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Mas onde está você, cacete?
Já telefonei pelo menos quatro vezes, você não
atende nunca. Seu celular toca em vão, como o dos maridos adúlteros e das amantes ofendidas. A sequência
interminável de toques faz supor ou sua ativa relutância
ou sua suave distração: e, dos dois “não vou atender”,
não sei qual é o mais ofensivo.
Para não falar da minha ansiedade quando não
encontro você, ou seja, quase sempre. Aprendi a colocar
esse sentimento entre minhas manias, e não mais entre
suas culpas. Nem por isso ele é menos penoso de suportar. Cada sirene de ambulância, cada flash fúnebre dos
noticiários destampa a caixa dos meus medos. Vejo motonetas espatifadas, brigas sangrentas, overdoses fatais,
forças da ordem ocupadas em reprimir alguma farra
ilegal. Leio com avidez masoquista a crônica funesta
sobre sua turma, os esmagados no empurra-empurra
das festas rave, os fulminados pelas gororobas químicas, os degolados numa briga noturna em algum estacionamento anônimo de discoteca, os espancados até
a morte por policiais indignos do uniforme que usam.
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Uma fragilidade materna, contra a qual não me
preveni, amolece meu aplomb viril. Percebo que reúno
as duas debilidades: a inquietação protetora da Mãe e
as exigências de retidão do Pai. Eu me vejo socorrendo
você e ao mesmo tempo lhe dando bronca, numa caricatura esquizofrênica da autoridade.
(Autoridade: em torno dessa palavra eu organizo, desde quando você nasceu, congressos tão pomposos quanto inconcludentes. Todos os relatores têm a minha face, é uma assembleia dos meus cacos intelectuais
que buscam a unidade perdida, cada um lançando na
cara dos outros a ignorância deles. O título ideal para
essa convenção disparatada deveria ser: “Quantas vezes,
em vez de mandar você à merda, eu deveria ter lhe feito
uma carícia. Quantas vezes lhe fiz uma carícia, ao passo que deveria tê-lo mandado à merda”.)
A única certeza é que você passou por esta casa. Os
indícios de sua presença são inconfundíveis. O tapete
kilim diante da entrada é uma pequena cordilheira de
dobras e depressões. Quando você entra ou sai de casa,
aquela honesta forma retangular não tem escapatória:
é desfeita pela compressão de seus sapatos enormes, a
cada trânsito corresponde uma alteração da forma original. Séculos de destreza manual de dezenas de povos,
caucasianos magrebinos persas hindustânis, são atropelados por qualquer simples passo seu.
Pelo menos três dos quatro cantos ficam virados para cima, e grossas pregas onduladas, não paralelas entre si, alteram a horizontalidade do tapete até
dar a ele o perfil naturalmente aleatório da crosta ter10
restre. No inverno, folhas secas e rastros de lama acrescentam aventurosas variantes de Land Art às austeras
decorações geométricas do kilim. No verão o desastre
é mais limpo, menos sugestivo em relação ao triunfo
invernal. Mas o sapato que marca e repuxa é sempre o
mesmo: você e sua tribo aboliram sandálias e mocassins em favor daquelas lanchas de borracha acolchoada
que engolem seus pés por todo o ano, tanto na neve
encharcada como na areia escaldante. A órbita da Terra em torno do Sol lhes é estranha, vocês se vestem do
mesmo jeito quando cai uma nevasca e quando o sol
cozinha o crânio, relegaram o tempo atmosférico aos
detalhes que batem inutilmente na superfície do seu
casulo.
Na cozinha, a pia está cheia de pratos sujos. Respingos de molho já calcinados pela sucessão dos cozimentos mancham as bocas do fogão. Essa é a norma; a
exceção (que varia, em jubilosa sequência) é uma panela
carbonizada, ou o escorredor de massa manco de uma
asa, ou um pirex com um resto de macarrão que fica
mofando justamente na bancada em frente à geladeira: mais um passo e ele teria encontrado salvação, mas
a maestria que você revela em secundar a entropia do
mundo se baseia exatamente nessa distância, mínima
e quase imperceptível, entre o “feito” e o “não feito”.
Até mesmo quando bastaria um tiquinho de nada para
fechar o círculo, você o deixa aberto. Você é um perfeccionista da negligência.
Mais de um cinzeiro, pela casa afora, regurgita de
guimbas. Não apenas suas, espero. Do montículo
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transbordou alguma unidade rebelde, que rolou sobre a
mesinha ou caiu no chão. Fragmentos de cinzas ornam
especialmente o sofá, seu habitat predileto. Você vive
largado. À exceção da cozinha, onde domina um ranço
malcheiroso, a casa está impregnada pelo fedor de cigarro apagado, e até eu, que sou fumante, acho impossível classificar esse manto mortífero como o resíduo de
um prazer. O tabagista mais irrecuperável deveria vir
aqui algumas vezes por semana e respirar com o que lhe
resta dos pulmões este ar consumido e grudento. Sem
dúvida se redimiria.
Quase radiosa, neste quadro pegajoso e tendente ao escuro, é a auréola branquinha que fica embaixo da cafeteira. É feita de açúcar. Você certamente acha uma frescura isso de centrar com a colherinha a circunferência
da xícara, e então espalha seu açúcar virilmente, com
o gesto largo e brusco do semeador. Quando a xícara
é levantada, permanece no centro um pequeno círculo
intocado, e ao redor um anel de açúcar. Eu me afeiçoei
a ele, quase como as formigas que às vezes, em fila disciplinada, vêm pastar sobre seu astro involuntário.
No banheiro, toalhas encharcadas jazem sobre o piso.
