O INQUÉRITO Paulo Roberto Pinheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref.) Antigamente, sempre que algum navio da Marinha permanecia em um porto fora de sua sede, havia confusão e conflito na zona do meretrício. Isto porque a zona era o local de lazer preferido do pessoal subalterno, para não dizer o único local de lazer compatível com a má fama que, infelizmente, nossos bravos homens do mar possuíam junto à sociedade. Hoje as coisas são diferentes. Sargentos, Cabos e Marinheiros são respeitáveis chefes de família, com um nome a zelar, com filhas estudando balé, filhos estudando inglês e computação e esposas malhando em academias. É claro que havia, também, subalternos respeitáveis, mas, sejamos honestos, quando os navios em que serviam iam a algum porto fora de sua sede, a maioria não dispensava, ao menos, uma noitada nos bordéis e cabarés, principalmente da zona portuária. Para a maioria não sobrava outra coisa. Subalternos de Marinha, nos portos visitados, não iam a cinema, teatro, galeria de arte, museu, recital de música ou qualquer outra diversão “limpa”, nem freqüentavam restaurantes familiares, até porque não eram bem recebidos nesses locais e se sentiam como “estranhos no ninho”. Pelo Regulamento, eram obrigados a ir para terra uniformizados e a farda era o ingrediente proibido, era o denunciador de que ali dentro daquele uniforme estava um marinheiro, um pária, um arruaceiro. As diversões “limpas” eram reservadas para os Oficiais, mas, voltando novamente a ser honesto, temos que reconhecer que muitos desses gostavam de “fazer laboratório” nos bordéis e cabarés. No mínimo ficavam conhecendo a realidade que atingia o pessoal subalterno e aproveitavam, também, para se divertir nesses locais, de fato curiosos e divertidos. No tempo do Bertioga, no porto do Recife, para onde fomos em meados de 1960 para um Período Normal de Reparos (PNR) na antiga Base Naval, também tivemos confusões na zona do meretrício. Na maior parte das vezes esses distúrbios se resolviam naturalmente no próprio local, mas lembro-me que, certa vez, houve conseqüências que obrigaram o Comandante do navio a abrir um Inquérito Policial Militar, o detestável IPM. Esse tipo de investigação vinha sempre em ocasiões impróprias, estando os Oficiais com muitas coisas a tratar e a resolver e um deles acabava sendo nomeado para fazer o IPM, atrapalhando a rotina de seu dia-a-dia. O mais terrível é que, quase sempre, o IPM acabava nas mãos do Tenente mais moderno e esse infeliz, além dos tropeços normais com o serviço de bordo, freqüentes pela própria inexperiência, virava, da noite para o dia, delegado de polícia, tendo que desvendar o caso e indicar os culpados. E, para fazer o IPM, o Oficial precisava dominar bem o Código do Processo Penal Militar e o Formulário do IPM, coisas das quais, normalmente, mal tinha ouvido falar. O resultado é que o Tenente tinha, primeiro, que fazer um estudo rápido desses dispositivos legais para, então, poder começar os interrogatórios, acareações, perícias, etc. Esse era um dos aspectos da vida naval dos quais não sentimos nenhuma saudade. 1 Mas voltemos à zona do meretrício do Recife antigo e ao conflito cujo IPM foi para as mãos de um colega de turma, Tenente “Fobó” como eu. Aquela noite estava prometendo. O navio estava atracado ao cais da Praça Rio Branco, local onde, praticamente, começava a zona do Recife antigo e que se estendia até a ponte do rio. No cais, as meretrizes ficavam fazendo “declarações de amor” aos homens no convés e faziam gestos e convites, tudo em meio a uma algazarra de lembrar Sodoma e Gomorra. O Comandante não gostava disso e já havia pedido ao Imediato para recomendar aos homens não ficarem em exposição no convés, para não atiçar o ardor