Beutler D -1
JESUS A CAMINHO DA PAIXÃO (11,1–12,50)
Há boas razões para ver nos capítulos 11–12 do Evangelho segundo João uma
secção principal própria, constituindo a passagem da pregação de Jesus diante de seu
povo para a história da Paixão1. Em Jo 10,40-42, o Batista deixou definitivamente a
cena como testemunha de Jesus. No lugar dele aparecerá, transitoriamente, Lázaro.
Jesus está diante de sua última viagem a Jerusalém, para a Páscoa de 11,55. No lugar da
pergunta de quem Jesus é, que no cap. 10 teve seu ápice insuperável, vem a pergunta de
seu destino e de sua consumação. A ressuscitação de Lázaro, que ficou três dias no
sepulcro, prenuncia a ressurreição de Jesus no terceiro dia (Jo 11,1-46). A decisão de
matar Jesus já faz parte do desenvolvimento dos fatos (Jo 11,47-54), e a última Páscoa
de Jesus fornece a moldura para isso (Jo 11,55-57). Segue-se a unção de Jesus, em vista
de sua morte iminente (Jo 12,1-11). Quando de sua entrada em Jerusalém mostra-se o
contraste entre a homenagem da multidão e a reação dos fariseus, que agora julgam que
chegou o momento de pôr fim ao jogo (Jo 12,12-19). É assim que Jesus vê chegar a
salvação dos gregos, que supõe a sua morte (Jo 12,20-36). Entretanto, o evangelista
constata a rejeição de Jesus por uma grande parte de Israel e tenta ver o sentido disso,
antes de apresentar o último apelo de Jesus à fé (Jo 12,37-50).
1. A ressuscitação de Lázaro
11 1 Havia alguém que estava doente: Lázaro, de Betânia, do povoado de Marta e
de Maria, sua irmã. 2 Maria é aquela que ungiu o Senhor com perfume e enxugou seus
pés com os cabelos. Lázaro, seu irmão, é quem estava doente. 3 As irmãs mandaram
avisar Jesus: “Senhor, aquele que amas está doente”. 4 Ouvindo isso, disse Jesus:
“Essa doença não leva à morte, mas serve para a glória de Deus, para que o Filho de
Deus seja glorificado por ela”. 5 Ora, Jesus amava a Marta, à sua irmã Maria e a
Lázaro. 6 Depois que ele soube que este estava doente, permaneceu ainda dois dias no
lugar onde estava.
7
Depois disso, falou aos discípulos: “Vamos, de novo, à Judéia”. 8 Os discípulos
disseram-lhe: “Rabi, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais
outra vez para lá?” 9 Jesus respondeu: “O dia não tem doze horas? Se alguém caminha
de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. 10 Mas, se alguém caminha de noite,
tropeça, porque lhe falta a luz”. 11 E acrescentou ainda: “Nosso amigo Lázaro dorme,
mas eu vou despertá-lo”. 12 Os discípulos disseram: “Senhor, se ele dorme, vai ficar
curado”. 13 Jesus falava da morte de Lázaro, mas os discípulos interpretaram que ele
estivesse falando do sono mesmo. 14 Jesus então falou abertamente: “Lázaro morreu!
15
E, por causa de vós, eu me alegro por não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos
até ele”. 16 Tomé (cujo nome significa Gêmeo) disse aos companheiros: “Vamos nós
também, para morrermos com ele!”
17
Quando Jesus veio, encontrou Lázaro já sepultado, havia quatro dias.
Betânia ficava perto de Jerusalém, a uns quinze estádios. 19 Muitos dentre os judeus
tinham ido consolar Marta e Maria pela morte do irmão. 20 Logo que Marta soube que
18
1
Cf. Introdução, secção 2.
Beutler D -2
Jesus viera, foi ao encontro dele. Maria ficava sentada em casa. 21 Marta, então, disse
a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. 22 Mesmo
assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele te concederá”. 23 Jesus respondeu: “Teu
irmão ressuscitará”. 24 Marta disse: “Eu sei que ele ressuscitará, na ressurreição do
último dia”. 25 Jesus disse então: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim,
ainda que tenha morrido, viverá. 26 E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá
jamais. Crês nisto?” 27 Ela respondeu: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o
Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo”.
28
Tendo dito isso, ela foi embora para chamar Maria, sua irmã, falando
baixinho: “O Mestre está aí e te chama”. 29 Quando Maria ouviu isso, levantou-se
depressa e veio ao encontro de Jesus. 30 Jesus ainda estava fora do povoado, no mesmo
lugar onde Marta o tinha encontrado. 31 Os judeus que estavam com Maria na casa,
consolando-a, viram que ela se levantou depressa e saiu; eles a seguiram, pensando
que fosse ao túmulo para chorar. 32 Maria foi para o lugar onde estava Jesus. Quando
o viu, caiu-lhe aos pés e disse-lhe: “Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não
teria morrido”. 33 Quando Jesus a viu chorar, e os que estavam com ela, ficou
interiormente comovido e perturbou-se. 34 Ele perguntou: “Onde o pusestes?”
Responderam: “Vem ver, Senhor!” 35 Jesus teve lágrimas nos olhos. 36 Os judeus então
disseram: “Vede como ele o amava!” 37 Alguns deles, porém, diziam: “Este, que abriu
os olhos ao cego, não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?” 38 De
novo, Jesus ficou interiormente comovido. Chegou ao túmulo. Era uma gruta fechada
com uma pedra. 39 Jesus disse: “Tirai a pedra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe:
“Senhor, já cheira mal. Ele está morto há quatro dias”. 40 Jesus respondeu: “Não te
disse que, se creres, verás a glória de Deus?” 41 Tiraram então a pedra. E Jesus,
levantando os olhos para o alto, disse: “Pai, eu te dou graças porque me ouviste! 42 Eu
sei que sempre me ouves, mas digo isto por causa da multidão em torno de mim, para
que creia que tu me enviaste”. 43 Tendo dito isso, exclamou com voz forte: “Lázaro,
vem para fora!” 44 O morto saiu, tendo as mãos e os pés amarrados com faixas e um
lenço em volta do rosto. Jesus, então, disse-lhes: “Desamarrai-o e deixai-o ir!”
45
Muitos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesus fizera, creram
nele. 46 Alguns, porém, foram contar aos fariseus o que Jesus tinha feito.
I
O último grande “sinal” de Jesus antes de sua morte e ressurreição é a
ressuscitação de seu amigo Lázaro da morte. Este acontecimento prefigura o destino de
Jesus e introduz mais profundamente na teologia da “morte” e da “vida” segundo a
visão do quarto evangelista.
A narrativa da ressuscitação de Lázaro parece, à primeira vista, unitária. A ver de
mais perto, porém, mostram-se camadas diversas, que podem remontar a um
crescimento demorado do texto que chegou até nós. Indícios de tal crescimento podem
ser:
– caracterizações diversificadas dos personagens (Maria e Marta como irmãs entre si,
como irmãs de Lázaro ou simplesmente como mulheres do povoado);
– indicações de lugar contraditórias (no v. 17 Jesus chega ao lugar onde Lázaro vivia,
mas no v. 30 ainda não chegou);
– as duas irmãs dirigem a Jesus as mesmas palavras quando ele chega a Betânia (no v.
21, Marta; no v. 32, Maria), e só na primeira vez essas palavras são continuadas num
diálogo (vv. 22-27);
Beutler D -3
– a narrativa é interrompida diversas vezes por diálogos (vv. 7-16, diálogo com os
discípulos; vv. 21-27, com Marta, e assim também nos vv. 39s.);
– a narrativa é interrompida também por comentários do narrador;
– o texto mostra tensões teológicas. Onde está o interesse do narrador: no milagre
estupendo que Jesus realiza, na introdução à Paixão de Jesus, ou no sentido mais
profundo da “vida” que Jesus dá, ou em que mais?
Autores recentes procuraram resolver estas tensões postulando diversas camadas
subjacentes ao texto de João. Assim se distinguem:
– Fonte dos Sinais – Discursos (gnósticos) de revelação – Evangelista2
– Fonte dos Sinais – Evangelista3
– Modelo subjacente [Vorlage] – Fonte dos Sinais – Evangelista4
– Tradição – Escrito básico [Grundschrift] – Evangelista – Redação eclesial5
A hipótese de uma Fonte de Discursos (gnósticos) de revelação como base de
João ficou abandonada, e a discussão em torno da existência de um “escrito básico” ou
“Fonte dos Sinais” até hoje não chegou a resultados comumente aceitos. Por isso,
aconselha-se distinguir somente entre a tradição pré-joanina e a elaboração joanina, a
qual aparecerá sobretudo nos diálogos entre Jesus e os discípulos (vv. 7-16) e entre
Jesus e Marta (vv. 21-17 e v. 39s.). Mesmo assim, é mister considerar e explicar o texto
de Jo 11,1-46 inteiro como texto joanino, pois também aquilo que foi retomado de
textos anteriores torna-se parte do texto da última mão e deve ser entendido a partir
deste.
Com base nisso, aumentam ultimamente as propostas de explicar a história de
Lázaro sincronicamente, i.é, na base do texto em sua forma final. H. Thyen alega ainda
como fontes os evangelhos sinópticos, interpretados de maneira nova6. Outros autores
abandonam também estas tentativas e explicam o texto em consideração de seu
pensamento teológico7 ou em vista da condução do leitor [Leserlenkung]8.
A construção da narrativa é percebida a partir de elementos narrativos, i.é, com a
ajuda de indicações de tempo, lugar, personagens envolvidos e ação9. Assim temos:
1-6
7-16
17-27
28-32
33-37
38-44
45-46
Introdução
Diálogo com os discípulos. Partida
Diálogo com Marta
Maria corre ao encontro de Jesus, acompanhada pelos judeus
Maria com os judeus junto de Jesus
Jesus vai ao sepulcro. Milagre da ressuscitação
Efeitos do milagre
Na definição do gênero da narrativa deve-se levar em conta que ela tem uma
evolução demorada atrás de si. Quando, considerando isso, se faz abstração das cenas de
2
Assim R. BULTMAN, ad locum.
Neste sentido: W. NICOL, Semeia; W. STENGER, Auferweckung.
4
Assim J. BECKER; cf. W. WILKENS, Erweckung.
5
No mesmo sentido: J. WAGNER, Auferstehung, da escola de J. HAINZ e G. RICHTER.
6
Cf. H. THYEN, Erzählung.
7
Semelhantemente J. KREMER, Lazarus.
8
Neste sentido, W. WUELLNER, Putting Life Back; F. J. MOLONEY, Can Everyone Be Wrong?; J. DENNIS,
Conflict and Resolution; F. MANZI, Lazzaro; O. HOFIUS, Auferweckung; M. LABAHN, Bedeutung; R.
ZIMMERMANN, The Narrative Hermeneutics; ID., Narrative Ethik.
9
A maioria dos autores apresentam uma subdivisão semelhante. Cf., e.o., J. KREMER, Lazarus.
3
Beutler D -4
diálogo, mostra-se o conteúdo de um relato de ressuscitação como se encontra em
outros lugares da Bíblia10.
Os dois paralelos encontrados nos evangelhos, no Novo Testamento, são a
ressuscitação da filha de Jairo e a do jovem de Naim. A história da filha do chefe da
sinagoga Jairo (Mc 5,21-43 par. Mt 9,18-26; Lc 8,40-56) é caracterizada pelo
entrelaçamento com o relato da cura de uma mulher com fluxo de sangue (Mc 5,25-34).
Este entrelaçamento existia, talvez, já antes do texto de Marcos e criava espaço para a
morte da menina ocorrido no meio tempo. De resto, o relato de ressuscitação segue a
tópica dos relatos de cura milagrosa: exposição, descrição da situação desesperada (os
circunstantes riem quando Jesus lhes diz que a criança dorme, v. 40), escolha das
testemunhas, ações e palavras de Jesus (v. 41), êxito e demonstração da cura (aqui em
dobro: a menina anda e come). Em Mc 5 falta a “aclamação final”, isto é, o louvor a
Deus ou a exclamação de admiração depois do milagre. Aqui ela é suprimida e
substituída pela ordem de silêncio, típica de Marcos.
O outro texto comparável é a ressuscitação do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-7).
Esta narrativa é própria de Lucas. Não se encontra nela o tema do retardamento, que se
encontra na ressuscitação da filha de Jairo e também na de Lázaro. Entre os detalhes
típicos destaca-se que se trata do filho de uma viúva (cf. a ressuscitação do filho da
viúva de Sarepta por Elias em 1Rs 17,17-24) e que o morto já está sendo levado numa
padiola para sair da cidade11. Traços característicos do relato de milagre são a multidão
circunstante, a palavra de cura, a constatação e demonstração da cura ou ressuscitação
(o jovem começa a falar) e a maciça aclamação final.
Quando essas observações se aplicam à história da ressuscitação de Lázaro em Jo
11,1-44, resulta que a narração primitiva de João é semelhante à do jovem de Naim,
enquanto a história ampliada em João se parece com a da filha de Jairo, por causa do
tema do retardamento. Segundo H. Thyen12, o evangelista foi influenciado diretamente
pela ressuscitação do jovem de Naim, mas também pelas perícopes de Marta e Maria
em Lc 10,38-42 e do pobre Lázaro em Lc 16,31. Para a forma final da narrativa, com
inclusão dos diálogos, podem alegar-se apenas ainda paralelos do próprio Quarto
Evangelho, sobretudo nos relatos de cura em Jo 5 e 9.
Com base nos nomes próprios que se encontram na história de Lázaro remete-se a
duas histórias nos evangelhos que podem ter influenciado Jo 11,1-44. Em primeiro
lugar, a história do ricaço e do pobre Lázaro, em Lc 16,19-31. Ainda que a maioria dos
estudiosos negue uma influência direta sobre Jo 11, semelhanças notáveis caem na
vista: um homem chamado Lázaro morre e deve voltar ao meio dos vivos (para advertir
seus irmãos ou compatriotas). Em Lucas essa volta dentre os mortos só é assunto de
conversa, em João ela é realidade – ainda que para reforçar a incredulidade dos
“judeus”.
O outro texto é a perícope, já mencionada, das duas irmãs Marta e Maria, Lc
10,38-42. Elas são nomeadas conjuntamente. Em Lucas não se fala de uma relação de
família com Lázaro. Diferentemente do Evangelho segundo João, mas possivelmente de
acordo com a tradição pre-joanina, está no centro da história a figura de Maria. Este é o
caso também na história da unção de Jesus em Jo 12,1-8 (cf. Mc 14,1-3 par. Mt 26,6-13;
10
Cf. R. BULTMANN, Geschichte, 228-230.
Cf. para isso R. BULTMANN, Geschichte, 230 e 236, mostrando paralelos helenísticos.
12
Cf. H. THYEN, loco citato.
11
Beutler D -5
Lc 7,36-50–tradição em que a mulher é anônima, só mais tarde identificada com Maria
Madalena pela tradição cristã).
A orientação que o evangelista queria dar à sua história se reconhece
principalmente naquilo que ele acrescenta à sua tradição, embora nem sempre com a
mesma segurança.
O traço menos seguro é o da “glorificação” do Filho de Deus no v. 4. A maioria
dos estudiosos o atribui ao evangelista13, mas de vez em quando surge uma advertência
para não atribuir apressadamente ao evangelista o tema da glorificação de Jesus por seus
sinais, pois os defensores da “fonte dos sinais” acham que este traço é característico da
fonte14. O mesmo vale para o v. 40. Porém, enquanto a “fonte dos sinais” não passa de
uma hipótese, não convém negar ao evangelista o tema da “glorificação” de Jesus,
também neste último e maior de seus sinais. O evangelista é quem, em todo o caso,
assina a responsabilidade pelo texto de última mão.
Com grande certeza remonta ao evangelista o tema da Paixão no diálogo de Jesus
com os discípulos nos vv. 1-6 e, sobretudo, nos vv. 8-10 e 16. Esta observação se
confirma pelo fato de o relato de Lázaro se encontrar na proximidade do relato joanino
da Paixão.
A linguagem e a teologia do quarto evangelista aparecem, do modo mais evidente,
na palavra de revelação dirigida a Marta, em Jo 11,25-27: “Eu sou a ressurreição e a
vida”. Aqui, a cristologia e a escatologia de João encontram sua expressão mais clara.
Jesus é quem traz luz e vida da parte do Pai (quanto à “luz”, cf. Jo 9). Esta vida não é,
como Marta pensa inicialmente, uma vida nova depois da morte corporal, mas um
desenclausuramento do sentido da existência, que é dado como dom aqui e agora.
Diante deste dom, enfermidade e morte perdem de sua significação.
II
A doença de Lázaro “não para a morte”(11,1-6)
Os primeiros dezesseis versículos da história de Lázaro servem para levar até o
relato de sua ressuscitação. “Doença” e “morte” aparecem aí interligadas. Nos primeiros
seis versículos, trata-se da enfermidade de Lázaro, que pode levar à sua morte; nos vv.
7-16 trata-se da partida de Jesus a Betânia, que pode provocar a morte de Jesus.
Gramaticalmente, a secção é construída de modo simples. Por via de regra, ela é
composta de sequencias de frases principais. Entre as frases subordinadas, são dignas de
nota algumas frases relativas, a frase temporal do v. 6 e, sobretudo, a frase de finalidade
no v. 4: “para que o Filho de Deus seja glorificado por ela” (pela doença). Esta frase
corresponde à frase de finalidade no v. 15: “para que creiais”. Assim são enunciadas
finalidades importantes, que determinam o conjunto narrativo inteiro. Nos vv. 1-6, a
ação só começa efetivamente a partir do v. 3, com a transição para o aoristo narrativo. O
comentário do evangelista no v. 5 está no imperfeito.
Para o uso linguístico são características, nos primeiros três versículos, três
campos lexicais:
– “doente” (asthen-), em todos os versículos menos v. 5;
– “irmão/irmã” (adelphós/adelphḗ), nos vv. 1-3 e 5;
13
14
A estes pertence também J. BECKER.
No mesmo sentido G. RICHTER, Studien, 284-286.
Beutler D -6
– “amar” (agapáō/philéō), nos vv. 3 e 5.
A isso acrescem os temas da “morte” (vv. 2 e 4) e da “unção” em vista da morte
(v. 2).
Como é que se narra em nossa secção? O narrador se encontra em todos os
versículos. Duas vezes ele oferece um comentário ou uma explicação no imperfeito. No
primeiro caso, a explicação diz respeito a Maria (v. 2), no segundo, a Lázaro e suas
irmãs (v. 5). No meio encontram-se a comunicação das irmãs, no v. 3, e a resposta de
Jesus, no v. 4. Assim reconhecemos a estrutura narrativa:
1 Narrador
2 Narrador (comentário)
3 Narrador, irmãs
4 Narrador, Jesus
5 Narrador (comentário)
6 Narrador
A construção é, portanto, simétrica, com as palavras das irmãs e de Jesus no
centro.
11,1-3
A narrativa inicia-se com a exposição do relato da ressuscitação do morto. A
palavra-chave mais importante aparece logo no início: Lázaro está “doente”. Assim,
este relato de ressuscitação parte, como os demais sinais joaninos, da experiência do
cotidiano. O lugar, Betânia, lembra Betânia além do Jordão, onde o Batista iniciou sua
atividade (Jo 1,28, cf. 10,40). Provavelmente o evangelista faz aqui uma inclusio. Abrese um novo ciclo. No lugar de João Batista surge agora Lázaro. Ele é alguém que Jesus
ama (v. 3), e com isso prepara-se a transição para o Discípulo Amado de Jesus, que a
partir do cap. 13 aparece ao lado de Jesus e se torna sua testemunha.
Na caracterização das duas irmãs, Marta e Maria, nota-se um desenvolvimento.
Segundo o v. 1, elas vêm do mesmo povoado. Segundo o v. 2, são irmãs de Lázaro. O
crescimento da tradição é ainda visível aqui. O comentário do narrador, no v. 2,
explicando que Maria é a mesma que untou Jesus com perfume, antecipa Jo 12,1-8 e
pressupõe leitoras e leitores que têm uma visão do todo. Quanto ao conteúdo, por esta
referência a ressuscitação de Lázaro é ligada à morte iminente de Jesus. Nisso pode se
suspeitar a mão do evangelista.
11,4
A mão do evangelista aparece com certeza no v. 4. Linguísticamente, o texto
passa de “estar doente” (verbo) para “doença” (substantivo). Esta não levará à morte,
mas servirá à glorificação de Deus. Assim toca-se num tema central do Quarto
Evangelho. A “glorificação de Deus” realiza-se na “glorificação” do Filho de Deus15.
Quase permanentemente este tema, em João, é ligado à morte e “enaltecimento” de
Jesus (cf. Jo 7,37. 12,16.23.28; 13,31s.; 17,1.5). Parece que no pano de fundo está o
Servo de Deus de Isaías (52,13 LXX). Assim não é preciso ver em Jo 11,4 a teologia da
“fonte dos sinais” ou do “escrito básico”, que ligaria a glorificação de Jesus aos seus
sinais terrestres. Trata-se aqui do último grande sinal de Jesus, e este sinal prefigura de
15
Em vez de “filho de Deus”, P 45 com uma parte da Itala e da tradição textual copta e siríaca lê “o filho
dele”, provavelmente sob influência do contexto. P 66 omite o genitivo, porque aparentemente a lição
certa já não estava segura. Nós seguimos o texto de Nestle-Aland (28ª ed.).
Beutler D -7
modo imediato a sua saída do mundo. De modo semelhante, também em Jo 9,3 o sinal
da cura do cego é visto em conexão com a autorrevelação de Jesus em sua “obra” e com
seu fim iminente.
11,5
Também no v. 5 percebemos a linguagem do evangelista. A frase do v. 3 poderia
ser traduzida “Teu amigo está doente” (com o verbo phileîn, cuja raiz exprime antes
uma relação de amizade ; cf. Jo 15,13-15); no v. 5, porém, se diz que Jesus “amava”
Lázaro e suas irmãs, com o verbo agapân, que em Jo tem uma conotação bíblica e
exprime mais do que uma relação meramente humana. Mais uma vez temos aqui um
eco escondido do Discípulo Amado16.
11,6
Depois da dupla interrupção nos vv. 4 e 6, o narrador retoma o fio da narração. Da
“doença”, volta-se ao “estar doente” de Lázaro. Jesus o ouve, mas, uma vez recebido o
recado, ele fica ainda dois dias em Betânia antes de se pôr a caminho. Temos aqui o
tema do retardamento, que não é alheio ao gênero desta narrativa. Cria espaço para a
morte de Lázaro que ocorreu no meio-tempo e, portanto, para a ressuscitação milagrosa.
Quando Jesus parte, no terceiro dia, ecoa aqui algo de sua própria ressurreição no
terceiro dia. Considerações humanas – por exemplo, que Jesus partindo mais cedo
poderia ter prevenido a morte de seu amigo (cf. as palavras de Marta no v. 21 e de
Maria no v. 32) – não cabem no horizonte do narrador joanino. Só a morte de Lázaro
fará experimentar o poder de Deus sobre a morte.
A partida de Jesus (11,7-16)
Muitos deixam começar a secção seguinte no v. 6, mas há razões para ver o novo
começo apenas no v. 7:
– a coerência sintática dos vv. 1-6 (cf. acima);
– a dupla indicação do tempo no v. 7 “depois disso” (épeita, metà toûto);
– a falta do dé no v. 7 depois do mén no v. 6;
– a nova estrutura concêntrica dos vv. 7-15, com encerramento no v. 16;
– o fechamento semântico da nova secção focalizando Jesus e os discípulos.
Um olhar sobre a construção gramatical mostra que, novamente, a secção consiste
preponderantemente de frases principais. A parataxe predomina sobre a subordinação. O
estilo é mais joanino de que na parte anterior, com o “depois disso” (metà taûta) nos vv.
7 e 11, o “então” (tóte oûn) no v. 14 e o assíndeto nos vv. 8s. Encontram-se orações
condicionais seguidas de uma oração causal nos vv. 9s., e mais uma oração condicional
no v. 12. Significativas são, novamente, as proposições de finalidade: no v. 11, Jesus dá
a razão de sua partida a Betânia, no v. 15 a razão de sua alegria apesar de ter ocorrido a
morte de seu amigo, pois trata-se da fé dos seus discípulos.
A construção narrativa da secção é concêntrica como na secção anterior. A secção
é emoldurada pela palavra-chave “vamos” (ágōmen):
v. 7
v. 8
vv. 9s.
16
narrador, Jesus
narrador, discípulos
narrador, Jesus, metáfora
ágōmen
Cf. H. THYEN, Die Erzählung, in: ID., Studien, 182-212: 206s., o qual previne contra uma identificação
de ambas as figuras no mesmo nível.
Beutler D -8
v. 11
v. 12
v. 13ss.
v. 16
narrador, Jesus, metáfora
narrador, discípulos
narrador, Jesus (“abertamente”)
narrador, Tomé
ágōmen
ágōmen
No centro encontra-se a dupla metáfora, no início, um enunciado claro de Jesus e
no fim a solução de uma das metáforas. A moldura é formada pela palavra “vamos” no
v. 6, retomada no v. 15 e por Tomé como porta-voz dos discípulos no v. 16. A
semântica do texto só se explica na análise pormenorizada dos versículos.
11,7
Com a exortação de Jesus para voltar com ele à Judeia, já se abre um dos dois
temas centrais da secção, e este tema se liga ao outro. Ora, esta partida significa que se
corre um risco, como logo se mostrará. A partida de Jesus é, pois, ligada ao tema da
morte, e não somente a morte de seu amigo Lázaro.
11,8
Isso é mostrado pela menção que os discípulos fazem ao perigo de Jesus ser
apedrejado na Judeia. Ali, onde morreu o seu amigo, também Jesus pode morrer e
também os discípulos se sentem em perigo.
11,9-10
Jesus conta com sua própria morte, mas esta tem seu dia e hora. É a hora
estabelecida pelo Pai, como exprime a imagem do dia em que irrompe a noite, quando a
luz cede diante das trevas e os pés tropeçam. A mesma imagem está novamente em Jo
12,35, onde é aplicada aos ouvintes, aos quais só resta pouco tempo.
11,11-13
Em vez da noite entra uma outra palavra de Jesus: o sono, igualmente imagem da
morte, como explica o v. 13. Que Jesus vai partir e acordar Lázaro do sono é, por
enquanto, objeto de mal-entendido para os discípulos.
11,14-15
O que o narrador já esclareceu no v. 13 para o leitor, Jesus agora o explica para
seus discípulos, abertamente: Lázaro adormeceu na morte. Mas por causa dos
discípulos, Jesus se alegra com o acontecido. A ressuscitação de Lázaro vai corroborálos na fé. Por isso eles devem partir com ele à Judeia – e assim retoma-se o convite do
v. 7.
11,16
Então, Tomé se torna porta-voz do círculo dos discípulos e exorta os outros
discípulos a ir e morrer com Jesus. Às vezes duvida-se se esta palavra de Tomé é séria.
Acaso não seria como as palavras empoladas de Pedro em Jo 13,37, não seguidas de
ação prática, mas apenas da tripla negação17? Contudo, há bons argumentos para levar a
sério a palavra de Tomé. Também em outros lugares, Jesus exorta os discípulos para
que lhe sejam fiéis até a morte (cf. Jo 12,25s.; 21,18s). Ele lhes prediz futura
perseguição até a morte (Jo 15,26s.; 16,1-3). Na secção Jo 11,7-16, a palavra de Tomé
está no final e, retomando a dupla palavra de Jesus, resume toda a secção. É improvável
17
Cf. J. BEUTLER, “Lasst uns mit ihm gehen”, notas 1-2. Entre os céticos encontra-se agora também F. J.
MOLONEY, Can Everyone Be Wrong, 512.
Beutler D -9
que tal enunciado só consistisse de palavras vazias. A palavra de Tomé contém uma
mensagem muito clara para a comunidade leitora: eles devem estar dispostos a entrar
com Jesus na morte para, assim, encontrar a vida18.
A chegada a Betânia e o diálogo com Marta (11,17-27)
A longa narrativa da ressuscitação de Lázaro é caracterizada pela alternância de
relato e diálogo. Assim também nesta secção. Inicia-se pelo relato da chegada de Jesus
em Betânia (vv. 17-20); segue-se então o diálogo, teologicamente denso e central, de
Jesus com Marta (vv. 21-27)
Um primeiro olhar sobre o texto confirma a divisão em duas metades. Os
primeiros quatro versículos são de natureza narrativa. Fala-se do “vir” de Jesus a
Betânia, situado por indicações de tempo e espaço. Ao lado da menção do tempo
decorrido desde o sepultamento de Lázaro, há indicações sobre o lugar onde ele foi
sepultado e sobre as pessoas envolvidas. Deste grupo de versículos distingue-se o
grupo seguinte, com o diálogo entre Jesus e Marta, nos vv. 21-17. Estes são aqui os
únicos agentes. As duas partes são conectadas pelo “vir” de Jesus, mostrando-se
articuladas: Jesus, que vem a Betânia é aquele que deve vir ao mundo (vv. 17 e 27).
As duas metades distinguem-se linguisticamente. Os quatro primeiros versículos
são caracterizados por frases verbais, interrompidas pelo parêntese do v. 18 (indicando a
distância de Jerusalém a Betânia). Na segunda metade (vv. 21-27) ocorrem três frases
nominais (vv. 21.25.27) ao lado das frases verbais. Essas frases nominais se revelarão
de muito peso. Em sua sequência, como se mostrará, descrevem todo um caminho da fé:
desde o que Jesus poderia ter sido até o que ele é.
Um exame dos tempos verbais utilizados leva na mesma direção. Os verbos que
emolduram a primeira metade (vv. 17 e 20) usam o tempo narrativo. Os parênteses nos
vv. 18 e 19 utilizam o imperfeito ou mais-que-perfeito. Na segunda metade há um
movimento a partir daquilo que poderia ter sido, passando por aquilo que será, para o
que é (preparado pelo “eu sou” de Jesus no v. 25).
Também semanticamente as duas metades se distinguem, consolidando-se
mutuamente, como mostrará a análise pormenorizada.
11,17-20
Nos primeiros quatro versículos fala-se do “vir” no sentido cotidiano. Com este
“vir” aparenta-se, no v. 20, o “encontro” entre Jesus e Marta, que prepara o diálogo.
Contrapõe-se a isso o “ficar sentada” de Maria em casa (v. 20) como elemento estático.
O tema dos versículos seguintes (vv. 21-27) é preparado, nos quatro primeiros
versículos, pelo “estar no sepulcro” de Lázaro (v. 17). A esta situação pertencem
também os “quatro dias” (v. 17) e Jerusalém (v. 18), prolepse da Paixão de Jesus, bem
como a intenção dos muitos judeus de consolar as irmãs no seu luto (v. 19) 19.
11,21-27
O grupo de versículos que agora segue é caracterizado, sobretudo, por verbos de
dizer (vv. 21.23.24.25.27). Marta inicia o diálogo e também o termina. Assim o texto
parte da situação dela e conduz à confissão de fé que ela, no fim, pronuncia.
18
Cf. J. BEUTLER, “Lasst uns mit ihm gehen”.
Segundo M. THEOBALD, Trauer um Lazarus, Não se sabe com que os “judeus” procuravam consolar as
irmãs; o autor criou aqui um “vazio” que o público leitor deve preencher.
19
Beutler D -10
Desde o início do diálogo, “morte” e “ressurreição” é o binômio que caracteriza a
secção. Há um movimento que vai de “ele não teria morrido” (v. 21), passando por
“ainda que morra/tenha morrido” (v. 25), até “não morrerá em eternidade/jamais” (v.
26). Outra linha de sentido começa com o discurso indireto de Marta (v. 22), continua
no anúncio de Jesus dizendo que seu irmão ressuscitará (v. 23), é retomado e
interpretado no sentido da esperança judaica na ressurreição dos mortos (v. 25s.) e
levado a termo na palavra “eu sou” de Jesus (vv. 25s.), na qual ele se autodesigna como
“a ressurreição e a vida”, prometendo a imortalidade a todo o que nele crer.
Lembramos aqui a linha ascendente de frases nominais em relação a Jesus nos vv.
21-27. No v. 21 Maria fala, no tempo irreal do passado, daquilo que teria acontecido se
Jesus tivesse estado aí, em Betânia. Ao “se tivesses estado aqui” corresponde o “eu sou”
de Jesus no v. 25. Não se trata daquilo que ele faria (v. 22: pedir), mas daquilo ou de
quem ele agora é. Esta mudança de perspectiva deve ainda ser assimilada por Marta. Ela
se apropria de modo bem pessoal do “eu sou” de Jesus (v. 27) quando ela o transforma
num “tu és” e o reformula no sentido da confissão de fé da comunidade joanina (cf. Jo
20,30s.).
Ao mesmo tempo pode-se observar um progresso no caminho da fé de Marta. Ela
parte de um “saber” (oîda) que vê em Jesus uma espécie de “onipotência de intercessão”
(v. 22), mas continua entretanto na fé tradicional (rabínico-farisaica) da ressurreição dos
mortos no último dia (v. 24). Jesus a conduz à fé (pisteúein) nele como o único
dispensador de “ressurreição” e “vida” (v. 26). Quando Marta se apropria desta verdade
de fé (v. 27), seu caminho à fé chega à meta – também representativamente para as
leitores e leitores que a querem seguir. A “vida” tem aqui seu pleno sentido joanino
como síntese da salvação, correspondendo ao “reinado de Deus” nos sinópticos ou à
“justiça de Deus” em Paulo. “Vida” é o conceito privilegiado de João para falar da
salvação escatológica20.
Com sua confissão de que Jesus é o Messias e Filho de Deus, “aquele que deve vir
ao mundo”, Maria retoma o tema do “vir” dos vv. 17-20. Agora não é mais o “vir” de
Jesus ao túmulo de seu amigo, mas seu “vir” ao mundo e para o mundo (cf. Jo 1,9;
12,46; 16,28; 18,37) 21.
Olhando para trás pode se reconhecer como meta da secção narrativa Jo 11,17-27
o intuito de conduzir as leitoras e leitores ao reconhecimento e à confissão de Jesus
como encarnação e doador da “vida” no sentido pleno. É para isso que ele veio.
Provavelmente não é por acaso que a confissão de fé no sentido do Evangelho
segundo João aqui é pronunciada por uma mulher22. Está em paralelo com a confissão
de Pedro em Jo 6,68s., e isso talvez não seja um acaso. Pela inserção, exatamente no
meio do Evangelho segundo João, essa confissão de Marta ganha maior importância.
Prescindindo de seu significado cristológico, a secção pode servir também como
ajuda para pessoas sofredoras23. Elas experimentarão, provavelmente, a aproximação de
pessoas que desejam “consolá”-las. A confiança na oração (da pessoa ou de Jesus)
poderá ser uma ajuda. Vale, principalmente, superar a fixação no passado, naquilo que
poderia ter sido, se... Era essa a atitude de Marta no v. 21, mas esta atitude é vencida
20
Cf. J. BEUTLER, Habt keine Angst, 79-81.
A tentativa de F. J. MOLONEY, Can Everyone Be Wrong, 513s., de apresentar a fé de Marta como
imperfeita, não convence, com base no que é dito.
22
Cf. BEUTLER, Frauen und Männer.
23
Cf. J. BEUTLER, Unterwegs von der Trauer zur Hoffnung.
21
Beutler D -11
inicialmente pelo “mesmo assim, eu sei...” do v. 22. Desde aqui a esperança de Marta já
se dirige para o futuro.
O ponto decisivo é alcançado quando Jesus se revela a ela, em seu significado
presente para a pessoa que crê, e quando ela se apropria desse “agora”. Ajuda
verdadeira para a vida só é possível quando as pessoas conseguem se soltar da fixação
entristecida no passado e naquilo que poderia ter sido. A palavra e a obra de Jesus nos
tornam livres para uma vida no momento presente.
Jesus e o poder da morte (11,28-37)
O ponto alto e fim do relato da ressuscitação caracterizam-se por uma troca rápida
das cenas e dos personagens participantes. São de importância especial as duas secções
análogas que falam da reação dos “judeus”. Nos vv. 36-37 encontram-se as diversas
interpretações do “chorar” de Jesus; nos vv. 45-46, as interpretações acerca do que ele
fez a Lázaro. A resposta da fé é contraposta à reação de “alguns deles” (tinès dè ex
autôn). Com estas distinções oferece-se às leitoras e leitores uma ajuda para encontrar
sua própria identidade. Segundo esse duplo comentário, esta parte da história de Lázaro
se deixa dividir em duas subdivisões: “Jesus e o poder da morte” (vv. 28-37) e “O poder
de Jesus sobre a morte”(vv. 38-46). Vejamos agora os primeiros dez versículos.
Quanto à composição das frases percebem-se aqui diversas diferenças em
comparação com o diálogo precedente entre Jesus e Marta (vv. 21-27). Predomina
novamente a narração, geralmente no aoristo ou no presente histórico. Só no v. 28 notase o presente, repetido, em relação a Jesus e, no v. 36s, o duplo imperfeito dos “judeus”
que adivinham acerca do chorar de Jesus. Frases nominais acerca de Jesus tratam antes
de sua presença física (imperfeito no v. 30, irreal do passado no v. 32). Orações
subordinadas são raras, com exceção do v. 31, construído em degraus, e o v. 32,
igualmente de articulação múltipla. Todas estas observações apontam para uma forte
influência pré-joanina no presente conjunto, exceto na reação dos “judeus” nos vv. 36s.
Olhando para os campos lexicais, percebemos uma diferença entre os vv. 28-32 de
um lado e os vv. 33-37 do outro. Nos vv. 28-32 predominam os verbos de movimento
(“ir embora”, “levantar-se”, “vir”, “seguir”, “cair aos pés”), além dos substantivos
correspondentes (“lugar”, “casa”). Nos vv. 33-37 predominam os verbos de moção
psicológica (“comover-se interiormente”, “perturbar-se”, “chorar”). Além disso temos o
comentário dos vv. 36s. (“dizer”). Os verbos de movimento limitam-se ao v. 34. No fim
de ambos os grupos de versículos fala-se da “morte” de Lázaro (vv. 32 e 37).
11,28-32
Os vv. 28-32 não mostram, à primeira vista, conhecimento do encontro anterior de
Jesus e Marta, nem de seu diálogo nos vv. 17-27. Geralmente são considerados, quanto
à substância, como mais antigo na história da tradição. Os vv. 28s. servem de transição
e conectam as duas cenas de encontro. Que, segundo os vv. 17s., Jesus tinha vindo a
Betânia é retomado no v. 30. Os judeus mencionados no v. 31 aparecem como grupo
unitário, simplesmente como visitantes de luto, não como modelos de atitudes diversas
em relação a Jesus, como nos vv. 36s ou 45s. O encontro de Maria com Jesus é mais
dramatizado que o de Marta no v. 20. Ela cai aos pés de Jesus. Mas suas palavras são as
mesmas que no v. 21 já foram citadas da boca de Marta24: se Jesus tivesse chegado a
tempo, o irmão dela não teria morrido. É altamente plausível a hipótese de que a palavra
24
Só mudou a posição do pronome mou (“meu”).
Beutler D -12
de Maria tenha servido ao evangelista de modelo para o início do diálogo com Marta.
Não precisa mais de aprofundamento teológico aqui; em vez disso relata-se a forte
reação psíquica de Jesus.
11,33-37
Jesus se mostra profundamente comovido pelo luto de Maria e seus amigos e pelo
pranto. Segundo o v. 33, ele fica interiormente comovido e perturbado. Neste estado ele
se deixa mostrar o lugar onde Lázaro está sepultado. Nisso, irrompe em lágrimas. Estas,
porém, são interpretadas de diversas maneiras pelos judeus ali presentes. Podem
significar o quanto ele amava seu amigo, mas também deixam surgir a pergunta de por
que o deixou morrer, se lhe era tão caro (vv. 36s.).
Os verbos com os quais, já no v. 33, se descreve a emoção de Jesus não se deixam
interpretar facilmente; no decorrer dos tempos foram entendidos de muitas maneiras
diferentes25. O primeiro verbo (“comovido interiormente”, no grego enebrimḗsato)
significa propriamente “mostrar insatisfação”. O segundo verbo (“perturbar-se”, no
grego etárassen heautón) parece indicar originalmente uma moção psicológica
intencional. Os Santos Padres viram no primeiro verbo uma moção espontânea de Jesus
e no segundo, uma moção intencional, querendo ver nisso uma prova das duas naturezas
de Jesus: como homem, Jesus está exposto a moções espontâneas, como Filho de Deus,
reflete sobre essas moções. Diferenciação semelhante encontra-se em teólogos
medievais como Tomás de Aquino, o qual, porém, inverte a atribuição, provavelmente
por causa da tradução latina de ambos os verbos. Nos tempos modernos o problema foi
abordado com todos os meios filológicos. Se o mau humor de Jesus tivesse um objeto,
qual foi? O sofrimento e morte de uma pessoa ou a incredulidade dos judeus que se
aproximaram? Ou trata-se da excitação do taumaturgo antes de sua intervenção, mesmo
sem objeto concreto? É neste sentido que aponta o uso de embrimâsthai e de verbos
semelhantes nos relatos de milagre no Novo Testamento (cf. em Mc 1,43 e Mt 9,30, a
expressão altamente emocional depois da cura de um leproso ou de um cego com esse
mesmo verbo; o “suspirar” de Jesus quando cura um surdo-mudo, Mc 7,34; a “ira” de
Jesus antes da cura da mão ressequida, em Mc 3,5). O “interiormente comovido” de
Jesus nos vv. 11,33.38 poderia provir de uma forma subjacente mais antiga, causando
problemas de compreensão no nível do evangelista.
