rectas complanares são os que estão no mesmo plano.56 Como é usual, diz-se que um ponto tem dimensão zero, uma linha dimensão um, um plano dimensão dois e o espaço (conjunto formado por todos os pontos, rectas e planos), dimensão três. Poder-se-ia pensar, por analogia com o que vimos no capítulo anterior, ser possível obter a geometria projectiva plana modificando da maneira óbvia os axiomas de incidência. O facto de isso não ser verdade é uma das surpresas da Geometria Projectiva; se fizermos essa modificação, obtemos um sistema axiomático fraco, onde 55 Costuma representar-se por AB a linha incidente com os pontos A e B. 56 É consequência imediata das definições e do axioma Inc5 que um plano contém todos os pontos de cada uma das suas linhas e que pode ser definido por qualquer dos feixes nele contido. Costuma representar-se por ABC (respectivamente por Ar) o plano definido por três pontos não colineares (respectivamente por uma recta r e por um ponto A não incidente com ela) - 16 - não é possível provar certas proposições importantes (os teoremas de Desargues e Pappus, por exemplo), como se mostra recorrendo a modelos57. Assim, é conveniente juntar como axioma uma destas proposições (ou outra que lhe seja equivalente); para complicar a situação, o sistema obtido por adjunção da propriedade de Pappus é estritamente mais forte que o sistema resultante da adjunção da propriedade de Desargues ([Art], páginas 234 a 237). Prova-se, no entanto, que estas situações bizarras não podem ocorrer num plano projectivo contido num espaço projectivo tridimensional ([Art], páginas 232 e 233). Para a justificação (algo delicada) das afirmações anteriores, o leitor pode, para além das referências citadas, consultar com proveito [Cox2] ou [Blu] ou ainda o capítulo IV de [Sei]. Após esta breve digressão, voltemos à geometria plana, apresentando uma versão bidimensional do sistema de axiomas de Pieri (seguindo [Cox2]). Tal como a versão para o espaço anteriormente referida, baseia-se em duas noções indefinidas, ponto e linha e duas relações indefinidas, incidência e separação. Os axiomas estão divididos em três grupos: axiomas de incidência, de separação e de continuidade. Axiomas de incidência I1 – Existem uma linha e um ponto não incidentes. I2– Qualquer linha incide com pelo menos três pontos distintos. I3 – Dados dois pontos distintos, existe uma única linha incidente com eles. I4 – Duas linhas quaisquer incidem simultaneamente com pelo menos um ponto58 (logo, não há rectas paralelas). I5 – Se três linhas distintas PP' , QQ ' e RR ' incidem com um ponto O, existe uma (única) linha incidente com os três pontos de intersecção A = QR ∩ Q' R' , B = RP ∩ R' P' , e C = PQ ∩ P 'Q ' 59 (isto é, estes pontos são colineares no sentido da Definição 1 −veja-se a seguinte figura)60. Figura 2 57 O famoso plano de Moulton, que se pode ver em [Sam], páginas 46 a 48. O ponto é evidentemente único. 59 Rigorosamente falando, a intersecção de duas rectas distintas define-se como o único ponto que incide com ambas; não havendo perigo de confusão, não distinguiremos entre uma linha e o seu pontual e assim falaremos de intersecção no sentido da Teoria os Conjuntos, utilizando o símbolo ∩ da maneira usual. 60 É uma versão do Teorema de Desargues (facto que evidenciamos destacando os dois “triângulos”), que aqui tem de surgir como axioma, pelos motivos anteriormente referidos. 58 - 17 - Os axiomas de separação correspondem aos axiomas de ordem das geometrias referidas no capítulo anterior e procuram, em certo sentido, lidar com uma velha pecha dos Elementos de Euclides, o problema da ordenação de pontos dispostos sobre uma circunferência. Descrevem as propriedades da relação indefinida de separação entre dois pares de pontos; utilizaremos a notação AB||CD para indicar que os pontos A e B separam os pontos C e D. Antes de enunciarmos os axiomas de separação, temos de definir uma noção fundamental em Geometria Projectiva: a de perspectividade. Definição 6: a) Uma correspondência é uma bijecção f entre os pontuais (ou, mais geralmente, entre subconjuntos desses pontuais) de duas linhas r e r ' . b) Uma correspondência diz-se uma perspectividade de centro no ponto O se para todo o ponto X incidente com a recta r, a recta Xf(X) incidir com o ponto O; costuma O representar-se por X ' a imagem do ponto X por meio de f e escreve-se X ∧ X ' ou apenas X ∧ X ' se não houver perigo de confusão (ver Figura 3); ocasionalmente, O utilizaremos ainda a notação XYZ ... ∧ X 'Y ' Z '... , que é uma extensão óbvia da anterior. X O r' X' r Figura 3 Definição 7: Consideremos dois feixes de rectas Ψ e Ψ ' , com centros nos pontos O e O' , respectivamente. Diz-se que uma bijecção f: Ψ → Ψ ' é uma perspectividade relativamente a uma recta r, se para qualquer recta s do feixe Ψ, s ∩ f (s ) incide com a recta r. Veja-se a Figura 4, onde representamos f(s) por s' como é usual. O' O s´ s r Figura 4 - 18 - Axiomas de separação S1 – Há uma linha que incide com pelo menos quatro ponto distintos61. S2 – Se AB||CD, os pontos A, B, C e D são colineares e distintos. S3 – Se AB||CD, então AB||DC. S4 – Se os pontos A, B, C e D são colineares e distintos, verifica-se sempre exactamente uma das três hipóteses BC||AD, CA||BD ou AB||CD62. S5 – Se AB||CD e AC||BE, então AB||DE. S6 – Se AB||CD e ABCD∧ A' B ' C ' D' , então A' B ' || C ' D ' . Para ajudar a compreender o significado destes axiomas (dum ponto de vista informal, é claro) é útil pensar nos pontos dispostos sobre uma circunferência, como na seguinte figura. A X C D B Y Figura 5 Finalmente, temos o último axioma: Axioma de continuidade63 C – Dada uma qualquer partição de um segmento S em dois subconjuntos não vazios S1 e S2, tal que nenhum ponto de nenhum deles está entre dois pontos do outro, existe um ponto num dos subconjuntos (digamos em S1) que está entre qualquer ponto de S1 e qualquer ponto de S2 (veja-se a figura seguinte, tendo em conta a nota 64) S1 S2 A Figura 6 No enunciado deste axioma foram utilizados os termos segmento e entre, que passamos a definir. 61 Compare-se com o Axioma de incidência I2. Este axioma pode ser substituído pela forma mais fraca: “Se os pontos A, B, C e D são colineares e distintos, verifica-se pelo menos uma das três hipóteses BC||AD, CA||BD ou AB||CD ”, conforme se pode ver em [Cox2], página 26. Adoptámos a forma referida no texto a fim de simplificar a exposição. 63 Os axiomas até aqui apresentados não nos permitiriam distinguir entre o plano projectivo real e o plano projectivo construído sobre o corpo dos números racionais, daí a necessidade deste último axioma, correspondente ao Axioma de Dedekind do corpo dos números reais; referimos ainda que há outras formas possíveis para o axioma de continuidade, que se podem ver em [Cox2], páginas 161 a 170. 62 - 19 - Definição 8: Sejam A, B e C três pontos colineares. a) O segmento ]AB[ \ C é o conjunto dos pontos X tais que AB||CX (repare-se que C ∉ ]AB[ \ C ). b) O intervalo [ AB] \ C é o conjunto ]AB[ \ C ∪ {A, B}. c) O intervalo [ XY ] \ C diz-se interior ao intervalo [ AB ] \ C se X , Y ∈ [ AB ] \ C e um ponto D está entre os pontos X e Y de [ AB] \ C se D ∈ ]XY [ \ C .64 B X C A O segmento ]AB[ \ C , a traço grosso Figura 7 Após a apresentação de um sistema de axiomas, surgem de forma natural duas questões: a) Será ele consistente (isto é, será impossível deduzir resultados contraditórios a partir dos axiomas)? b) Será categórico (isto é, dois quaisquer modelos seus serão isomorfos)? É evidente que se a resposta à primeira questão for negativa, o sistema é totalmente inútil; a partir de uma contradição, pode-se, por modus ponens, provar qualquer proposição. Quanto à segunda, se é certo que a categoricidade tem aspectos desejáveis (por exemplo, se tivermos um modelo65 com o qual seja fácil de operar, poderemos obter resultados gerais demonstrando propriedades nesse modelo, já que ele é único, a menos de isomorfismo), também é verdade que muitos sistemas axiomáticos extremamente importantes não possuem esta propriedade (por exemplo, em teoria de 64 Assim, se nos restringirmos a um segmento ou a um intervalo, recuperamos a relação “estar entre” dos sistemas axiomáticos do primeiro capítulo. 65 Muito informalmente, podemos tentar definir modelo (um termo que, diga-se de passagem, já usámos várias vezes…) como um “exemplo” do sistema, um conjunto de objectos que satisfazem os axiomas dados; assim, para testar a validade de um modelo, teremos que mostrar que nele se verificam os axiomas do sistema em causa. Para um estudo mais aprofundado destas questões de Lógica, sugerimos a consulta de [OlF3]. - 20 - grupos, há grupos finitos e infinitos, comutativos e não comutativos, etc.), o que, de certo modo, pode ser visto como uma indicação da “flexibilidade” desses sistemas. No caso dos dois sistemas axiomáticos referidos, ambos são consistentes e categóricos. Se a primeira propriedade é relativamente fácil de justificar, por meio de modelos66, a segunda é bastante mais difícil, pelo que remetemos o leitor para [Ve2] (caso da geometria no espaço) e para [Cox2] (caso da geometria no plano). 3. Algumas consequências simples dos axiomas. Projectividades numa recta. Nesta secção, vamos fazer um estudo muito breve da Geometria Projectiva, desenvolvendo apenas aqueles assuntos que nos vão interessar para a abordagem das geometrias não euclidianas. O principal objectivo é definir e classificar as projectividades unidimensionais, com especial interesse nas involuções67, projectividades com propriedades muito especiais que vão ser extremamente importantes no estudo das geometrias não euclidianas. 3.1 Pontos harmónicos conjugados Teorema 1: (Princípio da dualidade no plano)68 Se numa proposição qualquer sobre incidência de pontos e rectas trocarmos os termos “ponto” e “ recta”, obtemos uma proposição equivalente à dada. Demonstração: Basta observar que os axiomas de incidência implicam os seus próprios duais. ■ O resultado que se segue, além de interessante por si só, será utilizado diversas vezes, no estudo das propriedades da relação harmónica, na orientabilidade e nas involuções. Necessitamos de uma definição preliminar. Definição 9: Três pontos não colineares A, B e C, definem um triângulo, tendo por vértices os pontos dados e por lados as rectas AB, BC e AC. Representamos esse triângulo por [ABC]. Teorema 2: Dados quatro pontos colineares, é possível trocar pares deles por meio de uma sequência de três perspectividades. Demonstração: Sejam dados os pontos A, A' , B e B ' e suponhamos que queremos efectuar a A A' B B' . Traçamos um triângulo [TUP] cujos lados UP, PT, TU permutação A' A B' B 66 Apresentaremos mais adiante modelos convenientes para a geometria projectiva bidimensional; quanto à geometria no espaço, o leitor pode consultar [Cox1], páginas 24 e 25. 67 A título de curiosidade, é um dos raros nomes da terminologia original de Desargues (inspirada na Botânica!) que sobreviveu até aos nossos dias; é de referir que Desargues estudou as involuções de um ponto de vista métrico, mas é possível provar que as definições projectiva e métrica coincidem nas situações em que ambas fazem sentido (veja-se o capítulo 8 de [Cox2]). 68 Existe um princípio de dualidade no espaço (permutar “pontos” com “planos”, não alterando “rectas”), que não vamos considerar aqui. - 21 - incidem com A, B e B' respectivamente (ver a figura seguinte). Determinamos assim os pontos S = A' P ∩ TU e V = AS ∩ BP P V U S A T A´ B B´ Figura 8 P A S e então AA' BB ' ∧ USTB' ∧ PVTB ∧ A' AB ' B , como queríamos. ■ Definição 10: Quatro pontos P, Q, R e S, não existindo três colineares, definem um quadrângulo (completo) PQRS, tendo por vértices os pontos dados e por lados as seis linhas QR, PS, RP, QS, PQ e RS. Os pontos A = QR ∩ PS , B = RP ∩ QS e C = PQ ∩ RS intersecção de “lados opostos” chamam-se pontos diagonais e são os vértices do triângulo diagonal (ver a figura seguinte). P B C S Q A R Figura 9 O “dual” de um quadrângulo é um quadrilátero. Formalmente, tem-se Definição 11: Quatro linhas rectas, p, q, r e s, não havendo três concorrentes, definem um quadrilátero (completo) pqrs, que tem por lados as rectas dadas e por vértices os seis pontos q ∩ r , q ∩ s, q ∩ p, p ∩ s, p ∩ r e r ∩ s . As rectas definidas pelos vértices opostos, - 22 - a, que incide com q ∩ r e p ∩ s ; b, que incide com q ∩ s e p ∩ r ; c, que incide com q ∩ p e r ∩ s são as diagonais do quadrilátero e são os lados do triângulo diagonal (ver a figura seguinte). a c r q b s p Figura 10 Definição 12: Quatro pontos colineares A, B, C e D formam um conjunto harmónico se existir um quadrângulo tal que dois lados opostos incidem com A e os outros dois lados opostos incidem com B, enquanto que os restantes lados passam por C e D, respectivamente. Diz-se que C e D são conjugados harmónicos com respeito ao par de pontos A e B e escreve-se H(AB, CD). Tem-se naturalmente a definição “dual” para linhas: Definição 13: Quatro linhas rectas a, b, c e d, concorrentes num mesmo ponto, formam um conjunto harmónico se existir um quadrilátero tal que dois vértices opostos incidem com a, outros dois com b e os restantes vértices incidem com c e d, respectivamente. Diz-se que as rectas c e d são conjugadas harmónicas relativamente ao par de rectas a e b e escreve-se H(ab, cd). Apresentamos a seguir uma construção (devida a Philippe de LaHire) para a construção do conjugado harmónico D69 de um ponto C em relação a um par AB. Dados os pontos A, B e C, traçamos um triângulo [PQR] cujos lados QR, RP, PQ passam por A, B e C, respectivamente. Determinamos assim um quadrângulo PRQS pondo S = AP ∩ BQ (ver a figura seguinte). Finalmente, basta tomar D = RS ∩ AB . 69 O conjugado harmónico é único, conforme observado a seguir; existe uma construção análoga para a construção da linha conjugada harmónica de uma linha recta dada, relativamente a um par de linhas conhecidas. - 23 - R Q P S A D B C Figura 11 Prova-se que esta construção é independente do triângulo [PQR] escolhido ([Cox2], páginas 18 e 19), e que o ponto D não pode coincidir com o ponto C 70. Mais precisamente, o ponto D está no segmento ]AB[ \ C e verifica-se que H ( AB, CD) implica AB||CD (ver [Cox2], página 28). Disto resulta o seguinte teorema, que é tomado como axioma em certos desenvolvimentos da Geometria Projectiva: Teorema 3: Os pontos diagonais de um quadrângulo completo não podem ser colineares. Demonstração: Basta aplicar a segunda propriedade referida ao quadrângulo ABPQ, reparando que ela implica que necessariamente D ≠ C .■ Para concluir, referimos um resultado que relaciona conjuntos harmónicos com perspectividades. Teorema 4: Uma perspectividade71 preserva a relação harmónica. Demonstração: Comecemos por provar um resultado auxiliar, que tem, aliás, interesse por si só e do qual se segue imediatamente o teorema: “Qualquer secção72 de um conjunto harmónico de linhas é um conjunto harmónico de pontos; as quatro rectas obtidas unindo os pontos de um conjunto harmónico H com um ponto não colinear com os quatro pontos de H formam um conjunto harmónico de linhas.” 70 Valem observações análogas para a linha conjugada harmónica. Ou, mais geralmente, a composta de um número finito de perspectividades. 72 Uma secção de um feixe de rectas por uma recta é, por definição, o conjunto dos pontos da recta que incidem com rectas do feixe. 71 - 24 - Para estabelecer este resultado, reparemos que basta provar a segunda parte, já que a primeira se segue dela pelo princípio da dualidade. Assim, sejam A, B, C e D quatro pontos colineares distintos e tais que H(AB, CD); queremos ver que, ao unir os quatros pontos dados a um ponto P (não incidente com a recta que os contém), obtemos quatro rectas a, b, c e d tais que H(ab, cd). Para tanto, consideremos a construção do ponto D a partir de A, B e C pelo método de LaHire (ver a figura seguinte). R b Q d P S c a A D B C Figura 12 Tomando o ponto P como vértice do triângulo [PQR] na construção, segue-se que o quadrilátero ABSR tem dois vértices opostos incidentes com a recta AS = a , outros dois com a recta BR = b , o vértice Q incidente com a recta c e o vértice D incidente com a recta d, pelo que H(ab, cd), como queríamos. ■ Corolário: (Simetrias da relação harmónica) As oito relações H(AB, CD), H(BA, CD), H(AB, DC), H(BA, DC), H(CD, AB), H(CD, BA), H(DC, AB), H(DC, BA) são equivalentes. Demonstração: Se H(AB, CD), então H(CD, AB), porque podemos trocar sempre pares de pontos entre quatro pontos colineares por meio de perspectividades (Teorema 2) e porque as perspectividades preservam a relação harmónica. As restantes equivalências seguem-se do papel simétrico que os pontos gozam na relação harmónica. ■ 3.2 Separação e orientabilidade A noção de separação, com o seu carácter de ordenação cíclica, tem muitas características em comum com a ordenação usual dos pontos sobre uma recta da geometria euclidiana, desde que nos restrinjamos a segmentos ou intervalos. Pelo - 25 - contrário, se considerarmos a recta projectiva, as propriedades são bastante diferentes, como vamos ver; ao longo desta secção, poderá ser útil ao leitor ter em mente o diagrama circular da Figura 5. Dos três lemas seguintes, os dois primeiros têm carácter essencialmente técnico, podendo ser ignorados numa primeira leitura. Lema 1: Dados quatro pontos colineares distintos, A, B, C e D, se AB||CD, então CD||AB. Demonstração: Basta aplicar o axioma S6 a AB||CD, usando o Teorema 2 para trocar A com C e B com D (fazer A' = C e B ' = D ).■ Lema 2: Se A, B, C, D e E são cinco pontos colineares distintos, não se pode ter simultaneamente BC||DE, CA||DE e AB||DE. Demonstração: Suponhamos, por absurdo, que o resultado é falso. Se, por exemplo, se tivesse BC||AD (ou seja, AD||BC), vem que ( AD || BC ∧ AB || DE ) ⇒ AD || CE (axioma S5) e então não poderia ser CA||DE, pelo axioma S4. Os outros casos são idênticos.■ Lema 3: Dados quatro pontos colineares distintos A, B, C e D tais que AB||CD, os pontos A e B decompõem a recta que com eles incide em exactamente dois segmentos, ]AB[\C e ]AB[\D, ditos segmentos suplementares. Demonstração: Se existisse um ponto X em ]AB[\C e ]AB[\D, viria que XC||AB, CD||AB e DX||AB, o que contradiz o último lema. Assim, basta provar que se X é um ponto da recta distinto de A e B, ele tem de estar num dos dois segmentos referidos no enunciado. Suponhamos que X ∉ ]AB[ \ C , com vista a provar que X ∈ ]AB[ \ D . Se X = C , o resultado é óbvio. Fazendo X = D no axioma S4, resulta que as outras possibilidades são BC||AX ou CA||BX. No primeiro caso, de BA||CD e BC||AX, vem BA||DX; no segundo caso, de AB||CD e AC||BX, resulta AB||DX. Em qualquer dos casos, X ∈ ]AB[ \ D , como queríamos. ■ Pode-se provar (por indução), que n pontos colineares dividem a recta com a qual incidem em n segmentos73, donde se conclui o seguinte resultado importante: Teorema 5: Uma recta tem uma infinidade de pontos.74 73 Comparece-se com o que se passa na geometria “usual”! Este resultado, tendo sido provado apenas recorrendo a axiomas de incidência e separação, é independente do axioma da continuidade. 74 - 26 - O leitor que esteja disposto a aceitar as noções intuitivas de sentido sobre uma circunferência pode omitir o material que se segue até às observações que se seguem ao Teorema 6. Das considerações anteriores, segue-se que, dados n pontos colineares, é possível atribuir-lhes as designações A0 , A1 , K An −1 de modo que eles dividam a recta com eles incidente em n segmentos ]Ar Ar +1 [ \ Ar −1 75. Assim, substituindo se necessário, Ar por As + r ou por As − r 76 quaisquer três destes pontos podem ser representados por A0 , Ab e Ac com 0 < b < c < n . Definição 14: (Sentido numa recta projectiva) Sejam ABC e DEF dois ternos de pontos colineares distintos.77 Vamos atribuir as designações anteriores aos elementos distintos dos ternos de modo que se tenha A = A0 , B = Ab , C = Ac , com b < c e admitamos que então que D = Ad , E = Ae e F = A f . Se: a) d < e < f ou e < f < d ou f < d < e , diz-se que os dois ternos têm o mesmo sentido, o que se representa por S ( DEF ) = S ( ABC ) . b) f < e < d ou d < f < e ou e < d < f , diz-se que os dois ternos têm sentidos opostos, e escreve-se S ( DEF ) ≠ S ( ABC ) . Trata-se de uma relação de equivalência no conjunto dos ternos de uma recta; como S ( ABC ) = S ( BCA) = S (CAB ) ≠ S ( ACB ) , deduz-se que há exactamente duas classes de equivalência. Diz-se então que a recta projectiva é orientável. Tem-se o seguinte teorema que relaciona as noções de separação e sentido: Teorema 6 Dados quatro pontos colineares distintos A, B, C e D, AB||CD se e só se S ( ABC ) ≠ S ( ABD ) . 78 Demonstração: Se AB||CD, a recta fica dividida em quatro segmentos ]AD[ \ C , ]DB[ \ A , ]BC [ \ D e ]CA[ \ B ; usando a notação anteriormente introduzida, vem 75 Considerando para os indíces os representantes principais da sua classe de congruência (mod n). Onde s é o representante principal da sua classe de congruência (mod n). 77 Distintos dentro de cada terno; não se excluem situações como D = A ou E = C, por exemplo. 78 Este resultado leva a que alguns autores prefiram usar o sentido como noção indefinida em vez da separação. 76 - 27 - A = A0 , D = A1 , B = A2 , C = A3 e portanto, S ( ABC ) = S ( ADB ) ≠ S ( ABD ) . Para provar a recíproca, basta inverter o argumento usado. ■ A figura seguinte ilustra de forma intuitiva e informal a relação entre separação e sentido estabelecida no último teorema. B C C B D S(ABD) D A S(ABC) AB||CD ⇔ S(ABC) ≠ S(ABD) A S(ABD)=S(ABC) ∼AB||CD ⇔ S(ABC) = S(ABD) Figura 13 Para concluir, referimos apenas que é possível fazer uma discussão em moldes algo semelhantes para dimensões superiores; a conclusão é que o espaço projectivo tridimensional é orientável, ao passo que o plano projectivo não é orientável.79 3.3 Correspondências ordenadas. Projectividades e involuções Definição 15: a) Uma correspondência f entre pontuais (ou subconjuntos de pontuais) diz-se ordenada se preserva a relação de separação, isto é, se AB || CD ⇒ A' B ' || C ' D ' .80 b) Uma correspondência ordenada de um pontual em si próprio (ou de um subconjunto de um pontual em si próprio) diz-se directa se mantém o sentido ( S ( ABC ) = S ( A' B' C ' ) ) e retrógrada se o inverte ( S ( ABC ) ≠ S ( A' B' C ' ) ). Tem-se o seguinte resultado óbvio: 79 Definindo adequadamente espaço projectivo de dimensão n e orientabilidade, o resultado mais geral é que esse espaço é orientável se e só se n é ímpar; o leitor interessado pode consultar [Maun], páginas 2122, 140 e 173-174. 80 Recordemos que a imagem do ponto X por meio de uma correspondência é representada por X ' desde que não haja perigo de confusão. - 28 - Teorema 7: (Regra dos sinais) A composta de duas correspondências ordenadas obedece à seguinte regra: ° Directa Retrógrada Directa Directa Retrógrada Retrógrada Retrógrada Directa Vejamos um importante exemplo de correspondência ordenada: Teorema 8: Uma perspectividade é uma correspondência ordenada. Demonstração: Imediata, a partir do axioma S6.■ Corolário: A composição de um número finito de perspectividades é uma correspondência ordenada. Definição 16: Um ponto que coincide com a sua imagem por meio de uma correspondência diz-se um ponto duplo81 dessa correspondência. A aplicação identidade dá-nos um exemplo imediato: qualquer ponto é um ponto duplo. Muito menos trivial é o seguinte resultado. Teorema 9: Uma correspondência retrógrada tem exactamente dois pontos duplos. Demonstração: Vamos necessitar de um lema. Lema 4 : Numa correspondência ordenada entre um intervalo [ AB] \ C e um intervalo interior [ A' B '] \ C , existe sempre um ponto fixo M em [ A' B '] \ C tal que não existe nenhum outro ponto fixo entre A e M (em [ AB] \ C ). Se a correspondência for retrógrada, M é o único ponto fixo em [ AB ] \ C .82 Demonstração (do Teorema 9) 81 Ou ponto fixo ou ainda ponto invariante; o caso mais interessante é quando os dois pontuais coincidem. Com efeito, é óbvio que se se tratar de pontuais de duas linhas diferentes, o único ponto duplo possível é o ponto de intersecção dessas linhas e que, se houver dois ou mais pontos duplos, as linhas em causa têm de coincidir. 82 Embora este lema seja intuitivamente óbvio se pensarmos em dois pontos deslocando-se sobre um arco de circunferência, a sua justificação rigorosa não é nada fácil; alguns autores até o tomam como axioma de continuidade em vez do axioma de Dedekind. Para uma prova do lema a partir do axioma de Dedekind, pode consultar-se [Cox1], páginas 36 a 38. - 29 - Considere-se então uma correspondência retrógrada; é óbvio que ela tem pelo menos um ponto A que não é duplo (caso contrário, tratar-se-ia da identidade, que é uma correspondência directa). Consideremos a sua imagem A' e a imagem de A' , o ponto A' ' . Tome-se um ponto C tal que AA' || A' ' C (se A = A' ' , basta escolher um outro ponto C qualquer). A correspondência retrógrada vai relacionar o intervalo [ AA'] \ C com o intervalo interior [ A' A' '] \ C , logo há apenas um ponto duplo M em [ AA'] \ C , pelo lema. Analogamente, existe um segundo ponto duplo N em [ AA'] \ M , já que a correspondência inversa transforma o intervalo [ A' A' '] \ M no intervalo interior [AA'] \ M . ■ A definição seguinte introduz um conceito fundamental em Geometria Projectiva: Definição 17: Uma projectividade83 é uma correspondência entre dois pontuais que preserva a relação harmónica, isto é, se H(AB, CD), então H( A' B ' , C ' D ' ). Resulta do Teorema 4 que uma perspectividade é uma projectividade, bem como qualquer composta de perspectividades em número finito. Representaremos uma projectividade pelo símbolo ∧ , que não deve ser confundido com ∧ (perspectividade). Tem-se o seguinte resultado importante: Teorema 10:84 Uma projectividade que tenha mais de dois pontos fixos é a identidade. Demonstração: Suponhamos, por absurdo, que a projectividade tinha três pontos fixos A, B e C e que existia um ponto P tal que ABCP∧ A' B' C ' P' , com P ≠ P ' . Admitamos que os pontos A, B, C já estão ordenados de maneira que P ∈ ]AB[ \ C e P '∈ ]PB[ \ C (ver figura a seguir). A projectividade vai do intervalo [PB ] \ C para o intervalo interior [P ' B ] \ C , pelo que, pelo Lema 4 :, este último intervalo contém um ponto fixo M tal que não há outros pontos fixos entre P e M (um “primeiro” ponto fixo). Do mesmo modo, considerando a projectividade inversa de [ AP '] \ C para [AP] \ C , este intervalo contém um ponto fixo N tal que não existem pontos fixos entre N e P' (um “último” ponto fixo). Como os segmentos ]NP '[ \ C e ]PM [ \ C não são disjuntos, podemos garantir que no segmento ]NM [ \ C não existem pontos fixos. Seja então D o conjugado harmónico de C relativamente ao par M e N e suponhamos que D∧D ' . Como MNCD∧MNCD' , de H(NM, CD) concluímos que 83 Esta é a definição de Von Staudt; Poncelet definiu uma projectividade como sendo a composta de um número finito de perspectividades. Veremos mais adiante que as duas caracterizações são equivalentes. 84 Atribuído a Von Staudt. - 30 - H(MN, CD ' ), donde resulta85 que D = D' e D é um ponto fixo no segmento ]NM [ \ C , o que é absurdo (Figura 14). ■ A N P P´ M B C Figura 14 O resultado a seguir, devido também a Von Staudt, é conhecido como o Teorema Fundamental da Geometria Projectiva. Teorema 11: Uma projectividade fica determinada quando são conhecidos três pontos (no seu domínio) e as respectivas imagens. Demonstração: Comecemos pela questão da existência. Sejam A, B e C os pontos dados e A' , B ' e C ' as suas imagens. Começamos por considerar uma perspectividade Ψ qualquer que transforme os pontos A, B e C nos pontos A1 , B1 e C1 incidentes com uma outra recta distinta da dada. Sejam então R = AA1 ∩ CC1 , S = BB1 ∩ CC1 e C 0 = BA1 ∩ CC1 . Então A1 B1C1 e A' B ' C ' estão ligados pela sequência de perspectividades R S A1 B1C1 ∧ A' B1C 0 ∧ A' B' C ' (ver Figura 15, onde X é um ponto arbitrário da recta incidente com A1 , B1 e C1 ) e segue-se o resultado por composição com a projectividade Ψ. Se por acaso A1 = A' , basta considerar a perspectividade de centro S. 85 Porque o conjugado harmónico é único (nota 69). - 31 - R B1 X C1 A1 X0 C0 X´ A´ C´ B´ S Figura 15 Passemos à questão da unicidade: Temos de ver que, dada uma construção diferente, um dado ponto X teria a mesma imagem que na construção apresentada. Suponhamos que na nossa construção se tinha ABCX ∧ A' B' C ' X ' e que na construção alternativa se verificava ABCX ∧ A' B ' C ' X 1' . Compondo as duas projectividades, vinha A' B' C ' X ∧ A' B' C ' X 1' , uma projectividade com três pontos fixos e que é pois a identidade, pelo Teorema 10. ■ Corolário 1: É possível por meio de uma sequência de, no máximo, três perspectividades, transformar três pontos colineares distintos em três outros quaisquer três pontos colineares distintos. Demonstração: É consequência imediata do raciocínio feito na demonstração da existência. ■ Corolário 2: Qualquer projectividade pode ser escrita como composta de, no máximo, três perspectividades; se os pontuais estão em linhas distintas, esse número pode ser reduzido para duas86. Demonstração: Imediata. ■ 86 Fica assim estabelecida a equivalência entre as caracterizações de Von Staudt e Poncelet, referida na Nota 83. - 32 - Corolário 3: Uma projectividade é uma correspondência ordenada. Demonstração: Basta atender ao corolário anterior e ao Teorema 8. ■ Uma vez definida a noção de projectividade e estudadas algumas das suas propriedades, vamos passar à questão da classificação. Salvo aviso em contrário, suporemos, até ao fim da secção, que qualquer projectividade tem domínio e conjunto de chegada coincidentes. Tem-se então a seguinte: Definição 18: Classificação das projectividades Uma projectividade diz-se: - Elíptica, se não tiver pontos fixos; - Parabólica, se tiver um único ponto fixo; - Hiperbólica, se tiver dois pontos fixos.87 Resulta do Teorema 9 que uma projectividade retrógrada é hiperbólica e portanto uma projectividade elíptica ou parabólica tem de ser directa. Definição 19: Chama-se involução a uma projectividade (distinta da identidade, para evitar situações triviais) que coincide com a sua inversa88. Numa involução, tem-se pois XX ' ∧ X ' X . No que se segue, vamos referir algumas propriedades das involuções; por uma questão de brevidade provaremos apenas as duas primeiras. Teorema 12: Uma projectividade que permuta dois pontos é uma involução. Demonstração: Consideremos uma projectividade Ψ tal que AA'∧ A' A e seja X um ponto arbitrário, de imagem X ' . Pelo Teorema Fundamental da Geometria Projectiva, a projectividade dada é a única tal que AA' X ∧ A' AX ' . Ora, pelo Teorema 2, existe uma perspectividade tal que AA' XX ' ∧ A' AX ' X , que, pela unicidade, tem de coincidir com a projectividade 87 Pelo Teorema 10, não há mais hipóteses, salvo a identidade. Para exemplos dos vários tipos de projectividades, pode consultar-se [Cox2], páginas 48 a 51. Voltaremos a este assunto após a introdução das coordenadas na recta projectiva. 88 Logo, o quadrado de uma involução é a identidade. - 33 - inicial. Logo tem-se Ψ ( X ) = X ' e Ψ ( X ') = X ; o resultado segue-se da arbitrariedade de X. ■ Corolário: Uma involução fica bem determinada por dois quaisquer dos seus pares. Dada uma involução AA' BB ' ∧ A' AB ' B , vamos representá-la por ( AA')(BB') . O teorema seguinte dá-nos uma representação de certas involuções em termos de pontos harmónicos conjugados. Teorema 13: Se uma involução tem um ponto fixo, é sempre possível determinar outro e a involução reduz-se à correspondência entre pontos harmónicos conjugados relativamente a esse dois pontos fixos. Demonstração: Seja M o ponto fixo dado; escrevamos a involução na forma ( AA')(MM ) e seja N o ponto harmónico conjugado de M relativamente ao par A e A' . Então, N é também o ponto harmónico conjugado de M relativamente a A' e A 89 e, como uma projectividade preserva a relação harmónica, N é o segundo ponto fixo que procurávamos90. Se usássemos um outro par XX ' , obteríamos o mesmo ponto N, pois, se assim não fosse, teríamos uma involução com três pontos fixos.■ Corolário 1: Uma involução não pode ser parabólica. Corolário 2: Nas notações do teorema, MNAA'∧MNA' A se e só se H ( MN , AA' ) . Relativamente às involuções e sua classificação, temos os seguintes resultados suplementares, cujas demonstrações podem ser vistas em [Cox1], páginas 45 a 47: Teorema 14: Uma involução é elíptica se for directa e hiperbólica se for retrógrada. Teorema 15: Se na involução ( AA')(BB ') se tem AA' || BB ' , a involução é elíptica; caso contrário, é hiperbólica. Concluímos esta secção com a seguinte proposição, de demonstração um pouco longa e técnica, mas que é interessante porque aplica os principais conceitos e técnicas anteriormente desenvolvidos. 89 90 Pela simetria da relação harmónica (corolário do Teorema 4). N e M são distintos (vejam-se as observações a seguir à construção de LaHire, página 24). - 34 - Teorema 16: Sejam A e B dois pontos e Ω uma involução elíptica na recta (mais precisamente, no pontual da recta) com eles incidente. Então, há exactamente duas projectividades que são permutáveis com Ω e relacionam A com B. Uma dessas projectividades é uma involução hiperbólica e a outra é elíptica; esta segunda projectividade não é uma involução a menos que um dos pontos A e B seja imagem do outro por meio de Ω, caso em que a referida projectividade coincide com Ω. Demonstração: Para simplificar a prova, vamos dividi-la em várias alíneas 1) Comecemos por supor que Ω( A) ≠ B . Admitindo que existe uma projectividade não elíptica Φ que seja permutável com Ω e tal que Φ ( A) = B , vamos: a) ver que Φ não pode ser parabólica (e logo tem de ser hiperbólica). b) mostrar que Φ tem de ser uma involução. c) tentar caracterizar Φ. Quanto à alínea a), sejam A' = Ω( A) e B ' = Ω( B ) . Como Φ não é elíptica tem pelo menos um ponto fixo M. Seja M ' = Ω( M ) ; vem então Φ ( M ' ) = Φ (Ω( M )) = (Φ o Ω )( M ) = (Ω o Φ )( M ) = Ω(Φ ( M )) = Ω( M ) = M ' donde se conclui que Φ admite um segundo ponto fixo M ' e é pois hiperbólica. ■ Passando à alínea b), comecemos por reparar que (Ω o Φ )( M ) = Ω(Φ( M )) = Ω( M ) = M ' e que (Ω o Φ )( M ' ) = Ω(Φ( M ' ) ) = Ω( M ´) = Ω(Ω( M ) ) = (Ω o Ω )( M ) = Id ( M ) = M . Das igualdades anteriores, conclui-se que Ω o Φ permuta os dois pontos M e M ' , pelo que é uma involução (Teorema 12). Vem então que Φ 2 = Φ o Φ = Φ o (Ω o Ω ) o Φ = (Ω o Φ ) o (Ω o Φ ) = (Ω o Φ ) o (Ω o Φ ) = (Ω o Φ ) = Id 2 e Φ é também uma involução, como queríamos. ■ Quanto a c), repare-se que Φ ( A' ) = B ' . Com efeito, vem - 35 - Φ ( A' ) = Φ (Ω( A)) = (Φ o Ω )( A) = (Ω o Φ )( A) = Ω(Φ ( A)) = Ω( B) = B' . Concluímos assim que a única possível involução Φ que permuta com Ω e que transforma A em B é a involução determinada pelos pares AB e A' B' .■ Vejamos agora que a involução Φ referida na alínea c) é a involução hiperbólica cuja existência queremos provar91. Na verdade, (Ω o Φ )( A) = Ω(Φ( A)) = Ω( B ) = B' (Ω o Φ )( B' ) = Ω(Φ( B' )) = Ω( A' ) = A e portanto Ω o Φ é uma involução. Vem então Ω o Φ = (Ω o Φ ) −1 Ω o Φ = Φ −1 o Ω −1 ΩoΦ = ΦoΩ ficando resolvida a questão da permutabilidade. Finalmente, segue-se do Teorema 15 que AA' || BB ' pelo que A e B não separam A' e B' e portanto Φ é de facto uma involução hiperbólica.■ 2) Continuando a considerar que Ω( A) ≠ B , admitamos que existe uma projectividade Ψ que não é uma involução92 e verificando Ω o Ψ = Ψ o Ω e Ψ ( A) = B. Analisaremos algumas das propriedades que esta projectividade Ψ terá de ter (se existir) e, em seguida, vamos defini-la a partir dessas propriedades, provando depois que a solução proposta resolve efectivamente o problema. Seja C = Ψ −1 ( A) e C ' = Ω(C ) . Vejamos que Ψ (C ' ) = A' e que Ψ ( A' ) = B ' . Quanto à primeira igualdade, tem-se Ψ (C ' ) = Ψ (Ω(C )) = (Ψ o Ω )(C ) = (Ω o Ψ )(C ) = Ω(Ψ (C )) = Ω(Ψ (Ψ −1 ( A))) = Ω( A) = A' Quanto à segunda, tem-se Ψ ( A' ) = Ψ (Ω( A)) = (Ψ o Ω )( A) = (Ω o Ψ )( A) = Ω( Ψ ( A)) = Ω( B ) = B ' . Assim, obtemos a seguinte cadeia de projectividades93: 91 Estamos a usar, no fim de contas, o conhecido método do problema resolvido. E que portanto tem de ser elíptica; se fosse parabólica ou hiperbólica, seria uma involução, pela parte já provada do teorema. 93 Adaptando de forma óbvia a notação para perspectividades. 92 - 36 - Ψ AA' CC ' ∧ BB ' AA' ∧ A' AB' B ∧ AA' BB ' 94 segue-se que AA' , CB ' e BC ' são três pares duma involução95 e que Ω AA' CB ∧ A' AB' C ' ∧ AA' BC . Pelo segundo corolário do Teorema 13, vem que H ( AA' , BC ) e podemos Ψ caracterizar Ψ como a projectividade tal que AA' C ∧ BB' A , sendo C o conjugado harmónico de B relativamente ao par AA' . Para concluir, basta provar que a projectividade Ψ anteriormente definida comuta com Ω, o que vamos fazer comparando as imagens dos três pontos A, A' e C por meio de Ω o Ψ e Ψ o Ω . (Ψ o Ω)( A) = Ψ (Ω( A)) = Ψ ( A' ) = B' = Ω( B) = Ω(Ψ ( A)) = (Ω o Ψ )( A); (Ψ o Ω)( A' ) = Ψ (Ω( A' )) = Ψ ( A) = B = Ω( B' ) = Ω(Ψ ( A' )) = (Ω o Ψ )( A' ); (Ψ o Ω)(C ) = Ψ (Ω(C )) = Ψ (C ' ) = A' = Ω( A) = Ω(Ψ (C )) = (Ω o Ψ )(C ). 3) Finalmente, se Ω( A) = B , suponhamos que existe θ tal que Ω o θ = θ o Ω e que θ( A) = B . Como θ( B) = θ(Ω( A)) = (θ o Ω )( A) = (Ω o θ)( A) = Ω(θ( A)) = Ω( B) = A θ é uma involução; como A e B são permutados pelas duas projectividades θ e Ω,vem que (θ o Ω )( A) = A e (θ o Ω )( B) = B . Atendendo a estas igualdades, há duas hipóteses: a) θ o Ω = Id e então vem θ = Ω ; ou b) θ o Ω é a involução hiperbólica com pontos fixos A e B e portanto a involução θ é também hiperbólica, pelo Teorema 14. ■ 94 95 Atenda-se ao Teorema 2. Veja-se [Cox1], pág. 44. - 37 - 4. Colineações, correlações e polaridades Nesta secção vamos considerar os análogos bidimensionais de algumas das entidades geométricas que surgiram na secção anterior. Muito do estudo que vamos fazer decorre directamente do trabalho já desenvolvido para o caso unidimensional, o que facilita as construções e simplifica as demonstrações. Comecemos por ver os análogos das projectividades: as colineações e as correlações. O conceito de colineação é muito simples: trata-se de uma aplicação que preserva a incidência. Formalmente, temos: Definição 20: Uma colineação é uma bijecção do plano projectivo real que transforma pontos em pontos e rectas em rectas preservando a relação de incidência. Transforma pois pontos colineares em pontos colineares (e, portanto, rectas concorrentes em rectas concorrentes). Algumas propriedades imediatas das colineações: - uma colineação preserva a relação harmónica, porque transforma quadrângulos em quadrângulos; - uma colineação induz uma projectividade (no sentido da secção anterior) entre os pontos de pontuais correspondentes e entre feixes de rectas passando por pontos correspondentes (óbvio a partir da definição de projectividade como correspondência que preserva a relação harmónica e da propriedade anterior); - a composta de duas colineações é uma colineação e a inversa de uma colineação é ainda uma colineação; logo o conjunto de todas as colineações do plano, algebrizado com a composição de aplicações é um grupo. O seguinte resultado pode ser visto como um análogo bidimensional do Teorema 10. Teorema 17: Uma colineação que preserva os quatro lados de um quadrilátero (ou os quatro vértices de um quadrângulo) é a identidade. Demonstração: Se os quatro lados do quadrilátero são invariantes pela colineação, os seus seis vértices também o são. Segue-se que há três pontos em cada lado que são invariantes e, portanto (Teorema 10), todos os pontos em cada lado são também fixos. Logo, qualquer linha no plano incidindo com pontos de dois lados distintos é invariante e qualquer ponto é-o também. O resultado para quadrângulos segue-se por dualidade.■ Do mesmo modo, tem-se naturalmente um análogo do Teorema Fundamental da Geometria Projectiva: - 38 - Teorema 18: Uma colineação fica bem definida quando se conhece a imagem de um quadrilátero (ou quadrângulo) dado. Demonstração: Faz-se por redução ao caso unidimensional, essencialmente da mesma forma que no teorema anterior; o leitor interessado nos detalhes pode consultar [Cox2], páginas 60 e 61. ■ Uma correlação é também uma bijecção no plano projectivo, mas transforma pontos em rectas e vice-versa. Tem-se a seguinte Definição 21: Uma correlação é uma bijecção que transforma pontos em linhas e linhas em pontos preservando a relação de incidência, de acordo com o princípio da dualidade. Uma correlação transforma pois pontos colineares em rectas concorrentes, linhas concorrentes em pontos colineares, pontuais em feixes de rectas, feixes em pontuais, quadrângulos em quadriláteros, etc. Algumas propriedades imediatas das correlações: - a inversa de uma correlação é uma correlação; - a composta de duas correlações não é uma correlação, nas sim uma colineação;96 - uma correlação transforma um conjunto harmónico de pontos num conjunto harmónico de linhas. Tem-se ainda o seguinte teorema, cuja demonstração pode ver-se em [Cox1], páginas 51 e 52, e que é o análogo para correlações do Teorema 18: Teorema 19: Uma correlação fica bem determinada quando se conhece a imagem de um qualquer quadrângulo.97 Para o nosso estudo, o tipo de correlação mais importante são as chamadas polaridades que são, de certo modo, os equivalentes bidimensionais das involuções: Definição 22: Uma correlação Ψ diz-se uma polaridade se Ψ = Ψ −1 . 96 97 E portanto o conjunto de todas as correlações não é um grupo para a composição usual de aplicações. A imagem é obviamente um quadrilátero. - 39 - Assim, se numa dada polaridade Ψ, a imagem do ponto P é a linha recta p, terse-á em consequência Ψ ( p ) = P . Definição 23 a) Nas condições anteriores, P diz-se o pólo da recta p e, reciprocamente, a linha recta p diz-se linha polar (ou apenas polar) do ponto P.98 b) Pela definição de polaridade, se um ponto A incide com a recta b, a sua linha polar a passa pelo ponto B, pólo da linha recta b. A e B dizem-se pontos conjugados e as rectas a e b, rectas conjugadas. Repare-se que, sendo uma polaridade um tipo especial de correlação, decorre das definições anteriores que as rectas polares de todos os pontos de uma dada recta formam um feixe de centro no pólo dessa recta. Nada impede que um ponto incida com a sua polar, caso em que o ponto (respectivamente a linha) se diz auto-conjugado (respectivamente auto-conjugada). Poder-se-ia até pensar que, para certas polaridades, todas as linhas e pontos fossem auto-conjugados, mas um raciocínio simples mostra que tal não é possível: Teorema 20: A linha incidente com dois pontos auto-conjugados não pode ser autoconjugada.99 Demonstração: Seja a uma linha incidente com dois pontos auto-conjugados e vamos supor, com vista a um absurdo, que a é auto-conjugada. Com a incidem certamente o seu pólo A e um outro ponto auto-conjugado B. Seja b a linha polar de B; como A e B incidem com b (A por definição de polaridade e B porque é, por hipótese, auto-conjugado), segue-se que a e b coincidem e dois pontos distintos teriam a mesma linha polar, o que é absurdo, pois uma polaridade é uma aplicação injectiva. ■ Tem-se ainda a seguinte definição que será usada no estudo das cónicas: Definição 24: Uma polaridade diz-se hiperbólica se admitir pelo menos um ponto autoconjugado e elíptica caso contrário100. 98 Devida a J. D. Gergonne; trata-se de um conceito tão importante que alguns sistemas de geometria dinâmica, como o Cinderella, incluem como primitiva a construção da polar de um ponto (relativamente a uma cónica, assunto que abordaremos adiante). Repare-se que as noções de pólo e polar dependem de forma essencial da polaridade em causa. 99 Pode-se provar bastante mais: “Uma linha não pode incidir com mais de dois pontos autoconjugados”, mas a demonstração deste resultado é mais difícil e não a vamos fazer aqui; o leitor interessado pode consultar [Cox3], página 61. 100 Veremos mais adiante exemplos dos dois tipos de polaridades, após a introdução de coordenadas; o leitor interessado em exemplos considerando apenas o ponto de vista sintético pode consultar [Cox2], páginas 80 e 81. - 40 - Com vista à obtenção de expressões analíticas para polaridades101, necessitamos de introduzir o conceito de triângulo auto-polar. Começamos por formular e provar um resultado que reforça a analogia anteriormente referida entre involuções e polaridades. Teorema 21: Uma correlação que transforma cada vértice de um triângulo no lado oposto é uma polaridade. Demonstração: Sejam A, B e C os vértices do triângulo, a, b e c os lados opostos e Ψ uma correlação tal que Ψ ( A) = a, Ψ ( B ) = b e Ψ (C ) = c . Comecemos por ver qual o efeito de Ψ nos lados do triângulo. De Ψ ( a ) = Ψ ( BC ) = b ∩ c = A ; analogamente Ψ( B) = b e Ψ(C) = c , deduz-se que Ψ (b) = B e Ψ (c) = C e portanto, Ψ troca os vértices com os lados opostos. Seja agora P um ponto não incidente com nenhum dos lados do triângulo (e portanto, a sua imagem por meio de Ψ, a recta p, não passa por nenhum dos vértices), com vista a provar que Ψ ( p ) = P . Pelo Teorema 19, a correlação Ψ fica bem determinada pelo conhecimento do quadrângulo ABCP e da sua imagem, o quadrilátero abcp. Consideremos agora os seis pontos (ver a figura seguinte) Pa = AP ∩ a, Pb = BP ∩ b, Pc = CP ∩ c Ap = a ∩ p, B p = b ∩ p, C p = c ∩ p Cp Pb p A Bp c P Pc Pa B b a Ap C Figura 16 e seja D um ponto incidente com a. Pondo d = Ψ (D ) , segue-se que a recta d passa pelo ponto A e que a correlação Ψ induz na recta a uma projectividade entre os pontos D e d ∩ a . Esta projectividade, que verifica BCPa ∧CBA p , é uma involução em virtude do 101 Mais precisamente, para a obtenção da forma canónica das polaridades, a ver numa secção posterior. - 41 - Teorema 12 e transforma assim Ap em Pa . Portanto, se D = A p , segue-se que d = Ψ ( D ) = APa = AP . Do mesmo modo se prova que Ψ ( B p ) = BP e conclui-se que a correlação Ψ transforma a linha p = A p B p no ponto P e é portanto uma polaridade. ■ Verificamos assim que a polaridade fica bem definida pelo triângulo ABC, o ponto P e a sua polar p e chegamos à prometida definição: Definição 25: Um triângulo em que cada vértice é o pólo do lado oposto diz-se autopolar. Na linha do teorema anterior, é até possível construir a recta polar de um ponto qualquer, conhecendo apenas um triângulo auto-polar ABC, e a recta polar p de um único ponto P; não vamos apresentar aqui essa construção, que o leitor interessado pode ver em [Cox2], páginas 72 e 73. 102 5. Cónicas Embora o estudo das cónicas seja um tópico essencial em Geometria Projectiva, vamos apenas abordá-lo de forma muito resumida: o nosso interesse neste assunto deriva do facto de o interior de uma cónica fornecer um importante modelo para o estudo da geometria hiperbólica. Existem essencialmente dois pontos de vista no estudo das cónicas em Geometria Projectiva: o de Von Staudt e o de Steiner. Neste trabalho utilizaremos quase exclusivamente o primeiro. Antes de definir cónica e introduzir a terminologia associada, necessitamos de um lema sobre as involuções induzidas por uma polaridade. Lema 5: Seja ψ uma polaridade e c uma linha recta não auto-conjugada. A transformação induzida por ψ na recta c que a cada ponto associa o seu conjugado é uma involução; analogamente, se P for um ponto não auto-conjugado, a polaridade ψ induz uma involução das linhas conjugadas incidentes com o ponto P. Demonstração: Seja c uma linha de pólo no ponto C. As polares dos pontos incidentes com a recta c formam um feixe de centro no ponto C, pelo que, dado um ponto X incidente com a recta c, podemos associar-lhe um ponto Y, também incidente com c, pondo Y = c ∩ x , onde x é a linha polar de X; esta correspondência é uma projectividade (ver a próxima figura). Supondo então que a linha recta c não seja auto-conjugada, a projectividade referida transforma um ponto não auto-conjugado B num ponto A = b ∩ c , cujo pólo é a 102 Repare-se no entanto que uma polaridade admite uma infinidade de triângulos auto-polares: basta tomar para vértices A e B dois pontos conjugados (nenhum dos quais auto-conjugado) e então o vértice C será a intersecção das rectas polares de A e B. - 42 - recta BC. Do mesmo modo, a projectividade transforma B em A; pelo Teorema 12, trata-se de uma involução. A segunda parte do lema segue-se por dualidade.