das mulheres. Mas não adiantava e nós já estávamos acostumados com isso, pois era uma cena que se repetia com todos os navios que ali atracavam. Ao longo da rua que seguia até o rio ficavam os botequins, bordéis e cabarés e ali faziam ponto os nossos licenciados, alguns dos quais, ao descerem da prancha para o cais, já se amigavam com as futuras companheiras da noite. Antes, porém, paravam nos botequins e começavam a farra e a bebedeira. Naquela noite, lá pelas três horas da madrugada, o inevitável desentendimento entre marujos e paisanos, supostamente soldados de polícia em traje civil, gerou um conflito em um dos bordéis, com todo mundo brigando, janelas sendo quebradas, cadeiradas, garrafadas e gente descendo, meio de cabeça, as velhas escadas do bordel. O conflito continuou na rua e, então, começaram a atirar. Foram vários tiros e um Marinheiro caiu junto ao meio-fio e lá ficou. Os homens que estavam atirando fugiram e o pessoal de Marinha tratou de socorrer o baleado. A cafetina cujo bordel havia sido, praticamente, destruído, estava uma fera, com uma faca “peixeira” na mão e gritava impropérios em todas as direções, com o coro das demais infelizes, algumas bem machucadas, pois, nessas ocasiões, elas também entravam nos conflitos, batendo e apanhando. Terminada a confusão e acalmada a cafetina, perceberam que o marinheiro, supostamente vítima, aparentava estar bem. Ao que tudo indicava, a bala não o havia atingido e ele mesmo dizia aos colegas que não havia nada e que logo regressaria para bordo. Aqui é preciso dizer que ir para a zona e, de lá, regressar para bordo, era feito a pé e em questão de, no máximo, trinta minutos. Assim terminou a madrugada, mas o assunto do conflito chegou ao conhecimento do Comandante logo ao início do dia, inclusive com o episódio do Marinheiro baleado. Comentava-se que a vítima teria sido o Marinheiro Emiliano, por sinal um de meus subordinados na Divisão de Operações. Emiliano era um Marinheiro novo, disciplinado, com um tipo físico de tórax projetado para frente, o que se costumava chamar de “peito de pomba”. Ao saber dos comentários, chamei o Emiliano e indaguei sobre a veracidade do assunto, ao que me respondeu, sorrindo: – Ora, Seu Tenente, se eu tivesse sido baleado como eu poderia estar aqui agora, tranqüilo, falando com o senhor? A explicação do Emiliano era convincente, mas o Comandante queria saber tudo em detalhes e determinou que a Guarnição formasse na popa. Aproveitaria para fazer uma preleção sobre conduta em terra e estando a Guarnição formada, começou a falar: 2 – Não admito que minha Guarnição se envolva em distúrbios em terra e muito menos na zona do baixo meretrício. A Marinha, de grandes tradições e heróis consagrados, não pode aceitar que arruaceiros e cachaceiros venham a manchar, etc, etc. Depois de uns dez minutos, em que Marcílio Dias foi citado várias vezes, com a Guarnição em posição de sentido, o Comandante encerrou a preleção e, como último assunto, comentou o caso do baleado e perguntou: – Quem souber algo sobre esse Marinheiro que teria sido baleado, dê um passo à frente! E aí o inusitado. O Marinheiro Emiliano deu o passo à frente e o Comandante, sentindo que a preleção fizera efeito, falou: – Muito bem. Gosto disso, de gente que tem hombridade. Quem foi o baleado? – Fui eu mesmo, Seu Comandante! E o Emiliano levantou a gandola, mostrando o peito todo enfaixado, ainda com algumas marcas de sangue do ferimento. O Comandante ficou meio desconcertado, dispensou a formatura e recebeu o Emiliano em audiência. Lá o Marinheiro contou que, de fato, havia recebido o tiro, mas não se sentiu muito ferido. A bala havia se alojado, mas ele preferiu ficar calado para não causar pânico entre os colegas e, sozinho, depois