É possível que o evangelista por conta própria tenha amansado e reinterpretado o
verbo difícil pelo acréscimo do segundo verbo, talvez utilizado também nisso uma
tradição subjacente26. Esta é a possibilidade que priorizamos. Neste caso o evangelista
se teria inspirado na tradição sinóptica do Getsêmani, que, por sua vez, se serve do Sl
42-43 (LXX 41-42). Mc 14,34 cita Sl 41,6.12; 42,5 LXX, o refrão deste salmo duplo.
João parece utilizar este versículo em Jo 12,37; 13,21 e talvez Jo 14,1.27, aqui
possivelmente em conexão com Sl 41,7 LXX (ou 42,7 hebraico). Se João em Jo 11
retoma Sl 41-42 LXX (o reflexivo tarássesthai não se encontra alhures no Novo
Testamento), ele pode, apoiando-se na tradição, estar dando um sentido teológico ao
sentimento de Jesus, vendo na “perturbação” de Jesus a experiência de Justo Sofredor
ao entrar no seu próprio sofrimento. Provavelmente também o “verter lágrimas” de
25
26
Para isso e o que segue, cf. J. BEUTLER, Psalm 42/43.
Cf. ibid.; J. BEUTLER, Habt keine Angst, 25s.
Beutler D -13
Jesus (dakrýein em vez de klaíein alhures), no v. 34, vem do Sl 41,4 LXX (cf. as
“lágrimas” de Jesus em Hb 5,7, onde há um eco da tradição do Getsêmani) 27.
Nos vv. 36ss. fala-se de uma dupla reação dos judeus, testemunhas da perturbação
de Jesus. Uns são apenas sensibilizados pela afeição de Jesus por Lázaro. Outros são
mais críticos e perguntam se ele não poderia ter prevenido a morte de Lázaro, já que
abriu os olhos ao cego. Exatamente esta referência mostra que a pergunta é feita no
nível do evangelista. Ele parece querer mostrar duas maneiras diversas de reagir à
perturbação de Jesus: reconhecer a compaixão de Jesus ou questioná-la criticamente.
Com isso, a comunidade leitora é posta diante da pergunta se ela atribui a Jesus
sentimentos verdadeiros e, em geral, está aberta para ele ou não.
O poder de Jesus sobre a morte (11,38-46)
Nos versículos seguintes, a história de Lázaro atinge seu ápice. Agora, Jesus já
não se mostra perturbado pelo poder da morte, mas enquanto senhor sobre a morte. A
narrativa se dá no aoristo ou no presente histórico como verbum dicendi da oração
direta. O relato mesmo é dado em geral em orações principais. Neles estão enquadrados
o breve diálogo de Jesus com Marta, nos vv. 39s., e a prece de Jesus, nos vv. 41s.
Nestes textos encontram-se também orações subordinadas e construções gramaticais
mais elaboradas. O mesmo vale para os vv. finais 45s. Com razão reconhece-se aqui a
mão do evangelista, que imprime no relato tradicional o seu colorido próprio.
Também os campos lexicais demonstram mudança em relação ao grupo de
versículos precedente. Nos vv. 38-46 só uma vez se fala de uma emoção de Jesus
(“interiormente comovido”, v. 38a); no que segue depois de sua chegada ao sepulcro (v.
38), ele aparece como um homem que fala e ordena. Ele “levanta os olhos”, “dá graças”
ao Pai e “sabe” que o Pai o escuta em todo tempo (vv. 41s.). Assim, depois dos
versículos que testemunharam sua humildade e humanidade (vv. 28-37), aparece agora
sua grandeza e divindade (vv. 38-44).
A secção, como a anterior, se divide entre o relato sobre Jesus (vv. 38-44) e a
reação dos judeus à sua gesta (vv. 45s.).
11,38-44
Agora Jesus aparece novamente como totalmente senhor de si. Decidido e seguro
de si, ele vai ao túmulo de Lázaro e manda retirar a pedra que o fecha (vv. 38-39b). A
observação de Marta, de que seu irmão está no túmulo faz quatro dias, não é rejeitada,
mas serve de ponto de partida para uma palavra de revelação de Jesus, que revela a mão
do evangelista (v. 40). No diálogo dos vv. 21-27 Jesus não tinha prometido a Marta,
propriamente, que ela veria a glória de Deus, mas que seu irmão ressuscitaria (v. 23).
Assim é lembrado no v. 40 a resposta de Jesus ao receber a notícia da doença de seu
amigo: a morte de Lázaro não leva à morte, mas servirá para a glória de Deus. O Filho
27
Continua a discussão do misterioso evmbrima,omai em Jo 11,33.38. C. I. K. STORY, Mental Attitude,
considera como dativo tw/| pneu,mati in V. 33: Jesus censura seu próprio espírito que o levou a deixar
morrer seu amkigo Lázaro. Com boas razões, B. LINDARS, Rebuking, recusa essa interpretação. Segundo
ele, evmbrima,omai no v. 33 tem ainda o sentido original de “ser ou estar emocionado interiormente”. A
fonte teria relacionado essa emoção a um demônio, ainda presente no relato original, enquanto o
evangelista teria entendido o verbo no sentido reflexivo e interpretado no sentido do igualmente reflexivo
evta,raxen e`auto,n. Assim tornou-se expressão do estado interior de Jesus. F. M. MOLONEY, Can Everyone
Be Wrong, 518, desiste de explicações traditivo-críticas e interpreta ambas as expressões como incômodo
de Jesus e irritação por causa da generalizada falta de fé. R. ZIMMERMANN, Narrative Ethik, 164 refere-se
a Moloney; cf. ID., Narrative Hermeneutics, 94.
Beutler D -14
de Deus será glorificado por ela (v. 4). Também Marta, como irmã de Lázaro, deve ter
ouvido essa palavra de Jesus. Quando se vê por trás do Filho de Deus do v. 4 também o
Servo do Deus de Isaías (52,13 LXX), a conexão entre a ressuscitação de Lázaro e o
enaltecimento e glorificação de Jesus fica mais clara. Então não se precisa mais
distinguir uma glorificação de Jesus por causa de seus “sinais” (no sentido da “fonte dos
sinais”) e uma glorificação por meio da cruz e da ressurreição, no sentido do
evangelista.
A condição para que Marta possa ver na obra de Jesus a glória de Deus é a fé.
Com isso menciona-se uma palavra-chave importante também para esta secção do
evangelho. Ela voltará logo mais, na oração de Jesus (vv. 41s.) e assim prepara a
decisão das testemunhas do milagre, quer estejam dispostas a crer em Jesus ou não (v.
45s.). Será a palavra-chave decisiva para a condução do leitor.
A fé, também aqui, está ligada ao “ver”. No v. 45, muitos judeus chegam à fé
depois de ter visto a obra de Jesus realizada a Lázaro. No sentido contrário, Jesus
promete a Marta, no v. 40, que ela verá a glória de Deus, se acreditar. Parece que o ver
conduz ao crer, mas também, o crer a um novo ver28.
A ressuscitação de Lázaro propriamente é narrada de modo conciso (vv. 43s.). Ela
supera as histórias de ressuscitação nos sinópticos pelo fato de que aqui se trata de
alguém que está seguramente morto (à diferença da filha de Jairo, Mc 6,39): ele está no
sepulcro faz quatro dias, e a mera palavra poderosa de Jesus é suficiente para chamar o
morto do sepulcro, sem nenhum gesto de Jesus (como os gestos mencionados em Mc
5,51 e Lc 7,14). Visto assim, este “sinal” de Jesus ocupa um lugar insuperável no fim de
sua atividade pública.
11,45-46
A dupla reação dos judeus ao gesto de Jesus corresponde a suas atitudes
diferenciadas quando viram Jesus chorar (vv. 36s.). So que agora fica mais claro ainda
de que se trata no fim das contas: da fé em Jesus. O sinal de Jesus leva muitos judeus,
que foram testemunhas, a crer em Jesus. O contrário não é a falta de fé, mas a
animosidade contra ele. Assim, uma parte das testemunhas se dirige aos fariseus, os
antagonistas de Jesus no Sinédrio, para denunciá-lo. Sem dúvida, consideravam Jesus
como feiticeiro e manipulador do povo, como já foi expresso anteriormente (cf. Jo 7,2;
8,48.52). Um posicionamento neutro diante de Jesus é impossível. “Quem não é a meu
favor, é contra mim” (Mt 12,30; Lc 11,23).
A historicidade da história de Lázaro tem sido examinada, entre outros, por Jakob
Kremer29. Parece quase impossível concebê-la como mera encarnação da história do
ricaço e Lázaro em Lc 16,19-31; ao inverso, esta parece pressupor alguma figura
histórica. Assim podemos, por trás desta história, supor uma cura de doença, que logo
foi interpretada como ressuscitação de um morto, ou semelhante gesto poderoso de
Jesus que foi considerado uma ressuscitação. Não dispomos aqui, nem em outro lugar
do Novo Testamento, de acesso direto ao fato histórico. Foi transmitido a nós pela
palavra das testemunhas, sempre sujeita à linguagem humana.
28
29
Cf. C. TRAETS, Voir Jésus; F. MANZI, Resa credente, 115-118.
Cf. J. KREMER, Lazarus, 109.
Beutler D -15
III
A mensagem da história de Lázaro em geral e da secção final, vv. 38-46, em
particular, se liga principalmente ao diálogo de Jesus e Marta nos vv. 39c-40, à oração
de Jesus nos vv. 41s. e ao final da narrativa nos vv. 45s. A breve interlocução entre
Jesus e Marta antes da ressuscitação do irmão conduz a atenção das leitoras e dos
leitores para o tema inicial da narrativa, depois do v. 4: a obra de Jesus servirá para a
glória de Deus, e ele mesmo será glorificado por ela. A oração de Jesus antes de ordenar
a Lázaro que saísse do sepulcro mostra que sua obra se realiza em união com o Pai. A fé
nesta união deve ser possibilitada ou corroborada pelo sinal. Sem esta fé, os mais
estupendos feitos poderosos de Jesus ficam incompreensíveis, escandalosos até. A
comunidade leitora é chamada a crescer nesta fé em Jesus e a confessá-la se for o caso.
A alternativa seria passar para o campo dos adversários de Jesus.
2. A decisão de matar Jesus (11,47-54)
47
Os sumos sacerdotes e os fariseus, então, reuniram o sinédrio e discutiam:
“Que vamos fazer? Este homem realiza muitos sinais. 48 Se deixarmos que ele continue
assim, todos vão acreditar nele, e os romanos virão e destruirão o nosso Lugar e a
nossa nação”. 49 Um deles, chamado Caifás, sumo sacerdote daquele ano, disse: “Vós
não entendeis nada! 50 Não percebeis que é melhor um só homem morrer pelo povo do
que perecer a nação inteira?” 51 Caifás não falou isso por si mesmo; sendo sumo
sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação, 52 e não só pela
nação, mas também para reunir os filhos de Deus dispersos. 53 A partir desse dia,
decidiram matar Jesus. 54 Por isso, Jesus não andava mais em público no meio dos
judeus. Ele foi para uma região perto do deserto, para uma cidade chamada Efraim, e
lá permaneceu com seus discípulos.
I
A ressuscitação de Lázaro é seguida por uma dupla reação. Muitos judeus
abraçam a fé em Jesus, mas alguns se dirigem aos fariseus para que tomem medidas
contra ele (Jo 11,45s.). A secção seguinte descreve agora as consequências desta
denúncia e a reação de Jesus (vv. 47-53). A isso se liga uma menção da Páscoa que está
por vir, a Páscoa da volta de Jesus ao Pai, podendo ser considerada como uma breve
subsecção própria.
Na explicação desta secção dá-se, geralmente, bastante importância à sua relação
com os paralelos sinópticos. Trata-se da tradição da deliberação do Sinédrio de matar
Jesus, antes da festa da Páscoa, em Mt 26,3-5; Mc 14,1s.; Lc 22,1s., cf. 19,47. É
verdade que só Mateus e João conhecem uma sessão formal do Sinédrio para esta
finalidade. Pode-se supor que há alguma conexão entre a tradição sinóptica e o texto de
João. Os mais tardios dos evangelhos procuram fazer com que a morte de Jesus possa
ser entendida historicamente. Também ao falar dos “sumos sacerdotes e fariseus”, João
mostra contato com formulas que ocorrem em Mateus (Mt 17,62; 21,45). Na realidade o
Sinédrio era constituído pelo(s) sumo(s) sacerdote(s) e pelos anciãos (cf. Mt 26,3), os
quais eram compostos de fariseus e saduceus. E ainda acresciam os escribas (cf. Mc
14,1; Lc 22,2). Esta composição do Sinédrio não existe mais no fim do século I; o único
grupo que restava e tinha influência eram os fariseus. Historicamente falando, é
Beutler D -16
provável que os saduceus tenham participado da decisão de eliminar Jesus mais de que
os demais grupos30.
Entre os textos sinópticos comumente alegados e o relato de João há muitas
concordâncias verbais. Em Marcos: “Páscoa”, dois “dias”, “sumo sacerdote”, “prender”
(kratéō; Jo 11,57 usa piázō). Em Mateus: “Caifás”, “reunir-se” (synágesthai), “povo”
(laós), “prender” (cf. Mc), “matar” (apokteînein). Em Lucas: “povo” (laós em ambos os
textos), não sabiam “o que iriam fazer” (tí poiḗsōsin, 19,48)
Como se delimita a decisão de matar Jesus no texto joaneu? Algumas edições
bíblicas fazem começar uma nova secção no v. 54, estendem-na até o v. 57 e a
denominam “nova fuga de Jesus” (a antiga Einheitsübersetzung). A Bible de Jérusalem
liga o v. 54 ainda ao contexto anterior e inicia então uma longa secção, intitulada “A
última Páscoa (11,55–19,42): Antes da Paixão (11,55–12,20)”. Esta proposta merece
atenção e consenso, em vista do papel das festas judaicas de romaria para a estrutura
global do Evangelho segundo João. Com base na cesura no fim de Jo 10, julgamos
conveniente considerar a história de Lazaro como abertura da história da Paixão, com os
capítulos 11–12 como secção de transição.
A construção linguística de Jo 11,47-54 mostra um texto estilisticamente
elaborado e de tipo argumentativo. Já por isso distingue-se dos modelos sinópticos. A
pergunta de entrada dos sumos sacerdotes e fariseus (vv. 47s.) recebe resposta na
palavra de Caifás. Aqui (v. 49s.) e na reflexão final do narrador (vv. 51s.) encontram-se
repetidamente conjunções finais, além de duas vezes a preposição “por” (hýper), que
tem sentido final. Assim as coisas ficam compreensíveis.
Os vocábulos e campos lexicais serão mostrados ao percorrer o texto.
II
11,47-48
A palavra-chave da secção inteira é dada desde o início: “Os sumos sacerdotes e
os fariseus, então, reuniram (synḗgagon) o Sinédrio”. A isso corresponde o fim do
comentário do narrador quando diz, no v. 52: “Jesus iria morrer pela nação, e não só
pela nação, mas também para reunir (synagágēi eis hén) os filhos de Deus dispersos”.
Esta palavra-chave, posta como moldura, marca a secção inteira com uma oposição que
a atravessa. De um lado reúne-se o aparato do poder, que delibera sobre como se livrar
do problema. Do outro lado há um que está disposto a pôr em jogo tudo, inclusive a
própria vida, para a salvação dos outros 31.
A proposta de delimitar a secção Jo 11,47-54 com base nesta “inclusão” pode
surpreender, mas parece legitimada em vista do uso de molduras semelhantes em outros
lugares de Quarto Evangelho. Já no Prólogo (1,1-18) notamos que a designação de Jesus
como “Deus”, no primeiro e no último versículos, emoldura o Prólogo e fornece-lhe a
palavra-chave determinante. A secção seguinte é emoldurada pela palavra-chave do
“testemunho”, que se encontra no início (1,19) e no fim (1,32.34), indicando o tema da
secção inteira. Pouco depois há uma secção maior, que os comentadores gostam de
intitular “de Caná a Caná”, de acordo com as cenas do início e do fim (4,46-54). Os
longos discursos de Jesus, que revelam fortemente a mão do evangelista, mostram, a
seguir, o mesmo procedimento. Jo 5,19-30 é emoldurado pela palavra de Jesus dizendo
30
31
Cf. J. BEUTLER, Die “Juden”; DERS. The Identity; U. C. VON WAHLDE, The Johannine ‘Jews’.
Cf. hierzu und zum Folgenden J. BEUTLER, Two Ways; DERS., Zwei Weisen.
Beutler D -17
que ele nada faz “por si mesmo”; Jo 5,31-40 é marcado pelo mote “não dar testemunho
de si mesmo”, e Jo 5,41-44 pelo tema de que Jesus não “procura sua própria honra”.
Semelhantes molduras podem ser encontradas no restante do Evangelho segundo João,
não só em secções discursivas, mas também em textos narrativos32. Exemplo é a
palavra-chave “jardim”, no início (18,1) e no fim da primeira parte principal do relato
da Paixão (18,26); e ela volta na transição para o relato da Páscoa (Jo 19,41; cf. 20,15).
Também nas cartas de João encontramos esta característica de estilo33.
A razão da reunião do Sinédrio, convocada pelos sumos sacerdotes e pelos
fariseus (o único grupo ainda relevante no tempo do evangelista), é a posse do poder. A
“fé” em Jesus – para os leitores, a finalidade do Evangelho segundo João – é vista como
uma ameaça. Fala-se num duplo receio: os romanos poderiam chegar e tirar do grupo
hegemônico o “lugar” e o povo. Por “lugar” entende-se geralmente o Templo 34, mas o
termo (tópos) poderia significar também a posição social35, o que também daria um
sentido plausível. O termo que se usou para o povo, éthnos, “nação”, causa admiração.
Volta nos vv. 50-52 (no v. 50, em paralelo com o termo corriqueiro, laós). Parece que
no v. 48 o povo (enquanto éthnos) é entendido como grandeza política. Quando o
evangelista retoma o termo, não se deve concluir daí que para ele Israel tivesse perdido
sua dignidade como povo de Deus. Trata-se antes de certa sistematização de palavraschaves no interior desta secção.
11,49-50
Nos versículos seguintes aparece nova palavra-chave: “Um”. Caifás é “um” deles,
isto é, dos sumos sacerdotes e fariseus. Segundo seu juízo, é melhor que “um” morra
pelo povo do que perecer a nação inteira 36. No primeiro caso, o “um” é contraposto ao
grupo dos que detêm o poder. No segundo caso, “um” é considerado em relação ao
povo inteiro e até a toda a multidão dos filhos dispersos de Deus. O sentido desta
ligação será explicado pelo evangelista nos versículos subsequentes. O raciocínio de
política real proferido por Caifás torna-se assim uma transparência para a dimensão
salvífica da morte de Jesus em prol dos muitos.
11,51-52
Quando Caifás é chamado de “sumo sacerdote daquele ano” (cf. Jo 18,13) não se
segue daí que João pensa num revezamento anual dos sumos sacerdotes. O sentido pode
ser simplesmente que Caifás, exatamente nesse ano, era sumo sacerdote, e nesta
qualidade ele falou, no sentir do evangelista, de maneira profética. Não apenas anuncia
o futuro, mas o interpreta no sentido da vontade salvífica de Deus.
A morte de Jesus pelos muitos é um tema que aparece também em outros textos
de João. Sobretudo, encerra o discurso do pastor (Jo 10,11.17s.). O bom pastor, que é
Jesus mesmo, dá sua vida por suas ovelhas. Como já observamos ad locum, por trás
desse texto está o Servo de Deus de Isaías, que substitutivamente morre pelos muitos e
32
Cf. J. BEUTLER, Zur Struktur.
Cf. J. BEUTLER, Die Johannesbriefe.
34
No pano de fundo está a ideia de Jesus como novo Templo, cf. J. DENNIS, Restoration, 54 ss.; M.
THEOBALD, Heilige Orte, 395-399.
35
Cf. C. UMOH, The plot, 89-92, e.o., alegando que to,poj no sentido de “Lugar santo” normalmente é
especificado, o que não é o caso em Jo 11,48 nicht der Fall. Cf. ID., The Temple, 329-332, onde lembra
que ai;rw (lit. “tomar, levar embora”) não combinaria bem com o Templo como objeto..
36
R. D. AUS, The Death of One remete a textos judaicos sustentando do argumento de Caifas (um por
muitos/todos). Ele nota a correspondência lexical do “reunir” nos vv. 47 e 52, mas não a explora.
33
Beutler D -18
para salvação dos muitos (Is 53,11s.). Esta ideia está presente na tradição da Última
Ceia, entre outras (cf. Mc 14,24 parr.), o que, em João, corresponde ao tema de Jesus
entregando sua carne “pela vida do mundo” (Jo 6,51). O tema volta também nos
discursos de despedida (Jo 15,13): ninguém tem amor maior que aquele que dá sua vida
“pelos seus amigos”.
Sobretudo a palavra do evangelista dizendo que Jesus “reunirá (mais exatamente:
reconduzirá a um) os filhos dispersos de Deus”, lembra o Bom Pastor. Como o rebanho
se dispersa ao fugir do lobo (Jo 10,13), assim também o Bom Pastor o reúne (Jo 10,16).
Assim faz também aquele que morre pela salvação dos muitos. Como em Jo 10,16, e
com maior clareza ainda do que lá, o olhar se expande para além do povo de Deus que é
Israel: Jesus, por sua morte, reunirá também os filhos dispersos de Deus. Ressoa aqui o
universalismo da salvação, que também alhures parece suposto no texto de João (cf. Jo
1,9s.; 3,16; 4,42; 6,51)37.
Na tradição sinóptica, o pensamento da “reunião” do povo de Deus encontra-se,
entre outras, na palavra da Logienquelle (Q): “Jerusalém, Jerusalém, que mata os
profetas e apedreja os que lhe foram enviados. Quantas vezes quis reunir teus filhos
como uma galinha reúne os seus pintinhos debaixo das asas, e não quisestes” (Mt 23,37
par. Lc 13,34). Jesus toma aqui para si aquilo que, segundo os profetas do exílio e do
pós-exílio seria a obra escatológica de Deus: reunir, da dispersão, os filhos e filhas e
conduzi-los a Sião38.
São especialmente significativos para Jo 11,51s. os textos que falam da reunião
dos não israelitas no monte Sião. Esta ideia se encontra tanto no Trito-Isaías (Is 56,8;
66,18) quanto em Jeremias (Jr 3,17) e, em forma modificada, em Ezequiel (Ez 29,13:
Deus reunirá os egípcios para levá-los ao Egito). Em tais textos pode-se ver preparado o
enunciado sobre a reunião dos “filhos de Deus dispersos” de Jo 11,52.
Não teve sucesso a proposta de ver por trás da reunião dos filhos de Deus, no v.
52, textos gnósticos – não em última instância por causa da data tardia dos textos que
entrariam em consideração39.
11,53-54
Do comentário, o narrador passa novamente ao relato. A proposta de Caifás, no
Sinédrio, parece ter recebido aprovação. O Sinédrio agora está decidido a matar Jesus, e
isso “a partir daquele dia”. As distâncias do tempo se condensam. Caifás era “sumo
sacerdote daquele ano”. Assim estava indo para o fim o ano no qual Jesus demonstrou
suas obras, de Páscoa a Páscoa, segundo o ciclo das festas judaicas. Agora são apenas
mais alguns dias (cf. 9,4). Logo mais serão apenas horas (cf. 11,9; 19,14). E então terá
chegado a “hora de Jesus”.
No versículo final, v. 54, indicações de lugar revezam as indicações de tempo.
Depois da divulgação da decisão do Sinédrio, Jesus não arrisca mais atuar publicamente
entre os judeus ou os habitantes da Judeia, mas ele se retira na região da cidade
37
Cf. J. BEUTLER, So sehr. H. VAN DE SANDT, Purpose, aponta o motivo da reunião em contexto
eucarístico em Did 9,4 (cf. 10,9; IgnEph 20,2).
38
Cf. Is 27,12; 35,10; 40,11; 43,5; 49,5.18; 52,12 LXX; 60,4.7 [22 LXX]; Jr 23,8 LXX; 31 [38], 8.10; 32
[39], 37; Br 4,37; 5,5; Ez 11,17; 28,25; 34,12f.; 37,21; 38,8.12; 39,27; Os 2,2; Mq 2,12; 4,6.12; Sf 3,19
(Sammlung der Zerstreuten); Tb 13,15 etc. Segundo Is 11,12, a reunião dos dispersos de Israel será a obra
do Ungido. Quanto ao tema da reunião, cf. também J. DENNIS, Restoration; ID., Jesusʼ Death.
39
Cf. J. MÉNARD, Le “rassemblement”.
Beutler D -19
chamada Efraim, na beira do deserto40. No centro da cena do Sinédrio estava o “lugar”
(Jerusalém ou o Templo), onde muitas pessoas se reúnem e para onde segundo o v. 55
sobem muitos peregrinos. O caminho de Jesus se afasta da Cidade Santa e dos lugares
santos em direção da solidão, na beira do ermo. Agora ele estará sempre mais só (cf.
16,32).
III
No v. 54, Jesus está ainda na companhia de seus discípulos. Estes são
significativos para a comunidade leitora. Eles devem ficar com ele, não apenas para
mostrar sua solidariedade, mas para estar na escola dele até o fim – uma escola em que
se trata de compreender, no sentido mais profundo, a vida e a morte de Jesus pelos
muitos. Ao mesmo tempo, os discípulos constituem o núcleo do povo de Deus
renovado. Se Jesus ao morrer pelos muitos reúne o povo de Deus que é Israel, mas
também todos os filhos de Deus dispersos para além de Israel, este movimento de
reunião começará com os seus discípulos, para ser continuado por eles.
3. A última Páscoa (11,55-57)
55
A Páscoa dos judeus estava próxima. Muita gente da região tinha subido a
Jerusalém para se santificar antes da Páscoa. 56 Eles procuravam Jesus e, reunidos no
Templo, comentavam: “Que vos parece? Será que ele não vem para a festa?”
57
Entretanto, os sumos sacerdotes e os fariseus tinham dado a seguinte ordem: se
alguém soubesse onde Jesus estava, devia comunicá-lo, para que o prendessem.
I
O cíclo judaico das festas de peregrinação parece determinar a composição do
Evangelho segundo João. O arco da vida pública de Jesus se estende da primeira
Páscoa, mencionada em 2,13, à última, apresentada em 11,55. Isso, quando se considera
a festa da Páscoa e todo o cap. 6 como inserção posterior, como nosso comentário
assume; neste capítulo também não se menciona a Páscoa como festa de peregrinação à
qual Jesus sobe. Pela antecipação da festa da purificação do Templo em Jo 2,13 com seu
potencial de conflito e sua referência à morte e ressurreição de Jesus, o evangelista cria
uma moldura dentro da qual toda a vida pública se insere em termos de drama.
II
11,55-56
Novamente temos uma oposição entre uma multidão popular que por enquanto
está aberta a Jesus e o grupo de liderança de Jerusalém. Os peregrinos sobem em grande
massa a Jerusalém e se perguntam se Jesus vai vir à festa (cf. Jo 7,11s., onde os
peregrinos procuram Jesus na festa). Procuram Jesus no Templo, sem se dar conta de
que, com as palavras finais do cap. 10, Jesus se despediu do Templo. As leitoras e
leitores sabem aqui mais do que os peregrinos.
O “procurar” (zēteîn) é, aqui, palavra-chave joanina. Em Jo 1,38, Jesus pergunta
aos primeiros discípulos: “Que procurais?”. Em 6,24, há pessoas que procuram Jesus
porque lhes deu pão. Quando e na medida em que eles não compreendem, o de onde e o
40
Quanto a Efraim, aqui, remete-se a cidades mencionadas no Antigo Testamento, a saber Efron (2Sm
13,23; 2Cr 13,19) ou Ofra (Js 18,23; 1 Sam 13,17) a oriente de Betel; cf. Neues Bibel-Lexikon 404.
Beutler D -20
aonde de Jesus lhes fica escondido: “Vós me procurareis e não me encontrareis”, diz
Jesus (7,34; cf. 7,36; 8.21; 13,33). Os adversários o procuram para prendê-lo (18,4.7s.).
Mas a busca certa pode também levar ao verdadeiro encontro com Jesus, como mostra a
história de Jesus e Maria Madalena em Jo 20,1-2; 11-18. Em Jo 11,56 trata-se
provavelmente de algo mais do que de procurar o taumaturgo e orador sensacional.
11,57
A predisposição dos sumos sacerdotes e fariseus em relação a Jesus não é neutra.
Aparentemente, solidarizaram-se com a proposta de Caifás, em 11,49s., de sacrificar
Jesus a fim de conservar o lugar santo (ou a sua posição). Já transformaram essa decisão
numa ordem de prisão contra Jesus. O “prender” Jesus (piázein) já foi mencionado
diversas vezes (cf. Jo 7,30.32.44; 8,20; 10,39). Agora torna-se iminente (18,12). O
destino de Jesus continua se cumprindo.
III
As leitoras e leitores, neste momento, são convidados a “procurar” Jesus do modo
certo. Não se trata, aqui, de curiosidade, mas do desejo de verdadeiro encontro para a
salvação, pois os adversários de Jesus já se organizam para atentar contra sua vida. A
última Páscoa pode trazer a decisão, e a trará.
4. A unção em Betânia (12,1-11)
12 1 Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde morava Lázaro, que ele
tinha ressuscitado dos mortos. 2 Lá, ofereceram-lhe uma ceia. Marta servia, e Lázaro
era um dos que estavam à mesa com ele. 3 Maria, então, tomando uma libra de bálsamo
de nardo puro e muito precioso, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os cabelos. A
casa inteira ficou cheia do aroma do bálsamo. 4 Judas Iscariotes, um dos discípulos,
aquele que havia de entregá-lo, falou assim: 5 ”Por que esse bálsamo não foi vendido
por trezentos denários, para dar aos pobres?” 6 Falou assim, não porque se
preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão: ele guardava a bolsa e roubava o
que nela era depositado. 7 Jesus, porém, disse: “Deixai-a guardar isso em vista do dia
da minha sepultura. 8 Os pobres, sempre os tendes convosco; a mim, no entanto, não
tendes sempre”.
9
Muitos judeus souberam que ele estava em Betânia e foram para lá, não só por
causa dele, mas também porque queriam ver Lázaro, que Jesus tinha ressuscitado dos
mortos. 10 Os sumos sacerdotes, então, decidiram matar também Lázaro, 11 visto que
por causa dele muitos se afastavam dos judeus e começaram a crer em Jesus.
I
Como apareceu na explicação até agora, de modo crescente os posicionamentos
pró ou contra Jesus determinam o texto joanino. A seguinte tabela mostra isso:
9,35-38:
10,1-18:
10,22-38:
11,1-44:
a fé do cego de nascença; 39-41: a incredulidade dos fariseus;
primeira parte do discurso do Pastor; 19-21: divisão entre os judeus;
segunda parte do discurso do Pastor; 39: tentativa de prender Jesus; 4042: fé;
Lázaro; 45: fé de muitos judeus; 46: denúncia por outros; 47-53: decisão
de matar Jesus.
Beutler D -21
Depois da notícia sobre a retirada de Jesus em Jo 11,54 e a transição para a última
Páscoa, em 11,55-57, o ritmo continua:
12,1-8:
12,12-16:
12,20-36:
12,37-41:
12,44-50:
unção em Betânia; 9-11: uma multidão vem até Jesus e Lázaro; decide-se
a morte de ambos.
entrada em Jerusalém; 17-19: testemunho da multidão em favor de Jesus
e desânimo dos fariseus;
os gregos, abertos a Jesus, vêm até ele; último apelo aos judeus para que
creiam nele;
incredulidade dos judeus diante de Jesus; 42-43: fé dos muitos; palavra
crítica a respeito dos que creem em Jesus, mas não confessam essa fé.
promessa de luz e vida para todos que creem; ameaça do juízo para quem
não crê.
Assim, esta estrutura polarizada se mantém até o fim da narrativa antes da Paixão.
A delimitação da secção pode ser deduzida dessa tabela. A unção de Jesus em
Betânia não é para João um acontecimento independente, mas está ligada aos versículos
que mencionam a “ida/chegada” de Jesus a Betânia em Jo 12,1 e a “ida/chegada” de
muitos judeus a esse lugar, e também à decisão de matar não só Jesus, mas também
Lázaro , que Jesus ressuscitara dos mortos (12,9-11).
Uma primeira aproximação linguística ao texto mostra uma diferenciação entre os
versículos narrativos, no aoristo, e os comentários, no imperfeito. Fornecem-se aqui
informações de fundo que são importantes para a compreensão do público leitor. Tais
comentários encontram-se nos vv. 2, 6 e 11. Assim, no v. 2, a observação de que Marta
servia enquanto Lázaro estava reclinado à mesa. No v. 6, os leitores ficam sabendo que
Judas era um ladrão e regularmente roubava dinheiro da caixa comum. Segundo o v. 11,
muitos judeus acreditavam em Jesus por causa da ressuscitação de Lázaro. No primeiro
caso se faz uma ligação com a história da ressuscitação de Lázaro. No segundo caso, dáse uma razão para a palavra de Judas sobre o desperdício. No terceiro caso, indica-se a
razão por que os sumos sacerdotes decidem matar também Lázaro.
Outros elementos de informação ao leitor são apostos e orações subordinadas.
Para caracterizar Judas serve o duplo aposto no v. 4, que o caracteriza ao mesmo tempo
como discípulo e como futuro traidor de Jesus. Quanto a Lázaro, importa saber que ele é
“aquele que Jesus tinha ressuscitado dos mortos” (frases relativas nos vv. 1 e 9). As
orações finais expressam: – o que os presentes deveriam ter concedido a Maria: que ela
fez um gesto que apontava para a morte de Jesus (v. 7); – e por que os judeus foram a
Betânia: não só para ver Jesus, mas também Lázaro (v. 9).
Conexões no nível verbal mostram a coerência interna dos versículos iniciais com
os versículos finais 9-11 e, assim, com a secção 12,1-11 inteira:
– nomeação dupla de Jesus no v. 11 e nomeação conclusiva no fim do v.11;
– “ir/chegar” (a Betânia) nos vv. 1a e 9s.
– nomeação de Lázaro nos vv. 1 e 9b;
– caracterização de Lázaro como aquele “que Jesus tinha ressuscitado dos mortos”, nos
vv. 1 e 9.
Assim, a unção de Jesus é vista e interpretada à luz da ressurreição de Lázaro, ou
seja, de um milagre que tinha levado muitos judeus a crer em Jesus. Ora, note-se que o
quarto evangelista nunca fala da “ressurreição” de Jesus, exceto na purificação do
Templo em Jo 2,19-22 (e no epílogo, Jo 21,14). Ele fala, sim, do “enaltecimento” ou da
“glorificação” de Jesus (cf. Jo 11,4.40; 12,28.32.34.41). Este “enaltecimento” ou
Beutler D -22
“glorificação” inclui a “obra” de Jesus para os seus (cf. 12,24.32). A ressuscitação de
Lázaro tem, por isso, significado cristológico: anuncia a ressurreição de Jesus, sem
mencioná-la expressamente. Esta correlação se confirma, na presente secção, pela
decisão de matar não só Jesus, mas também Lázaro (vv. 10s.).
Como base literária subjacente serviu, provavelmente, a história semelhante da
tradição marcana (Mc 14,3-9 par. Mt 26,6-13). Ambos os textos têm em comum o
tempo (Páscoa) e o lugar (Betânia), o reclinar à mesa, a tripla qualificação do unguento,
a palavra de censura (300 denários, venda em proveito dos pobres), a palavra de Jesus
“deixa(i)-a” em relação ao sepultamento e a dupla palavra de Jesus a respeito dos
pobres. Há também algumas diferenças: os participantes da cena; a unção de Jesus não
na cabeça (Mc/Mt), mas nos pés; a censura não de alguns (Mc/Mt), mas de um só, e o
fato de Mc falar em “mais de” 300 denários (João omite “mais de”). Com a unção de
Jesus pela pecadora segundo Lc 7,36-50, João tem pouco em comum, a não ser a unção
dos pés de Jesus e o enxugar com os cabelos da mulher; de resto predominam as
diferenças: a refeição é na casa de um fariseu, a mulher é pecadora, Jesus (ou Lucas)
aproveita a cena didaticamente.
A construção deste conjunto de versículos em João pode ser dividida segundo os
atores principais. Nos vv. 1-3 relata-se, depois da introdução narrativa, a ação de Maria.
Esta ação leva, nos vv. 4-6, à reação de Judas. Depois, nos vv. 7-8, segue a avaliação
por Jesus, concluindo a cena. Na medida em que a secção inteira conduz a esta palavra
explicativa e conclusiva de Jesus, ela pode ser atribuída ao gênero literário do
“apotegma”. Os vv. 9-11 se unem ao relato da unção na medida em que se referem a
Lázaro e mostram reações diversas à sua ressuscitação dos mortos.
II
12,1-3
O leitor já conhece “Betânia” como lugar dos “amigos” de Jesus (cf. 11,1.5). A
“casa” dos seus amigos ocupa agora o lugar da “casa de seu Pai” (2,1.16), pois em 10,38
Jesus havia deixado o Templo em consequência do duro conflito do cap. 10. A menção
às irmãs e o irmão (não explicitados como tais) faz reviver a memória do milagre
realizado na casa deles. A indicação do tempo, “seis dias antes da Páscoa”, insere a
unção no ciclo das festas judaicas. Inicia-se agora a última semana de Jesus, a semana
de sua “glorificação” (conforme o título na Bible de Jérusalem).
A Marta que serve à mesa tem sua precursora na cena de Marta e Maria Lc 10,3842. Quanto a Maria, ela não está sentada aos pés de Jesus como em Lucas, mas se
prepara para ungir os pés de Jesus. E em relação a isso salienta-se o esbanjamento do
gesto: uma libra de perfume nobre custa uma fortuna, e trata-se de “nardo puro41 e
muito precioso”. Seu aroma enche a casa toda. O evangelista não comenta o gesto
esbanjador de Maria; Jesus mesmo dará o comentário em sua palavra conclusiva (vv.
7s.).
12,4-6
Em João, o protesto não vem de “alguns” (Mc 14,4), mas de um só: Judas. E
realça-se que ele é discípulo, porém, aquele que havia de trair Jesus. Sua observação, de
que se poderia ter vendido o unguento para dar o dinheiro aos pobres, é um motivo que
41
O adjetivo pistiko,j pode significar “autêntico”, mas pode ser também uma derivação de pistácio. Cf.
W. BAUER, Wörterbuch, sub voce.
Beutler D -23
vem da tradição, mas na narrativa de João é caracterizada como hipocrisia, pois Judas
era ladrão e desviava dinheiro da caixa comum dos discípulos. A atribuição da palavra
de censura a Judas já parece ser obra da redação joanina. Corresponde a uma tendência
nos evangelhos para colocar Judas numa luz negativa. A tradição cristã ulterior vai fazer
dele o malfeitor tout court. Às vezes enxerga nele também o tipo do judeu avarento. Só
em tempo recente procura-se, seriamente, corrigir essa desfiguração e ver em Judas o
que ele era no início, e segundo este texto ainda é: um “discípulo do Senhor”42.
Infelizmente, transviado.
Neste lugar já vale a pena observar o contraste entre a atitude de Maria e a de
Judas no texto de João. Maria age, Judas apenas fala. Ela toma o unguento precioso e
besunta com ele os pés de Jesus. Judas só fala do que se poderia ter feito. Ela mostra
uma dedicação esbanjadora para com Jesus. Ele aparece como o egoísta, que desvia
somas da caixa comum para seu próprio proveito. Mediante tais contrastes, o narrador
oferece modelos de identificação, ainda que em tons de preto e branco, que hoje mal se
aguentam.
12,7-8
Em sua palavra conclusiva, Jesus defende a ação de Maria. A dupla
fundamentação já se encontra na tradição pré-joanina. Maria ungiu Jesus em previsão de
sua sepultura iminente (e, de fato, depois de sua morte, esta ação não terá lugar); e tinha
de ser com pressa. No povo de Deus haverá sempre pobres, mas Jesus só por pouco
tempo estará ainda entre os seus43. Novamente aparece aqui o contraste entre Maria e
Judas, agora segundo o pronunciamento de Jesus: ela guarda o bálsamo e não o entrega.