■ C b a y A X x c Y B A projectividade X ∧Y Figura 17 Definição 26: (Cónica segundo Von Staudt)103 a) Uma cónica é o conjunto dos pontos auto-conjugados numa polaridade hiperbólica. b) As linhas polares dos pontos de uma cónica dizem-se tangentes à cónica; o (único) ponto de intersecção da tangente com a cónica é o ponto de contacto. c) Uma linha que não seja tangente diz-se secante ou exterior consoante a involução nela induzida seja hiperbólica ou elíptica. d) Um ponto que não pertença a uma cónica diz-se exterior ou interior consoante a involução das linhas conjugadas que com ele incidem seja hiperbólica ou elíptica. e) O interior da cónica é o conjunto de todos os pontos interiores; analogamente se define exterior. Coloca-se naturalmente uma questão: quantos pontos há numa cónica? Na verdade, não é evidente a priori que não possam surgir casos sem interesse, como a cónica ficar reduzida a um único ponto, por a polaridade hiperbólica ter só um ponto auto-conjugado. O próximo teorema mostra que tal é impossível: uma cónica tem muitos pontos. Teorema 22: Uma cónica tem uma infinidade de pontos. Demonstração: Pelo Teorema 20, o único ponto auto-conjugado numa linha auto-conjugada é o seu pólo; por dualidade, a única linha auto-conjugada incidente com um ponto P autoconjugado é a sua polar p. Do Lema 5, segue-se que em qualquer linha incidente com P (excepto a sua polar p) está induzida uma involução de pontos conjugados, involução essa que é hiperbólica (porque tem um ponto fixo − o ponto P); pelo Teorema 13, existe na recta um segundo ponto fixo Q, distinto de P e que é auto-conjugado. Como existe 103 Repare-se na utilização do lema anterior em c) e d). - 43 - uma infinidade de rectas incidentes com qualquer ponto da cónica, segue-se o resultado.■ Das definições dadas, resulta que uma cónica é uma figura auto-dual, podendo surgir quer como o lugar geométrico de pontos auto-conjugados, quer como a envolvente104 das linhas auto-conjugadas. Uma tangente intersecta uma cónica C num só ponto, uma recta secante em dois pontos e uma recta exterior em nenhum (isto vem do facto de a involução em causa ser hiperbólica ou elíptica, respectivamente). Assim, dado um ponto qualquer da cónica, de todas as rectas com ele incidentes, apenas uma é tangente, as outras são secantes; dados dois pontos da cónica, a recta que eles determinam é secante. Por dualidade, conclui-se que um ponto exterior E é o pólo de uma recta secante e que um ponto interior I é o pólo de uma recta exterior i. De todos os pontos de uma tangente, apenas um (o ponto de contacto) está na cónica, os outros são exteriores; dadas duas tangentes p e q, o seu ponto de intersecção (que é o pólo da recta secante PQ, onde P e Q são os pólos de p e q, respectivamente) é exterior (veja-se a seguinte figura)105. P p I E i C e q Q Figura 18 De acordo com a definição dada, uma polaridade hiperbólica determina uma cónica; será que é possível, dada a cónica, reconstituir a polaridade? O seguinte teorema, cuja prova pode ser vista na página 75 de [Cox3], responde afirmativamente a esta questão. 104 Recordemos que, em Geometria Diferencial, a envolvente (ou envoltória) de uma família de curvas a um parâmetro Γ é uma curva γ tal que cada um dos seus pontos pertence a uma curva de Γ, e é, em cada ponto, tangente às curvas da família que por aí passem. 105 Para um estudo mais detalhado, consultar [Cox2], páginas 80 a 84. - 44 - Teorema 23: Dada uma cónica C : a) O triângulo diagonal de qualquer quadrângulo inscrito na cónica é auto-polar. b) Para construir a polar de um ponto C não pertencente à cónica, basta traçar duas secantes PQ e RS passando por C e a polar pedida incide com os dois pontos QR ∩ PS e RP ∩ QS . Para concluir esta secção, referiremos brevemente a noção de cónica segundo Steiner e a noção de projectividade sobre uma cónica. Definição 27: (Cónica segundo Steiner)106 Uma cónica é o lugar geométrico dos pontos de intersecção das linhas correspondentes de dois feixes de rectas relacionados por uma projectividade que não se reduza a uma perspectividade.107 (ver a figura seguinte; os pontos X, Y, W, V, U e T pertencem à cónica). 7777 6666 5555 TTTT 4444 UUUU 3333 2222 VVVV 1111 WWWW OOOO XXXX ' 2 ' 1 YYYY ' 3 ' 4 ' 5 ' 6 ' 7 Figura 19 Não vamos provar a equivalência entre as duas caracterizações das cónicas; o leitor interessado pode vê-la em [Cox2], páginas 87 a 90. Para concluir esta secção, referimos que muito do que foi feito com rectas pode ser feito também com cónicas; assim, os axiomas de separação são válidos para os pontos de uma cónica e é possível definir e classificar projectividades e involuções numa cónica de forma muito 106 Seria mais rigoroso usar a expressão “caracterização de uma cónica segundo Steiner”, uma vez que para cada termo só deve haver uma definição e preferimos usar a de Von Staudt; optámos por manter a expressão tradicional. 107 Nesta apresentação das cónicas é muito útil o seguinte resultado simples, cuja prova pode ser vista em [Cox3], páginas 35 e 36: Uma projectividade entre dois pontuais é uma perspectividade sse o seu ponto comum for um ponto fixo. - 45 - semelhante ao que foi feito para as rectas. Não faremos aqui esse estudo, sem dúvida muito interessante, mas que não está relacionado directamente com o objectivo deste trabalho (e que, aliás, é mais fácil de fazer quando se adopta o ponto de vista de Steiner); a quem quiser empreender este estudo sugerimos a consulta do capítulo 7 de [Cox2]. Finalmente, umas palavras sobre a (im)possibilidade de classificação das cónicas em Geometria Projectiva: pode parecer estranho não termos introduzido já as designações clássicas elipse, hipérbole e parábola no estudo das cónicas. A razão é que uma tal tentativa de classificação não faz sentido em Geometria Projectiva: duas cónicas quaisquer estão sempre ligadas por uma colineação. Mais precisamente, tem-se o seguinte resultado, cuja prova pode ver-se em [Cox3], paginas 79 e 144: Teorema 24: Duas cónicas quaisquer estão relacionadas por uma colineação e por uma correlação: a três quaisquer pontos de uma delas podem ser feitos corresponder três pontos ou tangentes da outra. A classificação usual das cónicas não pertence à Geometria Projectiva mas sim à Geometria Afim. 6. Geometria projectiva analítica: introdução de coordenadas 6.1 Operações com pontos A introdução de coordenadas no plano projectivo é um ponto essencial para o nosso estudo, já que permite utilizar os métodos normais da Álgebra na resolução de questões muito variadas de uma forma que é, em geral, bastante mais eficaz que o método sintético: por exemplo, seria extremamente difícil desenvolver o estudo da Trigonometria em geometria elíptica ou hiperbólica sem recorrer a coordenadas. Começaremos por ver como se introduz um sistema de coordenadas numa recta projectiva e, em seguida, passaremos para o plano. O método que vamos usar, criado por Von Staudt e desenvolvido por Hessenberg passa por definir na recta projectiva privada de um ponto (a chamada recta aberta) duas operações que lhe dão a estrutura de corpo ordenado108 e completo, logo isomorfo a R. Consideremos então uma recta projectiva r e sejam P0 , P1 e P∞ três pontos distintos com ela incidentes. Vamos definir duas operações (adição e multiplicação de pontos) que vão dar a r \ {P∞ } 109 uma estrutura de corpo. Definição 28: (Adição e subtracção110 de pontos na recta aberta) Dados dois pontos X e Y incidentes com a recta r (e distintos de P∞ ), o ponto X + Y é o ponto imagem de P0 na involução111 que permuta X e Y e que tem P∞ como ponto 108 A ordenação não vem das operações, como é óbvio; é consequência dos axiomas de separação, conforme se viu anteriormente. 109 Estamos a identificar uma recta com o seu pontual, como é costume. 110 Em bom rigor, bastava definir a adição. - 46 - fixo112; X − Y é o ponto correspondente a Y na involução113 que permuta X com P0 e tem P∞ como ponto fixo. A figura seguinte ilustra a obtenção do ponto X + Y a partir dos pontos X e Y: l0 é uma linha qualquer incidente com P0 e l∞ e l∞' duas linhas quaisquer incidentes com P∞ 114. Figura 20 Da definição dada, segue-se imediatamente que P0 é o elemento neutro da adição de pontos e que esta é comutativa. Dado um ponto qualquer X, o seu simétrico − X é o conjugado harmónico de X relativamente a P0 e a P∞ e é possível provar que a adição é associativa115; conclui-se que na recta aberta fica definida uma estrutura de grupo abeliano. É conveniente ampliar um pouco a definição da operação de adição, de forma a abranger tanto quanto possível o ponto P∞ ; se X é um ponto distinto de P∞ , põe-se por convenção X + P∞ = P∞ . Passemos às restantes operações. 111 Obviamente hiperbólica. Involução usualmente representada por ( XY )( P∞ P∞ ) . 113 Involução usualmente representada por ( XP0 )( P∞ P∞ ) . 114 A justificação desta construção (que é, na verdade, um caso particular da obtenção da imagem de um ponto por uma involução da qual se conhecem dois pares), bem como o facto de o resultado ser independente das linhas escolhidas pode ser vista em [Cox2], páginas 55 a 57. 115 Não faremos, de um modo geral, a demonstração das propriedades das operações, remetendo para [Cox2], onde até é abordado o caso mais geral de operações com os pontos de uma cónica. 112 - 47 - Definição 29: (Multiplicação e divisão116 de pontos na recta aberta) Dados dois pontos X e Y incidentes com a recta r (e distintos de P0 e P∞ ), o ponto X ⋅ Y é o ponto imagem de P1 na involução que permuta X com Y e P0 com P∞ 117; por convenção, X ⋅ P0 = P0 ; o ponto X ÷ Y é o ponto correspondente a Y na involução que permuta X com P1 e P0 com P∞ 118. Tal como para a adição, vamos ampliar um pouco a definição de multiplicação pondo por convenção X ⋅ P∞ = P∞ , se X ≠ P0 .119 A figura seguinte ilustra a obtenção do ponto X ⋅ Y a partir dos pontos X e Y; l0 é uma linha qualquer incidente com P0 , e l1 uma linha qualquer incidente com P1 e l∞ uma linha qualquer incidente com P∞ 120. Figura 21 Prova-se121 que a multiplicação anteriormente definida é comutativa, associativa, tem elemento neutro P1 e todos os elementos distintos de P0 têm inverso (a título de 116 Pode fazer-se aqui uma observação análoga à da nota 110. Involução usualmente representada por ( XY )( P0 P∞ ) . 118 Involução usualmente representada por ( XP1 )( P0 P∞ ) . 119 Estas convenções correspondem às regras operatórias dos limites infinitos da Análise clássica; os casos em que não definimos as operações, às “formas indeterminadas”. 120 Tal como no caso da adição, sugerimos ao leitor interessado na justificação desta construção (em particular no facto de o resultado ser independente das linhas escolhidas), que consulte [Cox2], páginas 55 a 57. 121 Tal como anteriormente, remetemos para [Cox2] o leitor interessado na demonstração das propriedades não triviais. 117 - 48 - curiosidade, o inverso de X é o conjugado harmónico de X relativamente ao par de pontos P1 e − P1 ); além disso, é distributiva em relação à adição. Podemos resumir estas considerações no seguinte teorema: Teorema 25: Se numa recta do plano projectivo escolhermos três pontos distintos P0 , P1 e P∞ , é possível introduzir na recta aberta r \ {P∞ } uma estrutura de corpo por meio das operações anteriormente definidas. Procuremos caracterizar um pouco melhor esse corpo. Definição 30: Pomos: a) P2 = P1 + P1 e, em geral, para n ∈ N, n ≥ 2 , Pn = Pn−1 + P1 ; b) P−n = P0 − Pn , para n ∈ N, n ≥ 1 ; c) se x = n / d é um número racional, Px = Pn / d = Pn ÷ Pd Das propriedades anteriores resultam então as fórmulas Px + y = Px + Py ; Px − y = Px − Py ; Px⋅ y = Px ⋅ Py ; Px: y = Px : Py . O conjunto dos pontos obtido a partir de P0 e P1 pelas “operações racionais” descritas anteriormente, ampliado com o ponto P∞ costuma ser chamado rede racional da recta.122 A questão da relação da ordenação dos pontos da rede racional com a ordem dos números racionais correspondentes é um ponto algo delicado e técnico, pelo que nos limitamos a enunciar o seguinte teorema, cuja justificação pode ser vista em [Cox1], página 73: Teorema 26 : A ordem dos pontos Px numa rede racional coincide com a ordem dos números racionais x. Finalmente, tal como na construção do corpo dos números reais a partir do corpo dos números racionais pelo processo dos cortes de Dedekind, a passagem da rede de racionalidade para a totalidade da recta projectivas é feita com o auxílio do Axioma de Continuidade. 122 Repare-se na semelhança do processo descrito com a conhecida proposição de álgebra: Todo o corpo infinito contém um subcorpo isomorfo ao corpo dos números racionais. - 49 - Seja y um número real positivo; dividimos os pontos do segmento “positivo” em duas classes: ]P0 P∞ [ \ P−1 a) os pontos que estão entre P0 e qualquer ponto da forma Px , com x número racional maior que y; b) os restantes pontos do segmento. Pelo Axioma de Continuidade, esta partição do segmento determina de forma unívoca um ponto que vai ser, por definição, Py . O caso em que y é um número real negativo é tratado de forma análoga, considerando-se o segmento ]P0 P∞ [ \ P1 . Reciprocamente, um ponto qualquer P da recta aberta divide os pontos da forma Px com x número racional em duas classes, “transferindo-se” essa partição para o conjunto dos números racionais; por aplicação da propriedade de Dedekind do conjunto dos números reais, segue-se que ao ponto P corresponde um único número real x, denominado abcissa do ponto. De tudo isto, concluímos o seguinte resultado: Teorema 27: Seja r uma recta do plano projectivo, na qual seleccionamos três pontos distintos P0 , P1 e P∞ ; então é possível definir na recta aberta r \ {P∞ } uma estrutura de corpo ordenado isomorfo ao corpo dos números reais; para as operações envolvendo o ponto P∞ são válidos resultados análogos às convenções dos limites infinitos da Análise.123 6.2 Coordenadas na recta projectiva; expressões analítica das projectividades A introdução das coordenadas124 nas rectas projectivas vai permitir obter expressões analíticas para as projectividades unidimensionais, facilitando enormemente a obtenção de muitos resultados importantes, pois reduz muitas demonstrações a cálculos simples com polinómios do segundo grau ou funções homográficas. Comecemos por obter a prometida expressão analítica para as projectividades numa linha. Para tanto, vamos estabelecer fórmulas para três tipos especiais de projectividade e, em seguida, mostrar que qualquer projectividade se pode escrever por composição de projectividades dos tipos já estudados. 123 Os aspectos algébricos das construções anteriores adaptam-se facilmente ao estudo de rectas projectivas sobre outros corpos, como o corpo dos números complexos ou corpos finitos (vejam-se [VY1] ou [Mes]). É naturalmente necessário alterar os axiomas de forma mais ou menos profunda; por exemplo, uma hipotética relação de ordem numa recta projectiva sobre um corpo finito “choca” com a inexistência de uma ordenação razoável num tal corpo (para não falar na existência de um número infinito de pontos numa recta projectiva, algo que decorre dos nossos axiomas). Quanto à recta projectiva complexa, põe-se naturalmente o problema da ordenação, mas ele é bastante mais subtil do que poderia parecer à primeira vista; sobre este assunto, aconselhamos a consulta do Apêndice de [Cox2]. 124 É também possível introduzir coordenadas numa cónica, na linha do referido na nota 115; para ver os detalhes do processo, pode-se consultar a referência aí citada ou, para um estudo de carácter mais algébrico e com generalização às chamadas curvas unicursais, a referência [Sam], páginas 84 a 102. - 50 - Teorema 28: Seja Pa um ponto de abcissa a ∈ R numa recta projectiva. Então as transformações elementares 1) x' = a + x; 2) x' = 1 / x; 3) x' = ax (se a ≠ 0) definem projectividades nessa recta e qualquer projectividade na recta em causa pode ser obtida por composição de projectividades destes três tipos125. Demonstração: Seja Px um ponto variável da recta, de abcissa x; por definição de subtracção e atendendo a que Pa − x = Pa − Px , tem-se a seguinte relação P∞ Pa P0 Px ∧ P∞ P0 Pa Pa − x , donde resulta, trocando x por − x e compondo com a involução (P0 P0 )(P∞ P∞ ) que P∞ P− a P0 Px ∧ P∞ P0 Pa Pa + x , pelo que a transformação x' = a + x define uma projectividade entre os pontos Px e Px ' . Para a obtenção das outras relações, comecemos por reparar que são válidas as fórmulas P∞ P0 P1Y ∧ P0 P∞ ( X ⋅ Y )X e P∞ P0 P1Y ∧ P∞ P0 X ( X ⋅ Y ) ; a primeira é consequência imediata da definição de multiplicação apresentada e a segunda resulta da primeira por aplicação do Teorema 2). Destas duas fórmulas vem que P∞ P0 P1 Px ∧ P0 P∞ P1 P1 / x e P∞ P0 P1 Px ∧ P∞ P0 Pa Pax , donde se segue que as transformações x' = 1 / x e x' = ax (se a ≠ 0) também representam projectividades. Por composição de projectividades elementares do tipos 1) e 3), verificamos que x' = ax + b é uma projectividade; por composição de projectividades elementares dos a b − ad / c ax + b três tipos, resulta que x' = + = é ainda uma projectividade, desde que c cx + d cx + d c ≠ 0 e b − ad / c ≠ 0 . Finalmente, se repararmos que fazendo c = 0 e d = 1 na última igualdade obtemos uma transformação do tipo x' = ax + b , concluímos que x' = ax + b , com ad − bc ≠ 0 cx + d 126 125 Este teorema, em particular a fórmula de transformação que nele surge, pode ser generalizado a projectividades entre duas rectas distintas; não o vamos fazer neste trabalho porque tem pouco interesse para os fins que temos em vista. O leitor interessado pode ver os detalhes em [VY1] ou [Ayr1]. 126 Transformação bilinear, homográfica ou de Möbius. - 51 - define uma projectividade. Para concluir a prova do teorema, basta mostrar que qualquer projectividade pode ser escrita nesta forma. Ora sabe-se que dados dois conjuntos de três pontos distintos x1 , x2 e x3 e x'1 , x' 2 e x'3 (no sentido que xi ≠ x j e x'i ≠ x' j para i ≠ j , mas sendo admissíveis igualdades como x1 = x '2 ) existe uma única transformação bilinear T tal que T ( xi ) = x 'i (i = 1, 2, 3) 127. O resultado é então imediato se atendermos ao Teorema 11. ■ Um ponto algo delicado no tratamento analítico das projectividades é o estudo dos casos envolvendo o ponto P∞ , ou, o que leva ao mesmo, as operações com abcissas iguais a ∞ . Se tivermos em conta as convenções adoptadas anteriormente, e o facto de se ter b a+ ax + b x, = d cx + d c+ x verificamos que se deve escrever (na notação do Teorema anterior) T (∞ ) = a / c e T ( − d / c ) = ∞ . A necessidade de entrar em conta com este problema implica em diversas demonstrações a consideração de casos excepcionais, frequentemente de natureza trivial. Em geral, ignoraremos estes casos, já que este problema pode ser superado de forma eficaz por meio da introdução das coordenadas homogéneas, que veremos mais adiante. A título de exemplo das situações excepcionais que surgem devido ao ponto P∞ , apresentamos o seguinte resultado: ax + b admite ∞ como ponto fixo se e só se cx + d a ≠ 0 e c = 0 (dito de outra maneira, Ψ pode ser escrita na forma Ψ ( x) = αx + β, α ≠ 0 , a homografia degenera numa transformação afim). Teorema 29: Uma projectividade Ψ ( x) = Demonstração: É óbvio que se Ψ ( x) = αx + β, α ≠ 0 , Ψ (∞) = ∞ e ∞ é ponto fixo. Reciprocamente, suponhamos que ∞ é ponto fixo, com vista a provar que a ≠ 0 e c = 0 . b ; cx + d como neste caso se tem Ψ (∞) = 0 , ∞ não seria ponto fixo. No que se segue podemos Se a = 0 , tem de ser c ≠ 0 (caso contrário, viria Ψ ≡ b / d ) e então Ψ ( x) = 127 Veja-se [Mars], página 357. - 52 - pois já supor que a ≠ 0 . Se c ≠ 0 , Ψ (−c / d ) = ∞ , o que contradiz o facto de Ψ ser uma bijecção, pois vem Ψ (−c / d ) = ∞ = Ψ (∞) . ■ αx + β obtida no teorema anterior pode ser escrita na γx + δ forma axx'+bx + cx'+ d = 0 , que é particularmente útil na pesquisa dos pontos fixos das projectividades. Com efeito, se fizermos x = x' , verificamos que a determinação das abcissas dos pontos fixos se reduz à resolução da equação do segundo grau ax 2 + (b + c )x + d = 0 128. Obtemos assim o seguinte resultado importante: A relação fundamental x' = Teorema 30: Uma projectividade axx'+bx + cx'+ d = 0 é elíptica, parabólica ou (b − c )2 seja maior, igual ou menor que zero. hiperbólica consoante ad − bc − 4 Demonstração: Basta atender às definições e ao facto de o binómio discriminante da equação (b − c )2 2 − (ad − bc ) . ■ ax 2 + (b + c )x + d = 0 ser (b + c ) − 4ad = 4 4 Apliquemos agora a teoria desenvolvida ao estudo das involuções. Teorema 31: A relação x' = ax + b , com ad − bc ≠ 0 define uma involução se e só se cx + d a+d =0. Demonstração: Suponhamos que a relação dada define uma involução Ψ, que transforma o ponto P, de abcissa x no ponto P' , de abcissa x' , sendo P distinto de P' . Então Ψ −1 = Ψ ax'+b transforma x' em x e portanto x = . cx'+ d 128 Se γ ≠ 0 (e logo também a ≠ 0 ), situação que suporemos sempre, salvo aviso em contrário. No caso γ = 0 , a relação reduz-se a x ' = αx + β, com α ≠ 0 e o estudo envolve apenas a análise de uma equação do primeiro grau. - 53 - Desembaraçando de denominadores as duas igualdades, vem cxx'+ dx'−ax − b = 0 cxx'− ax'+ dx − b = 0 e, subtraindo ordenadamente, (a + d )( x'− x) = 0 . Como x ≠ x' , tem de ser a + d = 0 . Reciprocamente, suponhamos que a + d = 0 . Neste caso, Ψ ( x) = ax + b e, efectuando cx − a os cálculos, é imediato que Ψ o Ψ = Id . ■ Para ilustrar o enorme poder dos métodos analíticos, vamos demonstrar novamente o Corolário 1 do Teorema 13: Não há involuções parabólicas. Demonstração ax + b Se x' = , com ad − bc ≠ 0 fosse uma involução parabólica, a abcissa do seu único cx + d ponto fixo x seria raiz dupla da equação quadrática cx 2 + (d − a )x − b = 0 que, atendendo a ser a + d = 0 , se converte em cx 2 − 2ax − b = 0 . Como x é raiz dupla, o binómio discriminante é nulo, concluindo-se que a 2 + bc = 0 . Esta igualdade contradiz o facto de se ter ad − bc ≠ 0 , já que, para uma involução esta última relação se converte em a 2 + bc ≠ 0 (porque d = −a ). ■ O seguinte resultado estabelece a existência de uma forma canónica para as involuções. Teorema 32: Uma involução pode ser escrita na forma xx'±1 = 0 , correspondendo o sinal “+” ao caso elíptico e o sinal “ − ” ao caso hiperbólico129. Demonstração: Qualquer involução pode ser escrita na forma xx'+d = 0 , para um certo número real não nulo d, se atribuirmos os símbolos P0 e P∞ a um dos seus pares. Seja c um número real não nulo. Se passarmos a designar por Px o ponto Pcx , a equação da involução transforma-se em c 2 xx'+d = 0 ; basta então tomar c = d para se obter o resultado, já que a afirmação sobre os sinais é óbvia. ■ Concluímos esta secção com um resultado que é a “versão analítica” do corolário do Teorema 12 e que será útil no estudo da geometria elíptica. 129 O leitor interessado em aprofundar o estudo das formas canónicas pode consultar [Del], páginas 54 a 60. - 54 - Teorema 33: Dados dois números distintos s e t, a involução que tem como pontos 1 duplos Ps e Pt é dada por xx'− ( s + t )( x + x' ) + st = 0 ; a involução que tem Ps e P∞ 2 como pontos duplos pode ser dada por x + x' = 2 s. Demonstração: 1 Para obter o primeiro resultado, faça-se x = x' na relação xx'− ( s + t )( x + x' ) + st = 0 ; 2 após simplificações, resulta que (x − s )(x − t ) = 0 e segue-se a conclusão. Quanto à ax + b segunda afirmação, procuremos a involução pedida na forma x' = ; como cx + d pretendemos que P∞ seja ponto duplo, segue-se do Teorema 29, que tem de ser c = 0 . Por outro lado, para se ter uma involução tem de ser a = − d (Teorema 31). Concluímos b b assim que x' = − x + ; se fizermos = 2 s para que Ps seja ponto duplo, vem o d d resultado. ■ 6.3 Coordenadas homogéneas na recta projectiva; razão cruzada Para além dos problemas anteriormente referidos causados pelo ponto P∞ , a atribuição de um carácter excepcional a este ponto (necessária, dado o tipo de coordenadas que estamos a usar) está, de certa maneira, em contradição com uma ideia fundamental da Geometria Projectiva, a saber a “equivalência” essencial de todos os pontos de uma recta.130 Vamos ver que tudo isto pode ser ultrapassado pela introdução de um novo tipo de coordenadas, as coordenadas homogéneas.131 A ideia é simples: dada uma abcissa x, substituímo-la por um par de números reais (x0 , x1 ) , escolhidos de forma que x = x1 / x0 ; assim, se x0 ≠ 0 , o par (x0 , x1 ) representa o ponto Px1 / x0 e o ponto (0, 1) representa P∞ , que perde assim o carácter excepcional. O preço a pagar por esta simplificação é que um ponto não é representado por um único par (x0 , x1 ) , mas por toda uma família de pares (ρx0 , ρx1 ) , com ρ ∈ R \ {0} ; veremos que esta “ambiguidade” não traz inconvenientes de maior. Antes de passarmos ao estudo das coordenadas no plano projectivo, introduzimos uma noção fundamental em Geometria Projectiva, a de razão cruzada132. 130 No caso da geometria bidimensional ou tridimensional, a “contradição” é ainda mais aguda, pois somos levados à individualização de uma “linha no infinito” (ou um “plano no infinito”) com características especiais. 131 As coordenadas até aqui usadas são conhecidas como “não homogéneas”, o que dá uma ideia da importância em Geometria Projectiva do novo tipo de coordenadas. - 55 - Por agora, vai aparecer apenas como um invariante das transformações projectivas, mas, em capítulos posteriores, será usado na definição de distância em Geometria não euclidiana. Mais concretamente, a ideia é tentar encontrar um invariante (para as transformações projectivas), de carácter numérico (em sentido lato, admite-se que possa ser ∞) de um conjunto de pontos de uma recta projectiva133; é óbvio que com ternos de pontos, não existe um tal invariante, já que o Teorema Fundamental da Geometria Projectiva (Teorema 11) garante que dois quaisquer ternos de pontos são equivalentes, no sentido de existir uma projectividade que transforma o primeiro no segundo. A situação é completamente diferente para quaternos de pontos, como vamos ver. Definição 31 Sejam Px , Py , Pz e Pt quatro pontos colineares. A sua razão cruzada {Px Py , Pz Pt } é o elemento de R ∪ {∞} dado por qualquer uma das fórmulas equivalentes {P P , P P } = (x − z )( y − t ) x y z t (x − t )( y − z ) {P P , P P } = (x z − x0 z1 )( y1t 0 − y0t1 ) . (x1t 0 − x0t1 )( y1 z0 − y0 z1 ) 1 0 x y z t (as duas fórmulas são claramente equivalentes, já que se passa da primeira para a segunda mudando de coordenadas não homogéneas para coordenadas homogéneas). Repare-se que a segunda fórmula pode ser escrita na forma x1 {Px Py , Pz Pt } = xz1 1 t1 x0 z0 x0 t0 y1 t1 y ⋅ 1 z1 ⋅ y0 t0 , y0 z0 que facilita a memorização. No Teorema seguinte listamos algumas propriedades da razão cruzada. Teorema 34 (Propriedades da razão cruzada) a) A razão cruzada é invariante por projectividade. 132 Preferimos esta designação, tradução directa do inglês “cross ratio”, às designações mais antigas razão dupla ou razão anarmónica. 133 É possível definir a razão cruzada de quatro pontos numa cónica recorrendo ao chamado Teorema de Chasles, que se pode ver em [Shu]; utiliza-se por vezes a razão cruzada de quatro linhas concorrentes num ponto (ver, por exemplo, [Efi], página 319) e teremos ainda ocasião de considerar a chamada razão cruzada mista, envolvendo um par de pontos e um par de linhas. - 56 - b) {Pa Pb , Pc Pd } = {Pb Pa , Pd Pc } = {Pc Pd , Pa Pb } = {Pd Pc , Pb Pa }. c) {Pa Pb , Pa Pd } = {Pb Pa , Pd Pa } = 0; {Pa Pa , Pc Pd } = {Pc Pd , Pa Pa } = 1; {Pa Pb , Pc Pa } = {Pb Pa , Pa Pc } = ∞. d) {Pa Pb , Pd Pc } = {Pa Pb , Pc Pd }; {Pa Pc , Pb Pd } = 1 − {Pa Pb , Pc Pd }. −1 e) {Px Py , P0 P∞ } = x / y. f) H ( AB, CD ) ⇔ {AB, CD} = −1 . g) {Py Pz , P0 P∞ }× {Pz Px , P0 P∞ }× {Px Py , P0 P∞ } = 1 . h) Se A, B, C, I e X são cinco pontos colineares ou situados sobre a mesma cónica134, então {BC , IX }× {CA, IX }× {AB, IX } = 1 . Demonstração: a) Decorre imediatamente das fórmulas que definem a razão cruzada que esta é invariante para qualquer uma das três transformações elementares do Teorema 28; assim, decorre do mesmo Teorema, que é invariante para qualquer projectividade. b), c) e d) As fórmulas apresentadas resultam de manipulações algébricas (mais ou menos imediatas, mas algo tediosas…) com as fórmulas que definem a razão cruzada, pelo que, e a título de exemplo, vamos apenas provar que {Pa Pb , Pc Pd } = {Pb Pa , Pd Pc } . Para tanto, utilizaremos coordenadas homogéneas (as mais indicadas em todas as questões que possam envolver o ponto ∞). Consideremos as coordenadas homogéneas atribuídas como se segue: Ponto Pa Pb Pc Pd Coordenadas homogéneas (a0 , a1 ) (b0 , b1 ) (c0 , c1 ) (d 0 , d1 ) Então, por definição, 134 Acerca da razão cruzada para pontos sobre uma cónica, vejam-se a nota anterior e [Cox2], páginas 181 e 182. - 57 - a1 a0 b1 b0 ⋅ c1 c0 d1 d 0 {Pa Pb , Pc Pd } = e {Pb Pa , Pd Pc } = a1 a0 b1 b0 ⋅ d1 d 0 c1 c0 b1 b0 a1 a0 ⋅ d1 d 0 c1 c0 . b1 b0 a1 a0 ⋅ c1 c0 d1 d 0 O resultado é imediato, por comparação das duas expressões. e) Considerando as coordenadas homogéneas atribuídas como se segue, Ponto Px Py P0 P∞ Coordenadas homogéneas (x0 , x1 ) ( y0 , y1 ) (1, 0) (0, 1) vem: x1 {Px Py , P0 P∞ } = x0 1 1 x0 1 x0 0 y1 1 y ⋅ 1 0 ⋅ y0 0 xy x /x = 1 0 = 1 0 = x / y , como queríamos. y0 x0 y1 y1 / y0 1 f) Atendendo à definição de simétrico na adição de pontos, D = Pd é o conjugado harmónico de C = Pc em relação a P0 e P∞ , se e só se D = −C , ou seja, c = −d . Atribuamos a A o símbolo P0 e a B o símbolo P∞ , vem, pela alínea anterior, que H ( AB, CD) ⇔ H( P0 P∞ , Pc Pd ) ⇔ c = −d ⇔ {P0 P∞ , Pc Pd } = c / d = −d / d = −1 ⇔ ⇔ {AB, CD} = −1. g) É consequência imediata de e). h) É consequência imediata de g). ■ 6.4 Coordenadas homogéneas no plano projectivo Há várias maneiras de introduzir coordenadas no plano projectivo. Uma delas começa pela introdução de coordenadas não homogéneas no plano privado de uma recta (dita recta no infinito), à maneira da Geometria afim, passando-se depois às - 58 - coordenadas homogéneas em todo o plano, por meio de um processo de extensão algo semelhante ao que fizemos aquando da passagem das coordenadas não homogéneas para as coordenadas homogéneas na recta projectiva (veja-se por exemplo [VY1]). Não vamos adoptar este processo, preferindo usar uma construção alternativa que, embora menos elementar, tem a vantagem de introduzir directamente as coordenadas homogéneas. Sabe-se que, dados cinco pontos distintos no plano projectivo (não havendo três colineares), existe uma única cónica que passa por eles135. Consideremos um sexto ponto P1 na cónica e designemos por P0 e P∞ dois dos cinco pontos originais; então os três restantes pontos têm abcissas bem definidas, digamos x1 , x2 , x3 (trata-se de uma extensão às cónicas do processo de introdução das coordenadas na recta projectiva, de acordo com o que foi dito na nota 124); como se referiu anteriormente (no estudo por via analítica das projectividades), a escolha de um ponto diferente para P1 traduz-se na multiplicação dos números x1 , x2 , x3 por um mesmo factor ρ. Passemos então à definição de coordenadas homogéneas. Definição 32: Os números x1 , x2 , x3 136anteriormente referidos são as coordenadas homogéneas do ponto P∞ relativamente ao triângulo de referência Px1 Px2 Px3 e ao ponto [ ] unitário P0 137; estas coordenadas estão definidas a menos de um factor não nulo, como já foi dito138. É óbvio que a definição apresentada é difícil de aplicar na prática: por exemplo, cada vez que pretendêssemos achar as coordenadas de um novo ponto, teríamos de considerar uma nova cónica! Vamos ver como se pode ultrapassar esta dificuldade. Dados uma cónica, um ponto que lhe pertence e uma recta fixa, se projectarmos os pontos da cónica a partir do ponto dado sobre essa recta, obtemos obviamente novos pontos sobre a referida recta. Consideremos as aplicações: • projecção dos pontos P0 , P∞ , Px1 , Px2 e Px3 , sobre a recta Px1 Px3 a partir do ponto Px2 ; • projecção dos pontos P0 , P∞ , Px1 , Px2 e Px3 , sobre a recta Px2 Px3 a partir do ponto Px1 , cujo resultado está ilustrado na próxima figura, onde identificámos os pontos com as suas abcissas, como é usual. 135 É o resultado de Braikenridge e MacLaurin, referido na nota 50. De acordo com a definição, as coordenadas são três números não nulos distintos; veremos que é possível remover quase totalmente esta restrição, ficando apenas de fora o ponto (0, 0, 0). 137 Veremos posteriormente o porquê desta designação. 138 Identificaremos frequentemente o ponto P∞ com o terno (x1 , x2 , x3 ) , como é usual em Geometria 136 Analítica. - 59 - Figura 22 Por aplicação das homografias x x 1 1 1 1 Tx1 x3 ( x) = − 1 − 1 = − − (ao lado Px1 Px3 ) e x1 x3 x1 x x3 x 1 1 1 1 x x Tx2 x3 ( x) = − 1 − 1 = − − (ao lado Px2 Px3 ), x2 x3 x2 x x3 x obtemos o resultado seguinte: ∞ x3 / x 2 x3 / x1 u1 P∞ 1 u2 1 P0 0 0 Figura 23 O próximo passo para o estudo da Geometria Analítica é a obtenção de equações para as rectas; procederemos simultaneamente à extensão das coordenadas referida na nota 136. Para tanto, consideremos uma linha recta incidente com P∞ e cortando os lados Px1 Px3 e Px2 Px3 nos pontos de abcissa (nas respectivas rectas projectivas) u1 e u 2 . P∞ x3 x ∧ ∞ 3 u 2 0 segue-se que os pontos de abcissa u1 e x1 x2 u 2 estão relacionados entre si por uma transformação do tipo T ( x) = αx + β , para certos Atendendo à projectividade ∞ 0 u1 - 60 - valores reais de α e β (veja-se o Teorema 28). Tendo em conta que T (0) = x3 e x2 x x x T 3 = 0, resulta que T ( x ) = − 1 x + 3 . Como T (u1 ) = u 2 , concluímos, após x2 x2 x1 simplificações elementares, que x1u1 + x2u 2 − x3 = 0 . Assim, uma linha passando por P∞ fica bem determinada se fixarmos os números u1 e u 2 . Suponhamos agora que o ponto P∞ variava sobre uma linha r; naturalmente variariam também os números x1 , x2 , x3 mas, atendendo à construção feita, continuaria a manter-se a relação x1u1 + x2u 2 − x3 = 0 , que pode pois ser considerada como uma equação da linha r, uma condição para que um ponto (x1 , x2 , x3 ) incida com a recta r. O ponto de intersecção de duas rectas pode ser obtido resolvendo o sistema formado pelas suas equações, o que nos vai permitir alargar a definição de coordenadas projectivas a pontos nos lados do triângulo de referência ou sobre as linhas que unem os vértices ao ponto unitário P0 ; por exemplo, o ponto marcado u 2 na Figura 23 é onde a linha de equação x1u1 + x2 u 2 − x3 = 0 intersecta outra linha do mesmo tipo com valor diferente de u1 , logo tem as coordenadas (0, 1, u 2 ) ; em particular, o ponto marcado com “1” nesse lado é (0,1,1) . De tudo isto resulta que os pontos no lado Px2 Px3 podem ser caracterizados por x1 = 0 ; um raciocínio análogo mostra que os outros dois lados do triângulo de referência, Px1 Px3 e Px1 Px2 são definidos por x2 = 0 e x3 = 0 , respectivamente. Como os vértices do triângulo de referência são pontos de encontro de linhas deste tipo, as suas coordenadas homogéneas são (1, 0, 0), (0,1, 0 ) e (0, 0,1) . Finalmente, vejamos como obter equações das linhas unindo o ponto unitário a um dos vértices. Se fizermos u1 = 0 na relação x1u1 + x2u 2 − x3 = 0 , vem x2 u 2 − x3 = 0 , que é uma equação da recta unindo (1, 0, 0) ao ponto (0,1, u 2 ) e que é válida para todos os possíveis valores de u 2 , excepto, eventualmente, u 2 = 1 . Para remover esta “singularidade”, afirmamos, por definição, que a relação também é válida neste caso; assim, as rectas unindo o ponto unitário aos três vértices do triângulo de referência são x1 = x2 , x2 = x3 e x1 = x3 , o que implica imediatamente que o ponto unitário tem coordenadas (1, 1, 1) 139. Esta observação termina o processo de atribuição de coordenadas a cada ponto do plano projectivo. Reciprocamente, é possível marcar o ponto correspondente a qualquer terno de números reais não todos nulos ( x1 , x2 , x3 ) . Com efeito: • se duas coordenadas são zero, o ponto é um dos vértices do triângulo de referência; • se apenas uma é nula, o ponto está num dos lados (por exemplo, o ponto (0, x2 , x3 ) está sobre o lado unindo (0, 1, 0) e (0, 0, 1), tendo abcissa x3 / x2 relativamente aos pontos P0 = (0,1, 0) , P1 = (0,1,1) e P∞ = (0, 0,1) ; 139 Fica assim justificada a posteriori o nome “ponto unitário”. - 61 - • Se nenhuma das três coordenadas é zero, basta traçar as rectas r, definida por (1, 0, 0) e (0, x2 , x3 ) e s, definida por (0, 1, 0) e ( x1 , 0, x3 ) ; o ponto de coordenadas (x1 , x2 , x3 ) será então a intersecção das duas rectas r e s. Finalmente, reparemos que a relação x1u1 + x2u 2 − x3 = 0 pode ser escrita na forma simétrica x1 X 1 + x2 X 2 + x3 X 3 = 0 , levando-nos a identificar uma recta com um terno de números reais não todos nulos [ X 1 , X 2 , X 3 ] , ditos coordenadas tangenciais da recta140. A condição de incidência de um ponto ( x1 , x2 , x3 ) com uma recta [X 1 , X 2 , X 3 ] é x1 X 1 + x2 X 2 + x3 X 3 = 0 , que, se representarmos o membro da esquerda por {xX }, pode ser abreviada para {xX } = 0 . Ilustramos a teoria exposta na figura seguinte, na qual apresentamos um triângulo de referência e alguns pontos e rectas, bem como as suas coordenadas. Figura 24 A geometria analítica no plano projectivo pode agora ser desenvolvida de forma muito semelhante à geometria analítica usual; vejamos, por exemplo, uma condição necessária e suficiente para que para que três pontos sejam colineares. Teorema 35: Sejam x = ( x1 , x2 , x3 ) , y = ( y1 , y 2 , y3 ) , z = ( z1 , z 2 , z3 ) três pontos distintos. Então, x, y e z são colineares se e só se 140 As coordenadas tangenciais estão definidas a menos do produto por um factor não nulo, como é óbvio. - 62 - x1 y1 z1 x2 y2 z2 x3 y3 = 0 z3 Demonstração: Os três pontos são colineares se e só se existir uma recta [ X 1 , X 2 , X 3 ] que incida com todos eles. Considerando o sistema linear formado pelas três equações {xX } = 0 , {yX } = 0 e {zX } = 0 (nas incógnitas X 1 , X 2 e X 3 ), o resultado é consequência imediata de propriedades bem conhecidas dos sistemas homogéneos. ■ Corolário: Três rectas X = [ X 1 , X 2 , ponto em comum se e só se X1 Y1 Z1 Demonstração: Por dualidade, a partir do teorema. ■ X 3 ] , Y = [Y1 , Y2 , Y3 ] e Z = [Z1 , Z 2 , Z 3 ] têm um X2 Y2 Z2 X3 Y3 = 0 . Z3 Os dois seguintes resultados são muito úteis. Teorema 36: A linha que incide com os pontos y = ( y1 , y 2 , y3 ) e z = ( z1 , z 2 , z3 ) tem por coordenadas tangenciais [ y 2 z3 − y3 z 2 , y3 z1 − y1 z 3 , y1 z 2 − y 2 z1 ] ; o ponto de intersecção das rectas Y = [Y1 , Y2 , Y3 ] e Z = [Z1 , Z 2 , Z 3 ] tem as coordenadas (Y2 Z 3 − Y3 Z 2 , Y3 Z1 − Y1Z 3 , Y1Z 2 − Y2 Z1 ) . Demonstração: É imediata. ■ Teorema 37: O ponto genérico colinear com y = ( y1 , y 2 , y3 ) e z = ( z1 , z 2 , z3 ) pode ser escrito na forma (µy + νz ) , onde µ e ν são números reais; além disso, três pontos colineares quaisquer podem sempre ser notados (y), (z), (y + z). Demonstração: Da condição de colinearidade do Teorema 35, resulta que as três colunas do determinante têm de ser linearmente dependentes, logo existem três números reais λ, µ e ν tais que λxi + µy i + νz i = 0 (i = 1, 2, 3) . Como (y) e (z) são pontos distintos, λ ≠ 0 e portanto o ponto geral colinear com (y) e (z) é (µy1 + νz1 , µy 2 + νz 2 , µy3 + νz3 ) , ou, - 63 - abreviadamente, (µy + νz ) . Se µ = 0 , a expressão anterior reduz-se ao ponto z; para qualquer outro valor, como estamos a trabalhar com coordenadas homogéneas, as coordenadas de y podem “absorver” o número ν e obtemos a expressão (y + z).141 ■ Corolário: Uma expressão geral duma linha concorrente com [Y] e [Z] é [µY + νZ] e qualquer linha nessas condições excepto [Z] pode ser expressa na forma [Y + νZ]. Demonstração: Segue-se do teorema por dualidade. ■ Para terminar esta secção, vamos introduzir uma noção que nos será útil no estudo da geometria elíptica: a de razão cruzada mista entre dois pontos e duas rectas. Para tanto, consideremos quatro pontos colineares A, B, C e D. De acordo com o que foi visto anteriormente, estes pontos podem ser representados por (a ), (b), (a + µb) e (a + νb) e a sua razão cruzada “normal”, {AB, CD} é simplesmente o número µ / ν . Sejam agora [X] e [Y] duas quaisquer linhas rectas incidindo com C e D, respectivamente. Então, de acordo com o que já se viu, verificam-se as relações {aX }+ µ{bX } = 0 e {aY }+ ν{bY } = 0 , donde se tira que µ {aX }{bY } . = ν {bX }{aY } Definição 33: Dados dois pontos A = (a ) e B = (b) e duas rectas [X] e [Y], a sua razão {aX }{bY } . cruzada mista é o valor {bX }{aY } Esta expressão é independente da escolha do sistema de coordenadas e pode-se provar que é igual à razão cruzada “usual” {AB, A' B'}, sendo A' e B' os pontos de intersecção das rectas em causa com a recta AB.142 141 Esta expressão deve ser usada com algum cuidado: é válida se estamos a trabalhar com pontos incidentes com uma só linha, mas falha se estamos a trabalhar com duas ou mais linhas, já que as coordenadas do mesmo ponto teriam de “absorver” vários parâmetros distintos. 142 Ver, por exemplo, [Cox1], páginas 84 e 85. - 64 - 6.5 Representação analítica das colineações, correlações e polaridades Nesta secção, veremos que qualquer colineação, correlação ou polaridade pode ser representada por uma matriz invertível de ordem 3 (definida a menos do produto por um factor não nulo), relativamente a um triângulo de referência e ponto unitário. O resultado fundamental é o seguinte: Teorema 38: Qualquer colineação pode ser escrita na forma ρ x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (*) , (i = 1, 2, 3) , para certos números reais a11 , a12 ,K a33 , verificando-se a11 ∆ = a 21 a31 a12 a 22 a32 a13 a 23 ≠ 0 . a33 Demonstração: O facto de uma transformação do tipo referido no enunciado ser uma colineação é uma consequência relativamente imediata das propriedades das transformações lineares e matrizes a elas associadas em R3 ; a bijectividade é assegurada pela condição ∆ ≠ 0 e o facto de a transformação aplicar pontos em pontos e rectas em rectas preservando as relações de incidência é óbvio. É de reparar que de ρ x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 com i = 1, 2, 3 se segue, por inversão, que ρ x j = A1 j x'1 + A2 j x'2 + A3 j x'3 com j = 1, 2, 3; os números Aij são proporcionais aos co-factores dos números aij no determinante ∆. Resta provar a recíproca, isto é, que qualquer colineação pode ser escrita na forma referida no enunciado. Como se sabe (Teorema 18), uma correlação fica bem definida pelo conhecimento das imagens dos três vértices do triângulo de referência e do ponto unitário, (0, 0, 1), (0, 1, 0), (1, 0, 0) e (1, 1, 1), já que estes formam um quadrângulo. Assim, dados quaisquer quatro pontos A(a1 , a 2 , a3 ) , B(b1 , b2 , b3 ) , C (c1 , c2 , c3 ) e D (d1 , d 2 , d 3 ) , não havendo três colineares, vamos tentar determinar os coeficientes de uma relação do tipo (*) que represente a colineação dada. Pretendendose que (0, 0, 1) seja transformado em A(a1 , a 2 , a3 ) , terá de ser a13 = λa1 , a 23 = λa 2 , a33 = λa 3 onde λ é um factor arbitrário não nulo. Analogamente, terá de ser a12 = µb1 , a 22 = µb2 , a 32 = µb3 e a11 = νc1 , a 21 = νc 2 , a31 = νc3 . Como os pontos A, B e C são não colineares, o determinante da transformação associada à matriz aij é diferente de zero. Substituindo os valores determinados em [ ] (*), e atendendo a que (1, 1, 1) vai ser transformado em D (d1 , d 2 , d 3 ) , resulta que - 65 - ρd1 = c1ν + b1µ + a1λ ρd 2 = c2 ν + b2 µ + a 2 λ . ρd = c ν + b µ + a λ 3 3 3 3 Fazendo ρ = 1 , podemos resolver o sistema em ordem às incógnitas ν, µ e λ 143 e, em seguida, obtemos os valores aij . Repare-se que os valores ν, µ e λ são todos diferentes de zero; se um deles, digamos ν, fosse zero, o determinante d1 d2 d3 b1 b2 b3 a1 a2 a3 seria nulo e os pontos D, B e A colineares, o que é absurdo. Em resumo, provámos que a qualquer matriz invertível de ordem 3 está associada uma colineação e que cada colineação pode ser representada por uma matriz invertível de ordem 3, determinada a menos do produto por um factor não nulo. ■ Antes de prosseguirmos, vamos fazer algumas observações: • para simplificar e sempre que não haja perigo de confusão, podemos omitir (por “absorção”, já que se trata de coordenadas homogéneas) o factor ρ em expressões do tipo (*), que poderemos escrever apenas como x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 ; • existe um análogo unidimensional do teorema anterior: “Qualquer projectividade numa recta pode ser escrita em coordenadas homogéneas na forma a ρx'1 = a11 x1 + a12 x2 , com 11 a21 ρx' 2 = a21 x1 + a 22 x2 a12 ≠ 0” ; a 22 • dividindo ordenadamente as duas equações da observação anterior, simplificando e ax + b passando a coordenadas homogéneas, reobtem-se a expressão x' = , já cx + d conhecida do Teorema 28. • Uma colineação, além de transformar pontos em pontos, transforma também linhas em linhas; um raciocínio análogo144 ao feito na prova do teorema anterior mostra 143 144 A solução é única porque o determinante do sistema é não nulo. Expressões do tipo x'i = ai1x1 + ai 2 x2 + ai3 x3 , muito frequentes neste estudo, podem ser abreviadas se recorrermos à seguinte convenção, semelhante à convenção de Einstein do cálculo tensorial: sempre que num termo aparecer um índice repetido, deve-se subentender que se efectua a soma sobre todos os valores possíveis desse indíce ( de 1 a 3, em geral). Por exemplo, x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) - 66 - que a transformação para linhas rectas é, em termos das suas coordenadas tangenciais, σX j = a1 j X '1 + a 2 j X ' 2 + a 3 j X '3 , ( j = 1, 2, 3) . Assim, podemos escrever a representação analítica final das colineações como se segue: ρ x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) (em termos de pontos) σX j = a1 j X '1 + a 2 j X ' 2 + a 3 j X '3 ( j = 1, 2, 3) (em termos de linhas). Tal como no caso das projectividades, a representação analítica das colineações permite obter facilmente resultados cujas provas por via sintéticas são difíceis. Vejamos um exemplo. Teorema 39: Toda a colineação tem um ponto fixo145. Demonstração: A determinação de um ponto fixo de uma colineação reduz-se a fazer X ' = X na relação ρX ' = AX , forma matricial das relações (*) do Teorema anterior. Vem ρX = AX ou ainda ( A − ρId ) X = 0 ; este sistema tem soluções não nulas se e só se A − ρId = 0 , ou seja se e só se ρ for um valor próprio real da matriz A; como a equação polinomial obtida é do terceiro grau e um polinómio de grau ímpar tem sempre uma raíz real, segue-se o resultado146. ■ Terminamos esta secção com uma discussão breve da representação analítica das correlações, especialmente das polaridades. Seja C ' uma correlação qualquer e C a correlação que a cada ponto (a1 , a2 , a3 ) faz corresponder a recta de coordenadas tangenciais [a1 , a2 , a3 ] , que é obviamente uma pode ser escrita apenas x'i = aij x j (i = 1, 2, 3) e x j = A1 j x'1 + A2 j x' 2 + A3 j x'3 (j = 1, 2, 3) será x j = Aij x'i (j = 1, 2, 3). Para vermos a utilidade desta convenção, vamos empregá-la na dedução da fórmula de transformação das coordenadas tangenciais. Como uma colineação preserva incidências, de {xX } = 0 , resulta que {x' X '} = 0 e vice-versa; então, omitindo factores de proporcionalidade, vem x j X j = x'i X 'i = aij x j X 'i . Como esta relação tem de ser verdadeira para qualquer ponto, resulta que X j = aij X 'i , ( j = 1, 2, 3) . Analogamente, se tem a relação X 'i = Aij X j , (i = 1, 2, 3) . 