CONVIVER NÃO É MOLE!1
Paulo Ritter2
Pretendo, no que segue, defender a idéia de que devemos ir além da mera
convivência nos espaços coletivos de tratamento. Por convivência, entendo o que está no
dicionário: ato ou efeito de conviver, viver em comum, manter relações de proximidade3.
Por espaços coletivos, entendo os novos dispositivos de saúde mental surgidos no rastro da
Reforma Psiquiátrica, a partir das décadas de 80 e 90, que se organizam prioritariamente
numa dimensão coletiva. Incluo aqui tanto o Casa Verde como os Centros de Atenção
Psicossocial. Tratamento, por sua vez, não é tão fácil definir, mas é possível constatar,
recorrendo novamente ao dicionário, que um dos seus sentidos é justamente conviver,
manter relações4. Assim, não me parece um disparate afirmar que tratamento é um termo
mais amplo que convivência. Pelo contrário, me parece interessante clinicamente manter tal
sobreposição de termos. Uma sobreposição na qual um termo engloba o outro, na qual o
tratamento tem, na convivência, uma de suas possibilidades.
Antes de continuar, uma ressalva: para alguns sujeitos a convivência é o tratamento
possível, e não há mal algum nisso. Apesar da diferença de amplitude dos termos, nenhuma
apreciação valorativa deve recair sobre eles.
Bom, além de convivência, dispositivos coletivos e tratamento, um quarto termo
infiltrou-se sorrateiramente algumas linhas acima. Quando defendi que seria interessante
clinicamente manter a distinção entre convivência e tratamento, a clínica juntou-se ao
grupo dos termos que merecem uma definição mais apurada. Tal definição, no entanto, não
deve ser feita agora. Deixemos em suspenso esses quatro conceitos – dispositivos coletivos,
convivência, tratamento e clínica – e tomemos outro rumo para reencontrá-los mais a
frente. Não esqueçamos que dispositivos coletivos e convivência estão minimamente
definidos, enquanto tratamento e clínica esperam por definição.
1
Trabalho apresentado no encontro Dez Anos do Casa Verde: Esboços de uma História, em agosto de 2004,
no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro
2
Psicólogo do Hospital-dia Casa Verde.
3
Dicionário Houais
4
Idem.
1
Seguindo outra direção, tomo a liberdade de recortar uma frase contida num dos
“folders” do Casa Verde, cuja autoria, infelizmente, não é minha. Talvez seu autor esteja
presente, e assim peço-lhe desculpas públicas pela usurpação de sua obra, mas acredito que
as frases felizes, ao contrário das infelizes, não têm dono, pertencem à coletividade. Enfim,
a frase é a seguinte: “o Casa Verde, portanto, é um local gerador de relações,
questionamentos e vida para todos aqueles que dele se aproximam”.
Parece-me que tal enunciado reúne alguns pontos relevantes. Vamos, então, trilhar o
caminho que ele sugere e apreciar a paisagem que surge a nossa frente.. Certamente,
poderíamos realizar outro percurso e vislumbrar paisagens já conhecidas, afinal, o alcance
de nossa visão é conseqüência de nossas escolhas. Mas, como o viajante de Italo Calvino,
acredito que devemos buscar cidades insuspeitadas que nos surpreendam com sua
arquitetura improvável5.
Inicialmente, o artigo “o” na frente de “Casa Verde” merece atenção. É claro que se
trata de uma metonímia: “o Casa Verde” no lugar de “o hospital-dia Casa Verde”. Mas,
além de uma figura de linguagem, o artigo masculino antecedendo o substantivo feminino
indica que não se trata de uma simples casa, no sentido corrente do termo. Mesmo que, às
vezes, o Casa Verde se aproxime bastante desse sentido, como vimos nas falas anteriores,
principalmente na primeira mesa, a discordância entre o artigo e o substantivo indica uma
certa resistência – uma resistência em não se deixar simplificar pelo hábito. O Casa Verde
não é, de fato, uma casa, e as atividades que desenvolve não são do âmbito doméstico, são
do âmbito profissional, apesar das nuanças que podemos encontrar entre esses espaços
distintos.
Seguindo na frase do “folder”, outro ponto que merece atenção é o Casa Verde
como “local gerador de relações”. Ora, é óbvio que as relações são geradas principalmente
pela convivência, as mais diferentes relações: entre os sujeitos que freqüentam o hospitaldia, entre esses sujeitos e a equipe técnica, entre os integrantes da equipe, entre os espaços
da casa etc. As relações são múltiplas e diferenciadas, apontam nas mais diferentes
direções, como as possibilidades transferenciais de que falou Ricardo, e incluem todos os
que se aproximam do Casa Verde.
5
Calvino, I. As Cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
2
O terceiro ponto que merece uma parada é o Casa Verde como “local gerador de
questionamentos”. Ora, questionar é pôr em dúvida, é fazer vacilar a certeza, é tornar o
certo duvidoso. Questionar é, na via de mão única da certeza, abrir novas veredas de
interpretação e sentido. As questões, no cotidiano desse trabalho, são sempre abundantes.