dos ânimos serenados na zona, procurou o Pronto Socorro do Hospital Geral de Recife, onde retiraram a bala, enfaixaram e mandaram embora. Ele voltou para o navio e foi dormir, como se nada tivesse ocorrido. Na verdade, o “peito de pomba” do Emiliano salvara sua vida, pois a bala encontrou a costela e não entrou completamente, fazendo, apenas, um ferimento superficial. O Comandante puniu o Marinheiro com uma leve repreensão, mas mandou abrir o IPM, considerando a gravidade dos acontecimentos na zona, principalmente pelos indícios de participação de elementos da Polícia Militar contra pessoal de Marinha. O Tenente Encarregado do IPM começou seu trabalho sem saber, exatamente, por onde começar. Perplexo, como todo Tenente novo, recorreu à experiência de Oficiais mais antigos, que lhe passaram algumas recomendações, insistindo sempre no ensinamento básico de que, em IPM, alguém tem sempre que ser punido por alguma coisa, não se admitindo que o inquérito termine sem dar em nada. A nomeação do Escrivão não foi fácil, à vista dos argumentos de alguns Oficiais, tipo “esse não pode, está muito ocupado na Contadoria” ou “aquele outro também não, está batendo o Relatório Anual” ou, ainda, “o Escrevente Almério está com o dedo machucado e não vai dar bom seguimento na datilografia dos autos”. Apesar desses percalços, o colega Tenente conseguiu nomear, como Escrivão, um Sargento Telegrafista que nunca havia exercido tal função, mas, naquele tempo, eram os Telegrafistas os mais aparentados com a máquina de escrever, fazendo, portanto, esses biscates, em substituição a Escreventes, que estavam sempre em falta nos efetivos. Ainda sem saber exatamente como começar, o Tenente foi procurado pelo Sargento-MR Helvécio, de seu Departamento, que se ofereceu para ajudá-lo, já que com ele simpatizava e compreendia sua angústia, com aquele “abacaxi” nas mãos. Mas que ninguém se engane. O Helvécio havia servido em Recife durante muitos anos e, mesmo tendo ido para o Rio de Janeiro e embarcado no Bertioga, ainda era conhecido em toda a zona do meretrício do Recife antigo, da Praça Rio Branco até a 3 ponte do rio. Era metido a cafetão, já tendo nutrido inúmeros romances com várias das marafonas da área. Era querido por umas e odiado por muitas outras, inclusive por algumas cafetinas que, ao tempo em que eram ainda meninas novas, durante a Guerra, haviam sido exploradas pelo Helvécio, na época apenas Marinheiro de Segunda Classe recém incorporado. Era provável, portanto, que a iniciativa do Helvécio, de ajudar o Tenente, fosse alguma armação, mas o Tenente o recebeu e indagou: – Helvécio, você estava no local e deve ter visto toda a confusão. Quem você acha que “nós” podemos interrogar, para melhor esclarecer os fatos? Malandro safado, o que o Helvécio, de fato, queria, era complicar a vida de duas cafetinas e algumas mulheres, de quem havia jurado se vingar. E recomendou ao Tenente, com ar de experimentado no assunto: – Seu Tenente, eu não vi os acontecimentos, mas, com certeza, essa confusão foi obra das cafetinas do 27 e do 35, aqueles dois sobrados caindo aos pedaços, logo aqui perto da pracinha. O senhor precisa ir lá para ver que porcaria de puteiros são essas duas casas. Doenças de todo tipo, as mulheres são debochadas, a cerveja nunca está bem gelada, a música... – Tudo bem, Helvécio. Você pode me dar os nomes dessas duas e de mais algumas mulheres que possam esclarecer os acontecimentos? – Sim senhor. A cafetina do 27 é aquela safada da Enesina e a do 35 é a Gildete, uma mulata que tem um olho vazado, assim feito Lampião. Agora, das mulheres do 27 eu “suspeito” da Norminha, da Dilcéia e da Genilda. No 35 o senhor pode “mandar prender” a Zilda e a Neuza “pé de moleque”. O Tenente percebeu certa má