Pendurar uma toalha no suporte adequado é uma atividade que deve lhe parecer incompreensível, como todas
aquelas ações que implicam o fechamento do círculo.
Tipo fechar uma gaveta ou a porta de um armário depois de abri-las. Tipo recolher do chão, e dobrar, suas
roupas jogadas por todo canto, aqueles moletons que
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parecem usados por um corpo feito apenas de cotovelos, calombentos até nas partes que não têm razão
de sê-lo, e ainda por cima recheados pela camiseta que
você despe de uma só vez, junto com qualquer roupa
sobreposta. A parte superior do seu vestuário é uma só,
como um compensado que se compõe ao ser vestido,
mas não se divide ao ser despido.
Meias sujas por toda parte, aos milhares. Aos
milhões. Emboladas e, em virtude do peso modesto
e do estorvo limitado, nem todas no chão. Algumas
também sobre tampos e prateleiras, como balõezinhos
que um gás misterioso fez pairar em cada canto da
casa.
Algum aparelho eletrônico deixado aceso, sempre. Nas
paredes da casa às escuras, reflexos difusos de luzinhas,
leds, vídeos que zumbem, como as brasas moribundas
da lareira nas casas de campo. Com frequência a televisão de seu quarto reprisa até em sua ausência um daqueles desenhos satíricos americanos (Uma família da
pesada ou Os Simpsons) que debocham do consumismo.
Ou então é o computador que está baixando música, e
fervilha abandonado sobre a cama (tentei inutilmente
convencer você de que isso é perigosíssimo, pode incendiar a casa. Desses miseráveis expedientes é feita a
minha autoridade).
Tudo permanece aceso, nada desligado. Tudo
aberto, nada fechado. Tudo iniciado, nada concluído.
Você é o consumista perfeito. O sonho de todo
hierarca ou funcionário da presente ditadura, que para
manter de pé suas paredes delirantes precisa de que
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cada um queime além do que precisa para se aquecer,
coma além do que precisa para se alimentar, ilumine
mais do que pode ver, fume mais do que pode fumar,
compre além do que precisa para se satisfazer.
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Em torno de meados deste século, segundo todas as previsões, a classe dominante, no Ocidente, serão os velhos.
A menos que haja invasões vitoriosas dos povos pobres
(pobres e jovens serão, ou melhor, já são, sinônimos), as
pessoas de setenta e cinco para cima constituirão mais
da metade da população. Repito e sublinho: mais da
metade da população. Bilhões de dentaduras baterão o
ritmo do tempo que resta, bilhões de fraldas geriátricas absorverão as últimas águas de corpos ressequidos.
Uma humanidade exausta e embarreirada tentará fazer
o próprio poder avançar além de qualquer limite lógico. Tenho alguma probabilidade de fazer parte dela, se
mantiver em ordem as minhas artérias, parar de beber e
de fumar, evitar os queijos. Mas será que poderei praticar tai chi num parque, junto com outros cadáveres animados como eu, sem que um franco-atirador da Frente
de Libertação Jovem, posicionado num teto, me acerte
em plena testa? Dando fim, com um só projétil bem-assestado, aos meus sofrimentos e sobretudo aos dele?
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Essa espetacular página bélica, aqui apenas mencionada, é só um dos muitos e apaixonantes episódios da
Grande Guerra Final, aquela entre Velhos e Jovens,
que dá título a um romance grandioso e definitivo no
qual venho trabalhando há bastante tempo: A Grande
Guerra Final. Pelo menos dois volumes. De amplitude
tolstoiana, no mínimo. Naturalmente, a redação definitiva exige uma maturidade expressiva, inalcançável
na minha idade. Vou escrevê-lo entre os noventa e os
noventa e cinco, refugiado num resort fortificado junto
com outros moribundos abastados como eu, defendido manu militari por mercenários asiáticos e africanos
superjovens, muito bem remunerados para que atirem
sobre seus coetâneos a fim de proteger nossas obscenas
agonias. Por enquanto faço anotações, esboço algum
capítulo, trabalho nos personagens. Um dia, se você
quiser, eu lhe mostro alguma coisa.
Ainda não sei se darei a vitória aos Velhos ou aos Jovens.
Cada um dos dois resultados tem seus prós e seus contras, digo do ponto de vista narrativo, porque do biológico não existem dúvidas: ou os Jovens vencem ou a
humanidade, com todo o seu glorioso cortejo de ruínas,
vai se foder. Por outro lado é possível, fortemente possível, que um autor de noventa e cinco anos (tal será a minha idade quando sair, com clamor mundial, A Grande
Guerra Final) torça desesperadamente pela sobrevivência dos Velhos, mas seja suficientemente hipócrita para
dissimular isso, até para não ferir o senso ético dos leitores e especialmente das leitoras, por definição muito afeiçoadas, como se sabe, à ideia da continuação da espécie.
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Estabeleci que o herói do livro seja capaz de
combinar a superior clarividência dos Velhos — ou
seja, do próprio autor — e as razões daquela confusa
mas no fundo lícita perspectiva que denominamos “futuro da humanidade”.
O herói do livro, em suma, só pode ser um traidor. Chama-se Brenno Alzheimer (o nome é provisório,
temo que seja muito caricato: A Grande Guerra Final,
que fique bem claro, será um afresco histórico de forte
cunho dramático); é um dos líderes dos Velhos, um intelectual decrépito e muito respeitado. Simpatiza com
o inimigo e trama em grande segredo a favor da afirmação dos Jovens, a ponto de se sacrificar pela causa.
Descoberto, é condenado ao fuzilamento, mas consegue morrer antes da execução, parando de tomar os remédios contra a hipertensão.
Naturalmente, Brenno Alzheimer sou eu.
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