145 146 Para uma demonstração por via sintética, consulte-se [Enr], capítulo VIII. Consequência imediata do Teorema de Bolzano. - 67 - polaridade. A composta de C ' e C é, como se sabe, uma colineação; se atendermos a que a inversa de uma correlação é uma correlação, resulta que qualquer correlação pode ser escrita como composta da correlação C com uma colineação conveniente. Tendo em conta a representação analítica das colineações obtida no Teorema 38 e as observações feitas no parágrafo anterior, resulta a seguinte expressão analítica para as correlações: ρ X 'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) σX j = a1 j x'1 + a 2 j x' 2 + a 3 j x '3 ( j = 1, 2, 3) No caso especial das polaridades, pode obter-se um resultado muito mais interessante. Com efeito, uma polaridade coincide com a sua inversa, donde se conclui que σX ' j = a1 j x1 + a 2 j x2 + a3 j x3 , ou, trocando i com j, σX 'i = a1i x1 + a2i x2 + a3i x3 ; comparando esta última expressão com ρ X 'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 , resulta que tem de ser σ a ji = aij , ρ 2 σ σ σ com o mesmo factor para todos os i e j. Tem-se então que aij = a ji = aij ; ρ ρ ρ 2 σ σ como os números aij não são todos nulos, vem = 1 e portanto = ±1 . A hipótese ρ ρ σ = −1 leva imediatamente a uma contradição, já que dela decorre a ji = −aij e então o ρ valor do determinante ∆ do Teorema 38 seria nulo: a11 ∆ = a 21 a31 a12 a22 a32 0 a13 a 23 = − a12 a33 a31 a12 0 − a23 − a31 a 23 = 0 . 0 σ = 1 , donde a ji = aij . A conclusão a que chegámos pode ρ ser expressa no seguinte teorema fundamental: Concluímos finalmente que Teorema 40: Uma correlação é uma polaridade se e só se a matriz que a representa for simétrica. No caso das polaridades, a transformação ρ X 'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) pode ser escrita mais simplesmente147 X i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) com a ji = aij 147 Uma correlação em geral transforma um ponto A numa recta a´ e esta recta a´ num novo ponto A´´. Como uma polaridade composta consigo própria dá a identidade, resulta que os pontos A e A´´ coincidem - 68 - e ∆ ≠ 0 , o que nos permite determinar a recta polar de um certo ponto, ou, invertendo a transformação, determinar o pólo de uma recta dada. Podemos também estabelecer uma condição de natureza algébrica para dois pontos serem conjugados: sejam x = ( x1 , x2 , x3 ) e y = ( y1 , y 2 , y3 ) os pontos em causa, e [X ] e [Y ] as suas polares, escritas na forma tangencial. O ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) é conjugado de y = ( y1 , y 2 , y3 ) se incidir com a polar deste último, isto é, se { xiYi } = 0 ; como Yi = ∑ aij y j , vem que tem de ser ∑a Analogamente se obtém a relação ij xi y j = 0 , que é a condição pretendida. i, j j ∑A X Y ij i j = 0 para duas linhas serem conjugadas. i, j Para concluir vamos referir sem demonstração alguns resultados adicionais sobre a representação analítica das polaridades148. Teorema 41: Se o triângulo de referência for auto-polar, uma polaridade pode ser escrita na forma X 1 = ax1 X 2 = bx2 X = cx 3 3 para certos números reais a, b e c, com abc ≠ 0 . Teorema 42: Nas condições do teorema anterior, é possível transformar as coordenadas de forma a preservar o triângulo de referência (alterando o ponto unitário) de modo a que a polaridade se escreva numa das seguintes formas canónicas X 1 = − x1 X 1 = x1 X 2 = x2 ou X 2 = x2 X = x X =x 3 3 3 3 No primeiro caso, a polaridade é elíptica e no segundo é hiperbólica. No caso hiperbólico, se atendermos às observações feitas antes do Teorema 41, o lugar geométrico dos pontos auto-conjugados (uma cónica, de acordo com a Definição 26) é caracterizado por − x12 + x22 + x32 = 0 ; analogamente, a cónica, entendida como a envolvente das linhas autoconjugadas, pode ser dada por − X 12 + X 22 + X 32 = 0 . A linha de coordenadas tangenciais [1, 0, 0] não intersecta esta cónica, donde, por continuidade, todas as linhas [ X ] = [ X 1 , X 2 , X 3 ] para as quais se tem − X 12 + X 22 + X 32 < 0 são exteriores à cónica, ao passo que as que verificam − X 12 + X 22 + X 32 > 0 são secantes. sempre, o que nos possibilita simplificar a notação, omitindo a plica. Por outro lado, como se sabe, a natureza homogénea das coordenadas permite omitir o factor multiplicativo ρ. 148 O leitor interessado pode ver as demonstrações em [Cox1] ou [VY1]. - 69 - Para os pontos, a relação correspondente é a seguinte: x = ( x1 , x2 , x3 ) é interior à cónica se − x12 + x22 + x32 < 0 e exterior se − x12 + x22 + x32 > 0 . 7. Alguns modelos do plano projectivo real O principal modelo do plano projectivo real que vamos considerar é de natureza algébrica e, como se vai ver, é motivado pelo estudo da geometria projectiva analítica feito na secção anterior. Seja R3 = {( x, y, z ) : x, y, z ∈ R} ; em R3 \ {(0, 0, 0 )} definimos uma relação de equivalência pondo (a, b, c) ~ (a ' , b' , c' ) se e só se existir um número real não nulo ρ tal a = ρa ' que b = ρb' e definimos o plano projectivo real, RP 2 , como o conjunto das classes de c = ρc' equivalência, às quais chamaremos pontos projectivos ou simplesmente pontos (dito de outra forma, um ponto é um terno de números reais não todos nulos, identificando-se ternos proporcionais, desde que a constante de proporcionalidade seja diferente de zero). Uma recta projectiva (a que chamaremos apenas recta) é definida de forma análoga: é um terno de números reais [ X 1 , X 2 , X 3 ] não todos nulos, identificando-se o terno [ X 1 , X 2 , X 3 ] com qualquer terno da forma [ρX 1 , ρX 2 , ρX 3 ], onde ρ é um número real diferente de zero. Finalmente, diremos que o ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) e a recta X = [X 1 , X 2 , X 3 ] são incidentes se {xX } = 0 , onde, como é usual, {xX } é uma abreviatura de x1 X 1 + x2 X 2 + x3 X 3 . Dado um ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) , os números x1 , x2 , x3 são as suas coordenadas (homogéneas) e dada uma recta X = [X 1 , X 2 , X 3 ] , os números X 1 , X 2 , X 3 são as suas coordenadas (tangenciais).149 Uma vez apresentado o modelo, o passo seguinte é verificar que ele verifica os axiomas do plano projectivos apresentados no deste capítulo. Não vamos verificar todos os Axiomas, limitando-nos a considerar os Axiomas de Incidência, por serem os mais interessantes do ponto de vista geométrico; acresce a isto que a verificação dos Axiomas de Separação e do Axioma de Continuidade é morosa e bastante técnica (para dar uma ideia das dificuldades, só a simples definição da separação no modelo geométrico é delicada e pouco intuitiva, conforme se pode ver em [Cox2], páginas 192 e 193). O leitor interessado pode encontrar a verificação exaustiva dos axiomas em [Cox2], páginas 192 a 194. Teorema 43: O modelo apresentado verifica os Axiomas de Incidência do plano projectivo. Demonstração: Verifiquemos, por exemplo, os Axiomas I1, I3 e I4150, que relembramos a seguir: 149 Repare-se que toda esta construção pode ser generalizada de forma natural para dimensões superiores e para corpos diferentes do corpo dos números reais. 150 O leitor pode encontrar a verificação dos restantes axiomas de Incidência em [Cox2], página 191. - 70 - I1 – Existem uma linha e um ponto não incidentes. I3 – Dados dois pontos distintos, existe uma única linha incidente com eles. I4 – Duas linhas quaisquer incidem simultaneamente com pelo menos um ponto. A verificação de I1 é trivial, já que o ponto (1, 0, 0) e a recta [1, 0, 0] não são incidentes. Quanto a I3, é imediato151 que os pontos y = ( y1 , y 2 , y3 ) e z = (z1 , z 2 , z 3 ) incidem com uma e uma só linha, a saber a linha de coordenadas tangenciais y2 z2 y3 y3 , z3 z3 y1 y1 , z1 z1 y2 . z2 Finalmente, para I4, duas linhas Y = [Y1 , Y2 , Y3 ] e Z = [Z1 , Z 2 , Z 3 ] incidem simultaneamente com o ponto152 Y2 Z2 Y3 Y3 , Z3 Z3 Y1 Y1 , Z1 Z1 Y2 .■ Z2 Se pensarmos que um ponto projectivo corresponde (a menos do produto por um número real não nulo) a um terno ordenado de números reais não todos nulos, verificamos que se pode identificar o ponto projectivo (a, b, c) com o subespaço vectorial de R3 gerado pelo vector (a, b, c) , ou, se quisermos uma interpretação mais geométrica, com a recta de equação vectorial ( x, y, z ) = (0, 0 ,0) + k (a, b, c), k ∈ R . Assim, podemos considerar alternadamente o plano projectivo como o conjunto de todos os subespaços unidimensionais de R3 ou como o conjunto de todas as rectas do espaço tridimensional que passam pela origem. Esta visão do plano projectivo pode ainda ser aperfeiçoada se identificarmos a recta projectiva [ X 1 , X 2 , X 3 ] com o plano de R3 de equação cartesiana X 1 x + X 2 y + X 3 z = 0 (plano que passa pela origem no espaço tridimensional, como se sabe da geometria analítica usual); temos assim uma correspondência entre as rectas projectivas e os planos que passam pela origem em R3 , ou se preferirmos um ponto de vista mais algébrico, com o subespaços de dimensão 2 do espaço vectorial R3 . Uma recta do espaço tridimensional que passa pela origem intersecta a superfície esférica unitária centrada em (0, 0, 0) em dois pontos diametralmente opostos. Assim, se identificarmos esses dois pontos, podemos visualizar RP 2 de uma forma que pode ser vantajosa (formalmente, estamos a introduzir uma relação de equivalência em S 2 = (x, y, z ) ∈ R3 : (x, y, z ) = 1 , pondo (a, b, c) ~ (a ' , b' , c' ) se e só se estes pontos são { } diametralmente opostos e identificando RP 2 com S 2 / ~ ). A principal desvantagem desta interpretação geométrica, atribuída a Felix Klein, reside no facto de um ponto 151 152 Veja-se o Teorema 36. Veja-se o Teorema 36. - 71 - projectivo ter de ser considerado como um conjunto de dois pontos de norma 1 em R3 . Para ultrapassar (parcialmente) este problema, podemos considerar em vez de S 2 o conjunto S +2 = ( x, y, z ) ∈ R3 : (x, y, z ) = 1 ∧ z ≥ 0 (a parte da superfície esférica situada acima do plano xOy) e, para cada recta que passa pela origem, considerar o seu ponto de intersecção com S +2 (que é único, a não ser que a recta esteja contida no plano xOy, caso em que voltamos a obter dois pontos diametralmente opostos), que em seguida é projectado verticalmente sobre o plano xOy. É imediato que, ao aplicar este processo a todas as rectas de R3 que passam pela origem, vamos obter o disco aberto de raio 1 centrado na origem e contido no plano xOy, ao qual devemos “colar” a circunferência respectiva, com os pontos diametralmente opostos identificados. Vê-se assim que RP 2 pode ser intuitivamente identificado com um disco aberto ao qual se “cola” uma faixa de Möbius; para uma justificação mais rigorosa das afirmações feitas, o leitor pode consultar o capítulo dedicado à Geometria Projectiva em [ON]. { } Para terminar este capítulo, e essencialmente a título de curiosidade, vamos fazer algumas observações sobre o modelo algébrico: 1) A construção apresentada pode ser feita com elementos de um corpo qualquer e generalizada a dimensões superiores: assim, dado um corpo K e um número natural n, o espaço projectivo KP n pode ser definido como o conjunto das classes de equivalência da relação definida em K n+1 \ {0} por x ~ y se e só se existe λ ∈ K \ {0} tal que x = λy . 2) É possível definir de forma natural em RP 2 (ou, mais geralmente, em RP n ) uma topologia, dizendo que os abertos de RP 2 são as imagens inversas por meio da sobrejecção canónica dos abertos de R3 \ {(0, 0, 0 )} (é a construção usual de uma topologia quociente). Prova-se que o espaço topológico assim obtido é metrizável, compacto e conexo por arcos (veja-se, por exemplo, [ON], páginas 306 a 309). 3) A topologia obtida é, no entanto, muito diferente da topologia usual de R 2 ; para além da questão da compacidade, na topologia de RP 2 acima descrita, uma circunferência e uma hipérbole são homeomorfas (!!), um resultado surpreendente153 cuja justificação pode ser vista em [Seb] e que constitui, de certo modo, a “contrapartida topológica” das resultados de equivalência projectiva das cónicas que referimos no Teorema 24. 4) Poder-se-ia pensar que a topologia de RP 2 e de S 2 (induzida pela topologia usual de R3 ) seriam semelhantes, em virtude das construções anteriores, mas, na realidade, os dois espaços não são homeomorfos; o grupo fundamental de RP 2 tem dois elementos, ao passo que o de S 2 é trivial (veja-se [Maun]). Uma outra diferença fundamental está na orientabilidade; é bem sabido que S 2 é orientável, mas o plano projectivo não é, conforme vimos anteriormente). 153 É evidente que na topologia usual do plano real uma circunferência e uma hipérbole não são homeomorfas; a primeira curva é conexa, ao passo que a segunda tem duas componentes conexas (os dois ramos). - 72 - Capítulo 3 Geometria elíptica 1. Introdução Vimos no primeiro capítulo as dificuldades que surgem quando se tenta empreender o estudo de uma geometria baseada no axioma elíptico acrescentando este axioma ao sistema da geometria absoluta. Neste capítulo veremos como se pode desenvolver uma tal geometria nos casos unidimensional e bidimensional a partir do estudo da Geometria Projectiva anteriormente feito; para o primeiro caso, será utilizada, como é natural, a recta projectiva e para o segundo a totalidade do plano projectivo. Não vamos abordar o estudo da geometria esférica154, já que este pode ser feito de forma muito mais fácil e elementar por meio da geometria euclidiana tridimensional, conforme se pode ver, por exemplo, em [Ayr2] ou em [Cat]. Já apresentámos um modelo da geometria elíptica bidimensional: a superfície esférica unitária de R3 na qual se identificam os pontos diametralmente opostos. O que nos falta (e é esse um dos objectivos essenciais deste capítulo), é introduzir de forma adequada conceitos métricos e de congruência155. É de referir ainda que há outros modelos possíveis, como, por exemplo o modelo constituído pelos planos e rectas do espaço tridimensional que passam pela origem, referido em [Cox1], páginas 13 a 15 ou ainda o modelo que se obtém seccionando os planos e rectas do anterior por meio de um plano que não passa pela origem (dito plano de imersão).156 O processo que vamos adoptar para o estudo da geometria elíptica unidimensional consiste em tomar como espaço uma linha projectiva, na qual fixamos uma involução elíptica (arbitrária, mas suposta fixa), dita involução absoluta; definimos pontos conjugados como sendo os pontos dos seus pares e consideramos os segmentos em que estes pares dividem a recta (ver a Definição 8, no segundo capítulo). No caso bidimensional, trabalharemos na totalidade do plano projectivo, no qual fixamos uma polaridade elíptica. 2. Geometria elíptica unidimensional O interesse do estudo da geometria elíptica unidimensional reside em dois aspectos importantes: 154 Refira-se que o estudo da geometria esférica, fundamental em áreas como navegação, astronomia e geodesia, é muito mais antigo que o da geometria elíptica. Os primeiros resultados de geometria esférica foram obtidos na Antiguidade Clássica por Hiparco de Niceia e Menelau de Alexandria. O problema (fundamental para as aplicações) da resolução de triângulos esféricos foi tratado ao longo dos séculos por muitos matemáticos (Pedro Nunes, por exemplo), de modo que nos fins do século XVIII estava essencialmente resolvido. Pelo contrário, a geometria elíptica como actualmente a conhecemos data do século XIX, na sequência dos trabalhos de Félix Klein mencionados no primeiro capítulo. 155 É possível introduzir directamente os conceitos referidos neste modelo, como se pode ver em [Cox1], página 14; não vamos fazê-lo neste trabalho, optando por uma apresentação mais geral e abstracta. 156 Repare-se que se trata de um modelo parcial, no sentido de os pontos (respectivamente as rectas) do plano projectivo correspondentes a rectas euclidianas (respectivamente a planos euclidianos) que paralelas ao plano de imersão não terem representação; apesar deste defeito, este modelo proporciona uma visão clara do plano projectivo. - 73 - a) serve como uma boa introdução ao estudo da geometria elíptica bidimensional, pois muitos dos resultados e métodos de prova têm correspondentes bidimensionais naturais, com a vantagem de as versões unidimensionais serem, em geral, mais simples; b) permite apresentar resultados interessantes e que contrastam fortemente com a geometria euclidiana (veremos mais adiante que o mesmo não sucede se considerarmos uma geometria hiperbólica unidimensional). Os modelos do espaço projectivo apresentados no fim do capítulo anterior têm correspondentes unidimensionais. Assim, obtém-se um primeiro modelo considerando como pontos projectivos as rectas (usuais) incidindo com um dado ponto fixo O do plano euclidiano (figura seguinte, à esquerda) ou, por outras palavras o feixe das rectas centradas em O; uma alternativa interessante é considerar uma circunferência (euclidiana), e definir ponto projectivo como um qualquer ponto (usual) dessa circunferência157 (figura seguinte, à direita). A D C B E Figura 25 Antes de passarmos ao desenvolvimento da teoria, reparemos que todos os resultados de natureza unidimensional obtidos no capítulo anterior são válidos em tudo o que se vai seguir. 2.1 Translações e Simetrias Uma ferramenta fundamental para o nosso estudo é o Teorema 16 do segundo capítulo, que, pela sua importância, enunciamos de novo: Sejam A e B dois pontos e pontual da recta) com eles são permutáveis com Ω e involução hiperbólica e a Ω uma involução elíptica na recta (mais precisamente, no incidente. Então, há exactamente duas projectividades que relacionam A com B. Uma dessas projectividades é uma outra é elíptica; esta segunda projectividade não é uma 157 Poder-se-ia pensar que, por analogia com um dos modelos apresentados no capítulo anterior, deveríamos identificar os pontos diametralmente opostos, mas isso não é necessário; a geometria de uma linha elíptica é bem representada pela geometria de uma circunferência usual. Para o esclarecimento (algo delicado) desta aparente discrepância, o leitor pode consultar [Cox1], página 97 e a referência aí apresentada. - 74 - involução a menos que um dos pontos A e B seja imagem do outro por meio de Ω, caso em que a referida projectividade coincide com Ω. Definição 34: Uma simetria é uma involução hiperbólica que permuta com a involução absoluta Ω; uma translação é uma projectividade elíptica que permuta com a involução absoluta Ω. Ao longo deste capítulo, por uma questão de conveniência notacional, escreveremos Af para representar a imagem do objecto A pela função f em vez do tradicional f(A) sempre que estivermos a trabalhar com simetrias ou translações elípticas; omitiremos também o símbolo de composição °. No próximo teorema listamos algumas consequências imediatas das definições. Teorema 44: Sejam A e B dois pontos distintos do espaço elíptico unidimensional (isto é, dois pontos de uma recta projectiva na qual supomos definida a involução absoluta Ω). Então: a) Existe uma única simetria (que representaremos por A Φ B ) que transforma A em B. b) Existe uma única translação (que representaremos por AΨB ) que transforma A em B. c) Se A e B são conjugados, AΨB = Ω . d) A composta de duas translações ou de duas simetrias é uma translação e a composta de uma simetria com uma translação é uma simetria. e) Qualquer translação pode ser escrita como a composta de duas simetrias, uma das quais é arbitrária. f) A Φ B = B Φ A . Demonstração: As alíneas a), b) e c) são consequência imediata das definições e do Teorema citado no início desta secção. Quanto à alínea d), repare-se que a composta de duas projectividades α e β, ambas permutáveis com Ω é ainda permutável com Ω: Ω(αβ ) = (Ωα )β = (αΩ )β = α(Ωβ ) = α(βΩ ) = (αβ )Ω . O resultado decorre então das definições e do Teorema 14 do segundo capítulo. Quanto à alínea e), como qualquer simetria Φ é uma involução, Φ o Φ = Id ; dada uma translação Ψ qualquer, podemos então escrever Ψ = Φ (ΦΨ ) , donde o resultado, já que, pela alínea anterior, ΦΨ é uma simetria. O resultado da alínea f) é evidente. ■ - 75 - Os resultados da alínea d) do teorema anterior podem ser escritos mais explicitamente na forma A Φ B B Φ C = AΨC = AΨB B ΨC A Φ B B ΨC = A Φ C = AΨB B Φ C É então natural pôr, por definição, AΨA = Id , já que, obviamente se tem ( AΨB ) = BΨA . Quanto a A Φ A , trata-se da involução cujos pontos duplos são A e AΩ ; esta transformação denomina-se simetria em A. Para uma melhor compreensão destas noções, analisemos as suas “concretizações” nos modelos apresentados no início: −1 • no primeiro modelo, uma translação (elíptica) é uma rotação (usual) em torno do ponto O e uma simetria (elíptica) é uma simetria axial (usual) tendo como eixo uma recta (usual) passando pelo ponto O; • no segundo modelo, uma translação (elíptica) é uma rotação (usual) em torno do centro da circunferência e uma simetria (elíptica) é uma simetria axial (usual) tendo como eixo um diâmetro (euclidiano) da circunferência de base. O próximo resultado, de natureza técnica, será necessário mais adiante, para a introdução da noção de congruência de segmentos em geometria elíptica. Teorema 45: Sejam Ψ uma translação, Φ uma simetria e A um ponto. Se pusermos B = AΨ , C = BΦ e D = CΨ , as relações AΨB = CΨD e B Φ C = A Φ D são equivalentes. Demonstração: Reparemos que, como ΨΦ é uma simetria, o seu quadrado é a identidade e 2 então (ΨΦ ) = Id ⇔ ΨΦΨΦ = Id ⇔ ΨΦΨ = Φ −1 ⇔ ΨΦΨ = Φ . Por outro lado, Ψ = AΨB e Φ = B Φ C ; como ΨΦΨ = Φ , segue-se que AΦ = AΨΦΨ = BΦΨ = CΨ = D e portanto, Φ = A Φ D e Ψ = C ΨD , donde se obtém o resultado. ■ Corolário: A relação AΨC = BΨD é equivalente a qualquer das anteriores. Demonstração: Decorre imediatamente do facto óbvio de a relação B Φ C = A Φ D ser simétrica em B e C.■ Veremos em seguida dois resultados importantes: enquanto o primeiro é igualmente válido em geometria euclidiana, o segundo marca uma notável diferença entre as duas geometrias. - 76 - Teorema 46: Duas quaisquer translações são permutáveis. Demonstração: Sejam Ψ e Ψ ' duas translações e A um ponto qualquer. Sejam B = AΨ , C = AΨ ' e D = CΨ . Pelo teorema anterior, a relação AΨB = CΨD (= Ψ ) é equivalente a B ΨD = AΨC ( = Ψ ' ) , donde resulta que BΨ ' = D . Vem então A(ΨΨ ') = D = A(Ψ ' Ψ ) e portanto, ΨΨ '= AΨD = Ψ ' Ψ , como queríamos.■ Teorema 47: Se duas simetrias são permutáveis, a sua composta é a involução absoluta Ω. Demonstração: Sejam A Φ B e B Φ C duas simetrias permutáveis. Vem então A ΨC = A Φ B B Φ C = B Φ C A Φ B = C Φ B B Φ A = CΨA Pelo Teorema 45, vem que C Φ C = A Φ A ; se A e C são distintos, são conjugados, e portanto, a composta das duas simetrias é Ω, como queríamos. ■ Repare-se que numa recta em geometria euclidiana, duas simetrias distintas não são permutáveis (ver figura abaixo, onde S A e S B representam as simetrias “usuais” em A e B). B' A B B'' (S A o S B )( B) = S A (S B ( B)) = S A ( B) = B' 158 (S B o S A )( B) = S B (S A ( B)) = S B ( B' ) = B' ' Figura 26 2.2 Congruência de segmentos Vimos no capítulo anterior que a recta projectiva é orientável; assim, podemos convencionar qual das duas classes de equivalência será considerada directa (ou positiva), implicando que a outra será retrógrada (ou negativa). Se o terno ABC 158 Aqui usámos a notação usual por se tratar de simetrias euclidianas. - 77 - pertencer à classe positiva, representaremos o segmento159 ]AB[\C por AB e o segmento suplementar160 por BA. Definição 35: Considerando a notação anterior, os segmentos AB e BA dir-se-ão rectos se os pontos A e B forem conjugados161. Definição 36: Os segmentos AB e CD dizem-se congruentes (escreve-se AB ≡ CD ) se AΨB = C ΨD . Vejamos algumas propriedades simples da relação de congruência: Teorema 48: a) As condições AB ≡ CD , B Φ C = A Φ D e AΨC = BΨD são equivalentes. b) AB ≡ CD se e só se AC ≡ BD . c) A relação de congruência é reflexiva, simétrica e transitiva. d) A relação de congruência é aditiva: se AB ≡ DE e BC ≡ EF , então AC ≡ DF (ver a figura seguinte). e) Dois segmentos rectos são sempre congruentes. Demonstração: A alínea a) é consequência do Teorema 45 e do seu corolário. A alínea b) é imediata a partir da alínea a). O resultado da alínea c) é trivial. Quanto a d), resulta imediatamente das fórmulas para a composição de translações enunciadas a seguir ao Teorema 44. Finalmente, se AB e CD são segmentos rectos, tanto AΨB como C ΨD são a involução absoluta Ω e portanto AB ≡ CD . ■ 159 No primeiro modelo, um segmento projectivo é um ângulo (usual); no segundo, é um arco de circunferência (usual). 160 Relembremos que: “Dados quatro pontos colineares distintos A, B, C e D tais que AB||CD, os pontos A e B decompõem a recta que com eles incide em exactamente dois segmentos, ]AB[\C e ]AB[\D, ditos segmentos suplementares.”, conforme vimos no capítulo anterior (lema 3 da secção 3.2). 161 No primeiro modelo, dois pontos (elípticos) são conjugados se as rectas euclidianas correspondentes forem perpendiculares; assim, um segmento recto é um ângulo recto (usual). No segundo modelo, dois pontos (elípticos) são conjugados quando os pontos euclidianos correspondentes são diametralmente opostos e um segmento recto é uma semicircunferência. - 78 - CCCC DDDD BBBB AAAA EEEE FFFF Figura 27 Uma noção importante em geometria euclidiana plana é a de ponto médio de um segmento, que é definido como o ponto do segmento equidistante dos extremos. Considerando uma recta euclidiana, é evidente que o ponto médio de um segmento nela contido pode ser caracterizado recorrendo a simetrias. Com efeito, seja [AB] um tal segmento; o único ponto O ∈ [ AB ] tal que S O ( A) = B é precisamente o ponto médio de [AB]. Estas considerações sugerem ser razoável definir o ponto médio de um segmento AB em geometria elíptica unidimensional por meio de simetrias. Tem-se então: Definição 37: (Ponto médio de um segmento) Os pontos médios dos segmentos AB e BA são os pontos duplos da involução hiperbólica A Φ B .162 Seguem-se facilmente da definição os resultados contidos no próximo teorema: Teorema 49 : Sejam A e B dois pontos e O o ponto médio de AB. Então: a) A Φ B é a simetria no ponto médio163 de AB 164: A Φ B = O Φ O e portanto AO ≡ OB. b) Os pontos médios de dois segmentos suplementares são conjugados. c) A translação AΨB pode ser escrita como composta de duas simetrias, a saber as simetrias em A e O. Demonstração: A única afirmação que não é imediata é c); para a justificar, basta reparar que A Φ A O Φ O = A Φ A A Φ B = AΨB , atendendo-se à alínea a). ■ O objectivo final desta secção é provar uma propriedade fundamental das translações, a saber que qualquer translação pode ser obtida como uma potência conveniente da involução absoluta Ω. Trata-se de um resultado algo delicado, já que, como vamos ver, será necessário considerar potências de exponente não inteiro, em 162 Recordemos que esta involução hiperbólica é uma simetria. Relembremos que a simetria num ponto X, é por definição, Teorema 44). 164 Ou de BA. 163 X Φ X (ver as observações a seguir ao - 79 - particular expoentes irracionais. Comecemos por ver o que se passa com potências de expoente natural. Dada uma translação Ψ e um número natural n, Ψ n define-se da forma usual para as potências de uma aplicação, quando a operação é a composição: Ψ n = ΨΨ K4 Ψ, 1 42 3 n factores Ψ = Ψ ou, se quisermos ser mais formais, n . Como é habitual, n −1 Ψ = ΨΨ para n ≥ 2 definimos Ψ 0 = Id , e, recordando que Ψ é uma aplicação invertível, é razoável 1 ( ) n considerar que Ψ −n = Ψ −1 . Demos assim significado às expressões da forma Ψ n , com n número inteiro qualquer. Para definir potências de expoente fraccionário (ou até irracional), temos de recorrer a um processo bastante mais elaborado. Comecemos pela “raiz quadrada” de uma translação, Ψ 1 / 2 . Seja então Ψ = AΨB a translação em causa e O o ponto médio do segmento AB; pomos então, por definição, (( Ψ ) ) 1/ 2 2 A B ( AΨB )1/ 2 = AΨO . É imediato que = ( AΨO ) = AΨO AΨO = AΨO OΨB = AΨB , o que mostra tratar-se de uma definição 2 razoável. ( ) 1/ 2 1/ 2 ( ) 1/ 4 1/ 2 Analogamente, podemos definir ( AΨB ) = ( AΨB ) , ( AΨB ) = ( AΨB ) e assim sucessivamente, dando pois significado a qualquer expressão da forma Ψ n , onde n é agora um número entre 0 e 1 e cuja expansão na base 2 não se prolonga infinitamente. Por exemplo, Ψ 0,11011 = Ψ 1 / 2 Ψ 1 / 4 Ψ 1 / 16 Ψ 1/ 32 (repare-se na ausência do termo Ψ 1/ 8 , correspondente ao zero na expansão em base 2 do expoente). 1/ 4 1/ 4 Finalmente, a definição de potência de expoente qualquer faz-se a partir do axioma de Dedekind. Seja n agora um número qualquer entre 0 e 1; os algarismos “1” na sua expansão na base 2 determinam de forma natural uma sucessão de pontos ( Ar ), r ∈ N , da maneira como a seguir se exemplifica para o caso n = 0,11011K : A1 = AΨ 1 / 2 , A2 = A1Ψ 1 / 4 , A3 = A2 Ψ 1 / 16 , A4 = A3 Ψ 1/ 32 ,K . Apliquemos agora o axioma de Dedekind ao segmento AB, considerando que um dos conjuntos é formado por todos os pontos pertencentes a pelo menos dos segmentos AAr e o outro o seu complementar em AB e seja M o ponto determinado pelo “corte de Dedekind”: pomos por definição, Ψ n = AΨM . A maneira de definir Ψ n quando n é número real não pertencente a [0, 1] é agora óbvia. Por exemplo, Ψ π = Ψ 3 Ψ ( π−3) e Ψ −e = (Ψ −1 ) = (Ψ −1 ) (Ψ −1 ) e 2 e− 2 (repare-se que π − 3 = 0,14159K e e − 2 = 0,71828K estão entre 0 e 1). - 80 - Após estas considerações, podemos passar à prova do teorema referido no início da secção. Vamos mesmo provar um resultado um pouco mais geral. Teorema 50: Qualquer translação pode ser escrita como potência de outra.165 Demonstração: Comecemos por ver que qualquer translação se pode obter como potência da involução absoluta Ω. Seja então AB um segmento e AΨB a translação correspondente. Se A e B coincidem, o resultado é trivial: AΨB = Id = Ω 0 . Suponhamos pois, a partir de agora, que A e B são pontos distintos; vamos indicar um processo para determinar n (em notação binária) tal que Ω n = AΨB . Tem-se n = a0 , a1a 2 a3 K , sendo a0 igual a 0 ou 1 conforme B pertence a AA' ou a A' A , sendo A' = AΩ . Bissectamos o segmento seleccionado e pomos a1 = 0 ou a1 = 1 conforme B pertence à secção inicial ou à secção terminal do segmento considerado e vamos repetindo este processo, que se prolonga indefinidamente, a menos que, num dado passo, um dos pontos de bissecção Ar coincida com B, caso em que se põe a r = 1 e o processo acaba aí. Em qualquer dos casos, resulta das definições apresentadas que Ω n = AΨB , como queríamos166. Para terminar, suponhamos que pretendemos obter AΨB como potência de uma translação distinta da identidade e da involução absoluta Ω; basta atender ao facto de ( ) Ωm = Ωn m/n e à parte já provada do teorema para se obter o resultado. ■ 2.3 Comprimento de um segmento; representação analítica das translações e simetrias Qualquer definição “razoável” de comprimento de um segmento167 deve obedecer a duas condições naturais: a) Dois segmentos congruentes devem ter o mesmo comprimento; b) Deve ser “aditiva” para segmentos justapostos, isto é, AB + BC = AC , sempre que o ponto B esteja no segmento AC. Como AΨC = AΨB B ΨC , é natural tentar definir o comprimento a partir do resultado obtido no teorema anterior, o que nos conduz à seguinte definição: 165 Distinta da identidade, é claro. Repare-se que o número n está entre 0 e 2, uma observação que será útil quando definirmos comprimento de um segmento. 167 Representamos o comprimento de um segmento AB por AB ; muitos autores usam AB tanto para designar o segmento como o seu comprimento, recorrendo-se ao contexto para determinar qual o significado da questão. 166 - 81 - Definição 38: Dado um segmento168 AB, o seu comprimento, AB , é igual a nλ , onde n ∈ ]0, 2[ é o expoente tal que Ω n = AΨB e λ é uma constante positiva arbitrária, dependente da unidade de comprimento escolhida. Exemplo: Se os pontos A e B são conjugados, vem AΨB = Ω , donde n = 1 , AB = λ e a linha projectiva tem comprimento finito igual a 2λ, já que AB + BA = λ + λ = 2λ e a linha projectiva pode ser obtida por justaposição dos segmentos AB e BA. Chegamos assim ao notável resultado que enunciamos no próximo teorema169: Teorema 51: Em geometria elíptica, a linha recta tem comprimento finito. Sejam agora A e B dois pontos quaisquer, não conjugados; o menor dos dois segmentos que eles determinam diz-se o segmento agudo e o maior dos dois segmentos é o segmento obtuso. Temos então a seguinte definição: Definição 39: A distância (elíptica) entre os pontos A e B é o comprimento do segmento agudo por eles determinado; se A e B forem conjugados, a distância entre eles é igual a λ. Interessa-nos ter um processo para determinar facilmente a distância entre dois pontos. Para tanto, vamos recorrer aos resultados obtidos no capítulo anterior sobre a representação analítica das involuções. Vimos no Teorema 32, segundo capítulo , que uma involução elíptica pode ser escrita, em termos de abcissas não homogéneas, na forma canónica xx'+1 = 0 ; suponhamos que os pontos P0 , P1 e P∞ da recta foram escolhidos de modo que a involução absoluta Ω esteja na forma canónica. Da relação 1 xx'+1 = 0 , resulta que se um ponto tiver abcissa t, o seu conjugado terá abcissa − . Ora t (Teorema 33 do capítulo anterior), a involução que tem os pontos Pa e Pb como pontos duplos pode ser descrita por xx'− 1 (a + b )(x + x') + ab = 0 . 2 1 Se fizermos nesta fórmula a = t e b = − , obtemos o seguinte resultado: t 168 169 De extremos distintos. E que contrasta fortemente com o que se passa em geometria euclidiana (ou hiperbólica). - 82 - Teorema 52: A forma geral de uma simetria, em função da abcissa não homogénea t é 1 1 xx'− t − ( x + x' ) − 1 = 0 (se t ≠ 0) ; se t = 0 , a simetria em relação a P0 é dada por 2 t x + x' = 0 . Demonstração: A primeira parte do teorema já foi justificada nas considerações anteriores; quanto à outra afirmação, basta aplicar a fórmula x + x' = 2 s , obtida na segunda parte do Teorema 33 do capítulo anterior com s = 0. ■ Finalmente, pode-se obter uma fórmula análoga para as translações atendendo ao resultado anterior e ao facto de qualquer translação poder ser escrita como composta de duas simetrias, uma das quais é arbitrária (Teorema 44, alínea e). Tem-se assim o seguinte resultado: Teorema 53: Nas notações do teorema anterior, a fórmula para uma translação 1 1 arbitrária é xx'− t − ( x − x' ) + 1 = 0 . 2 t Demonstração: Escolhendo para simetria arbitrária a simetria em P0 , substituímos x por − x na 1 1 fórmula da simetria geral xx'− t − ( x + x' ) − 1 = 0 obtida no teorema anterior; 2 t 1 1 obtém-se xx'− t − ( x − x' ) + 1 = 0 , como queríamos. ■ 2 t O Teorema anterior tem várias consequências interessantes; a utilização da trigonometria usual nas provas que se seguem ilustra, de certa maneira, a natureza essencialmente “circular” da recta projectiva. Corolário 1: Recorrendo a três substituições trigonométricas convenientes 1 1 1 x = tg ξ, x' = tg ξ' , t = tg θ , a fórmula xx'− t − ( x − x' ) + 1 = 0 transforma-se 2 t 2 em ξ' = ξ + θ (mod π) . Demonstração: A demonstração consiste numa série de manipulações engenhosas com fórmulas trigonométricas. Isolando t no segundo membro, a fórmula do teorema transforma-se - 83 - x − x' 2t 1 = , o que sugere a mudança de variável170 t = tg θ . Pela fórmula da 2 1 + xx' 1 − t 2 duplicação do ângulo para a tangente, o segundo membro é tan θ ; por outro lado, se x − x' x − x' tgξ − tgξ' , obtemos fizermos x = tg ξ, x' = tg ξ' em = = tg (ξ − ξ') , pela 1 + xx' 1 + xx' 1 + tgξ ⋅ tgξ' fórmula da tangente da diferença. x − x' 2t A fórmula = transforma-se assim em tg (ξ − ζ ') = tg θ , donde 1 + xx' 1 − t 2 ξ' = ξ + θ (mod π) como queríamos.■ em 1 1 Corolário 2: A fórmula xx'− t − ( x − x' ) + 1 = 0 pode ser escrita na forma 2 t x cos θ + senθ alternativa x' = . − xsenθ + cos θ Demonstração: 1 1 Comecemos por ver que da fórmula xx'− t − ( x − x' ) + 1 = 0 se segue que 2 t 1 1 xx'+( x − x')cotg θ + 1 = 0 ; para tanto, basta provar que − t − = cotg θ , o se reduz a 2 t uma série de manipulações com fórmulas trigonométricas: θ π θ sen − + 1 1 1 θ 1 1 θ 1 π θ 2 2 2 = − t − = − tg − = − tg − tg − = − θ 2 t 2 2 2 2 2 θ π θ 2 2 tg cos cos − 2 2 2 2 π sen θ − 1 2 cos θ =− = = cotg θ 2 θ θ senθ cos sen 2 2 Para concluir a prova basta resolver em ordem a xx'+( x − x')cotg θ + 1 = 0 . ■ x' a fórmula 170 Esta mudança de variável (dita fórmula dos tt) é bem conhecida da teoria das equações trigonométricas (veja-se [Ca], páginas 132 e 188) e baseia-se no teorema “Todas as funções circulares do ângulo duplo exprimem-se racionalmente na tangente do ângulo simples”; tem ainda notáveis aplicações em Cálculo Integral, permitindo reduzir (em princípio…) a primitivação de qualquer função racional das funções trigonométricas usuais à primitivação de fracções racionais (veja-se [GS], páginas 397 a 399). - 84 - O corolário 1 permite-nos analisar mais aprofundadamente os efeitos das π translações na recta projectiva: se ξ percorre o intervalo 0, , tg ξ aumenta de zero a 2 π ∞ e quando percorre o intervalo , 0 , tg ξ varia de ∞ a zero, por valores negativos. 2 O ponto (ξ) descreve então a recta projectiva sob o efeito da família de translações correspondente, Ω n n∈[0, 2[ . A fórmula ξ' = ξ + θ (mod π) mostra que se as translações ( ) n m Ω e Ω aplicam a origem nos pontos (ξ) e (θ), respectivamente, então a translação Ω n+ m , aplica a origem no ponto (ξ + θ) . Podemos então concluir que, à medida que ξ 1 aumenta, o expoente n aumenta também e que Ω n aplica a origem em πn , ou, por 2 outras palavras, que o comprimento do segmento de extremos (0) e (ξ) (ou, mais geralmente, de (θ) a (ξ + θ)), é proporcional a ξ; se atendermos à Definição 38, o 2ξλ referido comprimento é . π Para terminar, vamos obter uma fórmula que permite calcular o comprimento de um segmento independentemente dos pontos P0 , P1 e P∞ . Sejam então A e B dois pontos e A' e B' os seus conjugados, com vista a calcular o comprimento de AB. Se A e 1 B correspondem a (ξ) e (η) respectivamente, os seus conjugados serão ξ ± π e 2 1 η ± π e as abcissas dos quatros pontos são (atendendo à transformação x = tg ξ ) 2 tg ξ , tg η , − cotg ξ e − cotg η , respectivamente. Calculemos agora a razão cruzada {AA' , BB'}. Da definição 31 do capítulo anterior, vem: {AA' , BB'} = (tg ξ − tg η)(− cotg ξ + cotg η) , (tg ξ + cotg η)(− cotg ξ − cotg η) {AA' , BB'} = − tg 2 (η − ξ) , após manipulações expressão esta que se reduz a trigonométricas semelhantes às feitas anteriormente. Deste resultado e das considerações feitas por aplicação do corolário 1 do último 2θλ teorema, resulta que se o segmento AB tiver comprimento , então π {AA' , BB'} = − tg 2 θ . Aplicando então o Teorema 34 do capítulo anterior, vem que {AB, B' A'} = cos 2 θ . Obtém-se finalmente o seguinte resultado, que permite exprimir o comprimento de um segmento elíptico de forma independente dos pontos P0 , P1 e P∞ considerados na recta projectiva: - 85 - Teorema 54: O comprimento do segmento AB pode ser dado por 2λ AB = arcos ± {AB, B'A' } , sendo a ambiguidade do sinal ± determinada pelo π sentido do terno de pontos ABA' . ■ ( ) Até aqui, nada dissemos sobre o valor de λ, para além do facto óbvio de ter de ser um número positivo. Se pensarmos nos dois modelos que temos vindo a considerar, π vemos que no primeiro caso se deve tomar λ = e no segundo λ = π para que a nossa 2 medida coincida com a medida circular usual. Nos termos do Teorema 51, isto implica que a linha recta tem comprimento π (no primeiro modelo) e 2π (no segundo modelo). 3. Geometria elíptica bidimensional Como referimos no início do capítulo, o “espaço ambiente” natural para o estudo da geometria elíptica bidimensional é constituído pela totalidade do plano projectivo171, no qual consideraremos definida uma polaridade elíptica arbitrária, mas que se manterá fixa durante toda a discussão172. Essa polaridade será designada por polaridade absoluta173 e as noções a ela associadas receberão o mesmo qualificativo; assim, falaremos em pólo absoluto, polar absoluta, etc. É óbvio que todos os resultados do capítulo anterior são válidos em geometria elíptica bidimensional; o que não é tão evidente é que a teoria desenvolvida no estudo do caso unidimensional seja facilmente aplicável na situação que estamos agora a estudar174. O seguinte teorema esclarece a situação. Teorema 55: Uma polaridade induz uma involução de pontos conjugados em qualquer recta que não seja auto-conjugada (e, dualmente, uma involução de linhas conjugadas que incidam com qualquer ponto não auto-conjugado); uma polaridade elíptica no plano projectivo induz em qualquer recta projectiva uma involução elíptica. Demonstração: A demonstração da primeira afirmação foi feita no capítulo anterior (lema 5, no início da secção sobre cónicas). Não vamos provar a segunda; o leitor interessado pode consultar [Cox1], páginas 55 e 56 (a título de curiosidade, nesta obra, analisa-se 171 No estudo da geometria elíptica bidimensional recorreremos de modo geral ao modelo do plano projectivo apresentado no capítulo anterior que consiste numa superfície esférica do espaço euclidiano tridimensional na qual se identificam os pontos diametralmente opostos. 172 Referir-nos-emos frequentemente ao plano elíptico com o significado de geometria elíptica bidimensional. 173 Para facilitar a compreensão desta noção, reparemos que no modelo referido na nota anterior, é possível estabelecer uma correspondência associando a cada recta projectiva (círculo máximo determinado por um plano passando pelo centro) o par de pontos euclidianos (ponto projectivo) determinado pela intersecção da recta perpendicular a esse plano e que passa pelo centro da superfície esférica com a superfície em questão. A polaridade elíptica para o modelo referido consiste nesta correspondência. 174 Não nos devemos deixar iludir pela terminologia; as noções de “involução elíptica” (caso unidimensional) e “polaridade elíptica” (caso bidimensional) são diferentes, conforme se viu no capítulo anterior e não é obvio que exista qualquer relação entre elas. - 86 - também o que se passa no caso das polaridades hiperbólicas, que é consideravelmente mais complicado). ■ Em particular, podemos assim aproveitar do estudo já feito todos os resultados relativos à congruência e medida de segmentos e distância entre dois pontos. Tendo em atenção o modelo do plano projectivo que vamos privilegiar (ver nota 171), fixaremos 2λ π em o valor da constante positiva λ da fórmula AB = arcos ± {AB, B'A' } ; assim, 2 π o comprimento de qualquer linha projectiva será sempre igual a π. ( ) Após estas considerações, vamos introduzir uma noção fundamental, definindo a noção de perpendicularidade entre linhas (e entre pontos175), segundo Félix Klein. Definição 40: Duas linhas (ou dois pontos) dizem-se perpendiculares se forem conjugados em relação à polaridade absoluta. Resulta imediatamente da definição que qualquer linha incidente com um ponto A é perpendicular à polar absoluta do ponto A e qualquer ponto incidente com uma linha a é perpendicular ao pólo absoluto da linha a. Dadas duas linhas perpendiculares, podemos considerar o triângulo formado pelas duas e pela recta polar do seu ponto de intersecção; trata-se de um triângulo autopolar, no sentido visto no capítulo anterior (recordemos que, no contexto da geometria elíptica, perpendicular significa conjugado). Dois quaisquer dos seus lados são perpendiculares, o mesmo sucedendo com dois quaisquer dos seus vértices. Na próxima figura, tentamos ilustrar um triângulo auto-polar. Figura 28 175 À primeira vista, pode parecer bizarro estarmos a definir pontos perpendiculares; se o leitor recordar a importância da noção de dualidade em geometria projectiva, verá que isso não é tão despropositado como parece de início. - 87 - 3.1 Congruências, simetrias e rotações Passemos a considerar as transformações de congruência do plano elíptico, no espírito do Programa de Erlangen. Definição 41: Uma transformação de congruência (ou, mais simplesmente, uma congruência) é uma colineação que permuta com a polaridade absoluta (logo, uma congruência preserva o comprimento dos segmentos, em virtude da teoria desenvolvida para o caso unidimensional e do teorema 16 do capítulo anterior). É evidente que a identidade é uma congruência, que a inversa de uma congruência é uma congruência e que a composta de duas congruências é ainda uma congruência; na verdade, o conjunto de todas as congruências do plano elíptico, algebrizado com a composição usual de aplicações, tem a estrutura de grupo. Interessa-nos agora ver exemplos de congruências não triviais (isto é, distintas da identidade); para isso, vamos definir simetrias e rotação em geometria elíptica bidimensional176, começando por introduzir a noção mais geral de homologia harmónica e aproveitando para referir de forma sucinta algumas propriedades destas transformações177. Definição 42: Homologia harmónica Seja o uma linha recta e O um ponto não incidente com o. Uma colineação que a cada ponto A faz corresponder o seu conjugado harmónico relativamente ao par de pontos O e O ' = o ∩ OA diz-se uma homologia harmónica de eixo o e centro O. Os principais resultados sobre homologias harmónicas estão contidos no seguinte teorema. Teorema 56: a) As homologias harmónicas são as únicas colineações do plano que coincidem com as suas inversas178. b) O centro e o eixo de uma homologia H determinam-na univocamente e são invariantes por meio de H. c) A composta de três homologias harmónicas cujos centros e eixos são os vértices e lados de um triângulo, é a identidade. 176 Veremos mais adiante que as rotações esgotam as transformações de congruência da geometria elíptica, no sentido de que qualquer congruência é uma rotação – um resultado surpreendente! 177 Um estudo, que, aliás, já podia ter sido feito no capítulo anterior, dado que as homologias harmónicas são transformações projectivas muito interessantes por si só e completamente independentes das geometrias não euclidianas; preferimos só as considerar neste ponto do trabalho porque apenas aqui surgem de forma natural. 178 Diz-se que têm carácter involutório. - 88 - d) Em termos de coordenadas, a homologia harmónica de centro no ponto u = (u1 , u 2 , u3 ) e eixo U = [U 1 , U 2 , U 3 ] pode ser representada por xi' = xi − 2u i { xU }, i = 1, 2, 3 , {uU } 3 3 i =1 i =1 onde, como é usual, { xU } = ∑ xiU i e {uU } = ∑ uiU i . Demonstração: Não a vamos apresentar; o leitor pode consultar [Cox2], páginas 61 a 65 (para as duas primeiras alíneas) e [Cox1], páginas 50 e 51 para a alínea c), que é um resultado de carácter essencialmente técnico, a ser utilizado mais adiante. Quanto ao resultado da alínea d), que será utilizado mais adiante na obtenção de uma expressão analítica para as rotações por meio de quaterniões, a sua justificação pode ser vista na página 81 de [Cox1].■ Podemos agora definir simetria e rotação em geometria elíptica: Definição 43: Seja o uma linha recta e O o seu pólo absoluto. A simetria de eixo o é a homologia harmónica de eixo o e centro O. Uma rotação de centro num ponto A é a composta de duas quaisquer simetrias cujos eixos são rectas passando pelo ponto A. É óbvio que tanto o centro de uma rotação como a sua polar absoluta são invariantes por meio dessa rotação. O próximo teorema é, em certo sentido, o análogo bidimensional da primeira definição deste capítulo que, relembramos, tratava das simetrias e rotações da geometria elíptica unidimensional179. Teorema 57: Qualquer simetria tem carácter involutório e é permutável com a polaridade absoluta. Demonstração: O facto de uma simetria ter carácter involutório decorre imediatamente do facto de ser uma homologia harmónica. Quanto à permutabilidade com a polaridade absoluta, sejam A um ponto do plano, B a sua imagem pela simetria de eixo na recta o e O o pólo absoluto desta recta. Sejam ainda O ' = o ∩ AB e a, b e o' as polares absolutas destas rectas (ver a figura a seguir ao corolário 2). Como uma simetria é, por definição, uma 179 Isto dito de uma forma pouco rigorosa (uma definição corresponder a um teorema…), mas sugestiva. - 89 - homologia harmónica, segue-se que H(AB, OO ' )180, donde, por dualidade, vem que H(ab, oo' ) e portanto a recta b é a imagem da recta a. ■ Corolário 1: Uma simetria transforma rectas (ou pontos) perpendiculares em rectas (ou pontos) perpendiculares. Demonstração: Decorre imediatamente do teorema e do facto de rectas (ou pontos) serem perpendiculares quando são conjugados em relação à polaridade absoluta. ■ Corolário 2: As simetrias e as rotações são congruências. Demonstração: Imediata, se repararmos que uma rotação é a composta de duas simetrias. ■ O'' a o ' o b B A' O O' B' A Figura 29 3.2 Um modelo de geometria elíptica unidimensional construído a partir da geometria bidimensional Interessa-nos agora analisar o efeito das transformações descritas nas linhas projectivas, considerando a geometria elíptica unidimensional nelas induzida pela polaridade elíptica, de acordo com o Teorema 55; obteremos, como se vai ver, um outro modelo de geometria elíptica unidimensional, de aspecto algo bizarro mas muito interessante: vai permitir atribuir amplitude às rotações e será utilizada na caracterização de todas as congruências do plano elíptico. Para tanto, comecemos por ver qual o resultado de compor simetrias de eixos perpendiculares, um resultado que é importante por si só. Teorema 58: A composta das simetrias cujos eixos são duas rectas perpendiculares é a simetria cujo eixo é a perpendicular comum a essas duas rectas. 