intenção do Helvécio, mas na falta de outro rumo, resolveu arrolar as meretrizes. É claro que selecionou, também, alguns elementos do navio, inclusive e principalmente, o Marinheiro Emiliano. Incluiu, ainda, o Oficial de Dia do quartel da Polícia mais próximo, de onde poderiam ter saído os supostos autores dos tiros. O interrogatório do pessoal de bordo foi inútil. Ninguém havia visto nada e o próprio Emiliano afirmou que só vinha passando no local quando a confusão já estava formada. O Tenente da PM que estava de serviço no dia e que parecia um cangaceiro bem arrumado, disse que não era possível que os tiros tivessem sido dados pelo pessoal daquele quartel, porque havia ordens rigorosas de seu comandante para que os homens não gastassem munição em besteira, já que as cotas de munição do quartel estavam esgotadas há meses. E garantiu que seu pessoal não era dado a rondas noturnas em puteiros, era gente que tinha família, um deles até estudava odontologia. Não, não era possível que os distúrbios fossem da polícia. Em sua opinião de policial, o autor dos tiros podia ser um tal Azevedo, cafetão já meio velho e antigo naquela zona, mas não sabia onde encontrar esse meliante. Ia ser mesmo difícil esclarecer os fatos por esse caminho. Restava, portanto, convocar as mulheres para vir a bordo depor. E o Escrivão saiu para obter, no 27 e no 35, os nomes completos das mulheres, de modo a preparar as intimações respectivas. Teve certa dificuldade, pois algumas putas não tinham documento, mas juravam chamar-se “Maria das Graças Silva”, “Josilete Albuquerque”, “Norma Pereira”, etc. O Tenente mandou preparar as intimações com os nomes declarados, mas mandou acrescentar os “nomes de guerra” e, assim, foram convocadas a Enesina, a Gildete, a Norminha, a Dilcéia, a Genilda, a Zilda e a Neuza “pé de moleque”. O Encarregado do 4 IPM teve o cuidado de inquirir, em datas diferentes, as do 27 e as do 35, porque todo mundo sabe que, na zona, existe o “corporativismo” dos bordéis. No dia marcado, apareceram no cais as mulheres do 27, lideradas pela Enesina. No caminho elas haviam se desentendido, o que era comum sempre que se reunia um grupo de mais de duas putas, de modo que vinham discutindo e fazendo ameaças mútuas. O pessoal de bordo não sabia da convocação daquelas mulheres e, ao vê-las subindo a prancha, ficou imaginando complicações. Muita gente estava envolvida, diretamente, no conflito da zona e aquelas mulheres poderiam abrir o bico. Na popa, o Helvécio olhava em silêncio e dizia consigo: “agora você me paga, Enesina filha da puta”. O Tenente e o Escrivão receberam as ilustres testemunhas no Portaló e as conduziram para o local do interrogatório, um camarote de Oficial, junto à Praça D’armas. A primeira a entrar para o interrogatório foi a Enesina, ficando as demais aguardando nas proximidades, depois de inúmeras recomendações do Tenente para que mantivessem a compostura. A Taifa, que estava por perto, foi, também, devidamente alertada, mas foi impossível evitar que o Taifeiro Lindauro começasse a entabolar divertida e maliciosa conversa com as três, a Norminha, a Dilcéia e a Genilda. O depoimento da Enesina foi marcado pela emoção. A cafetina começou dizendo que tinha treze anos, no interior, quando foi desencaminhada e trazida para Recife pelo tropeiro Valdemar, que a entregou na zona, aos cuidados da saudosa (segundo ela) cafetina Dona Lazinha, em troca de algumas garrafas de cachaça Pitu. Em seguida, relatou a luta para chegar à importante condição de gerente de bordel, citando dezenas de casas onde trabalhara (como puta, é claro). Depois de se livrar de alguns cafetões (aí incluído o Helvécio, provavelmente), economizou um dinheirinho e passou a comandar o 27. História comovente, sem