1 A Palavra de Deus: o que foi escrito e o que nunca foi registrado... Prudente Nery Há um conjunto de determinados escritos de origens judaica e cristã que o Cristianismo, com algumas variações confessionais, considera a sua Sagrada Escritura. Seu nome mais usual é Bíblia (biblos), isto é, o Livro, por excelência. São textos escritos por várias mãos, originários de diversos tempos e lugares, cujo processo complexo de redação, seleção e ajuntamento (canon) recobre cerca de 1.200 anos. Aí encontramos de tudo: histórias, poemas, sagas, mitos, orações, lendas, leis sociais, prescrições comportamentais, normas cultuais, hinos, cânticos, visões, profecias, coisas alegres e coisas tristes, enfim: tudo aquilo que compõe a vicissitude dos caminhos humanos à procura de si e de Deus. São palavras humanas, narrativas de sua vida, de seus erros e acertos, de suas traições e fidelidades, de suas grandezas e misérias. A fé crê que exatamente aí, no transfundo da história humana, Deus nos fala. Por isso, ela considera, com reverência, estes escritos humanos como a Palavra de Deus. Nas buscas e nos caminhos históricos dos homens, Deus mesmo se deixa ver, revela-lhes sua vontade, desvela-lhes seu amor humanitário, sua compaixão, sua bondade e sua luz. Rigorosamente, as Sagradas Escrituras são palavras humanas que comportam a Palavra de Deus. Elas são uma (judaica / cristã) resposta humana aos apelos e propostas de Deus, que sempre se revelou aos homens, em todos os tempos e não apenas entre os anos 1000 a.C. e 200 d.C., em todos os lugares e não apenas na Palestina, a todos os homens e não apenas àqueles que dispunham da linguagem ou da escrita para descrever o seu amor. A Palavra de Deus é, assim, incomensuravelmente mais ampla que as Sagradas Escrituras. Deus é verdadeiramente o Deus do todo o mundo e de todos homens. Ele ama a todos que ele criou à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26) e sua vontade é que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade, pois um é Deus (1Tim 2, 4). Se esta é sua vontade, ele há de ter tido e de ter outros meios e caminhos para desvelar aos homens de tantas outras épocas e culturas a beleza de sua verdade. Também essas manifestações de seu amor e de sua vontade são Palavra de Deus. Tem razão, pois, a Carta dos Hebreus (1, 1) ao colocar bem no seu intróito estas palavras: De muitos e variados modos falou Deus aos homens... O cosmos, as criaturas, a história, a consciência moral, a mística, tudo isso é também revelação do único mistério de Deus. Foi também Palavra de Deus o que foi revelado, em sonho, a José, o pai de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 13, 55): Não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é do Espírito Santo (Mt 1, 20). Foi a Palavra de Deus, quando os apóstolos, no primeiro Concílio da Cristianismo, corajosamente, disseram: Não é necessário ser judeu para ser cristão (At 15, 6-35). É também Palavra de Deus, o que, por exemplo, ouviu Francisco de Assis, diante do Crucifixo de São Damião (1205): Francisco, reconstrói a minha Igreja. Foi também Palavra de Deus o que escreveu e disse o herege Martinho Lutero (1483 - 1546): Queimar os hereges é contra a vontade do Espírito Santo (DS 1483). Foi, sim, Palavra de Deus, quando Antonius Praetorius (1560 - 1613), contra toda a Cristandade, ergueu a sua voz para proclamar: É crime todo esse processo: acusar de bruxaria inocentes mulheres, caçá-las e executá-las, sob torturas. Foi também Palavra de Deus o que Agnes Gonxha Bojaxhiu (Madre Teresa de Calcutá) ouviu, quando, em 1946, num encontro místico, Jesus Cristo lhe fez o seguinte apelo: Deixa tudo o que estás fazendo e vem seguir-me aqui, entre os mais pobres dos pobres. E ela, deixando a Congregação (Ordem de Loreto), à qual já pertencia, como religiosa, há 19 anos, segue seu novo caminho. Também os sonhos, os diálogos fraternos, as inspirações pessoais, o curso da história pessoal e coletiva podem ser lugares, nos quais Deus pronuncia sua Palavra. E o que for verdadeiro, por quem quer que tenha sido pronunciado, é sempre inspirado e dito pelo Sagrado Espírito (Ambrósio / Tomás de Aquino). 