Referem-se às oficinas, aos freqüentadores da casa, às relações diferenciais que se
estabelecem, às demandas, às possíveis respostas a essas demandas etc. Questionar isso
tudo é a possibilidade de inventar novas respostas, que prontamente originarão mais
dúvidas, num movimento permanente. Fugir dessa problematização é fugir de uma
característica inerente ao trabalho que fazemos, pelo menos como o concebo.
O quarto e último ponto que merece ser visitado é o Casa Verde como “local
gerador de vida”, idéia que já foi várias vezes exposta hoje. Proponho, no entanto, que esse
ponto seja deixado para o final do percurso, juntamente com a idéia de clínica.
Assim, o que temos até agora, a partir da frase inicial, é o Casa Verde como um
lugar específico com finalidades específicas, no qual sujeitos convivem entre si,
estabelecendo as mais diversas relações, nas mais diversas direções, e no qual esse próprio
movimento é colocado permanentemente em dúvida, é questionado em seu caráter de
certeza.
Já temos a mão os ingredientes de que necessitamos para defender a idéia inicial, a
idéia de que devemos ir além da convivência nos dispositivos coletivos.
O Casa Verde, assim como os Centros de Atenção Psicossocial, ao se organizar
numa dimensão coletiva, promove a convivência de seus freqüentadores, gera relações.
Fazem parte desse trabalho os cuidados, o acolhimento constante, o trabalho e o lazer
assistidos6 – todas instâncias em que se dá a convivência. Para sujeitos que enfrentaram
múltiplas internações, que foram esquecidos por seus familiares nos hospitais psiquiátricos,
para sujeitos cujo tratamento resumiu-se à carga pesada da medicação, para sujeitos
afastados do convívio social ordinário, para todos esses uma espécie de ressocialização
permanente por meio da convivência7 é bem vinda. Afinal, o ponto fundamental da psicose
6
Fuigeiredo, A. C. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um Novo Aggiornamento. In: Quinet, A. Psicanálise
e Psiquiatria: Controvérsias e Divergências. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001.
7
Idem.
3
é justamente a ruptura dos laços sociais. Restituí-los, dentro das possibilidades de cada um,
é o que podemos tentar fazer quando esses sujeitos nos procuram. No entanto, o cuidado, o
acolhimento, a assistência ao trabalho e ao lazer e a convivência devem ser apenas uma das
faces daquilo que oferecemos. Se tais sujeitos enfrentaram obstáculos incontornáveis em
suas vidas, isso se deve
a uma problemática bastante especifica. Isso se deve a
impossibilidade que eles experimentaram, em algum momento, de responder como sujeitos
a certas demandas. Impossibilidade que pode repetir-se a qualquer tempo. Portanto, não
basta apenas oferecer aquilo que eles supostamente não conseguiram, como se essa
restituição tardia aplacasse seu sofrimento e resolvesse suas dificuldades. E preciso ir além.
E para avançar, é necessário lembrar que conviver é viver com o outro, é
confrontar-se com o outro em sua dimensão imaginária e simbólica. Assim, conviver é um
confronto do sujeito com suas dificuldades. Se na paranóia o sujeito é invadido pelo
imaginário, na esquizofrenia é o simbólico que lhe invade8. Não acredito, portanto, que seja
possível somente conviver, sem trabalhar com as questões que surgem desse convívio, a
não ser que abdiquemos de tratar o outro como sujeito. Se o tratamos como sujeito, somos
obrigados, por exigência ética, a levar em consideração sua voz e seu desejo. E aí está, me
parece, a outra face daquilo que devemos oferecer em nossas instituições: a possibilidade
do sujeito trabalhar com o outro que lhe constitui. Então, se a convivência, num sentido
amplo, é fundamental ao trabalho institucional com a psicose, os efeitos que ela produz
também devem ser levados em consideração. A convivência produz laços sociais e produz
transferência. Nesse sentido, podemos agora entender melhor o significado de tratamento,
já que a convivência e os encaminhamentos possíveis dos seus efeitos constituem seu
próprio núcleo. Deste modo, tratamento é tudo aquilo que permite ao sujeito recuperar uma
competência social perdida9 ou construir uma competência social que nunca houve. E com
essa finalidade tudo é possível: medicações, sessões de análise, oficinas, passeios, convívio,
reunião de familiares, eventos externos, festas etc. E tudo o mais que nossa imaginação
possa inventar.
Se a convivência produz tantos efeitos, como encaminhá-los? Simplesmente esperar
que os arranjos curativos surjam na própria coletividade, a partir de uma espécie de trama
8
9
Birman, J. (org.) Sobre a Psicose
Tenório, F. Da Reforma Psiquiátrica à Clínica do Sujeito. In: Quinet, A. Idem.