dúvida, mas, perguntada, objetivamente, sobre a confusão, a cafetina declarou-se revoltada com os prejuízos que esses conflitos na zona causavam, mas não entregou ninguém. Acabou seu depoimento dizendo que havia simpatizado muito com o Tenente e que o convidava para passar uma noite lá no 27, depois que mandasse pintar o salão que, segundo ela, estava muito feio. Prometeu que as despesas seriam por conta da casa e que as meninas estariam à disposição. Gente boa, a Enesina. Para o interrogatório das outras meninas do 27 houve certa dificuldade para encontrá-las a bordo, já que o Taifeiro Lindauro, pretendendo fazer relações públicas, saiu com elas a mostrar o navio, subindo, inclusive, ao Passadiço, mostrando e explicando as instalações, o que era acompanhado, com vivo interesse, pelas moças. Coitadas! Aquela convocação para interrogatório havia se transformado em um sadio programa, diferente das noites nos bordéis, sob a luz enfraquecida dos “salões”, com o odor forte e enjoativo do inseticida e da creolina com que lavavam o vermelhão dos pisos e a companhia de indivíduos da pior espécie, vagabundos, bêbados, ladrões e cafetões. Finalmente, o Tenente ouviu as meninas, que também não acrescentaram nada. Eram todas alegres e simpáticas, estavam arrumadas e limpas, sem luxo, notava-se a pobreza, mas eram até bonitas. Capricharam no visual para aparecer diante do Tenente e saíram comentando que ele era como um galã de cinema. Segundo elas, ele parecia com o “Roque Rudes”, de um filme americano em exibição no Recife daqueles dias. 5 No dia seguinte, foi a vez das prostitutas do 35, bordel pior do que o do 27 e cuja cafetina era a Gildete, a tal do olho vazado. Os indícios eram de que lá havia começado o quebra-quebra. Ao contrário da Enesina, que parecia até boazinha no trato, a Gildete foi logo dizendo que a quebradeira de sua casa era um absurdo, que ela não merecia tamanha desconsideração, que sua casa era uma “casa de respeito” e que estava pensando em se queixar a um político pernambucano amigo seu, Deputado Federal influente, não só no Estado como, também, no Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal. Segundo ela, o Deputado era dono de vários bordéis na redondeza e não iria querer ficar com o prejuízo. A Gildete parecia uma mulher perigosa. Disseram depois ao Tenente que o olho vazado fora conseqüência de um desentendimento com um freguês maluco que, não querendo pagar nem a conta da bebida nem a noite com uma das mulheres, encerrou a discussão enfiando um caco de garrafa de cerveja olho adentro da cafetina. Por causa disso, esse freguês foi morto com seis tiros, na calçada em frente ao bordel, segundo consta, por soldados da PM capangas da Gildete. O depoimento dessa cafetina foi tenso, mas não revelou nomes. Depois foram chamadas a Zilda e a Neuza “pé de moleque”, que falaram sobre tudo da vida delas, de seu senso de “dignidade”, da amizade e lealdade que dedicavam à Gildete e de amores desfeitos com inúmeros cafetões da área. Mas, também, não abriram o bico. Em síntese, em dois dias o Tenente aprendeu tudo sobre a vida na zona do Recife, mas não avançou nada no rumo das investigações sobre os tumultos ocorridos dias antes. E, dos depoimentos tomados, foram lavrados os autos respectivos, compondo uma papelada inútil, que chamam de “processo”. Ao final do prazo, o Tenente não conseguiu descobrir quem deu os tiros na zona, nem os motivos, nem os envolvidos, a não ser o Marinheiro Emiliano, a vítima, que confessara sua participação depois que o Comandante, em sua preleção na popa, começou a falar em heróis, em hombridade, etc. Mas esse, também, não entregou ninguém. Em seu Relatório, o Tenente concluiu que não tinha havido crime militar e sim contravenção disciplinar, cometida