Ela prepara com carinho a morte de Jesus que Judas está tramando. Ela percebeu que
precisa pressa, enquanto Judas não conhece pressa.
12,9-11
Os versículos seguintes ligam o relato da unção ao contexto amplo da ressurreição
de Lázaro, o qual é nomeado duas vezes. É na casa dele que se deu a unção de Jesus.
Entretanto, essa casa havia se tornado ponto de encontro de uma multidão de pessoas
que queriam constatar o milagre. Tais multidões, em João, via de regra, são neutras em
relação a Jesus. A motivação delas não é suficiente, no sentir do evangelista, porque
procuram não só Jesus, mas outras coisas, para satisfazer a busca sensacionalista. Os
sumos sacerdotes, porém, acham muito suspeita essa conglomeração e, por isso,
decidem eliminar não só Jesus, mas também Lázaro, pois temem que as pessoas possam
chegar a crer em Jesus por causa do milagre de Lázaro. Assim este episódio, como os
anteriores, termina na dupla opção pró ou contra Jesus e coloca, mais uma vez, o
público leitor diante da decisão.
III
Quando olhamos para trás, o relato da unção convida a uma tripla reflexão. Em
primeiro lugar, temos nesta história mais um exemplo para mulheres que, no Evangelho
segundo João, demonstram uma relação especial para com Jesus44. Isso já se mostrava
42
Cf. H.-J. KLAUCK, Judas, e nossa recensão em ThPh 62 (1987) 590-592.
O versículo falta em Codex D e no Syrosinaiticus, as testemunhas mais importantes do texto ocidental,
(em outros manuscritos falta só a segunda metade), mas ele parece suficientemente atestado (cf. NestleAland, 28ª ed.).
44
Cf. R. E. BROWN, Die Rolle der Frau im vierten Evangelium; S. M. SCHNEIDERS, Women in the Fourth
Gospel; T. KARLSEN SEIM, Roles of Women; M. MORGEN, Les femmes; J. BEUTLER, Frauen und Männer.
43
Beutler D -24
no caso da samaritana, Jo 4,1-42, que chegou a crer em Jesus e conduziu os samaritanos
a essa fé. Marta reconheceu em Jesus o Messias e Filho de Deus, que devia vir ao
mundo (Jo 11,27). Mais tarde, Maria de Mágdala será a primeira testemunha e
anunciadora da ressurreição de Jesus (Jo 20,1-2.11-18). Maria, a mãe de Jesus, mesmo
se não designada pelo nome, está no início e no fim da vida pública de Jesus (Jo 2,1-11;
19,25-27). Tais figuras femininas fazem surgir, hoje, a questão do lugar e da missão da
mulher na igreja.
Também o comportamento da irmã de Lázaro em relação a Jesus convida a uma
reflexão. Possivelmente temos aqui uma combinação da antecipação da unção fúnebre
com o motivo da unção messiânica45. O comportamento de Maria não é muito fácil de
se entender, mesmo parecendo pré-moldada pela tradição lucana. Sobretudo o fato de
enxugar os pés de Jesus com os cabelos significa um comportamento que pode ser
chamado de bastante sensual, o que já na casa do fariseu, em Lc 7, provocou censura.
Em Jo temos elementos da metáfora nupcial, o que também já apareceu no encontro de
Jesus com a samaritana junto à fonte, pois na tradição bíblica, tais encontros junto à
fonte ou ao poço são histórias de arranjo de noivado. Há no relato joanino motivos que
parecem provir do Cântico do Cânticos, sobretudo a fragrância do unguento que enche a
casa inteira46. Mas tarde (Jo 20,15; cf. 19,41), o encontro entre Jesus e Maria de
Mágdala se dará num jardim, que é outro elemento da tópica do Cântico47. Na tradição
bíblica, tais elementos não são nem raros, nem surpreendentes48, só que hoje os
percebemos com mais clareza.
Enfim, a palavra de Jesus dizendo que os discípulos terão sempre os pobres
consigo faz refletir. Lembra com clareza Dt 15,11. Não significa, de modo algum, que o
cuidado dos pobres não seja prioritário e pode esperar. No Deuteronômio certamente
não é isso que se quer dizer, e em Jo 12 o assunto é a prioridade concreta e especial que
provém da iminência da morte de Jesus. Também a comunidade cristã não se pode
contentar com o pensamento de que sempre haverá pobres. A comunidade de bens,
atestada nos Atos dos Apóstolos, forneceu e fornece ainda um meio precioso para
superar a pobreza na comunidade. A caixa do grupo dos discípulos, que Judas
administrava, foi precursora dessa prática. Quem é de Jesus, reparte.
5. A entrada de Jesus em Jerusalém (12,12-19)
12
No dia seguinte, a grande multidão que tinha subido para a festa ouviu dizer
que Jesus estava vindo a Jerusalém. 13 Apanharam os ramos de palmeira e saindo
foram ao seu encontro, gritando: “Hosana! Bendito aquele que vem em nome do
Senhor, o Rei de Israel!” 14 Jesus encontrou um jumentinho e montou nele, como está
escrito: 15 ”Não temas, filha de Sião! Eis que o teu rei vem, montado num jumentinho!”
16
Seus discípulos não entenderam isso no primeiro momento, mas depois que Jesus foi
glorificado, eles se recordaram que isso estava escrito a seu respeito e que assim lhe
tinham feito. 17 O grupo que estava com ele quando chamou Lázaro do sepulcro,
45
Cf. M.-L. RIGATO, La sepoltura regale.
O odor, também de unguentos, bálsamo ou óleo de nardo pertence à metafórica do Cântico: 1,3.12
(nardo); 2,13; 4,10f.; 7,9.14; cf. 8,14. Cf. N. CALDUCH BENAGES, La fragancia; J. LUZARRAGA, El nardo.
47
Aqui o jardim é símbolo para a noiva ou também aposento para noiva e esposo: Ct 4,12.15.16; 5,1; 6,2;
8,13.
48
Cf. também acima, as bodas de Caná Jo 2,1-11 e a palavra do batista sobre o amigo do noivo, Jo 3,29.
Na literatura frecente: cf. J. VARGHESE, The Imagery of Love, 59-204.
46
Beutler D -25
ressuscitando-o dos mortos, dava testemunho. 18 Foi por este motivo que a multidão foi
ao encontro dele, porque ouviu dizer que ele tinha realizado esse sinal. 19 Os fariseus,
então, comentavam entre si: “Estais vendo que nada conseguis? O mundo foi embora,
atrás dele”.
I
À história da unção segue-se o relato da entrada gloriosa em Jerusalém. Também
aqui continua a estrutura fundamental da volta de Jesus ao Pai. Novamente temos no
início o relato de um acontecimento que prepara a Paixão de Jesus: sua entrada triunfal
em Jerusalém (Jo 12,12-16). Novamente, também, liga-se a isso o contraste entre a
multidão (ókhlos) e os fariseus, os quais se fixam na rejeição a Jesus.
São significativos para esta perícope as citações da Escritura: a dupla citação nos
vv. 13 e 15 e a nota sobre a não compreensão dos discípulos no v. 16.
Sobretudo os verbos de movimento são marcantes nesta secção. Jesus “vem”
como rei à sua cidade (no v. 12 e nos vv. 13 e 15), a multidão “sai”(13) e “vai ao
encontro dele” (13 e 18) ou “vai embora, atrás dele”, afastando-se dos fariseus (19).
A construção da frase permite reconhecer melhor as características da secção.
Frases subordinadas aparecem principalmente nos versículos explicativos 16-19. Na
narrativa, o tempo preferido é o aoristo; só ocasionalmente é trocado pelo imperfeito (na
aclamação do povo no v. 13). No comentário do v. 17 encontra-se, logo no início, o
imperfeito. No v. 18 aparecem um aoristo e um infinitivo do perfeito, ambos com valor
de mais-que-perfeito. Estamos aqui no nível da reflexão ulterior. A ponderação
conclusiva dos fariseus no v. 19 nos reconduz â contemporaneidade da ação.
A pergunta pelo gênero literário da secção não pode ser respondida sem um olhar
comparativo para o relato semelhante na tradição sinóptica. De per si, a história da
entrada de Jesus em Jerusalém não se deixa facilmente classificar num gênero literário
conhecido. Pode-se pensar em primeiro lugar no “apotegma biográfico”, mas falta a
palavra conclusiva de Jesus; este nem toma a palavra nesta secção. Ora, quando se faz a
comparação com o texto paralelo nos sinópticos (Mc 11,1-10 par. Mt 21,1-9; Lc 19,2840), percebe-se que o relato da entrada de Jesus em Jerusalém originalmente se ligava à
história da purificação do Templo. Isso se nota sobretudo no evangelho de Mateus, onde
os dois relatos se fundem num texto único contínuo49. A purificação do Templo
segundo Jo 2,13-22 caberia bem num quadro semelhante. O relato da purificação do
Templo, em Jo 2,13-16, encontra seu ápice numa palavra de Jesus e numa pergunta dos
judeus provocada por essa palavra, sendo comentado pelo evangelista na nota sobre a
recordação ulterior dos discípulos (v. 17). Também o pedido de um sinal, logo em
seguida, provoca mais uma pergunta dos judeus e mais um comentário sobre a
“recordar-se” dos discípulos (depois da Páscoa, v. 22). O parentesco com Jo 12,12-16 é
evidente.
Se o evangelista não relata a purificação de Templo no cap. 12, isso se deve ao
fato de que já em Jo 10,22-38 tinha sido relatado um último e altamente dramático
encontro de Jesus com os “judeus”. Depois daquele momento, Jesus não pôs mais um
pé no Templo. Também agora ele se mantém nesta decisão. Ele mesmo é agora o
santuário de Israel e o lugar do encontro com Deus (cf. 2,18-22, e também 1,51, com a
alusão a Gn 28,12).
49
Cf. N. LOHFINK, Der Messiaskönig.
Beutler D -26
Com os sinópticos, Jesus tem em comum:
– com Mt: a menção à multidão do povo (ókhlos) que sai ao seu encontro, e a citação de
Zacarias;
– com Mc, a menção aos “muitos”;
– com Lc, a menção aos discípulos, à multidão do povo que sai ao encontra de Jesus e
aos fariseus e sua reação.
A principal diferença em relação aos sinópticos consiste em que João não conhece
ou não menciona a procura de um jumento por parte dos discípulos50.
Há uma alternativa na determinação do gênero literário: um relato de “busca”.
John Painter51, que em outros casos valoriza muito os “relatos de busca” em João, não
inlcui nosso texto entre os exemplos que ele alista. Todavia, nossa história contém
muitos elementos desse gênero: uma pessoa ou um grupo de pessoas busca Jesus (ou
busca ajuda de Jesus), sendo que no v. 13 o motivo da busca ocupa um lugar central, a
descrição é circunstanciada, a aclamação em torno de Jesus tem sentido teológico; mas
outros elementos faltam em nosso texto.
A análise dos personagens que agem ou falam permite dividir o texto como segue:
12s.
14s.
16
17s.
19
a multidão do povo vai ao encontro de Jesus; citação da Escritura;
Jesus entra como um rei na sua cidade ; citação da Escritura;
a compreensão da Escritura pelos discípulos depois da Páscoa;
a razão por que o multidão foi ao encontro de Jesus;
a reação hostil dos fariseus.
II
12,12-13
Temporalmente, a história que agora se segue é conectada à iminente festa da
Páscoa e, assim, também à Paixão de Jesus. A entrada de Jesus em Jerusalém não é,
como nos sinópticos, cuidadosamente planejada por Jesus, com a incumbência de lhe
encontrar uma cavalgadura, mas recebe seu caráter messiânico festivo espontaneamente.
Nisso manifestam-se traços de um “relato de busca”. A multidão que subiu a Jerusalém
para a festa ouve que Jesus está a caminho da cidade e sai, em grande número, ao seu
encontro, para homenageá-lo. O texto joanino não menciona o estender os mantos, mas
sim, a homenagem com os ramos de palmeira52, que os romeiros tiram das árvores e
trazem para homenagear Jesus. Os ramos de palmeira são mencionados em conexão
com a festa das Tendas (Lv 23,40; 2Mc 10,7), o que eventualmente pode sugerir que a
cena, originalmente, tenha ocorrido por ocasião desta festa. Mas esta conclusão não é
obrigatória, pois trata-se antes de um motivo messiânico do ciclo da festa da Páscoa53.
Isto se verifica pela aclamação da multidão, que se origina do último Salmo do grande
Halel (Sl 118,25s.). “Hosana” significa propriamente “ajuda, por favor”, mas aqui
aparece como uma exclamação de louvor, que diz respeito ao “que vem em nome do
50
Mais sobre a relação dos relatos da entrada em João e nos sinópticos, em M. MORGEN, Le roi d’Israël.
Cf. J. PAINTER, Quest and Rejection Stories; cf. ID., The Quest. Painter prossegue um projeto anterior
de R. C. TANNEHILL, Semeia 20.
52
O termo grego significa literalmente “ramos de palmeira das palmeiras”.
53
Quanto ao sentido messiânico dos ramos de palmeira no quadro da revolta dos Macabeus segundo 1Mc
13,51; 2Mc 10,7, cf. M. J. J. MENKEN, Old Testament Quotations, 87. Para o potro de jumenta como
cavalgadura messiânica, de acordo com Gn 49,10s. LXX, cf. ibid., 88s., 94s.,
51
Beutler D -27
Senhor, o rei de Israel”. O termo “rei de Israel” pode provir de Sf 3,15, texto messiânico
do tempo pós-exílico, referido explicitamente pelo evangelista no v. 15 54. Também
Lucas insere neste relato o título régio (Lc 19,38), enquanto Marcos menciona apenas
“o reinado vindouro de nosso Pai Davi” (Mc 11,10).
12,14-15
Segundo João, Jesus “encontrou”, sem mais, o jumento e assentou-se nele. O
evangelista interpreta isso com uma palavra da Escritura, que, quanto ao conteúdo,
provém de Zc 9,9. João abrevia o texto (à diferença de Mt 21,5) e modifica-lhe a
introdução55. O original “Alegra-te muito, filha Sião” se torne em João: “Não temas,
filha Sião”. Isso sublinha de fato a dignidade de Jesus. A exortação, em João, poderia
provir de Sf 3,16, na proximidade imediata do texto de Sf 3,15 referido em Jo 12,13. A
multidão não apenas pode alegrar-se, mas deve também criar coragem em confronto
com os conflitos que a ressuscitação de Lázaro fez surgir.
12,16
Neste lugar é pressuposto que os discípulos de Jesus presenciaram o evento e
também deram sua colaboração. Segundo o v. 15 não entenderam, no primeiro
momento, o que fizeram. Só depois da “glorificação” de Jesus eles se recordariam disso
e chegariam a compreender. Mais uma vez, um evento que antecipa o “enaltecimento” e
a “glorificação” vindouros é excluído da compreensão durante a vida de Jesus. Isso já se
deu no contexto da purificação do Templo e da palavra de Jesus, em Jo 2,19, a respeito
da destruição do Templo – o templo de seu corpo – e seu reerguimento em três dias,
segundo Jo 2,22. Só pelo dom do Espírito, depois da Páscoa, os discípulos podem
chegar à compreensão plena do “enaltecimento” de Jesus (no duplo sentido de
enaltecimento na cruz e para junto do Pai) e de sua “glorificação” (cf. Jo 7,39). Nisso,
os discípulos representam a futura comunidade leitora, que só depois da Páscoa e a
partir dela encontrará o acesso a Jesus na fé.
Novamente pressupõe-se, aqui, que por trás do “enaltecimento” e da
“glorificação” de Jesus, em João, está o servo de Deus da profecia de Isaías, ao qual,
exatamente no início do quarto Canto do Servo, é prometido esse destino (Is 52,13
LXX). Em João, o “enaltecimento” e a “glorificação” de Jesus estão conjugados, via de
regra, ao título de “Filho do Homem”. Por trás disso está certamente a tradição sinóptica
da paixão e ressurreição do Filho do Homem.
12,17-18
Como sempre, na parte que prepara a história da Paixão segundo João, aparece no
fim do relato uma dupla reação, que dá a impressão de ter sido inserida em vista dos
leitores. Fala-se de uma dupla multidão de pessoas. A primeira se compõe das
testemunhas da ressuscitação de Lázaro. Ela “dá testemunho”, o que é um conceitochave joanino (v. 17). Trata-se do testemunho dos fatos que se referem a esse ato de
poder de Jesus, o que evidentemente é também uma tomada de posição a favor de Jesus.
Desta multidão distingue-se outra, que apenas ouviu falar da ressuscitação de Lázaro, o
54
Mais sobre as citações da Escritura em M. MORGEN, loco citato (nota 49), e em M. J. J. MENKEN, Old
Testament Quotations, 79-97. Segundo ele, “Não temas” poderia provir também de Is 40,9, no contexto
do anúncio de Deus que qual pastor reuniria suas ovelhas (40,9-11).
55
Para a recepção de Zc 9,9 no Novo Testamento e em João, cf. S. HÜBENTHAL, Transformation, 111164; também A. KUBIS, Book of Zechariah.
Beutler D -28
que foi o suficiente para ela ir ao encontro de Jesus. E assim fecha-se o ciclo da
narrativa iniciada no v. 12.
12,19
Os fariseus que agora aparecem no palco ficam atuando no segundo plano. Os
sumos sacerdotes e os fariseus já haviam decidido, em Jo 11,47-53, a morte de Jesus. A
decisão de matar também Lázaro, segundo Jo 12,19, tinha sua origem nos sumos
sacerdotes. Aqui, agora, em 12,19, os fariseus aparecem como os atores principais. O
sucesso de Jesus lhes parece suspeito, indiscutivelmente, e constitui uma razão para sem
demora passar à ação contra Jesus. O julgamento deles é formulado como uma ironia
joanina: “todo mundo vai atrás dele”, ou, mais exatamente, “o mundo foi embora, atrás
dele”. Isso não é mera avaliação superficial, mas, segundo o evangelista, tem um
sentido mais profundo. O Messias que aqui vem à sua cidade se mostrará ser o salvador
do povo. É o que mostram os “gregos” dentre os peregrinos, que, já no versículo
seguinte, vão querer ver Jesus. A salvação deles está preparada.
III
Retrospectivamente reconhecem-se na história joanina da entrada de Jesus em
Jerusalém três acentos que são significativos para o publico leitor.
Em primeiro lugar, trata-se de um encontro pessoal com Jesus. Nenhum dos
sinópticos diz que a multidão “foi ao encontro” de Jesus, Também o sair da cidade é
uma feição própria do Quarto Evangelho. Trata-se decisivamente de estar com Jesus (cf.
tb. v. 17). Isso é mais importante do que estar presente no Templo.
Uma segunda mensagem do texto joanino é que só se pode entender corretamente
a dignidade messiânica de Jesus (no sentido da história tradicional da entrada segundo
os sinópticos) em conexão com sua iminente “glorificação” em sua morte e no seu
“enaltecimento” para junto do Pai 56.
Enfim, o texto joanino mostra que os líderes de Israel e os representantes da “filha
Sião” não precisam temer este rei. O senhorio de Jesus é suave. Ele não entra na cidade
montado num cavalo de guerra, nem é rodeado por um exército de soldados. O texto de
Zacarias que é citado realça explicitamente este aspecto. Só temem Jesus os que têm
medo de perder o povo, considerando-o como posse que devem conservar.
6. A chegada dos gregos (12,20-36)
20
Havia alguns gregos entre os que subiram a Jerusalém para adorar durante a
festa. 21 Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galiléia, e disseram:
“Senhor, queremos ver Jesus”. 22 Filipe conversou com André, e os dois foram falar
com Jesus. 23 Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser
glorificado. 24 Amém, amém, digo-vos: se o grão de trigo que cai na terra não morre,
ele fica só. Mas, se morre, produz muito fruto. 25 Quem ama sua vida, perde-a; mas
quem relegar sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida eterna. 26 Se alguém
quer me servir, siga-me, e onde eu estiver, estará também aquele que me serve. Se
alguém me serve, meu Pai o honrará. 27 Sinto agora grande angústia. E que direi? ‘Pai,
livra-me desta hora’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. 28 Pai, glorifica
56
Aqui João continua seus modelos sinópticos, cf. C.-P. MÄRZ, “Siehe, dein König kommt zu dir…”,
11.
Beutler D -29
o teu nome!” Veio, então, uma voz do céu: “Eu já o glorifiquei, e o glorificarei de
novo”.
29
A multidão que ali estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros
afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele”. 30 Jesus respondeu: “Esta voz que
ouvistes não foi por causa de mim, mas por vossa causa. 31 É agora o julgamento deste
mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, 32 e quando eu for enaltecido da
terra, atrairei todos a mim”. 33 Ele falava assim para indicar de que morte iria morrer.
34
A multidão disse-lhe: “Nós ouvimos, da Lei, que o Cristo permanecerá para
sempre. Como podes dizer que é necessário que o Filho do Homem seja enaltecido?
Quem é esse Filho do Homem? 35 Jesus então respondeu: “Por pouco tempo a luz está
entre vós. Caminhai enquanto tendes luz, para que não vos dominem as trevas. Quem
caminha nas trevas não sabe para onde vai. 36 Enquanto tendes a luz, crede na luz,
para que vos torneis filhos da luz”. Depois de lhes ter falado assim, Jesus foi embora e
escondeu-se deles.
I
Já o relato da entrada solene de Jesus em Jerusalém, em Jo 12,12-19, tinha o
caráter de um “relato de busca”. Era característico para a redação joanina deste episódio
o detalhe de que uma multidão de Jerusalém foi ao encontro de Jesus. Também a secção
que agora segue é um “relato de busca” 57. Alguns “gregos” vêm e querem ver Jesus.
Quanto ao gênero literário, os relatos de busca pertencem aos assim chamados
apotegmas ou “pronouncement stories”. Compõem-se de uma introdução narrativa e
uma palavra conclusiva do protagonista ou um comentário acerca do sucesso ou
fracasso da ação de busca. A história da entrada se limita, antes, numa nota sobre o
resultado diversificado do movimento de busca da multidão. No relato da vinda dos
gregos, ao contrário, ainda se reconhece claramente a palavra conclusiva (Jo 12,23-28a),
mesmo se a essa se juntem outros elementos narrativos e cenas de diálogo (Jo 12,28b36). Também aqui é feito, no final, o balanço do movimento de busca dos gregos e
também da atividade pública de Jesus em geral.
Narrativamente, a secção Jo 12,20-36 pode ser dividia em três partes, que cada
vez são encerradas por uma palavra de Jesus:
a) Os gregos vêm até Jesus: vv. 20-28a
Relato do narrador: 20-22
Palavra de Jesus: 23-28a
b) A voz do céu: vv. 28b-33
Relato do narrador: 28bc
Interpretação da voz pela multidão e por “outros”: 29
Interpretação da voz por Jesus: 30-32
Interpretação da interpretação de Jesus pelo narrador: 33
c) Pergunta e resposta: vv. 34-36
Pergunta da multidão: 34
Resposta de Jesus: 35.36a-c
Relato do narrador: 36de
57
Quanto ao gênero das histórias de busca, cf. a secção anterior e nota 50.
Beutler D -30
Merece atenção especial a parte central, onde aparece novamente a “multidão”
dos romeiros judeus. Ao contrário dos gregos, que “vêm” a Jesus, essa multidão
permanece neutra em relação a Jesus. Essa incerteza determina também a última parte
do texto. No fim ressoa um último apelo urgente de Jesus.
A sintaxe da secção mostra, novamente, orações subordinadas nos discursos de
Jesus (vv. 23-28a.32.35s.). Trata-se de um texto principalmente argumentativo. Ápices
aparecem em frases nominais (vv. 26.31.35). Estas se referem ao estar dos discípulos
junto de Jesus, mas também a sua presença junto aos homens até a hora decisiva. Esta é
realçada por duas orações finais conclusivas (vv. 35s.).
A construção do texto se mostra também pelas palavras-chaves e pelos campos
lexicais. Frequentes são: “dizer” (11x), “responder” (3x), e “ser/estar” (6x). Outros
verbos importantes: “vir” (érkhomai, 5x, ao lado de “aproximar-se” e “ir-se (embora)”,
ambos 1x). Parece estruturalmente significativo “glorificar” (doxázō, 4x) junto com
“honrar” (timáō, 1x), quanto ao sentido aparentados a “enaltecer” (hypsóō, 2x). Estes
verbos permeiam o texto inteiro, como adiante elucidaremos. Parecem constituir o “eixo
semântico” da secção. Os substantivos mais importantes da secção são “luz” (phôs, 4x),
“mundo” (kósmos, 3x), “voz” (phōnḗ, 2x), mas também “hora” (hṓra), palavra-chave
que se encontra três vezes e que emoldura a primeira subsecção.
Levando em conta as considerações da semântica, esta secção pode ser dividida
como segue:
a) Vv.
b) Vv.
c) Vv.
20-28a
21 (pros)e,rcomai
22
“
23
“ ,
w[ra
24
25
26
27
“ ,
w[ra
28
28b-33
28 $e;rcomai( fwnh,%
32
34-36
34
35
36 $avp%e,rcomai
doxa,zw
tima,w
doxa,zw
doxa,zw
u`yo,omai
u`yo,omai
Na primeira cena, o “vir” dos gregos a Jesus conduz ao “vir” do intermediário até
Jesus. O próprio Jesus observa que “veio” sua “hora”. Esta é a hora em que o Filho do
Homem deve ser “glorificado”. Com as palavras-chaves “vir”, “hora” e “glorificação”
encerra-se a subsecção nos vv. 27 e 28a. Na “hora” de Jesus é assumido que serve Jesus
(v. 26).
A segunda cena retoma o tema da “glorificação” do v. 27a e, a seguir, interpreta
este tema como “enaltecimento” (v. 32).
Com esta palavra-chave inicia-se a terceira e última cena. O termo encontra-se
novamente na boca da multidão do povo, no v. 34. Este pergunta pelo Filho do Homem,
porém não por sua glorificação, o que provoca a palavra conclusiva de Jesus (vv. 35s.).
Segue-se imediatamente o “ir embora” de Jesus (v. 36).
Beutler D -31
A partir destas análises introdutórias podemos agora seguir o texto em sua
sequência.
II
Os gregos vêm a Jesus (12,20-28a)
12,20-22
Os três primeiros versículos da narrativa preparam a cena. O cenário é Jerusalém,
isto é, o lugar ao qual se dirigiram os romeiros. O tempo é o da Páscoa iminente com
suas esperanças messiânicas. Muito provavelmente, os “gregos” em questão não são,
sem mais, os judeus de língua grega da diáspora, que em At 6,1 são chamados de
hellēnístai, mas antes “tementes a Deus” da diáspora (cf. os héllēnes de Jo 7,35). Que
eles querem “ver” Jesus é algo que surpreende neste lugar, mas um olhar para a pano de
fundo histórico-traditivo pode esclarecer isso (cf. infra).
Os “gregos” não se dirigem diretamente a Jesus, mas aos intermediários
próximos, que são Filipe e André. Estes desempenham papel importante também em
outros lugares do Quarto Evangelho (cf. 6,7s.), provavelmente porque têm nomes
gregos, pertencem aos primeiros chamados e provêm de Betsaida, junto ao lago de
Genesaré (cf. Jo 1,34s.), cidade do domínio do tetrarca Herodes Filipe, na região a leste
do Jordão, com influência da cultura grega. João, equivocadamente, a situa na Galileia,
região que se mostrou aberta a Jesus. Ambos os apóstolos eram aparentemente pessoas
de referência para os recém-convertidos da diáspora helenista.
12,23-24
Segundo todos os evangelhos a missão de Jesus se abre definitivamente aos
gentios depois de sua morte e ressurreição; assim também em João. Com a aproximação
dos “gregos”, Jesus, no v. 23, percebe também a vinda de sua “hora”, mas não
simplesmente como hora de sua morte, porém, como a “hora” da “glorificação do Filho
do Homem”. Esta “hora” já veio à tona no início do evangelho. Já nas bodas de Cana
ela foi mencionada em conexão com a “glorificação” vindoura (Jo 2,4.11). Ela volta a
ser mencionada em Jo 7,30; 8,20; 11,9. Depois, ela determina o evento da Paixão, em Jo
13,1; 17,1. O “enaltecimento” vindouro do Filho do Homem já foi mencionado em Jo
3,14 e 8,28, e é retomado em 12,32.34. É côngruo com a “glorificação” de Jesus ou do
Filho do Homem que o evangelista menciona em 7,39; 12,16, bem como, a seguir, em
12,28s.; 13,31s.; 17,1. O “vir” da “hora” do “Filho do Homem” lembra uma palavra do
fim da perícope de Getsêmani nos sinópticos (Mc 14,41 par.). Quanto à “glorificação”,
o uso lexicológico se torna claro à luz da tradição veterotestamentária subjacente, da
qual trataremos adiante.
A palavra do grão de trigo que deve morrer e assim produz muito fruto poderia
remontar às parábolas sinópticas do semeador em Mc 4,1-30. Cai na vista sobretudo a
interpretação da parábola do semeador em Mc 14,13-20 e a parábola da semente que
cresce por si em Mc 4,26-29. O que ali se referia à palavra de Deus, aqui se diz de
Jesus. Ele deve cair na terra e, deste modo, produzir muito fruto (quanto à formulação,
cf. Jo 15,2.8.16, onde aplicado aos discípulos).
12,25-26
As palavras sobre o seguimento nos vv. 25 e 26 retomam livremente Mc 8,35 par.
e 8,34 par. Em João, a disposição em servir Jesus inclui também a disposição em seguilo. No lugar de “renunciar a si mesmo” e “carregar a cruz” aparece, em João, o estar
Beutler D -32
junto de Jesus (v. 26). A isso acresce que o Pai “honrará” o servo fiel. Onde os
sinópticos58 escrevem “salvar a alma/vida” João diz, com mais clareza, “guardar a
alma/vida”, e isso, “para a vida eterna” (v. 25), em atitude de relegação (lit. “ódio”) da
vida corporal a favor da vida na fé, enquanto se está “neste mundo”.
Há quem, por razões teológicas, nega estes dois versículos ao evangelista e os
coloca na conta da redação (pós-)joanina. Pois, segundo o evangelista, a salvação deve
vir da fé em Jesus, enquanto aqui parece depender da disposição dos discípulos em
empenhar sua vida pela fé59. Tal visão, porém, não leva a sério a continuidade entre
João e os sinópticos, lê Paulo em João e não percebe que a disposição em assumir as
mais exigentes consequências da fé pertence totalmente à substância do Quarto
Evangelho. Um exemplo dentre muitos é, neste sentido, a história do cego de nascença,
que, por causa da confissão de Jesus, assume ser excluído da sinagoga (Jo 9,34). A
mesma coisa mostra a palavra de Tomé: “Vamos nós também para morrermos com ele”
(Jo 11,16) 60.
12,27-28a
Novamente o pensamento volta dos discípulos para Jesus: sua “alma” está
“perturbada”. Tal “perturbação” de Jesus já fora mencionada com relação a sua chegada
ao túmulo de seu amigo Lázaro (Jo 11,34). Voltará a ser mencionada na sala da ceia (Jo
13,21). Depois, Jesus exortará seus discípulos para que o coração deles não se deixe
perturbar (Jo 14,1,27). Como já anotamos junto a Jo 11,33, está por trás desta
formulação o Sl 42/43, no refrão do qual (42,6.12; 43,5) o orante se firma em não deixar
que sua alma “se perturbe”, antes de admitir que sua “alma está conturbada” (Sl 41,7
LXX). Mc 14,34 parece retomar o mesmo versículo, quando Jesus diz “minha alma é
conturbada até a morte”. Isso mostra uma conexão entre Jo 12,27s. e a tradição de
Getsêmani, como há muito tem sido observado61. A cena da oração de Jesus no
Getsêmani falta em João, mas pode ter sido substituída por Jo 12,27s. Também no
Evangelho segundo João Jesus fica perturbado face a sua morte iminente. Ele poderia,
como faz na tradição sinóptica, orar para ser salvo deste perigo ameaçador. É o que ele
mesmo evoca, com uma palavra que parece provir de Sl 6,5 62. Contudo, o que ele pede
é outra coisa.
Jesus não chegou a essa hora da provação para ser novamente retirado dela, mas
para perseverar e assim permanecer fiel à sua missão. É assim que ela se tornará a hora
em que o Pai será por ela glorificado e Jesus mesmo, ao mesmo tempo, experimentará
sua glorificação. Este será também o tema condutor no início dos discursos de adeus (cf.
Jo 13,31s.; cf. 17,1: “Eu glorifiquei teu nome” ).
A voz do céu (12,28b-33)
12,28b-29
58
Cf. U. SCHMIDT, Zum Paradox. Ele mostra que a dupla sentença do “perder” e “encontrar” a vida, que
parece remontar a Jesus, originalmente não aponta necessariamente para o martírio. A expressão recebe
este sentido só no contexto dos evangelhos, inclusive o de João.
59
Cf. J. BECKER II 466-468.
60
J. BECKER (II 419f.) não nega que esta palavra seja do evangelista.
61
Cf. R. E. BROWN, Incidents; R. SCHNACKENBURG II 484s.
62
Já neste salmo, v. 4, lemos: “minha alma está profundamente perturbada” (kai. h` yuch, mou evtara,cqh
sfo,dra).
Beutler D -33
A oração de Jesus é atendida in continenti, por uma voz do céu, na qual o próprio
Pai toma a palavra. Tais vozes celestes pertencem ao imaginário bíblico e do judaísmo
incipiente (no qual se fala na bat qol). Nelas, Deus mesmo é quem toma a palavra. Nos
sinópticos esta voz ressoa de modo que todos a possam ouvir no batismo de Jesus, no
início de sua missão terrestre, quando Jesus é proclamado “Filho amado” , já então com
alusão ao Servo de Deus (Mc 1,11 par.); e, também, na transfiguração de Jesus, já no
contexto amplo da Paixão, entre a primeira e a segunda predição da Paixão (Mc 9,7
par.). No quadro da tradição do Getsêmani encontra-se em Lucas o motivo do anjo que
oferece a Jesus em agonia força e confiança (Lc 22,43). Aqui em João Deus faz ressoar
uma voz que atende a prece de Jesus. Que o Pai glorifica o Filho é um pensamento que
já foi pronunciado em Jo 8,54. Jesus o repetirá nos seus discursos de adeus em Jo 13,31
e, na oração de adeus em Jo 17,1.5, o fará objeto de sua prece. A glorificação de Jesus
pelo Pai se liga à “hora” de Jesus (cf. Jo 12,23; 17,1), e esta “hora” é que veio agora
para Jesus. Se se diz que a glorificação de Jesus, ao mesmo tempo, ainda se faz esperar,
é porque se pensa na plena realização desta hora na paixão, morte e ressurreição de
Jesus, em termos joaninos: no seu “enaltecimento” na cruz e para junto do Pai.
12,29
A voz do céu não pode ser compreendida sem a disposição da acolhida na fé. A
“multidão que estava aí” (cf. Jo 11,42) a interpreta de duas maneiras, mas não capta sua
realidade. Como trovão, a voz lembra provavelmente o evento do Sinai (cf. Ex
19,16.19), como voz do anjo aproxima-se bem mais da realidade. Os comentadores
apontam aqui para a consolação de Jesus no Getsêmani pelo anjo, segundo Lc 22,43 63.
Mas mesmo assim o sentido da mensagem celeste continua aberto.
12,30-32
Este sentido só pode ser compreendido e interpretado por Jesus. Este interpreta a
voz do céu em seu significado para este mundo e seu dominador, e também em seu
significao salvífico para todos. O movimento do discurso se desloca do tema da
“glorificação”, na voz celestial, para o do “enaltecimento” de Jesus no v. 34. Este tema
determinará os últimos versículos da secção.
A voz celestial, na interpretação de Jesus, não significa meramente uma
mensagem de salvação, mas o anúncio de um determinado tempo: agora acontece o
julgamento deste mundo, seu dominador está sendo lançado fora. Na medida em que
não se trata do julgamento que cada um deve enfrentar, mas do julgamento sobre “este
mundo” e seu dominador (cf. Jo 14,30; 16,11), este anúncio do tempo se mostra uma
mensagem salvífica64. O “agora” da conturbação de Jesus (v. 27) transforma no “agora”
de sua glorificação iminente (cf. Jo 13,31) e da salvação da humanidade.
Novamente o anúncio da salvação é conjugada no futuro. A “hora” de Jesus, o
“agora” da salvação, se concretiza no momento de seu “enaltecimento da terra” (para o
“enaltecimento” do Filho do Homem, cf. já Jo 3,24; 8,28). A expressão permanece
conscientemente aberta. Não escapará, aos futuros leitores, sua referência ao
enaltecimento de Jesus na cruz. Ali, enaltecido na cruz, Jesus atrairá todos para si. A
63
Remetem a esta relação R. KÜHSCHELM, Gericht, 135, e C. CLIVAZ, “D’autres disaient”, 174-177. Esta
autora aponta aqui traços que remontam a Zc 1–2 e, para frente dos evangelhos, representações de uma
possessão de Jesus por anjos, segundo textos “ebionitas”, no caminho do judaísmo antigo e do
cristianismo em direção à gnose.
64
J. DENNIS, The “Lifting Up”, 690, vê na vitória do Filho do Homem sobre Satanás, em João e nas
parábolas de Henoc, uma tradição apocalíptica comum.
Beutler D -34
formulação faz pensar no discurso do pão da vida (Jo 6,44), e o universalismo salvífico
que ali se expressa permeia o Evangelho segundo João inteiro (cf. Jo 1,9; 3,16; 4,42;
12,19) 65. Aqui, porém, chega à sua expressão insuperável.
12,33
Para todos os que não tiverem entendido a alusão, o narrador explicita o sentido
da palavra enigmática de Jesus: trata-se do “enaltecimento” de Jesus na cruz. Fica
aberto saber até que ponto o suposto círculo dos ouvintes de Jesus, composto da
“multidão”, pode ter chegado a essa compreensão. Via de regra, as palavras e ações de
Jesus que antecipam sua morte e ressurreição só se tornam acessíveis depois da Páscoa,
e isso, para seus discípulos (cf. Jo 2,22; 12,16). O círculo dos discípulos se abrirá, então,
para a comunidade leitora.
Uma pergunta e uma resposta (12,34-36)
12,34
Partindo da “glorificação” de Jesus, o pensamento se deslocou para o
“enaltecimento”. Mas a multidão fica se perguntando quem é aquele que deve ser
“enaltecido”. Se ele for o Messias, não poderá ser levado embora, mas segundo Jesus o
Filho do Homem será enaltecido. Mais uma vez supõem-se aqui leitores cientes. Podese supor o conhecimento de uma convicção acerca da permanência do Messias. Ora, a
equiparação do Messias ao Filho do Homem joanino já pressupõe a linguagem e o
ideário do Quarto Evangelho, e que exatamente este Filho do Homem será enaltecido é
o que se pressupõe a partir de Jo 3,14; 8,28.
12,35-36
Em sua resposta, Jesus não entra na questão especulativa acerca do Messias, do
Filho do Homem e de seu enaltecimento. Essas questões parecem desviar da
necessidade de tomar, agora, a decisão da fé. Assim, Jesus lembra, como já no v.31,
pela última vez e com extrema ênfase, esta hora da decisão. A palavra-chave é aqui o
termo “luz”, usada nada menos que cinco vezes. Jesus, que é essa luz, estará entre seus
ouvintes por pouco tempo. Isso já foi dito em Jo 7,33. Quando Jesus, nos discursos de
adeus, em Jo 13,33, retomar essa palavra, só os discípulos estarão presentes para ouvila. O prazo se esgotou.
A metáfora da luz tem diversos lados. Pode referir-se à luz do dia – portanto, a um
prazo curto – ou ao dia, como em Jo 9,4s. Mas pode significar também o esclarecimento
da existência pela palavra de Jesus, como é o caso geralmente nos outros textos do
Evangelho segundo João, na linha do Prólogo (Jo 1,4s.9). Neste caso, o contrário são as
trevas. Se em Jo 1,5 o sentido era que as trevas não acataram/compreenderam a luz,
agora em 12,35 o sentido é que as trevas não devem dominar a luz. Este perigo é
eliminado pela decisão de fé dos ouvintes de Jesus. Esta decisão não significa
simplesmente um “sim” intelectual a uma mensagem recebida, mas uma reconfiguração
da existência inteira, em termos bíblicos: um novo “caminhar” (peripateîn).
Ao apelo de Jesus une-se uma promessa: quem se compromete com ele, torna-se
filho da luz. Deve-se pensar aqui no movimento circular que já foi evocado no Prólogo:
a todos os que, por seu lado, já nasceram de Deus, é prometido tornarem-se filhos de
Deus, na fé (Jo 1,12s.).
65
Cf. J. BEUTLER, “So sehr”.