4
auto-resolutiva, me parece pouco. Não que o coletivo10 não tenha potencialidades
fantásticas, mas até mesmo para aproveitá-las devemos conhecer um pouco a regra do jogo
que estamos jogando. Aqui, creio, devemos lembrar do Casa Verde como “local gerador de
questionamentos”. Se questionar é, como vimos, abrir novas possibilidades, o campo
clínico encontra aqui terreno fértil para frutificar. Agora podemos retomar a idéia de clínica
que deixamos em suspenso. A clínica, como processo permanente de invenção 11, está
intimamente articulada com os questionamentos. É ela que pode informar para onde
caminhar nos momentos em que os caminhos são múltiplos. Nesse sentido, a instituição e
seus dispositivos de tratamento, como processos em permanente construção, estão
subordinados à experiência clínica e seu arcabouço teórico12. Indagar, questionar o hábito,
estranhar o familiar são as condições necessárias para a instauração da clínica como
produção de subjetividades e sociabilidades13, da clínica como criação de novos caminhos e
destinos, da clínica como novos direcionamentos e encaminhamentos.
Assim, podemos agora dizer que, se o Casa Verde é um local gerador de relações e
questionamentos, é também um lugar de convivência, tratamento e clínica. Conviver, viver
em proximidade com o outro, é estabelecer relações que constituem e possibilitam o
tratamento. Tratar, além de ajudar a constituir laços sociais, é questionar os enlaces
constituídos e propor novas alternativas. Os questionamentos e os novos encaminhamentos
estão assentados no conhecimento teórico-clínico, sendo a familiaridade com tal ferramenta
aquilo que nos permite criar e apontar novas alternativas.
Por fim, é chegada a hora de retomarmos um último ponto deixado em suspenso: a
afirmação de que o Casa Verde é um “local gerador de vida”. E aí a situação literalmente
se complica; a vida, diante do silêncio da morte, é complicação. O Casa Verde, assim como
os demais centros de atenção diária, só tem sentido dentro do contexto no qual funciona.
Talvez o contexto do território não tenha para o Casa Verde a mesma importância que tem
para os dispositivos públicos, devido a suas características de instituição particular. Mas o
contexto social e o cultural, desses não tem como fugir. Levar em consideração estes
10
Na acepção de Jean Oury, teórico da Psicoterapia Institucional Francesa.
Amarante, P. Sobre Duas Preposições Relacionadas à Clínica e à Reforma Psiquiátrica. In: Quinet, A.
Idem.
12
Grossi, F. Centro Mineiro de Toxicomania: uma Experiência Singular. In: Quinet, A. Idem.
13
Amarante, P. Idem.
11
5
contextos é trabalhar com o outro que nos constitui, é trabalhar com a alteridade. É
trabalhar com a complicação que advém das relações alteritárias.
Gerar vida é gerar relação com o diferente, é sair da identidade narcísica para a
relação com o outro. Se na psicose o retraimento do sujeito alcança níveis trágicos, todos
precisamos sair do narcisismo para não adoecer, psicóticos ou não. Aposto na idéia de que
o trabalho que efetuamos nos novos dispositivos de saúde mental tenha a capacidade de
engendrar novas formas de sociabilidade, novas formas de vida. Aposto na idéia de que a
clínica ampliada14, no seu esforço de permanente invenção dos dispositivos de tratamento,
tenha efeitos sobre a rede social. Se a clinica é ampliada, seus efeitos também o são.
A história da loucura nada mais é que o conjunto de respostas que a sociedade dá à
loucura. Se hoje podemos dar como resposta a tentativa de transformação de seu lugar
social, é porque as condições para isso estão de alguma forma no campo cultural.
Engendrar um novo lugar social para a loucura equivale a modificar as relações sociais, de
modo que as singularidades subjetivas possam apoiar-se na presença de outras15.
A saída, então, para todos nós, não só para os que necessitam de tratamento, é
inventar novas modalidades de interação, novas formas de convívio; a saída é encontrar, na
superação do isolamento narcísico, a terceira margem do rio16.
Para muitos dos que aqui estão, o Casa Verde certamente representou e representa
um local gerador de relações, questionamentos e vida. E talvez nossa ambição maior possa
ser perceber que, no jardim dos caminhos que se bifurcam17, os percursos singulares de
cada sujeito são possíveis apenas a partir de suas limitações, suas crenças e seus desejos. E
dessa percepção extrair as conseqüências éticas para nosso trabalho.
14
Goldeber, J. A clínica da Psicose – Um Projeto na Rede Pública. Rio de Janeiro, Te Corá, 1996.
Costa, J. F. Não Mais, Não Ainda: a Palavra na Democracia e na Psicanálise. In: Biblioteca Virtual de
Direitos Humanos da Universidade de São Paulo.
16
Rosa, G. A Terceira Margem do Rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
17
Borges, J. L. El Jardin de Senderos que se Bifurcan. In: Obras Completas, Tomo I. Barcelona, Emecé
editores, 1989.
15
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