por: – Marinheiro Sinésio, porque, sendo o Ronda de serviço na noite do ocorrido e devendo estar na tolda a boreste, onde se encontrava a prancha do navio para o cais, estava a bombordo, vendo algo que não soube explicar e, assim, não viu quando o Emiliano saiu de licença; e, sendo cupincha do Emiliano e seu colega de alojamento, sabia que ele iria para a zona naquela noite e não o convenceu a escolher outro programa, como, por exemplo, ficar a bordo jogando “Aliado” com ele na popa; – Marinheiro Jesuíno, porque, sendo o Claviculário de serviço (o encarregado de controlar as chaves de bordo), não informou ao Oficial de Serviço que, na noite da baderna na zona, a chave do Paiol de Mantimentos não havia sido recolhida ao quadro de chaves às 21 horas, antes do toque de “silêncio”, permitindo, com isso, que o Paiol ficasse sob risco, durante a madrugada; e – Sargento Próximo, porque, sendo o Contramestre de serviço do quarto de 00 às 04 horas, não deu atenção ao estado de euforia alcoólica e ao falatório pertinente à confusão na zona que, certamente, estavam evidentes no pessoal que regressava de terra. 6 Do exposto, o Tenente fechou o Relatório e encaminhou ao Comandante que, atônito, mas compreendendo a desdita do Tenente, deu a Solução: – ao Marinheiro Sinésio, o Ronda, dois dias de impedimento, por desatenção ao serviço; – ao Marinheiro Jesuíno, o Claviculário, um dia de impedimento, por negligência no serviço; e – ao Sargento Próximo, apenas repreensão em particular, considerando que possuía a Medalha da Força Naval do Nordeste e a Medalha Humanitária, esta por haver salvo a vida de um Oficial Médico distraído que, desequilibrando-se na prancha, caira ao mar entre o cais e o navio, podendo ter morrido esmagado, não fosse a pronta intervenção do Próximo, que pulou na água e, arriscando a própria vida, nadou com o doutor na direção da popa, onde havia espaço seguro. O Inquérito foi um trabalho inútil, como tantos outros IPM abertos na Marinha. Os tumultos nas zonas de baixo meretrício, do Oiapoque ao Chuí, envolvendo subalternos, continuaram acontecendo por muitos anos, enriquecendo o folclore naval. Hoje, creio ser mais difícil encontrarmos aquele mesmo ambiente da velha zona do Recife antigo. Suponho que ainda funcione, mas não creio que aconteçam episódios como os do passado, até mesmo porque o meretrício já não é mais exclusivo de ambientes sórdidos, mal freqüentados, e de mulheres “desencaminhadas”, como descritos, com maestria, em várias obras de Jorge Amado. Mesmo nas “zonas” mais pobres de hoje, sente-se a presença do progresso. O meretrício moderno já não pode ser classificado de “alto” ou “baixo”, pois há uma grande mistura de classes sociais praticando a prostituição, feminina e masculina. Nas grandes cidades, ainda encontramos rameiras pelas esquinas e muitas são de baixíssimo nível, mas não se consideram putas e sim garotas de programa, com direitos constitucionais e falam em cidadania. Mesmo no interior, com toda a miséria de certas localidades, há puteiros funcionando com computador, com acesso à Internet e garotas (ou garotos) atendendo ao agendamento da clientela através de sofisticados telefones celulares. Assim, prezados marinheiros de um passado divertido, o folclore naval deve ter perdido muito, com os novos tempos e o progresso. -------------------------------------------------------------------------------------(*)-Extraído do livro “VIDA DE TENENTE - Histórias daquele tempo”, escrito em 2008. Os fatos e personagens descritos nem sempre são reais e, na maioria, são fruto da imaginação do autor. Refletem, entretanto, o ambiente naval ao longo dos anos 60 e como eram as pessoas que nele conviviam, segundo a visão do autor, na época um jovem Tenente. 7