Beutler D -35
Depois dessas palavras conclusivas de Jesus, ele vai embora e esconde-se de seus
ouvintes. Esta notícia lembra 8,59, onde Jesus se põe a salvo do apedrejamento iminente
e deixa o recinto do Templo. Lembra também 10,39, onde Jesus, depois de mais uma
ameaça, se retira definitivamente do Templo. Aqui em Jo 12,36 Jesus se retira apenas da
multidão, deixando-a com a pergunta de como se decidir em relação a ele.
O “enaltecimento” e a “glorificação” de Jesus se mostraram os temas condutores
desta secção. Como já observamos antes, ambos os temas parecem remontar ao início
do quarto cântico do Servo, em Is 52,13 LXX66. Ali o profeta exclama: “Eis, meu servo
compreenderá, será enaltecido e grandemente glorificado” (u``ywqh,setai kai.
doxasqh,setai sfo,dra). Encontramos ambos os verbos permanentemente e em função
estruturadora na secção inteira. Pelo que parece, João pôs ambos os enunciados
fundamentais no centro de sua cristologia e também de seu discurso na secção aqui em
pauta. Assim, ele designa Jesus como o Servo Sofredor de Isaías. Que esta referência só
foi percebida na exegese recente deve-se ao fato de que o evangelista não usa o título de
Servo de Deus, mas de Filho do Homem. Ele encontrou este título nos três anúncios da
Paixão em Mc 8,31s. par., 9,31 par. e 10,33s. par. Na fase da cristologia–
provavelmente tardia–que o Evangelho segundo João representa, era aparentemente
possível permutar os diversos títulos cristológicos ou conectá-los entre si. Aliás, em
todo o contexto de Jo 12,20-43 pode-se perceber forte influência de Isaías.
Na secção seguinte, Jo 12,20-43, o livro de Isaías tem um papel-chave, como logo
mostraremos. Segundo João, o fato e a razão da incredulidade dos ouvintes de Jesus
estão ancorados e preditos nesse livro.
Uma vez constatada a influência de Isaías sobre João 12,20-43 (especialmente de
Is 52,13–53,12), parece lícito perguntar, diante deste pano de fundo, por que em Jo
12,20 se diz que os gregos querem “ver” Jesus67. A expressão não se entende
automaticamente; antes esperar-se-ia um termo como “encontrar” ou “ouvir”. Porém,
lendo Is 52 atentamente, o olho cai sobre o v. 52,15. Aí se diz que povos e reis calarão a
boca de admiração ou espanto. Segundo o texto original, isso será consequência de que
eles verão algo que nunca viram e ouvirão algo que nunca ouviram. O pronome relativo
asher se refere, então, ao objeto do ver e ouvir. A Septuaginta relaciona o pronome com
pessoas que nunca viram ou ouviram algo como o destino do Servo de Deus; ela traduz
(de modo gramaticalmente correto): “pois aqueles a quem nada foi comunicado a seu
respeito verão, e os que não ouviram compreenderão” (o[ti oi-j ouvk avvnhgge,lh peri. auvtou/
o;yontai kai. oi] ouvk avkhko,asin sunh,sousin). Se partirmos da suposição de que João
tinha em mente antes o texto grego que o texto hebraico, pode-se supor que em Jo 12,20
ele retoma Is 52,15 LXX. Em todo esse contexto, ele tinha na mente o livro de Isaías e,
especialmente, o quarto cântico do Servo. Ele interpretou então o versículo de Isaías
como anúncio da salvação para aqueles que ainda não ouviram nada de Jesus, o Servo
de Deus, e ainda não o viram. São esses precisamente os gregos que, em Jo 12,20,
“querem ver Jesus”. Cumpre-se, assim, o desejo deles.
Uma confirmação desta interpretação está no fato de que Paulo cita, no final da
carta aos Romanos, em Rm 15,21, o versículo em questão. Paulo procura junto aos
romanos compreensão para o fato de ele ainda não ter realizado seu propósito de visitálos. Ele se vê incumbido da missão em todo o mundo grego, até na Ilíria, em toda parte
66
Para o que segue, cf. J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen; D. C. OIELOSI, Servant of God, esp. 242-255.
Para o que segue, cf. novamente J. BEUTLER, Greeks; ID., Griechen; H. J. LEE, “Signore, vogliamo
vedere Gesù”, esp.169-172.
67
Beutler D -36
onde a Palavra ainda não foi anunciada. Ele foi incumbido dessa missão “para que os a
quem ainda não foi anunciado a seu respeito (de Cristo) vejam e os que não ouviram
compreendam”. O texto é significativo também para a compreensão de Jo 12,20. Mostra
que Is 52,15 LXX podia ser utilizado em sentido missionário nas primeiras
comunidades cristãs. A vinda dos gregos para “ver” Jesus poderia receber corroboração
deste lado.
III
A secção em pauta leva a termo o anúncio de Jesus no meio de seu povo. Na
secção imediatamente seguinte se fará um breve balanço crítico. Na sua maioria, Israel
não aceitou a mensagem, mas ao mesmo tempo abre-se a salvação para os gentios. Vêm
os gregos para ver Jesus. O preço dessa salvação será a morte do Servo de Deus. Na
cruz atrairá todos a si.
Leitoras e leitores do mundo das nações verão anunciada aqui a própria salvação.
Perceberão, ao mesmo tempo, o convite a relegar, com ele, a própria vida, para ganhá-la
de verdade. O grão de trigo que cai na terra não fica só. Dará fruto. Assim como o Servo
de Deus experimenta a rejeição, mas nela e partir dela é enaltecido e glorificado, assim
também aquele que segue Jesus até na desonra e morte, receberá do Pai honra e vida
eterna.
7. Retrospecto da obra de Jesus e último apelo à fé (12,37-50)
37
Apesar de ter feito, à vista deles, tantos sinais, não creram nele. 38 Foi assim
que se cumpriu a palavra do profeta Isaías, que diz: “Senhor, quem acreditou na nossa
mensagem? E o braço forte do Senhor, a quem se revelou?” 39 Eles não podiam crer,
conforme diz também Isaías: 40 “Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, de
modo que não veem com seus olhos, nem compreendem com seu coração, nem se
convertem para que eu os cure”. 41 Isaías disse isso porque viu a glória de Cristo e
profetizou a seu respeito. 42 No entanto, mesmo entre os chefes, muitos passaram a crer
nele. Mas não o confessavam, por causa dos fariseus, para não serem expulsos da
sinagoga. 43 Preferiram a glória dos homens à glória de Deus.
44
Jesus mesmo exclamou: “Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas
naquele que me enviou. 45 Quem me vê, vê aquele que me enviou. 46 Eu vim ao mundo
como luz, para que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. 47 Se
alguém ouve as minhas palavras e não as guarda, eu não o julgo, porque vim não para
julgar o mundo, mas para salvá-lo. 48 Quem me rejeita e não acolhe as minhas palavras
já tem o seu juiz: a palavra que eu falei o julgará no último dia. 49 Porque eu não falei
por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, ele é quem me deu um mandamento para o
que devo dizer e falar. 50 E eu sei: o seu mandamento é vida eterna. Portanto, o que eu
falo, de acordo com o que o Pai me disse é que o falo”.
I
O Evangelho segundo João conhece uma série de “relatos de busca”. Um primeiro
exemplo é o relato da vocação dos primeiros discípulos (Jo 1,35-51). Outros textos
desse tipo são as narrativas dos diálogos de Jesus com Nicodemos (3,1-21) e com a
samaritana (4,1-26). No contexto próximo de Jo 12, a forma joanina da entrada em
Jerusalém (12,12-19) tem traços de tal “relato de busca”. Pertence expressamente a este
gênero o texto acerca dos gregos que vieram para ver Jesus (12,20-36), história que
Beutler D -37
parece ser muito significativa para o evangelista, apesar de seu final aberto. À abertura
dos “gregos” para Jesus corresponde, negativamente, uma secção que fala da recusa dos
“judeus” de crer em Jesus ou de confessar abertamente a fé nele (12,27-43). Mas seguese imediatamente um último apelo de Jesus à fé (12,44-50), para não terminar nessa
constatação negativa.
Há estudiosos que procuram descrever as camadas literárias na secção 12,37-43.
Muitas vezes, a referência aos sinais de Jesus que deveriam produzir a fé, segundo Jo
12,37s. junto com 20,30s., é considerada como o final da hipotética “fonte dos
sinais”68. Esta fonte intentaria levar à fé em Jesus na base dos sinais. Outra opinião
atribui a inteira secção 12,37-50 à redação joanina69; outra, só os vv. 44-50 70. Segundo
outra opinião ainda, os vv. 12,37-43* proviriam de um hipotético escrito básico, que,
nos vv. 37s. teria utilizado a fonte dos sinais71, enquanto os vv. 39 ss seriam obra do
evangelista. Porém, antes de dividir assim o texto em fontes e camadas, recomenda-se
examiná-lo e explicá-lo na forma em que se nos apresenta. E, quanto mais sua
construção parecer intencional e inteligente, tanto mais as teorias de camadas
aparecerão como supérfluas.
Quando se procura a estrutura desta secção, um olhar na sintaxe pode ser útil. Nos
vv. 37, 39 e 42 ressaltam-se os imperfeitos, em contraste com o aoristo narrativo que é
usado em outros lugares. No v. 37 constata-se que os ouvintes de Jesus não acreditam
nele, embora tenha operado diante deles tantos grandes sinais. No v. 39 é apontada a
razão desse fato: não creram em Jesus porque não podiam crer. No v. 42 constata-se
que, daqueles que chegaram a crer em Jesus, muitos não tiveram a coragem de confessar
publicamente essa fé, porque amavam mais a honra humana que a honra que vem de
Deus. Assim percebe-se a estrutura básica da secção até o v. 43. A partir do v. 44
encontra-se um discurso contínuo de Jesus, que igualmente é introduzido no aoristo.
Neste discurso prevalece, porém, o tempo presente, com eventual recurso ao aoristo
narrativo ou ao futuro.
Para a estrutura até o v. 43 colaboram também as referências ao profeta Isaías.
Confirmam a divisão que acima sugerimos com base nos três imperfeitos dos vv. 37, 39
e 42. Uma referência a Is 53,1 LXX no v. 38 fundamenta o fato de que muitos não
chegaram a crer em Jesus. Que eles não eram capazes disso, no v. 40 é fundamentado
por uma referência a Is 6,10. O nome do profeta é repetido no v. 41, onde se encontra
também uma fundamentação teológica para sua palavra profética. Assim vemos como
solidários os vv. 37-38, os vv. 39-42 e os vv. 42-43: o fato da incredulidade, sua razão e
a desistência de muitos na confissão dessa fé. O tema da “honra/glória” é tocado no v.
41 e volta mais duas vezes no v. 43, de modo que podemos atribuir ao v. 41 um papel
de dobradiça entre a segunda subsecção e a terceira, que é final. O tema do “crer” se
encontra central nas três subsecções e confere ao conjunto sua estrutura semântica.
Conduz então à secção conclusiva, 12,44-50, onde continua tendo um papel dominante,
embora semanticamente redirecionado.
68
Assim R. BULTMAN, ad locum, acompanhado por muitos autores.
Assim E. HAENCHEN, ad locum.
70
Assim M.-É. BOISMARD, R. SCHNACKENBURG, J. BECKER e R. KÜHSCHELM, Verstockung.
71
Neste sentido G. RICHTER, Studien, 397, 400.
69
Beutler D -38
II
Retrospecto sobre a obra de Jesus (12,37-43)
12,37-38
Desde o cap. 5, sempre de novo encontramos notícias das diversas reações à
palavra de Jesus por parte dos ouvintes judaicos ou dos adversários. No caso em pauta,
precede o desejo dos “gregos” de ver Jesus (Jo 12,20-36). Este desejo conduziu já a uma
exortação insistente de Jesus para não perder o momento oportuno para crer nele. Essa
exortação pressupõe mais uma vez os interlocutores judaicos de Jesus, que fazem
perguntas acerca da relação de Messias e Filho do Homem (v. 34). As palavras
conclusivas até o v. 36 diziam, portanto, respeito a eles.
Ainda que no v. 37 não se diga quem são as pessoas que, apesar dos sinais, não
acreditam em Jesus, pensa-se nos ouvintes judaicos, que foram mencionados por último
anteriormente. Constata-se enfaticamente que “eles” não creram em Jesus, mas cabe ter
em vista que, mesmo assim, alguns creram. Isto se constata também no v. 42, onde se
trata da confissão da fé. No v. 37 trata-se, portanto, da maioria dos ouvintes judaicos de
Jesus e certamente do grupo de liderança (ao menos em sua maioria), que sempre de
novo se opuseram às afirmações de Jesus e já decidiram a sua morte (cf. 11,47-53).
Os “sinais” de Jesus, que poderiam ter levado a crer nele, encontraram na
ressuscitação de Lázaro (Jo 11,1-44) seu ponto alto. Não são o único caminho à fé, mas
são reconhecidos e apresentados pelo evangelista como caminho legítimo à fé (cf. Jo
2,11.23; 3,2; 6,2.14.26; 12,18; 20,30).
Quando se constata a falta de fé dos ouvintes de Jesus no tempo imperfeito,
sublinha-se que não se trata de casos isolados, mas de uma decisão fundamental,
prolongada no tempo.
João vê esta falta de fé prenunciada em Isaías. Ele cita Is 53,1, na versão da
Septuaginta. Se estiver certa nossa hipótese de que, já em Jo 12,20, o desejo dos gregos
de “ver” Jesus se desenvolveu de Is 52,15 LXX, o evangelista teria aqui, pela segunda
vez, feito referência ao quarto cântico do Servo, na forma em que era lido e
compreendido na comunidade de língua grega. Na Septuaginta, Is 53,1 começa com a
invocação “Senhor”, que falta no original hebraico. Mostra-se assim, com toda a
clareza, que o evangelista se refere à Septuaginta.
Também Paulo alega Is 53,1 na forma da Septuaginta, em relação à incredulidade
de Israel e à salvação esperada segundo Rm 9–11. Também aqui, em Rm 10,16, temos
uma aplicação cristológica da palavra do quarto cântico do Servo.
A forma em que Jo 12,38 introduz a citação de Isaías encontra-se no Evangelho
segundo João pela primeira vez. Isso se explica aparentemente porque pela primeira vez
uma palavra do AT é citada no contexto imediato da Paixão72. Tais “citações de
cumprimento” (da Escritura) encontram-se na tradição sinóptica em primeiro lugar no
contexto do relato da Paixão e, a partir daí, podem ter encontrado o caminho até o relato
da Paixão em João. Se, na parte narrativa do Quarto Evangelho até aqui, a “Escritura”
servia sobretudo para legitimar a afirmação de Jesus de ter sido enviado por Deus, no
que segue o evangelista vê a Paixão de Jesus e numerosos detalhes dela ancorados na
Escritura. Como nos sinópticos, também aqui reage-se contra a impressão de que a
72
Cf. C. A. EVANS, The Function; ID., Quotation Formulas.
Beutler D -39
Paixão de Jesus tenha escapada ao saber e à vontade de Deus. No caso aqui não se trata,
porém, de um detalhe da Paixão, mas da rejeição de Jesus como tal por seu povo ou
pelos representantes deste. Neste sentido, nosso texto encontra-se entre a tradição
sinóptica e a visão joanina.
12,39-41
Que os ouvintes judeus nem podiam crer, o evangelista amarra isso a outra
palavra de Isaías: Is 6,10. Esta palavra (ou Is 6,9s.) encontra-se também nos sinópticos,
em Mc 4,11s.; Mt 13,14s.; Lc 8,10 e At 28,26s. Em Mateus e em Atos é citada na forma
da Septuaginta. Marcos oferece um texto abreviado, que tem em comum com a
Septuaginta o fato de sugerir, mediante o passivum divinum, que Deus é aquele que
“endurece” os corações. Esta tendência encontra-se reforçada em João (onde Deus
aparece diretamente como o sujeito do cegar e do endurecer). No texto original de Isaías
é o profeta que é convocado para “endurecer” o povo. Provavelmente a palavra de Isaías
pertencia a uma coleção de testemunhos escriturísticos veterotestamentários com as
quais a comunidade cristã primitiva procurava esclarecer para si a incredulidade de
Israel. A alusão de Rm 11,8 situa-se neste contexto. Nota-se que João não menciona os
ouvidos nem o ouvir. Isso pode-se explicar pelo fato de que, já anteriormente, no v. 38,
ele falou da mensagem (akoḗ) na citação de Is 53,1.
No v. 41, o evangelista introduz um novo conceito-chave: a “glória”. Segundo ele,
Isaías viu a “glória” de Cristo. Para a interpretação da visão da vocação de Isaías,
segundo a qual o profeta viu a “glória” do Senhor, pode ser alegado o ensinamento
joanino de que aquele que vê Jesus, vê também o Pai (Jo 1,49). O profeta viu, portanto,
já então, a glória de Cristo (o que lembra Abraão que, segundo Jo 8,56, viu os dias de
Jesus).
12,42-43
Também o seguinte breve conjunto de versículos conduz ao tema da
“honra/glória”. Imediatamente fica claro que não todo o povo judeu se fechou à fé em
Jesus. Até “alguns dos chefes” chegaram a crer em Jesus, o que inclui que também
outros membros do povo de Deus se abriram à fé em Jesus. Esses membros da classe
superior, provavelmente do Sinédrio, tinham sido mencionados antes, aparecendo
também em Jo 7 (v. 48). Nicodemos era um deles, e ele mostra ao longo do evangelho
que ele podia também responder por esta fé (Jo 3,1; 7,50; 19,39). Dentro do grupo do
Sinédrio os fariseus aparecem como os oponentes mais decididos de Jesus. Por medo
deles e do perigo de serem excluídos da sinagoga por iniciativa deles, muitos dos
conselheiros aparentemente não arriscavam confessar sua fé em Jesus. Já no contexto da
cura do cego de nascença tinha sido mencionada essa exclusão da sinagoga (cf. Jo
9,22.34; o tema volta em 16,2). Na visão do evangelista realiza-se aqui uma decisão
fundamental: ou se busca a “honra/glória” de Deus, ou aquela dos homens73. Também
disso já se tratou (cf. Jo 5,41-44; 7,18). Para a comunidade leitora de João este tema é
de importância decisiva. Provavelmente já em situação de perseguição, ela é convocada
a confessar intrepidamente a fé em Jesus, não importa quais forem as consequências74.
Derradeira exortação à fé (12,44-50)
12,44-45
73
74
Cf. J. BEUTLER, Die Ehre Gottes.
Cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
Beutler D -40
A secção que leva à história da Paixão no Evangelho segundo João não termina na
constatação da incredulidade de grande parte do público de Jesus ou da falta de
disposição em confessar a fé, mas numa última exortação de Jesus à fé. Por um lado
parece inserido sem tempo nem lugar, mas do outro lado sua inserção no fluxo narrativo
parece fazer sentido e de muito peso para o público leitor aqui75.
A introdução desta breve secção enfatiza que Jesus “exclamou” as palavras que se
seguem. O termo utilizado (ékraxen) significa um apelo pronunciado com ênfase
extrema. Já foi utilizado duas vezes no contexto do relato da atuação de Jesus na festa
das Tendas (Jo 7,28.37) e e apareceu pela primeira vez no Prólogo, remetendo ao
testemunho do Batista (Jo 1,15). Em todos os casos trata-se de palavras de muito peso.
No interior do discurso de Jesus percebe-se um movimento que vai desde
enunciados dirigidos aos que creem em Jesus (vv. 44-45) a enunciados sobre Jesus
mesmo (vv. 46-48) e, daí, aos enunciados conclusivos sobre a missão de Jesus a partir
do Pai, que confere à decisão em relação a ele o peso maior (vv. 49-50).
Primeiro vem a dupla palavra sobre os que creem em Jesus e sobre os que o veem.
Fé em Jesus e fé em Deus vão de mãos dadas para o evangelista, como mostra sua
palavra no discurso de adeus (14,1). Do mesmo modo, o ver Jesus e o ver o Pai vão
juntos, como se afirma igualmente no cap. 14 (14,9). Por um lado, o “ver” em João – o
ver dos sinais – pode conduzir à fé (cf. supra vv. 37s.); por outro lado há um ver que
nasce da fé e que permite ver em Jesus o Pai, como se exprime aqui. Não é possível
saber se aqui ainda se pensa no desejo dos “gregos” de “ver” Jesus (12,20).
12,46-48
Assim como nas palavras “eu sou”, acrescentam-se aqui uma promessa e uma
ameaça. O início do grupo de versículos que agora segue lembra a palavra de Jesus em
8,12; “Eu sou a luz do mundo”, e provavelmente faz referência a isso (cf. tb. 9,5). A
metáfora da luz para Jesus como revelador é familiar às leitoras e leitores do Evangelho
segundo João desde o Prólogo (Jo 1,4s.7.9). Significa a iluminação da existência e a
porta para a vida, como se dirá logo mais (v. 50). Já no Prólogo as trevas opõem-se à luz
(Jo 1,5). Onde, depois, o tema é retomado, aparece também o tema do julgamento (Jo
3,19-21). Assim Jo 12,44-50 pode ser lido como uma síntese da mensagem de Jesus até
esta hora76. Jesus não veio para julgar, mas para salvar (cf. Jo 3,17). Mas quem nega
Jesus e sua mensagem será julgado pela palavra de Jesus “no último dia”. Novamente
encontram-se aqui enunciados escatológicos referentes ao presente, ao lado de outros
que se referem ao futuro. Como em Jo 5,24-29, seria difícil ver aqui interpolações da
“redação eclesial”; é possível compreender os enunciados de modo complementar. A
salvação e o julgamento por Jesus agora encontram sua plenitude e confirmação na
salvação e no julgamento futuros.
12,49-50
A palavra de Jesus é decisiva para a salvação e a condenação porque lhe foi dada
e ordenada pelo Pai; ele não a fala por si mesmo (cf. Jo 8,28). A palavra de que Jesus foi
incumbido é, exatamente, um “mandato” que o Pai lhe confiou. Este tema será
arrematado a seguir nos discursos de adeus, quando Jesus, ao entrar no sofrimento, diz
que ele age assim como o Pai lhe mandou (Jo 14,31). A palavra que o Pai encomendou
75
76
Este sentido é destacado também por J. BECKER II 481.
Assim, e.o., R. KÜHSCHELM, Verstockung, elaborando a unidade literária e teológica da secção.
Beutler D -41
a Jesus significa vida eterna. Com esta promessa de salvação termina a última exortação
de Jesus à fé antes do relato de sua paixão, morte e ressurreição.
III
Ambas as metades da secção Jo 12,37-50 se completam. Não se fica parado na
constatação de que grande parte do auditório de Jesus lhe negou a fé ou não teve a
coragem de confessar uma fé nele. A última palavra pertence a Jesus mesmo, o qual,
acima de tempo e espaço, ainda uma vez, exorta expressamente a crer nele. Exatamente
aqui, o Evangelho segundo João mostra-se texto, ou seja, algo que não quer ser mero
relato, mas instrumento da comunicação entre o autor e o público leitor.
Tanto na primeira como na segundo subsecção apresenta-se o problema da
predestinação divina e da liberdade humana. É difícil explicar a leitoras e leitores de
hoje que Deus pessoalmente endurece os corações das pessoas, de modo que não
possam chegar à fé. Este problema volta na segunda subsecção, na forma do dualismo
de luz e trevas no qual o ser humano é envolvido. Quanto à representação do
endurecimento observe-se que a Bíblia, via de regra, não distingue claramente entre
permissão divina e predestinação divina. Tudo o que acontece, em última instância, é
ancorado na vontade de Deus; nesta questão, a relação entre determinação divina e
liberdade humana não se resolve especulativamente. Antes, os enunciados referentes à
predeterminação divina e os que se referem à livre decisão humana se justapõem de
modo a se completarem. Isso vale também para o dualismo de luz e trevas na segunda
metade da secção. Falou-se de um “dualismo de decisão” em João. Quando alguém
encontra a salvação, isso é totalmente obra de Deus, mas não sem a colaboração da
pessoa chamada à fé. A meta última da obra salvífica divina é a “salvação do mundo”
(v. 47).
Beutler D -42
O ADEUS DE JESUS (13,1–17,26)
Em Jo 13,1 inicia-se uma secção do Evangelho segundo João que é caracterizada
pelos discursos de despedida de Jesus. Estes constituem uma peculiaridade do Quarto
Evangelho, mesmo considerando que em Lc 22,21-38 se apresenta um texto paralelo,
mais curto e talvez precursor. Num sentido mais amplo, a inteira secção Jo 13,1–17,26
pode ser intitulada “Discursos de despedida de Jesus”; no sentido restrito, porém, esta
designação cabe somente para a secção 13,31–16,33. Precede a narrativa do lava-pés, Jo
13,1-20, seguida pela notícia do anúncio da traição, Jo 13,21-30. A oração de Jesus em
Jo 17, temática e linguisticamente falando, está em continuidade com os discursos de
despedida e pode ser incluído neles no sentido amplo.
Até agora se discute até que ponto nossa secção apresenta um texto unitário. Para
começar, pode-se apontar a influência sinóptica no cap. 13, e não só ali. De outras
hipóteses de fontes prescindimos aqui. Tampouco assumimos as hipóteses de
reordenação, que procuram melhorar a sequência lógica do texto1. Na visão deste
comentário se percebe um nível em que partes do texto aparecem como “relidas” e
atualizadas para uma nova situação de leitura. Este modelo da “releitura” não procura a
intervenção de diversos autores2, mas vê a presença de diversos textos ligados entre si
no sentido de que um texto anterior conduz a um texto ulterior, em que o anterior é
“lido de novo”3. Na análise que se segue, supõe-se que os capítulos 15–17 continuam os
capítulos 13–14 em nova leitura, sendo que sobretudo Jo 14 é continuado por Jo 16,4e33, com Jo 15,1–16,4 como peça intermediária que talvez tenha uma pré-história
própria. Jo 17, enfim, pressupõe os discursos de adeus em sua totalidade e os arremata
literária e teologicamente. Aceito este processo de crescimento, merece atenção o
significado do “sinal de partida” em 14,31: “Levantai-vos, vamos daqui”, que deve ser
entendido simplesmente no sentido é literal (cf. ad locum) e tem sua continuação natural
na saída de Jesus rumo ao torrente do Cedron, em 18,1. Esta interpretação contradiz as
tentativas de espiritualização, que procuram garantir a unidade literária do discurso de
despedida inteiro.
Se os capítulos 15–17 podem ser considerados “releitura” de Jo 14 ou de 13,31–
14,31, pode-se perguntar se a construção de Jo 13 deve ser pensada com os vv. 31-38 ou
sem eles. Segundo muitos autores o primeiro discurso de despedida, ou mesmo o
conjunto dos discursos, começaria em Jo 13,314. Outros, ao contrário, veem o cap. 13
inteiro como uma unidade literária acabada em si. Nesta linha situam-se os comentários
1
Essas hipótese muitas vezes tencionam colocar o “sinal de partida” Jo 14,31 no fim dos discursos.
Assim, J. H. BERNARD (I, xx-xxvi; II ad locum) imagina como ordem original Jo 13,31a; 15-17; 13,31b14,31; 17; R. BULTMANN (348-351) propõe: Jo 13,1-30; 17; 13,31-35; 15-16; 13,36–14,31.
2
A distinção “evangelista x redação eclesial” é aplicada, na escola de Bultmann, aos discursos de
despedida por J. BECKER e G. RICHTER, com seu editor J. HAINZ (Studien). Os capítulos 15– 17 não são
mais orientadas primeiramente pela cristologia, mas pela questão da comunidade, como também as
secções Jo 13,12-20 und 13,34s. R. E. BROWN e R. SCHNACKENBURG, em seus comentários, bem como U.
WILCKENS e J. FREY, supõem uma “redação joanina”.
3
Para este modelo, cf. Introdução, secção 4 {{p. 61}} VERIFICAR
4
Veja a seguir, junto a Jo 13,31.
Beutler D -43
de U. Wilckens5 e de F. J. Moloney6, bem como as contribuições de Mary L. Coloe7 e
de J.-N. Aletti8. Sobretudo os dois últimos veem no cap. 13 um texto artisticamente
elaborado, no qual se manifesta uma estrutura concêntrica.
Segundo M. L. Coloe encontramos em Jo 13, depois de uma secção introdutória
(vv. 1-5), a secção principal 13,6-38, emoldurada por um diálogo inicial e outro, final,
de Jesus com Pedro (vv. 6-11 e 36-38). No segundo e no penúltimo lugar temos então
secções que nos falam da instrução e do dom de Jesus (vv. 11-15 e 34-35). No centro
estão as passagens que tratam de Judas (vv. 16-20 e 21-30). J.-N. Aletti faz iniciar sua
análise estrutural já no v. 1 e nos versículos finais 31-38, sob o aspecto da partida de
Jesus para junto do Pai. Mais para dentro situam-se as passagens que falam da
possessão de Judas pelo diabo (v. 2 e 21-30), enquanto no centro está a preparação do
lava-pés (vv. 4-5) e sua execução, com a explicação dada nas palavras de Jesus (vv. 611.12-20). As partes que se correspondem são marcadas em parte pelo vocabulário
semelhante (para o primeiro e o último segmento, agapáō “amar”, theós “deus” e
hypágō “partir”).
Pouco importa como se divide Jo 13, em todo o caso o capítulo demonstra certo
acabamento fechado, que se verifica não só no vocabulário, mas também, sob o aspecto
narrativo, nos personagens envolvidos (Jesus, os discípulos, Judas e Pedro). O texto
determinante continua sendo o lava-pés, no quadro da última Ceia, com suas diversas
significações e os diálogos que se desenvolvem em torno dele.
1. O lava-pés (13,1-20)
1
Antes da festa da Páscoa, sabendo que tinha chegado a hora de passar deste
mundo para junto do Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, Jesus amou-os
até o fim. 2 Quando chegou a ceia, o diabo já tendo seduzido Judas, o filho de Simão
Iscariotes, para entregá-lo, 3 Jesus, sabendo que o Pai tinha posto tudo em suas mãos e
que de junto de Deus saíra e para Deus voltava, 4 levantou-se da ceia, tirou o manto,
pegou uma toalha e cingiu-se com ela. 5 Então derramou água numa bacia, pôs-se a
lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido.
6
Chegou assim a Simão Pedro. Este disse-lhe: “Senhor, tu me lavas os pés? 7 Jesus
respondeu: “Agora não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”.
8
Pedro disse: “Tu não me lavarás os pés nunca!” Jesus respondeu: “Se eu não te
lavar, não terás parte comigo”. 9 Simão Pedro disse: “Senhor, não só os pés, mas
também as mãos e a cabeça”. 10 Jesus respondeu: “Quem tomou banho não precisa
lavar senão os pés, pois está inteiramente puro. Vós também estais puros, mas não
todos”. 11 Ele já sabia quem o iria entregar. Por isso disse: “Não estais todos puros”.
12
Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e voltou a sentar-se.
Disse aos discípulos: “Entendeis o que eu vos fiz? 13 Vós me chamais de Mestre e
Senhor; e dizeis bem, porque sou. 14 Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também
vós deveis lavar os pés uns aos outros. 15 Dei-vos um exemplo, para que façais assim
como eu fiz para vós. 16 Amém, amém, digo-vos: o servo não é maior do que seu senhor,
5
U. WILCKENS 204-219, que trata de Jo 13,1-20; 13,21-30 e 13,31-38 antes do discurso de despedida Jo
14,1-31.
6
F. J. MOLONEY 370-391, que resume Jo 13,1-38 nas palavras-chaves “Making God Known. The
Footwashing and the Morsel”.
7
M. L. COLOE, Welcome; ID., Sources.
8
J.-M. ALETTI, Jn 13.
Beutler D -44
e o enviado não é maior do que aquele que o enviou. 17 Já que sabeis disso, sereis
felizes se assim fizerdes. 18 Eu não falo de todos vós. Eu conheço aqueles que escolhi.
Mas é preciso que se cumpra a Escritura: ‘Aquele que come do meu pão levantou
contra mim seu calcanhar’. 19 Desde já, antes que aconteça, eu vo-lo digo, para que,
quando acontecer, acrediteis que eu sou. 20 Amém, amém, digo-vos: quem recebe aquele
que eu envio recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou”.
I
No início do relato joanino da volta de Jesus para junto do Pai encontramos o
relato amplamente elaborado do lava-pés. Este relato tem em comum com os relatos da
Paixão nos sinópticos o fato de descrever um jantar de despedida de Jesus com seus
discípulos imediatamente antes da Páscoa. Em João, porém, não há indício de que se
trate de uma ceia pascal. Os traços de tal ceia aparecem, já cristianizados, na festa da
Páscoa que Jesus celebra com seus discípulos em Jo 6,51c-58.
O ponto de partida para a cena joanina talvez tenha sido uma palavra do discurso
de despedida modelo em Lc 22,279. Ali relatou-se uma rivalidade entre os discípulos, e
Jesus lhes opõe sua própria atitude: “Pois quem é o maior, aquele que está reclinado à
mesa ou aquele que serve? Acaso não é aquele que está reclinado? Eu, porém, estou no
meio de vós como aquele que serve”. Esta palavra parece ter sido encenada em João.
E como é construída a unidade textual? O v. 1 aparece como “epígrafe” para todo
o relato da Paixão em João, segundo comumente se observa. Num sentido mais restrito,
o versículo introduz também a narrativa subsequente, o lava-pés. Esta se inicia com o
relato do gesto de Jesus (vv.2-5), seguido do diálogo de Jesus e Pedro (vv. 6-11) e do
ensinamento dos discípulos (vv. 12-20). A introdução deste ensinamento retoma em
ordem inversa a sequência dos verbos com os quais foi descrito o gesto nos vv. 4-5. A
cena seguinte, que descreve a designação do traidor e sua saída da ceia, nos vv. 21-30,
será novamente determinada por diálogos.
Entre os traços notáveis da narrativa percebemos a nomeação repetida de Judas.
Depois do versículo introdutório 1, Judas é nomeado direta ou indiretamente em todas
as três secções subsequentes: no v. 2, nos vv. 11-12 e nos vv. 18-19. A ênfase dada à
figura de Judas tem relação com o dualismo joanino e, ao mesmo tempo, reforça o
elemento dramático da narrativa de João.
A instrução dos discípulos no vv. 12-17 ou 12-20 não raramente é vista como uma
continuação do diálogo entre Jesus e Pedro nos vv. 6-10. Não se trata mais, agora, do
significado da ação de Jesus para os discípulos, como de uma antecipação da Paixão,
cujo fruto deve ser apropriado na fé, e sim, da prática dos discípulos segundo o exemplo
de Jesus Servo. A explicação pormenorizada mostrará em que medida se reconhecem
aqui continuidade e novo começo e como ambos os elementos em sua relação mútua
podem ser individuados na história da composição.
II
O gesto de Jesus (13,1-5)
Observando a construção das frases podemos dividir esta breve narrativa em v. 1,
vv. 2-4 e finalmente v. 5. O presente histórico alterna com o aoristo, o que revela a
intenção do autor de representar a cena com vivacidade.
9
Já Orígenes notou o parentesco dos dois textos.
Beutler D -45
13,1
O versículo de entrada serve de título não só para a narrativa que se segue, mas
para o inteiro relato da volta de Jesus para junto do Pai. O versículo tem configuração
linguística muito particular. No início encontra-se a indicação do tempo, que deve ser
interpretado não só cronológica como também liturgicamente. O que Jesus agora faz e
vivencia o corre no quadro da principal festa judaica da libertação. Dois particípios
indicam com que saber e atitude Jesus entra na hora de sua consumação. Jesus sabe que
agora “chegou sua hora” de “passar deste mundo para junto do Pai”: maneira joanina
para expressar que chegou a “hora” de seu adeus10. A atitude com que Jesus entra nesta
hora é a do amor até o extremo, até o fim. O verbo “amar”, que já foi usado como
particípio, é retomado como verbo pessoal no fim: isso lhe dá um peso particular. No
primeiro discurso de despedida Jesus retomará mais uma vez o tema do amor aos seus:
promete seu amor aos que o amam (Jo 14,21). Aqui, no início dos discursos de
despedida, o amor de Jesus é levado à pauta sem ressalvas.
13,2-4
O gesto significativa que agora segue deve expressar o amor. A longa frase dos
vv. 2-4 começa com uma anotação de tempo que indica, simultaneamente, o quadro da
ação que logo vai ser descrita: uma ceia. Dois particípios opõem Jesus e Judas11. Este,
inspirado pelo Maligno, já tomou sua decisão de trair Jesus. O outro, Jesus, tem
consciência de sua despedida e de sua volta ao Pai em vista da consumação de sua obra
salvífica (vv. 2s.).
Assim pode começar a descrição da ação principal. Isto se dá de modo sucinto e
bem visualizado. Jesus se põe em prontidão para seu serviço, enquanto se levanta da
mesa, depõe seu manta e se cinge (v. 4). Fazendo isso, assume o papel do servo. Já em
Lc 22,28 apareceu a distinção entre o que está reclinado à mesa e o que serve a mesa.
13,5
A ação que agora se descreve excede, porém, o serviço da mesa. Jesus se apronta
para lavar os pés dos discípulos e logo enxugá-los. Tal serviço, na Antiguidade, era
reservado aos domésticos ou aos escravos. Este é o significado explicitado na instrução
de Jo 13,13-16. A expressão verbal ecoa a unção dos pés de Jesus por Maria em Jo
12,1s.: também Maria “serviu” na ceia. Que ela ungiu os pés de Jesus e os secou com
seus cabelos era uma homenagem e um serviço de amor. Considerando o início desta
secção em Jo 13,1, tal elemento poderia estar presente também na cena do lava-pés12.
A primeira interpretação (13,6-11)
No momento em que Jesus pretende prestar a Pedro seu serviço de servo, a ação
de Jesus dá origem a um triplo diálogo entre Jesus e Pedro, que organiza esta subsecção.
Quanto ao conteúdo, exprime-se aqui, uma primeira interpretação do sentido desse
gesto-sinal de Jesus. No fim é mencionado o traidor.
13,6-8
10
O aoristo h=lqen é atestado melhor que o perfeito evlh,luqen e corresponde também ao uso joanino.
O nome completo de Judas não tem atestação segura aqui. A lectio dificilior é a de Nestle-Aland (28ª
ed.), que refere “Iscariotes” ao pai de Judas (assim também a lição nossa e da Einheitsübersetzung).
12
Sobre este fundo M. GRUBER, Zumutung, 56, ressalta a reciprocidade do serviço agápico de Jesus e de
Maria como membro do círculo dos discípulos.
11
Beutler D -46
No início do diálogo, Pedro, por duas vezes, recusa o serviço de Jesus. Aos olhos
do evangelista, Pedro é o mais importante do grupo dos discípulos. Por um lado
professa, de modo exemplar, a fé dos discípulos em Jesus (cf. Jo 6,68s.), por outro,
revela também a típica fraqueza dos discípulos, como mostra sua tríplice negação de
Jesus (já anunciada em 13,35-38)13. Diferentemente daqui, temos em Jo 6 uma visão
positiva de Pedro, que deve ser atribuída a uma “releitura” ulterior, como observamos
na exegese desse capítulo.
Na presente perícope, Pedro mostra que ele não entendeu a ação, nem a missão de
Jesus. Ele entende o gesto em nível meramente humano. Por isso, sua primeira reação é
opor-se à ação de Jesus. Nem chega a entender a resposta de Jesus, que observa que ele
compreenderá mais tarde. Ao “mais tarde” de Jesus ele responde com um “nunca”,
porque não sabe que a compreensão da vida e ação de Jesus se abre somente a partir de
sua “hora”. Pedro chega à compreensão da ação de Jesus somente pela ameaça de Jesus
de que não terá parte com ele se não se deixar lavar os pés por ele.
13,9-11
Mas agora Pedro revela um novo mal-entendido. Ele entende a ação de Jesus em
nível físico: quanto mais for lavado por ele, tanto mais estreita sua ligação com Jesus.
Pedro não entende que, na ação de Jesus, ele deve entender a atitude com a qual Jesus
entra na sua paixão. E para entender esta atitude basta o simbólico lava-pés dos
discípulos14. Se eles se entregam à ação-sinal de Jesus, e na medida em que eles se
entregam, são puros, tendo entendido sua mensagem. No mesmo sentido pode ser dito
que os discípulos são puros por causa da palavra de Jesus (cf. Jo 15,3)15.
No fim se encontra uma alusão ao discípulo que entregou Jesus. Ele constitui o
obscuro pano de fundo desta ceia de Jesus com seus discípulos. Não em última instância
as alusões repetidas à sua pessoa servem para mostrar que Jesus entrou na morte
consciente de seu destino. Jesus entra em sua paixão totalmente consciente do que o
espera. A cena de Jo 13,21-30 mostrará isso com mais clareza.