2 Há, sim, uma comunicação (revelação / palavra) de Deus que se estende a toda a história e todas as quadras do mundo e que transgride a toda tentativa de retê-la num único livro, junto a um único povo, dentro de uma única cultura. O que João, o Evangelista, diz, no final de seu escrito (Jo 21, 25) sobre Jesus, vale, com muito mais razões, para toda a Sagrada Escritura. Ali podemos ler: Há, porém, muitas outras coisas... Se todas elas fossem relatadas, uma por uma, creio que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos. Por ser assim: a Palavra de Deus nos interstícios das palavras humanas, sempre inadequadas e insuficientes para expressar a grandeza de Deus, a Sagrada Escritura pode e, de fato, contém imprecisões científicas (Jos 10, 12-13), erros históricos (Mc 2, 26), incorreções morais (Jos 6, 21. 24. 26 / Deut 20, 16-18 / Jer 18, 21-23), prescrições anacrônicas (Deut 19, 21 / Lev 11, 7 / Lev 12, 3). Tais e outras impropriedades não se devem a Deus, mas ao jeito dificultoso e lento de como nós, os homens, vamos, no curso de nossa história, compreendendo as propostas de Deus e dando a elas, nos condicionamentos de nossa consciência possível, a nossa resposta. As respostas de nossos antepassados são deles. São o jeito de como eles tentaram ser fiéis aos apelos de Deus. A nós importa, nas entrelinhas de tal Escrito Sagrado, apreender os convites, os apelos, as inspirações, sim, a Palavra de Deus e dar a ela a nossa própria resposta, com responsabilidade. Conta-se que, certa vez, um homem de Deus chegou a uma vila. E falava de Deus e do mundo com tal beleza e autoridade, que todos creram nele. E ele fez daquela vila a sua morada. Um dia, porém, o rei, irado com seus ensinamentos, enviou àquela vila as suas tropas, com o mandato de arrastá-lo preso até o seu palácio. Temeroso por perder aquele homem de Deus, o povo o escondeu. O rei, porém, mandou uma tropa ainda maior e, com ela, a seguinte advertência: Se eles não entregassem aquele homem, viria uma soldadesca ainda maior para eliminar a todos e deitar abaixo todo o vilarejo. Os moradores, então, se apavoraram e perguntaram aos sábios e anciãos, que consultaram a Sagrada Escritura e, cheios de medo, entregaram ao rei aquele homem de Deus. Ele foi, então, condenado e executado por subversão da ordem pública. Anos depois, passou por aquela vila um outro homem desconhecido e perguntou aos seus habitantes pelo homem de Deus. O rei o executou, disseram-lhe. Havia uma ameaça contra toda a vila. E nós consultamos os sábios e anciãos e eles procuraram uma resposta nas Sagradas Escrituras e lá estava escrito: É melhor que um só morra do que todo o povo (Jo 11, 50). E nós o entregamos. Foi quando o desconhecido, conturbado, disse: Vós o assassinastes, vós e o rei. Vós não tínheis que consultar as Sagradas Escrituras. Vós deveríeis ter observado o olhar daquele homem. Era ali que estava escrito que ele era um homem de Deus e era nele e não na Sagrada Escritura que Deus, naquele instante, vos falava. Verdadeiramente, este é o lugar em que Deus aprecia falar aos homens, na sua frequentemente misteriosa e silente linguagem, de coração a coração: na vida e na busca sincera de o encontrar. Disso as Sagradas Escrituras são testemunho fidedigno e precioso, uma verbalização suficiente, sim, mas apenas uma luz reflexa para que percebamos os acenos de Deus e o sigamos, nos caminhos que são os nossos, em nossos dias, em nossa própria história. Para refletir... 1. A Escritura contém a Palavra de Deus; 2. Os conceitos de realidade, verdade, fatualidade, historicidade nem sempre coincidem; 3. A Escritura é Palavra de Deus a partir da experiência feita por um povo. Nasce do diálogo entre a Palavra de Deus e a vida do povo.