180 Tenha-se presente a simetria da relação harmónica (corolário do teorema 4 do capítulo anterior). - 90 - Demonstração: Sejam a e b as duas rectas perpendiculares e consideremos o triângulo auto-polar a elas associado. Pelo Teorema 56, alínea c), o produto das simetrias nos três lados deste triângulo é a identidade; o resultado segue-se imediatamente se pensarmos no carácter involutório das simetrias. ■ Consideremos agora uma rotação de centro no ponto O e seja o a sua polar absoluta. A cada segmento PQ da recta polar o, associamos a rotação que se obtém compondo as duas simetrias de eixos OP e OQ. Esta rotação induz na recta projectiva o uma translação P ΨR = P Φ P Q Φ Q , onde R é a imagem de P por simetria em Q (vejam-se as observações a seguir ao Teorema 44 deste capítulo). É particularmente interessante o caso em que o segmento PQ é recto; então os pontos P e Q são perpendiculares, o ponto P e o ponto R coincidem e, em virtude do Teorema 58, a rotação degenera numa simetria de eixo o. É então possível obter um modelo de geometria elíptica unidimensional tomando como “pontos” os segmentos emanados de O, como “involução absoluta” Ω a rotação referida e como “translações” as rotações em torno de O. Toda a teoria exposta para a geometria elíptica unidimensional pode obviamente ser aplicada a este modelo, particularmente os resultados sobre distância e medida de “segmentos”; é conveniente tomar para a constante λ da fórmula do comprimento o valor π de forma a haver acordo com a medida circular usual. Para prosseguir o estudo, temos de definir o que se vai entender por ângulo entre segmentos. Definição 44: Diz-se que dois segmentos OP e OR formam um ângulo ∠POR de amplitude θ se o segmento OR se obtém do segmento OP por meio da transformação θ Ω π (pode ver-se a definição destas potências nas considerações que antecedem o Teorema 50), que será considerada uma rotação de amplitude θ. Repare-se que esta rotação é, na linha projectiva o, uma translação e que o segmento PR tem comprimento θ , ao passo que o segmento PQ tem comprimento θ 2 181, o que explica o facto algo paradoxal de o “ângulo total” num ponto ser 2π, ao passo que o comprimento de uma recta é apenas π !! Necessitamos agora de definir sentido, de forma a podermos distinguir dois ângulos ∠POR e ∠ROP, cuja soma é obviamente 2π, de acordo com a observação anterior. Reparemos que OP pode designar qualquer um de dois segmentos rectos suplementares; assim, consideramos um ponto arbitrário A no segmento que nos interessa e um ponto arbitrário C no segmento OR e utilizamos a notação ∠AOC para designar o ângulo entre as linhas orientadas OAP e OCR. Se dois pontos A e A' pertencerem a segmentos suplementares, então os ângulos ∠AOA' e ∠A' OA têm ambos a amplitude π. Tem-se então o seguinte resultado, que é consequência imediata do Teorema 58: 181 Porque no primeiro caso estamos a dar a λ o valor π e no segundo o valor π/2, de acordo com as convenções anteriormente indicadas. - 91 - Teorema 59: A simetria cujo eixo é a recta o equivale a uma rotação de amplitude π em torno do pólo absoluto O. Na próxima secção veremos como utilizar este modelo da geometria elíptica unidimensional para o estudo do plano elíptico. 3.3 Caracterização das congruências do plano elíptico Já mostrámos que uma simetria é uma congruência; vejamos o que se pode dizer quanto à recíproca. Teorema 60: Uma congruência, distinta da identidade e que preserva dois pontos distintos, é uma simetria. Demonstração: Sejam O e A os dois pontos em causa e suponhamos que eles não são perpendiculares (relembremos que perpendiculares no plano elíptico significa conjugados em relação à polaridade absoluta!). Então, a congruência preserva tanto a polar absoluta de O (recta o) como o ponto O ' = o ∩ OA , pelo que preserva três pontos distintos e portanto preserva todos os pontos da recta OA, pelo Teorema 10 do capítulo anterior. A projectividade induzida na recta o é a identidade ou a simetria (unidimensional) em O' . No primeiro caso, a congruência reduz-se à identidade, pelo Teorema 17 do capítulo anterior. No segundo, a congruência é a simetria de eixo OA, já que a composta da congruência dada com a simetria de eixo AO preserva tantos os pontos de o como os pontos de AO. Por outro lado, se os pontos invariantes (digamos O e O' ) forem conjugados, pode darse o caso de todos os pontos de OO ' serem invariantes e a conclusão segue-se como anteriormente; se não for esse o caso, a projectividade induzida em OO ' será a simetria (unidimensional) em O. Nesta última hipótese, a congruência terá de ser a simetria de eixo o ou a simetria de eixo o' , já que a sua composta com a simetria de eixo o preserva todos os pontos de OO ' e é portanto a identidade ou a simetria de eixo OO ' . ■ Podemos apresentar agora o principal resultado desta secção, que caracteriza todas as congruências da geometria elíptica bidimensional Teorema 61: Toda a congruência é uma rotação.182 Demonstração: Sabe-se (Teorema 38 do capítulo anterior) que qualquer colineação tem pelo menos um ponto invariante. Em virtude dos Teorema 58 e 60, basta considerar o caso em que a congruência tem exactamente um ponto fixo O, já que uma simetria equivale a uma rotação. Consideremos a sua polar absoluta o; a congruência induz nela uma projectividade elíptica permutável com a involução absoluta, ou seja, uma translação. Seja θ a sua amplitude. Esta translação poderia ser induzida por uma rotação de ângulo 182 Trata-se de um resultado notável, marcando uma profunda diferença entre a geometria elíptica e as geometrias euclidiana e hiperbólica. - 92 - θ em torno do ponto O. Consideremos agora a composta da congruência dada com a inversa desta rotação, que vai deixar invariante os pontos da recta o, pelo que é a identidade ou a simetria de eixo o, que coincide com a rotação de ângulo π em torno de O. Segue-se que a congruência dada é uma rotação de centro O e ângulo θ (ou θ + π ). ■ Corolário: A composta de duas rotações é uma rotação. Demonstração: Decorre imediatamente do teorema anterior, se pensarmos que a composta de duas congruências é ainda uma congruência. Para concluir esta secção, referimos, sem demonstração183, alguns factos sobre simetrias e rotações, contidos no seguinte teorema, e apresentamos sumariamente algumas fórmulas para o cálculo de distâncias e ângulos no plano elíptico: Teorema 62: a) Se duas simetrias em torno de eixos distintos são permutáveis, os seus eixos são perpendiculares. b) Se duas rotações têm o mesmo centro, elas são permutáveis. c) Se duas rotações em torno de pontos distintos são permutáveis, então são rotações de amplitude π em torno de pontos perpendiculares.■ ( ) π 2λ na fórmula AB = arcos ± {AB, B'A' } , 2 π resulta que os comprimentos dos dois segmentos determinados pelos pontos A e B são dados por arcos ± {AB, B'A' } , onde, como já se viu, A' e B' são os pontos em que a recta AB intersecta as polares absolutas a e b (de A e B, respectivamente). Utilizando a razão cruzada mista184 obtém-se a seguinte fórmula alternativa para estes comprimentos AB = arcos ± {AB, ba} . Os ângulos entre as duas rectas a e b têm precisamente estes mesmos valores, em virtude do estudo feito na secção anterior, o que nos permite escrever por dualidade ∠(a, b) = arcos ± {ab, BA} . Finalmente, a distância do ponto A à recta b185 é dada por Em virtude de termos feito λ = ( ( ) ) ( d ( A, b) = arcsen ( ) ) AB, ba . 183 As justificações podem encontrar-se em [Cox1], páginas 118 a 120. Ver capítulo 2, secção 6.4 185 Definida como a menor das distâncias entre o ponto A e um qualquer ponto da recta b; prova-se ([Cox1], página 117) que é a distância medida ao longo da perpendicular, como sucede na geometria euclidiana e pode ser obtida calculando o complemento da distância entre o ponto A e o pólo absoluto B da recta b. 184 - 93 - Consideremos agora um sistema de coordenadas, em que os pontos e rectas em causa são dados por A = (a ), B = (b), a = [ X ] e b = [Y ] 186; sabemos então que a razão {xY }{yX } , conforme se viu no capítulo cruzada mista {AB, ba} é dada pela expressão {xX }{yY } anterior. Por substituição nas expressões anteriores, obtemos as fórmulas correspondentes substituindo a expressão da razão cruzada mista nas fórmulas apresentadas. Por exemplo, a fórmula dos comprimentos é: AB = arcos ± {xY }{yX } {xX }{yY } Estas fórmulas podem ser consideravelmente simplificadas, recorrendo a uma transformação de coordenadas apropriada. Para esse efeito, combinemos os Teoremas 41 e 42 do capítulo anterior, na parte que diz respeito às polaridades elípticas: “Se o triângulo de referência for auto-polar, é possível transformar as coordenadas de forma a preservar o triângulo de referência (alterando o ponto unitário) de modo a que X 1 = x1 uma polaridade elíptica assuma a forma canónica X 2 = x2 .” X = x 3 3 Aplicando este resultado, a expressão da razão cruzada mista pode ser escrita em qualquer uma das seguintes formas: { AB, ba} = {xy}2 = {xY }2 = {XY }2 . {xx}{yy} {xx}{YY } {XX }{YY } Por substituição, obtemos finalmente o seguinte resultado: Teorema 63: Num sistema de coordenadas em que a polaridade elíptica esteja na forma canónica, são válidas as seguintes fórmulas para o comprimento de um segmento AB e para o ângulo entre duas rectas a e b AB = arcos ± {xy} e ∠(a, b) = arcos ± {XY } . ■ {xx}{yy} {XX }{YY } Corolário: Os pontos A e B são perpendiculares se e só se {xy} = 0 e as rectas a e b são perpendiculares se e só se {XY } = 0 . 186 Suporemos, em tudo o que se segue, esta atribuição de coordenadas aos pontos e rectas em causa. - 94 - Demonstração: Imediata, a partir das fórmulas do teorema. Na linha do que se viu no Teorema 54 deste capítulo, o problema da escolha do sinal nas fórmulas anteriores é bastante delicado. Assim, adoptamos a convenção de considerar o sinal positivo na fórmula do comprimento de segmentos e o sinal negativo na fórmula do ângulo entre duas rectas; para uma justificação desta convenção, bem como para as condições da sua validade, que suporemos sempre verificarem-se, o leitor pode ver [Cox1], paginas 121 e 122. O resultado final, em termos das fórmulas para o comprimento de um segmento, ângulo entre duas rectas e distância de um ponto a uma recta, está expresso no seguinte teorema. Teorema 64: Num sistema de coordenadas em que a polaridade elíptica esteja na forma canónica, são válidas as seguintes fórmulas para o comprimento de um segmento AB, e para o ângulo entre duas rectas a e b e para a distância do ponto A à recta b. AB = arcos {xy} {xx}{yy} ∠(a, b) = arcos d ( A, b) = arcsen − {XY } {XX }{YY } {xY } . {xx}{YY } Demonstração: Basta aplicar a convenção anterior às fórmulas obtidas ao longo desta secção.■ Uma aplicação interessante é a obtenção da equação de uma circunferência no plano elíptico. Comecemos pela definição, que é análoga à definição de circunferência no plano euclidiano: Definição 45: Seja O um ponto do plano projectivo e R um número real positivo e menor ou igual a π / 2 (é necessária esta restrição porque no plano projectivo não há distâncias superiores a π/2). A circunferência de centro O e raio R é o lugar geométrico dos pontos do plano projectivo cuja distância a O é igual a R. - 95 - Suponhamos então que O = (z ) ; resulta da fórmula para a distância entre dois pontos que a circunferência de centro O e raio R pode ser descrita pela fórmula {zx}2 = {zz}{xx}cos 2 R , que pode ser ainda simplificada se substituirmos as coordenadas dos pontos por múltiplos tais que {xx} = 1 187. Obtemos finalmente a equação normalizada da circunferência {zx} = cos R . 3.4 . Estudo analítico das rotações; quaterniões O estudo das rotações do espaço tridimensional ocupou muitos matemáticos durante a segunda metade do século XVIII e XIX, não só devido ao seu grande interesse teórico, mas também pelas suas aplicações à Mecânica188. Os resultados obtidos aplicam-se de forma natural ao estudo das rotações do plano elíptico e, por sua vez, os métodos de tipo projectivo podem ser usados para melhor esclarecer o problema fundamental da composição das rotações da esfera189. Comecemos por recordar de forma sumária algumas definições e resultados de Álgebra Linear. Definição 46: Seja V um espaço euclidiano. Chamaremos rotação de V a um isomorfismo ortogonal directo de V. Se A for um espaço afim associado ao espaço euclidiano V, uma rotação de A é uma isometria directa de A que deixa fixa um ponto de A, dito centro da rotação. Os resultados enunciados no seguinte teorema são bem conhecidos da Álgebra Linear, pelo que nos dispensamos de os provar. Teorema 65: Sejam V um espaço euclidiano e A o espaço afim associado. Então: a) O conjunto das rotações de V, algebrizado da forma usual, é um grupo, que representaremos por Rot(V). b) Se O for um ponto de A, o conjunto das rotações de A, com centro em O, algebrizado da forma usual, é um grupo, que representaremos por RotO(A). c) A aplicação que a cada rotação de A com centro O faz corresponder o isomorfismo de V que lhe está associado é um isomorfismo entre os grupos RotO(A) e Rot(V). ■ 187 É possível fazer isto devido à natureza homogénea das coordenadas em geometria projectiva; repare-se que isto equivale a considerar o modelo do plano projectivo constituído pela superfície esférica euclidiana na qual se identificam os pontos diametralmente opostos, que foi descrito na secção final do capítulo anterior. 188 Ainda hoje a obtenção de processos eficazes de determinar a composta de várias rotações é um problema muito importante, com aplicações em campos tão diversos como a robótica, os satélites artificiais e os jogos de computador. 189 Atendendo ao modelo do plano elíptico que consiste na superfície esférica unitária do espaço tridimensional usual com os pontos diametralmente opostos identificados. - 96 - Até aqui, nada dissemos sobre as dimensões dos espaços em causa; a partir deste ponto, consideraremos apenas espaços tridimensionais. Definição 47: Seja V um espaço euclidiano tridimensional e a um vector não nulo. Chama-se rotação de V em torno de a a qualquer rotação de V que deixe a invariante; o conjunto destas rotações será representado por Rot a (V ) . Se A for um espaço afim associado a V, e l uma recta de A, uma rotação em torno de l é uma rotação de A que deixa invariantes os pontos da recta l, que se diz eixo da rotação; representaremos o conjunto destas rotações por Rot l (A ) . Tem-se o seguinte resultado bem conhecido da Álgebra Linear: Teorema 66: Seja V um espaço euclidiano tridimensional, a um vector não nulo e Φ uma rotação em torno de a. Se considerarmos uma base o.n. (i, j, k ) tal que i e a sejam colineares, a matriz da rotação Φ é da forma 0 0 1 0 cos α − sen α 0 sen α cos α para um certo número α ∈ ]− π, π] . ■ O teorema anterior vai-nos permitir definir o que se entende por ângulo de uma rotação, primeiro num espaço euclidiano e depois num espaço afim. Definição 48: Seja V um espaço euclidiano orientado tridimensional e a um vector não nulo. Uma rotação de V em torno de a diz-se de ângulo α se numa base o.n. directa (i, j , k ) tal que i = ta, com t > 0 , a matriz da rotação for 0 0 1 0 cos α − sen α . 0 sen α cos α - 97 - A definição correspondente para espaços afins é a seguinte: Definição 49: Seja A um espaço afim associado ao espaço euclidiano orientado tridimensional V, l uma sua recta orientada e a um vector pertencente à orientação de l. Uma rotação em torno da recta l diz-se de ângulo α se o isomorfismo vectorial que lhe está associado for uma rotação de V em torno de a de ângulo α. A questão da relação entre centro e eixo de uma rotação é esclarecida pelo seguinte teorema, no qual é fundamental o facto da dimensão do espaço ser ímpar190. Na linha do que vimos até aqui, o resultado tem uma “versão vectorial” e uma “versão afim” Teorema 67: Sejam V um espaço euclidiano tridimensional e A o espaço afim associado. Então: a) Se Φ é uma rotação de V, então existe um vector a tal que Φ ∈ Rot a (V ) ; se Φ ∈ Rot a (V ) ∩ Rot b (V ) , onde os vectores a e b são não colineares, então Φ é a identidade em V. b) Se Φ é uma rotação de A, de centro no ponto O, então existe uma recta l incidente com o ponto O tal que Φ ∈ Rot l (A ) ; se Φ for uma rotação em torno de dois eixos distintos, então Φ reduz-se à identidade em A. Demonstração: Não a vamos apresentar; o leitor interessado pode consultar [Pos1], páginas 260 a 262. ■ O primeiro grande passo no estudo analítico das rotações foi a prova por Leonard Euler (1707-1783), em 1775, de um notável teorema, que a seguir enunciamos, utilizando naturalmente a terminologia actual. Teorema 68 (Teorema de Euler para rotações) Sejam V um espaço euclidiano tridimensional, Φ uma rotação de V, (i, j , k ) uma base o.n. de V. Então existem três números ϕ, θ e ψ (ditos ângulos de Euler da rotação) verificando −π<ϕ≤ π, 0≤θ≤ π e −π<ψ ≤ π 190 Para que o polinómio característico tenha pelo menos um zero real e consequentemente a transformação tenha vectores próprios não nulos, conforme se pode ver na demonstração apresentada na referência citada. - 98 - tais que a matriz da rotação nesta base é igual ao produto 0 0 cos ψ − sen ψ 0 cos ϕ − sen ϕ 0 1 sen ϕ cos ϕ 0 0 cos θ − sen θ sen ψ cos ψ 0 0 0 1 0 sen θ cos θ 0 0 1 Se Φ ( k ) ≠ ± k , os números ϕ, θ e ψ são únicos. Demonstração: É bastante longa e difícil; tal como para o teorema anterior, não a vamos fazer, sugerindo ao leitor a consulta de [Pos1], páginas 262 a 264. Embora seja um resultado notável, o Teorema de Euler não resolve de forma satisfatória muitos problemas das rotações: para além de exigir cálculos extremamente pesados (experimente-se escrever explicitamente o produto das matrizes acima…), não permite determinar facilmente as características (eixo e ângulo) da composta de duas rotações191. Este problema foi resolvido em 1840 pelo matemático francês Olinde Rodrigues (1795-1851), que, recorrendo à trigonometria esférica, apresentou uma notável construção geométrica para a determinação do eixo e ângulo da rotação composta192. Curiosamente, poucos anos depois, Sir William Rowan Hamilton (18051865) descobriu um tipo de número que veio a desempenhar papel fundamental no estudo analítico das rotações: os quaterniões193. Embora Hamilton tivesse chegado à descoberta dos quaterniões por via algébrica, rapidamente surgiu a ideia de os aplicar à geometria, mais concretamente ao estudo das rotações, por analogia com o que se passa com a multiplicação dos números complexos usuais; como é bem sabido, a aplicação z a e i θ ⋅ z corresponde a uma rotação de amplitude θ em torno da origem no plano de Argand. Infelizmente, a generalização natural desta ideia não funciona no conjunto H dos quaterniões. Com efeito, seja w = (0 ,b,c,d ) = bi + cj + dk um quaternião puro qualquer194, identificável de forma natural ao vector de R3 (b, c, d ) ; se fosse possível identificar uma rotação com o simples produto195 de w por um quaternião conveniente q, a aplicação de H em H definida por w a q ⋅ w deveria transformar quaterniões puros em quaterniões puros, o 191 Estamos aqui a adiantar-nos um pouco; como veremos mais adiante, a composta de duas rotações é ainda uma rotação (um resultado provado também por Euler, em 1772 e que, aliás, já vimos ser válido no plano elíptico). 192 Para a vida e obra de Olinde Rodrigues, um grande matemático algo esquecido, sugerimos a leitura do artigo [Alt]. 193 No que se segue, utilizaremos alguma terminologia e resultados elementares da teoria dos quaterniões; o leitor menos familiarizado com o tema poderá consultar o Apêndice A ou então a referência [Cer]. 194 Nalgumas obras mais antigas, os quaterniões puros até são denominados “vectores”, por motivos óbvios. 195 Como a multiplicação quaterniónica não é comutativa, poder-se-ia considerar a possibilidade de efectuar um produto à esquerda; o argumento que apresentamos é, no entanto, válido também para este caso. - 99 - que é, em geral, falso196. Para além desta dificuldade, as aplicações dos quaterniões à geometria foram prejudicadas por alguns erros e problemas de interpretação nos primeiros trabalhos sobre o assunto (veja-se o já citado artigo [Alt] para uma descrição mais completa). Foi Arthur Cayley quem, em 1845, provou um notável teorema que muito facilitou a utilização dos quaterniões no estudo das rotações, embora tenham subsistido problemas de interpretação dos resultados que só muito mais tarde, em pleno século XX, vieram a ser esclarecidos197. Após esta introdução, vejamos como se podem aplicar os quaterniões ao estudo das rotações, tendo em vista, essencialmente, provar o teorema de Cayley anteriormente referido. Necessitamos de um resultado auxiliar sobre colineações: Teorema 69: Dada a colineação definida por x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) , consideremos a correspondência inversa x j = A1 j x'1 + A2 j x'2 + A3 j x'3 ( j = 1, 2, 3) e seja a11 ∆ = a 21 a31 a12 a 22 a32 a13 a23 a33 198 . Então, pode-se supor que os números Aij são tais que ∑a ij Ai k = δ j k . Demonstração: Este teorema é, na realidade, um corolário do Teorema 38 do capítulo anterior; com efeito, vimos então que os números Aij são proporcionais aos co-factores dos aij no determinante ∆; como estão definidos a menos do produto por uma constante não nula, podemos supor que são tais que o co-factor de aij é exactamente ∆Aij ; o resultado decorre então imediatamente da regra do determinante do produto e do facto de o produto de uma matriz pela sua inversa ser a matriz identidade. ■ Vejamos então um primeiro resultado de carácter analítico sobre rotações: 3 Teorema 70: Se uma colineação deixa a forma quadrática {xx} = ∑ xi2 invariante, ela é i =1 uma rotação. Um exemplo simples: i 2 = i ⋅ i = (0,1, 0, 0 ) ⋅ (0,1, 0, 0) = (− 1, 0, 0, 0 ) = −1 e o número −1 não é um quaternião puro. 196 197 198 Veja-se [Sin], páginas 119 e 120. Veja-se o Teorema 38, no segundo capítulo. - 100 - Demonstração: Decorre do teorema anterior e do facto de uma colineação ser uma rotação quando permuta com a polaridade absoluta. Com efeito e supondo desde já que a polaridade absoluta está na forma canónica, resulta dessa permutabilidade que aij = Aij e portanto a “condição de ortogonalidade” vista no teorema anterior, escrita na forma ∑a ij ∑a ij Ai k = δ j k , pode ser ai k = δ j k , o que significa que a transformação x'i = ai1 x1 + ai 2 x2 + ai 3 x3 (i = 1, 2, 3) é “ortogonal”. O resultado decorre então imediatamente dos factos de uma transformação 3 ortogonal preservar produtos internos e de a forma quadrática {xx} = ∑ xi2 coincidir com i =1 o quadrado da norma usual de um vector em R3 . ■ Podemos agora enunciar e provar o Teorema de Cayley. Teorema 71: (Teorema de Cayley) A rotação de amplitude θ em torno do ponto (z) (supondo-se desde já que {zz} = 1 ) pode ser descrita pela relação x'1 i + x' 2 j + x'3 k = s −1 ( x1i + x2 j + x3 k )s 199, 1 1 onde s é o quaternião cos θ + ( z1i + z 2 j + z 3 k ) sen θ . 2 2 Demonstração: É bastante longa, pelo que vamos dividi-la em várias alíneas; suporemos sempre que a polaridade absoluta está na forma canónica. a) A transformação x'1 i + x' 2 j + x'3 k = s −1 ( x1i + x2 j + x3 k )s , onde s é um quaternião (que, sem perda de generalidade, podemos supor ter norma igual a um200), representa uma rotação. Pelo Teorema anterior, basta ver que a transformação preserva a forma quadrática {xx}. Ora tem-se: ( ) − {x' x '} = (x'1 i + x' 2 j + x'3 k ) = s −1 ( x1i + x2 j + x3 k ) s = s −1 − x12 − x12 − x12 s = −{xx} , 2 2 como queríamos. 199 200 Em Álgebra, uma aplicação deste tipo chama-se uma conjugação. Dito um quaternião unitário. - 101 - b) A cada linha recta U = [u1 , u 2 , u 3 ] , suposta desde já normalizada (no sentido de que {uu} = 1 ), podemos associar de forma natural o quaternião puro unitário u = u1i + u 2 j + u 3 k ; então, o ângulo entre duas rectas U e V pode ser calculado por meio de uma das seguintes expressões: cos ∠(U ,V ) = − 1 (uv + vu) ; 2 cos ∠(U ,V ) = {uv} . Com efeito, a parte escalar do produto de dois quaterniões puros u e v é dada por 1 qualquer uma das expressões (uv + vu) e − {uv} , conforme se verifica por um cálculo 2 directo; por outro lado, sabe-se que o ângulo entre duas rectas U e V é dado por {uv} = arcos{uv}201, donde o resultado. arcos {uu}{vv} c) A imagem do quaternião puro x = x1i + x2 j + x3 k por meio da simetria associada à recta U = [u1 , u 2 , u 3 ] pode ser dada por x ' = uxu , sendo u o quaternião puro unitário associado à linha U, nos termos da alínea anterior. Com efeito, a simetria na linha U é, por definição, a homologia harmónica de eixo U e centro no ponto u = (u1 , u 2 , u3 ) , pelo que, atendendo ao Teorema 56 pode ser escrita na forma xα' = xα − 2u α { xU }, α = 1, 2, 3 , {uU } ou ainda xα' = xα − 2u α {ux}, α = 1, 2, 3 , se atendermos ao facto de a polaridade absoluta estar na forma canónica e à normalização da linha U. Em termos de quaterniões puros, se x = x1i + x2 j + x3 k , a transformação toma a forma x ' = x − 2u{ux}, que, atendendo à alínea b) se pode escrever 201 Atenda-se a que as rectas estão normalizadas; utilizámos aqui uma convenção de sinal que tem a vantagem de o ângulo ser nulo quando os quaterniões coincidem e que é oposta à anteriormente apresentada. - 102 - 1 x ' = x − 2u{ux} = x − 2u − (ux + xu ) = x + u(ux + xu ) = uxu , se atendermos ao facto 2 202 2 de u = −1 . d) Podemos agora concluir a prova do teorema. Como se sabe, qualquer rotação é a composta de duas simetrias; sejam U = [u ] e V = [v ] as rectas respectivas. Então, atendendo à alínea c), a rotação pode ser expressa na forma x ' = vuxuv que, se −1 repararmos que (uv ) = v −1 u −1 = (− v )(− u ) = vu 203, pode ser escrita como x ' = s −1 xs , se pusermos s = −uv . Suponhamos agora que o ângulo da rotação em causa é θ; então, o ângulo entre as 1 θ rectas U e V será θ 2 . Pela alínea c), cos = − (uv + vu ) , que é a parte escalar do 2 2 204 quaternião unitário s . Para determinar a parte vectorial de s, vamos recorrer a um θ artifício, escrevendo-a na forma z ⋅ sen , onde z = z1i + z 2 j + z3 k . Então o conjugado 2 θ θ de s, s , é igual a cos − z ⋅ sen . 2 2 2 Por um lado, s ⋅ s = s = 12 = 1 ; por outro lado, se efectuarmos explicitamente os θ θ cálculos, s ⋅ s = cos 2 − z 2 sen 2 . Comparando estas duas expressões, e atendendo 2 2 à fórmula fundamental da trigonometria, vem que z 2 = −1 e portanto z é um quaternião puro unitário. Finalmente, como os quaterniões s e z comutam, vem que z = s −1 zs , o que significa que o ponto ( z ) fica invariante pela transformação x ' = s −1 xs , concluindo assim a prova do Teorema de Cayley. ■ Corolário: Para determinar a composta de duas rotações, basta multiplicar os quaterniões correspondentes. Demonstração: É imediata.■ A presença do factor 1/2 na fórmula do Teorema de Cayley foi uma fonte de problemas e dificuldades de interpretação nas aplicações dos quaterniões à geometria. Estando habituados a encarar a multiplicação pelo número complexo i como uma rotação de 90º em torno da origem no plano de Argand, foi uma surpresa para os 202 O quadrado de qualquer quaternião puro unitário é −1 , um resultado surpreendente que provaremos no Apêndice A. 203 A primeira igualdade é uma propriedade algébrica bem conhecida; quanto à segunda, resulta imediatamente da propriedade enunciada na nota anterior que o inverso de um quaternião unitário é o seu simétrico. 204 Veja-se o Apêndice A. - 103 - matemáticos da época que a conjugação pelo quaternião i resultasse numa rotação de amplitude 180º (isto decorre imediatamente do facto de que se fizermos s = i na fórmula do Teorema de Cayley, então θ = π ). Outra fonte de dificuldades foi o facto de dois quaterniões simétricos gerarem a θ θ mesma rotação205. Com efeito, se s = cos + z ⋅ sen corresponder a uma rotação 2 2 de ângulo θ, um cálculo imediato mostra que a rotação de amplitude θ + 2π está θ + 2π θ + 2π associada ao quaternião cos + z ⋅ sen = −s . O leitor interessado em 2 2 mais informações sobre estas controvérsias pode consultar [Sin] e as referências aí indicadas. Para terminar o capítulo, e a título de curiosidade, apresentamos uma versão moderna do Teorema de Cayley, que encontrámos em [Toth]; não deixa de ser interessante e instrutivo compará-la com a versão mais clássica que utilizámos no texto. Teorema 72: A aplicação ψ que associa a cada quaternião unitário q0 a transformação q a q0−1qq0 restrita ao conjunto H0 dos quaterniões puros é um epimorfismo do grupo ( ) dos quaterniões unitários S 3 sobre o grupo das isometrias lineares directas SO R3 cujo ( ) núcleo é {± 1} ; consequentemente, SO R ≅ S /{± 1}. ■ 3 3 205 Assim, a correspondência entre quaterniões unitários e rotações não é 1-1 mas sim 2-1 (ao contrário do que sucede com os números complexos unitários e as rotações em torno da origem no plano de Argand). - 104 - Capítulo 4 Geometria Hiperbólica 1. Introdução Como veremos neste capítulo, o estudo da geometria hiperbólica recorrendo a um modelo derivado do plano projectivo tem muitos aspectos semelhantes ao estudo feito para a geometria elíptica, mas também apresenta diferenças notáveis. Assim, em vez de considerarmos definida uma polaridade elíptica no plano projectivo, trabalharemos com uma polaridade hiperbólica que, tal como no capítulo anterior, será designada por polaridade absoluta e estará fixa ao longo de toda a discussão. Uma diferença fundamental é que, em vez de trabalharmos em todo o plano projectivo, consideraremos apenas os pontos projectivos interiores à cónica definida pela polaridade absoluta, que serão os pontos hiperbólicos do nosso modelo; analogamente, as rectas hiperbólicas serão as “partes” das rectas projectivas usuais que estão no interior da cónica. Por este motivo, e ao contrário do que sucedia em geometria elíptica, não podemos aplicar imediatamente os axiomas e resultados de geometria projectiva vistos no segundo capítulo. Por exemplo, embora seja óbvio que dois pontos do interior da cónica definem uma única recta hiperbólica, é pura e simplesmente falso que duas rectas hiperbólicas incidam forçosamente com um mesmo ponto; o ponto em comum das rectas projectivas que lhes servem de “suporte” pode perfeitamente não estar no interior da cónica. Uma outra diferença em relação ao estudo empreendido no capítulo anterior é que não iremos considerar o caso unidimensional, porque isso não tem grande interesse. Compreende-se facilmente a razão disto se considerarmos o sistema de axiomas métricos de Birkhoff, apresentado no primeiro capítulo: resulta do axioma A10 que uma recta em geometria absoluta (e logo, em particular, em geometria hiperbólica), é isométrica à recta real206, cuja estrutura supomos bem conhecida. Após estas observações, vamos definir de forma rigorosa os principais termos do nosso modelo da geometria hiperbólica, mostrando em seguida que se verificam os axiomas usuais deste tipo de geometria. 2. Modelo projectivo207 da geometria hiperbólica plana Consideremos então uma polaridade hiperbólica e seja C a cónica208 que ela define no plano projectivo (o conjunto dos pontos auto-conjugados dessa polaridade, conforme foi visto no segundo capítulo). Os pontos do modelo que pretendemos construir são os pontos interiores da cónica; chamar-lhes-emos pontos ordinários, pontos hiperbólicos ou apenas pontos, se não houver perigo de confusão. Os pontos da cónica (que não são pontos do nosso modelo) serão chamados pontos ideais e os pontos 206 Veja-se, por exemplo, [PAV], páginas 3 e 4; nesta obra, este axioma tem a numeração A5. Também conhecido por modelo de Cayley-Klein ou ainda por modelo de Beltrami-Klein. 208 A esta cónica chamou Cayley Absoluto. 207 - 105 - exteriores à cónica, pontos ultra-ideais209 (ver a figura seguinte, onde representámos a cónica por uma circunferência, uma prática usual nas obras sobre geometria projectiva210). Figura 30 As rectas hiperbólicas são os segmentos211 das linhas projectivas que estão no interior da cónica e a relação de incidência é idêntica à da geometria projectiva; as congruências do modelo são as colineações que deixam invariante a cónica dada212. Tem-se o seguinte resultado importante: Teorema 73: Uma congruência transforma pontos interiores à cónica em pontos interiores à cónica. Demonstração: Recordemos a Definição 26 e as observações que se seguem ao Teorema 22, ambos no segundo capítulo; resulta das caracterizações aí apresentadas dos pontos do plano projectivo em termos das tangentes à cónica (com um ponto exterior à cónica incidem duas tangentes, com um ponto da cónica uma só e com um ponto interior nenhuma), que a existência ou não de tangentes num ponto é uma propriedade puramente projectiva, (no fundo, depende apenas de incidências e colinearidades) logo é preservada pelas 209 É importante notar que nem todos os autores utilizam esta terminologia; Coxeter, por exemplo, chama ideais aos pontos exteriores (os nossos ultra-ideais) e pontos no infinito aos pontos da cónica (os nossos pontos ideais). 210 Usada, naturalmente, com as devidas precauções; pode ver-se em [Cox3], página 73, um exemplo elucidativo dos erros a que um uso descuidado desta prática pode levar. 211 Trata-se pois de cordas da cónica; deve-se reparar que, como os extremos destas cordas são pontos ideais, estamos mesmo a falar de segmentos e não de intervalos, isto no sentido da Definição 8, segundo capítulo. É também conveniente reparar que, sobre um segmento, não necessitamos de trabalhar com a complicada noção de separação: recupera-se a relação usual “estar entre”, conforme se viu a seguir à definição referida. 212 É óbvio que o conjunto das congruências, algebrizado com a composição usual, forma um grupo. - 106 - colineações. Assim, uma congruência transforma pontos interiores em pontos interiores em pontos interiores, já que uma congruência é um tipo especial de colineação213 . ■ Definir o que se entende por comprimento de um segmento é consideravelmente mais complicado. Para tentar motivar uma definição que, dada de chofre, parece muito arbitrária, sejam P e Q dois pontos hiperbólicos e U e V os dois pontos214 em que a recta (projectiva) PQ intersecta a cónica C (ver a figura seguinte). C U P Q C V U Q P V Figura 31 Como o par PQ não separa o par UV, segue-se, em qualquer dos dois casos ilustrados, que {PQ, UV } > 0 215, pelo que faz sentido considerar, no campo real, a expressão ln{PQ, UV }216. Consideremos agora o caso ilustrado à esquerda; vem que {PU , QV } > 0 pelo que, {PQ, UV } = 1 − {PU , QV } < 1 e portanto ln{PQ, UV } < 0 . Do mesmo modo, no caso da direita, tem-se que ln{PQ, UV } > 0 . Conclui-se assim que a expressão ln{PQ, UV } é positiva se os segmentos ]PQ[ e ]UV [ têm sentidos opostos e negativa caso contrário. Seja agora R um ponto arbitrário do segmento ]PQ[ . Pelas propriedades da razão cruzada, {PQ, UV } = {PR, UV }⋅ {RQ, UV }. Supondo então (caso da direita) que ln{PQ, UV } > 0 , resulta por aplicação de logaritmos a ambos os membros da última igualdade, que ln{PQ, UV } = ln{PR, UV }+ ln{RQ, UV } , sendo todos estes termos positivos. Analogamente, se os segmentos ]PQ[ e ]UV [ têm o mesmo sentido (caso da esquerda), todos os termos desta igualdade são negativos. Em qualquer dos casos, é válida a igualdade ln{PQ, UV } = ln{PR, UV } + ln{RQ, UV } . 213 Pode-se provar bastante mais: dados dois pontos interiores, existe sempre uma congruência que transforma um no outro (diz-se que o grupo das congruências é transitivo no interior da cónica). Para uma prova, veja-se [Efi], páginas 408 a 410. 214 U e V são pois pontos ideais, como já se referiu. 215 Trata-se de uma propriedade da razão cruzada, cuja prova pode ser vista em [Cox2], página 194. 216 Representamos por ln x o logaritmo natural (ou neperiano) do número positivo x. - 107 - Por outro lado, como a razão cruzada é invariante por colineações, segue-se que a expressão ρ( PQ ) = c ln{PQ, UV } , onde c é um número real não nulo217, é invariante por congruência. Estas observações mostram que a expressão ρ(]PQ[) goza das propriedades usuais do comprimento de segmentos da geometria euclidiana. Assim, dado um segmento ]PQ[ , é razoável definir o seu comprimento como ρ(]PQ[) = c ln{PQ, UV } . Veremos no seguimento que esta escolha faz do nosso modelo um espaço métrico. 218 Finalmente, dois ângulos ∠(h, k ) e ∠(h' , k ') são congruentes se existir uma congruência que transforme as semi-rectas hiperbólicas h, k nas semi-rectas h' , k ' .219 O resultado fundamental desta secção é o seguinte: Teorema 74: O conjunto dos pontos do interior de uma cónica220 é um modelo do sistema de axiomas de Hilbert para a geometria hiperbólica plana apresentados no primeiro capítulo. Demonstração: A demonstração consiste na verificação dos axiomas de incidência, ordem, congruência, continuidade e do axioma hiperbólico221 no modelo apresentado. Axiomas de incidência: Apenas há a verificar os axiomas I a IV, pois os restantes dizem respeito à geometria no espaço; todas as verificações são imediatas. Axiomas de ordem: A verificação é também imediata, já que, como se viu no segundo capítulo , a relação de separação numa recta projectiva “induz” em qualquer segmento a ordem usual. Axiomas de congruência: A verificação destes axiomas é longa e trabalhosa, necessitando de uma série de lemas e resultados preliminares de carácter técnico, pelo que não a faremos aqui; o leitor pode encontrar essa verificação em [Art] ou [Efi]. 217 A escolha da constante c é arbitrária; é vulgar, na linha do que fez Lobachevsky, considerá-la igual a 1/2, convenção que adoptaremos salvo aviso em contrário. 218 Se considerarmos a expressão s ( PQ ) = c ln{PQ, UV }, obtemos uma distância sinalizada, que é por vezes útil. 219 Podemos falar em semi-rectas, pois, como já se referiu, estamos a trabalhar com a noção “estar entre” e não com a de “separar”; veja-se [Dio2], páginas 33 e 34. 220 Considerando-se, como é óbvio, as noções de recta, incidência, congruência, etc apresentadas. 221 Dados um ponto e uma recta, no plano por eles determinado, existem duas ou mais rectas que incidem com o ponto e não intersectam a recta dada. - 108 - Axiomas de continuidade: É possível provar222 que no contexto dos axiomas de incidência, ordem e continuidade, o axioma de Dedekind implica os axiomas de Arquimedes e Cantor; como o axioma de Dedekind se aplica a qualquer segmento projectivo, segue-se o resultado. Axioma hiperbólico: Da geometria absoluta, sabe-se que se verifica o axioma de Playfair ou o axioma hiperbólico; é evidente que é o segundo que se verifica223. ■ Antes de prosseguirmos, façamos algumas observações sobre o sistema de axiomas e os seus modelos, na linha do final da secção 2 do segundo capítulo. É óbvio que um resultado que seja teorema do sistema axiomático tem de se verificar em qualquer modelo, com as suas interpretações dos termos e relações primitivas. Consideremos, por exemplo, o seguinte resultado: Teorema 75: Uma linha hiperbólica (no modelo projectivo) tem comprimento infinito. Demonstração 1 (recorrendo à axiomática) Decorre imediatamente dos axiomas do plano hiperbólico, nomeadamente do axioma de Arquimedes que uma recta (termo primitivo deste sistema) tem comprimento infinito. Como o modelo projectivo é um modelo do sistema referido, segue-se o resultado.■ Demonstração 2 (“interna” ao modelo) Sejam t a recta (projectiva) que é o “suporte” da recta (hiperbólica) dada e P um seu ponto hiperbólico, U e V os pontos (ideais) em que a recta t intersecta o Absoluto C (ver a figura seguinte); o resultado segue-se imediatamente da definição da distância no modelo projectivo e das propriedades da razão cruzada, já que {PU , UV } = ∞ 224 . ■ Figura 32 222 Veja-se [Efi], página 80; para um estudo dos vários possíveis axiomas relativos à continuidade, podese consultar [Cox2], capitulo 10. 223 Pode-se levantar uma dúvida: se duas linhas quaisquer em geometria projectiva se intersectam sempre, como pode suceder que as linhas hiperbólicas que as têm como “suporte” possam não ter pontos em comum? A resposta é que o ponto de intersecção das linhas projectivas pode ser ideal ou até ultra-ideal, “não contando” assim para a geometria hiperbólica, de acordo com o que dissemos no início do capítulo. 224 Fica assim justificada a designação pontos no infinito dada aos pontos do Absoluto. - 109 - Um outro exemplo: Teorema 76: O modelo projectivo da geometria hiperbólica é um espaço métrico. Demonstração: Sejam P, Q e R três pontos hiperbólicos quaisquer. Pondo d ( P, Q) = ρ(]PQ[) , há cinco propriedades a verificar: 1) 2) 3) 4) 5) d ( P, Q ) ≥ 0 . d ( P, P ) = 0 . d ( P, Q) = d (Q, P) . d ( P, Q ) = 0 ⇒ P = Q . d ( P, Q) ≤ d ( P, R) ≤ + d ( R, Q ) (a conhecida desigualdade triangular). Todas estas propriedades são de verificação imediata, excepto a quinta; neste último caso, podemos argumentar que a desigualdade triangular é um teorema da geometria absoluta (ver [Dio2], página 86), logo de geometria hiperbólica, pelo que tem de se verificar no modelo projectivo. ■ A respeito deste último teorema, é possível apresentar demonstrações da desigualdade triangular sem recorrer directamente à axiomática da geometria hiperbólica: em [Art] pode ver-se uma demonstração recorrendo a coordenadas e em [BuK] uma demonstração de carácter essencialmente projectivo225. Por outro lado, o uso de modelos permite muitas vezes um melhor esclarecimento de questões da axiomática (compatibilidade e independência dos axiomas, por exemplo), a obtenção de demonstrações mais simples de alguns teoremas ou a intuição de resultados gerais a partir de resultados próprios de um dado modelo. Vejamos um exemplo desta última situação: Teorema 77: Listagem das congruências do modelo projectivo Há quatro tipos de congruências no modelo projectivo: 1) Rotações; 2) Deslocamentos paralelos; 3) Translações; 4) Simetrias deslizantes. 225 A título de curiosidade, é ainda interessante ver o Apêndice I de [DHi]; neste apêndice, que é um extracto de uma carta de 1894, de Hilbert para Félix Klein, surge uma versão da referida demonstração que ilustra bem as preocupações de Hilbert neste campo e que estiveram na génese do famoso 4º problema de Hilbert. - 110 - Todas estas transformações podem ser obtidas compondo convenientemente simetrias axiais226, que, para efeitos de classificação, são consideradas como um tipo particular de simetrias deslizantes. Demonstração: Não a vamos fazer em pormenor227, referindo apenas que a existência destes quatro tipos de congruências se prova facilmente, dando exemplos de cada uma delas; o ponto mais subtil é mostrar que não existem outras hipóteses. Isto consegue-se reparando que uma congruência induz uma projectividade no Absoluto e que essa projectividade só pode ser de um dos seguintes quatro tipos: elíptica, parabólica, hiperbólica directa e hiperbólica inversa. ■ Este resultado leva-nos a conjecturar que num plano hiperbólico geral, também só devem existir quatro tipos de bijecções que preservem a estrutura de plano hiperbólico. Esta conjectura é válida; as definições pertinentes e uma prova deste notável resultado228 podem ser encontradas no capítulo 9 de [Gre]. A um nível mais profundo, é extremamente importante o seguinte teorema, que implica a categoricidade dos axiomas da geometria hiperbólica. Teorema 78: Sejam H1 e H2 dois modelos do plano hiperbólico, de distâncias d1 e bijecção f: H1 → H2 e uma constante d 2 , respectivamente. Então existem uma k > 0 tais que d 2 ( f ( P), f (Q) ) = k ⋅ d1 (P, Q ) para quaisquer pontos P e Q de H1. Demonstração: Trata-se de um resultado profundo e difícil de provar, pelo que não apresentaremos a prova; o leitor pode ver uma demonstração em [RamR]. Para terminar esta secção, vamos abordar o conceito de perpendicularidade, tanto no modelo projectivo como no sistema axiomático. No terceiro capítulo , definimos perpendicularidade entre duas rectas do seguinte modo: Duas rectas r e s dizem-se perpendiculares se forem conjugadas relativamente à polaridade absoluta.229 É natural, no modelo projectivo da geometria hiperbólica, definir perpendicularidade de modo análogo. Tem-se assim: 226 Uma simetria de eixo numa recta XY é, por definição, uma transformação que deixa invariante qualquer ponto do eixo e que transforma um ponto A noutro ponto B tal que os triângulos AXY e BXY são congruentes. 227 O leitor interessado pode ver as definições pertinentes e a prova detalhada em [Cox1], páginas 201 a 203. 228 Que ilustra as profundas semelhanças entre as geometrias euclidiana e hiperbólica, contrastando de forma notória com a existência de apenas um tipo de congruência em geometria elíptica, conforme se viu no capítulo anterior. 229 Definição 40; relembremos que, em todo o terceiro capítulo, a polaridade absoluta era elíptica. - 111 - Definição 50: Duas rectas hiperbólicas r e s são perpendiculares se as linhas projectivas que lhes servem de suporte forem conjugadas relativamente à polaridade absoluta.230 Por outro lado, o modelo projectivo é um modelo da geometria hiperbólica, logo da geometria absoluta. Em geometria absoluta, duas rectas r e s, incidentes com um ponto O dizem-se perpendiculares se, fixadas duas semi-rectas de origem O, uma de suporte r e outra de suporte s, elas determinam um ângulo recto.231 Seria absurdo se as duas definições de perpendicularidade não conduzissem ao mesmo resultado. Vamos ver que a interpretação desta definição de perpendicularidade no modelo projectivo coincide com a dada na Definição 50. Para tanto, sejam h e p duas rectas hiperbólicas conjugadas relativamente à polaridade absoluta232 e incidentes com um certo ponto hiperbólico Q e P o pólo de p (um ponto exterior à cónica, logo ultra-ideal), conforme a figura seguinte. Como h e p são conjugadas, h incide com o pólo P233. Figura 33 Consideremos agora uma homologia harmónica H, de centro no ponto P e eixo a recta p. Segue-se das propriedades das polaridades e das homologias harmónicas (ver [Cox1], páginas 203 e 59-61) que H preserva o Absoluto e é portanto uma congruência do modelo projectivo; além disso, as duas semi-rectas determinadas pelo ponto Q na recta hiperbólica h são transformadas uma na outra pela homologia harmónica considerada. Assim, os dois ângulos α e β, assinalados na figura, são congruentes no sentido da geometria hiperbólica e portanto são rectos234. Logo as rectas hiperbólicas h e p são mesmo perpendiculares no sentido da geometria absoluta235. 230 Que agora é hiperbólica. Um ângulo diz-se recto se for congruente com um dos seus suplementares; veja-se [Dio2], páginas 58 a 60, para as definições pertinentes. 232 Logo perpendiculares no sentido projectivo; estamos aqui a cometer um cómodo abuso de linguagem não distinguindo entre as rectas hiperbólicas e as rectas projectivas que as “suportam”. 233 Vejam-se as observações a seguir à Definição 40 do terceiro capítulo. 234 Por muito que isso custe a aceitar aos nossos olhos euclidianos…Veremos mais adiante um outro modelo (o modelo de Poincaré) que não tem estas distorções angulares. 235 A justificação da determinação do pólo P (intersecção de duas tangentes) pode ser vista em [Cox3], página 74; a figura sugere um modo natural de traçar perpendiculares no modelo projectivo. 