As origens das Cresol1 Este texto foi elaborado pela ASSESOAR a pedido da Cresol-Baser, como parte de uma publicação referente à comemoração dos seus 10 anos. Para escrever, foram depoimentos pesquisados gravados em arquivos vídeo e da ASSESOAR, foram convidadas entre as eles pessoas representantes das entidades que compuseram o conselho do Fundo de Crédito Rotativo - FCR, fazendo-se presentes Aores da Silva, Ari Silvestro, Daniel Meurer e Gelsi Dutra. Não puderam comparecer Christophe de Lannoy e Assis M. do Couto. O representante da CNBB, Olívio Bedin faleceu. Dez/2005 1- O pequeno agricultor e a relação com o crédito – contexto dos anos 80 Os processos de formação de base desenvolvidos até então2 desembocam, nos anos 80, num conjunto de lutas sociais do campo, no Sudoeste do Paraná, especialmente em relação a problemas de exploração nas atividades produtivas dos pequenos agricultores (grãos, suínos) e as lutas contra as políticas oficiais de previdência e atendimento à saúde do trabalhador. Tratava-se, na verdade, de ações de enfrentamento da dinâmica produtiva no campo referenciada nos parâmetros da Revolução Verde3, baseada nos insumos industriais e na monocultura para exportação. Como exemplo, vale lembrar que o crédito oficial existente, originalmente subsidiado, era vinculado aos produtos das indústrias (sementes, venenos, máquinas, adubos) e beneficiava produtos e produtores de forma desigual em favor das grandes propriedades onde se privilegiava a monocultura para o mercado exportador. Os pequenos agricultores só recebiam 20% do total do crédito. A crise do pacote da 'Revolução Verde', quando combina-se com o esgotamento das fronteiras agrícolas (Mato Grosso, Amazônia e Paraguai) escancaram o problema da exploração capitalista no campo. As fronteiras agrícolas novas eram um mecanismo de alívio da pressão social gerada pela violenta exclusão de pequenos agricultores de suas terras pelo modelo agrário vigente. A outra constatação foi de que o crédito, já na década de 80, excluía a 1 2 3 grande Cooperativas de Crédito com Interação Solidária. A ASSESOAR, a primeira organização do pequeno agricultor do sudoeste do Paraná desenvolveu, desde 1966, uma seqüência de ações que tinham como características a formação e organização de base e a aposta no protagonismo possível e necessário dos trabalhadores. Em 1965, com a JAC inicia-se o trabalho da catequese familiar e os grupos de reflexão em 68. Em 79, a formação de ministros de eucaristia, e a tentativa das Escolas Famílias Agrícolas - EFAs em 1972. Em 73, as EECAS – Escolas de Educação Comunitária. Em 78/79 contribui na formação de dirigentes que assumiram o movimento de oposições aos sindicatos dos trabalhadores rurais, alterando sua posição política para o campo da organização e das lutas sociais. Em 83 contribui para a criação do Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná - MASTES, que juntando-se a outras lutas localizadas originou o Movimento dos Sem Terra – MST. Ainda em 82 a ASSESOAR inicia, juntamente com os Sindicatos de Trabalhadores Rurais que já haviam assumido a perspectiva das lutas, a organização do associativismo, voltando-se tanto para os pequenos agricultores tradicionais quanto para os que chegavam nos assentamentos, a exemplo do Assentamento Vitória da União, em Mangueirinha, a primeira ocupação planejada pelas organizações de pequenos agricultores e vitoriosa da região. A expressão Revolução Verde, além de significar uma modalidade estruturada de avanço do Capitalismo no campo, continha também o sentido político de enfrentamento às mudanças implementadas pela Revolução Russa, uma revolução vermelha. 2 maioria dos pequenos agricultores que não haviam migrado para as fronteiras agrícolas ou para as cidades. 