O país do futebol e a economia do futebol Luiz Martins de Melo A derrota do Brasil na Copa do Mundo de 2006 trouxe de volta várias críticas à administração e gerência do futebol brasileiro. Algumas dessas críticas são justas. Outras estão baseadas numa volta a um passado mítico pleno de realizações. Porém, como se sabe a história só se repete como farsa ou tragédia. A partir dos anos 70 do século passado ocorreu uma profunda transformação na estrutura mundial do futebol, cujas principais características são apontadas a seguir: 1) A criação do complexo econômicoesportivo: a transformação do esporte em um amplo fenômeno de consumo de massas, com uma dinâmica associada a diferentes mercados consumidores - têxtil, confecções, equipamentos, fármacos, turismo e lazer, saúde, calçados etc. No centro da formação desse complexo está a comercialização do espetáculo futebolístico pela televisão; 2) O esporte como fator dinâmico na indústria do entretenimento: o entretenimento é a maior indústria do mundo em volume de negócios e em número de empregos. O esporte é o segundo maior ramo, depois do turismo. Porém, é o que vem crescendo a maiores taxas, e, no século XXI, será o maior ramo desta indústria. Dentro da indústria do esporte, o futebol é a modalidade de maior impacto econômico; 3) A valorização do espetáculo e do ídolo esportivo: o ídolo é a forma concreta pela qual o capital investido no espetáculo esportivo tem o seu retorno assegurado. O público e a mídia dão popularidade ao espetáculo na medida em que o ídolo, a estrela, esteja presente. Para isso, o esporte precisa de empresas profissionais na organização das competições e na realização dos espetáculos, para que se tenha a valorização econômica e social do ídolo e do capital. Em face a esse processo de mudança geral das bases nas quais o futebol vinha sendo administrado enquanto atividade econômica, o futebol brasileiro começou a atravessar um período de transição bastante traumático. Mesmo tendo vencido cinco campeonatos mundiais e considerado o melhor futebol do mundo, a sua organização profissional ainda patina com vários problemas estruturais e não consegue estabelecer uma base gerencial que possa se igualar ao enorme talento de seus jogadores. Essa incompatibilidade entre a modernização gerencial do futebol e o aproveitamento da contínua geração de jogadores que se transformarão em ídolos mais tarde, principalmente nos clubes europeus, tem sido a principal fonte de enfraquecimento interno dos clubes brasileiros. Por falta de condições econômicas, gerenciais, financeiras e de mercado, esses clubes formam jogadores, os vendem por preços baixos para tentar pagar as suas dívidas, diminuem a atratividade do espetáculo, o público se afasta do estádio e os clubes cada vez mais se tornam reféns das receitas da televisão. Outras razões também influem decisivamente para a desvalorização do espetáculo do futebol: a violência urbana e das torcidas organizadas e o péssimo estado de conservação dos estádios. A situação atual do futebol no Brasil aponta para a necessidade de tornar mais profissional, eficaz e eficiente a sua organização e administração. O espetáculo esportivo moderno necessita de estádios e arenas esportivas que possam receber o público com todo o conforto e segurança. Isso inclui horário dos jogos, venda antecipada de ingressos, estacionamento no local, boas condições de transporte e de trânsito e calendário bem organizado. Os estádios esportivos modernos são praticamente inexistentes. Será necessário aumentar o investimento nessa área, construir novos estádios e arenas multiuso e reformar os existentes para que o Brasil possa melhorar as condições de geração de receitas para os clubes. Na década de 30 do século XX, a solução encontrada para resolver a crise do futebol brasileiro foi a profissionalização dos jogadores. No início do século XXI é a profissionalização dos dirigentes e a adoção de um modelo empresarial que resguarde a história dos clubes e permita a sua modernização gerencial. No entanto, para ser bem-sucedida, esta mudança precisa ser acompanhada por uma reorganização da atual estrutura de poder, proporcionando aos grandes clubes mais autonomia para organizar seus campeonatos e para explorar melhor o grande potencial popular que eles construíram ao longo da sua história e diminuir a dependência atual da televisão como fonte de renda, quase que exclusiva, para a sua sobrevivência. A globalização do futebol acentuou os efeitos das disparidades econômicas e de renda entre o Brasil e a Europa, o principal mercado do futebol no mundo. Os salários pagos aos principais jogadores mundiais praticamente inviabilizam a sua permanência em um país com a estrutura econômica do Brasil. Não existe renda disponível para gerar receitas para manter um clube com o nível de gasto próximo aos dos clubes europeus. Porém pode ser feita uma mudança que leve para uma situação menos precária que a atual. A intervenção do Estado será fundamental para acelerar esta transição. Ela deve se dar nos moldes do ocorrido na Inglaterra a partir da implantação do Football Spectators Act, em 1989. Este é um código de direitos do torcedor que previa uma ampla modernização dos estádios dos clubes ingleses, a criação da Premier League e uma reformulação das bases do relacionamento entre o futebol e a indústria de mídia inglesa. O Football Spectators Act forçou uma parceria entre os clubes, federações e governos locais para oferecer aos torcedores uma infra-estrutura de qualidade nos estádios, com condições de segurança, higiene, transporte, alimentação etc. Surgiu então um movimento de reformulação dos estádios ingleses apoiado pelo governo, através da criação de linhas de financiamento especiais para os clubes, que permitiu a modernização de todos os estádios de grande porte da Inglaterra, tornando-os grandes geradores de receitas pelo aumento da sua taxa de ocupação. Esta deve ser também a direção a ser seguida no Brasil: a construção de novos estádios e a reformulação daqueles existentes que tenham condições para tanto, com o subseqüente aumento das receitas do estádio e a diminuição da dependência das receitas da televisão. Sem isso o Brasil continuará a ser o país do futebol, porém sem o espetáculo do futebol. A análise realizada aponta para a irreversível inserção do profissionalismo como saída para o futebol brasileiro. Esta transição será dolorosa e vai encontrar enorme resistência dos grupos que estão poder. Luiz Martins de Melo é professor do Instituto de Economia da IE/UFRJ. Este texto foi publicado no jornal Valor Econômico no dia 4 de setembro de 2006.