231 - 112 - O leitor interessado num estudo mais aprofundado do modelo projectivo pode consultar o último capítulo de [Wyl1]. 3. Alguns resultados de geometria hiperbólica No que se vai seguir, utilizaremos o sistema de axiomas de Hilbert para a geometria absoluta apresentado no primeiro capítulo, e obteremos o sistema axiomático da geometria hiperbólica plana acrescentando uma das seguintes proposições equivalentes236 (1) Axioma das paralelas de Lobachevsky, versão forte: “Dados um ponto e uma recta não incidentes, com o ponto incide sempre mais que uma recta paralela à recta dada” (2) Axioma das paralelas de Lobachevsky, versão fraca: “Existem um ponto e uma recta não incidentes tais que com o ponto incide sempre mais que uma recta paralela à recta dada” (3) Há um triângulo em que os ângulos internos têm soma inferior a dois rectos. (4) Em qualquer triângulo os ângulos internos têm soma inferior a dois rectos. A equivalência destas proposições (supostos, bem entendido, os restantes axiomas da geometria absoluta) é um resultado não trivial e de demonstração longa e morosa; por esses motivos, não a apresentamos, remetendo o leitor para a referência [Dio2]. Para simplificar a exposição, adoptaremos como axioma a versão forte do axioma das paralelas de Lobachvesky, na linha de [Car] ou [Som].237 Passamos então a provar alguns resultados típicos da geometria hiperbólica.238 O resultado fundamental sobre paralelismo no plano hiperbólico é o seguinte: Teorema 79: Teorema do ângulo de paralelismo Sejam P um ponto e r uma recta não incidentes. Então existem duas semi-rectas a1 e • a 2 , de origem P, fazendo ângulos agudos e congruentes com a semi-recta P P0 , onde P0 é o pé da perpendicular baixada de P sobre r e tais que uma semi-recta h, de origem 236 O leitor reconhecerá imediatamente que são negações de alguns dos enunciados geométricos referidos no primeiro capítulo; na verdade, podemos obter um axioma para a geometria hiperbólica negando qualquer um desses enunciados. 237 A título de curiosidade, refira-se que o próprio Hilbert preferiu uma versão do axioma (1) ainda mais reforçada (veja-se [DHi], página 152). 238 Para não sobrecarregar a exposição, admitiremos nas demonstrações alguns resultados de geometria absoluta, como, por exemplo, os casos de congruência de triângulos, sem apresentar as respectivas demonstrações; indicaremos em cada caso as referências pertinentes. - 113 - • P e fazendo ângulo agudo com P P0 intersecta a recta r se e só se está contida no interior do ângulo de lados a1 e a 2 (ver a figura seguinte). Chamando ângulo de paralelismo Π (P, r ) 239 do par (P, r ) a qualquer dos • • ângulos (congruentes) ∠ P P0 , a1 ou ∠ P P0 , a 2 , tem-se que PP0 = P ' P0 ' ⇔ Π (P, r ) = Π (P' , r ') para quaisquer pares (P, r ) e (P' , r ') 240. Antes de procedermos à demonstração, daremos algumas definições: Definição 51: As duas semi-rectas a1 e a 2 dizem-se semi-rectas assintóticas para o par (P , r ) . Definição 52: As rectas suportes das semi-rectas assintóticas paralelas de Lobachevsky para o par (P, r ) . a1 e a 2 dizem-se Definição 53: Duas rectas paralelas que não sejam paralelas de Lobachevsky dizem-se divergentes ou ultra-paralelas. Para uma boa compreensão destas noções, considere-se o seguinte esquema, no qual utilizámos a notação do enunciado. Figura 34 239 Notação atribuída ao próprio Lobachevsky. Assim, o ângulo de paralelismo depende apenas do comprimento do segmento da perpendicular e não da recta ou do ponto dados; a obtenção de uma fórmula explícita para o ângulo de paralelismo será um dos principais resultados deste capítulo. Refira-se ainda que existem construções, descobertas por Bolyai e Lobachevsky para obter o ângulo de paralelismo a partir do segmento da perpendicular e vice-versa (ver [Car], páginas 71 a 77). 240 - 114 - O ângulo de paralelismo é qualquer dos dois ângulos a cinzento; o arco a traçado grosso e a recta r são ultra-paralelas. Não deixa de ser curioso e elucidativo ver a situação no modelo projectivo: Figura 35 Nesta figura, r e s são ultra-paralelas; r e l1 (recta suporte de a1) são paralelas de Lobachevski. Após estas observações, passemos à demonstração do Teorema do ângulo de paralelismo. Demonstração: Por uma questão de brevidade, não vamos apresentar uma demonstração completa do teorema a partir da axiomática de Hilbert; preferimos em vez disso mostrar uma demonstração baseada em propriedades do corpo dos números reais.241 Sejam então P um ponto e r uma recta não incidentes e P0 o pé da perpendicular baixada de P sobre r. Pelo axioma das paralelas de Lobachevsky, existem duas linhas distintas, l e l ' incidentes com P e paralelas a r. Das quatro semi-rectas de origem no ponto P que elas determinam, pelo menos uma delas, digamos a, faz um ângulo agudo • θ 0 com a semi-recta P P0 (ver a figura seguinte). 241 Para uma prova na linha da axiomática de Hilbert, veja-se [Dio2], páginas 179 a 181; a prova que vamos apresentar é mais fácil em virtude de se basear no axioma do supremo, uma proposição de mais fácil aplicação que a versão do axioma de Cantor usada na prova de Hilbert. - 115 - Figura 36 Se uma semi-recta de origem em P e fazendo um ângulo θ1 com a semi-recta • P P0 intersectar a semi-recta r − , qualquer outra semi-recta de origem P e fazendo com • P P0 um ângulo θ 2 inferior a θ1 , também vai intersectar a semi-recta r − , pelo Teorema da barra transversal242 (ver a figura seguinte). Figura 37 Seja então Π (P, r ) o supremo das medidas dos ângulos tais que as semi-rectas • fazendo ângulos θ com P P0 intersectam r − (este supremo existe, já que a medida do ângulo recto é obviamente um majorante das medidas dos ângulos em causa); a Π (P, r ) chamaremos ângulo de paralelismo do par (P, r ) . • A semi-recta a1 com origem em P e fazendo ângulo Π (P, r ) com P P0 “separa” portanto a família das semi-rectas com origem em P e contidas no semi-plano de aresta PP0 e ao qual pertence a semi-recta r − em duas classes disjuntas: 242 O Teorema da barra transversal (Crossbar Theorem) é um teorema de geometria absoluta que é consequência do Axioma de Pasch. O seu enunciado é o seguinte: Dado um triângulo [ABC] e uma semirecta de origem em A passando no interior do triângulo, essa semi-recta incide com o lado [BC]. Para uma prova, veja-se [PAV], página 12. - 116 - • 1) as que fazem ângulo com P P0 inferior a Π (P, r ) e que portanto intersectam r − ; • 2) as que fazem ângulo com P P0 superior a Π (P, r ) e que portanto não intersectam r− . É fácil de ver que a semi-recta a1 também não intersecta r − 243. Com efeito, se estas duas semi-rectas tivessem um ponto em comum C, bastaria tomar um ponto D em • r − tal que D − C − P0 para se chegar a uma contradição: a semi-recta P D intersectaria • r − em D e faria com P P0 um ângulo α superior a Π = Π (P, r ) , o que contradiz a definição de supremo, conforme se ilustra na próxima figura. Figura 38 Consideremos agora um outro segmento [P' P0 '] do plano hiperbólico, congruente com [PP0 ] (logo P' P0 ' = PP0 ) e seja r ' uma recta incidente com P0 ' e perpendicular a [P ' P0 '] . Seja r '+ uma das duas semi-rectas de origem P0 ' e suporte r ' (ver a figura seguinte). Figura 39 243 Costuma dizer-se que é assintótica a r, conforme a Definição 51. - 117 - Se C for um ponto qualquer incidente com a recta r e C ' o ponto de r '+ tal que P0 C = P0 ' C ' , então, pelo caso LAL, os triângulos [PP0 C ] e [P ' P0 ' C '] são congruentes e portanto os ângulos ∠P0 PC e ∠P0 ' P' C ' são também congruentes. Assim, uma semi• recta de origem P e fazendo um ângulo θ com P P0 intersecta r − se e só se a semi-recta • correspondente, de origem P' e fazendo um ângulo θ com a semi-recta P ' P0 ' intersecta, r '+ . Concluímos assim que os ângulos de paralelismo para os dois pares têm de ser iguais, isto é, que Π (P, r ) = Π (P' , r ') . Para concluir, suponhamos que os segmentos [PP0 ] e [P ' P0 '] coincidem e que as semi-rectas r − e r '+ são opostas; resulta que os dois ângulos marcados na figura abaixo são iguais, concluindo-se assim a prova do teorema. ■ Corolário: Se duas linhas r e s são perpendiculares a uma terceira, r e s são ultra-paralelas.244 Demonstração: É consequência imediata do teorema. ■ Figura 40 O nosso próximo objectivo é provar um dos mais famosos resultados da geometria hiperbólica: A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é inferior a dois ângulos rectos245. Para tanto, começaremos por apresentar algumas definições e estabelecer diversos resultados auxiliares interessantes. Vamos encontrar um novo tipo de “triângulos”, típicos da geometria hiperbólica, os chamados triângulos assintóticos. Informalmente, seja • [AB] um segmento e consideremos duas semi-rectas • “assintóticas” A C e B D , contidas ambas num dos semiplanos de aresta AB (ver a figura seguinte). Convencionamos que as duas se intersectam num ponto ideal Ω e chamaremos triângulo (simplesmente) assintótico ou trilateral à figura ABΩ; nesta figura, os vértices são os pontos “normais” A e B e o ponto “ideal” Ω, o segmento [AB] 244 245 A recíproca também é válida, conforme veremos mais adiante. Um resultado que até é, como já se disse, equivalente ao axioma das paralelas de Lobachevsky. - 118 - é a base, as duas semi-rectas são os lados e há ainda a considerar os ângulos (usuais) ∠BAC e ∠ABD . Figura 41 Veremos mais adiante que os triângulos assintóticos têm muitas propriedades em comum com os triângulos “normais”246. Da mesma maneira que considerámos os triângulos assintóticos, podemos considerar triângulos duplamente assintóticos, nos quais dois dos vértices são pontos ideais e até triplamente assintóticos (todos os vértices são pontos ideais). A figura seguinte mostra como estes “triângulos” aparecem naturalmente no modelo projectivo: o “triângulo 1” é assintótico, o “2” é duplamente assintótico e o “3” triplamente assintótico. 1 3 C 2 Figura 42 Antes de começarmos a utilizar os triângulos assintóticos no estudo da geometria hiperbólica, convém fazer um parênteses para esclarecer uma dúvida natural: no sistema axiomático de Hilbert, existem apenas pontos, não se fazendo qualquer menção de pontos ideais, pontos no infinito, etc. Será possível “enquadrar” formalmente estes novos objectos geométricos (e outros do mesmo género que venham eventualmente a surgir) no sistema? 246 Há também notáveis diferenças: se chamarmos perímetro de um triângulo à soma dos comprimentos dos seus lados, é óbvio que o perímetro de um triângulo “normal” é um número real positivo, ao passo que o perímetro de um triângulo assintótico é infinito. - 119 - A resposta é afirmativa e a maneira de o fazer é sugerida pela naturalidade com que estes objectos surgem no modelo projectivo; na verdade, a partir de um plano hiperbólico é sempre possível construir uma “completação projectiva” na qual surgem os objectos desejados. O processo é semelhante à construção do plano projectivo a partir do plano afim (por adjunção de uma recta de “pontos no infinito”) mas é bastante mais complicado e tem detalhes técnicos algo enfadonhos; por este motivo, apenas daremos algumas indicações gerais sobre a construção, remetendo o leitor para [Moi] ou [Gre] para justificações detalhadas. Seja então [AB] um segmento (em geometria absoluta) e consideremos duas • • semi-rectas A C e B D , contidas ambas num dos semiplanos de aresta AB e cujas rectas suporte AC e BD são paralelas. • • Definição 54: O triângulo aberto247 CABD é a figura B D ∪ [ AB ] ∪ A C (a nomenclatura a utilizar para referir os seus diversos elementos coincide com a apresentada anteriormente). Se estivermos a trabalhar em geometria euclidiana, não se obtém nada de especialmente interessante: um triângulo aberto reduz-se a uma semi-faixa do plano, como mostra a figura seguinte. DDDD BBBB CCCC AAAA Figura 43 Em geometria hiperbólica há possibilidades muito mais interessantes, já que existem várias paralelas à recta AC incidindo com o ponto B. Concretamente, suponhamos que o triângulo aberto goza da propriedade seguinte: qualquer semi-recta • de origem B e contida no interior248 do triângulo intersecta a semi-recta A C ; temos então a seguinte definição: 247 248 Ou biângulo. Trata-se da intersecção dos interiores dos ângulos ∠DBA e ∠CAB. - 120 - • Definição 55: Nestas condições, diz-se que a semi-recta B D é uma paralela • assintótica à semi-recta A C (ou paralela limite; trata-se de uma óbvia generalização da definição encontrada no Teorema do ângulo de paralelismo, em que o ângulo de vértice • • em A era recto) e escreve-se B D | A C . O triângulo aberto CABD diz-se então um triângulo assintótico249. Passemos à introdução dos pontos no infinito, motivados pela conveniência de encontrar um terceiro vértice Ω para o triângulo assintótico CABD. No conjunto de todas as semi-rectas do plano hiperbólico, introduzimos uma relação ~ pondo r ~ s ⇔ r ⊂ s ou s ⊂ r ou r | s . Tem-se o seguinte resultado importante: Teorema 80: A relação ~ é uma relação de equivalência. Demonstração: Apenas a reflexividade é evidente; a prova da simetria é algo complicada (não é nada • • • • óbvio que de B D | A C se deduza A C | B D ) e a da transitividade é ainda pior250, pelo que remetemos o leitor para a referência [Moi], páginas 317 a 323. ■ Definição 56: Um ponto ideal é uma classe de equivalência da relação anteriormente definida; convenciona-se que as rectas com que um ponto ideal incide são exactamente os suportes das semi-rectas da classe de equivalência que o define. Definição 57: Chama-se Absoluto ao conjunto dos pontos ideais. Até este ponto, a construção é muito semelhante à do plano projectivo a partir do plano afim por adjunção dos pontos no infinito; o Absoluto corresponde à recta no infinito. No entanto, a necessidade (derivada do Teorema do ângulo de paralelismo) de trabalharmos com semi-rectas em vez de rectas, tem um preço. Com efeito, resulta imediatamente das definições anteriores que qualquer recta r corta o Absoluto em dois pontos e portanto este não pode ter estrutura de recta (senão coincidiria com r…). Ao desenvolver-se a construção, verifica-se que o Absoluto tem estrutura de cónica, definida por uma polaridade conveniente e que há conveniência em introduzir um segundo tipo de ponto no infinito, a que chamaremos pontos ultra-ideais, obtendo-se finalmente o plano projectivo; a geometria hiperbólica surge então como a geometria 249 Há autores que preferem a designação triângulo fechado, só usando a expressão triângulo assintótico depois da introdução dos pontos no infinito; não teremos necessidade de fazer uma distinção tão fina. 250 A título de curiosidade, o próprio Gauss deu uma prova incompleta de um lema necessário para a prova da transitividade ([Gre], página 211). - 121 - dos pontos interiores à cónica, exactamente como no modelo projectivo. Não vamos estudar esta construção com mais detalhe, já que o nosso objectivo é muito mais modesto; pretendemos apenas referir que a introdução dos pontos no infinito a propósito dos triângulos assintóticos pode ser justificada de forma rigorosa. Assim, dadas duas semi-rectas r e s, lados de um triângulo assintótico de vértices R e S, seja Ω o ponto no infinito251 que elas determinam; Ω será considerado como o “terceiro vértice do triângulo” e falaremos nos “lados” RΩ e SΩ. Do mesmo modo, consideraremos triângulos duplamente e triplamente assintóticos. Após este interlúdio, voltemos ao estudo dos triângulos assintóticos, concentrando-nos nas semelhanças com os triângulos “normais”. Teorema 81: Sejam ABΩ e A' B' Ω' dois triângulos assintóticos tais que [ AB ] ≅ [ A' B '] e ∠ABΩ ≅ ∠A' B ' Ω' . Então ∠BAΩ ≅ ∠B' A' Ω' (diz-se então, naturalmente, que os triângulos ABΩ e A' B ' Ω' são congruentes). Demonstração: Faz-se a partir dos casos de congruência usuais. Se os ângulos ∠BAΩ e ∠B ' A' Ω' fossem diferentes, um deles, digamos o primeiro, • seria o maior. Tracemos uma semi-recta A D de modo que ∠BAD ≅ ∠B' A' Ω' e seja D o ponto em que esta semi-recta intersecta BΩ (ver a figura seguinte). Na semi-recta • B ' Ω' tome-se um ponto D ' tal que [B' D '] ≅ [BD ] . Pelo caso ALA de congruência de triângulos, segue-se que os triângulos [ ABD ] e [A' B' D'] são congruentes. Portanto, vem que ∠B' A' D ' ≅ ∠BAD ≅ ∠B' A' Ω' , o que é absurdo. Tem pois de ser ∠BAΩ ≅ ∠B' A' Ω' , como queríamos. ■ Figura 44 Em geometria absoluta (logo nas geometria euclidiana e hiperbólica) é válido o conhecido Teorema do ângulo externo252: “Ângulo externo de um triângulo é maior que qualquer dos ângulos internos não adjacentes”. O próximo teorema mostra que é também verdadeiro um resultado semelhante para triângulos assintóticos. 251 252 Representaremos os vértices no infinito por letras gregas maiúsculas. Ver [Dio2], páginas 71 e 72. - 122 - Teorema 82: Num triângulo assintótico [ ABΩ], o ângulo externo em A é maior que o ângulo interno em B. Demonstração: • Consideremos um ponto G na semi-recta BA e trace-se a recta AF de modo que ∠FAG ≅ ∠ΩBA (ver figura). Figura 45 A perpendicular à recta BΩ passando pelo ponto médio C do segmento [AB] é também perpendicular à recta AF. Pelo corolário do Teorema do ângulo de paralelismo, segue-se que AF e BΩ são ultra-paralelas e que ∠FAG < ∠ΩAG , ou seja, que ∠ΩAG > ∠ΩBA , como queríamos. ■ Para chegar ao resultado sobre a soma dos ângulos internos de um triângulo, falta-nos examinar as propriedades de um quadrilátero muito importante em geometria absoluta, o chamado quadrilátero de Saccheri.253 Definição 58: Um quadrilátero convexo [ABED] diz-se um quadrilátero de Saccheri se: 1. Os ângulos em dois vértices consecutivos são rectos. 2. Os dois lados adjacentes a esses ângulos são congruentes. 253 No primeiro capítulo fizemos uma breve referência ao padre jesuíta Gerolamo Saccheri, talvez o mais notável (a par de Lambert) dos precursores da geometria não euclidiana; o leitor interessado em detalhes sobre a sua obra pode consultar [Bon], páginas 22 a 44. - 123 - i r e h c c a S e d o r e t á l i r d a u q m U AAAA o p o t BBBB ? ? o t c e r o l u g n â o t c e r o l u g n â DDDD e s a b EEEE Figura 46 Sobre estes quadriláteros, Saccheri provou diversos resultados; demonstraremos apenas os dois primeiros254, pois são os que mais interesse têm para o nosso estudo. Teorema 83: Primeiro teorema de Saccheri Os ângulos no topo de um quadrilátero de Saccheri são congruentes. Demonstração: Consideremos a figura anterior. Se considerarmos os triângulos [DEB] e [EAD] (congruentes pelo caso LAL), segue-se que as diagonais [BD] e [AE] são congruentes; aplicando então o caso LLL, vem que os triângulos [EBA] e [BAD] são também congruentes, e então o resultado é imediato. ■ Teorema 84: Segundo teorema de Saccheri Em quadrilátero de Saccheri, a recta dos bissectores da base e do topo é perpendicular aos suportes desses segmentos. Demonstração: Sejam O e O' os pontos médios da base [ED] e do topo [AB], como na figura anterior. Pelo caso LAL, os triângulos [BEO] e [DOA] são congruentes, donde se segue o mesmo para os triângulos [BO' O ] e [ AO' O ] (caso LLL). O resultado é então imediato, por definição de ângulo recto. ■ Tem-se o seguinte resultado, característico da geometria hiperbólica255: 254 Veja-se, no entanto, o teorema 85. A título de curiosidade, os outros resultados são: • Terceiro teorema de Saccheri – Em qualquer quadrilátero de Saccheri, os ângulos no topo são agudos ou rectos; • Quarto teorema de Saccheri – Em quadrilátero de Saccheri, o topo é congruente com ou maior que a base, consoante os ângulos no topo sejam rectos ou agudos. As demonstrações destes resultados de geometria absoluta podem ser vistas em [Dio2]. 255 Em geometria euclidiana, um quadrilátero de Saccheri é simplesmente um rectângulo; compare-se com a Hipótese do ângulo recto, referida no primeiro capítulo. - 124 - Teorema 85: Os ângulos no topo de um quadrilátero de Saccheri são agudos. Demonstração: Considere-se a figura seguinte Figura 47 Pelo primeiro teorema de Saccheri, os ângulos internos do quadrilátero em A e B são congruentes; vejamos que são agudos. Para tanto, tracemos as rectas AΩ e BΩ, paralelas a DE e apliquemos o Teorema 81 aos triângulos assintóticos [BEΩ] e [ADΩ] (o que é possível, pois os ângulos em E e D são rectos e os segmentos [BE] e [AD] são congruentes); concluímos que ∠EBΩ ≅ ∠DAΩ . Pelo Teorema 82, vem que ∠ΩBA < ΩAG para qualquer ponto G em • B A . Resulta então que ∠BAD ≅ ∠EBA < ∠DAG e portanto o ângulo ∠BAD é agudo, como queríamos. ■ Podemos finalmente provar o teorema sobre a soma dos ângulos internos de um triângulo. Teorema 86: A soma dos ângulos internos de um triângulo é inferior a dois rectos. Demonstração: Sabe-se que dois dos ângulos internos do triângulo, pelo menos, têm de ser agudos256. Seja então [ABC] um triângulo com os ângulos de vértice em A e B agudos. Sejam I e J os pontos médios dos lados [BC] e [AC] (ver a figura seguinte). Tracem-se as rectas AD, BE e CF, perpendiculares à recta IJ. Resulta então que os dois triângulos rectângulos [ADJ] e [CFJ] são congruentes257; analogamente, os triângulos [BEI] e [CFI] são congruentes. Construímos assim um quadrilátero de Saccheri [EDBA], já que AD = CF = BE . Por outro lado, ∠ACB = ∠JCF + ∠FCI = ∠JAD + ∠EBI . Podemos finalmente proceder à soma dos ângulos internos do triângulo [ABC]: 256 É a proposição 17 do livro I de Euclides, que é consequência da Proposição 16 (o Teorema do ângulo externo); refira-se, a título de curiosidade, que a prova de Euclides desta última proposição tem uma pequena falha (ver [Gre], página 119). 257 Pelo chamado caso LAA de congruência de triângulos; veja-se [Gre], página 121 ou [APV], página 25. - 125 - ∠BAC + ∠ACB + ∠BCA = ∠BAJ + ∠JAD + ∠EBI + ∠IBA = ∠BAD + ∠EBA . Pelo teorema anterior, a soma das amplitudes dos ângulos ∠BAD e ∠EBA é inferior a dois rectos, já que são ângulos do topo de um quadrilátero de Saccheri, o que conclui a prova. ■ AAAA BBBB FFFF DDDD JJJJ IIII EEEE CCCC Figura 48 Corolário 1: A soma dos ângulos internos de um quadrilátero convexo é inferior a quatro rectos. Demonstração: Basta dividir o quadrilátero em dois triângulos por meio de uma diagonal e aplicar o teorema. ■ Corolário 2: Duas rectas não podem ter duas perpendiculares comuns (em particular, não existem rectângulos em geometria hiperbólica258). Demonstração: É imediata. ■ Vimos anteriormente (corolário do Teorema do ângulo de paralelismo) que, se duas linhas r e s são perpendiculares a uma terceira, então elas são ultra-paralelas. 258 Este corolário, de aspecto tão inocente, implica que a teoria das áreas no plano hiperbólico seja consideravelmente diferente da sua correspondente no plano euclidiano, uma vez que esta se baseia na existência de rectângulos. - 126 - Provaremos em seguida a recíproca, mostrando como se pode traçar uma perpendicular comum a duas rectas ultra-paralelas, uma construção famosa que se deve a Hilbert. Teorema 87: Duas rectas ultra-paralelas admitem sempre uma perpendicular comum. Demonstração: Sejam r e s as duas rectas ultra-paralelas. Tomem-se dois pontos A e C incidentes com s e tracem-se duas rectas AB e CB ' , perpendiculares a r. No caso particular em que [AB] ≅ [CB'], basta considerar a recta que passa pelos pontos médios da base [BB'] e do topo [ AC ] do quadrilátero de Saccheri [ ACB' B ] , em virtude do segundo teorema de Saccheri (Teorema 84). Vamos ver que é possível reduzir o caso geral a este caso particular. Se não se verificar que [ AB ] ≅ [CB'] , podemos supor que AB < CB' . Considerese um ponto A' incidente com CB ' tal que [ A' B'] ≅ [AB] e trace-se por A' uma recta s' tal que ∠(s ' , A' B') ≅ ∠(s, AB ) (ver figura a seguir). Se conseguirmos mostrar que s e s' incidem com um mesmo ponto259 D, bastará tomar um ponto D' tal que [ AD'] ≅ [ A' D ] e que seja incidente com a semi-recta com suporte s, origem em A e que não contém o ponto C para se obter o resultado, já que D e D ' serão os vértices do topo de um quadrilátero de Saccheri com base sobre a recta r, pelo que se pode aplicar a parte já provada do resultado. Temos pois de provar que s e s' incidem com um ponto não ideal D. Sejam L, M e M ' os pontos no infinito das rectas r, s e s' (no mesmo semi-plano de aresta CB ' que o ponto A) e tracem-se as rectas paralelas BM, B' M e B 'M ' . Pelo Teorema 81, os triângulos assintóticos [ ABM ] e [ A' B ' M '] são congruentes, donde resulta que • ∠LB ' M < ∠LBM ≅ ∠LB ' M ' . Assim, a semi-recta B 'M ' está no interior do ângulo ∠MB' C e portanto tem de intersectar CM , passando-se o mesmo com a semi-recta • A'M ' , em virtude de se ter ∠(s ' , A' B') ≅ ∠(s, AB ) por construção. Chamando D a esta última intersecção, obtém-se o resultado. ■ Figura 49 259 Um ponto hiperbólico, não um ponto ideal. - 127 - É interessante ver que esta construção assume uma forma muito mais simples no modelo projectivo. Sejam r e s rectas (hiperbólicas) ultra-paralelas; os seus “suportes projectivos” intersectam-se num certo ponto ultra-ideal P. Se traçarmos a polar p do ponto P, a sua intersecção com o interior da cónica C dá-nos a perpendicular comum desejada, como resulta imediatamente das considerações sobre perpendicularidade no modelo projectivo feitas no fim da secção anterior (ver a figura seguinte). Figura 50 Concluímos esta secção provando um resultado notável da geometria hiperbólica, que contrasta vivamente com o que se passa em geometria euclidiana. Teorema 88: Caso AAA de congruência de triângulos Se os três ângulos de um triângulo são congruentes respectivamente a três ângulos de outro triângulo, então os dois triângulos são congruentes. Demonstração: Sejam [ABC] e [DEF] os dois triângulos em causa. Se houver um par de lados correspondentes congruentes, o resultado segue-se imediatamente do caso ALA. Suponhamos pois, com vista a um absurdo, que tal não se verificava. Assim, nos conjuntos de lados {[AB], [ AC ], [BC ]} e {[DE ], [DF ], [EF ]}, pelo menos dois de um deles são maiores que os dois correspondentes lados do outro triângulo. Suponhamos por exemplo, que AB > DE e que BC > EF . Tome-se um ponto P entre A e B tal que [BP] ≅ [ED] e um ponto Q entre B e C tal que [BQ] ≅ [EF ] (ver a figura seguinte). Pelo caso LAL, os triângulos [BPQ] e [EDF] são congruentes, pelo que os ângulos correspondentes são congruentes também. Disto resulta que os seus ângulos suplementares ∠QPA e ∠PQC são forçosamente suplementares aos ângulos ∠BAC e - 128 - ∠BCA , respectivamente. A soma dos ângulos do quadrilátero [PACQ] seria então igual a 4 rectos, o que contradiz o corolário 2 do Teorema 86. ■ DDDD AAAA PPPP FFFF EEEE CCCC QQQQ BBBB Figura 51 Repare-se na enorme diferença com a geometria euclidiana, onde dois triângulos verificando a hipótese AAA (aliás, basta AA porque a soma dos ângulos internos é, neste caso, sempre igual a dois rectos) são, em geral, apenas semelhantes e não congruentes. Este estranho resultado mostra que no plano hiperbólico, as figuras não podem ser reproduzidas à escala − só em tamanho natural! Um dos reflexos deste estado de coisas é a presença da constante k > 0 no Teorema 78: se mudarmos a unidade de medida num plano hiperbólico H, multiplicando as distâncias todas pelo mesmo factor, o resultado não é isométrico a H. Em geometria euclidiana, pelo contrário, a unidade de medida é irrelevante. 4. Geometria analítica hiperbólica Nesta secção trabalharemos sempre no modelo projectivo; temos em vista obter uma fórmula para o cálculo do ângulo de paralelismo e apresentar uma série de expressões para a resolução de problemas métricos em geometria hiperbólica, análogas às fórmulas obtidas para a geometria elíptica na penúltima secção do capítulo anterior. Comecemos por obter uma fórmula alternativa para a distância em geometria 2λ ar cos ± {AB, B' A'} da geometria hiperbólica, correspondente à fórmula AB = π elíptica. ( Teorema 89: Sejam A e B dois pontos hiperbólicos; então ch AB = A' e B' os pontos conjugados de A e B. 260 ) {AB, B' A'} , sendo Demonstração: Vamos considerar um sistema de coordenadas não homogéneas na recta projectiva AB, de modo que a involução de pontos conjugados seja escrita na forma x + x' = 0 (ver o teorema 33 do segundo capítulo e o teorema 52 do terceiro capítulo); assim, os pontos no infinito M e N têm abcissas 0 e ∞ e os pontos A e B abcissas positivas x e y (ver a figura seguinte). Sejam então − x e − y as abcissas dos seus conjugados A' e B' . 260 Representamos o co-seno, seno e tangente hiperbólica por ch, sh e tgh, respectivamente; o leitor pode encontrar no Apêndice B uma súmula dos principais resultados sobre funções hiperbólicas. - 129 - NNNN BBBB AAAA MMMM C Figura 52 que Atendendo à definição da distância no modelo projectivo, resulta imediatamente 2 AB = ln{AB, MN } , donde se conclui que 2 AB = ln{AB, MN } (se ln{AB, MN } > 0 ) e que − 2 AB = ln{AB, MN } (se ln{AB, MN } < 0 ). x Vem então que e ± 2 AB = {AB, MN } = (a última igualdade segue-se da fórmula y da alínea e) do teorema 34 do segundo capítulo) e portanto conclui-se que ch AB = ( ) 1 AB 1 x e + e − AB = + 2 2 y y x+ y = = x 2 xy (x + y )( y + x ) = {AB, B' A'} , (x + x )( y + y ) se atendermos à fórmula para o cálculo da razão cruzada em coordenadas não homogéneas e ao facto de se ter escrito a involução na forma x + x' = 0 . ■ Após este resultado preliminar, podemos passar à obtenção de uma fórmula para o ângulo de paralelismo. Precisamos ainda do seguinte lema, cuja justificação pode ser vista em [Cox1], página 207 e que é o análogo em geometria hiperbólica do resultado de geometria elíptica estabelecido a seguir ao teorema 62 do terceiro capítulo: “Se as rectas a e b se intersectam num certo ponto X, então o seu ângulo pode ser dado por ∠(ab) = arcos ± ab, b' a' , onde a ' e b' são respectivamente as perpendiculares às rectas a e b passando pelo ponto X” 261. ( ) 261 Neste lema e no teorema que se lhe segue utilizaremos a razão cruzada de quatro linhas concorrentes num ponto, que já referimos brevemente no segundo capítulo; o leitor interessado nas propriedades desta variante da razão cruzada (que são muito semelhantes às da razão cruzada de quatro pontos) pode consultar a referência [Efi] (pág. 319). - 130 - Teorema 90 (Fórmula do ângulo de paralelismo) ( ) Dado um segmento [AB], o seu ângulo de paralelismo Π AB é dado por Π ( AB ) = 2arctg e − AB . Demonstração: Sejam q uma recta, A um ponto não incidente com q e B o pé da perpendicular baixada de A sobre a recta q; para abreviar, escrevamos c = AB . Pretendemos calcular Π ( AB) = Π (c) . Seja p uma das paralelas de Lobachevsky à recta q passando por A e M o ponto no infinito correspondente (ver figura da esquerda; na figura da direita representamos a situação no modelo projectivo). Tracem-se a recta r = AB (que é a perpendicular a q passando pelo ponto A) e as rectas s (paralela a q passando por A) e o (perpendicular à semi-recta p, passando por A) e sejam P e R os seus pontos no infinito no semi-plano de aresta AB que contém a semi-recta p. Figura 53 A recta polar do ponto A intersecta as rectas262 p, q, s e o nos pontos O, R, S e P, que são os pólos das rectas o, r, s e p. A recta polar do ponto M incide com o ponto P e intersecta a recta r no ponto Q, pólo da recta q. Tem-se então M = − ABQS ∧ ORPS ∧ psor . Por outro lado, como S e Q são os conjugados de A e B, respectivamente, vem que ch AB = {AB, QS } e como o e s são perpendiculares a p e r tem-se que 2 cos 2 ∠( pr ) = {pr , so}, sen 2 ∠( pr ) = {ps, ro} e 262 Rigorosamente falando, devíamos considerar a recta suporte da semi-recta p. - 131 - cosec 2 ∠( pr ) = {ps, or} devendo atender-se às propriedades da razão cruzada para se obterem as duas últimas fórmulas. Resulta finalmente que ch AB = cosec ∠( pr ) , ( ) ou seja, que ch AB = cosec Π AB , fórmula esta que pode ser escrita de várias maneiras se transformarmos os seu membros recorrendo às identidades usuais verificadas pelas funções circulares e hiperbólicas263. Têm-se assim as seguintes variantes: ( ) a) sh AB = cotg Π AB ; ( ) b) tgh AB = cos Π AB ; ( ) ( ) c) ch AB − sh AB = cosec Π AB − cotg Π AB ; ( ) 1 d) e − AB = tg Π AB ; 2 ( ) e) Π AB = 2arctg(e − AB ) , sendo a penúltima variante a descoberta originalmente por Lobatchevsky e Bolyai.■ Provámos a fórmula do ângulo de paralelismo para o modelo projectivo com constante c igual a 1/2; prova-se no entanto que em qualquer plano hiperbólico é válida uma fórmula análoga. Mais precisamente, tem-se o seguinte resultado, cuja prova pode ver-se em [Car]: Teorema 91: Num plano hiperbólico qualquer, o ângulo de paralelismo de um p − 1 segmento de comprimento p é dado por e k = tg Π ( p ) , onde k é uma constante 2 positiva dependente da unidade de medida escolhida. ■ Na figura seguinte apresentamos o gráfico da função definida em [0, + ∞[ por y = Π (x) . 263 Consultar o Apêndice B para estas últimas. - 132 - Figura 54 Constata-se imediatamente que: a) A função é estritamente decrescente; b) lim Π ( x) = x →0 π ; 2 c) lim Π ( x) = 0 , x → +∞ propriedades estas que podem ser provadas mesmo sem termos uma fórmula explícita para o ângulo de paralelismo (veja-se [Efi], página 103). Terminamos este capítulo apresentando de forma sucinta uma série de fórmulas de geometria analítica hiperbólica264, de forma semelhante à que fizemos no capítulo anterior para a geometria analítica elíptica. Distância entre dois pontos Dados dois pontos A e B, cujas polares são as rectas a e b, respectivamente, tem-se que AB = arch {AB, ba} . ( ) 264 O leitor interessado num desenvolvimento detalhado da geometria analítica hiperbólica (e também elíptica) pode consultar o capítulo IV de [Som]. - 133 - Distância de um ponto a uma recta265 Dado um ponto A e uma recta q, seja Q o pólo da recta q. Então, tem-se que d ( A, q) = arch {Aq, Qa} = arcsh − {AQ, qa} . Distância entre duas rectas ultra-paralelas Trata-se da distância medida ao longo da sua perpendicular comum (que, como se viu, existe sempre e é única). Sejam q e s as rectas em causa e Q e S, respectivamente os seus pólos. Então d (q, s ) = arch {qs, SQ} . Ângulo entre duas rectas Sejam p e r as rectas em causa, e R e P, respectivamente, os seus pólos. Então, tem-se que ∠( pr ) = arcos ± {pr , RP} . ( ) Consideremos agora um sistema de coordenadas, em que os pontos e rectas em causa são dados por A = (a), B = (b), a = [X ] e b = [Y ] 266. Sabemos então que nestas {xY }{yX } (onde condições, a razão cruzada mista {AB, ba} é dada pela expressão {xX }{yY } 3 {xX } = ∑ xi X i e analogamente para as restantes expressões), conforme se viu no i =1 segundo capítulo. Por substituição nas expressões anteriores, obtemos as fórmulas correspondentes substituindo a expressão da razão cruzada mista nas fórmulas apresentadas. Estas fórmulas podem ser consideravelmente simplificadas, se recorrermos a uma transformação de coordenadas apropriada. Para esse efeito, combinemos os Teoremas 41 e 42 do segundo capítulo, na parte que diz respeito às polaridades hiperbólicas: “Se o triângulo de referência for auto-polar, é possível transformar as coordenadas de forma a preservar o triângulo de referência (alterando o ponto unitário) de modo a que X 1 = − x1 uma polaridade hiperbólica assuma a forma canónica X 2 = x2 .” X =x 3 3 265 Tal como em geometria elíptica, é a distância entre o ponto dado e o pé da perpendicular dele baixada sobre a recta em causa. 266 Suporemos, em tudo o que se segue, esta atribuição de coordenadas aos pontos e rectas em causa. - 134 - Por meio desta transformação, podemos sempre supor que o Absoluto é definido (em termos de pontos) por − x12 + x22 + x32 = 0 ou, se preferirmos considerá-lo como a envolvente das linhas auto-conjugadas267, por − X 12 + X 22 + X 32 = 0 . A recta polar do ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) é dada por X = [− x1 , x2 , x3 ] e duas rectas X = [ X 1 , X 2 , X 3 ] e Y = [Y1 , Y2 , Y3 ] são perpendiculares se X 1Y1 = X 2Y2 + X 3Y3 . Conforme se viu no segundo capítulo, um ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) é um ponto hiperbólico (interior ao Absoluto) se x12 − x22 − x32 > 0 , um ponto ideal (está no Absoluto) se x12 − x22 − x32 = 0 e um ponto ultra-ideal (exterior ao Absoluto) se x12 − x22 − x32 < 0 . Do mesmo modo, a natureza da linha [ X ] = [ X 1 , X 2 , X 3 ] depende do sinal da expressão − X 12 + X 22 + X 32 : as linhas para as quais se tem − X 12 + X 22 + X 32 < 0 são exteriores à cónica, ao passo que as que verificam − X 12 + X 22 + X 32 > 0 são secantes. Finalmente, como estamos a trabalhar com coordenadas homogéneas, pode-se supor sempre que x1 ≥ 0 . Usando estas coordenadas, as fórmulas indicadas anteriormente passam a ter o seguinte aspecto: Distância entre dois pontos Dados dois pontos (x) e (y), a sua distância é dada por: arch {xY }{yX } = arch {xX }{yY } x1 y1 − x 2 y 2 − x3 y 3 2 1 x − x 22 − x32 y12 − y 22 − y 32 . Distância de um ponto a uma recta Dados um ponto (x) e uma recta [Y], a sua distância é dada por: x1Y1 + x 2Y2 + x3Y3 {xY }{yX } = arcsh arcsh − . 2 2 2 2 2 2 { }{ } xX yY x − x − x − Y + Y + Y 1 2 3 1 2 3 Distância entre duas rectas Dadas duas rectas [X] e [Y] (sem pontos em comum), a sua distância é dada por: arch 267 {XY }{YX } = arch {XX }{YY } − X 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 2 1 − X + X 22 + X 32 − Y12 + Y22 + Y32 . Não esquecer que o Absoluto é uma cónica! - 135 - Ângulo entre duas rectas Dadas duas rectas [X] e [Y] concorrentes, o seu ângulo é dado por: arcos {XY }{YX } = arcos {XX }{YY } − X 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 − X 12 + X 22 + X 32 − Y12 + Y22 + Y32 . Estas fórmulas podem ainda ser consideravelmente simplificadas se normalizarmos as coordenadas, convencionando que para qualquer ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) e qualquer recta X = [ X 1 , X 2 , X 3 ] se terá: x1 ≥ 0, x12 − x22 − x32 = 1, X 12 − X 22 − X 32 = −1 (o que é sempre possível por estarmos a trabalhar com coordenadas homogéneas). Por exemplo, a fórmula da distância entre dois pontos reduz-se a arch( x1 y1 − x 2 y 2 − x3 y 3 ) . As duas últimas fórmulas permitem ainda tirar algumas conclusões interessantes. Suponhamos que a distância entre duas linhas (distintas) [X] e [Y] é zero. Então, arch − X 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 2 1 2 2 −X +X +X 2 3 2 1 2 2 2 3 −Y +Y +Y =0⇔ − X 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 2 1 − X + X 22 + X 32 − Y12 + Y22 + Y32 =1 Desembaraçando de denominadores e quadrando, a última expressão é equivalente a (− X 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 )2 = (− X 12 + X 22 + X 32 )(− Y12 + Y22 + Y32 ), que, após cálculos elementares, se reduz a ( X 2Y3 − X 3Y2 )2 − ( X 3Y1 − X 1Y3 )2 − ( X 1Y2 − X 2Y1 )2 = 0 , expressão esta que mostra que as linhas (projectivas) [X] e [Y] se intersectam num ponto do Absoluto268, ou seja, que não têm pontos em comum nem são ultra-paralelas (agora 268 Veja-se a fórmula para o cálculo do ponto de intersecção de duas rectas projectivas apresentada no segundo capítulo. - 136 - em termos do espaço hiperbólico, bem entendido). Chegamos assim ao seguinte resultado, devido a Saccheri: Teorema 92: Em geometria hiperbólica, duas rectas paralelas aproximam-se assintoticamente. ■ Um raciocínio análogo a partir da fórmula do ângulo de duas rectas mostra que o ângulo de duas rectas paralelas é zero, se estas forem consideradas como a posição limite de duas rectas concorrentes cujo ponto de intersecção se afasta indefinidamente. Assim, podemos enunciar o seguinte resultado: Teorema 93: Num triângulo assintótico, um ângulo cujo vértice é um ponto no infinito tem amplitude nula. Demonstração: Imediata, a partir da definição de triângulo assintótico e das considerações anteriores.■ Corolário: Podemos resolver o triângulo assintótico da figura abaixo, se conhecermos o ângulo de paralelismo ou o comprimento PP0 da perpendicular. Figura 55 Demonstração: Como os “lados” que incidem com o vértice Ω têm comprimento infinito e o ângulo de vértice em Ω tem amplitude nula, o resultado segue-se imediatamente da fórmula do ângulo de paralelismo (Teorema 90). ■ Para acabar, vejamos sumariamente como se podem “unificar” as fórmulas de geometria analítica elíptica e hiperbólica. - 137 - Para tanto, vamos considerar um parâmetro K, que assumirá o valor 1 no caso da geometria elíptica e o valor − 1 no caso da geometria hiperbólica.269 Têm-se então as seguintes fórmulas, que resultam das anteriores se tivermos em conta as relações entre as funções circulares e as funções hiperbólicas de argumento complexo (ver Apêndice B): Distância entre dois pontos Dados dois pontos (x) e (y), a sua distância é dada por: x1 y1 + Kx2 y2 + Kx3 y3 1 arcos = 2 K x1 + Kx22 + Kx32 y12 + Ky22 + Ky32 ( 1 K K ( x2 y3 − x3 y2 ) + (x3 y1 − x1 y3 ) + (x1 y2 − x2 y1 ) = arcsen x12 + Kx22 + Kx32 y12 + Ky22 + Ky32 K 2 ( 2 )( 2 ) ) . Distância de um ponto a uma recta Dados um ponto (x) e uma recta [Y], a sua distância é dada por: x1Y1 + x2Y2 + x3Y3 K 1 arcsen . K x12 + Kx22 + Kx32 KY12 + Y22 + Y32 Ângulo entre duas rectas Dadas duas rectas [X] e [Y] concorrentes, o seu ângulo é dado por: arcos KX 1Y1 + X 2Y2 + X 3Y3 2 1 KX + X 22 + X 32 KY12 + Y22 + Y32 . Embora K tenha sido fixado em 1 ou − 1 , podemos atribuir a este parâmetro outros valores reais, já que isto corresponde a mudar o ponto unitário do sistema de coordenadas projectivas de modo que a polaridade absoluta em causa passa a ser escrita na forma x1 = KX 1 x2 = X 2 . x =X 3 3 269 Este parâmetro K, que aparece aqui como um “expediente” para unificar as fórmulas tem na verdade um significado muito mais profundo: ele representa a curvatura (no sentido da Geometria Diferencial) do plano elíptico ou hiperbólico em causa, conforme se pode ver em [Cox1], páginas 283 e 284. - 138 - Façamos agora K tender para zero (e portanto 1 / K → ∞ , o que corresponde a aumentar infinitamente a escala nas expressões anteriores); vamos obter expressões características da geometria euclidiana nas coordenadas não homogéneas x2 / x1 , x3 / x1 , já que as três expressões anteriores se transformam respectivamente em 2 2 x 2 y 2 x3 y 3 − + − , x1 y1 x1 y1 Y2 x x2 + Y3 3 + Y1 x1 x1 Y22 + Y32 e arcos X 2Y2 + X 3Y3 X 22 + Y32 X 22 + Y32 . Estas considerações costumam resumir-se dizendo que “a geometria de uma região infinitesimal em geometria elíptica ou hiperbólica é a geometria euclidiana”.270 270 Este notável resultado foi descoberto (no caso da geometria hiperbólica) independentemente por Lobachevsky e por Bolyai por um processo completamente diferente: através do estudo de uma superfície especial do espaço hiperbólico tridimensional (a horosfera, na terminologia de Lobachevsky, que é a actualmente usada; Bolyai chamava-lhe paraesfera). De forma muito resumida, eles provaram que a geometria numa tal superfície coincide com a euclidiana e, considerando os planos (hiperbólicos) tangentes a essa superfície deduziram a estrutura euclidiana local do plano hiperbólico. Embora matematicamente correcto e extremamente engenhoso (veja-se, por exemplo o capítulo 4 de [RamR]), este processo pouco contribuiu para dissipar as dúvidas então existentes sobre a consistência da geometria hiperbólica; no fim de contas, para estudar geometria não euclidiana bidimensional, usava-se uma variante tridimensional, cuja consistência era, naturalmente, ainda mais duvidosa ([Cars], página 154). O leitor interessado nos aspectos históricos da teoria pode consultar com proveito a referência [Bon]. - 139 - Capítulo 5 Trigonometria e área 1. Introdução Neste capítulo abordaremos o estudo da trigonometria em geometria não euclidiana, tanto na versão elíptica como na hiperbólica. De entre as muitas maneiras possíveis de empreender este estudo271, escolhemos a apresentada em [Cox1], que tem a vantagem de ser aplicável quase sem alterações aos dois tipos de geometria, na linha unificadora que temos procurado seguir. Trabalharemos sempre em modelos projectivos, quer para a geometria elíptica quer para a hiperbólica. O nosso principal objectivo vai ser a obtenção de fórmulas relacionando os diversos elementos de um triângulo (lados, ângulos, alturas, etc); veremos ainda a conveniência do estudo da noção de área em geometria não euclidiana, um tema que abordaremos de forma elementar, sem recorrer aos métodos do cálculo integral e da geometria diferencial, como faz a maioria dos autores. De acordo com o que vimos no segundo capítulo, qualquer triângulo [ABC] pode ser usado como triângulo de referência para um sistema de coordenadas homogéneas no plano projectivo, o que possibilita ter coordenadas para os vértices e equações para os lados extremamente simples: por exemplo, se A for (1, 0, 0), B (0, 1, 0), C (0, 0, 1) e um ponto genérico tiver as coordenadas (x1 , x 2 , x3 ) , a recta AB terá a equação x3 = 0 . O preço a pagar por esta simplicidade é termos de considerar a polaridade absoluta na sua forma mais geral, em vez de recorrer às formas canónicas que utilizámos no estudo da geometria analítica nos dois últimos capítulos, perdendo-se então as fórmulas simplificadas que apresentámos272. Seria, naturalmente, possível, optar por trabalhar com as polaridades nas suas formas canónicas, mas então teríamos de considerar para vértices do um triângulo quaisquer três pontos (x), (y) e (z). Neste trabalho optámos por escolher o primeiro processo. Para terminar esta secção, fixemos a notação que vamos utilizar. Em tudo o que se vai seguir, dado um triângulo [ABC], qualquer um dos seus ângulos internos será designado pela letra (maiúscula) do seu vértice e o lado oposto a um dos ângulos internos pela mesma letra minúscula. A altura baixada de um vértice sobre o lado oposto será representada por ha , hb e hc , conforme o caso (ver a figura seguinte, onde traçámos hb )273. 271 A título de curiosidade, referimos outras possibilidades para o estudo da trigonometria: • a utilização do carácter “localmente euclidiano” das geometrias hiperbólica e elíptica que mostrámos no fim do último capítulo: é o processo usado em [Som]; • a separação entre a trigonometria hiperbólica e a elíptica; a hiperbólica é estudada em geral num dos modelos de Poincaré (que veremos no próximo capítulo), e a elíptica é abordada em comum com a trigonometria esférica; bons exemplos deste tipo de estudo surgem em [BuK] e [OnS]; • introdução de coordenadas no plano hiperbólico (ver [RamR]). 272 Podíamos naturalmente optar por trabalhar com a polaridade absoluta na forma canónica, mas então surgiriam complicações nas coordenadas dos vértices e nas equações dos lados. 273 É aliás a notação corrente em geometria euclidiana. - 140 - Figura 56 2. Breve revisão sobre polaridades. Conforme vimos no segundo capítulo, uma polaridade pode ser escrita na forma ρX i = a i1 x1 + a i 2 x 2 + ai 3 (i = 1, 2, 3) , ou, omitindo factores de proporcionalidade274, X i = a i1 x1 + a i 2 x 2 + ai 3 (i = 1, 2, 3) , sendo a matriz A = a ij simétrica e invertível. [ ] Resolvendo em ordem a xi , obtemos a expressão xi = Ai1 x1 + Ai 2 x 2 + Ai 3 (i = 1, 2, 3) , verificando-se as relações a ij = a ji , Aij = A ji , ∑ a ij Aik = δ jk e γ = det (a ij ) ≠ 0, Γ = det (Aij ) = γ −1 No que se vai seguir, utilizaremos frequentemente uma notação própria da teoria das formas bilineares: dados dois pontos x = ( x1 , x 2 , x3 ) e y = ( y1 , y 2 , y 3 ) e duas linhas X = ( X 1 , X 2 , X 3 ) e Y = (Y1 , Y2 , Y3 ) e as matrizes simétricas de coeficientes reais ~ A = a ij e A = Aij , escreveremos [ ] [ ] (xy ) = x Τ Ay = ∑∑ aij xi y j e [XY ] = X Τ AY = ∑∑ Aij X iY j . Vão também ser importantes as formas quadráticas associadas, ( xx ) e [ XX ] . A condição para que um ponto x = ( x1 , x 2 , x3 ) seja auto-conjugado para a polaridade é então que ( xx ) = x Τ Ax seja igual a zero ou, de forma explícita, que a11 x12 + a22 x22 + a33 x32 + 2a12 x1 x2 + 2a13 x1 x3 + 2a23 x2 x3 = 0 275. Deduz-se então imediatamente o seguinte resultado: 274 275 O que é possível por estarmos a trabalhar em coordenadas homogéneas. Em termos de pontos; existe uma expressão análoga em termos de linhas. - 141 - Teorema 94: A polaridade absoluta é elíptica ou hiperbólica consoante a forma quadrática (xx ) = x Τ Ax seja definida ou indefinida. ■ É por vezes útil o seguinte critério para o estudo do sinal da forma: Teorema 95: A forma (xx ) = x Τ Ax é definida se e só se os números A11 , a 22 e γ tiverem o mesmo sinal e indefinida caso contrário. Demonstração: Não a vamos apresentar; o leitor interessado pode consultar [Ve2], página 205. ■ Recordando mais uma vez que estamos a trabalhar com coordenadas homogéneas, a polaridade não é afectada se trocarmos os sinais de todos os termos a ij e Aij podemos sem perda de generalidade supor que (xx ) > 0 para qualquer ponto (x ) (em geometria elíptica) ou para qualquer ponto ordinário (em geometria hiperbólica), convenção que adoptaremos salvo aviso em contrário. Continuando a rever alguns resultados sobre polaridades apresentados anteriormente, recordemos276 uma condição de natureza algébrica para dois pontos (ou duas linhas) serem conjugados277: “Sejam x = ( x1 , x2 , x3 ) e y = ( y1 , y 2 , y3 ) os pontos em causa, e [X ] e [Y ] as suas polares, escritas na forma tangencial. O ponto x = ( x1 , x2 , x3 ) é conjugado de y = ( y1 , y 2 , y3 ) se incidir com a polar deste último, isto é, se { xiYi } = 0 ; como Yi = ∑ aij y j , vem que tem de ser ∑a Analogamente se obtém a relação ij xi y j = 0 , que é a condição pretendida. j = 0 para duas linhas serem conjugadas.” i, j j ∑A X Y ij i i, j Das fórmulas indicadas na proposição resulta a seguinte fórmula útil para pólos e polares: Teorema 96: Sejam (x) e (y) dois pontos e [X] e [Y] as suas polares. Então, tem-se que (xy ) = {xY } = [XY ] = {Xy} . Demonstração: É imediata a partir das fórmulas indicadas. ■ 276 Provada nas observações a seguir ao Teorema 38. Podemos agora dizer “perpendiculares”, se atendermos às definições apresentadas nos dois capítulos anteriores. 