2- A tradição de luta dos movimentos populares e a concepção do crédito A tradição de estudo, reflexão e luta dos movimentos sociais populares do campo no Sudoeste do Paraná permitiu fazer a leitura de que, assim como os outros problemas, enfrentar o problema da falta de crédito só era possível por uma prática política articulada das entidades dos pequenos agricultores. Tratava-se de um problema social complexo, intimamente articulado à lógica de desenvolvimento em curso. Foi assim que os Sindicatos de Trabalhadores Rurais e a ASSESOAR passaram a debater de forma regular e afirmaram a idéia de que o crédito constituía-se num instrumento de apoio à viabilização das políticas formuladas e dinamizadas pelos pequenos agricultores, coordenadas pelas suas organizações. Para tanto fazia-se necessário a constituição de um espaço interinstitucional capaz de formular propostas e construir práticas nas quais as famílias que viviam e produziam em pequenas áreas de terra, tivessem relevância na vida social regional e nacional. Entre as idéias fundamento, figuravam a cooperação como forma de resistência às lógicas de exclusão e como método para novas relações sociais; a reconcepção das tecnologia de produção, no rumo da autonomia e da sustentabilidade, hoje compreendida como agroecologia; o reforço a modalidades de crédito coletivo/associativo; a priorização ao crédito de investimento, com capacidade estruturante, ao invés do custeio que beneficia somente os vendedores de insumos e as indústrias que os fabricam; o processo de formação e acompanhamento/assessoria para produzir diagnósticos e elaboração de projetos com participação dos interessados, superando os projetos de gabinete; o controle social efetivo de base e o fortalecimento dos espaços de participação das entidades comprometidas com esta parcela da população trabalhadora. Sinalizava-se para lutas e proposições no rumo da democratização do crédito e o reforço à construção de propostas alternativas de crédito dos pequenos agricultores, articulada a uma diferenciada concepção de desenvolvimento. 3- Fundo de Crédito Rotativo: o surgimento e os objetivos Ao apoiar a luta pela terra no início da década de 80, a ASSESOAR reposiciona-se politicamente em relação, especialmente a profissionais liberais e lideranças políticas, que até então a apoiavam nos trabalhos. Inicia-se uma trajetória de reflexão e ações que desembocaram no MASTES1 e, posteriormente, na criação do PT e da CUT no sudoeste do Paraná. Este novo quadro político leva, em 1989, ao rompimento da ASSESOAR com o DISOP2 – Bélgica. Mas a esta altura a relação com MISEREOR3 – Alemanha, estava afirmada desde 1986. A MISEREOR visita a ASSESOAR e ao conhecer os trabalhos do associativismo, naquela época mais 1 2 3 Movimento dos Agricultores Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná. Desenvolvimento Integral do Sudoeste e Oeste do Paraná - Bélgica Ação de encontro à fome e à doença no mundo - Alemanha 3 desenvolvidos nos municípios da fronteira com a Argentina e nos assentamentos, passa a apoiar, compreendendo que não existiam recursos de crédito adequados às necessidades do pequeno produtor. Ao conhecer a dificuldade do crédito e reconhecendo o investimento na organização de base que já existia, a MISEREOR propôs-se a contribuir para a formulação de possibilidades alternativas de crédito. Amadurece a idéia de constituir um Fundo de Crédito Rotativo, cuja proposta foi encaminhada pela ASSESOAR à MISEREOR em 1987. Para coordenar este processo, constituiu-se um conselho de entidades, com a participação da ASSESOAR, da CPT, do MST, da CUT- Regional Sudoeste do Paraná, da CNBB e das Associações de Pequenos Produtores do Sudoeste do Paraná. Em 1989, inicia o funcionamento do FCR com o dinheiro já disponível para o financiamento, “cabendo ao conselho de entidades a) elaboração das diretrizes para o crédito, b) supervisão, c) avaliação permanente e d) aconselhamento”. (conforme regimento Interno). Ainda conforme o regimento interno, capítulo 2, “o Fundo de Crédito Rotativo visa reforçar as possibilidades econômicas dos pequenos agricultores e dos sem terra, assentados por meio da reforma agrária, através de: a- Financiamentos a agricultores organizados em grupos, associações e cooperativas; b- Assistência técnica e administrativa; c- Promoção de uma agricultura alternativa (agroecológica), no sentido de preservar os recursos naturais, reduzir custos de produção e valorizar os recursos humanos disponíveis”. O Fundo de Crédito Rotativo define o crédito como voltado para os mais empobrecidos e para o fortalecimento da ação comunitária/associativa como estratégia. Reafirma a valorização e a troca de conhecimentos, bem como a necessidade de organizar-se para garantir acompanhamento e formação permanentes, na perspectiva de constituir uma proposta a ser assumida como