A segunda interpretação (13,12-20)
Depois que Jesus já interpretou para Pedro o gesto do lava-pés, encontramos
surpreendentemente uma segunda interpretação. Se, por um lado, a Pedro foi afirmado
que ele não poderia compreender a ação de Jesus agora, mas somente mais tarde (Jo
13,7), agora Jesus pergunta aos discípulos se eles entenderam o que ele lhes fez; o que
pressupõe que eles seriam capazes de entender (v. 12). Para resolver esta aparente
contradição, fizeram-se diversas propostas, como se encontra resumido por U.
Schnelle16. A primeira proposta supõe que a “redação eclesial” quis corrigir a primeira
interpretação criada pelo evangelista. Esta redação eclesial não perceberia em primeiro
lugar a cristologia e a fé pessoal, mas o comportamento certo na comunidade. Assim já
se anunciaria a perspectiva dos capítulos 15–17 17. O segundo modelo de explicação vê
nas duas interpretações duas maneiras diferentes de o evangelista interpretar a ação de
13
Cf. em relação a isso, recentemente, T. SCHULTHEISS, Petrusbild.
A expressão “(se deixar) lavar os pés” não é totalmente segura no texto grego; muitos manuscritos
inserem “somente” (mo,non), que falta no texto preferido por Nestle-Aland (28ª ed.) B C* (K) L W Y e.o.;
o qual, por outro lado, inclui eiv mh. tou.j po,daj ni,yasqai, omitido por uma parte da tradição textual.
15
Fortemente ressaltado por R. BULTMANN, ad locum.
16
Cf. U. SCHNELLE 239.
17
Defendi posição semelhante em “Die Heilsbedeutung”, mas sem aceitar uma redação eclesial que
corrigisse a visão do evangelista.
14
Beutler D -47
Jesus. Um terceiro modelo, preferido por U. Schnelle mesmo, é parecido com o segundo
e bem fundamentado: o evangelista teria utilizado na segunda interpretação elementos
da tradição que lhe permitiram reconhecer na ação de Jesus uma dimensão
complementar, que era importante para a comunidade e permitia completar a primeira
(cristo-soteriológica). Na medida em que a segunda interpretação supõe e prolonga a
primeira, pode-se reconhecer nela mais um exemplo da “releitura”, ou leitura renovada
da primeira interpretação, em vista da situação da comunidade18.
Não é possível dividir esta subsecção do ponto de vista narrativo, visto que,
depois da introdução do narrador, só Jesus está com a palavra. Mas o texto pode ser
dividido do ponto de vista semântico. Nos vv. 13-17 o tema é dominar e servir, nos vv.
18-20 trata-se, mais uma vez, daquele que vai entregar Jesus; o sentido do v. 20, porém,
não fica imediatamente claro no contexto.
13,12
Olhando para trás, a introdução ao discurso de Jesus que vai seguir mostra-se
claramente formulada em vista da narrativa antecedente. O v. 12 retoma, em ordem
inversa, o que Jesus fez aos discípulos nos vv. 4s.: depois de ter lavado os pés dos
discípulos, Jesus põe de novo suas vestes e toma lugar para a instrução que vai seguir.
No início está a pergunta se os discípulos entenderam o que Jesus lhes fez. Este
pergunta causa admiração, pois Pedro teve de ouvir, pouco antes, que ele não podia
compreender o gesto-sinal de Jesus, mas a entenderia mais tarde. Podemos, por isso,
concluir que, na instrução subsequente, se trata de ensinamentos que supõem a luz da
páscoa. É lógico, portanto, que se dirija a todos os discípulos. Trata-se do modo de viver
da comunidade.
13,13-17
Caso os discípulos não tenham entendido o serviço de Jesus, este agora lhes
oferece a interpretação. O principal termo-chave é o verbo “fazer”. Já apareceu no fim
do v. 12 e é retomada no v. 17, em forma de uma bem-aventurança, criando-se assim
uma inclusão que enquadra a secção. No meio, o termo é usado duas vezes no v. 15. Os
principais substantivos são “Senhor” e “Mestre”, bem como “servo”. Quanto a isso,
percebe-se uma tensão entre o “ser” e o “fazer”.
A instrução de Jesus tem a forma de um argumento a fortiori. Se ele, a quem os
discípulos, com razão, chamam de “Senhor” e “Mestre”, lava os pés de seus discípulos,
tanto mais devem eles estar dispostos a lavar os pés uns dos outros. É para isso que ele
lhes deu o exemplo.
Para seu argumento, Jesus pode invocar uma regra universalmente reconhecida: o
servo não está acima do seu mestre, o enviado não é mais importante do que aquele que
o enviou (v. 16). Este provérbio aparece de diversas formas nos evangelhos. De forma
semelhante à de João encontra-se também no fim do sermão da Planície em Lc 6,40,
onde se percebe a origem judaica da palavra, aplicada à relação entre mestre e discípulo.
O discípulo nunca pode sobressair ao mestre. Quando tiver aprendido tudo, ele será
como o mestre. Ampliando um pouco a compreensão, a palavra ganha sentido também
na forma joanina: o discípulo nunca deverá superar o mestre em dignidade. Em Mateus
(10,24s.) a palavra é redirecionada para o princípio de que o discípulo não terá destino
melhor que o mestre, mas tem de aguentar destrato assim como o mestre. No mesmo
18
Para este modelo, cf. supra, introdução da secção “O adeus de Jesus (13,1–17,26)”
Beutler D -48
sentido a palavra reaparece nos discursos de despedida em João (Jo 15,20), onde Jesus
lembra aquilo que predisse em Jo 13,16. Assim, a palavra encontra-se citada diversas
vezes também no Evangelho segundo João.
Que o enviado não está acima de quem o enviou, mas se pode tornar seu igual, é
também um princípio geralmente reconhecido no judaísmo rabínico (princípio do
šalîaḥ)19. Jesus o utiliza aqui no sentido da precedência: o enviado não pode elevar-se
acima de quem o enviou. Pela conexão da ideia do “envio” com os motivos “Senhor” e
“Mestre”, o evangelista estabelece uma conexão com um motivo fundamental de seu
evangelho: a “missão” de Jesus da parte de seu Pai.
Os discípulos não são chamados bem-aventurados quando entendem a instrução
de Jesus, mas somente quando agem de acordo. Também nisso, João não está longe da
tradição sinóptica (cf. Lc 10,28.37)20.
13,18-20
A bem-aventurança de Jesus não vale para todos os discípulos, com também “não
a todos” declarou puros (v. 10). Mais uma vez é apontado o traidor no meio do grupo
dos discípulos. Mais uma vez, Jesus se mostra consciente de quem está com ele, pois
ele sabe quem ele escolheu (cf. Jo 6,70; 15,16.19). Mas não apenas ele tem consciência
de seu destino iminente; estava ambém predito nas Escrituras, como exprime a alegação
do Sl 41,10. A citação usa de modo livre a versão de Sl 41,10 LXX (em vez de “pães”
está “pão”, em vez de “engrandeceu” está “levantou contra mim seu calcanhar”, no
sentido de ação traiçoeira). Antecipa-se aqui o anúncio do traidor narrado logo a seguir
(Jo 13,21-30: vv. 26s.) e no qual não aparece nenhuma citação direta da Escritura.
Assim o v. 18 exprime a ancoragem da traição de Jesus na Escritura e, em última
instância, na vontade de Deus. É notável que a palavra premonitória de Jesus aqui (e
não só aqui) é tratada em pé de igualdade com a Escritura. Encontramos aqui uma
compreensão evoluída da doutrina da “Escritura”, que justapõe a palavra de Jesus à
palavra de Deus na Antiga Aliança21.
A predição da traição por alguém de seu convívio deve, depois que tiver
acontecido–depois, finalmente, do evento pascal –, levar os discípulos à fé de que “sou
eu” (v. 19). As leitores e leitores já estão familiarizados com o “egṓ eimí absoluto”, já
encontrado nas grandes discussões da festa da Tendas (cf. Jo 8,24, provável alusão à
autopredicação profética de Deus em Is 43,1022; aqui Jesus a aplicaria a si mesmo).
O v. 20 continua enigmático. Será que Jesus pensa aqui em Judas e fala a partir da
emoção porque ele o vai entregar?23 Ou trata-se de uma recordação da missão
verdadeira de Jesus e do presbítero, ao contrário de chefes de igreja autopromovidos,
como Diótrefes24? Antes de ilações a partir do mundo extratextual é preferível procurar
19
Os recentes comentários e traduções não falam aqui de “apóstolo”, mas de “enviado”, como fez R.
BULTMANN, 364, que remete a K.-H., RENGSTORF, Art. avpo,stoloj. Contudo, L. ABRAMOWSKI prefere o
sentido “apóstolo” e vê uma referência a Paulo Apóstolo, cuja compreensão da eucaristia estaria aqui
sendo criticada. Para esta autora, o lava-pés é um sacramento ao lado do batismo e da eucaristia; cf. L.
ABRAMOWSKI, Apostel.
20
R. VIGNOLO, Il Quarto Vangelo, destaca a significação estrutural dos dois macarismos em João, neste
lugar e em Jo 20,29, portanto, no início e no fim da narrativa da Paixão. No primeiro caso trata-se de uma
bem-aventurança de um comportamento, no segundo, de uma visão de fé (132).
21
Cf. J. BEUTLER, Der Gebrauch von “Schrift“; M. LABAHN, Jesus und die Autorität.
22
Para isso, veja H. HÜBNER, EN ARCHI EGW EIMI.
23
Neste sentido, M.-J. LAGRANGE, 358, interpreta o versículo como início de uma nova secção.
24
Assim H. THYEN, Johannes 13; U. SCHNELLE, ad locum.
Beutler D -49
a solução para a palavra enigmática de Jesus no próprio texto. Já no v. 16 falou-se da
missão. Falou-se ali dos limites que um enviado de Jesus não deve ultrapassar. O v. 20
diz a mesma coisa em formulação positiva: quem acolhe alguém que foi enviado por
Jesus, acolhe a Jesus, e quem acolhe Jesus, acolhe quem o enviou. Ambos os versículos
se completam, com o enunciado positivo no fim, no v. 20. O v. 20 retoma, além do v.
16, também o v. 18. Existe conexão entre a ideia da eleição no v. 18 e o da missão no v.
20. Os discípulos que Jesus elege e envia constituem o pano de fundo luminoso por trás
da imagem escura do traidor Judas.
III
Imagens falam por si mesmas. Isso vale também para os gestos-sinais proféticos.
O gesto de Jesus para seus discípulos, na véspera de sua paixão, evoca em imagem o
espírito em que ele entra em sua paixão. As palavras permanecem sempre aquém da
imagem.
As duas interpretações que seguem ao gesto só servem de exemplos de como se
pode interpretar o que Jesus fez aos seus na noite da despedida. Mostram dimensões de
sua volta ao Pai. A interpretação nas palavras dirigidas a Pedro mostra que se trata de
acolher a paixão de Cristo como seu mais próprio ato salvador. É o que acontece na fé.
Na história da exegese pensa-se, por isso, no sacramento do batismo, no qual o Cristo é
acolhido e apropriado no banho do batismo e na fé.
A segunda interpretação percebe no ato de Jesus o caráter exemplar para os
discípulos. Assim como Jesus escolhe para si o último lugar e presta serviço aos
mínimos, assim também o serviço e o amor dos discípulos determinará a convivência na
comunidade. Em Lucas já se pode perceber que também o círculo dos discípulos é
ameaçado pela rivalidade. O gesto de Jesus apresenta aqui critérios permanentes.
João insere a narrativa do lava-pés no lugar em que os outros evangelhos narram a
instituição da Eucaristia. Consciente ou inconscientemente, João mostra assim o lado
interior da Eucaristia. Onde cristãos se reúnem para a ceia de Jesus, isso só pode ser
verdadeiro no modo e no espírito em que Cristo entrou na sua paixão: em amor e
prontidão para o serviço. O lava-pés exprime isso com clareza. Paulo, escrevendo à
comunidade de Corinto, interpretará a Eucaristia exatamente neste sentido (cf. 1Cor
11,17-34)25.
2. A designação de Judas e sua saída da ceia (13,21-30)
21
Dito isso, Jesus ficou interiormente perturbado e testemunhou: “Amém, amém,
digo-vos: um de vós me entregará”. 22 Desconcertados, os discípulos olhavam uns para
os outros, pois não sabiam de quem estava falando. 23 Sobre o peito de Jesus estava
reclinado um dos seus discípulos, aquele que Jesus amava. 24 Simão Pedro acenou para
que perguntasse de quem ele estava falando. 25 O discípulo, então, recostando-se sobre
o peito de Jesus, perguntou: “Senhor, quem é?” 26 Jesus respondeu: “É aquele a quem
eu vou dar um bocado passado no molho”. Então, Jesus molhou um bocado e deu a
Judas, filho de Simão Iscariotes. 27 Depois do pedaço de pão, Satanás entrou em Judas.
Então, Jesus lhe disse: “O que tens a fazer, faze-o depressa”. 28 Mas nenhum dos
25
Para M. L. COLOE, Welcome, o lava-pés significa a acolhida na família (household) de Deus (411).
segundo a tradição judaica o exemplo deste serviço agápico é Abraão, cf. ibid.; e ID., Sources; também
sua monografia God Dwells with Us.
Beutler D -50
presentes entendeu por que dissera isso. 29 Como Judas guardava a bolsa, alguns
pensavam que Jesus estava dizendo: “Compra o que precisamos para a festa”, ou que
desse alguma coisa aos pobres. 30 Então, depois de receber o pedaço de pão, Judas
logo saiu. Era noite.
I
A secção que agora segue encontra-se entre o lava-pés e o início dos discursos de
despedida (em sentido amplo) em Jo 13,31. A designação do traidor já fazia parte da
tradicional história da Paixão, como atestada em Mc 14,18-21. João desdobra
notavelmente esta cena, ao introduzir, entre outros, Pedro e o Discípulo Amado.
Sob o aspecto da narratividade, a secção se divide em três cenas, que todas elas
começam com uma palavra ou gesto de Jesus: a palavra de Jesus acerca de quem o há
de trair, com a reação dos discípulos (vv. 21-25); sua repetida palavra e seu gesto em
relação a Judas (vv. 26-27a); e a palavra final de Jesus, agora dirigida a Judas, com
algumas observações acerca de seus discípulos e da saída de Judas (vv. 27b-30).
Esta secção é um exemplo clássico para a crítica das fontes. É analisado de modo
aprofundado no comentário de J. Becker26. Assim como G. Richter27, ele distingue
entre a tradição pré-joanina, o evangelista e a “redação eclesial” (categoria emprestada
de R. Bultmann, o qual, porém, não a aplica nesta secção). A tradição pré-joanina
comportava, segundo Becker, os vv. 21b-22.26-27.30. Faltavam os diálogos com os
discípulos e as referências a Pedro e ao Discípulo Amado. O evangelista teria
acrescentado a introdução, no v. 21a, e as referências à incompreensão dos discípulos,
nos vv. 28-29. Os vv. 23-25, acerca do Discípulo Amado, remontariam à redação
eclesial, interessada na tradição joanina como base da fé da comunidade joanina.
Nos estudos recentes, a hipótese de uma história da Paixão pré-joanina ficou
praticamente abandonada, principalmente sob influência de F. Neirynck e sua escola de
Lovaina. De fato, parece bem mais convincente aceitar uma influência direta dos
evangelhos sinópticos sobre o Quarto Evangelho. Ponto de partida para a composição
joanina teria sido Mc 14,18-21. O evangelista teria introduzido, no início, a conturbação
de alma de Jesus e seu “testemunho”; depois, a cena com Pedro e o Discípulo Amado, o
gesto de Jesus ao oferecer a Judas o bocado, a entrada de Satanás em Judas, a
interpelação de Jesus a Judas e as elucubrações dos discípulos acerca da palavra dirigida
a Judas; e, finalmente, a indicação de que era noite quando Judas saiu da sala. Verdade é
que o relato joanino não fica livre de tensões (assim, a repetida entrada de Satanás em
Judas, nos vv. 2 e 27; a indicação clara aos discípulos no v. 26, contrastando com o
desconhecimento no v. 28). Porém, a reconstrução de todo um sistema de camadas
literárias não elimina as tensões e dificuldades.
II
13,21-25
Ponto de partida da explicação da primeira cena é que o anúncio, por Jesus, da
presença de um traidor no próprio círculo e a confusão dos discípulos acerca de sua
identificação provêm da tradição. Todos os demais elementos da cena seriam então
criação do evangelista. Não há por que atribuir a uma redação pós-joanina todos os
26
27
Cf. J. BECKER II 513-516.
Cf. G. RICHTER, Die Fusswaschung.
Beutler D -51
textos sobre o Discípulo Amado no Quarto Evangelho. É difícil soltá-los do quadro
composicional, e estilisticamente correspondem aos textos do evangelista.
Já a introdução da cena, no v. 21, mostra a mão do evangelista. Ele quer imprimir
à cena um peso especial. Consegue isso atribuindo a Jesus uma forte emoção,
apresentando suas palavras como um “testemunhar” e introduzindo-as pelo duplo
“amém”, que confere às palavras de Jesus peso especial. Já encontramos tal
“conturbação” de Jesus antes, quando Jesus se defrontou com o túmulo de seu amigo
Lázaro, em Jo 11,33. O termo é utilizado novamente em Jo 14,1.27 e poderia provir do
Sl 42-43. Foi provavelmente mediada pela tradição do Getsêmani nos sinópticos. Em
Mc 14,34 temos um eco de Sl 42,6.12; 43,5. João parece pensar, antes, no Sl 42,7 (41,7
LXX), onde ocorre o passivo tarássesthai e também se menciona a “alma” (em João,
“espírito”) do orante. Na linguagem desse salmo, Jesus aparece como o Justo sofredor
que dirige a Deus o seu lamento. Em Jo 14, ele aparecerá como o peregrino que está
partindo para o santuário celestial.
A razão da comoção de Jesus é o fato de que um do grupo dos discípulos o há de
trair. Os discípulos não entendem a palavra de Jesus e olham desesperadamente uns para
os outros. Assim sublinha-se o caráter dramático da cena. Nenhum deles tem a coragem
de perguntar a Jesus o que significam as suas palavras. Só Pedro gera coragem e pede
que “o discípulo que Jesus amava” faça a pergunta. As leitoras e leitores ainda não
conhecem essa figura. Em Jo 1,40 foi mencionado o “outro discípulo”, anônimo, mas
para ver neste o Discípulo Amado falta base no texto. Mais provavelmente este
discípulo só faz sua entrada no Evangelho segundo João aqui no relato da Paixão.
Sempre o encontramos ao lado de Pedro, superando-o em sua relação bem pessoal com
Jesus. Enquanto Pedro nega três vezes conhecer Jesus, o Discípulo Amado é o primeiro
a concluir que Jesus ressuscitou (Jo 20,3-20: v. 8), e na terceira aparição de Jesus é ele
quem, novamente, reconhece Jesus, antes de Pedro (Jo 21,1-14: v. 6). De certo modo,
ele entra na segunda parte do Evangelho segundo João no lugar de Lázaro, ao qual Jesus
“amava” (Jo 11,5.11.36). Sua proximidade a Jesus se exprime também no fato de que
ele “se reclinou sobre o peito de Jesus” (Jo 13,23.25), assim como Jesus repousa “sobre
o peito do Pai” (Jo 1,18). Pouco importa quem tenha sido esse discípulo de Jesus, de
toda maneira ele tinha grande importância para a tradição joanina, como mostra o fim
do evangelho (Jo 21,24).
13,26-27a
A segunda cena é caracterizada por uma palavra e um gesto de Jesus: ele indica o
traidor por uma palavra e por um gesto. Para a comunidade leitora aparece com clareza
que Jesus tem plena consciência de sua situação e que a iniciativa vem dele. Depois da
ação de Jesus, Satanás entra em Judas.
A palavra e o gesto de Jesus aparentemente provêm do evangelista. Do evangelho
de Marcos ele só retoma o “molhar”. Do fato de que Jesus e seu adversário molham
simultaneamente o pão desenvolve-se, em João, um gesto significativo de Jesus: ele
passa um bocado de pão no prato e o entrega a Judas, para deste modo indicá-lo. A cena
mantém uma longínqua reminiscência do Sl 40,10 LXX. Com seu gesto, Jesus mostra,
mais uma vez, que ele domina soberanamente a situação.
13,27b-30
Também a terceira cena começa com uma palavra de Jesus. Segue então uma
conversa dos discípulos entre si, antes da saída de Judas. Corresponde à intenção
Beutler D -52
teológica do evangelista deixar Jesus participar ativamente do desenvolvimento de sua
paixão: a ação tem de ser depressa.
Os discípulos são apresentados, mais uma vez, como incapazes de entender as
palavras de Jesus a respeito de seu destino iminente (cf. Jo 2,22; 12,16); interpretam-nas
no sentido da sua experiência cotidiana.
Paradoxalmente, só Judas parece ter entendido a palavra de Jesus. Ele sai para
fazer seu trabalho. “Era noite” significa certamente mais do que uma mera indicação
cronológica. É o tempo das trevas, que as leitoras e leitores do Quarto Evangelho
conhecem desde o Prólogo (cf. Jo 1,5; 8,12; 12,35.36). Foi no escondido da noite que
Nicodemos se dirigiu a Jesus (Jo 3,2; 19,39). A noite restringe o espaço operacional dos
homens e também de Jesus (Jo 9,4). É contraposta ao dia, à luz que permite ao homem
encontrar o caminho certo (Jo 3,19; 11,10). No sentido do dualismo joanino, Judas entra
no espaço ao qual ele pertence.
III
Na cena assim criada, Jesus aparece totalmente humano e totalmente divino.
Inicialmente, aparece profundamente perturbado por seu destino iminente, não pelo
sofrimento físico que o espera, mas pela traição de um dos seus seguidores. Mas ele se
mostra também senhor soberano da situação. Ele conhece sua sorte e a ajuda a acontecer
em vez de detê-la. Só depois de seu enaltecimento os discípulos entenderão seu
mistério.
O “discípulo que Jesus amava” é quem recebe acesso ao mistério. Ele constitui a
ponte entre Jesus e a futura comunidade. Ele será também a testemunha confiável por
trás da Quarto Evangelho, como explica o fim do evangelho (cf. Jo 21,24). Como
repousou ao coração de Jesus, assim também ele dá acesso ao mistério de Jesus através
dos tempos.
3. A transição para os discursos de despedida (13,31-38)
31
Depois que Judas saíra, Jesus disse: “Agora foi glorificado o Filho do Homem,
e Deus foi glorificado nele. 32 Se Deus foi glorificado nele, Deus também o glorificará
em si mesmo, e o glorificará logo. 33 Filhinhos, por pouco tempo eu ainda estou
convosco. Vós me procurareis, e agora vos digo, como eu disse também aos judeus:
‘Para onde eu vou, vós não podeis ir’. 34 Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos
uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros.
35
Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”.
36
Simão Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” Jesus respondeu-lhe:
“Para onde eu vou, não podes seguir-me agora; mais tarde me seguirás”. 37 Pedro
disse: “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Eu darei minha vida por ti!”
38
Jesus respondeu: “Darás tua vida por mim? Em verdade, em verdade, digo-te: não
cantará um galo antes que me tenhas negado três vezes”.
I
Segundo não poucos autores, Jo 13,31 seria o início dos discursos de despedida
propriamente28. Depois da saída de Judas, Jesus declara que a “hora”, de que
28
Semelhantemente H.-U. WEIDEMANN, Der Tod; J. ZUMSTEIN II.
Beutler D -53
repetidamente tinha falado, “agora” chegou, ou despontou, visto que Jesus fala a seguir
de “um pouco de tempo” (mikrón). Porém, há três razões para deixar começar os
discursos de despedida propriamente só em Jo 14,1. Em primeiro lugar, há a unidade
literária relativamente fechada do cap. 13 de João. Acresce que, entre a secção
discursiva introdutória e o discurso desdobrado no cap. 14, encontra-se um diálogo de
Jesus e Pedro, com a predição da negação deste. Além disso, o discurso do cap. 14
demonstra fortes semelhanças com o assim chamado “terceiro discurso” de Jo 16,4e-33.
Por essas razões, Jo 13,31-35 se deixa entender como uma “ouverture dos discursos de
despedida”, com a predição da negação de Pedro como última unidade narrativa antes
dos discursos de despedida propriamente.
A transição para os discursos de despedida mostra claramente a mão do
evangelista, não somente no anúncio da iminente glorificação de Jesus junto ao Pai, mas
também na palavra sobre o “pouco tempo” que Jesus ainda passará no meio dos seus e
na entrega do mandamento supremo do amor fraterno.
Na cena da predição da negação de Pedro só a introdução, provavelmente, vem
inteiramente do evangelista (v. 36). Os dois versículos seguintes (37-38) mostram
influência da tradição sinóptica (cf. Mc 14,29-31 par.). Mas também aqui pode ser
reconhecida a intervenção redacional do evangelista.
A “ouverture” dos discursos de despedida (13,31-35)
Os versículos iniciais do discurso têm analogia com uma ouverture de ópera.
Nela, o auditório é introduzido na ópera inteira. Isso acontece principalmente por uma
seleção de temas e motivos marcantes da ópera. Assim, na ouverture já ressoa a ópera
inteira. Procedimento semelhante pode-se observar em Jo 13,31-35. Nos vv. 31-32,
Jesus fala de sua “glorificação” vindoura. Este tema já foi tocado diversas vezes, por
último na secção Jo 12,20-36, nos vv. 23e 28. Em 12,23. Ele apareceu em conexão com
o título “Filho do Homem”. Esta conexão encontra-se, nesta unidade textual (vv. 3132), nada menos que cinco vezes, com leves variações. Aparentemente, o evangelista
colocou este tema como epígrafe à frente dos discursos de despedida. Voltará a ser
mencionado no início de Jo 17 (vv. 1-5), de modo que se pode ver uma espécie de
inclusio entre 13,31ss. e a oração de Jesus em Jo 17. O segundo tema dos vv. 31-35 é a
partida iminente de Jesus e a impossibilidade de os discípulos seguirem seu mestre, pelo
menos neste instante. Este tema é retomado de modo explícito nos discursos de Jo 14 e
16,4e-33. O terceiro tema, o do amor mútuo dos discípulos, prepara Jo 15,12-17 e,
assim, o discurso de Jo 15,1–16,4d. Pode-se ver também uma conexão entre o tema do
amor em Jo 13,34s. e em Jo 17, a oração de Jesus, acrescentando-se ao tema do amor o
da glorificação29.
Da correspondência entre Jo 13,31-35 e as diversas partes dos discursos de
despedida não se pode deduzir imediatamente a unidade literário-histórica destes
discursos. Na base da interpretação de Jo 14,31 e outras observações, parece indicado
aceitar um processo de crescimento dos discursos em diversas etapas e reconhecer o
caráter secundário dos capítulos 15–17. Observado isso, não se pode excluir que
também Jo 13,34s., com o mandamento do amor mútuo, tenha sido introduzido no texto
apenas secundariamente. Mas não se pode excluir a hipótese contrária, a saber, que o
texto de Jo 13 prepare a ulterior reassunção do assunto.
13,31-32
29
Neste respeito veja Y. SIMOENS, La gloire d’aimer.
Beutler D -54
A pequena unidade textual, com a quíntupla repetição do mesmo verbo, é um
fenômeno único, não só no Quarto Evangelho como também no Novo Testamento
inteiro (e mesmo fora disso). Adotamos, para tanto, o texto mais comprido, com
inclusão do v. 32a, que o texto de Nestle-Aland (28ª ed.) traz entre colchetes. Ele tem
sentido bem claro depois dos dois aoristos que o precedem e à frente dos dois futuros
que o seguem. Exatamente essa transição do aoristo para o futuro chama a atenção do
ponto de vista linguístico. No nível semântico, a conexão do título “Filho do Homem”
com o verbo “ser glorificado” exige explicação. Já apontamos, antes, que a tradição do
“Filho do Homem”, que os sinópticos colhem de Dn 7,13s. e associam à paixão, morte e
ressureição, por João aparentemente é ligada ao título do Servo do Senhor de Is 52,13–
53,12, especialmente Is 52,13 LXX (o Servo será enaltecido e glorificado).
Como é que se explica melhor a pequena unidade textual na qual aparece cinco
vezes o tema da “glorificação” do “Filho do Homem”30? Suspeita-se que esta unidade
textual iniciava com um breve fragmento hínico, que rezava: “Agora á glorificado o
Filho do Homem, e Deus é glorificado nele”. Pode-se imaginar a origem desse dístico
em alguma comunidade do círculo joanino. Textos semelhantes encontram-se também
no Apocalipse de João, embora com a partícula introdutória árti em vez de nyn (cf. Ap
12,10). No Apocalipse encontram-se diversos textos que, numa liturgia cósmica, cantam
a glória de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 5,12; 7,12). Se na comunidade joanina se cantava
um verso como Jo 13,31, a inserção desse dístico no atual lugar do Evangelho segundo
João implicava dificuldade, porque Jesus está no início de sua paixão e deve ainda
glorificar o Pai até chegar ao fim de seu caminho doloroso. Daí que o evangelista teria
inserido os três hemistíquios seguintes: quando o Filho tiver glorificado o Pai até o fim,
o Pai o glorificará “em si mesmo” e o fará logo31.
13,33
Anteriormente Jesus já havia anunciado que partiria para um lugar inalcançável. O
v. 33 refere-se a 7,33s., onde Jesus disse aos judeus que ele iria embora e que não o
poderiam seguir para o lugar aonde estava para ir. No cap. 7, essa palavra tinha o
sentido de uma advertência premente para que escutassem suas palavras e as
acolhessem na fé. Em Jo 13 o sentido é, antes, de preparar os discípulos para a nova
situação, quando Jesus não estiver mais entre os seus. No entender de J. Zumstein 32, a
palavra tem dupla dimensão, cristológica e soteriológica. Jesus deve ir embora para
completar seu percurso, e os discípulos ficarão unidos a ele num modo novo, não mais
no seguimento físico e visível, mas por uma nova presença de Cristo entre eles no
Espírito. Essa realidade voltará à tona nos vv. 36-38.
13,34-35
O novo mandamento de Jesus, de que se amem uns aos outros, insere-se entre os
anúncios de sua partida nos vv. 33 e 36-38, razão porque, muitas vezes, se tem
concluído que foi interpolado secundariamente neste lugar. Fica a pergunta: quando e
por quem?
30
Para o que segue, cf. J. BEUTLER, Die Überleitung.
Segundo N. CHIBICI-REVNEANU, Variations, o autor teria deixado intencionalmente em aberto a quem
se refere “em si” ou “nele”, para nivelar a distinção entre o Pai e o Filho. A mudança de perspectiva
temporal é diminuída, antes, no estudo de P. W. ENSOR, Glorification, devido ao fato de ele entender o
“ser glorificado” do Pai e do Filho fortemente a partir da do,xa do Jesus terreno.
32
Cf. J. ZUMSTEIN II ad locum; ID., Die Logien; ID., Jesus’ Resurrection.
31
Beutler D -55
O conteúdo do mandamento corresponde à tradição sinóptica (Mc 12,28-34 par.).
A origem do mandamento do amor fraterno está em Lv 19,18, com a diferença de que,
em João, no lugar do “compatriota” (rêa‘), está o “outro” dentre os irmãos. O “como”
(kathṓs) indica mais do que uma comparação. O amor de Jesus pelos seus não é
somente um exemplo do amor que os seus deverão praticar uns para com os outros, mas
é também a fonte desse amor. De acordo com isso, a unidade do círculo dos discípulos
será a marca na qual se reconhecerá que Jesus foi enviado pelo Pai (Jo 17,21). Estes
versículos mostram que a comunidade joanina não se fecha diante do mundo como uma
seita.
Por que o mandamento de Jesus é um “novo mandamento”? Não significa um
novo ensino ético33. Antes, deve ser visto em conexão com a Nova Aliança. Assim
como Jr 31,31ss. fala de uma lei que será inscrita no coração dos israelitas, também o
mandamento de Jesus é de uma natureza nova, que se torna possível pela “hora” de
Jesus. Para a 1ª Carta de João (2,7) o mandamento é ao mesmo tempo novo e antigo,
para a 2ª Carta (v. 5) não é mais novo, mas é o mandamento que os fiéis ouviram desde
o começo.
A predição da negação de Pedro (13,36-38)
Depois de Jo 13,35 os discursos de despedida poderiam começar imediatamente.
Contudo, o evangelista introduz neste lugar uma secção, provinda da tradição, que
ensejará outras reflexões sobre a despedida de Jesus. Em termos narrativos, podem-se
distinguir duas palavras de Pedro e duas respostas de Jesus. A primeira palavra de Pedro
é uma pergunta, a segunda consiste em uma pergunta e uma afirmação, que em seguida
é questionada por Jesus; ele prevê algo bem diferente daquilo que Pedro promete.
13,36
O primeiro diálogo aplica a Pedro o que Jesus antes havia dito aos judeus (Jo
7,33s.) e depois aos discípulos (13,33): não podem seguir Jesus aonde ele está para ir.
Pedro o seguirá mais tarde – alusão à sua morte violenta (cf. Jo 21,28s.). Com J.
Zumstein34, podemos reconhecer neste diálogo uma reflexão sobre as duas maneiras da
presença de Cristo, antes e depois de sua morte e ressurreição. Ninguém pode seguir
Jesus na sua “hora” do mesmo modo como o fazia antes. A única maneira de seguir
Jesus na sua “hora” consiste em segui-lo também na morte e ressurreição.
13,37-38
O segundo diálogo acolhe mais amplamente materiais da tradição sinóptica. O
interesse do narrador mostra-se agora mais biográfico. Pedro não apenas não dará sua
vida por seu Senhor, ele o renegará três vezes ainda antes do canto do galo na
madrugada. A introdução parece modificada, sobretudo em comparação com Marcos
(Mc 14,26-28, cf. Mt 26,30-32). Segundo estes sinópticos, Jesus anuncia a negação de
Pedro enquanto estão a caminho do monte das Oliveiras. Em Lucas, ao contrário, o
quadro é a Última Ceia (Lc 22,31-44), o que pode ser uma base para o relato joanino.
Nos sinópticos, Jesus fala primeiro da dispersão das ovelhas por causa da supressão do
pastor (cf. Zc 13,7). Esta parte da palavra de Jesus não se encontra aqui em João;
aparece só mais tarde, no fim do segundo discurso de despedida (Jo 16,32). Assim, a
cena em 13,36-38 se concentra mais fortemente sobre Pedro, como aconteceu também
33
Segundo H. WEDER, Das neue Gebot, 195, o “novo” do mandamento consiste sobretudo no fato de ser
ordenado por Jesus.
34
Cf. supra, nota 32.
Beutler D -56
em Jo 6,68 e 13,6-11. A disposição de Pedro para morrer por Jesus é formulada segundo
o estilo joanino: em vez de “morrer com ele” (synapothaneîn, cf. Jo 11,16) está “depor a
vida” (tithénai psykhḗn). Esta expressão já fora usado por Jesus, que “depõe sua vida”
por suas ovelhas (Jo 10,11.15.17s.) Em Jo 15, Jesus solicitará seus discípulos para que
“deponham sua vida” para seus amigos (Jo 15,13) segundo o exemplo dele mesmo, que
amou os seus até o fim (Jo 15,12s.). Se o evangelista utiliza em 13,37s. esta formulação,
ele recorda que existe uma conexão entre a disposição humana de engajar a própria vida
e a entrega da vida de Jesus mesmo, que torna possível essa disposição.
III
Esta secção mostra que Jesus está em pleno saber daquilo que o espera pelo lado
dos homens, e também em plena consciência do que está acontecendo entre ele e o Pai.
Jesus não se vê como o fracassado, mas como o “Filho do Homem” cuja glorificação se
realizará logo depois que, em sua volta, tiver glorificado o Pai.
Os discípulos, por si mesmos, não são capazes de compreender o sentido profundo
de sua volta ao Pai. Pedro se julga ainda ao lado de Jesus quando este encara a saída do
mundo. Ele deve ouvir, porém, que neste caso ele fracassará lamentavelmente.
Para os discípulos fica a incumbência de ficarem unidos no amor de Jesus. Terão
de aprender a compreender sempre mais profundamente a despedida de Jesus e sua nova
volta. Para isso servirão os discursos de despedida que agora seguirão. Registrados
como texto, farão a ponte para os crentes das gerações vindouras. Sempre fara parte da
união com Jesus a união dos crentes entre si.
4. O primeiro discurso de despedida (14,1-31)
14 1 “Não se perturbe o vosso coração! Credes em Deus, crede também em mim.
Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu vos teria dito que vou
preparar um lugar para vós? 3 E depois que eu tiver ido e preparado um lugar para
vós, voltarei e vos levarei para junto de mim, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós
também. 4 E para onde eu vou, conheceis o caminho”. 5 Tomé disse: “Senhor, não
sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” 6 Jesus respondeu: “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. 7 Se me
conhecestes, conhecereis também o meu Pai. Desde já o conheceis e o tendes visto”.
8
Filipe disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta”. 9 Jesus respondeu: “Filipe,
há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me viu, viu o Pai. Como é
que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai’? 10 Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em
mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo; é o Pai que,
permanecendo em mim, realiza as suas obras. 11 Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está
em mim. Crede ao menos, por causa destas obras. 12 “Em verdade, em verdade, digovos: quem crê em mim fará as obras que eu faço, e fará maiores do que estas. Pois, eu
vou para o Pai, 13 e o que pedirdes em meu nome, eu o farei, a fim de que o Pai seja
glorificado no Filho. 14 Se pedirdes algo em meu nome, eu o farei.
2
15
“Se me amais, guardareis os meus mandamentos, 16 e eu pedirei ao Pai, e ele
vos dará um outro Auxílio, que ficará para sempre convosco: 17 o Espírito da Verdade,
que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. Vós o conheceis,
porque ele permanece junto de vós e está em vós. 18 Não vos deixarei órfãos: eu voltarei
a vós. 19 Ainda um pouco de tempo, e o mundo não mais me verá; mas vós me vereis,
porque eu vivo, e vós vivereis. 20 Naquele dia sabereis que eu estou no meu Pai, e vós
Beutler D -57
em mim, e eu em vós. 21 Quem acolhe e guarda os meus mandamentos, esse me ama. E
quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele. 22 Judas
(não o Iscariotes) perguntou-lhe: “Senhor, como se explica que tu te manifestarás a nós
e não ao mundo?” 23 Jesus respondeu-lhe: “Se alguém me ama, guardará a minha
palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. 24 Quem não
me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que ouvis não é minha, mas do
Pai que me enviou.
25
“Eu vos tenho dito estas coisas permanecendo convosco. 26 Mas o Auxílio, o
Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará
tudo o que eu vos disse. 27 Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não a dou como o
mundo a dá. Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração. 28 Ouvistes o que eu
vos disse: ‘Eu vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, vos alegraríeis porque vou
para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. 29 “Disse-vos essas coisas agora, antes que
aconteça, para que, quando acontecer, creiais. 30 Já não falarei mais convosco, pois o
chefe deste mundo está vindo. Ele ele nada pode contra mim, 31 mas é preciso que o
mundo saiba que eu amo o Pai e faço como o Pai me mandou. Levantai-vos! Vamos
daqui!”
I
A divisão do discurso de despedida joanino em diversos discursos que se seguem
não é evidente. Tampouco pressupõe que se trate, necessariamente, de diversas
composições sucessivas. Apenas partimos da observação de que temos, nos discursos de
despedida, diversas partes de discurso mais ou menos fechadas, sob os aspectos
temático e linguístico, que se constroem um sobre outro ou, pelo menos, demonstram
sequência. Tal parte de discurso é Jo 14.
Não é difícil delimitar Jo 14 em relação contexto subsequente. Com o “sinal de
partida”, “Levantai-vos, vamos daqui”, em Jo 14,31, Jesus termina suas palavras aos
discípulos em relação a sua partida iminente, sua volta e a presença permanente do
Paráclito. Propriamente não se esperam mais outros ensinamentos. O cap. 15, portanto,
só tem uma conexão muito fraca com o cap. 14. A questão da origem do cap. 14, bem
como dos seguintes, será tratada mais adiante. Sob o aspecto formal percebe-se uma
inclusão, um arco que une o discurso inteiro entre a exortação de Jesus “Não se perturbe
o vosso coração” no v. 1 e “Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração” no v.
27.
Mais difícil é delimitar o discurso em relação ao contexto anterior. Não poucos
autores situam em Jo 13,31 o início dos discursos de despedida e, ao mesmo tempo, do
primeiro discurso35. Logo no início ressoa o tema teológico dominante, que se estende
sobre a volta de Jesus ao Pai: sua glorificação do Pai e sua iminente glorificação pelo
Pai (Jo 13,31s.). Anunciam-se temas importantes dos discursos seguintes: a partida
iminente de Jesus (v. 33) e seu mandamento do amor fraterno (vv. 34s.). Por outro lado,
a predição da negação de Pedro nos vv. 36-38 pertence ainda antes ao contexto
narrativo de Jo 13, e ultimamente aponta-se também para a unidade composicional
desse capítulo, com Pedro como protagonista ao lado de Jesus36.