277 - 142 - Corolário: Em geometria elíptica, para qualquer linha [X], tem-se [ XX ] > 0 ; em geometria hiperbólica, tem-se [XX ] = ( xx) > 0 para a recta polar dum ponto hiperbólico (uma recta “ultra-ideal”, exterior ao Absoluto) e portanto [XX ] < 0 para as rectas “normais”. Demonstração: Resulta de se ter (xx ) = [XX ] e da convenção anteriormente referida.278 3. Trigonometria elíptica O estudo da trigonometria no plano elíptico tem alguns pontos delicados: com efeito, o conhecimento dos vértices de um triângulo não determina de forma unívoca uma região do plano, ao contrário do que sucede no plano hiperbólico (ou no plano euclidiano). Recordemos que, dados três pontos não colineares do plano, A, B e C os lados do triângulo [ABC] são as rectas AB, AC e BC; os três pontos dados são os vértices do triângulo. Tem-se o seguinte resultado, consequência dos resultados sobre separação na recta projectiva: Teorema 97: Duas linhas r e s dividem o plano projectivo em duas classes de pontos: dois pontos A e B estão em classes distintas se são separados pelos pontos que resultam da intersecção da recta AB com as rectas r e s e estão na mesma classe caso contrário.279 Demonstração: Resulta por dualidade do lema 3 do Teorema 5 do segundo capítulo. ■ Definição 59: Chama-se região a cada uma das duas classes de pontos do teorema anterior. Consideremos então duas rectas do plano projectivo r e s e as regiões por elas determinadas. Uma terceira recta t subdividirá em geral as duas regiões anteriores. Temos assim o seguinte resultado, ilustrado na Figura 57, à esquerda: Teorema 98: Os lados de um triângulo [ABC] dividem o resto do plano elíptico em quatro regiões. ■ Uma maneira de individualizar uma dessas regiões é escolher uma linha p, não incidente com nenhum dos vértices. As rectas AB, AC e BC dividem-na em três 278 Assim, as formas quadráticas (xx) e [XX] são definidas positivas; em particular, os determinantes das suas matrizes são positivos. 279 Compare-se com a teoria da separação num plano de geometria absoluta, em que uma única recta divide o plano em dois semiplanos ([Dio2], páginas 34 e 35). - 143 - segmentos, contidos respectivamente em três das quatro regiões. A região restante, à qual p é exterior é então representada por [ABC] \ p (ver Figura 57, à direita). p \ ] C B A [ 3 pppp 2 CCCC p \ ] C B A [ 3 4 BBBB 4 1 AAAA 2 Figura 57 Uma vez seleccionada uma qualquer das quatro regiões como o triângulo [ABC] a estudar, as três restantes são designadas como triângulos colunares ou associados do triângulo [ABC]. Se recordarmos que o comprimento de uma linha elíptica280 é igual a π, é imediato que o triângulo colunar que compartilha com o triângulo original um mesmo lado a, tem lados a, π − b e π − c e ângulos A, π − B e π − C . Uma alternativa muito usada281 para resolver o problema das ambiguidades é estudar apenas triângulos tais que o comprimento dos lados não exceda o comprimento de meia linha recta (π/2). Esta convenção é análoga à que se usa habitualmente em geometria esférica (só considerar triângulos cujos lados282 não excedam π - ver, por exemplo, [McP], [Ayr2], [OnS] ou [Tod]) e parece-nos mais clara, pelo que vamos utilizá-la, salvo aviso em contrário.283 Naturalmente, as amplitudes dos ângulos nunca excederão π. Para obtermos as fórmulas da trigonometria elíptica, recordemos alguns resultados de geometria analítica vistos no terceiro capítulo: Ângulo entre duas rectas [X] e [Y] 284 cos 2 2 { xY }{yX } [ XY ] ∠([X ], [Y ]) = = {xX }{yY } [XX ][YY ] e ∠([ X ], [Y ]) = arcos − [ XY ] [XX ] [YY ] 280 Ver página 87 (terceiro capítulo). Por exemplo em [Red], [OnS] e [Ba2]. 282 O que implica verificar-se o mesmo para os ângulos ([Tod], página 9). 283 O leitor interessado em ver os problemas bizarros que podem surgir quando se consideram triângulos elípticos “demasiado grandes” e suas implicações na trigonometria elíptica pode consultar [BuK], páginas 221 a 223. 284 Ver a convenção de sinal utilizada no terceiro capítulo. 281 - 144 - Distância entre dois pontos (x) e (y) cos xy = {xY }{yX } = {xX }{yY } ( xy) ( xx) ( yy ) Distância de um ponto (x) a uma recta [Y] d (( x), [Y ]) = arcsen {xY } ( xx) [YY ] Necessitaremos ainda de um resultado auxiliar: Lema 6: ~ Sejam A = a ij e A = Aij [ ] [ ] as duas matrizes referidas no início da segunda secção. Então, os coeficientes das diagonais a11 , a 22 , a33 , A11 , A22 e A33 são estritamente positivos. Demonstração: Seja x = (1, 0, 0 ) ; então, (xx ) = x Τ Ax > 0 . Como x Τ Ax = a11 , segue-se o resultado. A prova para os restantes coeficientes é igual. ■ Vamos agora obter fórmulas para os lados do triângulo de referência. Teorema 99: Os lados a, b, e c do triângulo de referência verificam as seguintes relações: cos a = a 23 a 22 a 33 , cos b = a 31 a11 a 33 , cos c = a12 a11 a 22 Demonstração: Provemos a primeira relação. Para tanto, considerem-se os pontos B = (0, 1, 0 ) e ( xy) . C = (0, 0, 1) e faça-se x = (0, 1, 0 ) e y = (0, 0, 1) na fórmula cos xy = ( xx) ( yy ) - 145 - a11 Então, a = BC = xy e (xy ) = x Ay = (0, 1, 0)⋅ a12 a13 Τ a12 a 22 a 23 a13 0 a 23 ⋅ 0 = a 23 , a33 1 (xx ) = a 22 , ( yy ) = a33 ; por substituição, segue-se o resultado285. A prova das duas outras relações é análoga. ■ Corolário: Nas condições do teorema, tem-se que sen a = A11 γ a 22 a33 , sen b = A22 γ a11 a33 e sen c = A33 γ a11 a 22 , onde γ = det(A) . Demonstração: Provaremos apenas a primeira igualdade, já que a justificação das restantes é análoga. De cos a = a23 a22 a33 , segue-se, pela fórmula fundamental da trigonometria, que 2 a 22 a33 − a 23 . Ora o numerador é igual a A11 γ , se tivermos em conta o a 22 a 33 significado das matrizes a ij e Aij e atendermos ao bem conhecido resultado de Álgebra Linear que relaciona a inversa de uma matriz com a sua adjunta: A11 γ , como queríamos. ■ A −1 = Aˆ Τ / det( A) . Vem então sen a = a 22 a 33 sen 2 a = [ ] [ ] Existem resultados análogos para os ângulos do triângulo de referência: Teorema 100: Os ângulos A, B, e C do triângulo de referência verificam as seguintes relações: cos A = − A23 A22 A33 , cos B = − A31 A11 A33 , cos C = − A12 A11 A22 285 Repare-se que estamos sempre a trabalhar no campo real, já que os radicandos são positivos, em virtude do Lema 6. - 146 - Demonstração: É semelhante à anterior. Para provar a primeira relação, considerem-se as rectas AC e AB, de coordenadas tangenciais [0, 1, 0] e [0, 0, 1] , respectivamente e faça-se [X ] = [0, 1, 0] e [Y ] = [0, 0, 1] na fórmula ∠([X ], [Y ]) = arcos − [XY ] . [XX ] [YY ] Então, A = ∠([ X ], [Y ]) e A11 ~ [XY ] = X AY = [0, 1, 0]⋅ A12 A13 Τ A12 A22 A23 A13 0 A23 ⋅ 0 = A23 , [ XX ] = A22 e [YY ] = A33 ; A33 1 por substituição, segue-se o resultado286. A prova das duas outras relações é análoga. ■ Corolário: Nas condições do teorema, tem-se que sen A = a11 Γ A22 A33 , sen B = a 22 Γ A11 A33 e sen C = a 33 Γ A11 A22 , ~ onde Γ = det( A) . Demonstração: Procede-se tal como na prova do corolário do teorema anterior, reparando que 2 A22 A33 − A23 = a11Γ . ■ Vejamos agora fórmulas envolvendo as alturas do triângulo de referência. Temse o seguinte resultado: Teorema 101: As alturas ha , hb e hc do triângulo de referência [ABC] verificam as relações cosec ha = a11 A11 , cosec hb = a 22 A22 e cosec hc = a33 A33 . Demonstração: Como habitualmente, provaremos apenas a primeira relação. Consideremos o vértice A = (1, 0, 0 ) e a recta BC, de coordenadas tangenciais [1, 0, 0]. Faça-se x = (1, 0, 0 ) e 286 Repare-se que estamos sempre a trabalhar no campo real, já que os radicandos são positivos, em virtude do Lema 6. - 147 - [Y ] = [1, 0, 0] na equação d (( x), [Y ]) = arcsen como teoremas nos sen ha = 1 a11 A11 anteriores, vem {xY } ( xx) [YY ] . Efectuando os cálculos tal (xx ) = a11 , {xY } = 1 e [YY ] = A11 ou, o que é o mesmo, cosec ha = e então, a11 A11 . As outras duas fórmulas provam-se de forma análoga. ■ Utilizando os resultados dos últimos três teoremas, podemos obter uma série de fórmulas clássicas relacionando os elementos (lados e ângulos) de um triângulo elíptico [ABC]. Teorema 102 (lei dos senos): sen a sen b sen c = = sen A sen B sen C Demonstração: Calculemos o produto sen a sen ha : usando as fórmulas obtidas no Teorema 99 e no Teorema 101, vem sen a ⋅ sen ha = A11 γ a 22 a33 ⋅ 1 a11 A11 = γ a11 a 22 a33 ; fazendo os produtos sen b ⋅ sen hb e sen c ⋅ sen hc , obtém-se o mesmo resultado, pelo que podemos concluir que sen a ⋅ sen ha = sen b ⋅ sen hb = sen c ⋅ sen hc (1) Recorrendo ao Teorema 100 e ao Teorema 101, prova-se de forma análoga que os três produtos sen A ⋅ sen ha , sen B ⋅ sen hb e sen C ⋅ sen hc têm o valor comum Γ A11 A22 A33 , pelo que podemos escrever sen A ⋅ sen ha = sen B ⋅ sen hb = sen C ⋅ sen hc (2) Dividindo ordenadamente (1) por (2) segue-se o resultado. ■ - 148 - Teorema 103: (Lei dos co-senos para os lados) cos c = cos a ⋅ cos b + sen a ⋅ sen b ⋅ cos C cos a = cos b ⋅ cos c + sen b ⋅ sen c ⋅ cos A cos b = cos a ⋅ cos c + sen a ⋅ sen c ⋅ cos B . Demonstração: Provaremos apenas a primeira relação, já que as outras duas se obtêm dela por permutação dos elementos. Para tanto, basta reparar que sen a ⋅ sen b ⋅ cos C = − A12 γ a 22 a33 a11 = a 33 a12 − a 23 a31 a 22 a 33 a11 = cos c − cos a ⋅ cos b . ■ Teorema 104: (Lei dos co-senos para os ângulos) cos C = − cos A ⋅ cos B + sen A ⋅ sen B ⋅ cos c cos A = − cos B ⋅ cos C + sen B ⋅ sen C ⋅ cos a cos B = − cos A ⋅ cos C + sen A ⋅ sen C ⋅ cos b . Demonstração: Provaremos novamente apenas a primeira relação. Tem-se sen A ⋅ sen B ⋅ cos c = − a12 Γ A22 A33 A11 = − A33 A12 + A23 A31 A22 A33 A11 = cos C + cos A ⋅ cos B e segue-se o resultado. ■ Teorema 105: (Fórmulas dos quatro elementos)287 cotg c ⋅ sen a − cotg C ⋅ sen B − cos a ⋅ cos B = 0 cotg a ⋅ sen b − cotg A ⋅ sen C − cos b ⋅ cos C = 0 287 [Sma], página 12; o nome curioso “fórmulas dos quatro elementos” tem a ver com o facto de elas relacionarem quatro “elementos consecutivos” do triângulo, conforme se pode ver na figura do texto. Na primeira fórmula, os elementos são c, B, a , C e na segunda a, C, b, A. - 149 - CCCC aaaa bbbb BBBB AAAA cccc Figura 58 Demonstração: Não vamos apresentá-la em pormenor, pois é análoga às anteriores: consiste em ~ escrever os vários termos de cada fórmula em função dos elementos das matrizes A e A e simplificar as expressões obtidas. É de observar que se pode deduzir uma série de fórmulas análogas permutando os elementos do triângulo. ■ Vejamos um exemplo de resolução de um triângulo elíptico: Exemplo 1: Resolver o triângulo [ABC] sendo A = (1, 1, 0 ) , B = (0, 2,1) e C (1, − 1, 2 ) , sabendo que a polaridade (elíptica) considerada é definida pela matriz identidade. Comecemos por calcular c = AB . Pela fórmula da distância entre dois pontos, vem c = arcos (1, 1, 0) ⋅ (0, 2, 1) 2 2 2 2 2 1 +1 + 0 ⋅ 0 + 2 +1 Analogamente, a = arcos b = arcos 2 , donde c = arcos (0, 2, 1) ⋅ (1, − 1, 2) 2 0 2 + 2 2 + 12 ⋅ 12 + (− 1) + 2 2 (1, 1, 0) ⋅ (1, − 1, 2) 2 12 + 12 + 0 2 ⋅ 12 + (− 1) + 2 2 10 ≈ 0,8861 5 , donde a = arcos 0 = , obtendo-se finalmente b = arcos 0 = π e 2 π . 2 Para determinar os ângulos, recorremos ao Teorema 103 (lei dos co-senos para os lados): - 150 - cos c = cos a ⋅ cos b + sen a ⋅ sen b ⋅ cos C Substituindo nesta fórmula os elementos determinados anteriormente, vem cos (arcos 10 π π π π ) = cos ⋅ cos + sen ⋅ sen ⋅ cos C , 5 2 2 2 2 donde se conclui que C = arcos A=B= 10 ≈ 0,8861 . Procedendo de forma análoga, obtemos 5 π , o que conclui a resolução do triângulo dado. ■ 2 Podemos derivar a partir das fórmulas dos teoremas anteriores toda uma série de fórmulas relacionando os vários elementos e que são utilizadas na resolução de triângulos elípticos ou esféricos (fórmulas dos semi-lados e dos semi-ângulos, analogias de Gauss-Delambre, analogias de Neper, etc). Não vamos deduzi-las, remetendo o leitor interessado para qualquer das obras indicadas anteriormente, onde também poderá ver os diversos processos para a resolução de triângulos. Não queremos, no entanto, deixar de apresentar as fórmulas mais importantes dos triângulos elípticos rectângulos (aqueles que têm pelo menos um ângulo recto288). Suponhamos então que C = π . 2 Por substituição nas fórmulas anteriores, obtêm-se as seguintes dez fórmulas, conhecidas como fórmulas fundamentais dos triângulos rectângulos: 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) sen a = sen c ⋅ sen A ; sen b = sen c ⋅ sen B ; cos c = cos a ⋅ cos b 289; cos c = cotg A ⋅ cotg B ; cos A = cos a ⋅ sen B ; cos B = cos b ⋅ sen A ; tg a = tg c ⋅ cos B ; tg a = sen b ⋅ tg A ; tg b = tg c ⋅ cos A ; tg b = sen a ⋅ tg B . 288 Ao contrário do que sucede na geometria euclidiana, um triângulo pode ter mais do que um ângulo recto, conforme se viu no exemplo 1. 289 Fórmula conhecida como Teorema de Pitágoras elíptico, por motivos que veremos a seguir. - 151 - Existe um processo muito curioso para facilitar a memorização destas fórmulas conhecido por Regras de Neper. π −B 2 a π −c 2 π −A 2 b Figura 59 Escolhamos um dos cinco elementos da figura da direita, ao qual chamaremos mediano; os dois elementos a ele contíguos serão denominados adjacentes e os outros dois opostos. As Regras de Neper são: 1) O seno do mediano é igual ao produto das tangentes dos adjacentes. 2) O seno do mediano é igual ao produto dos co-senos dos opostos. Por exemplo, se escolhermos como mediano b, os adjacentes serão a e os opostos serão π −A e 2 π π −B e −c. 2 2 π Pela primeira regra, vem sen b = tg a ⋅ tg − A , donde, após simplificação, vem 2 tg a = sen b ⋅ tg A , que é a fórmula 8). π π Pela segunda regra, vem sen b = cos − B ⋅ cos − c ; após simplificação, 2 2 obtém-se sen b = sen c ⋅ sen B , que é a fórmula 2). Procedendo desta maneira, obtemos as dez fórmulas anteriormente listadas. É de referir que existe um processo análogo para a trigonometria hiperbólica, a Regra de Kotelnikov (veja-se [Gre], páginas 430 e 431). Para terminar esta secção, apresentaremos duas aplicações interessantes da trigonometria elíptica. Na primeira vamos reobter o último resultado do capítulo anterior, a saber, a natureza “essencialmente euclidiana” das regiões “pequenas” do plano elíptico; na segunda provaremos um resultado clássico sobre a soma dos ângulos internos de um triângulo elíptico, que vai contrastar fortemente com o resultado análogo da geometria euclidiana. - 152 - Para o primeiro resultado, consideremos o “Teorema de Pitágoras elíptico”. Se o triângulo [ABC] for rectângulo em C, então cos c = cos a ⋅ cos b ; desenvolvamos em série de MacLaurin as funções circulares que nela figuram. Vem c2 a2 b2 1 − + K = 1 − + K ⋅ 1 − + K . 2! 2! 2! Efectuando o produto de Cauchy das séries no segundo membro290, vem 1− c2 a2 b2 +K = 1− − + {termos de ordem quatro ou superior}. 2! 2! 2! Desprezando então os termos de ordem superior, concluímos que, numa região “infinitesimal” do plano elíptico é válido o Teorema de Pitágoras usual c 2 = a 2 + b 2 , tendo pois a geometria elíptica um carácter “localmente euclidiano”. Quanto à segunda aplicação e atendendo à importância do resultado, vamos enunciá-la formalmente: Teorema 106: A soma dos ângulos internos de um triângulo elíptico está entre π e 3π. Demonstração: Seja [ABC] o triângulo em causa e suponhamos que a notação foi já escolhida de modo a ter-se π > A ≥ B ≥ C > 0. Desta cadeia de desigualdades segue-se que − π < A − B − C < π (1) Pelo Teorema 104, cos A = − cos B ⋅ cos C + sen B ⋅ sen C ⋅ cos a ; por outro lado, se atendermos à conhecida fórmula do co-seno da soma, tem-se que cos(B + C ) = cos B ⋅ cos C − sen B ⋅ sen C . Adicionando membro a membro as duas últimas igualdades e simplificando, vem cos A + cos(B + C ) = −sen B ⋅ sen C (1 − cos a ) . Se aplicarmos as fórmulas de transformação logarítmica ao primeiro membro, resulta que 2 cos A+ B +C A− B−C cos = −sen B ⋅ sen C (1 − cos a ) (2). 2 2 290 O que é lícito, já que as séries de potências envolvidas têm raio de convergência infinito e portanto a convergência é absoluta para quaisquer valores de a e b. - 153 - O segundo membro da equação (2) é obviamente negativo; por π A− B −C π resulta imediatamente da equação (1) que − < < 2 2 2 A− B −C A+ B +C A+ B+C cos > 0 . Logo, cos < 0 e segue-se que > 2 2 2 resultado. A majoração da soma dos ângulos apresentada é trivial. ■ outro lado, e portanto π , donde o 2 4. Trigonometria hiperbólica Consideremos três pontos não colineares A, B e C. Recordemos que, em geometria absoluta (em particular em geometria hiperbólica), o triângulo [ABC] é o conjunto de pontos [ AB] ∪ [BC ] ∪ [ AC ]; os pontos A, B e C são os vértices e os três segmentos [ AB], [BC ] e [ AC ] os lados. Em tudo o que se segue utilizaremos a convenção sobre a designação de lados e ângulos que foi indicada no início do capítulo. O estudo dos triângulos em geometria hiperbólica (ou até em geometria absoluta) é consideravelmente mais simples do que em geometria elíptica, uma vez que o conhecimento dos três vértices define univocamente o triângulo e não há quaisquer restrições para o comprimento dos lados. A grande vantagem do processo que temos estado a seguir para o estudo da trigonometria não euclidiana é que os resultados que vamos apresentar sobre trigonometria hiperbólica têm demonstrações praticamente iguais às feitas no caso elíptico, pelo que nos dispensaremos de as apresentar em pormenor, limitando-nos a indicar as poucas diferenças que subsistem (essencialmente, trata-se de substituir funções circulares por funções hiperbólicas nalgumas fórmulas). Conforme vimos anteriormente, tem-se que as formas ( xx ) e [XX ] são definidas positivas em geometria elíptica. Em geometria hiperbólica, são indefinidas, mas tem-se (xx) > 0 para cada ponto do interior do Absoluto (isto é, para cada ponto hiperbólico), (xx) < 0 para os pontos ultra-ideais e (xx ) = 0 para os pontos ideais (pertencentes ao Absoluto). Como ( xx ) = [XX ] (sendo X a recta polar do ponto x), resulta que [ XX ] < 0 para as rectas hiperbólicas (secantes ao Absoluto) e [ XX ] > 0 para as rectas ultra-ideais (exteriores ao Absoluto). As fórmulas da geometria analítica elíptica da secção anterior deverão ser substituídas pelas suas equivalentes hiperbólicas, de acordo com o que se viu no quarto capítulo: Ângulo entre duas rectas [X] e [Y] 291 cos 2 ∠([X ], [Y ]) = 291 {xY }{yX } = [XY ]2 {xX }{yY } [XX ] ⋅ [YY ] e ∠([X ], [Y ]) = arcos [XY ] [XX ] ⋅ [YY ] Ver a convenção de sinal utilizada no terceiro capítulo. - 154 - Distância entre dois pontos (x) e (y) ch xy = (xy ) {xY }{yX } = {xX }{yY } (xx ) ⋅ ( yy ) Distância de um ponto (x) a uma recta [Y] d (( x), [Y ]) = arcsh {xY } (xx ) ⋅ [YY ] O análogo do Lema 6 é: Lema 7: ~ Sejam A = aij e A = Aij [ ] [ ] as duas matrizes referidas no início da segunda secção. Então, os coeficientes a11 , a 22 , e a33 são estritamente positivos e os coeficientes A11 , A22 e A33 são estritamente negativos. Demonstração: É igual à do Lema 6, tendo em conta as considerações sobre os sinais das formas quadráticas feitas no início da secção. ■ Tal como na geometria elíptica, deduzem-se as fórmulas para os elementos do triângulo de referência292. Tem-se assim: Teorema 107: Os lados a, b, e c do triângulo de referência verificam as seguintes relações: ch a = a 23 a 22 a 33 , ch b = a31 a11 a 33 , ch c = a12 .■ a11 a 22 Corolário: Nas condições do teorema, tem-se que sh a = A11 γ a 22 a 33 , sh b = A22 γ a11 a33 e sh c = A33 γ a11 a 22 , 292 Não apresentamos as demonstrações dos teoremas seguintes por serem iguais às feitas anteriormente no estudo da trigonometria elíptica. - 155 - onde γ = det( A) . ■ Teorema 108: Os ângulos A, B, e C do triângulo de referência verificam as seguintes relações: A23 cos A = A22 A33 , cos B = A31 A11 A33 , cos C = A12 A11 A22 ■. Corolário: Nas condições do teorema, tem-se que a11 Γ sen A = A22 A33 , sen B = a 22 Γ A11 A33 e sen C = a33 Γ A11 A22 , ~ onde Γ = det( A) ■. Teorema 109: As alturas ha , hb e hc do triângulo de referência [ABC] verificam as relações cosech ha = a11 A11 , cosech hb = a 22 A22 e cosech hc = a33 A33 . ■ Teorema 110 (lei dos senos): sh a sh b sh c = = .■ sen A sen B sen C Teorema 111: (Lei dos co-senos para os lados) ch c = ch a ⋅ ch b − sh a ⋅ sh b ⋅ cos C ch a = ch b ⋅ ch c − sh b ⋅ sh c ⋅ cos A ch b = ch a ⋅ ch c − sh a ⋅ sh c ⋅ cos B . ■ - 156 - Teorema 112: (Lei dos co-senos para os ângulos) cos C = − cos A ⋅ cos B + sen A ⋅ sen B ⋅ ch c cos A = − cos B ⋅ cos C + sen B ⋅ sen C ⋅ ch a cos B = − cos A ⋅ cos C + sen A ⋅ sen C ⋅ ch b . ■ Da mesma forma que na geometria elíptica, existem fórmulas especiais para os triângulos rectângulos (que no caso da geometria hiperbólica apenas podem ter um π ângulo recto, como é óbvio). Suponhamos então que C = . Por substituição nas 2 fórmulas anteriores, obtêm-se as seguintes dez fórmulas, conhecidas como fórmulas fundamentais dos triângulos rectângulos: 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) sh a = sh c ⋅ sen A ; sh b = sh c ⋅ sen B ; ch c = ch a ⋅ ch b 293; ch c = cotg A ⋅ cotg B ; cos A = ch a ⋅ sen B ; cos B = ch b ⋅ sen A ; tgh a = tgh c ⋅ cos B ; tgh a = sh b ⋅ tg A ; tgh b = tgh c ⋅ cos A ; tgh b = sh a ⋅ tg B . Para facilitar a memorização destas fórmulas, repare-se que elas se obtêm das suas análogas para o caso elíptico substituindo as funções circulares dos lados pelas funções hiperbólicas correspondentes. Concluímos esta secção fazendo três aplicações das fórmulas precedentes: 1) Reobtendo o resultado sobre o carácter “localmente euclidiano” do plano hiperbólico visto no fim do capítulo anterior; 2) Resolvendo triângulos hiperbólicos equiláteros; 3) Provando por via analítica que a soma dos ângulos internos de um triângulo hiperbólico é inferior a dois rectos. 293 Fórmula conhecida como Teorema de Pitágoras hiperbólico. - 157 - Quanto a 1), a prova é praticamente igual à do resultado análogo para o caso elíptico. Partimos do Teorema de Pitágoras hiperbólico ch c = ch a ⋅ ch b e desenvolvemos em série de MacLaurin as funções hiperbólicas que figuram em ambos os membros294. Vem c2 a2 b2 1 + + K = 1 + + K ⋅ 1 + + K . 2! 2! 2! Efectuando o produto de Cauchy das séries no segundo membro, obtemos 1+ c2 a2 b2 +K = 1+ + + {termos de ordem quatro ou superior} . 2! 2! 2! Desprezando então os termos de ordem superior, concluímos que, numa região “infinitesimal” do plano hiperbólico é válido o Teorema de Pitágoras usual c 2 = a 2 + b 2 , pelo que a geometria hiperbólica tem um carácter “localmente euclidiano”. Passemos a 2). Num triângulo equilátero, os três ângulos internos são iguais295 (mas a sua amplitude não é, obviamente π/3, como sucede na geometria euclidiana…); seja C um deles. Fazendo a = b = c na fórmula ch c = ch a ⋅ ch b − sh a ⋅ sh b ⋅ cos C , obtemos C = arcos ch 2 c − ch c . Atribuindo valores a c, obtemos a seguinte tabela: sh 2 c Lado c Ângulo C (radianos) Ângulo C (graus) 10 0,0135 0º,77 5 0,1633 9º,35 2,5 0,5359 30º,71 1.5 0,7930 45º,34 1 0,9188 52º,64 0,5 1,0122 57º,99 0,1 1,0458 59º,92 A título de curiosidade, apresentamos na figura abaixo o gráfico da função ch 2 c − ch c π definida por f (c) = arcos ; constata-se imediatamente que lim f (c) = 2 x → 0 3 sh c (60º, no sistema sexagesimal…), de acordo com o resultado referido na primeira aplicação). 294 295 Ver o Apêndice B. Trata-se de uma propriedade de geometria absoluta; veja-se [Dio2], página 74. - 158 - Figura 60 Vejamos finalmente 3), provando analiticamente o seguinte teorema, que já tínhamos obtido anteriormente por via sintética. Teorema 113: A soma dos ângulos internos de um triângulo hiperbólico é inferior a dois rectos. Demonstração: Basta provar o resultado para triângulos rectângulos, já que qualquer triângulo pode ser decomposto em dois triângulos rectângulos por meio de uma altura conveniente. Assim, seja [ABC] um triângulo hiperbólico rectângulo em C; temos em vista mostrar que A + B + C < π ou, o que é o mesmo, que A + B < π / 2 . Como os dois factores do segundo membro da fórmula cos B = sen A ⋅ ch b (faça-se C = π / 2 na terceira identidade do Teorema 112) são positivos, segue-se que cos B > 0 e portanto B < π / 2 . Vem então cos( A + B ) = cos A ⋅ cos B − sen A ⋅ sen B = sen A (cos A ⋅ ch b − sen B ) ( = sen A (cos A ⋅ ch b − = sen A cos A ⋅ ch b − 1 − cos 2 B ) 1 − sen 2 A ⋅ ch 2 b ) (atenda-se a que cos B = sen A ⋅ ch b neste último passo). - 159 - Ora 1 − sen 2 A ⋅ ch 2 b < 1 − sen 2 A = cos A , donde se conclui que cos( A + B ) > sen A ⋅ cos A( ch b − 1) > 0 e portanto A + B < π / 2 , como queríamos. ■ Se compararmos as fórmulas trigonométricas da geometria elíptica e da geometria hiperbólica, nota-se imediatamente a sua grande semelhança: na verdade, se nas fórmulas da geometria elíptica os comprimentos a, b e c forem substituídos por ia, ib e ic (onde i é a unidade imaginária), obtêm-se as fórmulas da geometria hiperbólica. Esta observação foi feita por alguns percursores da geometria não euclidiana, como Lambert e F. A. Taurinus (1794-1874), que consideraram que o estudo da geometria hiperbólica correspondia à geometria esférica sobre uma esfera de raio imaginário. Mais tarde, esta semelhança foi utilizada numa tentativa de provar a consistência da geometria hiperbólica, argumentando-se que, em virtude da semelhança referida, a geometria hiperbólica seria pelo menos tão consistente como a geometria esférica296, já então universalmente aceite. O argumento era algo fraco e poucos o aceitaram; a primeira prova irrefutável de consistência da geometria hiperbólica foi feita em 1868 por Beltrami, recorrendo a modelos obtidos nos seus estudos de Geometria Diferencial. A explicação cabal da referida semelhança só foi feita mais tarde, quando se desenvolveram os estudos da geometria projectiva em espaços complexos. 5. Área em geometria não euclidiana A introdução da noção de área em geometria não euclidiana plana é algo mais complicada do que em geometria euclidiana. Para vermos porquê, recordemos o processo usual de introdução da noção de área neste último caso. Para começar, temos de definir quais os conjuntos de pontos do plano aos quais se vai atribuir área. Seria desejável que tal fosse possível para todos os subconjuntos do plano euclidiano, mas isso é, em princípio, impossível, como veremos depois. Assim, fixemos um objectivo mais modesto e procuremos definir área de uma região poligonal. Definição 60: Uma região poligonal é uma figura plana que pode ser escrita como união de um número finito de regiões triangulares297 tais que se duas destas últimas se intersectam, a intersecção se reduz a um vértice ou um lado de cada um delas.298 296 Trata-se da geometria esférica clássica e não da geometria elíptica, que só foi desenvolvida mais tarde por Klein e Cayley. 297 Uma região triangular é a união de um triângulo com o seu interior. 298 A decomposição de uma região poligonal em regiões triangulares não tem de ser única (ver Figura 61, ao centro e à direita). - 160 - Figura 61 Representaremos por R o conjunto de todas as regiões poligonais. Definição 61: Uma função de área é uma aplicação α: R → R que verifica as seguintes condições: a) Se R∈ R, α(R ) > 0 ; α(R ) diz-se a área de R. b) Condição de congruência: se duas regiões triangulares R e R' são congruentes, então α(R ) = α(R') (isto é, duas regiões congruentes têm a mesma área). c) Condição de aditividade: se duas regiões poligonais R e R' são disjuntas ou se a sua intersecção é formada apenas por lados e vértices, então α(R ∪ R') = α(R ) + α(R') . d) Condição de normalização: a área de um quadrado de lado a é igual a a 2 .299 É possível provar300 que existe uma tal função de área para as regiões poligonais301 e, a partir dela, obter todas as fórmulas usuais para as áreas dos polígonos. Vejamos, a título de curiosidade, como se pode obter a fórmula para a área de um rectângulo. Teorema 114: A área de um rectângulo é igual ao produto do seu comprimento pela sua largura. Demonstração: Dado um rectângulo de comprimento c e largura l, construímos um quadrado de lado c + l e fazemos a sua decomposição conforme a figura seguinte. 299 Prova-se (ver [Moi], páginas 165 a 167) que esta condição pode ser substituída pela forma mais fraca “a área de um quadrado de lado 1 é igual a 1”. 300 Não o vamos fazer aqui; tal demonstração é um bom exemplo de que, em Matemática, elementar e simples não são o mesmo! O leitor interessado pode ver a prova no capítulo 14 de [Moi]. 301 Diz-se então que as regiões poligonais são os conjuntos mensuráveis para a função α. - 161 - c A l l l A1 l l c A2 A c l c Figura 62 Vem (c + l )2 = 2 A + A1 + A2 c 2 + 2cl + l 2 = 2 A + c 2 + l 2 2cl = 2 A e portanto A = cl como queríamos. ■ Antes de passarmos para a geometria não euclidiana, não queremos deixar de referir que é possível definir a noção de área para conjuntos do plano muito mais gerais que as regiões poligonais. Tais desenvolvimentos são estudados na Teoria da Medida e levam essencialmente à introdução de dois tipos de medida plana, a medida de Jordan e a medida de Lebesgue, sendo a segunda uma extensão (considerável…) da primeira (no sentido de que se um conjunto é mensurável à Jordan, também é mensurável à Lebesgue e os valores das duas medidas coincidem; há, no entanto, “muitos” conjunto que são mensuráveis à Lebesgue e não o são à Jordan). O leitor interessado pode ver um construção da medida plana de Jordan no capítulo 22 de [Moi] e uma construção da medida de Lebesgue no plano em [KF], páginas 241 a 254. Finalmente, e para ilustrar a delicadeza destas questões, voltamos a um problema referido no início da secção: será possível definir de forma razoável a área de qualquer subconjunto do plano? Para abordar esta questão, é natural considerar a mais geral das várias medidas referidas (a de Lebesgue); a resposta surpreendente é que depende dos axiomas adoptados na Teoria dos Conjuntos. Se, como é usual, aceitarmos o Axioma da Escolha, é possível provar que há conjuntos não mensuráveis à Lebesgue; se rejeitarmos esse axioma e adoptarmos uma das alternativas ao mesmo (o chamado Axioma da Determinação), é possível provar que todos os conjuntos são mensuráveis à Lebesgue. O leitor interessado no assunto pode consultar a referência [OlF2]. Voltando à geometria não euclidiana, é relativamente óbvio que não podemos esperar construir uma função de área nos moldes da apresentada para o caso euclidiano: - 162 - • Para a definição da função de área no caso euclidiano, é fundamental a existência de quadrados, que não existem302 nem geometria hiperbólica nem em geometria elíptica; • Na teoria euclidiana da área, desempenha papel fundamental a noção de semelhança, que não faz sentido em nenhum dos tipos de geometria não euclidiana que estamos a considerar303. Como proceder então para construir uma noção razoável de área em geometria não euclidiana? Curiosamente, a análise da demonstração da construção da função de área da geometria euclidiana ([Moi], capítulo 14) dá-nos uma pista: embora na Definição 61 os quadrados (ou, noutras formulações, os rectângulos) pareçam essenciais, revela-se preferível, por razões técnicas,304 começar por definir área para os triângulos. Procuremos então uma definição razoável para área de um triângulo não euclidiano. Começamos pelo caso elíptico, fazendo uma série de considerações de carácter intuitivo antes de apresentamos formalmente a definição. Para obter uma unidade de área que seja uma alternativa razoável ao quadrado unitário da geometria euclidiana, consideremos um quadrilátero convexo de lados iguais; traçando as suas diagonais, obtemos quatro triângulos isósceles, como o triângulo [ABC] da figura seguinte. Figura 63 302 Porque um quadrado é um rectângulo com os quatro lados iguais e não existem rectângulos em nenhum dos dois tipos de geometria não euclidiana, já que a soma dos ângulos internos de um quadrilátero convexo é inferior a 4 rectos (respectivamente superior a 4 rectos) em geometria hiperbólica (respectivamente em geometria elíptica); num rectângulo tal soma é exactamente 4 rectos, como é evidente. 303 Em geometria hiperbólica, o caso AAA de congruência de triângulos implica a não existência de triângulos semelhantes que não sejam congruentes; o mesmo se passa em geometria elíptica, já que as fórmulas trigonométricas da secção anterior mostram que o conhecimento das amplitudes dos ângulos de um triângulo elíptico determina de forma unívoca os seus lados. 304 Essencialmente, procura-se definir área para um tipo de polígono particularmente simples e depois usar a condição c) da definição para passar para casos mais complicados; ora qualquer rectângulo pode ser decomposto de forma trivial em dois triângulos, ao passo que um triângulo não pode ser decomposto num número finito de rectângulos. - 163 - Seja ∆ a área deste triângulo e apliquemos agora as fórmulas dos triângulos rectângulos elípticos estabelecidas na penúltima secção: como A = B , vem cos c = cos 2 a = cotg 2 A . Se atendermos ao carácter “localmente euclidiano” da geometria elíptica, vemos que se a → 0 , o triângulo [ABC] tende a verificar as igualdades próprias de um triângulo (euclidiano) rectângulo e isósceles, π A = B = e c 2 = 2a 2 . Assim, vamos “ajustar” a unidade de área de modo a ter-se 4 ∆ lim = 1 305; esta convenção será utilizada mais adiante. a →0 1 2 a 2 Consideremos duas rectas projectivas; elas dividem o plano projectivo em duas regiões a que chamaremos lúnulas, por analogia com a figura correspondente da geometria esférica306; se as duas rectas fizerem entre si um ângulo α, a uma das duas lúnulas corresponderá o ângulo α e à outra (dita lúnula suplementar) o ângulo π − α . Um caso particular interessante ocorre quando as duas linhas são perpendiculares: então as duas lúnulas (ditas lúnulas rectas) são congruentes e o ângulo que lhes corresponde é π/2. Seja então K a área de cada uma dessa lúnulas. Se bissectarmos uma delas, obteremos de novo duas lúnulas congruentes, de área K/2; bissectando de novo, obtemos outras duas lúnulas de área K/4 e assim sucessivamente. É pois razoável admitir que a área de uma lúnula cujo ângulo é o produto de uma fracção diádica307 por π, é proporcional a esse ângulo. Se recordarmos ([Lip], página 193) que o conjunto das fracções diádicas é denso em [0, 1], chegamos ao seguinte resultado fundamental: “A área de uma lúnula é proporcional ao seu ângulo”. Será naturalmente fundamental a determinação da constante de proporcionalidade. Antes de o fazermos vamos, no entanto ver quais as consequências das considerações anteriores para o cálculo das áreas de algumas figuras. Seja µ a referida constante; então a área de uma lúnula de ângulo θ será µθ, a da lúnula suplementar será µ(π − θ) e a área total do plano elíptico µπ. Consideremos agora um triângulo elíptico [ABC], de área ∆ e sejam ∆ a , ∆ b e ∆ c as áreas dos seus triângulos colunares (ver a figura seguinte). Figura 64 As seguintes relações são óbvias: 305 Veremos posteriormente uma interpretação geométrica desta convenção. Repare-se no entanto que a lúnula elíptica tem apenas um vértice, ao passo que a lúnula esférica usual tem dois. 307 Uma fracção própria diz-se diádica se o seu denominador for uma potência de dois. 306 - 164 - ∆ + ∆ a = µA ∆ + ∆ b = µB ∆ + ∆ c = µC ∆ + ∆ a + ∆ a + ∆ a = µπ Se somarmos ordenadamente as três primeiras e ao resultado subtrairmos a quarta, vem 2∆ = µ( A + B + C − π) , donde ∆ = µ ( A + B + C − π) . 308 2 Vejamos então como determinar µ, recorrendo ao ajustamento da unidade de área feito anteriormente. Para tanto, consideremos um triângulo elíptico [ABC], π rectângulo em C e tal que A = B = + ε , com ε > 0 e apliquemos as fórmulas dos 4 triângulos rectângulos elípticos. De cos A = cos a ⋅ sen B vem, se atendermos a que cos A π A = B , cos A = cos a ⋅ sen A e portanto cos a = = cotg A ; como A = + ε resulta, sen A 4 após simplificações elementares, que cos a = cotg A = e, finalmente, sen 2 a = 1 − cos 2 A = Por outro lado, a fórmula ∆ = 4 tg ε (1 + tg ε )2 1 − tg ε 1 + tg ε . µ ( A + B + C − π) implica que a área do triângulo [ABC] é 2 µ π π π + ε + + ε + − π = µε e a razão entre a área deste triângulo e a de um 2 4 4 2 triângulo (euclidiano) rectângulo e isósceles cujos catetos medem a é: 308 Noutras apresentações da teoria da área no plano elíptico, esta fórmula é usada para mostrar que a soma dos ângulos internos de um triângulo elíptico é sempre superior a dois rectos; isso decorre imediatamente da fórmula apresentada e da positividade da área. - 165 - 4 tg ε µε 2µε µ 1 ε µ 1 ε = 2 = (1 + tg ε) 2 = sen 2 a (1 + tg ε) 2 = 2 2 2 1 2 2 a (1 + tg ε) tg ε 2a tg ε a a 2 . 2 µ sen a ε = (1 + tg ε) 2 2 a tg ε µ ; como 2 em virtude da convenção adoptada o limite deve ser 1, concluímos que µ = 2 . Assim sendo, a fórmula para o cálculo da área de um triângulo elíptico [ABC] deve ser Se nesta última expressão fizermos α e ε tenderem para zero, obtém-se ∆ = A + B + C − π .309 A constante µ assim determinada pode agora ser substituída nas expressões obtidas anteriormente, obtendo-se a fórmula para a área de uma lúnula de ângulo α (é igual a α) e concluindo-se que o plano elíptico na sua totalidade tem área 2π . É interessante comparar estes resultados com os da geometria esférica (numa esfera de raio 1): • • • a fórmula para a área de um triângulo elíptico coincide com a conhecida fórmula de Girard para a área dos triângulos esféricos; a área de uma lúnula esférica de ângulo α é 2α , o dobro da área de uma lúnula elíptica com o mesmo ângulo; a área da superfície esférica é 4π , o dobro da área do plano elíptico. As considerações anteriores, de carácter heurístico, tiveram como objectivo motivar o aparecimento da fórmula310 ∆ = A + B + C − π . É agora possível formalizar a teoria da área no plano elíptico começando por definir a área de um triângulo elíptico: Definição 62: A área de um triângulo elíptico [ABC] é dada por ∆ = A + B + C − π (costuma-se chamar excesso do triângulo ao valor A + B + C − π ; pode-se assim dizer que a área de um triângulo elíptico coincide com o seu excesso).311 309 Resulta desta fórmula que a “unidade de área elíptica” da nossa convenção é a área de um triângulo elíptico com dois ângulos rectos e com um terceiro de amplitude 1 radiano; é esta a interpretação geométrica da convenção que anteriormente referimos. 310 É claro que se pode motivar esta fórmula de maneira muito mais simples, invocando as semelhanças entre a geometria elíptica e a geometria esférica e recorrendo à fórmula de Girard. O processo que apresentámos parece-nos, no entanto, muito mais interessante e instrutivo. 311 Em particular, a área de um triângulo elíptico é sempre menor que 2π. - 166 - Pode-se depois desenvolver a teoria por meio de definições adequadas (lúnula elíptica, polígono elíptico, etc), à semelhança do que se faz para o caso euclidiano, reobtendo-se os resultados anteriormente apresentados sobre lúnulas e a área da totalidade do plano elíptico ; é possível até, recorrendo a considerações próprias da Teoria da Medida, definir área para subconjuntos muito gerais do plano elíptico. Não vamos desenvolver este assunto, remetendo o leitor interessado para [OnS] e para as obras aí citadas. Vejamos agora, de forma resumida, como se pode introduzir a noção de área no plano hiperbólico. Por analogia com o plano elíptico, é natural definir a área de um triângulo a partir da soma dos seus ângulos internos. Definição 63: A área de um triângulo hiperbólico [ABC] é dada pela fórmula ∆ = π − ( A + B + C ) = π − A − B − C (costuma-se chamar defeito do triângulo ao valor π − ( A + B + C ) ; pode-se assim dizer que a área de um triângulo hiperbólico coincide com o seu defeito).312 É possível motivar esta definição de forma análoga ao que foi feito para a geometria elíptica; esse estudo foi feito por Gauss e descrito numa famosa carta a Farkas Bolyai em 1832. O processo é, porém, algo mais complicado do que no caso elíptico, pelo que não o vamos apresentar aqui; o leitor interessado pode consultar [Cox4], páginas 295 a 299. A título de curiosidade histórica, no decorrer deste processo prova-se um resultado notável (Teorema de Liebmann): “A área de qualquer triângulo assimptótico313 é finita”. Este resultado paradoxal esteve na base da rejeição da geometria hiperbólica pelo matemático Charles Dodgson (mais conhecido como Lewis Carroll), por considerar absurdo que um “polígono” cujos três lados têm comprimento infinito tenha área finita. Voltando à noção de área no plano hiperbólico, define-se o defeito de uma região poligonal 314 R como a soma dos defeitos dos triângulos de uma qualquer das suas decomposições em triângulos hiperbólicos315; representaremos o defeito da região poligonal R por δR . Tem-se o seguinte resultado notável, que mostra que, essencialmente, existe apenas uma maneira razoável de definir área no plano hiperbólico316: 312 Em particular, a área de um triângulo hiperbólico é sempre menor que π. Simplesmente, duplamente ou triplamente assintótico (!). 314 A definição de região poligonal no plano hiperbólico é análoga à do plano euclidiano. 315 Prova-se que este valor é independente da decomposição ([Moi], página 338). 316 Repare-se que as condições a), b) e c) do teorema seguinte são os requerimentos naturais para uma função de área. 313 - 167 - Teorema 115: Representemos por R o conjunto de todas as regiões poligonais. Uma aplicação α: R → R que verifique as seguintes condições: a) Se R∈ R, α(R ) > 0 ; b) Condição de congruência: se duas regiões R e R' são congruentes, então α (R ) = α (R ') c) Condição de aditividade: se duas regiões R e R' são disjuntas ou se a sua intersecção é formada apenas por lados e vértices, então α(R ∪ R') = α(R ) + α(R') . é certamente um múltiplo positivo do defeito, isto é, existe k > 0 tal que α = kδ . Demonstração: É bastante complexa e muito longa, exigindo a prova de uma série de resultados auxiliares, pelo que não a vamos aqui fazer; o leitor pode vê-la no capítulo 24 de [Moi].■ Atendendo às considerações anteriores, é razoável definir a área de uma região poligonal do plano hiperbólico como o seu defeito. Terminaremos este capítulo apresentando dois resultados interessantes: 1) Uma relação entre o axioma das paralelas e a definição de área. 2) O cálculo da área de um círculo em geometria não euclidiana. Quanto a 1), vimos no primeiro capítulo a noção de enunciado geométrico: tratase de uma proposição que é equivalente ao postulado euclidiano das paralelas (pressupondo, bem entendido, os restantes axiomas da geometria absoluta). Vamos indicar um enunciado geométrico intimamente ligado à noção de área. Como habitualmente, seja R o conjunto de todas as regiões poligonais. Tem-se então: Teorema 116: No quadro axiomático da geometria absoluta, a seguinte proposição é equivalente ao Postulado das Paralelas de Euclides (ou seja, a proposição é um enunciado geométrico): “Existe uma função317 α: R → R que verifica as seguintes condições: 317 α será então uma função de área. - 168 - a) Se R∈ R, α(R ) > 0 ; b) Se duas regiões poligonais R e R' são disjuntas ou se a sua intersecção é formada apenas por lados e vértices, então α(R ∪ R') = α(R ) + α(R') . c) Se T1 e T2 são triângulos com as mesmas bases e alturas, então α(T1 ) = α(T2 ) .” Demonstração: Veja-se [Moi], página 353. ■ Quanto ao segundo resultado, comecemos por reparar que um círculo não é, obviamente, uma região poligonal. Assim, temos de começar por definir a área de um círculo, o que fazemos recorrendo ao clássico processo de Arquimedes: a área do círculo é o limite das áreas dos polígonos regulares nele inscritos, quando o número dos lados tende para infinito. Em geometria euclidiana, é bem conhecida a fórmula A = πr 2 para a área de um círculo de raio r. 318 Vejamos o que sucede em geometria hiperbólica. Para tanto, precisamos de calcular o perímetro de uma circunferência hiperbólica (um resultado interessante por si só) e de um teorema auxiliar sobre a área de um triângulo hiperbólico rectângulo. Teorema 117: O perímetro de uma circunferência de raio r no plano hiperbólico pode ser dado por P = 2πsh r . Demonstração: O perímetro da circunferência é definido exactamente como no caso euclidiano: é lim p n , sendo p n o perímetro do n-ágono regular inscrito na circunferência. n → +∞ Considere-se então a figura seguinte319: 318 A título de curiosidade, apresentamos três caracterizações (equivalentes, é claro) do número π: a primeira é de natureza geométrica e as duas restantes são analíticas: π π • é a razão entre o comprimento de qualquer circunferência e o seu raio ([Moi], página 272); é o dobro do menor zero positivo da função co-seno (definida, digamos, por uma série de potências); +∞ 1 π=∫ dx . −∞ 1+ x 2 - 169 - Figura 65 Se aplicarmos a primeira das dez fórmulas dos triângulos rectângulos π hiperbólicos ao triângulo da figura, vem que sh p n = sh r ⋅ sen ; desenvolvendo em n 320 série os dois membros desta igualdade, obtemos 2 4 π 1 π 2 1 π 4 p n 1 p n 1 p 1 + + n + K = sen r ⋅ 1 − + − K ; 3! n n 2n 3! 2n 5! 2n 5! n Basta então multiplicar ambos os membros por 2n e fazer n tender para + ∞ para se obter o resultado. ■ Repare-se que esta demonstração é praticamente igual à da fórmula P = 2πr para o perímetro de uma circunferência euclidiana; além disso, se notarmos que sh r lim = 1 , obtemos uma nova verificação de um resultado que já várias vezes nos r →0 r surgiu: A geometria hiperbólica tem um carácter “localmente euclidiano”. O resultado sobre a área de um triângulo anteriormente referido é o seguinte: 319 Nesta figura e na próxima, representámos os segmentos de recta hiperbólicos por arcos e não por segmentos usuais, como se deveria fazer no modelo projectivo. Entendemos que esta pequena incorrecção formal é amplamente compensada pela facilidade de visualização alcançada. 320 Veja-se o Apêndice B. - 170 - Teorema 118: Seja [ABC] um triângulo hiperbólico rectângulo em C. Então a sua área ∆ a b ∆ pode ser dada por tg = tgh ⋅ tgh .321 2 2 2 Demonstração: Pela Definição 63, a área é dada por ∆ = π − ( A + B + C ) , que, no nosso caso se reduz a ∆ = π / 2 − (A + B) . a b Calculemos o valor da expressão tgh 2 ⋅ tgh 2 . Vem: 2 2 a b ch a − 1 ch b − 1 tgh 2 ⋅ tgh 2 = ⋅ (1) 2 2 ch a + 1 ch b + 1 1 − sen ( A + B ) cos( A − B ) = ⋅ (2) 1 + sen ( A + B ) cos( A − B ) 1 − cos ∆ = (3) 1 + cos ∆ ∆ = tg 2 (4) 2 A justificação dos diversos passos é a seguinte: x ch x − 1 (1) Trata-se de uma identidade das funções hiperbólicas: tgh 2 = (ver 2 ch x + 1 Apêndice B); (2) Considerem-se as duas seguintes fórmulas dos triângulos rectângulos hiperbólicos: cos A cos A = ch a ⋅ sen B e cos B = ch b ⋅ sen A . Da primeira, vem que ch a = e da sen B cos B . Substituindo estes valores em (1), e após simplificações segunda, que ch b = sen A com as fórmulas trigonométricas usuais, obtém-se a expressão apresentada; (3) Basta fazer x = A + B na identidade trigonométrica cos(π / 2 − x) = sen x e lembrar que ∆ = π / 2 − ( A + B ) ; (4) Trata-se de uma identidade das funções circulares: 1 − cos x x = tg 2 . 