política oficial. Já que o que existia em termos de crédito era destinado, no contexto da revolução verde, aos grandes produtores e ao consumo de insumos das indústrias, implicando no desgaste/contaminação do ambiente natural e na exclusão de quem não se enquadrasse ou opusesse. O crédito era concebido como um dos instrumentos de desenvolvimento, articulado a um conjunto de outras ações. A ASSESOAR mantinha o banco de sementes como apoio às iniciativas sustentáveis, o Fundo financiava formas alternativas de recuperação de solos, de integração entre a produção animal e a produção vegetal, equipamentos de pequeno porte que valorizassem a diversidade da produção de alimentos bem como iniciativas cooperadas de transformação dos mesmos. Mantinha-se processos de formação da população do campo, tais como a formação de monitores do associativismo, as Escolas Comunitárias de Agricultores – ECAs, formação em Planejamento e Gestão para associações; formação para dirigentes do associativismo. À coordenação executiva do Fundo de Crédito Rotativo, com a assessoria da ASSESOAR cabia: “a) capacitar a executiva regional e os diretores das Centrais de Associações nas áreas organizativa, administrativa, política, metodologia de trabalho, negociações com órgãos 4 governamentais e outras; b) apoiar a coordenação na elaboração de projetos das centrais ; c) acompanhar as direções das centrais na análise e formulação de propostas; d) apoiar na elaboração e instrumentos que facilitem a circulação de informações entre os membros dos conselhos representantes das associações; e) instrumentalizar e acompanhar os dirigentes animadores liberados nas atividades ligadas ao Fundo de Crédito Rotativo; f) subsidiar os diretores e animadores das organizações de pequenos agricultores com informação sobre o crédito e assistência técnica governamental e privada; g) sistematizar e divulgar experiências, quando proposto pelo conselho de entidades e h)coordenar a realização de seminários e debates de interesse das entidades relacionados ao crédito.” 1 A gestão inter-institucional do fundo garantia o referencial político e metodológico de funcionamento do crédito, tendo em vista uma forma diferente de desenvolvimento do campo, sustentado no referencial político dos movimentos de trabalhadores e das entidades com eles comprometidas, a exemplo da Comissão Pastoral da Terra – CPT, que nasce na luta dos excluídos pela barragem de Itaipu e se soma na gestão do fundo. Finalizando, o Fundo de Crédito Rotativo nasce por causa dos Pequenos Agricultores organizados e do Movimento dos Sem Terra, com o intuito de formular uma proposta de crédito que atendesse a um amplo setor da população – os pequenos agricultores assentados da reforma agrária e os tradicionais, que enfrentavam a dificuldade gerada pela política de desenvolvimento do campo concentradora de riquezas e de terras, voltada para a monocultura de exportação e degradante dos recursos naturais e que alteravam, de forma subordinada, as relações social no campo. 4- Do Fundo de Crédito Rotativo às Cooperativas de Crédito com Interação Solidária – Cresol Os pequenos agricultores estavam efetivamente fora do sistema oficial de crédito, por isso, na dinâmica inter-institucional possibilitada pelo Fundo de Crédito Rotativo, nasce o debate de que havia a necessidade de uma organização própria, baseada nos avanços/referências já construídos. Entre os avanços relaciona-se a construção coletiva de projetos de investimento, com base no diagnóstico participativo, superando a concepção de projetos de gabinete; o acompanhamento à execução do planejado, envolvendo as famílias, não apenas os homens; operações financeiras com a base na equivalência produto, garantindo maior visibilidade e segurança ao agricultor; afirmação das tecnologias sustentáveis/ecológicas; crédito voltado principalmente para investimento, pois avaliava-se que o crédito de custeio não viabilizava o pequeno agricultor e fortalecia os interesses da agricultura convencional/empresarial. Por outro lado, evidenciavam-se os limites do FCR quanto à expansão da proposta, da legalidade das operações de crédito, bem como do tratamento/formalização da devolução dos 1 Extraído do documento 'Subsídio para a elaboração de projetos ao Fundo de Crédito Rotativo e apoio estrutural ao associativismo' formulado pelo conselho de entidades do FCR, no início de 1993. 