35
36
Cf. supra, com. a Jo 13,31.
Cf. J.-N. ALETTI, Jn 13; M. L. COLOE, Sources.
Beutler D -58
Assim recomenda-se de ver em Jo 13,31-38 uma secção de transição, uma
ouverture para os discursos de despedida. Tais textos de transição, já os encontramos
em Jo 2,1-11 e Jo 11–12. Parecem fazer parte do estilo literário do evangelista.
Em torno da pergunta até que ponto o texto de Jo 14 é literariamente unitário
ainda não existe unanimidade. No interior do capítulo encontram-se diversas
representações do tempo final e da volta de Jesus. Nos vv. 2-3 pinta-se a volta de Jesus
em cores apocalípticas, nos vv. 18s. e 23 como uma nova vinda de Jesus para junto dos
discípulos na história de sua vida e no mundo de sua experiência. E ao lado da renovada
vinda de Jesus anuncia-se também sua renovada presença por meio do Paráclito (vv.
16s.), que ainda recebe um complemento no v. 26.
Em vez de atribuir o discurso da vinda escatológica de Jesus em linguagem
apocalíptica, nos vv. 2-3, a um texto básico judeocristão, será suficiente ver aqui a
presença de uma tradição cristã primitiva, que nos vv. 4-24 é reinterpretada no sentido
do evangelista. Raramente hoje alguém ainda busca atribuir palavras peculiares de
Jesus, nesta secção, a uma fonte de discursos de revelação de inspiração gnóstica. É
mais plausível pensar que o mundo linguístico e conceitual do evangelista tenha sido
inspirado pelo Antigo Testamento e pelo judaísmo antigo. Nesta visão, porém, podem
distinguir-se diversas áreas de origem para as diversas partes principais do capítulo.
Os primeiros quatro versículos do capítulo nos introduzem em sua temática: a
despedida de Jesus e sua renovada vinda aos seus. O evangelista parece retomar
representações cristãs primevas, influenciadas pela apocalíptica, a respeito da vinda
escatológica de Jesus no fim da história. Nos versículos seguintes, até o v. 24, ele
reinterpreta essas representações.
Nos vv. 5-14 fala-se em primeiro lugar da despedida de Jesus e de como será
possível ficar permanentemente ligado a ele. Esta possibilidade se oferece na fé. Parece
que o evangelista na primeira parte do capítulo retoma algo do Sl 42-43, como já vimos
alhures37. Já a exortação para que os discípulos não fiquem perturbados parece originarse deste salmo, e sua influência será perceptível até o v. 14.
Nos vv. 15-24, Jesus anuncia sua renovada vinda. Parece que o evangelista
conhece três modelos para pensar esta nova vinda: uma vinda renovada no Paráclito (vv.
16s.), uma vinda pessoal (vv. 18s.), uma vinda junto com o Pai (v. 23). Mostraremos
que o evangelista se volta aqui fortemente para a linguagem e o mundo representativo
da teologia veterotestamentária da Aliança, como é encontrada no Deuteronômio e nos
escritos que dele dependem no Antigo Testamento e no judaísmo antigo. Para isso
aponta o tema do “amor” como ligação permanente entre Jesus e os seus.
Nos vv. 25-31 se percebe uma síntese final do capítulo. Retomam-se os temas da
partida de Jesus e de sua renovada volta aos seus, acrescentando-se a exortação à
intrepidez e o tema do amor.
A secção Jo 14,25-29 é marcada pelas promessas de Jesus para o futuro, em
primeiro lugar a renovada promessa do Espírito-Paráclito. Ressoa aqui o tema da
alegria, bem como o da paz. Mostrar-se-á que o evangelista aqui retoma temas dos
profetas exílicos e pós-exílicos. Estes revelam parentesco com outros textos do primeiro
cristianismo, os quais tratam do Reino de Deus.
37
Cf. supra, junto a Jo 11,33; 13,21; também J. BEUTLER, Psalm 42/43; ID., Habt keine Angst, 21-50; ID.,
Do not be afraid, 23-47, 107s.
Beutler D -59
Com os vv. 30-31, o evangelista encerra o discurso. Doravante Jesus não poderá
mais falar aos discípulos, visto que se aproxima o derradeiro confronto com o
Adversário. Não evitará esse confronto, de acordo com o que o Pai lhe mandou. Na
formulação, o evangelista se mostra influenciado pela tradição sinóptica, embora a
coloque a serviço de suas próprias intenções literárias e teológicas.
A pergunta acerca do gênero literário de Jo 14 não pode ser respondida em uma
única palavra. O capítulo mostra parentesco com os discursos de revelação na primeira
metade do Evangelho segundo João. Mas mostra também traços peculiares, indicando
parentesco com o gênero dos discursos de despedida. Por outro lado, não mostra muita
semelhança com os discursos de despedida nos textos greco-romanos ou gnósticos38.
Mais evidente é a influência de textos das tradições bíblicas e protojudaicas que
pertencem a este gênero. F. Cortès, entre outros, examinou esses textos39.
Segundo Cortès40, sobretudo os seguintes elementos do gênero podem ser
estabelecidos:
“1. O moribundo (ou o que está diante do arrebatamento) chama os seus para lhes falar. 2.
Ele dá suas exortações, entre as quais se destacam, por sua frequência, as obras de
misericórdia, a caridade, e o amor e concórdia fraternos. 3. Algumas frases a respeito do
futuro da comunidade ou a respeito do fim dos tempos encerram o discurso”. Aos
elementos de conteúdo assim apontados correspondem também alguns elementos
formais, como “1. o ‘chamar’ (qr’/kaleîn) dos filhos e dos filhos dos filhos; 2. o ‘mandar
(ordenar)’ (ṣwh/entéllesthai) para que guardem os mandamentos; 3. o termo de
tratamento ‘meus filhos’ (tékna [moû]), especialmente quando ligado à predição do
futuro”41.
Também segundo Cortès mostram-se, nos discursos de despedida bíblicos e pósbíblicos, influências da apocalíptica: a predição do futuro sob a pressão do presente; o
elemento midráxico na ressignificação ou atualização de textos bíblico; um elemento
sapiencial, que consiste na busca da compreensão ou significação da própria existência
diante da criação e o Criador42. Isso enseja então a interpelação “(meus) filhos”43. No
interior de Jo 14 encontram-se, sobretudo, o segundo e o terceiro desses elementos
formais. O característico entéllesthai “mandar/ordenar” encontra-se somente no fim do
capítulo, onde se fala da ordem dada a Jesus pelo Pai, mas os “mandamentos” (entolaí)
têm um papel importante na secção central do capítulo (vv. 15-24), que trata do amor a
Jesus e do guardar seus mandamentos. O mandamento do amor mútuo dos discípulos já
foi mencionado como “novo mandamento” em Jo 13,34s. Ali, na ouverture dos
discursos de despedida foi também usado tratamento “filhinhos” (teknía) (13,33).
O anúncio do futuro determina o cap. 14 inteiro. Jesus prediz sua partida iminente,
mas também a renovada vinda aos seus. Os discípulos deverão daí haurir coragem e não
ficar desanimados.
38
Antes se aponta o parentesco dos discursos de despedida em Jo com a literatura greco-romana de
consolação em geral ou em Sêneca em particular, cf. G. L. PARSENIOS, Departure; P. A. HOLLOWAY, Left
Behind; M. LANG, Abschiedsreden.
39
E. CORTÈS, Los discursos; cf. também E. VON NORDHEIM, Die Lehre der Alten I.
40
Vgl E. CORTÈS, Los discursos, 54.
41
Ibid., 56-61.
42
Ibid., 62-70.
43
Ibid., 69.
Beutler D -60
Também o elemento da intercessão pode pertencer ao gênero do discurso de
despedida44. No interior de Jo 14, ele se encontra tanto na promessa de Jesus de
interceder junto do Pai pelos seus (vv. 13s.), como no anúncio do “Paráclito”, do
“Auxílio”, nos vv. 16s. e 26.
Para a explicação de Jo 14 são importantes os contatos entre o gênero dos
discursos de despedida e o midraxe. A maioria dos textos judaicos que pertencem ao
gênero do discurso de despedida provém do tempo pós-bíblico. Eles gostam de utilizar
relatos de partida ou de arrebatamento de grandes figuras do Antigo Testamento, para
reconfigurá-los como discursos de despedida45. Coisa semelhante pode também ter
influenciado os discursos de despedida em João. E não só o midrash haggadá, que
utiliza elementos narrativos, mas também o midrash halaká, que trata da explicação
certa da Torá. É possível que tenham um papel na configuração da secção central do
capítulo, que fala do amor a Jesus e do guardar seus mandamentos. No início parece que
se retoma e reinterpreta o Sl 42-43; no fim encontram-se elementos de promessa
profética dos profetas pós-exílicos.
II
A partida de Jesus e sua vinda renovada (14,1-4)
Os primeiros quatro versículos de Jo 14 introduzem no primeiro discurso de
despedida e apresentam seus principais temas: a partida de Jesus e sua renovada vinda.
No início, no v. 1, ouve-se um apelo aos discípulos para que tenham coragem e
confiança. Nos vv. 2-3, o evangelista cita a razão da confiança dos discípulos: Jesus
parte, mas é para preparar-lhes um lugar. Depois ele voltará para conduzir os seus
consigo. No v. 4, o tema muda: em vez do lugar que Jesus prepara para si e para os seus
aparece agora o tema do caminho.
14,1
No início do capítulo e também da primeira breve secção, encontra-se o apelo de
Jesus aos discípulos para que não tenham medo, mas tenham fé em Deus e nele. Há
algumas particularidades linguísticas. A expressão “vosso coração” chama a atenção,
porque o substantivo está no singular, mas o pronome possessivo é o do plural. É
também incomum que Jesus, desviando-se de seu modo usual, exorta os seus à fé, não
só nele, mas também no Pai. E pergunta-se, também, qual é o sentido do “crer” no v. 1;
decerto contrapõe-se à confusão e conturbação dos discípulos em consequência de sua
despedida iminente. O uso de pisteúein afasta-se aqui da utilização costumeira de João.
Estas observações podem melhor ser entendidas à luz das tradições que o
evangelista utiliza. Suspeita-se que ele recorre principalmente a Sl 41,6.12; 42,5 LXX46.
Este salmo, que já apontamos na exegese de Jo 13,21, parece ter sido utilizado por João
diversas vezes no seu relato da Paixão. O “refrão” citado encontra-se três vezes neste
salmo duplo (Sl 41,6.12; 42,5 LXX), cada vez no fim de uma estrofe. Neste refrão, o
salmista mostra-se cheio de confiança em Deus. Enquanto o evangelista em 13,21
retoma claramente Sl 41,7 LXX, em 14,1 ele parece utilizar o refrão (como Mc em
14,34). Apenas troca psykhḗ (“alma’) por kardía (“coração”) e elpízein (“esperar”) por
pisteúein (“crer, confiar”), verbo mais usual no Quarto Evangelho. Assim se explicaria
44
Ibid., 372-376.
Ibid., 298-365.
46
Cf. J. BEUTLER, Psalm 42/43, 96s.; ID., Habt keine Angst, 28s.; ID., Do not be afraid, 25s.
45
Beutler D -61
por que o evangelista, exatamente aqui e só aqui, fala de “crer” em Deus. Mas,
evidentemente, a fé em Jesus significa para ele a forma concreta da fé em Deus.
14,2-3
Os dois versículos que agora se seguem estão intimamente interligados. Isso
aparece na repetição do vocabulário “ir para preparar-vos um lugar” (poreúesthai,
hetoimásai tópon hymîn). Estas combinações encontram-se no meio da construção da
frase. No início está a promessa de muitas moradas para os discípulos na casa do Pai, no
fim, a promessa de que voltará para levar os seus a essas moradas. No v. 2 é objeto de
discussão a autenticidade das palavras “se não fosse assim” (ei dè mḗ). Há quem veja
nas palavras “eu vos teria dito” uma afirmação47. A maioria dos exegetas, porém, e com
boas razões, vê aqui uma pergunta. Todavia, não se sabe quando Jesus disse que ia
embora para preparar um lugar para os seus. Em todo o caso, trata-se de um reconforto.
Os discípulos deverão ter a certeza de que não estão sendo separados de seu mestre,
pouco importa onde ele se encontre.
A exegese dos dois versículos não é unânime. Quem não reconhece qualquer
escatologia futura no Quarto Evangelho procurará dar a estas palavras um sentido
espiritual ou existencial48. Ao contrário, parece aconselhável entender o anúncio ao pé
da letra, no sentido da escatologia futura, que o cristianismo primitivo herdou da
Apocalíptica49.
O texto-chave para a compreensão da escatologia que se exprime em Jo 14,2s. é
1Tm 4,13-18. Nesse texto, Paulo se refere expressamente à tradição cristã. Diz que se
trata de uma “palavra do Senhor”. Procura consolar os membros da comunidade que
perderam um companheiro ou amigo. Os que morreram no Senhor terão a mesma sorte
que os que ainda estiverem com vida quando da volta de Cristo. Assim como os
falecidos serão então, pelo Senhor, chamados de seus sepulcros, assim também virá o
Senhor buscar aqueles que ainda estiverem com vida, para arrebatá-los consigo ao céu,
o que aparentemente é imaginado de modo bem concreto. Paulo, sem dúvida, tomou
essa representação do judaísmo e do primeiríssimo cristianismo, como mostra um olhar
sobre os evangelhos sinópticos (Mc 13 par.). Trata-se de representações apocalípticas
baseadas no livro de Daniel e na literatura apocalíptica do judaísmo. 1Ts 4,13-18 é o
texto que mais se aproxima do cap. 15 da 1ª Carta aos Coríntios (cf. sobretudo 1Cor
15,5s.).
A representação de um “João apocalíptico” provoca evidentemente susto. Por isso
não faltam tentativas para ler Jo 14,2s. de modo existencial ou espiritual. Assim se
podem ler estes versículos à luz de 14,23, onde Jesus promete que ele o Pai farão
morada em cada um que crê e ama. Ali o movimento vai no sentido inverso, e não se
fala de moradas que Jesus vai preparar para os seus na casa do Pai. Dificuldades
semelhantes se colocam diante da tentativa de R. Bultmann para interpretar 14,2s.
existencialmente. Segundo Bultmann, o evangelista fala aqui uma linguagem mitológica
que exige interpretação50. A finalidade do texto seria conduzir o público leitor a uma
forma de comunhão com Cristo que se apoia sobre a fé e ajudar os fiéis a viver esta fé
no momento concreto.
47
Semelhantemente R. BULTMANN, 464, o qual, porém, não chega a uma conclusão.
Cf. os respectivos autores em J. FREY, Johanneische Eschatologie III, 131-153.
49
Assim o próprio J. FREY , loco citato, bem como G. FISCHER, Die himmlischen Wohnungen.
50
Cf. R. BULTMANN, 463-465.
48
Beutler D -62
Com boas razões, J. Frey51 contradiz tais tentativas de tornar o texto mais
palatável ao leitor moderno. Segundo ele, deve-se manter o texto em seu sentido
apocalíptico original. Também não adianta invocar aqui uma redação pós-joanina, que
teria interpolado, no original Evangelho segundo João, os enunciados da escatologia
futura (como em Jo 5,28s.). Segundo Frey, foi de modo consciente que o evangelista
justapôs palavras de escatologia futura a outras, caracterizadas pela escatologia
presente. O texto de Jo 14,5-24, na continuação de 14,2-3, seria um exemplo escolar de
tal sequência. Admite se como hipótese de trabalho em João um prolongado processo de
crescimento, que, da escatologia futura, conduz a uma escatologia que vê dados, já no
presente, os eventos que se esperam para o futuro. Frey toma como ponto de partida que
os diversos modelos escatológicas em João não suplantam um a outro, fazendo com que
modelos de escatologia presente suplantassem os da escatologia futura. Contudo, tem-se
a impressão de que, em João, os dois modelos não estão em pé de igualdade, mas que o
modelo da escatologia presente goza da preferência do evangelista. Isso se verificará
também ao longo da exegese de Jo 14. Também neste caso pode-se ver uma “releitura”
semelhante àquela que, sob outros aspectos, se mostra uma hipótese proveitosa em Jo
14–17.
14,4
Do ponto de vista narrativo, este versículo ainda pertence à abertura do primeiro
discurso de despedida. Jesus continua com a palavra. Quanto ao conteúdo, anuncia-se
aqui uma nova visão da futura relação entre Jesus e os seus, e a linguagem apocalíptica,
certamente inacessível aos leitores greco-romanos, é abandonada. Ponto de partida é
novamente o “ir embora” de Jesus, já mencionado nos vv. 13,33 e 13,36s. O “ir
embora” de Jesus é agora esclarecido por uma nova imagem, a do “caminho”. Esta
imagem pode surpreender neste lugar. A seguir procuraremos esclarecê-la a partir da
tradição utilizada. Apresenta-se, mais uma vez, o Sl 42-43, que já referimos na
explicação do v. 1. Este salmo, como observam os comentadores, é ao mesmo tempo
oração do justo sofredor e cântico de peregrinação de um israelita que se encontra longe
de Jerusalém, “anseando” por este santuário como uma corça que anseia por uma fonte
de água. Em Sl 42,3 LXX, o orante suplica o Senhor para que ele o “conduza”
(hodēgeîn) a seu monte santo por sua luz e sua verdade. A seguir veremos aparecer estes
conceitos.
A partida de Jesus e a ligação com ele na fé (14,5-14)
Sob o aspecto narrativo, começa uma nova secção no v. 5. Mas a sucessão dos
interlocutores não basta para definir a divisão do texto. A contribuição de Filipe no v. 8
parece ter menos peso que a de Tomé no v. 5. Quando se olha a organização do capítulo
inteiro, reconhece-se nos vv. 1-4 a introdução para o duplo tema da partida e da nova
vinda de Jesus. Os vv. 5-14 desdobram o tema da partida e os vv. 15-24 o tema de sua
renovada vinda, com os diversos modelos de como entender essa vinda. Nos versículos
conclusivos, ambos os temas são retomados sob um novo aspecto (v. 28).
O tema da partida de Jesus é introduzido no v. 5 e, em seguida, desenvolvido sob
o aspecto da uma ligação permanente dos discípulos com Jesus por meio da fé. Entre os
versículos que descrevem a atitude dos discípulos, o “crer” (pisteúein) parece ser
especialmente significativo. Aparece pela primeira vez no v. 10 e é retomado duas vezes
no v. 11 e ainda no v. 12. Este verbo vai ser substituído, na secção seguinte, vv. 15-24,
51
Cf. supra, nota 48.
Beutler D -63
pelo “amar” (agapân) como expressão do laço permanente dos discípulos com Jesus.
Por isso pode-se dizer que a parte central se deixa dividir nos vv. 5-14, “A partida de
Jesus e a ligação com ele na fé”, e vv. 15-24, “A renovada vinda de Jesus e a ligação
com ele no amor”52.
A secção é articulada em primeira linha pela troca da interlocução entre Jesus e os
discípulos. Um primeiro grupo de versículos começa com a pergunta de Tomé, à qual se
segue a resposta de Jesus (vv. 5-7). Segue uma palavra de Filipe com nova resposta de
Jesus (vv. 8-11). Como bem notaram os comentaristas, os vv. 12-14 são acrescentados
de modo frouxo mediante uma palavra-chave relativa ao “crer”.
14,5-7
A entrada na nova temática já segue no v. 5 com o uso das palavras que Jesus
usou no v. 4. Há um deslocamento: do lugar para onde Jesus vai o tema muda para o
caminho. Para Tomé, o caminho é somente um meio para chegar ao lugar onde Jesus se
encontra. Jesus, porém, se vê a si mesmo como sendo esse caminho. No v. 6 encontra-se
uma primeira frase nominal, relacionada com Jesus mesmo. Outras frases nominais
seguirão (vv. 9, 10 e 11). A relação dos três conceitos “caminho, verdade e vida” é
objeto de explicação desde o tempo de Agostinho. Na visão joanina Jesus é o caminho
na medida em que ele comunica a “verdade”, a revelação que vem de Deus e que leva à
vida. A estrutura do v. 6 corresponde àquela de outras “palavras de revelação” no
Evangelho segundo João (cf. as outras proclamações “eu sou” de Jesus em Jo 6,35;
8,12; 10,7.9.11.14; 11,25; 15,1). Elas são estruturadas como “autoapresentação”,
“convite”, “promessa” e “ameaça” (um dos últimos dois elementos pode faltar)53.
No que segue, o trilhar o “caminho” é descrito como um processo de
conhecimento. Quem conhece Jesus conhece também o Pai e viu-o. A sequência dos
três motivos ou imagens com os quais Jesus se identifica melhor se entende a partir do
último motivo enunciado na promessa de Jesus: ele mesmo é doador da Vida, ele é a
vida. Isso é de sua competência porque ele é o “caminho” e a “verdade”. O “caminho”
orienta a atenção para quem recebe a promessa, a “verdade”, para quem a enuncia e
cumpre. Que Jesus não apenas traz a verdade – no caso, como revelação da parte do Pai
a respeito de si e a respeito do ser humano –, mas que ele a é, isso faz surgir sérios
problemas de compreensão tanto para os leitores antigos como para nossos
contemporâneos. A palavra de Jesus soa dura, inaceitável até, diante da necessidade do
diálogo inter-religioso hoje e sempre. No Evangelho segundo João Jesus se revela como
quem traz, como quem encarna a “verdade” (apesar de Jo 18,37) principalmente em
vista do povo de Deus, Israel. Precisamente aqui cabe renovada atenção para a
compreensão exata da “pretensão de ser absoluto” percebida no cristianismo joanino e
no próprio Jesus joanino54. Decisivo é, neste respeito, que o cristianismo anunciado no
Evangelho segundo João não deve ser visto em oposição a Israel, mas como a
“plenificação” escatológica e messiânica dele.
Com o “ver Deus” no v. 7 apresenta-se um tema escatológico. Com isso se dá
uma transição da escatologia futura, que espera a volta de Cristo no fim do tempo, para
a escatologia presente, que vê realizada desde agora, na fé, a visio beatifica no ver
52
Semelhantemente já R. BULTMANN 473.
Cf. S. SCHULZ, Komposition, 86s.
54
Cf. para isso, entre a multidão de literatura recente, a dissertação de Zurique de P. G. KIRCHSCHLÄGER,
Nur ich bin die Wahrheit, e seu artigo “Ich bin der Weg”; também o comentário de K. WENGST II 120S.,
advertindo, com razão, contra a ilação de que Israel não teria acesso ao Pai sem Jesus.
53
Beutler D -64
Jesus. Com razão, os comentadores divisam nestes versículos a visão
caracteristicamente joanina da escatologia. Apenas continua aberta a pergunta de se o
evangelista pretendeu substituir o modelo da escatologia futura, evocado nos vv. 2-3, ou
se ele justapõe, conscientemente, os dois modelos. Esta última interpretação parece mais
plausível e mais de acordo com os versículos iniciais 2-3.
Enquanto o vocabulário dos vv. 5-14 é marcadamente joanino, o verbete mais
marcante, “caminho”, aparece, no Evangelho segundo João, fora deste lugar, só em 1,23
(numa citação de Isaías); não pertence e, portanto, ao vocabulário característico de João.
Por isso deve-se perguntar se aqui se revele um elemento da tradição. Novamente, nosso
olhar se volta para o Sl 42-43. Já mostramos que este salmo duplo pertence a dois
gêneros diferentes: lamento do justo perseguido e canto de peregrinação expressando a
saudade do orante que se encontra longe do santuário, no Hermon. Assim, o salmista
reza, em Sl 43,3 (hebr.): “Envia tua luz e tua verdade, para que me conduzam; hão de
conduzir-me a teu monte santo e à tua morada”. Sl 42,3 LXX concorda ao menos
parcialmente com isso: “Envia tua luz e tua verdade, elas me conduziram e guiaram a
teu monte santo e às tuas tendas”. O verbo significando “conduzir” é, aqui, hodḗgein,
“conduzir por um caminho”. As “tendas” podem ser as “moradas” de que fala Jo 14,2.
O salmo geminado 42-43 é o único no qual a “casa de Deus” (para João, a “casa do
Pai”) e as “moradas” (miškenôt) se encontram juntas. O tema do caminho poderia provir
deste salmo, pois parece ligado ao tema da “verdade”.
A retomada de Sl 42-43 como expressão da saudade de Jesus em relação às
moradas celestes torna-se possível pelo fato de que, na época do Segundo Templo, era
corriqueira uma compreensão escatológica dos salmos de peregrinação, com prova a
exegese de Sl 65,5 e Sl 46,5 no Targum. No midraxe (tardio) dos Salmos, o Sl 43,4 é
entendido escatologicamente, em relação aos romeiros que no futuro peregrinarão à
montanha de Deus. O “Jesus” joanino podia, portanto, apoiar-se em tais tradições ao
interpretar o Sl 42-43 escatologicamente. O salmo teria então seu cumprimento no
próprio Jesus como portador de “verdade e vida” e como guia para as moradas santas de
Deus.
No mesmo sentido aponta a observação referente à visio Dei, elemento preparado
no Sl 42-43. Em Jo 14,7-9 esta visio é retomada e ressignificada como visio Iesu. Isso
faz pensar no Sl 42,3 (hebr.), onde se reza: “Quando poderei chegar e ver a face de
Deus?”. Esta pergunta corresponde à dos inimigos do orante, em Sl 42,4: “Onde está
teu Deus?”. É a estas perguntas que Jesus responde.
14,8-11
Nos versículos seguintes desenvolve-se o tema da visio Dei na visio Iesu. A
pergunta de Filipe serve para que o discurso de despedida de Jesus possa desenvolverse. A razão profunda da possibilidade de ver Deus quando se vê Jesus se encontra na
união consubstancial do Pai e do Filho no seu mútuo “ser-um-no-outro”. Esta
representação de uma mútua imanência não tem raízes bíblicas, mas é conhecida no
judaísmo helenista55. A partir do v. 10c (“as palavras”), a mútua imanência de Pai e
Filho é especificada pelo falar e pelo agir. No v. 10cd mostra-se a unidade de Pai e
Filho em sua palavra, no v. 10e se dá uma transição para a unidade de Pai e Filho na
“obra”. As obras que Jesus realiza na força do Pai podem servir de motivo para a fé nele
(v. 11). Esta unidade de “palavras” e “obras” de Jesus se mostra também em Jo
55
Extensamente em K. SCHOLTISSEK, In ihm sein und bleiben.
Beutler D -65
15,22.24, onde se expressa uma estreita união de ambos os elementos como fundamento
da fé.
14,12-14
A promessa de Jesus nos vv. 13-14, de que ele concederá tudo o que lhe pedirem
em oração, deve ser entendida diante do pano de fundo escatológico dessa promessa.
Também para isso conhecemos precedentes bíblicos.
Evidentemente, não se encontram no Antigo Testamento paralelos para a
indefectibilidade da oração em nome de Jesus. Costuma-se apontar para Gn 18,22-23,
onde a intercessão de Abraão é capaz de fazer Deus mudar de ideia. No Novo
Testamento deve-se pensar na promessa de Jesus depois da maldição da figueira em Mc
11,22-24par. Em João o próprio Jesus garante o que é pedido; é em seu nome que se
deve orar. Também a ideia de que, deste modo, Deus é glorificado corresponde à
linguagem e o modo de pensar de João (Jo 17,1-5);
A nova vinda de Jesus e a ligação com ele no amor (14,15-24)
No v. 15 muda a perspectiva do capítulo. O assunto do discurso não é mais a
iminente partida de Jesus, mas sua vinda renovada. Significado estrutural tem, nisso, o
verbo “vir”. No que parece, o evangelista imagina este novo vir de Jesus como um vir
no Espírito-Paráclito, mas também como um vir pessoal de Jesus e como um vir de
Jesus para, unido com o Pai, morar junto aos discípulos56.
Linguisticamente temos em Jo 14,15-24 dois tipos de frases. As primeiras são as
orações condicionais e finais, que exprimem uma conexão entre o “amor” a Jesus, o
guardar seus mandamentos e determinadas promessas ligadas ao cumprimento das
condições. Essas frases encontram-se nos vv. 15, 21, 23 e 24. Podem ser designadas
como “versículos-moldura”.
Além desses “versículos-moldura” há outras frases, de construção diferente,
sobretudo a dos vv. 16-17. Nesta frase, de construção extensa, encontramos, depois de
uma dupla oração principal, um aposto, uma oração relativa e uma oração causal. Outra
oração causal encontra-se depois da seguinte oração principal u`mei/j ginw,skete auvto, no
v. 17. Nestas frases, Jesus fala repetidamente de seu agir futuro (vv. 16, 18 e 19) com
relação ao cumprimento da condição expressa nos “versículos-moldura” (v. 21 como
preparação ao v. 22, cf. infra).
Os “versículos-moldura” e as promessas de Jesus têm, respectivamente, pano de
fundo diferente na história da tradição, como mostraremos a seguir.
14,15
No “versículo-moldura” introdutório, Jesus exorta os discípulos a amá-lo e a
guardar os seus mandamentos. Ao longo da secção, ele varia este “versículo-moldura”.
Nos vv. 15 e 22, o guardar os mandamentos é fruto e marca do amor a Jesus. Nos vv. 23
e 24, a ideia á a mesma, mas em vez dos “mandamentos” Jesus fala de sua “palavra” ou
suas “palavras”; quem ama Jesus guardará sua palavra (v. 23), quem não ama Jesus não
guardará suas palavras (v. 24). Assim, a ordem lógica é mutável.
O vocabulário e o ideário do v. 15, bem como o “versículo-moldura” inteiro, têm
raízes na linguagem bíblica57. O campo lexical “amar” (a Deus) e “guardar seus
56
57
Assim já M.-É. BOISMARD, Évolution.
Cf. para isso J. BEUTLER, Habt keine Angst, 55-62; ID., Do not be afraid, 52-58.
Beutler D -66
mandamentos” remonta à mais antiga tradição de Israel. A primeira atestação encontrase no Decálogo, em relação ao primeiro mandamento. Deus promete sua fidelidade e
benção àqueles que o amarem e guardarem seus mandamentos (Ex 20,6; Dt 5,10). O
campo semântico aqui utilizado é fundamental para a teologia do Deuteronômio
(sobretudo Dt 5–11), chamada de “mandamento principal” por N. Lohfink58. Este
campo semântico remonta ainda mais longe no passado. Aparentemente pertence ao
vocabulário e imaginário dos pactos de vassalagem no antigo Oriente, pelos quais um
rei vassalo se obrigava a “amar” um rei soberano e a “guardar seus mandamentos”,
como base da “aliança” do soberano com seus vassalos59. A importância desse mundo
linguístico e imagético foi mostrada por A. Malatesta (no Pontificío Instituto Bíblico)60.
Os principais textos para o “amar” (a Deus) e o “guardar seus mandamentos” são Dt
5,10 (Decálogo); 7,9; 10,12s.; 11,1.13.22; 19,9 e 30,6.16.20. O texto fundamental é,
evidentemente, Dt 6,4ss., o preceito de amar a Deus guardando seus mandamentos, na
introdução (Dt 6,1-3) e no texto (6,4ss.), como fidelidade às “palavras” do Senhor. A
ligação com o tema da “Aliança” aparece em Dt 7,9: “Saberás, pois, que o SENHOR,
teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações
para os que o amam e guardam os seus mandamentos”.
O campo lexical que aqui aparece será assumido pela escola deuteronomista e por
textos ulteriores: Js 22,5; 1Rs 3,3; Ne 1,5; Dn 9,4. Uso sapiencial aparece em Eclo
2,15s. Acrescem textos protojudaicos, como Jub 20,7; 36,5 ss.; TestXII Benj 3,1, e.o.
Na comunidade de Qumrã, Dt 7,9 é referido imediatamente à comunidade (CD 19,1s.,
cf. 20,21s.; 1QH 16,7.13.17).
No Novo Testamento mostra-se que o amor a Deus quase sempre é expresso em
fórmulas do Antigo Testamento. Assim, em Mc 12,28-34 parr.; Rm 8,28; 1Cor 2,9
(estilo participial). Para o Evangelho segundo João, essa ligação à tradição aparece em
Jo 5,42.44 e 8,41s., dois textos aparentemente influenciados por Dt 6,4ss.61
14,16-17
Os versículos 16 e 17 estão conectados imediatamente ao v. 15 e contêm uma
promessa para os discípulos, se amarem Jesus e guardarem seus mandamentos. Ele
pedirá por eles, da parte do Pai, o Espírito-Paráclito. Como já se mostrou na introdução,
ambos os versículos revelam uma estrutura gramatical complexa. Dá a impressão de que
um texto previamente dado foi ampliado com motivos joaninos. Tais ampliações
poderiam ser: o fato de Jesus orar ao Pai pelo Paráclito (cf. v. 26); 16,12; 1Jo 5,7) e a
impotência do mundo – ao contrário dos discípulos – para ver e conhecer o tal Espírito.
À tradição poderiam pertencer a nomeação do Espírito como Paráclito, “auxílio”, e sua
designação em termos de “dom” divino, a ser concedido aos discípulos para sempre.
A última promessa tem sua base bíblica em Ez 36,26s., texto influenciado pela
tradição da “Nova Aliança” de Jr 31,31ss.62. Segundo o texto de Ezequiel, Deus no
futuro “dará” seu Espírito a seu povo e o capacitará a viver segundo seus mandamentos
pela força desse Espírito que lhes será concedido.
58
N. LOHFINK, Das Hauptgebot.
Cf. D. J. MCCARTHY, Treaty and Covenant.
60
Cf. E. MALATESTA, Interiority and Covenant.
61
Cf. J. BEUTLER, Das Hauptgebot.
62
Cf. para o que segue J. BEUTLER, Habt keine Angst, 62-69; ID., Do not be afraid, 58-64, 109.
59
Beutler D -67
A designação do Espírito como “Paráclito” só se encontra, no Novo Testamento,
em João (Jo 14,16.26; 15.26; 16,7; 1Jo 2,1)63. No uso extrabíblico, na Antiguidade, o
termo parece ter duas dimensões: a dimensão “derivada”, no sentido de um intercessor,
e a dimensão “paratática”, no sentido de um auxílio mandatado64. O Novo Testamento
conhece Jesus como “intercessor” pelos seus (Rm 8,34;Hb 7,25), e uma vez também o
Espírito (Rm 8,27). Em Jo 14,16 pressupõe-se Jesus como “paráclito” dos seus, o que
parece ser retomado em 1Jo 2,1. Agora vem no lugar de Jesus um “outro paráclito”, a
saber, o Espírito, que no lugar de Jesus auxiliará os discípulos.
14,18-21
Nos versículos seguintes, Jesus anuncia sua nova vinda de outro modo, não mais
no Espírito-Paráclito, mas na vinda pessoal aos seus. Que ele não os deixará órfãos é
dito no futuro, mas sua nova vinda é expressa no presente. O termo “vir” suscita
atenção. Via de regra, no Novo Testamento o termo é usado em relação à vinda
escatológica de Jesus no fim do tempo, como o “vir” do Filho do Homem (cf. Mc 13,26
par., retomando Dn 7,13, onde já se fala do “ver”). Em nosso texto aqui não parece
tratar-se de um futuro longínquo, mas de uma vinda de Jesus ainda no tempo histórico.
É o que se confirma em Jo 20,19.26, onde Jesus, na tarde da Páscoa e ainda uma vez
oito dias depois, “vem” aos seus discípulos (expressão singular para textos pascais, que
mostra que para João a vinda escatológica de Jesus se dá na Páscoa ou a partir da
Páscoa). Fica aberto, no presente texto, como se deve pensar esse “vir” de Jesus.
Logo se segue, no v. 19, mais um dito a respeito do “pouco (de) tempo” (mikrón).
Já em 13,33 tinha sido mencionado esse “pouco tempo”. Em Jo 13,33, Jesus anunciou a
mesma coisa aos discípulos e disse que não poderiam chegar aonde ele estava indo.
Agora, em 14,19, faz-se uma distinção entre “o mundo”, que não verá Jesus, e os
discípulos, que o verão. Trata-se, portanto, de uma forma da percepção na fé. Para isso
aponta também a conexão da promessa com a “vida”. Os discípulos, futuramente, isto é,
no tempo pós-pascal, “viverão” e participarão da “vida” de Jesus.
“Naquele dia”, no v. 20, não significa, portanto, como no uso apocalíptico, o fim
dos tempos, mas o momento da nova presença, pós-pascal, de Jesus. Então os discípulos
reconhecerão que ele está no Pai, eles nele e ele neles. A ideia da imanência de Pai,
Filho e discípulos não tem precedentes bíblicos imediatos, mas aponta para
representações do judaísmo helenista65. É retomada ainda diversas vezes ao longo dos
discursos de despedida (Jo 15,1-8; 17,21.23) e volta na primeira carta de João (1Jo 2,5;
4,12).
No v. 21 é retomado o v. 15, conectado, porém, a uma nova promessa. Agora a
formulação parece mais sapiencial pelo uso do particípio generalizante, em vez da
apóstrofe direta no v. 15. A promessa de que os que guardarem os mandamentos de
Jesus serão “amados” de Deus e de Jesus se encontra preparada no Deuteronômio, onde
se diz que Deus amará aqueles que forem fiéis à sua Aliança (Dt 7,13; cf. 23,6). Esta
promessa combina bem com a formulação de sua condição, já expressa em Jo 14,15 e
agora repetida. O “mostrar-se” de Jesus em consequência da promessa tem parentesco
com o “ver” que já foi mencionado no v. 19. O verbo utilizado, emphanízein, só ocorre
aqui em João e é raro também no restante do Novo Testamento. Em Mt 27,53 indica o
63
Cf. F. PORSCH, para,klhtoj) Agora mais extensamente D. PASTORELLI, Le Paraclet.
Cf. D. PASTORELLI, Le Paraclet, 102-104.
65
Cf. K. Scholtissek, In ihm sein und bleiben.
64
Beutler D -68
“aparecer” dos mortos que se levantam dos sepulcros na hora da morte de Jesus, num
contexto apocalíptico, que aparece aqui em Jo em forma variante.
14,22-24
A pergunta de Judas, não o Iscariotes, mostra que o “manifestar-se” de Jesus
significa um ser visto, que no v. 19 ficava recusado ao mundo, agora porém aparece
como uma iniciativa de Jesus mostrando-se. Por que Jesus se mostra apenas aos
discípulos e não ao mundo?
A resposta de Jesus no v. 23 começa com a fórmula de afirmação reiterada que,
em João, sempre dá um peso especial às palavras de Jesus. De novo, Jesus liga sua
vinda aos seus, e com isso também sua manifestação, ao amor para com ele e ao guardar
sua palavra, que aqui parece equiparada a seus “mandamentos”. Trata-se, portanto,
novamente, da fidelidade à relação de aliança. Como já no v. 21, promete-se, a quem
ama Jesus e guarda sua palavra, o amor do Pai. Mas o texto vai mais longe. Jesus e o
Pai virão e farão morada nos discípulos. A ideia é nova, ao mesmo tempo em que
retoma um anúncio anterior. Em Jo 14,2s., Jesus tinha prometido que iria embora para
preparar uma morada para os seus junto a Deus. O que ali se formulou em linguagem
apocalíptica, agora se torna uma promessa na linguagem e imaginário do evangelista e
na presença dos fiéis. Eles não apenas terão uma morada futura junta a Deus, nas tendas
celestes, mas Deus arma sua tenda junto a eles (um eco de Jo 1,14).
Assim temos um terceiro modelo de como o evangelista pensa a nova vinda de
Jesus: no Espírito (Jo 14,16s.), como vinda pessoal de Jesus (vv. 18-21) e como vinda
de Jesus e do Pai (vv. 22-24).
No v. 24, o enunciado de Jesus é formulado negativamente: quem não ama Jesus
não guarda seus mandamentos. Com isso expressa-se a razão por que um experimenta a
inabitação de Jesus e do Pai, mas outro não: trata-se da acolhida da palavra de Deus que
Jesus comunicou. Diante de Jesus decide-se o destino da pessoa humana.
Também para este terceiro modo de descrever a nova vinda de Jesus podemos
apontar uma preparação no Antigo Testamento66. O texto de Nestle-Aland (28ª ed.) dá
uma dica: Ez 37,27. Neste texto, Deus anuncia, pelo profeta, que ele fará sua morada no
meio de seu povo. Segundo o contexto trata-se da Nova Aliança, como se aprende pela
menção à “aliança de paz” no v. 26 e pela fórmula da aliança no v. 27, “eu serei o seu
Deus e eles serão o meu povo”. Textos semelhantes são Ex 43,7.9; Lv 26,11; 1Rs 6,1113.
O tema da “morada” remete novamente ao início do capítulo. Já encontramos as
“moradas” de Deus no templo em Sl 42-43 (Sl 43,3!). O evangelista apenas substituiu
skēnṓmata (“tendas”) por monaí (“moradas”), termo que combina melhor com sua
teologia do “permanecer/morar” de Cristo e em Cristo. A nova interpretação do tema
apocalíptico das “moradas” divinas certamente encontrou boa acolhida junto às leitoras
e leitores de cultura greco-romana e parece mais inteligível também ao público leitor de
hoje.