1 + cos x 2 321 É curioso reparar que para um triângulo rectângulo euclidiano, a fórmula correspondente é ∆ a b simplesmente = ⋅ 2 2 2 - 171 - ∆ a b Tendo-se provado que tgh 2 ⋅ tgh 2 = tg 2 , o resultado final é imediato. ■ 2 2 2 Podemos então apresentar e demonstrar a fórmula para a área de um círculo em geometria hiperbólica: Teorema 119: A área de um círculo hiperbólico de raio r pode ser dada por r A = 4πsh 2 . 2 Demonstração: Sejam p n e K n , respectivamente, o perímetro e a área do n-ágono regular inscrito na circunferência de raio r. Então, de acordo com a nossa definição, A = lim K n . n → +∞ Considere-se de novo a figura: Figura 66 Se aplicarmos a fórmula do Teorema anterior ao triângulo hiperbólico rectângulo que nela surge, obtemos: tg Kn p a = tgh n ⋅ tgh n 4n 4n 2 . Se multiplicarmos ambos os membros desta igualdade por 4n e fizermos tender r n para + ∞ , obtemos A = P ⋅ tgh (onde P é o perímetro da circunferência), já que as 2 - 172 - funções tangente e tangente hiperbólica são contínuas e são válidos os seguintes desenvolvimentos em série: 2 K K K 4n ⋅ tg n = K n + n n + K 3 4n 4n 2 p p p 4n ⋅ tgh n = p n − n n + K 3 4n 4n . Para concluir a prova, basta substituir o resultado P = 2πsh r na fórmula r A = P ⋅ tgh e usar algumas identidades das funções hiperbólicas: 2 γ sh r sh 2 r β ch 2 r − 1 r r α = 2π = 2π = 2π(ch r − 1) = A = P ⋅ tgh = 2πsh r ⋅ tgh = 2πsh r ⋅ ch r + 1 ch r + 1 ch r + 1 2 2 r r = 2π 2sh 2 = 4πsh 2 2 2 Nota: As identidades anteriormente referidas são: α: sh x x ; tgh = 2 ch x +1 β: sh 2 x = ch 2 x − 1 ; γ: 2sh 2 x = ch x − 1 . ■ 2 Corolário: Se considerarmos um círculo hiperbólico e um círculo euclidiano com o mesmo raio, a área do primeiro é maior. Demonstração: r Basta desenvolver em série o segundo membro da fórmula A = 4πsh 2 ; vem 2 4 r r A = 4πsh 2 = π r 2 + + K > πr 2 . ■ 12 2 - 173 - Embora não tenhamos definido formalmente a área da totalidade do plano hiperbólico (não se trata de uma região poligonal…), a fórmula do teorema anterior e o facto de se ter lim sh r = +∞ levam-nos a concluir que deverá ser infinita. r → +∞ É possível obter também fórmulas para o perímetro de uma circunferência e a área de um círculo de raio r no caso elíptico; limitamo-nos a apresentar os resultados (ver [Cox1], página 250): P = 2πsen r ; r A = 4πsen 2 . 2 A seguinte tabela sintetiza e compara alguns dos resultados sobre áreas nas três geometrias: Geometria → Figura ↓ Totalidade do Plano Círculo (raio r) Triângulo Euclidiana Hiperbólica Elíptica Área Infinita Área infinita r 4πsh 2 2 Área finita: 2π r 4πsen 2 . 2 Sempre inferior a π. Sempre inferior a 2π. 2πr Não há limite superior para a área. - 174 - Capítulo 6 Modelos 1. Introdução Ao longo deste trabalho, deparámos diversas vezes com modelos dos vários sistemas axiomáticos: assim, no fim do segundo capítulo vimos diversos modelos do plano projectivo, no terceiro capítulo encontrámos três modelos da geometria elíptica unidimensional e um da geometria elíptica bidimensional e, finalmente, o nosso estudo da geometria hiperbólica baseou-se essencialmente no chamado modelo projectivo. Neste capítulo examinaremos de novo estes modelos e obteremos outros, num contexto muito mais rico que nos capítulos anteriores: trabalharemos num espaço ambiente euclidiano322, o que nos vai permitir usar métodos analíticos poderosos, lançando assim uma nova luz sobre diversos assuntos abordados em capítulos anteriores. O facto de estarmos a trabalhar num espaço ambiente com uma estrutura pré-definida implica, no entanto, a necessidade de fazer uma distinção cuidadosa entre a métrica euclidiana ambiente e a métrica elíptica ou hiperbólica em consideração, como veremos. Depois de uma breve referência ao caso unidimensional, ocupar-nos-emos essencialmente da geometria bidimensional, fazendo, no fim, uma breve referência a modelos do espaço hiperbólico n-dimensional. De caminho faremos algumas considerações sobre outras formas de abordar o estudo da geometria não-euclidiana plana, comparando-as com a abordagem projectiva que temos estado a usar. 2. Modelos euclidianos unidimensionais Nesta secção, vamos abordar sucintamente a introdução de métricas elípticas e hiperbólicas numa linha recta euclidiana, uma vez que os modelos elípticos unidimensionais já foram detalhadamente estudados no terceiro capítulo e que, como vimos no quarto capítulo, a geometria hiperbólica unidimensional tem pouco interesse. Embora vamos tratar o caso unidimensional, será conveniente começar por fazer algumas considerações sobre o caso bidimensional Vamos considerar como Absoluto do modelo hiperbólico a circunferência unitária centrada na origem em R 2 ; os pontos hiperbólicos serão simplesmente os pontos euclidianos do círculo correspondente e os pólos e rectas polares das construções projectivas serão os pólos e polares que surgem no estudo da circunferência em geometria euclidiana. Assim, por exemplo, a recta polar do ponto A na figura seguinte (na qual propositadamente mantivemos as linhas auxiliares da construção normal das tangentes a uma circunferência passando por um ponto exterior) é apenas a recta que incide com os pontos B e C, intersecções das tangentes passando por A com a circunferência. 322 Por exemplo, os nossos modelos mais importantes para o caso hiperbólico terão como Absoluto a circunferência unitária centrada na origem do plano euclidiano, em vez de uma cónica qualquer do plano projectivo. - 175 - Figura 67 Para obter uma fórmula para a distância hiperbólica entre os pontos de coordenadas euclidianas (x, y ) e ( x' , y ') , recordemos que as coordenadas projectivas são homogéneas, pelo que podemos normalizá-las considerando a primeira coordenada sempre igual a 1; assim, passamos para coordenadas não homogéneas, representando o ponto (x1 , x 2 , x3 ) por (x 2 / x1 , x3 / x1 ) e fazendo x1 = 1 . Então, para obter o resultado desejado, basta considerar a fórmula arch {xY }{yX } = arch {xX }{yY } x1 y1 − x 2 y 2 − x3 y 3 2 1 x − x 22 − x32 y12 − y 22 − y 32 estabelecida no quarto capítulo e fazer nela x1 = 1 x2 = x x = y 3 e y1 = 1 y 2 = x' y = y' 3 e chegamos à fórmula pretendida323. 323 Uma alternativa é considerar coordenadas cartesianas homogéneas no plano, tomando x1 = 0 como equação da linha no infinito. - 176 - Vejamos um exemplo: Pretendemos determinar a distância hiperbólica d h do ponto de coordenadas (x, 0) (com x > 0 ) à origem (0, 0). Fazendo na fórmula anterior, x1 = 1 x2 = x x = 0 3 e y1 = 1 y2 = 0 , y = 0 3 vem 1 1 1 x = ln + − 1 = ln + 2 2 2 1− x 1− x 1− x2 1− x 1− x 1+ x 1 1+ x 1+ x = ln = ln = arctgh x 1+ x ⋅ 1− x 1− x 2 1− x d h = arch = ln 1 2 = cálculo este em que utilizámos duas identidades da teoria das funções hiperbólicas 1 1+ x inversas, a saber arch x = ln x + x 2 − 1 e arcth x = ln (ver Apêndice B). 2 1− x Provámos assim o seguinte resultado: ( ) Teorema 120: A distância hiperbólica d h entre o ponto de coordenadas (x, 0 ) (com x > 0 ) e a origem (0, 0 ) é dada por d h = arctgh x ”. ■ É possível fazer um raciocínio idêntico para o caso elíptico, partindo da fórmula {xY }{yX } estabelecida no terceiro da distância entre dois pontos AB = arcos ± {xX }{yY } capítulo. Dada a grande semelhança entre as duas situações, limitam-nos a enunciar o resultado neste caso: Teorema 121: A distância elíptica d e entre o ponto de coordenadas (x, 0 ) (com x > 0 ) e a origem (0, 0 ) é dada por d e = arctg x ”. ■ - 177 - Não deixa de ser curioso contrastar estes resultados com o facto de a distância euclidiana entre os pontos em causa ser apenas x… Vejamos uma aplicação interessante: Considere-se uma circunferência euclidiana centrada na origem e raio (euclidiano) r < 1 ; é óbvio então que ela está contida integralmente no interior do Absoluto. Que figura será em geometria hiperbólica esta circunferência euclidiana? Se pensarmos que uma circunferência pode ser caracterizada como o lugar geométrico dos pontos obtidos por rotação contínua de um ponto em torno do centro e que as rotações euclidianas usuais são também rotações hiperbólicas (repare-se que elas preservam o Absoluto e atenda-se à determinação das isometrias do modelo projectivo feita no quarto capítulo), é fácil concluir que se vai tratar de uma circunferência hiperbólica centrada na origem; resulta então da fórmula para a distância hiperbólica d h estabelecida anteriormente que o seu raio hiperbólico324 r é dado por r = arctgh r . Em resumo, estabelecemos o seguinte resultado: Teorema 122: Uma circunferência euclidiana de raio r < 1 centrada na origem é também uma circunferência no modelo hiperbólico e o centro mantêm-se; no entanto, o raio passa a ser igual a arctgh r . Demonstração: Foi feita nas considerações acima; no entanto, o leitor que prefira uma demonstração apenas a partir da definição de distância no modelo de Beltrami visto no quarto capítulo (recorrendo à razão cruzada e independente das fórmulas da geometria analítica hiperbólica) pode consultar [BuK], página 174. ■ Podemos agora proceder à introdução das métricas não euclidianas numa recta usual. Comecemos pelo caso elíptico. Considere-se uma circunferência centrada na origem e de raio 1 e seja r a recta que lhe é tangente no ponto C, de coordenadas (1,0). Introduzimos uma métrica elíptica na recta r definindo a distância d e ( A, B ) como o dobro da área do sector circular OA' B' (ver a figura seguinte). 324 Em geral, representaremos por x o comprimento euclidiano de um segmento de comprimento hiperbólico x. - 178 - Figura 68 Para vermos que se está efectivamente a definir uma métrica elíptica, no sentido do Teorema 121, basta considerar apenas o caso em que os pontos C e A coincidem, como é óbvio. Seja então x a distância usual entre C e B. Atendendo à conhecida fórmula para a área de um sector circular, a área do sector B' OC é dada por 1 2 1 ⋅ 1 ⋅ α = arctg x , já que x = tg α (ver a figura seguinte). 2 2 Figura 69 Logo, pela nossa definição, vem 1 d e (B, C ) = 2 ⋅ arctg x = arctg x , 2 em concordância com o Teorema 121. - 179 - O caso hiperbólico é um pouco mais complexo. Consideremos o ramo da hipérbole equilátera x 2 − y 2 = 1 que está contido no semiplano definido por x > 0 . Figura 70 As suas assíntotas (a traço carregado na figura) têm as equações y = x e y = − x . A distância hiperbólica d h entre os dois pontos A e B é então o dobro da área do sector hiperbólico B'OA' . Tal como anteriormente, podemos supor que os pontos C e A coincidem. x = ch t . Consideramos a parametrização standard do ramo de hipérbole y = sh t Figura 71 - 180 - Seja D o pé da perpendicular baixada de B' sobre o eixo das abcissas CB 1 CB OC (ver a figura anterior). Tem-se então donde e portanto = = sh t ch t DB' OD sh t CB = = tgh t . Representando por x o comprimento (euclidiano) de [CB], vem pois ch t x = tgh t ou seja, t = arctgh x . Ora sabe-se325 que, nestas condições, a área do sector hiperbólico B' OC é dada por metade do valor do parâmetro t, pelo que 1 d h (B, C ) = 2 ⋅ (área do sector B ' OC ) = 2 ⋅ t = t = arctgh x , em concordância com o que 2 se viu no Teorema 120. Para terminarmos, este assunto, é interessante reparar que se vê imediatamente no modelo elíptico que o comprimento da linha recta é finito (é a área do círculo), em concordância com o que se viu no terceiro capítulo; por outro lado, constata-se que no modelo hiperbólico, o comprimento da recta vai ser infinito (repare-se que, na Figura 70 a distância do ponto A ao ponto M é infinita), em concordância com o que se sabe da geometria absoluta. 3. Modelos euclidianos bidimensionais 3.1 O modelo elíptico de Beltrami Conforme se viu no terceiro capítulo, o modelo projectivo para a geometria elíptica tem como pontos a totalidade dos elementos do plano projectivo real. Beltrami construiu uma representação no plano real associando ao ponto projectivo de coordenadas homogéneas (x 0 , x1 , x 2 ) o ponto de coordenadas cartesianas (x1 / x0 , x2 / x0 ) , que normalizou pondo x0 = 1 , o que é possível se x0 ≠ 0 , dada a natureza homogénea das coordenadas no plano projectivo; os pontos com x0 = 0 constituem a chamada “linha no infinito”. Com estas convenções, as fórmulas para a distância em geometria elíptica do terceiro capítulo levam-nos à expressão326 arcos 1 + x1 y1 + x 2 y 2 (1 + x 2 1 )( + x 22 1 + y12 + y 22 ) = arcsen (x1 − y1 )2 + (x2 − y 2 )2 + (x1 y 2 − x2 y1 )2 (1 + x 2 1 )( + x 22 1 + y12 + y 22 ) para a distância elíptica entre os pontos ( x1 , x 2 ) e ( y1 , y 2 ) . 325 326 Veja-se [Cox4], página 124. A primeira expressão resulta das substituições referidas no corpo do texto; para a segunda, atenda-se à conhecida relação arcos a = arcsen 1− a 2 . - 181 - Assim, a distância elíptica entre dois pontos verifica sen 2 ∆s = ∆x + ∆x + ( x 2 ∆x1 − x1 ∆x 2 ) 2 1 2 2 (x1 , x2 ) (x1 + ∆x1 , x2 + ∆x2 ) e 2 ; se atendermos a que x e 2 2 + x 22 1 + ( x1 + ∆x1 ) + ( x 2 + ∆x 2 ) sen x sen x são infinitésimos equivalentes na origem (pois lim = 1) , obtemos finalmente x →0 x a expressão para o elemento de arco em geometria elíptica ds 2 = (1 + x 2 1 )( dx12 + dx 22 + (x 2 dx1 − x1 dx 2 ) (1 + x 2 1 + x 22 2 = ) 2 (1 + x )dx (1 + x 2 1 2 2 2 1 + x 22 ) 2 ) +2 − x1 x 2 dx1dx 2 (1 + x 2 1 + x 22 + (1 + x )dx ) (1 + x 2 2 1 2 1 2 2 + x 22 ) 2 , sendo a última expressão a forma usual em Geometria Diferencial327. Podemos então (em princípio…) calcular o comprimento l de uma curva parametrizada por (x1 (t ), x 2 (t )) através da conhecida expressão l=∫ b a 2 2 dx dx dx dx E 1 + 2 F 1 2 + G 2 dt dt dt dt dt onde 1 + x 22 E = 1 + x12 + x 22 − x1 x 2 F = 1 + x12 + x 22 1 + x12 G = 1 + x12 + x 22 ( ) ( ) ( ) 2 2 2 Infelizmente, os cálculos são extremamente laboriosos e, em geral, é preferível recorrer às chamadas coordenadas normalizadas, conforme se pode ver em [Cox1], páginas 248 e 249; reobtém-se, por exemplo, o resultado 2πsen R sobre o perímetro de uma circunferência de raio R, referido no capítulo anterior. A fórmula para o elemento de arco pode ser ainda deduzida por um processo diferente e muito interessante, o método do plano de imersão, que referimos na introdução do terceiro capítulo. Recordemos o modelo do plano projectivo que se obtém a partir do feixe das rectas que passam pela origem do espaço euclidiano tridimensional; fazer x0 = 1 equivale a fazer a secção das rectas deste feixe por um plano. Consideremos então a superfície esférica unitária de R 3 , S 2 ; se a cada recta do referido 327 Veja-se, por exemplo, [AFR1], páginas 117 a 119. - 182 - feixe associarmos as suas intersecções com S 2 , obtemos um modelo do plano projectivo cujos “pontos” consistem em pares de pontos de S 2 diametralmente opostos, conforme se viu na última secção do segundo capítulo. Associemos então a cada ponto de S 2 a sua projecção gnomónica (ou central) sobre o plano de imersão x = 1 (ver a figura seguinte): a cada ponto P( x0 , y 0 , z 0 ) ∈ S 2 com x0 ≠ 0 associamos o ponto P ' do plano x = 1 que se obtém intersectando este plano com a recta PO, onde O é a origem328. Esta recta admite a equação vectorial (x, y, z ) = k (x0 , y 0 , z 0 ), k ∈ R , pelo que a sua intersecção com o plano x = 1 é o ponto (1, y 0 / x 0 , z 0 / x0 ) , se x0 ≠ 0 ; aos pontos de S 2 com x0 = 0 vai corresponder a “recta no infinito”. Figura 72 Por inversão desta correspondência, ao ponto do plano x = 1 de coordenadas (1, x1 , x2 ) vão corresponder dois pontos diametralmente opostos de S 2 , 328 É óbvio que dois pontos diametralmente opostos têm a mesma imagem. - 183 - . , , 2 2 2 2 2 2 1+ x + x 1 + x1 + x 2 1 + x 1 + x 2 1 2 (x, y, z ) = ±1 ± x1 ± x2 Para obter a expressão do elemento de arco apresentada anteriormente, basta substituir estes valores na conhecida expressão para o elemento de arco em R 3 , ds 2 = dx 2 + dy 2 + dz 2 , e simplificar. 3.2 O modelo elíptico de Klein Félix Klein apresentou um notável modelo do plano elíptico substituindo a projecção gnomónica pela projecção estereográfica. Usando coordenadas cartesianas x, y, z em R 3 , definimos uma aplicação de S 2 \ {PN } no plano π de equação x = 0 (onde PN = (1, 0, 0) é o “Pólo Norte”), associando a cada ponto P( x0 , x1 , x2 ) ∈ S 2 \ {PN } o ponto P '∈ π tal que P ' é a intersecção da recta PN P com o plano π (o “plano do equador”). Para uma boa compreensão deste processo, considere-se a seguinte figura: Figura 73 - 184 - Para obtermos as fórmulas que definem a projecção estereográfica329, consideremos uma equação vectorial da recta PPN (x, y, z ) = (1, 0, 0) + k (x0 − 1, x1 , x0 ), k ∈R e façamos a sua intersecção com o plano π. Vem 1 k = 1 − x0 0 = 1 + k ( x0 − 1) x , donde se tira que y = 1 . y = kx1 1 − x0 z = kx 2 x2 z = 1− x 0 Para a aplicação inversa, repare-se que, se representarmos por (0, u1 , u 2 ) o ponto genérico do plano π, de x1 u1 = 1 − x 0 x2 , se pode concluir, após cálculos elementares, que u 2 = 1 − x0 x02 + x12 + x 22 = 1 x0 = u 12 + u 22 − 1 u 2 1 +u 2 2 +1 , x1 = 2u 1 u 2 1 +u 2 2 +1 , x2 = 2u 2 u 2 1 + u 22 + 1 . Estas fórmulas mostram que a projecção estereográfica estabelece uma bijecção contínua e de inversa contínua330 entre S 2 \ {PN } e o plano π, ao contrário da projecção gnomónica, que nem sequer é injectiva, a não ser que passemos de S 2 para o plano projectivo por identificação dos pontos antipodais. No próximo teorema listamos algumas propriedades da projecção estereográfica: 329 Existem muitas variantes da projecção estereográfica, bem como generalizações ao caso ndimensional. Restringindo-nos à dimensão 3 de espaço ambiente, podemos apontar, entre outros, os seguintes exemplos: • o “Pólo Norte” pode variar; uma escolha vulgar é o ponto (0, 0, 1); • pode-se fazer a projecção sobre outro plano; uma escolha vulgar é o plano tangente à superfície esférica no ponto diametralmente oposto ao “Pólo Norte”, o “Pólo Sul. As fórmulas correspondentes podem ser obtidas por processos análogos ao descrito no texto; na Figura 74 mostramos uma representação da primeira variante, talvez mais “normal”. 330 Logo, um homeomorfismo. - 185 - Teorema 123: Propriedades da projecção estereográfica 1. A projecção estereográfica transforma círculos máximos331 da esfera em círculos ou rectas do plano; a imagem é uma recta se o círculo máximo passa pelo “Pólo Norte” da projecção e é um círculo caso contrário. 2. A projecção estereográfica é uma aplicação conforme, no sentido de preservar os ângulos: se o ângulo de dois círculos máximos for α, o ângulo entre as suas imagens será também igual a α. 3. A imagem de um círculo máximo corta uma circunferência centrada na origem do plano complexo em dois pontos diametralmente opostos. Demonstração: Não a vamos apresentar; o leitor interessado pode consultar o capítulo 7 de [Toth] ou [Som], páginas 172 a 175 para as duas primeiras propriedades e [Cars], páginas 171 a 174 para a última. ■ Figura 74 As fórmulas anteriores podem assumir um novo aspecto muito útil e interessante se identificarmos o ponto (u1 , u 2 ) com o número complexo u = u1 + u 2 i ; reparando então que u = u1 − u 2 i e que u ⋅ u = u12 + u 22 , vem x0 = 331 u ⋅ u −1 u+u u+u , x1 = , ix 2 = . u ⋅u +1 u ⋅u +1 u ⋅u +1 Intersecções da superfície esférica com planos passando pelo centro. - 186 - Estabelecemos assim um homeomorfismo entre S 2 \ {PN } e C; neste contexto, S 2 costuma ser denominada esfera de Riemann332 e fornece um modelo para a compactificação de um ponto de Alexandrov de C (veja-se, por exemplo, [Lip], páginas 205 e 206). Trabalhando com coordenadas normalizadas (isto é, supondo que as coordenadas do ponto (x) são tais que {xx}=1), a expressão da distância δ entre dois pontos (x ) = ( x0 , x1 , x 2 ) e ( y ) = ( y 0 , y1 , y 2 ) simplifica-se imenso, tal como vimos no terceiro capítulo: cos δ = {xy} = x0 y 0 + x1 y1 + x 2 y 2 . Se nesta expressão substituirmos ( x ) = (x 0 , x1 , x 2 ) e ( y ) = ( y 0 , y1 , y 2 ) pelos números complexos u e v definidos pelas fórmulas da projecção estereográfica x0 = u ⋅ u −1 u+u u+u , x1 = , ix 2 = u ⋅u +1 u ⋅u +1 u ⋅u +1 y0 = v ⋅ v −1 v+v v+v , y1 = , iy 2 = , v ⋅ v +1 v ⋅v +1 v ⋅ v +1 obtemos, após simplificações laboriosas mas elementares, uma nova expressão para cos δ : cos δ = Se (u ⋅ u − 1)(v ⋅ v − 1) + (u + u )(v + v ) − (u − u )(v − v ) . (u ⋅ u + 1)(v ⋅ v + 1) atendermos ( ( )( )( a ) ) que cos 2 δ 1 + cos δ = , 2 2 verificamos que δ u ⋅v +1 ⋅ v ⋅u +1 = . Esta última expressão pode ser escrita na forma 2 u ⋅u +1 ⋅ u ⋅ v +1 δ u + v −1 ⋅ v + u −1 cos 2 = , que é a razão cruzada333 dos números complexos 2 u + u −1 ⋅ v + v −1 cos 2 ( ( u , v, − v −1 )( )( e −u −1 ) ) . 332 Ou esfera de Neumann. Em análise complexa, define-se a razão cruzada de quatro números z1 , z 2 , z 3 , z 4 , que representaremos por ( z1 , z 2 ; z 3 , z 4 ) , de forma análoga à apresentada para os pontos do plano projectivo 333 no segundo capítulo: (z1 , z 2 ; z3 , z 4 ) = (z1 − z3 ) ⋅ (z 2 − z 4 ) . O leitor interessado pode consultar [ScH] para (z1 − z 4 ) ⋅ (z 2 − z3 ) mais detalhes. - 187 - Assim, se A, B, B' e A' forem os pontos do plano complexo correspondentes a u , v, − v −1 e − u −1 , podemos escrever ( ( )( )( δ δ u + v −1 ⋅ v + u cos = cos 2 = 2 2 u + u −1 ⋅ v + v 2 −1 −1 ) = (u − (−v ) ) ⋅ (v − (−u ) ) = AB' ⋅ BA' , ) (u − (−u ) ) ⋅ (v − (v )) AA' ⋅ BB' −1 −1 −1 −1 uma notável fórmula que nos permite escrever a distância esférica em função das distâncias euclidianas AB', BA', AA' e BB' . A interpretação geométrica final é muito interessante e mostra de forma clara a vantagem da utilização dos números complexos: se a A corresponder o complexo u = ρe iθ , a A' corresponde − u −1 = ρ −1e i (θ+ π ) , pelo que A e A' estão a distâncias recíprocas da origem O, sobre uma mesma recta passando por O, mas são “opostos”, no sentido de se verificar A − O − A' . Se atendermos ao Teorema 123, verificamos que as “rectas” da superfície esférica são representadas por círculos ou rectas no plano, sem distorção de ângulos e cortando uma circunferência fixa C nos extremos de um diâmetro. Finalmente, podemos passar para a geometria elíptica identificando os pontos A ↔ u = ρe iθ e A' ↔ − u −1 = ρ −1e i (θ+ π ) ou, o que é mais interessante, restringindo-nos à circunferência C e ao seu interior, identificando os pontos diametralmente opostos de C. A figura a seguir mostra um triângulo [OAB] neste modelo da geometria elíptica, sendo “visualmente evidente” que a soma dos seus ângulos internos excede dois rectos. Figura 75 - 188 - 3.3 O modelo hiperbólico de Beltrami A “versão hiperbólica” do modelo projectivo de Beltrami é o mais antigo modelo conhecido da geometria hiperbólica e teve um papel fundamental na sua aceitação pelos matemáticos, uma vez que constituiu a primeira prova satisfatória da consistência da sua axiomática. O modelo hiperbólico tem muitas semelhanças com o modelo elíptico; tal como anteriormente, associamos ao ponto de coordenadas homogéneas (x 0 , x1 , x 2 ) o ponto de coordenadas cartesianas (x1 / x 0 , x 2 / x0 ) , que se normalizou pondo x0 = 1 (consideramos, como é óbvio, apenas os pontos interiores ao Absoluto). Com estas convenções, as fórmulas para a distância em geometria hiperbólica do quarto capítulo levam-nos à expressão arch 1 − x1 y1 − x 2 y 2 (1 − x 2 1 )( − x 22 1 − y12 − y 22 ) (x1 − y1 )2 + (x2 − y 2 )2 − (x1 y 2 − x2 y1 )2 = arcsh (1 + x 2 1 )( + x 22 1 + y12 + y 22 ) para a distância hiperbólica entre os pontos ( x1 , x 2 ) e ( y1 , y 2 ) . Assim, a distância hiperbólica entre dois pontos ( x1 , x 2 ) e (x1 + ∆x1 , x 2 + ∆x 2 ) 2 verifica sh ∆s = ∆x12 + ∆x 22 − ( x 2 ∆x1 − x1 ∆x 2 ) 2 ; se atendermos a que x e sh x 2 2 − x 22 1 − ( x1 + ∆x1 ) − ( x 2 + ∆x 2 ) sh x = 1) , obtemos finalmente a são infinitésimos equivalentes na origem (pois lim x →0 x expressão para o elemento de arco em geometria hiperbólica ds 2 = (1 − x )( 2 1 dx12 + dx 22 − ( x 2 dx1 − x1dx 2 ) (1 − x 2 1 2 = − x 22 ) 2 ) (1 − x )dx (1 − x 2 1 2 2 2 1 − x 22 ) 2 +2 x1 x 2 dx1 dx 2 (1 − x 2 1 − x 22 ) 2 + (1 − x )dx (1 − x 2 1 2 1 2 2 − x 22 ) 2 , sendo a última expressão a forma usual em Geometria Diferencial. Tal como para a geometria elíptica, podemos então (em princípio…) calcular o comprimento l de uma curva parametrizada por (x1 (t ), x 2 (t ) ) através da conhecida expressão l=∫ b a 2 2 dx dx dx dx E 1 + 2 F 1 2 + G 2 dt dt dt dt dt onde agora se tem - 189 - 1 − x 22 E = (1 − x12 − x22 )2 x1 x 2 F = (1 − x12 − x22 )2 1 − x12 G = (1 − x12 − x22 )2 Também neste caso, é muitas vezes preferível recorrer às coordenadas normalizadas, conforme se pode ver em [Cox1], páginas 248 e 249; reobtém-se, por exemplo, o resultado 2πsh R sobre o perímetro de uma circunferência de raio R, referido no capítulo anterior. É possível obter as fórmulas para o comprimento de arco por um processo parecido com o do plano de imersão da geometria elíptica, mas teremos de considerar em R 3 um produto interno334 diferente do usual. Como voltaremos adiante a esta questão, a propósito da geometria hiperbólica em espaços de dimensão superior, não faremos aqui essa derivação alternativa. Para concluir esta secção, abordaremos brevemente o cálculo da área de figuras em geometria hiperbólica recorrendo a exemplos simples. Conforme se viu no fim do quarto capítulo, a geometria hiperbólica é localmente euclidiana pelo que a área de um subconjunto A do plano hiperbólico pode ser dada335 por ∫∫ E ⋅ G − F 2 dx1 dx 2 ; a expressão E ⋅ G − F 2 dx1 dx 2 costuma ser denominada A elemento de área. Se substituirmos as expressões de E, F e G apresentadas anteriormente em E ⋅ G − F 2 dx1 dx 2 , esta última expressão transforma-se, após cálculos elementares, em 1 dx1 dx 2 , pelo que a área do subconjunto A pode ser dada por 2 2 3 1 − x1 − x 2 ( ∫∫ A ) 1 (1 − x 2 1 − x 22 ) 3 dx1 dx 2 , expressão algo mais simples e que utilizaremos sempre. Vejamos alguns exemplos: 334 Mais rigorosamente, um pseudo-produto interno, uma vez que a forma bilinear em causa não é definida positiva. 335 Veja-se por exemplo [BuK], páginas 180 a 183 ou o capítulo V de [RamR]. - 190 - Exemplo 1: A é um círculo de raio (hiperbólico) r centrado em Z = (0, 0) . Seja r o raio euclidiano; de acordo com o que se viu no Teorema 122, r e r estão relacionados por r = arctgh r ou, equivalentemente, r = tgh r . Passando a coordenadas polares x1 = ρ cos θ, x 2 = ρsen θ , vem ∫∫ A 2π r 1 (1 − x 2 1 − x 22 ) 3 dx1 dx 2 = ∫∫ 0 0 ρ (1 − ρ ) 2 3 1 r − 1 = 2π[ch r − 1] = 4πsh 2 dρdθ = 2π 2 1 − r 2 em concordância com o resultado obtido anteriormente no capítulo cinco; utilizámos nos passos finais destes cálculos duas identidades das funções hiperbólicas, 1 ch x = e ch (2 x) = 1 + 2sh 2 x . 2 1 − tgh x Exemplo 2: A é o triângulo rectângulo [ABC], onde A = (0, 0) (ver a figura seguinte). Figura 76 - 191 - Os cálculos deste exemplo são bastante longos e complexos. Recorrendo novamente a coordenadas polares e pondo β = tgh β , vem (atenda-se à figura anterior)336: A β⋅sec θ 1 ∫∫ (1 − x 2 1 A − x 22 ) 3 dx1 dx 2 = ∫ ∫ 0 0 ρ (1 − ρ ) 2 3 A 1 dρdθ = ∫ − 1 dρ = 2 2 0 1 − β ⋅ sec θ A sen θ cos θ = ∫ − 1 dρ = arcsen − θ 2 2 1− β2 0 o 1 − β − sen θ A ( ) Se tivermos em conta que β = tgh β e que ch β = cos B 337 , obtém-se, após mais sen A algumas simplificações, a expressão arcsen(sen A ⋅ ch β ) − A = arcsen(cos B ) − A = π π − B − A = π − + B + A e portanto a 2 2 área do triângulo [ABC] é igual ao seu defeito, conforme vimos no capítulo anterior. 3.4 O modelo hiperbólico de Klein338 e o modelo de Poincaré no semi-plano Existe um análogo ao modelo elíptico de Klein para a geometria hiperbólica. Considere-se o modelo de Beltrami no disco unitário e faça-se uma projecção ortogonal sobre os dois hemisférios da superfície esférica unitária de R 3 ; a cada ponto do interior do disco correspondem assim dois pontos, com as duas primeiras coordenadas iguais e as terceiras simétricas; os pontos da circunferência que limita o disco (e que correspondem aos pontos no infinito do modelo) são representados pelos pontos do “equador” (pontos da superfície esférica com primeira coordenada nula). As rectas hiperbólicas do modelo de Beltrami (segmentos euclidianos contidos no interior do disco) são representadas por círculos na superfície esférica que cortam ortogonalmente o equador. Em seguida, faz-se uma projecção estereográfica com centro num dos pólos e obtém-se assim uma representação da geometria hiperbólica no plano euclidiano, sendo as linhas hiperbólicas representadas por circunferências que cortam ortogonalmente o Absoluto ou por rectas contendo um diâmetro. É de reparar que cada ponto hiperbólico tem como imagem dois pontos euclidianos, um no interior e outro no exterior do disco339. Para obviar a este problema, podemos restringir-nos aos pontos do 336 Para simplificar a notação, representamos por A tanto o ponto de coordenadas (0, 0) como a medida do ângulo BAC; é óbvio, a partir do contexto, qual das duas entidades estamos a considerar em cada caso. 337 É uma das fórmulas dos triângulos rectângulos hiperbólicos do último capítulo. 338 Também conhecido como modelo de Poincaré no disco. 339 Assim, e ao contrário do que poderia supor-se numa análise menos cuidadosa da situação, os pontos ultra-ideais não surgem naturalmente neste modelo; para entrarmos com eles em consideração, teremos de usar uma completação projectiva, como foi visto no quarto capítulo. - 192 - interior do disco, o que faz com que cada ponto hiperbólico tenha uma única “imagem euclidiana”. Analiticamente, seja x0 = 0 o plano “equatorial” da superfície esférica unitária { } de R 3 , S 2 = ( x0 , x1 , x 2 ) ∈ R 3 : x02 + x12 + x 22 = 1 ; então o ponto (0, x1 , x 2 ) do modelo de Beltrami tem duas imagens por projecção ortogonal sobre S 2 , de coordenadas (± ) 1 − x12 − x 22 , x1 , x 2 , correspondendo o sinal “+” ao “hemisfério Norte” e o sinal “ − ” ao “Hemisfério Sul”. Se fizermos então a projecção estereográfica centrada no ) ( “Pólo Norte”, ao ponto − 1 − x12 − x 22 , x1 , x 2 do “hemisfério Sul” vai corresponder o ponto (0, u1 , u 2 ) tal que340 x1 = 2u 2 2u1 , x1 = e u12 + u12 < 1 2 2 1 + u1 + u1 1 + u12 + u12 Tal como no caso elíptico, há vantagem em usar números complexos; se identificarmos o ponto (u1 , u 2 ) com o número complexo u = u1 + u 2 i , vem x1 = u+u u −u , x2 = i u ⋅u +1 u ⋅u +1 Se utilizarmos as fórmulas da geometria analítica hiperbólica do quarto capítulo, verificamos por substituição directa que a distância entre os pontos x = (0, x1 , x 2 ) e y = (0, y1 , y 2 ) verifica ch δ = ( 1 − 0.5 x y + y x ), 1 − xx 1 − y y onde pusemos x = x1 + ix 2 e y = y1 + iy 2 ; usando as relações anteriores, chega-se, após simplificações, à expressão ch δ = (1 + uu )(1 + vv ) − 2(uv + vu ) . (1 − uu )(1 − vv ) x 1 + ch x Recorrendo à relação ch 2 = , obtém-se finalmente 2 2 340 Os cálculos são muito semelhantes aos apresentados para o modelo elíptico, pelo que nos dispensamos de os apresentar. - 193 - ( ( )( )( ( ( ) ) −1 )( )( −1 ) ) δ 1 − u v 1 − vu u −v v−u ch = = , −1 −1 2 1 − uu 1 − vv u −u v−v 2 expressão esta que admite, tal como no caso elíptico, uma interpretação em termos da razão cruzada. Se A, B, B' e A' forem os pontos do plano complexo correspondentes a u , v, v −1 e u −1 , podemos escrever ( ( )( )( ) ) ( ( −1 )( )( −1 ) ) δ δ 1 − u v 1 − vu u −v v −u AB '⋅BA' ch = ch 2 = = = , −1 −1 2 2 1 − u u 1 − vv AA' ⋅ BB ' u −u v −v 2 ficando assim a distância hiperbólica escrita em termos das distâncias euclidianas AB', BA', AA' e BB' . Geometricamente, se ao ponto A corresponder o complexo u = ρe iθ , a A' corresponde u −1 = ρ −1e iθ , pelo que os pontos A e A' estão sobre a mesma semi-recta de origem O; os pontos A e A' dizem-se inversos em relação à circunferência unitária (veja-se [Dio1], capítulo X). Terminamos estas observações sobre o modelo hiperbólico de Klein referindo que ele é, tal como o seu correspondente elíptico, um modelo conforme; tal facto decorre da construção feita e do Teorema 123. Assim, a medida dos ângulos coincide com a euclidiana, uma enorme vantagem em relação ao modelo de Beltrami. A figura seguinte ilustra o facto de a soma dos ângulos internos de um triângulo ser inferior a dois rectos. Figura 77 Existe uma variante da construção apresentada que leva a outro modelo interessante da geometria hiperbólica plana: o modelo de Poincaré no semi-plano. Se, - 194 - dado o modelo de Beltrami definido no plano de equação x0 = 0 , projectarmos ortogonalmente sobre o “hemisfério Norte” (pontos da superfície esférica com x0 > 0 ), e depois fizermos uma projecção estereográfica a partir do ponto (0, 0, 1) sobre o plano de equação x 2 = 0 , o disco unitário transforma-se no semi-plano ℘ definido por x 2 = 0 ∧ x 0 > 0 . Em virtude do Teorema 123, as rectas do modelo de Beltrami (que, recordemos, são cordas do disco) transformam-se em semi-circunferências centradas na aresta do semi-plano, com a excepção daquelas cujas projecções ortogonais sobre o “hemisfério Norte” passam pelo ponto (0, 0, 1); neste caso, as imagens são semi-rectas perpendiculares à aresta do semi-plano. Assim, o modelo de Poincaré num semi-plano ℘ tem como “pontos” os pontos euclidianos situados no semi-plano em causa e como “rectas” as semi-rectas euclidianas nele contidas que são perpendiculares à sua aresta e as semi-circunferências euclidianas nele contidas e centradas na sua aresta. Este modelo é também conforme, em consequência do Teorema 123. 3.5 Comparação dos diversos modelos Não é nossa intenção fazer um estudo detalhado dos dois modelos de Poincaré; referimos apenas que eles podem surgir independentemente da geometria projectiva e que muitos autores apresentam um deles como prova da consistência da geometria hiperbólica341 , indicando para cada um deles o que se há-de entender por pontos e rectas, bem como as noções de incidência, congruência, etc. É esta a abordagem usada em [Dio1] (modelo no semi-plano) e [PAV] (modelo no disco). Os dois modelos são isomorfos, no sentido de existir uma bijecção entre eles que transforma pontos em pontos, rectas e rectas e preserva as relações “estar entre”, “ser incidente” e “ser congruente”; a prova desta afirmação, que pode ser vista em detalhe no capítulo 7 de [Gre] baseia-se essencialmente no facto de ambos serem equivalentes ao modelo de Beltrami, o que decorre das construções apresentadas. Assim, para efeitos de comparação com o modelo de Beltrami, podemos escolher qualquer um deles. Como principais vantagens do modelo de Beltrami, podemos apresentar a sua natureza projectiva, que faz com que a introdução de pontos ideais e ultra-ideais seja fácil e natural342, ao contrário do que sucede nos modelos de Poincaré343 e o facto de as “rectas” serem de um só tipo, a saber as cordas euclidianas do Absoluto. Como desvantagem, podemos referir a dificuldade na medição dos ângulos, comparada com a extrema simplicidade dos modelos conformes de Poincaré e a necessidade do estudo prévio da geometria projectiva plana para uma total compreensão das suas propriedades344. Os modelos de Poincaré, abordados da forma apresentada nas referências anteriormente, têm um carácter muito mais elementar. 341 Consistência relativa, bem entendido; o que se prova é que a geometria hiperbólica é, pelo menos, tão consistente como a geometria euclidiana… 342 Um problema aparentemente simples que leva de forma natural à introdução deste tipo de elementos é o da existência de circuncentro ou de ortocentro de um triângulo em geometria hiperbólica, conforme se pode ver em [Cox1], páginas 221 a 223 ou [Car], páginas 68 a 71. 343 Recorde-se que a obtenção de uma completação projectiva de um plano hiperbólico (capítulo quarto) é uma construção delicada, quer pela necessidade de introduzir dois tipo de pontos ideais, quer pela estrutura imposta ao Absoluto, muito mais complicada que a simples recta no infinito que surge quando obtemos o plano projectivo por completação do plano afim. 344 É possível apresentar o modelo de Beltrami sem usar explicitamente geometria projectiva (veja-se, por exemplo, o capítulo 5 de [Wyl1]); trata-se, em nossa opinião, de uma abordagem complicada, difícil de motivar e didacticamente inferior à abordagem projectiva. Uma alternativa interessante é inverter o - 195 - A dificuldade da descrição das transformações de congruência dos vários modelos é essencialmente a mesma. No quarto capítulo, fizemos a sua caracterização para o modelo de Beltrami; quanto aos modelos de Poincaré, verifica-se que no caso do modelo do semi-plano, as transformações de congruência são as simetrias axiais cujos eixos são rectas euclidianas perpendiculares à aresta do semi-plano e as inversões345 nas circunferências centradas nessa aresta, bem como as compostas destes tipos de transformações346; para o modelo do disco, são as simetrias axiais euclidianas cujos eixos passam pelo centro do disco, as inversões em circunferências ortogonais ao Absoluto e as compostas destes tipos de transformações347. Nos dois próximos teoremas348, apresentamos uma caracterização destas transformações de tipo mais “algébrico”. Teorema 124: (Modelo do semi-plano) Consideremos o semi-plano de Poincaré (que representaremos por H + ) como parte de C: H + = {z ∈ C : Im( z ) > 0}. Então as transformações que preservam os ângulos e deixam H + fixo são da forma f ( z ) = a(− z ) + b az + b ou f ( z ) = , com a, b, c e d cz + d c (− z ) + d números reais e ad − bc = 1 . ■ Teorema 125: (Modelo do disco) Consideremos o disco unitário centrado na origem (que representaremos por ∆) como parte de C: ∆ = {z ∈ C : z < 1}. Então as transformações que preservam os ângulos e deixam ∆ fixo são da forma f ( z ) = az + b az + b 2 2 ou f ( z ) = , com a − b = 1 . ■ bz + a bz + a 3. 6 Construção de modelos aplicando a teoria das funções de variável complexa Nas secções anteriores vimos que a utilização de números complexos permitia simplificar consideravelmente muitas fórmulas dos modelos da geometria não euclidiana, em particular da geometria hiperbólica. Vamos agora ver como a utilização de alguns resultados da teoria das funções holomorfas permite obter toda uma classe de modelos de geometria hiperbólica definidas em certas regiões349do plano complexo. processo por nós usado: partir do modelo de Poincaré e deduzir a partir dele o modelo de Beltrami, essencialmente por inversão das construções apresentadas. É este o processo usado em [Gre] para resolver os problemas algo delicados da perpendicularidade e congruência de ângulos no modelo de Beltrami. 345 Para um estudo das principais propriedades das inversões, o leitor pode consultar o capítulo X de [Dio1]. 346 Veja-se [Dio1], página 104. 347 Veja-se [Gre], página 350. 348 Para as demonstrações, ver [GaS], páginas 157 a 163. 349 Uma região é um aberto conexo do plano complexo. - 196 - Muito resumidamente, a ideia é a seguinte: consideramos uma das regiões do plano na qual já definimos um modelo de geometria hiperbólica (as escolha típicas são o modelo de Poincaré em H + ou em ∆, embora haja outras possibilidades) e vamos considerar uma região U tal que existe uma bijecção f : U → H + (ou f : U → ∆ ); em seguida “transportamos” a geometria de H + (ou de ∆) para U por meio da bijecção. Naturalmente, f e f −1 terão de satisfazer requisitos mínimos de regularidade e ter algumas propriedades “interessantes” de carácter geométrico, como preservar o ângulo entre duas curvas350. Tem-se o seguinte resultado, bem conhecido da teoria das funções de variável complexa: Teorema 126: Uma condição necessária e suficiente para que uma função de classe C 1 , definida num aberto conexo D do plano, com jacobiano sempre diferente de zero, preserve a medida dos ângulos, é que seja holomorfa ou anti-holomorfa (isto é, seja função holomorfa de z ). No primeiro caso, preserva a orientação dos ângulos, e no segundo inverte-a351. Demonstração: Não a vamos apresentar; o leitor pode vê-la em [CarH], páginas 172 e 173. Assim, é razoável tentar construir modelos de geometria hiperbólica em abertos conexos que sejam analiticamente isomorfos ao disco ∆, no sentido de existir uma bijecção analítica e de inversa analítica entre eles e o disco ∆. A caracterização desses abertos é um dos mais notáveis resultados da teoria das funções de variável complexa. Teorema 127: Seja U um aberto conexo do plano complexo. Então U é analiticamente isomorfo ao disco unitário ∆ se e só se for distinto de C e simplesmente conexo. Antes de esboçarmos a demonstração deste teorema, é conveniente recordar algumas definições e resultados de Topologia. Definição 64: Seja X um espaço topológico. Dois caminhos fechados (aplicações contínuas de I = [0,1] em X tais que as imagens de 0 e 1 coincidem), γ 1 e γ 2 , dizem-se 350 Este requerimento natural é sugerido pelo facto de os modelos mais interessantes serem conformes; recordamos que o ângulo ente duas curvas num certo ponto comum A é, por definição, o ângulo das suas tangentes nesse ponto. 351 Repare-se que decorre imediatamente deste teorema que as transformações referidas no Teorema 124 e no Teorema 125 preservam a medida dos ângulos. - 197 - homotópicos se existir uma aplicação contínua H : I × I → X tal que H (s, 0) = γ 1 ( s ), H (s,1) = γ 1 ( s ) e H (0, t ) = H (1, t ) , para todos os valores de s e t em I; a aplicação H diz-se uma homotopia.352 Definição 65: Nas condições da definição anterior, um homotopicamente nulo se for homotópico a um caminho constante. caminho diz-se Definição 66: Um aberto conexo de um espaço topológico X diz-se simplesmente conexo se todos os seus caminhos fechados forem homotopicamente nulos. Por exemplo, qualquer aberto convexo Ω de C é simplesmente conexo: a conexidade é evidente e quanto à homotopia, dado um caminho fechado qualquer γ 1 em Ω, basta fixar z1 ∈ Ω e definir a homotopia H ( s, t ) = (1 − t ) γ 1 ( s ) + tz1 , com s, t ∈ I para se ver que γ 1 é homotopicamente nulo. A Definição 66 é, na prática, difícil de aplicar. Felizmente, no caso dos abertos de C, existe uma caracterização alternativa. Teorema 128: Um aberto Ω de C é simplesmente conexo se e só se tanto ele como o seu complementar em relação ao plano complexo completo Cˆ = C ∪ {∞} ≅ S 2 forem conexos. Demonstração: Não a vamos apresentar o leitor interessado pode vê-la em [Ru], onde aliás, existe uma extensa lista de alternativas à definição que apresentámos. ■ Podemos finalmente proceder à demonstração do Teorema 127. Demonstração: Se Ω for analiticamente isomorfo ao disco unitário ∆, é, em particular, homeomorfo a ∆, logo Ω é simplesmente conexo porque ∆ também o é (por ser convexo). Se Ω = C , existiria uma função inteira não constante definida em C e com todos os seus valores em ∆, o que contradiz o conhecido Teorema de Liouville (toda a função inteira e limitada é constante). A recíproca é muito mais complicada: trata-se, no essencial, de provar o famoso Teorema da Transformação de Riemann, o que não vamos aqui fazer. O leitor interessado pode consultar [CarH] ou [Alf] para ver essa demonstração. ■ 352 Intuitivamente, isto significa que o segundo caminho pode ser obtido do primeiro por uma “deformação contínua” dentro do espaço topológico X. - 198 - Temos pois definidos os elementos essenciais para a construção dos modelos de geometria hiperbólica: vamos ver como, dado um aberto de C analiticamente isomorfo353 a H + , é possível construir nele um tal modelo. Comecemos por reparar que H + e ∆ são analiticamente isomorfos: basta iz + 1 considerar o isomorfismo analítico f : ∆ → H + definida por f ( z ) = para o − z −i comprovar, já que f (−1) = 1, , f (i ) = 0, f (1) = −1 e f (0) = i 354. Assim, podemos reformular a frase acima: vamos ver como, dado um aberto simplesmente conexo de C (distinto de C), é possível construir nele um modelo de geometria hiperbólica. Seja então X um aberto simplesmente conexo de C (distinto de C); pelo que vimos anteriormente, existe um isomorfismo analítico ξ: X→ H + , que vamos usar para “transferir” a estrutura hiperbólica de H + para X. Os pontos hiperbólicos de X são os pontos “usuais” de X. Quanto às rectas, tem-se a seguinte definição: Definição 67: Uma linha recta hiperbólica em X é um conjunto da forma ξ −1 (l ) , onde l é uma recta hiperbólica de H + . Assim, uma recta hiperbólica em X é um conjunto da { } forma {z ∈ X : Re(ξ( z ) ) = c} ou z ∈ X : ξ( z ) − c = r 2 , para certos números reais c e r (r, por corresponder a um raio, deve ser positivo).355 2 Vejamos um exemplo: Seja X o “primeiro quadrante”, definido por X = {z ∈ C : Re( z ) > 0 e Im( z ) > 0} e considere-se ξ: X→ H + definido por ξ( z ) = z 2 . Decorre imediatamente das propriedades elementares das funções de variável complexa que esta função define efectivamente um isomorfismo analítico entre X e H + . Procuremos caracterizar as rectas hiperbólicas de X. Usando w = u + iv como coordenada complexa em X, vem imediatamente z = ξ( w) = u 2 − v 2 + 2iuv . Seja então uma recta hiperbólica em H + do tipo “semi-recta vertical euclidiana”, Lc = {z ∈ H + : Re (z) = c} ; a sua imagem por ξ −1 é um conjunto da { } forma w ∈ X : u 2 − v 2 = c . Se c = 0 , trata-se da semi-recta bissectriz do primeiro quadrante; se c ≠ 0 , as curvas obtidas são arcos de hipérbole que têm como assíntota a semi-recta anterior (veja-se a figura seguinte). 353 Usa-se muitas vezes a expressão analiticamente equivalente. O leitor pode consultar o capítulo III de [AFR2] para as propriedades elementares das homografias. 355 Estes dois “tipos” de rectas correspondem aos dois “tipos” de rectas do modelo do semi-plano vistos no fim da secção 3.4. 354 - 199 - Figura 78 O caso das rectas hiperbólicas em H + do tipo do tipo “semicircunferência 2 2 euclidiana centrada no eixo real”, Ac , r = z ∈ H + : (Re( z ) − c ) + (Im( z ) ) = r 2 é mais { } complicado; a imagem por ξ −1 é agora uma linha conhecida por oval de Cassini, de ( equação u 2 + v 2 Cassini. ) 2 ( ) − 2c u 2 − v 2 + c 2 = r 2 ; na figura seguinte ilustramos várias ovais de Figura 79 É também possível transferir a métrica de H + para X, o que se faz por meio de um processo conhecido como pullback do elemento de arco. Não vamos entrar em detalhes356, limitando-nos a resumir o resultado final no seguinte teorema. 356 O leitor interessado pode consultar a secção 4. 2 do capítulo 4 de [And]. - 200 - Teorema 129: Seja f : [a, b ] → X um caminho seccionalmente de classe C 1 ; então, o seu comprimento na estrutura hiperbólica de X é o comprimento em H + de ξ o f ; o comprimento em H + de um caminho g : [a, b ] → H + é, por definição, dado por b 1 1 357 ' ∫g Im( z ) dz = ∫a Im( g (t )) g (t ) dt . A distância entre dois pontos de X é o infímo dos comprimentos de todos os caminhos seccionalmente C 1 que unem os dois pontos e X, munido desta distância, é um espaço métrico. ■ É ainda possível caracterizar o grupo de isometria de X, no espírito do Programa de Erlangen: pode-se provar que Isom( X ) = ξ −1 o m o ξ , onde m é uma transformação do tipo referido no Teorema 124. { } Para terminar este breve resumo dos modelos obtidos recorrendo à teoria das funções de variável complexa, referimos dois problemas que a construção anterior apresenta: 1-Será que a estrutura obtida em X é independente do isomorfismo analítico ξ? 2-Será possível obter uma expressão explícita “manejável” para um isomorfismo analítico entre um aberto simplesmente conexo (distinto de C) e H + ? Quanto à primeira questão, comecemos por reparar que ela é realmente pertinente: o isomorfismo analítico cuja existência é garantida pelo Teorema da Transformação de Riemann não é, de modo algum único. Para o ver, basta considerar o iz + 1 ; compondo f com exemplo já apresentado de f : ∆ → H + , definida por f ( z ) = − z −i a aplicação g : ∆ → ∆ definida por g ( z ) = e iθ z (onde θ é um número real dado tal que e iθ ≠ 1 ), obtém-se um novo isomorfismo distinto do anterior. A resposta a esta questão é, felizmente, afirmativa: a estrutura hiperbólica em X é independente do isomorfismo analítico considerado. Não vamos provar esta afirmação, remetendo o leitor interessado para a referência [And]. A resposta à segunda questão é muito menos satisfatória: as demonstrações conhecidas do Teorema da Transformação de Riemann são altamente não construtivas e, mesmo nos casos em que existem fórmulas relativamente explícitas358, não é possível, em geral, obter expressões para o elemento de arco em termos das funções elementares. Uma possibilidade interessante é o recurso a métodos numéricos da teoria das transformações conformes. Na próxima figura apresentamos o resultado da aplicação da Schwarz-Christoffel toolbox359 (para MATLAB) à determinação de uma transformação conforme entre o quadrilátero irregular da esquerda e o semi-plano superior; repare-se nas “rectas hiperbólicas” do modelo do semi-plano e nas suas correspondentes no quadrilátero. 