5 empréstimos. Era necessário uma organização autônoma, dos agricultores, capaz de captar recursos locais e de operar o crédito em caráter solidário, investindo em iniciativas inovadoras na perspectiva da autonomia e da sustentabilidade. Para dar conta de aprofundar os debates e formulação desta nova proposta, as entidades do conselho do Fundo de Crédito Rotativo constituíram um grupo de trabalho em 1993. Este grupo de trabalho, referenciado na experiência e na estrutura organizativa já criada no sudoeste do Paraná, passa a dialogar e incorpora nas discussões o conhecimento acumulado em outras experiências de crédito de fora da região. Entre as idéias em debate uma era a de não vincular-se ao sistema oficial das cooperativas, pois uma experiência amarga neste sentido os pequenos agricultores já haviam vivenciado com as cooperativas de produção, e já visível também no sistema CREDI, em Santa Catarina que desviaram-se dos objetivos para os quais foram criadas. Outra diretriz era a garantia de mecanismos de discussão aberta e permanente entre as entidades dos pequenos agricultores, em função da definição de políticas, pois a instituição de crédito a ser criada cumpriria um serviço em função das diretrizes a partir das quais seria concebida. Na criação das primeiras Cresol, houve um envolvimento forte da ASSESOAR e do Sindicalismo de Trabalhadores Rurais próximos à CUT. Diante da definição de que as cooperativas seriam municipais, havia a necessidade da constituição de centrais que agilizassem informações para que coletivos permanentes e as cooperativas singulares pudessem tomar decisões com propriedade a respeito das operações de crédito. Os depoimentos a seguir, extraídos do primeiro vídeo das Cresol, dão uma idéia dos rumos sinalizados na época para a construção das alternativas de crédito para os pequenos agricultores. “... a constatação de que os bancos elitizavam a captação e a distribuição dos recursos, enquanto as cooperativas representam a necessidade dos grupos de cooperação agrícola, buscando e organizando os recursos locais, que estavam nas mão de empresas e bancos, bem como recursos públicos. A cooperativa garante o controle pelos agricultores de onde os recursos locais arrecadados serão aplicados. Por outro lado, as cooperativas deveriam contribuir para que os recursos do tesouro nacional, escassos, fossem disponibilizados nas épocas apropriadas. Pode criar linhas de crédito diferenciadas e apropriadas, cobrando apenas as taxas de operação e manutenção, sem os lucros”. Não pode, portanto, ser vista como um banco, que dificultará os rumos. As cooperativas de crédito foram concebidas como instrumentos transparentes e democráticos e dirigidos pelos agricultores. Ao dirigente/gerente é mais importante conhecer profundamente a atividade que vai financiar do que a formação tradicional dada ao sistema financeiro. Para isso as cooperativas terão que formar as pessoas. 6 A cooperativa é um espaço acessível ao agricultor que investe na formação/profissionalização. Nas dificuldades própria da atividade, pela cooperativa de crédito é possível repensar os compromissos de forma compatível que não descapitalize o agricultor. A cooperativa não pode excluir o agricultor que pensa diferente. É preciso envolver a partir de suas necessidades, com uma metodologia que conduza ao debate da relação de sua atividade e de sua vida com propostas maiores de sociedade, na sua dimensão política. Os sindicatos e movimentos sociais precisam questionar a forma de fundar a cooperativa buscando o apoio de todas as forças do município, mesmo daquelas que tem uma história contrária à pequena produção. Por exemplo, a cooperativa de produção não pode subordinar as cooperativas de crédito, é necessário manter-se autônoma, também em relação às prefeituras. A fundação é importante, mas mais importante é o rumo que ela toma e como trabalha. O crédito que queremos precisa estar na direção da sustentabilidade e da eqüidade social. É fundamental a participação ativa dos grupos de base organizados, garantindo assim critérios internos para que o crédito captado volte para os pequenos agricultores. Valorizando inclusive a possibilidade de continuar com o credito em equivalência produto”.