Olhando para trás, mostra-se, em Jo 14, onde se descreve a nova vinda de Jesus,
permanentemente a influência da teologia da Aliança do Antigo Testamento. Tanto as
condições para as promessas de Jesus (amá-lo e guardar seus mandamentos) como suas
promessas deixam transparecer a influência do pensamento da Aliança. A fidelidade à
66
Cf. J. BEUTLER, Habt keine Angst, 72-77; ID., Do not be afraid, 67-70, 109.
Beutler D -69
Aliança torna possível a experiência do amor de Deus. Este se mostra sobretudo no
cumprimento das promessas da “Nova Aliança”, da qual se fala já desde Jr 31,31 e que
aparece também em Ezequiel. Este anuncia que Deus dará ao povo seu Espírito (Ez
36,26) e morará no meio deles (Ez 37,27). Diante desse pano de fundo, o pensamento de
Jo 14,15-24 mostra-se extremamente coerente.
O encerramento do primeiro discurso de despedida (14,25-31)
Com Jo 14,25-31 termina o primeiro discurso de despedida. Alguns autores
gostariam de incluir o segundo lógion sobre o Paráclito, vv. 25s., dentro do contexto
precedente67. Outros o consideram uma unidade textual em si68. Contudo, recomenda-se
considerar ambos os versos como início da última secção de Jo 14 69. Formalmente isso
é indicado pela introdução: “Eu vos tenho dito essas coisas” no v. 25. Quanto ao
conteúdo, mostraremos que as promessas do Espírito e de paz e alegria são solidárias
quanto ao tema e quanto à história da tradição. Por isso ligamos os vv. 25s. ao contexto
subsequente.
No interior desta secção constatamos solidariedade entre os vv. 15-19 por um lado
e os vv. 30-31 por outro. Ao “eu vos disse essas coisas” no v. 25s. corresponde o “dissevos isso agora” no v. 29. Em ambos os casos, o evangelista usa o perfeito, e só nestes
lugares nos discursos de Jesus de Jo 14 (tauta lelálēka, nyn eírēka). Assim mostra-se
também linguisticamente o enquadramento deste grupo de versículos. Jesus leva aqui as
suas palavras aos discípulos a uma conclusão provisória. Em ambos os últimos
versículos (v. 30s.), Jesus prediz o que lhe está na frente e diz que a partir de agora não
mais falará muito aos discípulos (oukéti pollà lalḗsō meth’hymôn), porque virá o
“dominador do mundo”. Todavia, o mundo deve saber que ele entra na sua Paixão em
obediência ao Pai. Por isso, ordena aos discípulos que se levantem e vão com ele ao
lugar onde será preso.
Os primeiros cinco versículos da secção (vv. 25-29) têm caráter de síntese.
Retomam temas dos versículos anteriores: dos vv. 16s., a promessa do Espírito, no v.
26; do v. 1, o tema do medo, no v. 27; dos vv. 2s., 5-14 e 15,24, os temas da partida e da
renovada vinda de Jesus, no v.28; dos vv. 15, 21 e 23s., o tema do amor, no v.28; dos
vv. 1 e 10-12, o tema da fé, no v. 29. Mas há também temas novos, como o da alegria
(v. 28) ou da paz (v. 27). Ao estudar a história da tradição se mostrará que os temas da
paz, do amor e do Espírito Santo já se encontram interligados na tradição bíblica.
Também nos vv. 30s. há traços de tradição, no caso, dos sinópticos.
14,25-26
Os primeiros dois versículos da secção se conectam pelo conteúdo. Jesus dá a
conhecer, novamente, sua despedida iminente. Mas ele não deixará os seus sós, mesmo
se não falar mais com eles. O Pai, com efeito, mandará o Paráclito, o Espírito Santo, que
ensinará aos discípulos tudo e lhes lembrará tudo o que lhes disse. À diferença do v. 16,
o Espírito não é, aqui, chamado de “outro Paráclito”. Assim, ele entra plenamente no
lugar de Jesus, retomando o papel deste. Agora é descrito o conteúdo de sua missão, que
no primeiro lógion tinha ficado indefinido. Ele será o mestre dos discípulos, mas não de
maneira autônoma, e sim, trazendo à memória dos discípulos as palavras de Jesus.
14,27-29
67
Cf. R. SCHNACKENBURG; J. BECKER II; S. MIGLIASSO, La presenza; K. SCHOLTISSEK, Relecture, 13s.
Cf. S. SCHULZ; J. BLANK.
69
Cf. para isso e para o que segue J. BEUTLER, Habt keine Angst 87-104; ID., Do not be afraid 79-93, 109.
68
Beutler D -70
A promessa do Espírito Santo nos vv. 25s. dirige-se antes à inteligência dos
discípulos. Nos vv. 27-29, Jesus se mostra solícito sobretudo pela serenidade interna, a
alegria e a paz dos discípulos. A “paz” do v. 27 se contrapõe à “perturbação”
mencionada no mesmo versículo. É vista numa perspectiva dualista, como paz não do
mundo. Como nos vv. 1-3, a razão por que os discípulos não devem ficar perturbados
está no fato de que Jesus, depois de sua despedida, virá novamente até eles. Ele mesmo
parte agora para a meta de sua vida: o Pai, que é mais importante do que ele, e que ele
ama (cf. v. 31). Se os discípulos, de sua parte, o amarem, ficarão repletos de alegria.
Para a partida de Jesus e a permanente conexão com ele na fé, como também para
sua volta com conexão permanente a ele no amor, foi possível apontar precedentes no
Antigo Testamento e no judaísmo. O mesmo vale para a secção Jo 14,25-29.
Percebemos aqui as promessas escatológicas de Jesus, que têm suas raízes na fé de
Israel. Ponto de partida para estas observações pode ser o fato de que os conceitos de
“paz” e “alegria” ocorrem poucas vezes em João. O tema da “paz” só ocorre ainda em
Jo 16,33 e, depois, em Jo 20,19.21.26. Em Jo 16, como em 20,19-23, a expressão se
encontra num campo lexical que já aparece em 14,25-29. Observações semelhantes
podem ser feitas a respeito do tema da “alegria”. É encontrado, igualmente, em Jo
16,22-22 e Jo 20,20. Isso basta para sugerir uma hipótese relativa à pesquisa da
tradição: nos textos mencionados, João se baseia numa tradição bíblica, a do reino de
Deus. Chave para esta hipótese é um versículo da Carta aos Romanos de Paulo: Rm
14,17. Paulo fala poucas vezes do reinado ou do reino de Deus, e quando o faz, é em
conexão com a tradição bíblica e judaica, ou então cristã primitiva. Em Rm 14, Paulo
discute com cristãos para os quais as regras de comida e bebida têm importância
decisiva. Contra eles, Paulo declara: “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas
justiça, paz e alegria no Espírito Santo”.
Este versículo, que na pesquisa exegética recebeu pouca atenção, é sumamente
interessante, por ser a única vez na Bíblia que aparece uma definição do reino de Deus.
Ora, podemos mostrar que os quatro elementos mencionados por Paulo ocorrem em Jo
16,4e-33. Só neste capítulo João fala da justiça (16,8s.), coisa que dificilmente se
consegue explicar com uma exegese imanente ao texto. Em Jo 14,25-29 e 20,19-23
encontram-se todos os elementos, menos a justiça. Trata-se dos dons escatológicos de
Jesus, prometidos em 14,25-29 (como em 16,4e-33) e concedidos em Jo 20,19-23, no
dia da Páscoa.
O pano de fundo bíblico do dom do Espírito Santo já foi mostrado acima, em
torno dos vv. 16s. Texto-chave é Ez 36,26s. como expressão da teologia da Nova
Aliança. Os temas da justiça, da paz e da alegria remontam principalmente às tradições
proféticas de Israel em relação ao porvir escatológico. Um texto-chave é citado por
Jesus no assim chamado Sermão Inaugural na sinagoga de Nazaré. Trata-se de Is 61,1s.,
citado por Lc 4,18s. Jesus, repleto do Espírito santo, anuncia ao resto de Israel um
futuro reino messiânico, com a libertação dos oprimidos e a proclamação de um ano
jubilar. O texto completo, em Is 6,1-11, fala expressamente da justiça (vv. 3.8.1s.), bem
como da alegria que o Messias há de trazer (vv. 1.3.7.10), e do acerto em paz da relação
com os povos vizinhos (vv. 5-7). Outro texto messiânico é Is 11,1-10. Tais textos
messiânicos têm sua raiz na ideologia da realeza do Oriente antigo, a qual vê no rei o
portador de paz e justiça para a alegria de seu povo. Esta convicção se exprime
sobretudo na festa da entronização do soberano oriental antigo (como mostram textos
Beutler D -71
do Egito e da Mesopotâmia), tendo um eco nos salmos da realeza de Deus-rei no Antigo
Testamento (Sl 93–100)70.
14,30-31
A secção anterior já foi acabada pelo “Eu vos disse isso” no v. 25 e o “Agora eu
vos disse” do v. 29. A isso conecta-se a expressão do v. 30, “já não vos falarei muito”. É
difícil esticar essa expressão para dar um lugar aos seguintes três capítulos com
discursos de despedida e a oração de Jesus71. O tempo de Jesus é breve, o adversário se
aproxima – e este, para João, não é Judas, mas o Adversário absoluto, o “príncipe deste
mundo”. Jesus sabe que ele se aproxima, mas sabe também que é mais forte do que ele,
não só no saber, mas também na sua força interior. No amor a Deus, ao qual ele
convocou seus discípulos, Jesus entra em sua Paixão e ordena a seus discípulos que o
sigam.
É geralmente percebido que os últimos dois versículos do capítulo se mostram
influenciados pela tradição sinóptica. Em Marcos, no fim da cena do Getsêmani, Jesus
anuncia a chegada do traidor (Mc 14,41s. par. Mt 26,45s.); aqui, ao aproximar-se Judas,
Jesus fala do aproximar-se do Maligno e exorta os discípulos: ”Levantai-vos, vamos
embora daqui” (egeíresthe, ágōmen enteûthen). Para João, o adversário propriamente
não é um ser humano, mas o Maligno em pessoa, que pode ser vencido pela força do
amor a Deus. É o que Jesus quer revelar ao mundo.
Quando se trata de interpretar o dito de Jesus no v. 31 “Levantai-vos, vamos
embora daqui”, as opiniões se dividem72. A exortação de Jesus tem sua continuação
natural em Jo 18,1: “Depois dessas palavras, Jesus saiu com seus discípulos para o outro
lado do riacho do Cedron”. Assim, desde a Antiguidade, a maioria dos exegetas entende
a exortação de Jo 14, 31 no sentido literal, como convite de Jesus para que os discípulos
o sigam no caminho da Paixão. Assim interpreta Agostinho73, seguido mais tarde por
Tomás de Aquino74. Os modernos os seguem nessa interpretação, sobretudo na exegese
anglo-saxônica75. Também na exegese alemã prefere-se a interpretação em sentido
literal. Isso provoca, por um lado, hipóteses de transposição, que colocam a palavra de
Jesus no fim de uma composição mais comprida, ou, por outro lado, a aceitação de uma
camada secundária dos discursos de despedida, à qual pertenceriam os capítulos 15–
17 76. Uma variante dessa proposta consiste em ver nos capítulos 15–17 uma “releitura”
do primeiro discurso de despedida (Jo 14); segundo nossa opinião, essa releitura surgiu
em diversas fases. Este modelo tem boa plausibilidade e é adotado em nosso
comentário.
Desde o comentário de E. C. Hoskyns (1941) tem aceitação uma interpretação
espiritual da exortação de Jesus: “Levantai-vos, vamos embora daqui”. Tratar-se-ia de
uma exortação de Jesus para elevar-se a coisas mais altas, como virão à fala ao longo da
continuação dos discursos. Os comentadores alegam para essa interpretação, via de
regra, o comentário de João escrito por Cirilo de Alexandria, mas isso não resiste à
70
Cf. J. BEUTLER, Habt keine Angst, 103s.; ID., Do not be afraid, 92s.
Esta proposta se encontra em U. SCHNELLE, 263, com referência a Mc 14,43 “enquanto ele ainda
falava” (kai. e;ti auvtou/ lalou//ntoj) na cena da detenção, o que pressupõe uma continuidade no discurso de
Jesus e pode ter influenciado João.
72
Cf. para o que segue J. BEUTLER, “Steht auf”
73
AUGUSTINUS, Tractatus, 222; Enarrationes in Ioannis evangelium, III, 904/116.
74
THOMAS AQUIN., S. Th. III, q. 47, a. 2, ad 1.
75
Cf. os comentários de R. E. BROWN e C. K. BARRETT ad locum.
76
Cf. acima introdução a Jo 13,1–17,26.
71
Beutler D -72
prova. Cirilo menciona, ad locum77, duas interpretações da palavra de Jesus, uma literal
e outra, metafórica. Para ele, a literal está no primeiro lugar e significa, simplesmente,
que os discípulos agora têm de se levantar e seguir Jesus na Paixão. Depois, Cirilo
continua: “Além disso, eu interpretaria o texto de outra maneira ainda, em relação a nós
mesmos. Do amor às coisas do mundo devemos chegar à vontade de cumprir aquilo que
agrada a Deus e, mais que isso, da escravidão, à dignidade da adopção como filhos, da
terra, à cidade celestial, do pecado, à justiça pela fé em Jesus Cristo, da indecência, à
santidade pelo espírito” etc. Cirilo aceita, pois, sem ambuiguidade, em primeiro lugar, a
interpretação literal e só depois apresenta a espiritual, em estilo fortemente homilético.
Tal interpretação espiritual é representada num texto atribuído a Epifânio de Salamina78,
que explica a palavra de Jesus em sentido platônico: “Levantai-vos, pois, partamos
daqui, da morte para a vida, da corrupção para a incorruptibilidade, das trevas para a
luz” etc. A ocasião litúrgica é Quarta-Feira de Cinzas. Os fiéis devem ressuscitar com
seu senhor para uma vida nova. Jo 14,31 é citado aqui somente como ensejo para
introduzir os fiéis no mistério pascal.
Se autores recentes alegam Cirilo para a explicação espiritual de Jo 14,31, farão
bem em conhecer o seu texto completo, que tem como ponto de partida, sem
ambiguidade, a interpretação literal. Isso não exclui um sentido mais profundo do atual
texto de Jo 13–17. Adotando-se o modelo da “releitura”, os capítulos 14–17 podem
certamente abrir uma visão nova sobre Jo 14. Mais fortemente que em Jo 14 é o Jesus
pascal que toma aqui a palavra, movendo-se da questão da partida e nova vinda de Jesus
para as perguntas em torno da existência da comunidade dos discípulos depois da
Páscoa e em torno da ameaça que lhes vem de fora, na perseguição, e deles mesmos,
diante da possível desintegração. Lendo a exortação de Jesus nesta perspectiva, pode-se
ver nela um convite para perceber sua mensagem em situações sempre novas.
III
No centro do primeiro discurso de despedida de Jesus está o Cristo. Ele se retira
dos seus, mas voltará a eles. E se, a continuidade, os discursos de despedida têm por
objeto mais fortemente a vida e o destino dos discípulos, é sumamente significativa a
ancoragem da eclesiologia na cristologia.
João não tem medo de entrar por novos caminhos na expectativa futura da
comunidade cristã. Ele parte de representações muito tradicionais acerca de uma futura
volta de Cristo para buscar seus fiéis. Ele não elimina essas representações, mas as
prolonga no pensamento de que os discípulos permanecem unidos a Cristo na fé e no
amor. Nisso experimentarão, já agora, a visão de Deus que se espera para o tempo final.
Olhando para Jesus na fé, já viram Deus.
Sempre de novo o evangelista retoma as expectativas de salvação de Israel. Já
para a partida de Jesus e para a união permanente com ele na fé ele pode alegar o livro
dos Salmos (Sl 42-43). Na continuidade apresenta-se sempre mais a teologia da
Aliança. Se os discípulos amarem Jesus e guardarem seus mandamentos,
experimentarão em si as promessas da Nova Aliança. Deus os amará, ele e Jesus farão
morada neles, o Espírito lhes será dado antecipando o tempo final e juntando-os
permanentemente a seu povo.
77
In Ioannis Evangelium, ed. PH. E. PUSEY II, Oxford 1872; repr. Culture and Civilization, Bruxelles
1965, 531ss.; em italiano: L. LEONE, III, Roma 1995, 182-184 (sezione X,1). [trad. alem. de J. Beutler].
78
“In divini corporis sepulturam …”: PG 43 (1865) 439-464: 464 [trad. alem. de J. Beutler].
Beutler D -73
No trecho final, as promessas ao povo de Deus tomam feições bem concretas.
Percebem-se as promessas do Reino de Deus vindouro: paz e alegria no Espírito Santo.
Exatamente aqui, o evangelista reata com as representações muito arcaicas do rei que
propicia ao povo justiça e paz e assim causa a alegria. É notável que exatamente o
último evangelho, que muitas vezes é aproximado da gnose e do esoterismo, põe à
mostra raízes muito arcaicas e dirige o olhar para o Reino de Deus, a justiça e a paz na
força do Espírito, para alegria do povo de Deus no meio deste mundo.
5. O segundo discurso de despedida (15,1–16,4d)
15 1 “Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. 2 Todo ramo em mim
que não dá fruto, ele corta; e todo ramo que dá fruto, ele o purifica, para que dê mais
fruto ainda. 3 Vós já estais puros por causa da palavra que vos tenho falado.
4
Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por
si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto se
não permanecerdes em mim. 5 Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece
em mim – e eu nele – dá muito fruto; pois sem mim, nada podeis fazer. 6 Quem não
permanecer em mim é lançado fora como o ramo e resseca. São apanhados, lançados
ao fogo e queimados. 7 Se permanecerdes em mim, e minhas palavras permanecerem
em vós, pedi o que quiserdes, e vos será feito. 8 Nisto meu Pai é glorificado: que deis
muito fruto e vos torneis meus discípulos.
9
“Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu
amor. 10 Se observardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim
como eu tenho guardado os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. 11 Eu
vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja
plenificada. 12 Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos
amei. 13 Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos. 14 Vós
sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando. 15 Já não vos chamo servos, porque o
servo não sabe o que faz o seu Senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a
conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. 16 Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que
vos escolhi e vos designei para dardes fruto e para que o vosso fruto permaneça. Assim,
tudo o que pedirdes ao Pai, em meu nome, ele vos dará. 17 O que eu vos mando é que
vos ameis uns aos outros.”
18
“Se o mundo vos odeia, sabei que me odiou primeiro, antes de vós. 19 Se fôsseis
do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas, porque não sois do mundo, e eu vos
escolhi do meio do mundo, por isso o mundo vos odeia. 20 Recordai-vos daquilo que eu
vos disse: ‘O servo não é maior do que o seu senhor’. Se me perseguiram, perseguirão
a vós também. E se guardaram a minha palavra, guardarão também a vossa. 21 Eles
farão tudo isso por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou.
22
Se eu não tivesse vindo e não lhes tivesse falado, eles não teriam pecado. Agora,
porém, não têm desculpa para o seu pecado. 23 Quem me odeia, odeia também meu Pai.
24
Se eu não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro fez, não teriam pecado.
Agora, porém, eles viram, e odiaram a mim e a meu Pai. 25 Mas é para que se cumpra a
palavra que está escrita na Lei deles: ‘Odiaram-me sem motivo’. 26 “Quando, porém,
vier o Auxílio que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede
do Pai, ele dará testemunho de mim. 27 E vós, também, dareis testemunho, porque estais
comigo desde o começo. 16 1 “Eis o que vos digo, para que não vos escandalizeis.
2
Expulsar-vos-ão das sinagogas, e virá a hora em que todo aquele que vos matar
julgará prestar culto a Deus. 3 Agirão assim por não terem conhecido nem ao Pai, nem
Beutler D -74
a mim. 4 Eu vos tenho dito essas coisas, para que, quando chegar a hora, vos recordeis
de que eu as disse.
I
Segundo a visão defendida neste comentário, o primeiro discurso de despedida, Jo
14, teria sua continuação natural em Jo 18; os capítulos 15–17 teriam sido intercalados
como complementações de um texto originalmente mais breve. Pode-se supor, portanto,
um processo de crescimento prolongado.
Nos anos 80 do século passado, ainda prevaleciam as hipóteses de que situações
vitais diversas na(s) comunidades(s) joanina(s) teriam dado origem às diversas secções
dos discursos de despedida. Jürgen Becker, no seu comentário79, vê cinco discursos
diferentes: 13,31–14,31; 15,1-17; 15,18–16,15; 16,16-33; 17. No discurso original, o
primeiro, ainda prevalece a iminente partida de Jesus. Em Jo 15,1-17 a comunidade,
agora abandonada, deve aprender a continuar vivendo em comunhão com Cristo e no
mútuo amor fraterno. Em Jo 15,18–16,15 percebe-se uma situação de perseguição, para
a qual a comunidade recebe palavras de consolação e reconforto: é enviado a ela o
Auxílio, e o mundo será julgado. Um último discurso, em Jo 16,16-33, retoma os temas
do primeiro e fala da volta de Jesus ao Pai e de sua nova vinda aos discípulos. Também
outros autores dividem o texto de modo semelhante. Geralmente, a secção 15,1–16,33 é
dividida em Jo 15,1–16,4d e 16,4e-33, com uma subdivisão em Jo 15,1-17 e 15,18–
16,4d; assim F. F. Segovia, em sua dissertação80, portanto, diferente de J. Becker quanto
a 16,4e-33. Segovia concorda com J. Becker que os textos acerca do amor mútuo dos
discípulos (Jo 13,34s.; 15,12-17) pressupõem a mesma situação vital que a Primeira
Carta de João: uma comunidade cuja unidade é ameaçada por causa de discussões éticas
e cristológicas. Mas, discordando de Becker, Segovia não acha que tal situação já esteja
presente na secção Jo 15,18–16,4d, que, segundo ele, precederia a situação de conflito
no interior da comunidade joanina.
John Painter81 vê três discursos que se seguem ao primeiro discurso, o de Jo 14. O
segundo discurso, o de Jo 15,1–16,4d, supõe um tempo em que a comunidade já se vê
excluída da sinagoga e ameaçada, por causa da birkat-ha-minim, medida tomada pela
sinagoga de Jâmnia (ca. de 85 d.C.) para excluir os hereges da sinagoga. Assim há
correspondência entre os temas do permanecer em Cristo e do amor mútuo na
comunidade, por um lado, e a experiência do ódio do “mundo”, concretamente, dos
“judeus”, por outro. No tempo em que foi escrito Jo 16,4e-33, essa experiência já
pertencia ao passado e, em luto e medo, a comunidade se mostrava pesarosa pelo
afastamento de Cristo. Assim, este terceiro discurso procura consolar e reconfortar a
comunidade por reiteradas promessas do Espírito-Paráclito.
Hoje, algumas décadas depois daquela fase da pesquisa, tais tentativas de
reconstruir situações diversas para as sucessivas secções dos discursos de despedida já
não estão no foco da atenção. Como tarefa do exegeta apresenta-se, hoje, com mais
clareza, antes a interpretação de textos do que a reconstrução de situações históricas. O
paradigma literário substitui o histórico.
Nisso não se pode perder de vista, porém, a finalidade das diversas secções que se
distinguem. Uma das dimensões da pesquisa literária de textos consiste exatamente na
79
J. BECKER II.
F. F. SEGOVIA, Love Relationships.
81
J. PAINTER, Farewell Discourses.
80
Beutler D -75
elaboração da estratégia narrativa do texto (nos EUA, pelo “reader-response criticism”,
na Europa continental pela “Textpragmatik”). Sob este aspecto é possível distinguir em
Jo 15–17 diversas secções textuais, mais ou menos no sentido das propostas de J.
Painter e F. F. Segovia. Se este último em sua nova monografia82 chega a uma leitura
sincrônica dos discursos de despedida, ele renuncia a algumas possibilidades que seu
ensaio anterior havia oferecido.
Em tempos recentes propõe-se, para a relação entre as partes mais antigas e as
mais novas dos discursos de despedida, o modelo da “releitura”83. Passo a passo,
pronunciamentos antigos de Jesus vão sendo atualizados para novas situações da
comunidade. Ao focalizar este processo, o interesse do exegeta vai para a compreensão
do texto e não para a reconstrução das situações vitais da comunidade, como acontecia
nos projetos sócio-históricos dos anos oitenta do século passado.
Uma primeira subdivisão de Jo 15,1–16,4d tem como base a semântica textual. A
uma primeira secção, Jo 15,1-17, que releva a unidade dos discípulos (como ramos da
videira verdadeira) e seu “amor” mútuo, corresponde, em Jo 15,18–16,4d, o “ódio do
mundo”. Opõem-se aqui dois conceitos fundamentais. A primeira parte pode ser
subdividida no discurso figurativo da verdadeira videira, nos vv. 1-8, e as palavras sobre
a união dos discípulos no amor fraterno segundo o exemplo de Jesus, nos vv. 9-17; e
nesta subsecção podem-se distinguir os vv. 9-11 (com sua fórmula de encerramento) e
os vv. 12-17 (unidos por uma inclusio).
A parte Jo 15,18–16,4d destaca-se do contexto anterior pelo termo-chave “ódio”,
aparecendo pela primeira vez no v. 18. O tema “ódio do mundo” predomina até o v. 24.
Como o termo “ódio” aparece duas vezes no início, no v. 18 e, depois, nos vv. 23 e 24,
constata-se a inclusio deste grupo de versículos. Nos vv. 26s., liga-se ao tema do “ódio”
o do “testemunhar”, visto que os discípulos experimentarão o ódio do mundo sobretudo
em situações de processo, nas quais o Espírito-Paráclito lhes dará sua assistência. Nos
vv. 16,1-4d, prediz-se em termos mais concretos a perseguição que está por vir. De
novo constrói-se, nesta secção, uma inclusio, com a fórmula “Eu vos disse isso para
que...” (taûta lelálēka hymîn hína), utilizada nos vv. 1 e 4a. Por isso pode-se ver nos vv.
1-4 uma pequena subsecção que é conectada aos versículos anteriores pelo tema do ódio
e da perseguição.
Na conexão entre Jo 16,4d e 16,4e não se nota, à primeira vista, a transição para
um novo discurso. A expressão “não vos disse isso desde o começo” (taûta dè hymîn ex
arkhês ouk eîpon), em 16,4e, retoma o “Eu vos disse isso” (taûta lelálēka hymîn) de
16,4a. A partir do v. 5, porém, o texto abandona os temas de 15,1–16,4d e volta aos de
Jo 14. A despedida iminente (hypágō) de Jesus torna-se novamente o tema principal.
Para isso retomam-se outros temas de Jo 14, principalmente o novo encontro entre Jesus
e os seus (Jo 16,16); depois, a indefectibilidade da oração (16,23s.26) e, finalmente, a fé
(16,30). Sobretudo, encontram-se em Jo 16,4e-33, de novo, os temas “escatológicos”
que já encontramos em Jo 14,25-28: o dom do Espírito Santo(16,7-15) e os dons da
alegria (16,20-22). Acresce ainda – como em Rm 14,17 – o tema da justiça (16,8-10).
Na base desta mudança de tema e perspectiva e também da relação literária, tratamos
aqui Jo 16,4e-33 como um terceiro discurso de despedida, que se apresenta como
“releitura” do primeiro discurso, o de Jo 14.
82
83
F. F. SEGOVIA, Farewell
Cf. A. DETTWILER, Gegenwart; J. ZUMSTEIN, Lʼévangile II.
Beutler D -76
II
Jesus, a videira verdadeira (15,1-8)
A secção Jo 15,1-8 caracteriza-se pela imagem da “videira” e pelo verbo
“permanecer”. Os verbos ocorrem principalmente na 3ª pessoa ou na 2ª pessoa do
plural; a Jesus como orador corresponde a 1ª pessoa do singular. Globalmente, o texto
mostra um movimento que vai da descrição de uma situação (Jesus como videira, o Pai
como o cultivador, os ramos) a um processo dinâmico, implicando a produção de frutos
e a purificação, em vista de produção mais abundante, ou a poda dos ramos que não
produzem, nem prometem fruto.
Em que gênero pode-se classificar a perícope84? Jesus, em Jo 15,1-8, fala de modo
figurativo. Ele se compara com uma videira, o Pai com o viticultor e os discípulos com
os ramos. Os exegetas perguntam que gênero de discurso metafórico aqui se apresenta.
Por um lado, não se trata de uma das parábolas típicas do Jesus dos evangelhos
sinópticos, nem de uma de suas semelhanças. Estes textos comparam a realidade que
Jesus propõe com uma experiência cotidiana ou com um caso concreto. Via de regra,
como o mashal hebraico, eles têm só um ponto de comparação. Mas, por outro lado,
também não se pode considerar Jo 15,1-8 como uma alegoria, pois neste gênero o
mundo real é paralelizado ponto por ponto com o da imagem. Para Jo 15,1-8 é
característica a mútua interpenetração dos níveis da imagem e da realidade. O orador se
desloca continuamente de um nível para o outro. Já encontramos tal procedimento no
discurso de Jesus sobre o bom pastor, Jo 10,1-18. Desde O. Kiefer 85 e R.
Schnackenburg86, convém falar em “discurso figurativo” [“Bildrede”], caracterizado,
precisamente, pela interpenetração dos níveis imagético e objetivo, e que não se deixa
classificar como semelhança, parábola ou alegoria. Segundo K. Scholtissek87, Jo 15,1-8
é uma “releitura” do discurso figurativo de Jo 10,1-18 sob o aspecto da união de Jesus
com os discípulos.
E como se explica o mundo imagético de Jo 15,1-8? A proposta de R. Bultmann88
e de E. Schweizer89, de esclarecer a metáfora da vinha a partir de paralelos gnósticos e
mandeus, hoje é considerada insustentável90. No lugar disso impôs-se a tese de R.
Borig91, de ver na base da metáfora da videira temas veterotestamentários ou judaicos.
Os profetas de Israel conhecem o motivo da vinha ou da videira como imagem do Israel
infértil. A conhecida parábola da vinha em Is 5,1-7 pode ser atribuída a este gênero. Já
nesse texto fala-se não apenas da vinha, mas também da videira (no v. 2). A videira
pertence também ao mundo imagético de Is 27,2-4; Jr 2,21; 6,9; Ez 15,18; 17,1-10;
19,10-14; Os 10,1 e Sl 80,9-20. Só Is 27,2-4 fala da videira do Senhor de modo
positivo, no quadro do tardio apocalipse de Isaías. Textos do tempo intertestamentário
retomam o motivo da videira como símbolo de Israel; assim o Liber Antiquitatum
Biblicarum do Pseudo-Fílon (12,8; 18,10s. e.o.) e IV Esdras (5,24). No Novo
Testamento, veja Mc 12,1-9 par. Mt 21,33-41; Lc 20,9-16. Desde Ezequiel pode-se
84
Am partir daqui até a exegese do v. 8 retomamos amplamente J. BEUTLER, 5. Sonntag in der Osterzeit
(B): Joh 15,1-8, in: www.perikopen.de.
85
O. KIEFER, Hirtenrede.
86
R. SCHNACKENBURG III 109.
87
K. SCHOLTISSEK, In ihm sein, 278.
88
R. BULTMANN 407.
89
E. SCHWEIZER, Ego eimi, 39-41.
90
Cf., para isso e para o que segue, A. DETTWILER, Gegenwart, 87s.
91
R. BORIG, Der wahre Weinstock.
Beutler D -77
observar também uma tendência a relacionar a videira com pessoas individuais. Assim
em Ez 17,1-10, onde a videira é equiparada ao rei Sedecias. Em Eclo 24,17 a Sabedoria
é comparada a uma videira que faz crescer belos ramos e produz rico fruto. Aqui
estamos muito perto de Jo 15,1-8.
Interessante é o olhar os textos de referência para Jo 15,8(17) no próprio
Evangelho segundo João. Já Bultmann, no seu comentário de João92, notou o parentesco
de Jo 13,1-17 e 13,34s. com Jo 15,1-17. Esta percepção foi retomada recentemente por
A. Dettwiler, que vê em Jo 15 uma “releitura” de Jo 1393. No início de Jo 13 está um
gesto simbólico de Jesus, ao qual corresponde, em Jo 15, a palavra figurativa da videira
verdadeira. Segue-se então em Jo 13,6-10 uma primeira interpretação da imagem,
realçando o significado da imagem para a relação entre Jesus e os discípulos. A isso
corresponde o desdobramento da palavra figurativa de Jo 15,1s. em 15,3-8. Em Jo 13,
junta-se a isso (nos vv. 12-27 e 13,34s.) a interpretação da ação simbólica para a relação
mútua dos discípulos, à qual corresponde, em Jo 15,9-17, o mandamento do amor. Esta
proposta é sugestiva e merece ser retida. K. Haldimann vê como texto de referência para
Jo 15,1-7 tanto Jo 13,1-17 como o primeiro discurso de despedida, Jo 13,31–14,3194.
Mais abrangente é o estudo de Christina Hoegen-Rohls95.
A construção desta pequena unidade textual não é fácil de deslindar. Assim,as
propostas de estrutura de nosso texto são bastante divergentes. Nota-se, de imediato, a
inclusão pela nomeação do “Pai” nos vv. 1 e 8. Os vv. 1-2 devem ser considerados
solidários. Nos vv. 3-4 e 7 abandona-se o nível imagético e faz-se referência à palavra
de Jesus segundo a qual os discípulos estão unidos a Jesus como os ramos à videira. Em
ambas as partes do texto aponta-se para o “permanecer” em Jesus e em sua palavra. No
meio estão os vv. 5-6. Estes retomam inicialmente a sentença “eu sou” do v. 1 e então a
desdobram, segundo o gênero das sentenças “eu sou” (examinado, depois de E.
Schweizer96, por S. Schulz97), sob dois aspectos: promessa (v. 5bc) e ameaça (v. 6). Só
falta o “convite” que alhures é típico deste gênero. Pode-se falar de uma estrutura
concêntrica, construída em torno da sentença “eu sou” dos vv. 5s.
15,1-2
A secção se inicia com um discurso figurativo. Diferentemente da parábola,
semelhança ou alegoria, não se apresenta, em nosso texto, primeiramente, um mundo
imagético que depois é interpretado. Em vez disso, imagem e interpretação aparecem
entrelaçadas desde o início (cf. acima, II, quanto ao gênero). O texto começa com uma
das declarações “eu sou”, que são características do Quarto Evangelho. Com elas, Jesus
se dá a conhecer em seu significado salvífico para os fiéis (cf. Jo 6,35.48.51; 8,12; 9,5;
10,7.9.11.14; 11,25; 14,6; também 12,46). Mas há uma diferença, explicitada por
Borig98, e.o. Enquanto as declarações “eu sou” em Jo 6–14 usam imagens que
significam uma realidade salvífica monoconceitual (pão, luz, porta, pastor, ressurreição
e vida, caminho, verdade e vida), Jo 15,1-8 utiliza uma imagem originalmente coletiva.
Isso pode estar relacionado com a orientação mais eclesiológica de Jo 15–16, diferente
da orientação mais cristológica dos capítulos anteriores. Em Jo 15,1-8, Jesus aplica a si
92
R. BULTMANN 406.
A. DETTWILER, Gegenwart, 60-110.
94
K. HALDIMANN, Rekonstruktion, 405.
95
C. HOEGEN-ROHLS, Der nachösterliche Johannes.
96
Cf. E. SCHWEIZER, Ego eimi, 33, para a forma joanino da sentença “eu sou”.
97
S. SCHULZ, Komposition und Herkunft, 86s.
98
R. BORIG, Der wahre Weinstock; neste sentido agora também J. ZUMSTEIN, Bildersprache, 152.
93
Beutler D -78
uma imagem que, na tradição profética, era usada para Israel. Ele incorpora de certo
modo o povo de Deus e convida à incorporação em si mesmo.
Quando Jesus se designa como a videira “verdadeira”, ele se distingue de outros
que poderiam pretender produzir bons frutos. Na mesma linha, já em Jo 6,32, Jesus
anunciou o “verdadeiro” pão do céu, assim como o Prólogo, em 1,9, falou da
“verdadeira” luz que com Jesus veio ao mundo. Alguns exegetas veem nesta designação
uma referência à “verdade” como indicação da revelação que Jesus trouxe ao mundo. O
desdobramento da imagem da videira ultrapassa os modelos veterotestamentários. Deus,
o “Pai”, é indicado como o vinhateiro e seu trabalho na vinha é descrito
pormenorizadamente. Ele “purifica” os ramos bons e “lança fora” aqueles que não
produzem fruto. Os verbos utilizados não são típicos da viticultura; parecem inspirados
pelo objeto que a imagem significa (cf. v. 3). A imagem evoca o tratamento das videiras
na primavera, quando brotam os sarmentos, e na eliminação dos brotos que não
produzem frutos, no outono, quando da colheita. Para o que segue, importa que Jesus é
a videira verdadeira. Ele é quem produz o fruto. Os ramos produzem somente na medida
em que estão unidos a ele.
15,3-4
Nos vv. 3-4, a imagem dos vv. 1-2 é, por um lado, explicada, por outro,
continuada. O v. 3 retoma o tema do “purificar” no v. 2, abandonando o nível imagético.
Os discípulos não devem temer ser purificados, pois já são puros por causa da palavra
que Jesus lhes falou. É notável o paralelismo com Jo 13: também Pedro e os outros
discípulos tinham sido declarados puros com base no gesto simbólico feito a eles (cf. Jo
13,10). Em Jo 14,15-24 aparece uma ligação estreita entre a inabitação de Jesus e a
acolhida de sua palavra. Este pensamento é agora levado adiante (cf. também infra, v.
7).
No v.4, ao indicativo segue-se o imperativo, que está ligado a uma promessa.
Aparece aqui, pela primeira vez no texto, o verbo “permanecer”. Terá um significado
sustentador (cf. também o v. 9, no início da secção seguinte). Os comentadores veem no
realce da necessidade do “permanecer” em Jesus e em sua palavra um reflexo da
situação vital das comunidades joaninas diante da divisão incipiente e diante da ameaça
de fora. O apelo de Jesus é esclarecido por um retorno à imagem evocada inicialmente.
Assim como o ramo só produz fruto quando permanece na videira, assim também os
discípulos só podem frutificar se permanecem ligados a Cristo. K. Scholtissek releva,
neste lugar99, que aqui aparecem pela primeira vez em plena clareza as fórmulas da
“mútua imanência”, que serão características para os capítulos seguintes, até Jo 17:
assim como os discípulos devem permanecer em Jesus, ele deve permanecer neles, e
assim como o Pai está em Jesus, Jesus permanece no Pai. Tais fórmulas não têm
precedente bíblico imediato, mas têm seus paralelos, em primeiro lugar, na teologia do
judaísmo helenista de Fílon de Alexandria. Em Jo 14 é preparado o pensamento da
“inabitação” do Espírito, de Jesus e do Pai nos discípulos, na passagem Jo 14,15-24 a
(em progressão trinitária: o Espírito no v. 17, Jesus nos vv. 18 e 20 e o Pai no v. 23 100).
Em Jo 14,20 aparece pela primeira vez o tema da mútua inabitação de Jesus e dos
discípulos.
15,5-6
99
K. SCHOLTISSEK, In ihm sein, 290.
CF. J. BEUTLER, Habt keine Angst, 62-77.
100
Beutler D -79
Com a repetição da palavra figurativa dos vv. 1-2 no v. 5 chega-se ao meio do
texto. O modelo é retomado com leves modificações. Jesus não mais se designa como a
videira “verdadeira”, pois isso não precisa mais ser explicado aos discípulos, já
purificados pela palavra (v. 3). Esclarece-se ao leitor que os discípulos são de fato os
ramos na videira que é Jesus. Daí se segue imediatamente que eles só podem frutificar
quando permanecem unidos a ele. Nesta explicação da imagem, o novo é que não
apenas os discípulos devem permanecer em Jesus, mas também ele, neles. Isso
ultrapassa a imagem da videira; é determinado pelo nível da realidade. Quanto ao
frutificar, o texto evoca um contraste radical: ou os discípulos permanecem em Jesus e
ele neles, e então produzem rico fruto; ou eles se separam dele e o perdem, e então não
podem fazer nada, nem produzir fruto. Entre estes dois polos não há degraus.
Esta possibilidade negativa é explicada ainda mais no v. 6. Pensando antes no
caso individual, o texto passa para o singular: quando alguém não permanece em Jesus,
ele é lançado fora (para onde? certamente fora do vinhedo, símbolo do povo de Deus) e
resseca. Os ramos secos (os melhores documentos textuais leem novamente o plural)
são lançados ao fogo onde são queimados. Aqui os comentadores notam a linguagem do
juízo, conhecida dos sinópticos (cf. Mt 3,10-12; 5,22; 7,19; 13,40.42.50; 18,18s; Mc
9,43.48). O tema do fogo encontra-se, de fato, já em muitos textos do Antigo
Testamento que tratam do vinhedo ou da videira (cf. Ez 19,12.14; Sl 80,17).