357 Tal infímo é, na realidade, um mínimo; pode-se provar que é alcançado por uma parametrização conveniente de segmentos de recta hiperbólicos do modelo de Poincaré no semi-plano. 358 Por exemplo, quando X é um polígono, recorrendo-se à chamada fórmula de Schwarz-Christoffel. 359 Da autoria de Tobin A. Driscoll e disponível em http://www.math.udel.edu/~driscoll/SC/. - 201 - Figura 80 Figura 81 - 202 - Concluímos esta secção ilustrando a transformação do semi-plano superior na faixa 0 < Im( z ) < π por meio da transformação w = ln( z ), (−1 → πi ) , obtida por meio do programa360 3d-XplorMath-J; repare-se na imagem das semi-rectas verticais por meio da transformação (ver a figura anterior). 3.7 Modelos de geometrias não euclidianas em superfícies de R 3 Se considerarmos os modelos de geometrias euclidianas apresentados nas secções anteriores, verificamos que todos eles têm um sério problema: as distâncias não são mantidas, isto é, o comprimento (euclidiano) de um segmento de recta [AB] do modelo não coincide com o seu comprimento não euclidiano, mesmo nos modelos conformes. Isto é óbvio no caso hiperbólico, uma vez que uma recta hiperbólica tem comprimento infinito e (pelo menos nalguns casos), é representada por arcos de circunferência (com comprimento euclidiano finito) nos modelos. Quanto ao caso elíptico, vimos no terceiro capítulo que todas as rectas têm o mesmo comprimento (finito), o que obviamente é falso nos diversos modelos apresentados. Seria naturalmente muito desejável obter modelos no espaço euclidiano em que as distâncias fossem mantidas. Se pensarmos no caso esférico, que tem solução trivial (a superfície esférica…), vemos que é natural procurar esses modelos entre as superfícies existentes no espaço tridimensional usual R 3 . Este problema, nas suas duas vertentes (elíptica e hiperbólica), preocupou os matemáticos ao longo do século XIX e, curiosamente, foi resolvido (pela negativa) em ambos os casos quase ao mesmo tempo, no fim do século XIX / início do século XX. Em meados do século XIX, Riemann mostrou que se existisse uma superfície nestas condições, ela deveria ter curvatura constante361, que seria positiva no caso elíptico e negativa no caso hiperbólico.362 Este resultado deu um forte incremento ao estudo das superfícies de curvatura constante, tema aliás corrente na Geometria Diferencial do século XIX. Os primeiros resultados, obtidos por F. Minding (1806-1885) foram desenvolvidos e aprofundados por O. Bonnet (1819-1892), D. Codazzi (1824-1873), G. Darboux (1842-1917), Beltrami e Klein, entre muitos outros, e culminaram nos teoremas de Liebmann e Hilbert, que referiremos no seguimento. Comecemos pelo caso elíptico. Em 1838, Minding conjecturou o seguinte resultado, conhecido actualmente como Teorema de Liebmann: 360 Disponível em http://3d-xplormath.org/. Curvatura gaussiana, não curvatura média. 362 Os resultados que vamos referir nesta secção são, na sua maioria, teoremas profundos de Geometria Diferencial; o leitor interessado na formulação rigorosa dos problemas e nas demonstrações (que vamos omitir) pode consultar [doCarmo]; para os aspectos históricos, uma boa referência é [Bon]. 361 - 203 - Teorema 130: A única superfície conexa e compacta de curvatura constante positiva (sem singularidades) é a superfície esférica. ■ Este resultado, provado em 1899 por H. Liebmann (1874-1939) e posteriormente aperfeiçoado por G. Lütkemeyer e E. Holmgren, tem como corolário a inexistência de solução do nosso problema no caso elíptico. Quanto ao caso hiperbólico, os primeiros estudos foram feitos por Gauss em 1827 (num trabalho não publicado) e por Minding em 1839. Ambos descreveram a superfície actualmente conhecida por pseudo-esfera ou esfera de Beltrami (ver Figura 83), uma superfície obtida por rotação de uma tractriz, (curva caracterizada pelo facto de, em qualquer dos seus pontos, o segmento da tangente compreendido entre o ponto de tangência e a assíntota à curva ter comprimento constante - Figura 82)363 em torno da sua assíntota, o eixo dos xx no caso ilustrado na última figura referida. Figura 82 363 Para um estudo sumário desta curva veja-se [FoMi], páginas 180 e 181. - 204 - Figura 83 Em 1868, Beltrami conseguiu provar um resultado extremamente importante: mostrou ser possível representar uma parte do plano hiperbólico (um sector horocíclico364), sem distorção de comprimentos, na pseudo-esfera. Para uma boa compreensão desta afirmação, referimos que um horociclo é uma curva própria da geometria hiperbólica, que se define da seguinte maneira: Definição 68: Sejam m uma linha recta, Q um ponto pertencente a m e t a perpendicular a m passando por Q. Se consideramos um outro ponto P pertencente à perpendicular t e traçarmos a circunferência C, de centro P e raio PQ , essa circunferência é tangente a m em Q (ver Figura 84). Suponhamos agora que P se afasta indefinidamente de Q. Chama-se horociclo à curva limite para a qual “tende” então a circunferência C.365 Figura 84 Prova-se que, no modelo do disco, um horociclo é uma circunferência euclidiana tangente internamente ao Absoluto. Na figura seguinte apresentamos um horociclo H como “limite” da sucessão de circunferências C1 , C 2 , C 3 ,K de centros P1 , P2 , P3 , K 364 365 Veja-se [FoMi], páginas 184 a 190. Em geometria euclidiana, essa curva limite seria apenas a linha m. - 205 - Figura 85 Se Ω for o ponto de tangência (logo um ponto no infinito) e A um ponto ⋅ qualquer no horociclo, a semi-recta hiperbólica A Ω diz-se um diâmetro do horociclo. Na figura seguinte apresentamos um horociclo e o e o sector horocíclico limitado por um seu arco e dois diâmetros.366 Figura 86 366 Para uma boa compreensão destas figuras, nomeadamente a representação das circunferências e horociclos no modelo do disco, consulte-se [Gre], páginas 392 a 394. - 206 - O referido resultado de Beltrami (tal como o modelo por ele descoberto apresentado no quarto capítulo) teve uma enorme influência na aceitação da geometria hiperbólica como uma teoria matemática “respeitável”: se esta geometria fosse inconsistente, também a teoria das superfícies no espaço tridimensional usual seria inconsistente, algo que nenhum matemático aceitava. O passo natural seguinte seria obter uma representação análoga de todo o plano hiperbólico; Beltrami não o conseguiu e conjecturou que tal é impossível. Houve várias “demonstrações” insatisfatórias, tanto desta conjectura como da sua negação (!!) até que, em 1901, Hilbert apresentou o notável resultado que a seguir enunciamos. Teorema 131: (Teorema de Hilbert). Não existe uma superfície de curvatura constante negativa sem singularidades no espaço tridimensional usual.■ Este teorema, posteriormente refinado por G. Lütkemeyer,367 tem como corolário a impossibilidade da resolução do problema desta secção também no caso hiperbólico. 4. Modelos em dimensões superiores Ao longo deste trabalho, considerámos sempre geometrias não euclidianas de dimensão não superior a dois. Faremos agora uma breve referência às geometrias não euclidianas em dimensões superiores. Os sistemas axiomáticos para espaços hiperbólicos ou elípticos de dimensão três são extensões naturais dos sistemas planos correspondentes368; o leitor interessado pode encontrar estudos detalhados destes espaços no capítulo quatro de [RamR] e no capítulo VII de [Cox1], respectivamente. Quanto às dimensões superiores a três, elas são menos referidas na literatura e o estudo é feito sobretudo recorrendo a modelos369. O resto desta secção vai ser dedicado a apresentar alguns modelos para o caso hiperbólico.370 Pode-se provar que o sistema de axiomas apresentado em [RamR] para o espaço hiperbólico de dimensão maior ou igual a três é categórico, tal como sucede para o espaço bidimensional. Assim, todos os modelos são isomorfos, o que justifica, de certo modo, a preferência dada ao seu estudo em vez dos métodos sintéticos. Vamos construir no espaço R n+1 uma superfície (parte de uma quádrica se n = 2 e parte de uma hiperquádrica se n > 2 ) que será um modelo da geometria hiperbólica n-dimensional. Assim, no caso particular de R 3 teremos uma superfície que constituirá um modelo do plano hiperbólico, o que pode parecer estranho se tivermos em conta o Teorema de Hilbert (Teorema 131) da secção anterior. A explicação deste aparente paradoxo é que não vamos considerar recorrer em R n+1 o produto interno usual, mas sim 367 Hilbert provou o resultado para superfícies analíticas; Lütkemeyer mostrou que ele também é válido para superfícies “suficientemente diferenciáveis”; veja-se o Apêndice V de [DHi]. 368 Uma diferença curiosa é que não é necessário assumir como axioma o Teorema de Desargues (ou qualquer outra proposição equivalente); em dimensão superior a dois, o Teorema de Desargues é um “verdadeiro” teorema, no sentido de poder ser provado a partir dos restantes axiomas – veja-se [Cox2]. 369 Para um sistema de axiomas para a geometria elíptica n – dimensional, pode consultar-se [Blu]; para o caso hiperbólico, uma boa referência é [RamR] . 370 Para o caso elíptico, consulte-se [OnS]. - 207 - uma forma bilinear simétrica indefinida. Em seguida, construiremos outros modelos que generalizam os modelos de Beltrami e Poincaré anteriormente vistos. 4.1 Generalidades sobre espaços pseudo-euclidianos Antes de passarmos à descrição dos modelos, será conveniente recordar e generalizar alguns conceitos e resultados de Álgebra Linear. Definição 69: Seja V um espaço vectorial real. Uma aplicação B : V × V → R diz-se um funcional bilinear se para quaisquer x, y, z ∈ V e α, β ∈ R se tem 1) B( x, αy + βz ) = αB( x, y ) + βB( x, z ) 2) B(αx + β y, z ) = αB( x, z ) + βB ( y, z ) Um funcional bilinear diz-se simétrico se para quaisquer B ( x, y ) = B ( y , x ) . x, y ∈ V se tiver Suponhamos agora que V tem dimensão finita e seja (e1 , e2 ,K en ) uma sua base. Dado um funcional bilinear simétrico B definido em V, consideremos a matriz quadrada de ordem n B = bij 371, onde bij = B(ei , e j ), 1 ≤ i, j ≤ n . Tem-se então o seguinte resultado: [ ] Teorema 132: A matriz B n n i =1 i =1 é simétrica e se x = ∑ xi ei e y = ∑ y i ei são dois x1 y1 x y 2 T elementos quaisquer de V, então B( x, y ) = X BY , onde X = e Y = 2 M M xn yn 372 .■ Embora a matriz que representa o funcional dependa da base considerada, é possível provar que a sua característica nunca varia373, o que mostra que a seguinte definição é consistente: Definição 70: Chama-se característica de um funcional bilinear simétrico à característica da matriz que o representa numa base qualquer. Um funcional diz-se não degenerado se a sua característica for igual à dimensão do espaço. 371 Usamos a mesma letra para o funcional e para a matriz correspondente sempre que não haja perigo de confusão. 372 Omitimos a demonstração de proposições bem conhecidas de Álgebra Linear; o leitor interessado pode consultar a este respeito o capítulo 5 de [Mon]. 373 Tal invariância decorre imediatamente da conhecida fórmula da mudança de base. - 208 - Tem-se a seguinte caracterização alternativa dos funcionais não degenerados: Teorema 133: Um funcional bilinear simétrico é não degenerado se e só se para cada vector x ∈ V \ {0} existir um vector y ∈ V tal que B( x, y ) ≠ 0 . Demonstração: Não a vamos fazer; o leitor interessado pode consultar [Pos2], páginas 44 e 45.■ Repare-se que um produto interno é trivialmente um funcional bilinear simétrico não degenerado; para o comprovar, basta tomar y = x na definição anterior, já que um produto interno é definido positivo. Definição 71: Seja V um espaço vectorial real de dimensão finita: chamamos pseudoproduto interno em V a qualquer funcional bilinear simétrico B não degenerado que não seja definido positivo374. V diz-se então um espaço pseudo-euclidiano e a expressão B( x, y ) costuma escrever-se apenas como ( x, y ) se não houver perigo de confusão. Um espaço afim real, A, de dimensão finita, diz-se pseudo-euclidiano quando o espaço vectorial associado for pseudo-euclidiano. Definição 72: Seja V um espaço vectorial real de dimensão finita. Chama-se funcional quadrático a qualquer aplicação B : V → R da forma B( x) = B( x, x) , onde B é um funcional bilinear simétrico não degenerado. É fácil de ver que a correspondência indicada na definição entre funcionais bilineares e funcionais quadráticos é bijectiva; para tanto, basta mostrar como se pode “reconstituir” o funcional bilinear B a partir do funcional quadrático B , o que é B( x + y ) − B ( x) − B ( y ) . A partir de agora consequência imediata da fórmula B( x, y ) = 2 e sempre que não haja perigo de confusão, representaremos pela mesma letra quer o funcional bilinear quer o funcional quadrático que lhe está associado. Resulta imediatamente do Teorema 132 que um funcional quadrático pode ser expresso na forma X T BX , onde B é a matriz do funcional bilinear que lhe corresponde. Se desenvolvermos os cálculos nesta expressão, verificamos facilmente que o segundo membro é uma forma quadrática375 nas indeterminadas x1 , x 2 ,K x n . Reciprocamente, dada uma forma quadrática, ela pode ser escrita sempre na forma 374 Há autores que chamam produto interno a qualquer funcional bilinear simétrico não degenerado, independentemente de ser ou não definido positivo; para evitar confusões com a definição usual de produto interno, preferimos usar aqui o termo pseudo-produto interno. 375 Polinómio homogéneo do segundo grau. - 209 - a11 x12 + 2a12 x1 x 2 + K + 2a1n x1 x n + a 22 x 22 + K + 2a 2 n x 2 x n + KK + a nn x n2 ou, em T linguagem matricial, X BX , sendo B a matriz dada por a11 a B = 21 K a n1 a12 a 22 K an 2 K a1n K a 2 n . K K K a nn Provámos assim o seguinte resultado: Teorema 134: Existe uma bijecção (que depende, naturalmente, da base escolhida em V) entre o conjunto dos funcionais quadráticos e o conjunto das formas quadráticas. ■ Um resultado fundamental da teoria dos funcionais bilineares e das formas e funcionais quadráticos é o seguinte: Teorema 135: Para qualquer funcional bilinear simétrico B, de característica r, definido num espaço vectorial real de dimensão finita V, existe uma base em relação à qual se tem B( x, y ) = x1 y1 + x 2 y 2 + K + x s y s − x s +1 y s +1 − K − x r y r Dando ao funcional o aspecto anterior, o número s é bem determinado e independente da base escolhida.376 Demonstração: Não a vamos apresentar; pode ser vista em [Mon], páginas 202 a 208. ■ Corolário: Para qualquer funcional quadrático Q, definido num espaço vectorial real de dimensão finita V, existe uma base em relação à qual se tem Q ( x) = x12 + x 22 + K + x s2 − x s2+1 − K − x r2 O número s é igualmente bem determinado e é conhecido como índice de inércia do funcional quadrático. Demonstração: É consequência imediata do teorema. ■ 376 Esta última afirmação costuma ser conhecida por lei da inércia de Sylvester. - 210 - Seja agora um espaço vectorial real V de dimensão finita n, no qual está definido um funcional bilinear simétrico e seja p o indíce de inércia do funcional quadrático associado. Tem-se a seguinte definição: Definição 73: Nas condições anteriores, diz-se que V tem índice p e assinatura ( p, q ) , sendo q = n − p. Por exemplo, se o funcional for definido positivo (logo um “verdadeiro” produto interno), o índice é n, a assinatura (n, 0 ) e V é um espaço euclidiano. No outro extremo do espectro, se o indíce for 0, a assinatura é (0, n ) e o funcional é definido negativo; V diz-se então um espaço anti-euclidiano e a sua geometria transforma-se na geometria euclidiana após a multiplicação de todos os produtos internos por − 1 . No que se segue interessar-nos-ão sobretudo os espaços pseudo-euclidianos correspondentes a “casos intermédios”, com destaque para os espaços de índice 1; salvo aviso em contrário, só consideraremos funcionais não degenerados. Definição 74: Seja V um espaço pseudo-euclidiano, e x ∈ V . Chamamos norma de x ao número ( x, x ) , que representamos por x (no caso (x, x ) < 0 , ( x, x ) significa i (x, x ) , onde (x, x ) é a raiz quadrada usual em R). É de reparar que a norma pode ser positiva, nula ou imaginária, o que sucede nos casos (x, x ) > 0 , (x, x ) = 0 e (x, x ) < 0 , respectivamente; recordemos que num espaço euclidiano a norma é sempre maior ou igual a zero. Distinguimos estes três casos por meio da seguinte definição: Definição 75: Seja V um espaço pseudo-euclidiano, e x ∈ V . x diz-se: a) semelhante ao tempo se (x, x ) > 0 ; b) semelhante ao espaço se (x, x ) < 0 ; c) semelhante à luz ou isotrópico se (x, x ) = 0 .377 A existência de vectores com normas positivas, nulas ou imaginárias vai implicar que a geometria dos espaços pseudo-euclidianos é mais complicada do que a dos espaços euclidianos. Mesmo em dimensão dois ocorrem fenómenos “bizarros”, por exemplo no cálculo dos ângulos, conforme se pode ver em [Pos2]. Na teoria dos espaços euclidianos desempenham papel fundamental as bases ortonormadas. Nos espaços pseudo-euclidianos, elas são substituídas pelas bases pseudo-ortogonais. 377 Estas denominações algo estranhas vêm da Física; o espaço de assinatura (1, 3), dito espaço de Minkowski desempenha um papel importante na Teoria da Relatividade Restrita. - 211 - Definição 76: Seja V um espaço pseudo-euclidiano de assinatura (e1 ,K, en ) ( p, q ) . Uma base 0, se i ≠ j . diz-se pseudo-ortogonal se (ei , e j ) = 1, se i = j , i = 1,K , p − 1, se i = j, i = p + 1, K , n O seguinte resultado é consequência óbvia da definição: Teorema 136: Seja V um espaço pseudo-euclidiano de assinatura ( p, q ) e (e1 , K, en ) n n i =1 i =1 uma sua base pseudo-ortogonal. Se x = ∑ xi ei e y = ∑ y i ei são dois elementos quaisquer de V, então ( x, y ) = x1 y1 + x 2 y 2 + K + x p y p − x p +1 y p +1 − K − x n y n . Em particular, ( x, x) = x12 + x 22 + K + x 2p − x 2p +1 − K − x n2 e x = x12 + x 22 + K + x 2p − x 2p +1 − K − x n2 . ■ O seguinte resultado é consequência do Teorema 135: Teorema 137: Em qualquer espaço pseudo-euclidiano de dimensão finita existe uma base pseudo-ortogonal. ■ Todas estas definições são aplicáveis aos espaços afins da forma natural, recorrendo aos espaços vectoriais associados. 4.2 O modelo do hiperbolóide Não levaremos mais longe o estudo da geometria dos espaços pseudoeuclidianos378, uma vez que o nosso objectivo é apenas utilizar esses espaços para descrever sumariamente de alguns modelos de geometria hiperbólica n-dimensional. Ao contrário do que fizemos no caso bidimensional, não vamos proceder a verificações detalhadas dos axiomas hiperbólicos, limitando-nos a verificar que os modelos apresentados generalizam de forma natural os modelos planos anteriormente estudados379. 378 379 Sugerimos ao leitor a consulta de [Pos2] ou [OnS] para um estudo mais aprofundado. Estas verificações podem ver-se em [Pos2] e, sobretudo, [OnS]. - 212 - Seja então A um espaço afim, pseudo-euclidiano, de dimensão n + 1 e indíce 1.380 Fixando em A uma origem O, identificamos A com o seu espaço vectorial pseudo-euclidiano associado V, da forma usual em Álgebra Linear. Definição 77: Seja R > 0 . O conjunto S, formado pelos pontos A ∈ A tais que o vector → → OA é semelhante ao tempo e OA = R chama-se superfície esférica de raio R e centro O. Consideremos agora em A um referencial (e0 , e1 ,K, en ) seja pseudo-ortogonal. (O, e0 , e1 K, en ) tal que a base O conjunto S é então definido pela equação x02 − x12 − K − x n2 = R 2 . A título de exemplo, se n = 1 , S é uma hipérbole e se n = 2 , S é um hiperbolóide de duas folhas (veja-se a figura seguinte). Figura 87 No que se segue, e para simplificar as expressões, suporemos sempre que R = 1 . Para qualquer valor de n, a superfície S tem duas componentes, uma com x0 ≥ 1 e outra com x0 ≤ −1 . Seja Γ a componente com x0 ≥ 1 . Construímos então um modelo de geometria hiperbólica n-dimensional, tomando como pontos hiperbólicos os pontos de Γ e como planos hiperbólicos de dimensão m as intersecções de Γ com os planos de dimensão m + 1 do espaço V que passam pela origem; as rectas hiperbólicas correspondem ao caso m = 1 e os planos hiperbólicos bidimensionais ao caso m = 2 . Na figura seguinte procuramos ilustrar o caso bidimensional ( n = 2 , logo Γ é uma folha de hiperbolóide em R 3 e as rectas hiperbólicas são secções de Γ por planos que passam pela origem; na figura, [AB] é um segmento de recta hiperbólico, contido na recta AB, intersecção de Γ com o plano OAB). 380 Logo de assinatura (1, n). - 213 - Figura 88 É fácil de ver (pelo menos no caso ilustrado na figura…) que neste modelo se verifica o axioma hiperbólico381. Como dissemos anteriormente, não vamos proceder a uma verificação detalhada dos axiomas; não queremos, no entanto, deixar de referir a possibilidade de introduzir em Γ uma estrutura de espaço métrico utilizando a forma bilinear indefinida do espaço V. Muito resumidamente, dados dois pontos A e B em Γ, → definimos a sua distância de Lobatchevsky, d L ( A, B ) , como o ângulo dos vectores OA → e OB (repare-se na semelhança com as coordenadas normalizadas); é então possível provar que (Γ , d L ) é um espaço métrico382. O ponto que nos parece mais interessante é o seguinte: qual o significado a → → atribuir ao ângulo entre OA e OB ? E como calcular este valor? Recordemos como se define ângulo de dois vectores não nulos num espaço euclidiano E. Em E verifica-se a conhecida desigualdade de Cauchy-Schwarz: dados (u, v ) ≤ 1 e u, v ∈ E (u, v ) ≤ u ⋅ v , donde se conclui que, para u e v não nulos − 1 ≤ u ⋅v (u, v ) . Pomos então, por definição, portanto existe um único θ ∈ [0, π] tal que cos θ = u ⋅ v → → θ = ∠ OA, OB . Num espaço pseudo-euclidiano, a situação é mais complicada, mesmo no caso simples em que a dimensão é 2. Nesta hipótese, enquanto que para dois vectores de 381 Veja-se por exemplo o capítulo 6 de [And]. Como usualmente, a parte mais difícil é a prova da desigualdade triangular; veja-se [Pos2], páginas 164 a 166. 382 - 214 - tipos diferentes (isto é, um semelhante ao espaço e outro ao tempo) continua a ser válida uma desigualdade análoga à de Cauchy-Schwarz, para vectores do mesmo tipo passa a ser necessário considerar a chamada desigualdade inversa de Cauchy-Schwarz: (u, v )2 ≥ 2 2 u ⋅ v . Para se poder definir a noção de ângulo de forma análoga à apresentada acima, é ainda necessário introduzir uma condição suplementar de carácter técnico: os vectores em causa devem ser homónimos (dois vectores não nulos u e v dizem-se homónimos se para quaisquer valores não negativos dos números reais α e β, a combinação linear αu + β v não for isotrópica). A situação complica-se ainda mais para dimensões superiores: ao contrário do que poderia parecer natural, não basta, para calcular o ângulo de dois vectores, considerar o espaço bidimensional V por eles gerado, uma vez que não sabemos, a priori, se, com a forma bilinear induzida, V é euclidiano, pseudo-euclidiano, antieuclidiano383 ou, ainda pior, degenerado.384 → → No caso dos vectores OA e OB do nosso modelo, é possível provar um pouco → → OA , OB → → → → → → ≥ 1, mais: OA, OB ≥ OA ⋅ OB , sendo OA ≠ 0 e OB ≠ 0 . Então, → → OA ⋅ OB → → OA, OB ; θ será então o ângulo pelo que existe um único θ ∈ [1, + ∞[ tal que ch θ = → → OA ⋅ OB → → entre os dois vectores OA e OB . Estas propriedades, cuja justificação pode ver-se na referência [Pos2] (páginas 147 a 149), ilustram bem a complexidade da geometria de um espaço pseudo-euclidiano385. Voltemos ao nosso modelo. Uma maneira de facilitar a visualização da geometria é projectar ortogonalmente a superfície Γ sobre o (hiper)plano de equação x0 = 0 . Como esta correspondência é obviamente uma bijecção, obtemos um modelo de geometria hiperbólica no espaço R n (identificável com o plano x0 = 0 ), cujos pontos são os n-uplos (x1 ,K , x n ) . Este novo modelo tem, no entanto, o inconveniente de as rectas hiperbólicas serem representadas por arcos de hipérbole, pelo que é pouco usado. 383 Significa que a forma induzida é definida negativa. A forma bilinear induzida é degenerada; neste caso não faz mesmo sentido definir o ângulo. 385 E, mesmo assim, a situação é simplificada por a assinatura do espaço ser (1, n); o caso geral de uma assinatura qualquer é ainda mais difícil. 384 - 215 - 4.3 O modelo de Beltrami generalizado O modelo de Beltrami generalizado obtém-se a partir do modelo do hiperbolóide por projecção gnomónica (ou central) da superfície Γ sobre o plano que lhe é tangente no ponto (1, 0,K , 0 ) (o plano de equação x0 = 1 ). De forma semelhante à vista na secção 3.1 deste capítulo, a recta que une um ponto arbitrário (x 0 , x1 ,K , x n ) de Γ à x x origem O intersecta o plano de equação x0 = 1 no ponto 1, 1 , K, n . Assim, neste x0 x0 modelo, os pontos são representados pelos pontos y = ( y1 ,K , y n ) ∈ R n tais que y1 = x1 x , K, y n = n . x0 x0 Procuramos ilustrar o caso bidimensional na figura seguinte. Figura 89 Se repararmos que 2 2 x x 1 1 y + K + y = 1 + K + n = 2 x12 + K + xn2 = 2 x02 − 1 < 1 x0 x0 x0 x0 2 1 2 n ( ) ( ) concluímos que os pontos y = ( y1 ,K , y n ) pertencem a uma bola aberta de centro na origem e raio 1 do espaço R n , com o seu produto interno usual. Para cada ponto y = ( y1 ,K , y n ) desta bola, a recta que passa pelo ponto O e pelo ponto (1, y1 ,K , y n ) do plano de equação x0 = 1 intersecta a superfície Γ no ponto de coordenadas - 216 - 1 x0 = 1 − y12 − K − y n2 1 y1 x1 = 1 − y12 − K − y n2 M 1 xn = yn 1 − y12 − K − y n2 Cada plano de dimensão n − 1 do espaço hiperbólico resulta da intersecção da superfície com um plano de dimensão n do espaço A que passa pela origem e que tem pois uma equação do tipo A0 x 0 + A1 x1 + K + An x n = 0 ; substituindo nesta equação x0 , x1 , K , x n pelas expressões anteriores e simplificando, verificamos que, nas coordenadas386 y1 ,K , y n , este plano pode ser definido por A0 + A1 y1 + K + An yn = 0 . Esta última equação representa um hiperplano de R n , donde podemos concluir que os planos (e, em particular, as linhas rectas, que são planos unidimensionais), são representadas no modelo de Beltrami por intersecções de planos de R n com a bola unitária deste último espaço. Verifica-se então que os planos (e, em particular, as rectas) são representados por equações lineares no sistema de coordenadas de Beltrami. Para concluir, vejamos como se pode obter a expressão do elemento de arco em coordenadas de Beltrami. De maneira semelhante à da geometria usual, o comprimento s de uma curva regular L, definida parametricamente, no sistema de coordenadas de Weierstrass por (x0 (t ), x1 (t ),K, xn (t )), t ∈ [α, β] , é dado por β s = ∫ − (x0' ) + (x1' ) + K + (x n' ) dt , expressão essa que costuma ser escrita na forma 2 2 2 α s = ∫ − dx 02 + dx12 + K + dx n2 ou ainda, de maneira mais abreviada, s = ∫ ds , sendo L 2 L 2 0 2 1 2 n ds = − dx + dx + K + dx . Das relações 386 Dito sistema de coordenadas de Beltrami; o sistema anterior é conhecido como sistema de Weierstrass. - 217 - 1 x0 = 2 1 − y1 − K − y n2 1 y1 x1 = 1 − y12 − K − y n2 M 1 xn = yn 2 1 − y1 − K − y n2 tira-se que 1 ( y1dy1 + K + y n dy n ) 3 dx0 = 2 2 1 − y1 − K − y n M yi 1 dx = ( y1 dy1 + K + y n dy n ) + dy i , i 3 2 2 2 2 1 − y − K − y 1 − y1 − K − y n 1 n ( ) ( se i = 1, K , n ) e então, substituindo na expressão ds 2 = − dx02 + dx12 + K + dx n2 os valores encontrados, obtém-se, após simplificações e reordenamento de termos, ds 2 (1 − y = 2 1 )( ) − K − yn2 ⋅ dy12 + K + dyn2 + ( y1dy1 + K + yn dyn ) (1 − y 2 1 − K − yn2 2 ) 2 . Considerando n = 2 , obtemos ds 2 = (1 − y )⋅ dy 2 2 2 1 ( ) + 2 y1 y 2 dy1 dy 2 + 1 − y12 ⋅ dy 22 (1 − y 2 1 −y ) 2 2 2 , expressão já conhecida do estudo da geometria hiperbólica plana, o que ilustra o carácter de generalização do modelo apresentado nesta secção. - 218 - 4.4 O modelo de Poincaré generalizado387 É possível obter um outro modelo do espaço hiperbólico n-dimensional, que vai generalizar o modelo de Poincaré no disco, por um processo análogo à projecção estereográfica. Para tanto, consideremos a superfície Γ, o plano do espaço V definido por x0 = 0 e o ponto N = (− 1, 0, K, 0 ) de V (o “Pólo Norte”) e, dado um ponto A = (x 0 , x1 ,K , x n ) em Γ, tracemos a recta NA e determinemos a sua intersecção B com o plano de equação x0 = 0 . Um cálculo semelhante ao efectuado na secção 3.2 deste r capítulo mostra que B tem as coordenadas (0, y ) = (0, y1 , K , y n ) , onde x1 y1 = 1 + x 0 . M y = xn 1 1+ x 0 Procuramos ilustrar o caso bidimensional desta construção na seguinte figura. Figura 90 387 Também conhecido como modelo de Klein generalizado ou modelo de Poincaré na bola ndimensional; existe também uma generalização ao caso multidimensional do modelo de Poincaré no semi-plano superior (veja-se [OnS] ou [And]), mas não a vamos estudar. - 219 - Se repararmos que 2 2 x1 xn x12 + K + xn2 x02 − 1 x −1 y +K+ y = +K+ = = = 0 < 1, 2 2 (1 + x0 ) (x0 + 1) x0 + 1 1 + x0 1 + x0 2 1 2 n concluímos que o ponto ( y1 ,K , y n ) pertence à bola aberta de centro na origem e raio 1 de R n ; reciprocamente, a recta do espaço V que passa por N = (− 1, 0, K, 0 ) e pelo ponto (0, yr ) = (0, y1 ,K, y n ) (onde y12 + K + yn2 < 1 ), intercepta a superfície Γ no ponto de coordenadas 1 + y12 + K + y n2 x = 0 1 − y12 − K − y n2 2 y1 x = 1 2 1 − y1 − K − y n2 . M 2 yn xn = 2 1 − y1 − K − y n2 Estes resultados mostram que o modelo obtido é, tal como na secção anterior, a bola aberta de centro na origem e raio 1 de R n ; no entanto, as rectas e planos hiperbólicos têm uma representação diferente. Com efeito, se substituirmos em A0 x 0 + A1 x1 + K + An x n = 0 os valores x0 , x1 , K , x n pelas expressões anteriores, obtemos, após simplificações e reordenamento conveniente de termos, uma equação do tipo A0 (1 + y12 + K + y n2 ) + 2 A1 y1 + K + 2 An y n = 0 . Se A0 = 0 , esta equação representa um hiperplano de R n que passa pela origem; se A0 ≠ 0 , obtemos, pelo conhecido método de completar o quadrado, a expressão 2 A A y1 + 1 + K + y n + n A0 A0 que representa, no espaço Rn , A A 1 M = − 1 ,K , − n e raio r = A0 A0 A0 a 2 A 2 + K + An2 − A02 = 1 A02 superfície esférica S1, de centro em A12 + K + An2 − A02 . Consideremos agora a superfície esférica388 S2, que delimita a bola de centro na origem O e raio 1 de R n ; ela é definida pela equação y12 + K + yn2 = 1 . Efectuando os 2 cálculos, conclui-se imediatamente que OM = r 2 + 12 , pelo que OM < r + 1 e portanto as duas superfícies esféricas S1 e S2 não podem ser disjuntas. Se P for um ponto 388 Que vai ser o Absoluto do modelo. - 220 - 2 qualquer pertencente a ambas, a relação OM = r 2 + 12 mostra que o triângulo [OPM] é rectângulo em P (recíproco do Teorema de Pitágoras…); concluímos assim que as duas superfícies esféricas se intersectam segundo um ângulo recto. Podemos resumir estas considerações no seguinte teorema: Teorema 138: Os hiperplanos do espaço hiperbólico de dimensão n são representados no modelo de Poincaré pelas partes das superfícies esféricas (ou dos hiperplanos usuais passando pela origem) que estão contidos na bola aberta de centro na origem e raio 1 de R n ; as referidas superfícies esféricas intersectam ortogonalmente o Absoluto. ■ Para concluir, referimos que se podem obter uma expressão para o quadrado de elemento do elemento de arco neste modelo por processos inteiramente análogos aos da secção anterior; limitamo-nos a indicar as fórmulas. 4( y1dy1 + K + y n dy n ) 2 dx 0 = 1 − y12 − K − y n2 M 2dy i 4 y i ( y1 dy1 + K + y n dy n ) , 2 dxi = 1 − y 2 − K − y 2 + 1 − y12 − K − y n2 1 n ( ) ( ) se i = 1,K , n donde ) ; no caso n = 2 e pondo u = y , esta expressão transforma-se (1 − y − K − y ) v = y 4(du + dv ) , que pode assumir uma forma alternativa se introduzirmos ds = (1 − u − v ) ds 2 = em ( 4 dy12 + K + dy n2 1 2 2 n 2 1 2 2 2 2 2 2 2 números complexos (um procedimento natural, conforme se viu nas secções 3.3 e 3.4 deste capítulo). Com efeito, pondo w = u + iv , vem imediatamente dw = du + idv e dw ⋅ d w = du 2 + dv 2 , d w = du − idv pelo que, em função da coordenada complexa w, a expressão do elemento de arco é ds 2 = 4dw ⋅ d w (1 − w ) 2 2 ou ainda ds = 2 dw 1 − w2 . Se compararmos os resultados desta secção com os da secção 3.4, reconhecemos imediatamente que o modelo de Poincaré no disco para o caso n-dimensional generaliza efectivamente o modelo bidimensional anteriormente estudado. - 221 - Apêndice A Quaterniões Seja R 4 = {(a1 , a 2 , a3 , a 4 ) : a1 , a 2 , a3 , a 4 ∈ R}. Como se sabe, definindo a soma de dois elementos de R 4 e o produto de um número real λ por um elemento de R 4 por • (a1 , a 2 , a3 , a4 ) + (b1 , b2 , b3 , b4 ) = (a1 + b1 , a2 + b2 , a3 + b3 , a4 + b4 ) • λ(a1 , a 2 , a3 , a 4 ) = (λa1 , λa 2 , λa3 , λa 4 ) , dotamos o conjunto R 4 da estrutura de espaço vectorial real (de dimensão 4) com elemento neutro (0, 0, 0, 0). Vamos agora introduzir uma multiplicação em R 4 que fará com que este conjunto se torne num anel (não comutativo) com elemento unidade e no qual todo o elemento distinto de zero tem inverso; munido destas operações R 4 costuma ser designado por conjunto dos quaterniões de Hamilton e é representado por H. Embora seja possível definir o produto de dois elementos de R 4 por meio de uma fórmula semelhante às anteriores, vamos seguir um processo diferente. Consideremos a base canónica de R 4 e ponhamos (1, 0, 0, 0 ) = e (0,1, 0, 0 ) = i ; (0, 0,1, 0 ) = j (0, 0, 0,1) = k então qualquer elemento (a1 , a 2 , a3 , a 4 ) ∈ R 4 pode ser escrito mais simplesmente como a1e + a 2 i + a3 j + a 4 k . Definimos o produto de dois quaisquer elementos da base por meio da seguinte tabela → e i j k e e i j k i i −e −k j j j k −e −i k k −j i −e Por meio de uma verificação exaustiva (há 27 casos a considerar…) , mostra-se que o produto assim definido verifica a lei associativa, isto é, que x( yz ) = ( xy )z para quaisquer x, y e z. Repare-se que o produto não é comutativo: por exemplo, ji = −k - 222 - mas ij = k . Vejamos agora como prolongar a este produto a todo o R 4 . Tem-se o seguinte resultado: Teorema 1: Existe uma única aplicação bilinear f : R 4 × R 4 → R 4 cujo valor em cada par de elementos da base é o dado pela tabela anterior. A aplicação f é tal que f (a, b) = 0 ⇔ a = 0 ∨ b = 0 (lei do anulamento do produto). Demonstração: A existência e unicidade de uma tal aplicação é um resultado conhecido de Álgebra Linear, uma vez que estamos a prescrever as imagens dos pares de vectores da base. Dados então a = (a1 , a 2 , a3 , a 4 ) e b = (b1 , b2 , b3 , b4 ) , resulta da bilinearidade da aplicação f e da tabela anterior que f (a, b) = (a1b1 − a 2 b2 − a3b3 − a 4 b4 )e + (a1b2 + a 2 b1 + a3 b4 − a 4 b3 )i + + (a1b3 + a3 b1 + a 4 b2 − a 2 b4 ) j + (a1b4 + a 4 b1 + a 2 b3 − a3b2 )k Suponhamos agora que f (a, b) = 0 . Se a = 0 , não há nada a provar, portanto vamos supor que a ≠ 0 com vista a provar que b = 0 . Atendendo à fórmula anterior, as componentes de b = (b1 , b2 , b3 , b4 ) serão solução do seguinte sistema homogéneo nas incógnitas x, y, z e w: a1 x − a 2 y − a3 z − a 4 w = 0 a x + a y − a z + a w = 0 2 1 4 3 . + + − a x a y a z a 4 1 2w = 0 3 a 4 x − a3 y + a 2 z + a1 w = 0 Um cálculo imediato mostra que as colunas da matriz deste sistema são ortogonais duas a duas e têm norma euclidiana igual a a12 + a 22 + a32 + a 42 ≠ 0 . Seguese então que o determinante dessa matriz é diferente de zero (representa, a menos de sinal, o volume de um cubo de R 4 ), pelo que tem de ser b = 0 . ■ Definimos então o produto de dois elementos a = a1e + a 2 i + a3 j + a 4 k b = b1e + b2 i + b3 j + b4 k por meio da expressão obtida na prova do teorema anterior: a ⋅ b = (a1b1 − a 2 b2 − a3b3 − a 4 b4 )e + (a1b2 + a 2 b1 + a3 b4 − a 4 b3 )i + + (a1b3 + a3b1 + a 4 b2 − a 2 b4 ) j + (a1b4 + a 4 b1 + a 2 b3 − a3b2 )k e . Antes de provarmos que H, munido das operações anteriormente definidas, tem a estrutura desejada, será útil introduzir as noções de conjugado e norma de um quaternião e ver algumas das suas propriedades. - 223 - Definição 1: O conjugado do quaternião a = a1e + a 2 i + a3 j + a 4 k é o quaternião a = a1e − a 2 i − a3 j − a 4 k . Definição 2: A norma do quaternião a = a1e + a 2 i + a3 j + a 4 k é o número real não a12 + a 22 + a32 + a 42 ; representaremos por a a norma do quaternião a (muitos negativo autores representam a norma de a apenas por a ) Apresentamos algumas fórmulas úteis no seguinte lema: Lema 1: Tem-se: 2 (a) u ⋅ u = u ⋅ u = u ; (b) u ⋅ u u 2 = u u 2 ⋅ u = e, se u ≠ 0 ; (c) u ⋅ v = v ⋅ u (repare-se na inversão da ordem dos factores). Demonstração: Imediata, a partir das definições. ■ Podemos finalmente provar o principal resultado deste Apêndice. Teorema 2: O conjunto H, munido das operações anteriormente definidas, é um anel não comutativo, com elemento unidade e tal que todo o seu elemento não nulo tem inverso (logo, só não é corpo por não ser comutativo; alguns autores dizem tratar-se de um corpo não comutativo). Demonstração: A maior parte da prova já foi feita anteriormente. A distributividade da multiplicação em relação à adição é consequência da bilinearidade da aplicação f; a mesma bilinearidade, juntamente com a definição da multiplicação de e pelos elementos da base dada na tabela, assegura que e é o elemento neutro. Quanto à associatividade da multiplicação, já vimos que ela é válida para os elementos e, i, j e k; o caso geral resulta novamente da bilinearidade de f. Finalmente, a existência de inverso para os elementos não nulos resulta da propriedade (b) do lema 1: o inverso de u = u1e + u 2 i + u 3 j + u 4 k ≠ 0 é u u 2 = u1 e − u 2 i − u 3 j − u 4 k .■ u12 + u 22 + u 32 + u 42 É consequência imediata das definições que a aplicação ϕ : R → H , definida por ϕ(a ) = a ⋅ e , é um isomorfismo entre R e ϕ(R) ; assim, como é vulgar em Álgebra, - 224 - identificamos R com a sua imagem, 1 com e e escrevemos u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k em vez de u1e + u 2 i + u 3 j + u 4 k . Prosseguimos o nosso breve estudo dos quaterniões apresentando algumas definições. Definição 3: Dado um quaternião u = u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k , o número real u1 diz-se a parte real de u e o quaternião u 2 i + u 3 j + u 4 k a parte vectorial. Um quaternião diz-se puro se a sua parte real for nula. Dois subconjuntos importantes de H são o conjunto dos quaterniões puros, H0 , e o conjunto dos quaterniões de norma 1, que representaremos por S 3 ; o porquê desta simbologia é óbvio se virmos que u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k = 1 é equivalente a u12 + u 22 + u 32 + u 42 = 1 e portanto o vector de R 4 (u1 , u 2 , u 3 , u 4 ) tem norma (no sentido da norma usual de R 4 ) igual a 1. Estudemos um pouco melhor a estrutura destes conjuntos. Vê-se imediatamente que H 0 = u ∈ H : u = −u e que H0 é um espaço vectorial real de dimensão 3, gerado por i, j e k. Quanto a S 3 , trata-se de um grupo não comutativo; a única propriedade não trivial é a verificação de que S 3 é fechado para o produto, o que é consequência imediata do seguinte lema: { } Lema 2: Se u, v ∈ H então u ⋅ v = u × v . Demonstração: 2 2 u ⋅ v = (u ⋅ v ) ⋅ u ⋅ v = (u ⋅ v ) ⋅ v ⋅ u = u ⋅ v ⋅ v ⋅ u = u v u = u ⋅ u v ( ) ( ) ( ) 2 2 = u × v 2 (repare- se que um número real comuta com qualquer quaternião). ■ Concluímos este Apêndice provando uma propriedade surpreendente que referimos no terceiro capítulo. Teorema 3: Qualquer quaternião puro unitário é uma raiz quadrada de − 1 . Demonstração: Determinemos explicitamente as raízes quadradas de − 1 em H. Seja u = u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k uma tal raiz; então u 2 = −1 e, se repararmos que - 225 - u 2 = (u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k ) ⋅ (u1 + u 2 i + u 3 j + u 4 k ) = = (u12 − u 22 − u 32 − u 24 ) + 2u1u 2 i + 2u1u 3 j + 2u1u 4 k obtemos o sistema u12 − u 22 − u 32 − u 42 = −1 2u1u 2 = 0 2u1u 3 = 0 2u1u 4 = 0 do qual resulta u 22 + u32 + u 42 = 1 u1 = 0 sistema este que nos fornece a solução do problema do cálculo das raízes quadradas de − 1 , em função de dois parâmetros reais. O resultado pretendido é consequência imediata desta última fórmula. ■ Corolário: Seja q ∈ S 3 ; tem-se então que q −1 = q e q −1 = −q . Demonstração: Para a primeira fórmula, basta aplicar o Lema 1, alínea (b): q q q −1 = 2 = = q . 1 q Quanto à segunda, q ⋅ (− q ) = −q 2 = −(−1) = 1 e (− q ) ⋅ q = −q 2 = −(−1) = 1 , donde o resultado. ■ Concluímos então que um quaternião pode ter uma infinidade de raízes quadradas, um resultado que é tanto mais surpreendente se recordarmos que num corpo nenhum elemento pode ter mais de duas raízes quadradas e que a H apenas falta a comutatividade da multiplicação para ser um corpo. Este resultado bizarro pode ser encarado como um “aviso” para a tentação comum de considerar H como uma extensão trivial de C, com propriedades dedutíveis imediatamente a partir das propriedades dos números complexos: se é verdade que muitas das definições e resultados são análogos (repare-se, por exemplo na semelhança evidente entre o grupo S 1 dos complexos de módulo 1 e S 3 ), também é verdade que há diferenças fundamentais, como a indicada no teorema anterior. - 226 - Apêndice B Funções hiperbólicas +∞ x 2 n +1 x 2n e . ∑ ∑ n = 0 (2 n + 1)! n = 0 (2n )! Se aplicarmos a conhecida fórmula para o cálculo do raio de convergência, a R = lim n verificamos que, para qualquer uma delas se tem R = +∞ . Assim, elas n → +∞ a n +1 definem funções de domínio R, que, por motivos que veremos em breve, são conhecidas como seno hiperbólico (representado por sh, sinh ou senh) e co-seno hiperbólico (representado por ch ou cosh) , respectivamente. Pomos assim, por definição: Consideremos as séries de potências +∞ x 2 n +1 , ∀x ∈ R n = 0 (2n + 1)! +∞ sh x = ∑ x 2n ch x = ∑ , ∀x ∈ R . n = 0 (2 n )! +∞ xn , obtemos imediatamente as seguintes fórmulas n = 0 n! alternativas para as funções hiperbólicas (que, aliás, muitos autores usam como definição destas funções): +∞ Se recordarmos que e x = ∑ sh x = e x − e−x 2 ch x = ex + e−x . 2 A partir destas duas funções (ditas hiperbólicas principais), definem-se quatro outras funções (hiperbólicas secundárias), a saber, a tangente, co-tangente, secante e cosecante hiperbólicas. A simbologia varia com os autores, sendo as mais vulgares tgh ou tanh para a tangente hiperbólica, coth para a co-tangente, sech para a secante e cosech para a co-secante (estas três últimas funções são, aliás, pouco utilizadas). As definições das funções hiperbólicas secundárias são as seguintes: tgh x = sh x ch x 1 1 ; coth x = ; sech x = e cosech x = ch x sh x ch x sh x - 227 - Apresentamos os gráficos das funções seno, co-seno e tangente hiperbólica na seguinte figura. Figura 1 A razão do nome funções hiperbólicas vem da seguinte identidade, análoga à fórmula fundamental da trigonometria ch 2 x − sh 2 x = 1 , x = ch t é uma representação paramétrica dum ramo da da qual se pode concluir y = sh t hipérbole equilátera x 2 − y 2 = 1 ; a fórmula referida é, aliás, de demonstração imediata: e x + e−x ch 2 x − sh 2 x = 2 2 e x − e −x − 2 2 = 1 . Tal como as funções circulares, as funções hiperbólicas satisfazem uma série de identidades. Apresentamos algumas na lista seguinte (que não tem qualquer pretensão de ser exaustiva…). ch 2 x − sh 2 x = 1 1 − tgh 2 x = sech 2 x sh ( x ± y ) = sh x ch y ± ch x sh y ch ( x ± y ) = ch x ch y ± sh x sh y - 228 - tgh ( x ± y ) = tgh x ± tgh y 1 ± tgh x tgh y sh 2 x ch x − 1 = 2 2 ch 2 x ch x + 1 = 2 2 tgh 2 tgh x ch x − 1 = 2 ch x + 1 sh x ch x − 1 x = = 2 ch x + 1 sh x x x sh x = 2sh ch 2 2 sh x ± sh y = 2sh x± y xm y ch 2 2 ch x + ch y = 2ch x+ y x− y ch 2 2 ch x − ch y = 2sh x+ y x− y sh 2 2 (sh x )' = ch x (ch x )' = sh x (tgh x )' = 1 ch 2 x Estas fórmulas podem ser demonstradas directamente a partir das expressões alternativas para o seno e o co-seno hiperbólico ou recorrendo a artifícios semelhantes aos usados nas provas das expressões análogas para as funções circulares, pelo que não as vamos apresentar aqui. Vejamos brevemente como se podem inverter as funções hiperbólicas, começando com o seno. É fácil de ver que f ( x) = sh x é uma bijecção de R em R; pondo y = sh x vem y= e x − e−x , donde e x = y + y 2 + 1 (repare-se que a outra hipótese de sinal dada 2 - 229 - pela fórmula resolvente, e x = y − y 2 + 1 , é impossível, já que é sempre e x > 0 e ) ( y − y 2 + 1 < 0 ) e, finalmente, x = ln y + y 2 + 1 . Podemos assim definir a função arco seno hiperbólico (representada por arcsh, ( ) arsh, argsh, entre outras variantes), pondo arcsh x = ln x + 1 + x 2 ; o domínio e o contradomínio desta função são ambos iguais a R. Um raciocínio semelhante leva-nos às funções arco co-seno hiperbólico e arco tangente hiperbólica: a primeira tem domínio [1, + ∞[ e pode ser definida por ( ) arch x = ln x + x 2 − 1 e a segunda tem domínio ]− 1,1[ e, em termos da função 1 1+ x logaritmo natural, é dada por arctgh x = ln . As inversas das restantes funções 2 1− x hiperbólicas têm pouca utilidade, pelo que não as vamos referir. Na próxima figura apresentamos os gráficos das inversas das principais funções hiperbólicas. Figura 2 +∞ x 2 n +1 x 2n e que usámos para definir ∑ ∑ n = 0 (2n + 1)! n = 0 (2n )! as funções seno e co-seno hiperbólicos. Nada nos impede de atribuir a x valores complexos; obtemos assim funções com domínio C, uma vez que a fórmula do raio de convergência tanto é válida no domínio real como no domínio complexo. Usando então z como variável independente, temos as funções hiperbólicas de argumento complexo, Voltemos às séries de potências +∞ z 2 n +1 , n = 0 (2 n + 1)! +∞ sh z = ∑ z 2n , n = 0 (2 n )! +∞ ch z = ∑ - 230 - tgh z = sh z ch z Para concluir, referimos que as propriedades e identidades anteriormente indicadas para as funções de argumento real são válidas também para os seus prolongamentos complexos (com a excepção evidente das representações gráficas; também é necessário algum cuidado com as funções inversas, devendo-se fixar uma determinação do logaritmo para evitar funções multívocas). A consideração de argumentos complexos permite-nos relacionar de forma simples as funções circulares com as funções hiperbólicas. Por exemplo, tem-se que ch z = cos(iz ) , para qualquer valor de z. Com efeito, n n 2n n n n +∞ ( ( − 1) (iz ) − 1) (i 2 ) z 2 n + ∞ (− 1) (− 1) z 2 n + ∞ z 2 n cos(iz ) = ∑ =∑ =∑ =∑ = ch z . (2n )! (2n )! (2n )! n=0 n =0 n=0 n = 0 (2 n )! +∞ Analogamente, pode-se provar que i ⋅ sh z = sen (iz ) e que i ⋅ tgh z = tg (iz ) . - 231 - Referências [Adl] Adler, C. F. (1958) – Modern Geometry, McGraw-Hill Book Company, New York. [AFR1] Agudo, F. R. (1969) – Lições de Análise Infinitesimal vol.1, Livraria Escolar Editora, Lisboa. [AFR2] Agudo, F. R. (1978) – Introdução à Álgebra Linear e Geometria Analítical vol.1, Livraria Escolar Editora, Lisboa. [Alf] Ahlfors, L. V. (1979) – Complex Analysis, McGraw Hill International Book Company. [Alt] Simon, A. (2007) – Olinde Rodrigues, mathematician and social reformer, Gazeta de Matemática, 152, 40-48. [APV] Araújo, P. V. (1999) – Curso de Geometria (2ª ed.), Gradiva, Lisboa. [And] Anderson, J. W. (2007) – Hyperbolic Geometry (2nd edition), SpringerVerlag, London. [Art] Artzy, R. (1965) – Linear Geometry, Addison-Wesley, Reading, Massachusetts. [AuV] Auffinger, A. C. e Valentim, F.B. 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