15,7
De novo, como já no v. 3, o texto abandona o nível da imagem e fala sem segredo.
O “permanecer” mútuo dos discípulos em Jesus e de Jesus nos discípulos é a base da
promessa de que suas preces serão atendidos. Nisso se nota que a presença de Jesus nos
seus discípulos agora é descrita como o permanecer de sua palavra neles. Também este
pensamento foi preparado no v. 3. Já antes, o Evangelho segundo João falou do
permanecer da palavra de Deus em seus ouvintes e do permanecer deles em sua palavra.
Assim lhes fala em 5,38: “Sua palavra não permanece em vós porque não credes
naquele que Ele enviou”. Em Jo 8,31, Jesus diz aos judeus que tinham acatado uma fé
inicial nele: “Se permaneceis em minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos”.
Aquele que permanece em Jesus e no qual sua palavra encontra espaço, a esse se
promete o atendimento de todas as suas preces. Isso já tinha sido prometido aos
discípulos em Jo 14,13s. Provavelmente trata-se aqui de uma “releitura” de Jo 14.
Diferentemente do texto mencionado, em Jo 15,7 não se diz que as preces devem ser
dirigidas “em nome de Jesus”, pois trata-se de discípulos que supostamente estão
intimamente ligados a Jesus, como os ramos na videira. A promessa não significa mais,
agora, que Jesus realizará o que a prece deles pede, mas que é garantido o que eles
desejam. Pode-se ver aqui uma referência ao Pai, do qual se falará no versículo seguinte
(cf. também o v. 16).
15,8
Com este versículo conclusivo o texto volta ao início. No v. 1, o Pai tinha sido
apresentado como quem age. Ele é o viticultor, que poda os ramos e os purifica para que
deem fruto. Quando e na medida em que os discípulos produzem esse fruto, eles
glorificam o Pai, ele é glorificado por eles. No início dos discursos de despedida, Jesus
tinha anunciado solenemente que agora, no momento de entrar em sua Paixão, Deus era
glorificado, e ele, o Filho, nele (Jo 13,31). À guisa de esclarecimento, acrescentou-se
então que “logo” se daria a glorificação do Filho do Homem, a saber, em sua passagem
deste mundo para o Pai (Jo 13,32; cf. 13,1). A Oração Sacerdotal retomará esse
pensamento (Jo 17,1.5). Segundo Jo 14,13, Deus é glorificado nisto, que as preces dos
Beutler D -80
discípulos são atendidas em nome de Jesus: a honra de Jesus faz parte da honra de Deus.
Em Jo 15,7s., o tema da glorificação de Deus não está ligado ao atendimento das preces,
mas ao frutificar dos discípulos. Pensando que a prece dos discípulos no nome de Jesus
tem por objeto, antes de tudo, que eles permaneçam em Jesus, a diferença não é tão
grande assim. Apenas aparece com mais clareza, em Jo 15,8, que a razão profunda da
glorificação do Pai não é só o atendimento daquilo que as preces almejam, mas a união
dos discípulos com Jesus. Em outros termos: que eles se tornem seus discípulos e o
sejam duradouramente (cf. novamente 8,31).
O mandamento do amor (15,9-17)
Jo 15,9-17 é uma construção muito artística, que mostra uma série de conexões101.
O tema do “frutificar”, que pertence ao discurso figurativo da verdadeira videira (vv. 18), se prolonga até o v. 16 e assim, até o fim da secção inteira, que, portanto, se constitui
como unidade textual. No v. 9 aparece pela primeira vez o tema do “amor”, que
determina o grupo de versículos que continua até o v. 17, unindo-o tematicamente.
Dentro desta secção podem ser separados como subunidades os vv. 9-11 e 12-17. Os vv.
9-11 falam do amor de Jesus para com os seus e da necessidade de permanecer no amor.
Como caminho ao permanecer no amor indica-se o guardar suas palavras. No fim (no v.
11) está a promessa da alegria plena, introduzida pela fórmula que se encontra
frequentemente em textos semelhantes: “Eu vos disse isso”, a que corresponde “isto eu
vos mando” no v. 17. Os vv. 12-17 são unidos pelas palavras “este é o meu
mandamento, que vos ameis uns aos outros” no v. 12 e “isto eu vos mando, que vos
ameis uns aos outros” no v. 17. Nos vv. 13-16 percebe-se uma progressão temática. O
tema do “amor” conduz, nos vv. 13s., ao do “amigo”. A este opõe-se, no v. 15, o
“servo”, e ambos são comparados entre si. No v. 16 juntam-se a isso os temas da
“eleição”, do “frutificar” e do atendimento da prece. Quanto à sintaxe, o v. 13 se
distingue dos seguintes pelo caráter de sentença, falando na 3ª pessoa do singular,
enquanto os outros versículos da secção são caracterizados pelo confronto entre Jesus e
os discípulos, interpelados na 2ª pessoa do plural. Característico no v. 13 é também a
conexão de “amor” (agápē) e “amigos” (phíloi), que é elucidada a seguir. Assim, o v.
13 aparece como versículo-chave, o que ele será também sob o aspecto de que nele se
relacionam de modo particularmente claro a cristologia e a ética, o agir de Jesus e o de
seus discípulos.
Comumente, o fim da secção se vê no v. 17, antes do início da nova unidade
15,18–16,4d, determinada pelos temas do “ódio” do mundo e da perseguição. Ambos
os temas são complementares. G. Giurisato102 mostra como as secções Jo 15,9-17 e
15,18-25 se espelham, exibindo correspondência temática entre os vv. 9-11 e 23-25; 1214 e 21s.; 15 e 20; e, enfim, 16s. e 18s. Isso se verifica com facilidade e mostra que a
unidade textual se estende também para lá do v. 17.
15,9-11
No v. 9, o Jesus dos discursos da despedida abandona a imagem da videira, dos
ramos e do frutificar. O que antes era comunicado em imagens, agora é expresso de
forma direta. Este discurso direto já estava preparado dentro do discurso imagético pelo
fato de o viticultor ter sido equiparado ao Pai (v. 1). A explicitação da imagem
101
Daqui até a exegese do v. 17 seguimos amplamente J. BEUTLER, 6. Sonntag der Osterzeit (B): Joh
15,9-17, in: www.perikopen.de.
102
Cf. G. GIURISATO, Il comandamento.
Beutler D -81
ultrapassa, porém, os modelos imagéticos. Entre Jesus e o pai não reina só a relação de
viticultor e videira, mas o laço pessoal do amor. Este é figura primordial e origem do
amor entre Jesus e os seus e – como mostrará a secção seguinte – dos discípulos de
Jesus entre si. Quanto ao amor do Pai para o filho, cf. já Jo 3,35 e 5,20. A tradução de
Lutero usa, aqui, o tempo presente para falar do amor do Pai e de Jesus: “Como o Pai
me ama, assim eu vos amo”. Mas faz sentido conservar aqui o tempo passado usado no
texto grego, porque corresponde melhor à situação de despedida que caracteriza o
discurso. A exortação “Permanecei no meu amor” entende-se a partir da frase anterior.
Significa que os discípulos devem permanecer no amor que Jesus lhes demonstrou,
assim como os ramos na videira.
A correspondência no amor entre o Pai e o Filho, de um lado, e entre o Filho e os
discípulos, de outro lado, é continuada no v. 16. Assim como em Jo 14,15-24, o
permanecer do Espírito, de Jesus e do Pai nos discípulos é ligado à condição de que eles
permaneçam em Jesus e guardem seus mandamentos. A diferença é que agora se
acentua mais o permanecer no amor de Jesus do que o amor demonstrado a Jesus. Esse
deslocamento pode estar ligado à mudança na situação da comunidade, na qual a certeza
do amor de Deus e de Jesus se tornou mais importante, por causa de perigos
ameaçadores. A conexão entre “guardar os mandamentos” e “amor” provém da
linguagem do Deuteronômio, como mostra um olhar, especialmente, sobre os capítulos
1–6 desse livro103. Lá se exprime a teologia da Aliança de Deus com seu povo (cf. Dt
7,9.12).
Diversas secções dos discursos de despedida se encerram com a fórmula “eu vos
disse isso”, como no v. 11 (cf. 14,25; 16,33)104. Jesus falou essas palavras aos discípulos
para que sua alegria estivesse neles e fosse levada a termo. Esse tema da alegria já foi
anunciado (cf. Jo 3,29; 14,28). É retomado, mais uma vez, nos discursos de despedida,
no sentido da alegria escatológica dos discípulos diante da “hora” do Mestre, que se
aproximou na imagem da mulher que vê chegada a sua hora (16,20-22). Por isso, essa
alegria dos discípulos pode ser anunciada no momento de seu encontro com o
ressuscitado (20,20). Por este viés confirma-se também o caráter escatológico dessa
alegria. Quanto à perfeita/plena alegria, cf. também 1Jo 1,4.
15,12
O apelo de Jesus para que se amem mutuamente é ao mesmo simples e
provocativo. Quem lê o Quarto Evangelho depois dos primeiros três, espera aqui o
duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, lembrado por Jesus segundo Mc
12,29-31 parr. Neste respeito deve-se observar que a conexão do amor a Deus e ao
próximo remonta à diáspora judeu-helenista, na qual o amor a Deus no sentido do
Deuteronômio não era coisa evidente. A pregação da fé por judeus e cristãos precisava
antes de tudo solicitar o amor a Deus e a rejeição dos ídolos (cf. 1Ts 1,9), antes de
apresentar as exigências dos demais mandamentos105.
Vestígios de uma compreensão mais antiga, segundo a qual o centro da Torá era
simplesmente o amor aos irmãos, se encontram em Paulo, em Rm 13,8 e Gl 5,14.
Enquanto este último texto fala do amor ao “próximo”, o outro é formulado num modo
103
Cf. J. BEUTLER, Habt keine Angst, 55-62. Em G. C. A. FERNANDO, Relationship, a relação entre
“lei/mandamento” e “amor” não é tratada de modo convincente.
104
A fórmula acentua sobretudo o sujeito que fala, no caso, Jesus, e menos o objeto de sua comunicação,
como mostra D. PASTORELLI, La formule.
105
Cf. W. WEISS, “Eine neue Lehre mit Vollmacht”.
Beutler D -82
que se aproxima muito de Jo 15: “Não fiqueis devendo nada a ninguém, a não ser o
amor que deveis uns aos outros, pois quem ama o outro cumpriu a Lei”. Por que Paulo
fala ora em “próximo”, ora em “outro”? Na redação da carta aos Gálatas como também
em Rm 13,9s., Paulo se baseia expressamente na tradução grega do mandamento de Lv
19,18, na qual “compatriota” (hebr. rêa‘) é traduzido por “próximo” (plēsíon), como
também no texto dos sinópticos. Pode ser que tanto Paulo em Rm 13,8 quanto João em
nosso texto se aproximaram mais do sentido primitivo de Lv 19,18 (o texto hebraico faz
pensar, antes, em companheiros de tribo). Para o estudo bíblico-veterotestamentário do
mandamento do amor em João veja-se o estudo de J. Augenstein106. Muitas vezes se
critica que Jesus nos discursos de despedida não apenas reduz o mandamento do amor
aos companheiros da comunidade, mas também desconhece o mandamento do amor aos
inimigos como articulado em Mt 5,44; Lc 6,27. Observe-se, porém, que Jo 15 recusa
expressamente que o ódio experimentado pelos discípulos seja respondido com ódio
recíproco107.
15,13
Com uma nova imagem, Jesus esclarece seu amor aos seus como base e exemplo
do amor mútuo dos discípulos: a imagem de um amigo que se dá inteiramente pelos
seus amigos. A ideia reata com o início dos discursos de despedida. Em Jo 13,1 o
evangelista introduziu o leitor na história da Paixão com a menção de que Jesus, tendo
amado os seus enquanto estava no mundo, agora os amava até o fim. É nessa atitude
que Jesus praticou para os seus o gesto do lava-pés como expressão de seu amor
servidor até o fim. Novo é, em 15,13, o fato de traduzir o amor aos seus e o dom de sua
vida por eles (cf. Jo 10,15.17.18) na linguagem da amizade. Entra aqui novo modo de
falar. Muitas vezes remete-se à literatura grega para o dom da vida pelos amigos. O
Novo Wettstein108 oferece rica seleção de textos indo de Platão, via Aristóteles, até os
pitagóricos, epicureus e estoicos. Augenstein109 cita, neste contexto, uma palavra da
Ética a Nicômaco de Aristóteles (IX, 1169a, 18-20): “Para um homem de destaque vale
também a simples verdade de que ele, sempre de novo, engaja sua vida por seu amigo e
por sua pátria e, se preciso, dá sua vida por eles 110”. Augenstein111 aponta ideia
semelhante nos textos judaicos do tempo helenístico, especialmente nos livros dos
Macabeus. No momento crítico, Judas entrará na morte pelos seus (1Mc 6,9). Um
ancião de Jerusalém engaja até o extremo sua vida pelo judaísmo (2Mc 14,37). Os
mártires deram de modo real sua vida por Deus, pelo templo e pelo povo (2Mc 6,27;
7,9.37; 8,21). K. Scholtissek remete, entre outros aspectos, à retórica da família como
espelho das relações nas comunidades joaninas112.
15,14
Os discípulos são amigos de Jesus por causa do mandamento de Jesus. Também
neste verso, temas bíblicos se ligam aos da Antiguidade. A realização daquilo que Jesus
106
Cf. J. AUGENSTEIN, Das Liebesgebot. Para os diversos mundos imagéticos do amor em João (esponsal,
de amizade, basaeado na aliança) cf. J. VARGHESE, The Imagery of Love; mais teológico: E. E. POPKES,
Die Theologie der Liebe Gottes.
107
Cf. J. AUGENSTEIN, Das Liebesgebot, 88.
108
Cf. NEUER WETTSTEIN I/2 ad locum.
109
J. AUGENSTEIN, Das Liebesgebot, 72.
110
O mesmo texto se encontra no NEUE WETTSTEIN I/2, 718.
111
J. AUGENSTEIN, Das Liebesgebot, 73.
112
Cf. K. SCHOLTISSEK, “Eine grössere Liebe”, 430s. Para a ética helenística da amizade, cf. também B.
REPSCHINSKI, Freundschaft.
Beutler D -83
“mandou” aos discípulos continua expressa na linguagem paradigmática do
Deuteronômio. No Deuteronômio, Moisés usa regularmente o termo entéllomai para
falar aos israelitas. O tema da amizade com Deus encontra-se, sobretudo, em escritos
judeu-helenistas, a começar por Sabedoria (Sb 7,13s.27), até Fílon de Alexandria.
Precursora é a designação de Abraão como “amigo de Deus” em 2Cr 20,7; Is 41,8; cf.
Tg 2,23113.
15,15
Os discípulos são os amigos de Jesus, porque cumpriram a palavra dele. Num
nível mais profundo, Jesus pode chamá-los de amigos, porque ele lhes comunicou sua
mensagem da parte do Pai e assim a partilhou com eles. “Os amigos têm tudo em
comum” diz um antigo provérbio, que aqui se cumpre. Nisso se mostra a diferença em
comparação com o empregado ou o escravo, que não sabe nem compreende o que faz o
seu senhor. Com a contraposição das figuras do escravo e do amigo o evangelista dá
continuidade à palavra de Jesus em Jo 13,16. Ali, Jesus fundamentou a práxis dos
discípulos em amor servidor no pensamento de que é justo o servo agir como seu
senhor. Em Jo 15,15, esta perspectiva é abandonada: os discípulos não podem mais ser
chamados de servos. Nisto está certa a “releitura” [Neulesung] de Jo 13,1-17 em Jo
15,1-17114.
15,16
Continua-se o tema da união dos discípulos com Jesus. Eles estão unidos a Jesus
quando–e na medida em que–eles põem em prática o seu mandamento (v. 14). Mais
profundamente, eles estão unidos a Jesus em virtude da palavra que ele lhes dirigiu (v.
15). Essa união tem seu fundamento na eleição por Jesus, por trás da qual está, em
última análise, a eleição por Deus mesmo (v. 16). A ideia da eleição dos discípulos já
transpareceu antes, em Jo 6,70, em relação ao círculo dos Doze, ao se falar de Judas, o
qual, apesar de eleito por Jesus, se tornaria o seu traidor. Em contexto semelhante falase da eleição por Jesus em 13,18, contrapondo os Onze a Judas. Em Jo 15,16 – já depois
da saída de Judas – só se fala ainda da eleição por Jesus em sentido positivo. Pode-se
ouvir aqui um eco das primeiras vocações dos discípulos (Jo 1,35-51). Não se trata mais
de uma advertência, mas de uma garantia. Já que foram eleitos por Jesus, eles deverão
produzir fruto, e o produzirão de fato (cf. 15,1-8), e suas preces serão atendidas (cf.
14,13).
15,17
Do ponto de vista literário, o repetido mandamento de Jesus arremata a secção
15,12-17. A ver mais profundamente o repetido mandamento não é mera repetição da
primeira vez em que foi mencionado, no v. 12. Os discípulos, e os leitores com eles,
foram conduzidos, entretanto, mais adiante no caminho. Jesus lhes garantiu sua
proximidade. São os seus amigos, unidos a ele em virtude de sua palavra e qualificados
para produzir fruto. Suas preces serão atendidas. Eles poderão acolher com redobrada
confiança o apelo de Jesus. Jesus não os deixará sozinhos no cumprimento do seu
mandamento.
A respeito do texto que estamos explicando ouve-se amiúde a crítica de que aqui
se expressa uma “ética de conventículo”, segundo a qual o mandamento do amor
formulado por Jesus só pode ser vivido na comunidade, sem se estender ao próximo e,
113
114
Cf. K. SCHOLTISSEK, “Eine grössere Liebe”, 422.
Cf. supra.
Beutler D -84
muito menos, ao inimigo. Contudo, obras recentes são céticas a respeito dessa crítica.
Pudemos constatar que o mandamento do amor mútuo se deduz de Lv 19,18 e que
Paulo conhece uma formulação do mandamento que se aproxima á de João. Uma
abertura do mandamento do amor em João por cima das fronteiras da comunidade
percebe-se também no texto paralelo em Jo 13,34s. Ali se diz, no v. 35: “Nisso todos
reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”. O amor vivido
na comunidade deve ser uma marca dos discípulos e ter um efeito agregador para fora
(cf. Jo 17,21). Com isso rompe-se o círculo estreito da comunidade e abre-se a vista
sobre todos os humanos, chamados à salvação em Cristo115.
O ódio do mundo (15,18–16,4d)
15,18-25
Apesar da influência da tradição sinóptica, da qual ainda falaremos, esta nova
secção parece marcada pelo estilo joanino. As repetidas frases condicionais (como
realis ou irrealis) dão ao conjunto uma estrutura sintática homogênea. O tema
preponderante é o “ódio” do “mundo”.
Esse tema emoldura, como antes dissemos, a secção Jo 15,18-25. Nisso, o ódio
que os discípulos experimentam é o ódio do mundo. Assim, João desloca a experiência
de ódio e perseguição para um contexto dualista abrangente: o conflito entre Deus, seu
Enviado e os discípulos do Enviado, de um lado, e o “mundo” inimigo de Deus, do
outro lado. Disso se segue que o ódio aos discípulos, em última instância, significa ódio
a Jesus e ao Pai, que o enviou. O v. 19 desdobra uma perspectiva dualista: o mundo ama
o que lhe pertence e odeia o que lhe é contraposto. Com base na sua vocação por Jesus,
os discípulos não pertencem mais ao mundo, mas são odiados por ele. Essa experiência
dos discípulos foi anunciada por Jesus, como afirma o v. 20. Jesus mesmo lembra isso a
seus discípulos116. É provável que o autor pense na frase de 13,16. Em 13,16, a palavra
de Jesus servia para conscientizar o discípulos de que ele devia estar disposto para o
serviço como o seu mestre; em 15,20, porém, se diz que ele deve estar disposto a
enfrentar o mesmo destino que seu mestre. Este apelo se encontra com a maior clareza
já em Mt 10,24s. A atitude do “mundo” face aos discípulos repete e reflete sua atitude
face a Jesus – no mau sentido, mas também no bom sentido (cf. o fim do v. 20). Em
última instância, a atitude do “mundo” face aos discípulos se fundamenta em sua
ignorância a respeito de Jesus e do Pai (v. 21).
Os vv. 22-24 se correspondem. Jesus mostrou em palavra e ação que ele foi
enviado pelo Pai, mas o mundo não o conheceu, nem em uma, nem em outra forma de
sua revelação. Assim, o próprio mundo odiou Jesus e, nele, o Pai (v. 23). Esse ódio foi
prenunciado na Escritura: um ódio sem fundamento e sem efeito (cf. Sl 35,19; 69,5).
Muitos observaram que o texto joanino acerca da experiência do ódio e da
perseguição que os discípulos conhecerão se formulou sob influência da tradição
sinóptica117. O principal paralelo é Mc 13,9-13, onde lemos: “ Sereis odiados por todos
por causa de meu nome” (kai. e;sesqe misou,menoi u`po pa,ntwn dia. to. o;noma, mou). À
diferença de Marcos, João não fala apenas do ódio de “todos”, mas do “mundo” como
115
Cf. J. BEUTLER, Kirche als Sekte.
M. THEOBALD, “Erinnert euch”, 267.
117
Cf. J. BEUTLER, Synoptic Jesus Tradition, 171s.
116
Beutler D -85
totalidade dos adversários de Jesus118. Com Marcos ele indica também o fundamento do
ódio que se experimenta: “por causa de meu nome” (dià tò ónomá mou, Jo 15,21). Este
pensamento é então aprofundado em João: o ódio aos discípulos significa ódio a Jesus e,
em última análise, ao Pai que o enviou.
15,26-27
Em ligação não muito estreita com os contextos precedente e subsequente é
inserido aqui o terceiro lógion do Paráclito. Este tem em comum com os lógia de Jo
14,16.26s. em que o Espírito Paráclito é apresentado como enviado pelo Pai. Mas,
diferentemente desses lógia, o Paráclito (chamado Espírito da verdade, como em 14,6),
tem agora uma tarefa em relação ao mundo. Ele apoiará os discípulos no seu embate
judicial. Ele testemunhará a favor de Jesus (com a fórmula preferencial de João, cf. Jo
1,7.15; 5.31-39; 8.13s.; 10,25119) e capacitará os discípulos a darem, também eles, o seu
testemunho.
O tema do testemunho pertence aos temas fundamentais do Evangelho segundo
João. Nos textos acima mencionados, o evangelista ou Jesus se referem a pessoas e
eventos que apoiam a pretensão de Jesus de ser o Enviado do Pai. Estas testemunhas
são: As Escrituras do Antigo Testamento (Jo 5,39), João Batista (1,7s.15; 1,19-34; 8.1618) e o próprio Jesus (8,13s.18). No tempo da Igreja, será o Espírito (cf. nosso texto)
que, em união com os discípulos, testemunhará a favor de Jesus. A linguagem judicial
se insere no contexto do “grande processo” entre Jesus e o mundo. Neste processo,
Jesus aparece como acusado e como quem condena, mas em última instância é o mundo
que se condena a si mesmo120.
A promessa do Espírito Santo em Jo 15,26s. já se encontra preparada em Mc
13,11. Ali se anuncia que o Espírito Santo dará aos discípulos, diante dos tribunais de
governadores e reis, as palavras certas, de modo que não precisarão preocupar-se.
Também o conceito do “testemunho” se encontra preparado em Marcos: a situação de
juízo dos discípulos torna-se um “testemunho” “a favor ou contra” os denunciantes (Mc
13,9).
16,1-4d
Como já vimos, o anúncio de Jesus a respeito da perseguição que se abaterá sobre
os discípulos por parte da sinagoga esta emoldurada numa palavra de Jesus que exprime
sua intenção ao comunicar isso. Os discípulos, quando perseguidos, não devem se
abalar e na hora da experiência se recordarão da palavra de Jesus. O termo “recordar-se”
é importante para a perspectiva pós-pascal de João (cf. Jo 2,22; 12,16). A futura
exclusão sinagogal dos discípulos já se anuncia na expulsão do cego de nascença (Jo
9,22.34s.; cf. 12,42). Também já se falou da possível morte dos discípulos por causa de
Cristo (12,22-24). Tomé, como porta-voz dos discípulos, declarou-se disposto a subir
com Jesus a Jerusalém e a morrer com ele (Jo 11,16). O mesmo vale para Pedro,
embora sua disposição só fique em palavras (Jo 13,37). Agora, esta morte torna-se cruel
realidade para Jesus. Os perseguidores julgarão prestar culto a Deus matando os
discípulos. Com isso, porém, só mostram que não conhecem nem Jesus, nem o Pai.
118
A visão dualista de João se diferencia da visão dos sinópticos, que anunciam a perseguição na
perspectiva escatológica e apocalíptica (cf. Mc 13,9 par. Mt 10,17s.; Lc 21,12s.): J. ZUMSTEIN, “Ils n’ont
pas d’excuse”, 168s.
119
Cf. J. BEUTLER, Martyria, 237-276.
120
Cf. ebd. sowie J. BEUTLER, Marture,w ktl); ID., Zeuge, Zeugnis, Zeugenschaft.
Beutler D -86
Mais uma vez o destino dos discípulos é inserido na visão teológica, que vai até o fundo
e elucida a experiência.
A perseguição dos discípulos pela sinagoga já se encontra anunciada em Mc 13,9.
Marcos fala de perseguição pelas sinagogas e pelos tribunais civis, por governadores e
reis. Em João, encontramos uma concentração dos poderes que ameaçam os discípulos,
sobretudo, nas instituições judaicas. A morte futura de alguns discípulos encontra-se
tanto em Marcos (Mc 13,12) como em João (Jo 16,2).
III
Na polaridade de “amor” e “ódio” apresentam-se dimensões fundamentais da
existência cristã. Depois da partida de Jesus, importa para os discípulos que
permaneçam unidos a ele e entre si. O verbo “permanecer” torna-se termo temático para
isso. Assim serão capazes de aturar a experiência de ódio e inimizade.
Ponto de partida desta secção foi o discurso de Jesus sobre a videira verdadeira, Jo
15,1-8. Jesus não se designa aqui, sem mais, como “a videira”, mas como “a videira
verdadeira”. Acentuando a veracidade da videira em comparação com outras que se
poderiam encontrar, o texto convida à vigilância e ao juízo responsável. Jesus é a luz
“verdadeira que ilumina todo homem” (Jo 1,9), o “verdadeiro pão do céu” (6,32), sua
carne é “verdadeiramente uma comida” e seu sangue, “verdadeiramente uma bebida”
(6,55). No mesmo sentido Jesus é “a videira verdadeira”. Nessas expressões
caracteristicamente joaninas se expressa um elemento de escolha, de decisão. Os fiéis
devem decidir se aceitam Jesus como fonte de sua salvação e querem permanecer
unidos a ele, para terem a vida e produzirem fruto, ou se recusam este convite.
Quando e na medida em que os que creem permanecem em Jesus, também estarão
unidos entre si no amor. Este foi o tema de Jo 15,9-17. Aparentemente essa unidade
entre os crentes sofria ameaça. As cartas de João, provavelmente contemporâneas das
últimas partes dos discursos de despedida, nos informam de divisões que ameaçavam a
comunidade e de fato também a invadiram em determinado momento (1Jo 2,19). Os
pontos controversos aparentemente foram a compreensão certa da fé no Cristo e a
necessidade moral de viver segundo os mandamentos de Jesus. Pode-se perguntar
também pela conexão interna desses dois elementos no sentir dos “secessionistas” e
reconhecê-los em sua antropologia ou conceito do ser humano: estavam tão
convencidos de estarem cheios do Espírito Santo que não mais precisavam de um
“Ungido” no sentido estrito, que lhes desse a salvação; e ao mesmo tempo sentiam-se
elevados acima dos mandamentos de Cristo ou de Deus.
Tal atitude tem alguma atualidade. De fato, certos movimentos pentecostais – fora
e dentro da Igreja – correm o risco de sobre-estimar sua própria capacidade carismática,
perdendo de vista os outros cristãos e a dimensão social do cristianismo. Em oposição a
esse perigo mostra-se a força do mandamento do amor mútuo, na abertura ao outro,
também fora da comunidade, e no testemunho do Espírito de Cristo, que deu sua vida
pelos seus.
A experiência de sofrer o ódio de não cristãos acompanha os cristãos através dos
séculos, até hoje. Do lado judaico surge, recentemente, a pergunta de se o próprio
Evangelho segundo João não é marcado pela “gramática do ódio”121. A autora que
levanta essa pergunta observa que os judeus no Evangelho segundo João desde o início
121
Cf. A. REINHARTZ, Grammar of Hate.
Beutler D -87
são apresentados como opostos a Jesus, à verdade e à luz, enfim, a Deus mesmo. Eles
são os representantes por excelência do “mundo”, opõem-se a Deus e a seu Enviado e,
por isso, são chamados “filhos do diabo” (Jo 8,44). Segundo esta autora, tal modo de
falar exprime ódio. Na secção 15,18–16,4 esta forma do ódio não aparece de modo
direto, mas no modo de falar sobre os judeus122. A “gramática do ódio”, segundo a
autora, se explica pela situação da comunidade primitiva no momento de sua separação
da sinagoga. Em todo o caso, o leitor moderno, ao abordar o tema do “ódio” nos
discursos da despedida, terá de levar em consideração a sensibilidade judaica.
Até que ponto a primeira Igreja sofreu perseguições da parte da sinagoga fica até
hoje uma questão controversa. Além dos casos de Estêvão (At 6,7–8,3) e de Tiago (At
12,1s.) mal se apresentam casos de martírio dos cristãos em consequência de veredicto
de autoridade judaica. Pode-se dar crédito a Paulo quando menciona ter sofrido muito e
injustamente da parte das sinagogas onde ele anunciava o Cristo. No Evangelho
segundo João, deve-se contar com a possibilidade de ele ter projetado a experiência da
perseguição romana, por nós conhecida de documentos históricos123, sobre a resistência
anterior dos judeus contra Jesus e contra os que criam nele124.
6. O terceiro discurso de despedida (16,4e-33)
“Eu não vos disse isso desde o início, porque eu estava convosco. 5 Agora, eu vou
para aquele que me enviou, e nenhum de vós me pergunta: ‘Para onde vais?’ 6 Mas,
porque vos disse isto, os vossos corações se encheram de tristeza. 7 No entanto, eu vos
digo a verdade: é bom para vós que eu me vá. Se eu não for, o Defensor não virá a vós.
Mas, se eu for, eu o enviarei a vós. 8 Quando ele vier, será o acusador do mundo:
mostrará onde está o pecado, a justiça e o julgamento. 9 O pecado, porque eles não
acreditaram em mim. 10 A justiça, porque eu vou para o Pai, de modo que não mais me
vereis. 11 E o julgamento, porque o chefe deste mundo já está julgado. 12 “Tenho ainda
muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de suportá-las agora. 13 Mas quando
ele vier, o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por
si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que está por vir. 14 Ele me
glorificará, porque receberá do que é meu para vo-lo anunciar. 15 Tudo o que o Pai tem
é meu. Por isso, eu vos disse que ele receberá do que é meu e vo-lo anunciará.
16
“Um pouco de tempo, e não mais me vereis; e novamente um pouco, e me
vereis”. 17 Alguns dos seus discípulos comentavam : “Que significa isto que ele está
dizendo: ‘Um pouco de tempo e não mais me vereis; e novamente um pouco, e me
vereis’ e ‘Eu vou para junto do Pai’?” 18 Diziam ainda: “O que é esse ‘pouco’? Não
entendemos o que ele quer dizer”. 19 Jesus entendeu que eles queriam fazer perguntas;
então falou: “Estais discutindo porque eu disse: ‘Um pouco de tempo, e não me vereis;
e novamente um pouco, e me vereis’? 20 Amém, amém, digo-vos: chorareis e
lamentareis, mas o mundo se alegrará. Ficareis tristes, mas a vossa tristeza se
transformará em alegria. 21 A mulher, quando vai dar à luz, fica angustiada, porque
chegou sua hora. Mas depois que a criança nasceu, já não se lembra mais das dores,
na alegria de alguém ter vindo ao mundo. 22 Também vós agora sentis tristeza. Mas eu
vos verei novamente, e o vosso coração se alegrará, e ninguém poderá tirar a vossa
122
Cf. ibid., 420.
Cf., entre outras fontes, a correspondência entre Plínio, o Moço, e o imperador Trajano acerca do
procedimento contra os cristãos, no “Epistolário de Plínio” 10,96s.
124
Cf. R. J. CASSIDY, John’s Gospel.
123
Beutler D -88
alegria. 23 Naquele dia, não me perguntareis mais nada. “Em verdade, em verdade,
digo-vos: se pedirdes ao Pai alguma coisa em meu nome, ele vos dará. 24 Até agora,
não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja
plenificada.
25
“Eu falei estas coisas por meio de figuras. Vem a hora em que não mais vos
falarei em figuras, mas vos falarei abertamente a respeito do Pai. 26 Naquele dia
pedireis em meu nome. Eu não pedirei mais ao Pai por vós. 27 O próprio Pai vos ama,
porque vós me amastes e acreditastes que saí de junto de Deus. 28 Eu saí do Pai e vim
ao mundo. De novo, deixo o mundo e vou para o Pai”. 29 Os seus discípulos disseram:
“Agora, sim, falas abertamente, e não em figuras. 30 Agora vemos que conheces tudo e
não precisas que ninguém te faça perguntas. Por isso acreditamos que saíste de junto
de Deus!” 31 Jesus respondeu: “Credes agora? 32 Eis que vem a hora, e já chegou, em
que vos dispersareis, cada um para seu lado, e me deixareis só – mas eu não estou só, o
Pai está sempre comigo. 33 Eu vos disse essas coisas, para que, em mim, tenhais a paz.
No mundo tereis aflições. Mas tende coragem! Eu venci o mundo”.
I
Começa aqui o assim chamado “terceiro discurso de despedida”. Retoma,
sucessivamente, os principais temas do primeiro discurso (13,31–14,31 ou, segundo
outros, 14,1-31). Ponto de partida é o iminente adeus de Jesus de seus discípulos. O
efeito sobre os discípulos, o luto deles, é anunciado nos vv. 5-6 e desdobrado
literariamente na sequência, nos vv. 7-22. Os vv. 23s. retomam ainda uma vez a oração
no nome de Jesus. Com os vv. 25-33 o capítulo se extingue, enquanto surgem novos
temas: o falar de Jesus em código secreto ou aberta e compreensivelmente, o tema da
“hora”, a futura dispersão dos discípulos e a ajuda que encontrarão junto de Jesus na
garantia de salvaguarda e vitória.
II
O anúncio do Espírito-Paráclito (16,4e-15)
No início do discurso, os discípulos recebem novamente a promessa do Espírito
Santo (cf. Jo 14,16s.26). Os vv. 8-11 descrevem a ação do Espírito em relação ao
mundo, os vv. 12-15, em relação aos discípulos.
16,4e-7
Os versículos introdutórios retomam a situação dos discípulos. Desde o passado,
conduzem, através do presente, ao futuro. No v. 4e, Jesus fala de si mesmo no aoristo e
no imperfeito. Nos vv. 5-7b usa o tempo presente (ou o perfeito com significado do
presente). No fim, usa duas formas gramaticais diferentes para falar do futuro: em
verbos principais no futuro, ou em frases subordinadas que descrevem algo futuro.
Assim anunciam-se os vv. 7-11.12-15, que falarão da missão do Espírito Paráclito.
As palavras de v. 4e, “não vos disse isso desde o início”, não deixam claro o que
significa “isso”. À primeira vista poderiam significar o anúncio de Jesus a respeito da
futura expulsão dos discípulos das sinagogas e da morte que os ameaça, segundo os vv.
2-3. Mas a seguir mostra-se que o interesse do narrador se desloca da situação concreta
dos discípulos depois da partida de Jesus para sua situação à luz da fé: estarão
separados, fisicamente, de Jesus. Como observa K. Haldimann125, aqui se introduz uma
125
Cf. K. HALDIMANN, Rekonstruktion, 280-325, esp. 287s.
Beutler D -89
distinção temporal, que até agora fazia falta. Podem-se distinguir o tempo em que Jesus
ainda está presente junto aos seus, o momento de sua partida, sua nova vinda e um
tempo intermediário. Deste momento falam os vv. 5-6.
No v. 5 nota-se a contradição entre as palavras de Jesus dizendo que ninguém
pergunta pela razão de sua partida e as perguntas neste sentido feitas pelos discípulos
anteriormente (Pedro em 13,36, Tomé em 14,5). Pode-se explicar essa contradição por
um modelo literário que supõe diversos discursos de despedida sucessivos, sem que o
redator desse muito valor a uma apresentação totalmente livre de contradições 126. Mais
satisfação, porém, dá o modelo da “releitura”, que explica a contradição pela situação da
leitura127. Uma variante dessa explicação é proposta por K. Haldimann, que lê o texto
sincronicamente, mas leva em consideração o processo de crescimento do texto128. Nos
capítulos 13 e 14 se tratava de perguntas de discípulos individuais citados
nominalmente. Em Jo 16,5, Jesus se abre a eventuais perguntas do círculo dos
discípulos. Com base no que sentem antes da partida de Jesus, os discípulos ainda não
são capazes de fazer as perguntas adequadas, inclusive as que dizem respeito ao
significado de sua partida.
A ignorância dos discípulos é ligada à tristeza, apesar do apelo de Jesus para que
não se deixem conturbar (cf. 14,1.27). Literariamente, anuncia-se aqui o tema “tristezaalegria” dos vv. 20-22. Teologicamente, esclarece-se, agora, que a partir de Jo 16,4b
será tratado com maior definição a sucessão dos momentos temporais.
Como mostra o v. 7, do ponto de vista de Jesus, em nenhum momento os
discípulos ficarão abandonados e sós. À sua “partida” (apérkhesthai, poreúesthai)
corresponde o “vir” (érkhesthai) do Espírito-Paráclito. Assim como se disse do
Paráclito em Jo 15,26, aqui, é dito que ele será enviado por Jesus – um desenvolvimento
da ideia de que ele é “dado” pelo Pai (cf. Jo 14,26, numa terminologia que ainda deixa
transparecer a linguagem de Ez 36,26). Nota-se como a promessa do Antigo Testamento
se desloca para o pano de fundo e, no lugar dela, se coloca a interpretação cristológica.
O Pai “enviou” Jesus (v. 5), e este envia de seu lado o Espírito, para que este permaneça
com os discípulos129.
16,8-11
O conjunto seguinte dá azo a diversas interpretações. Por um lado surge a
pergunta linguística concernente ao sentido do elégkhein e o triplo hóti nos vv. 9-11; do
outro lado, a pergunta teológica, que está ligada á linguística: qual é então, segundo
estes versículos, a tarefa do Paráclito? É didática ou forense? O verbo elégkhein
encontra-se ainda duas vezes em João: em 3,20 e em 8,46. Em ambos os casos, tem
sentido forense. Muitos comentadores concluem daí que um sentido semelhante deve
estar presente em Jo 16,8. Mas do outro lado, o verbo tem um espectro semântico mais
amplo: “arguir”, “censurar”, “convencer”, “declarar”, “examinar” etc., com base em
provas. Da tradução que se prefere depende em parte o sentido do triplo hóti nos vv. 911. Segundo alguns, tem sentido declarativo, significando “que”, segundo outros,
sentido causal, “porque”. Um panorama das possíveis variantes de tradução e
126
Assim leem R. E. BROWN, II, und R. SCHNACKENBURG, III.
Assim entendem A. DETTWILER, Gegenwart; J. ZUMSTEIN, II, 127.
128
Cf. novamente K. HALDIMANN, Rekonstruktion.
129
Segundo D. PASTORELLI, Paraclet, 120, a vinda do Paráclito segundo o v. 7 deve ser destacada de sua
dupla tarefa em relação ao mundo e aos discípulos, descrita nos vv. 8-11 e 12-15.
127
Beutler D -90
interpretação encontra-se em C. K. Barrett130, complementado por K. Haldimann131. Do
panorama aprende-se que convém optar por uma interpretação que faça jus tanto ao
aspecto forense do elégkhein quanto ao didático; e para o hóti, portanto, deve-se
escolher uma tradução que deixe transparecer o aspecto declaratório e o aspecto causal
(nas línguas ocidentais modernas pode-se substituir a palavra por dois pontos; a
Einheitsübersetzung prefere “que”, a nossa tradução, “porque”). Então a exegese dos
vv. 8-11 soaria mais ou menos como aqui segue.
O espírito enviado por Jesus mostrará ao mundo o que são o pecado, a justiça e o
julgamento. Ele arguirá o mundo em sua culpa no que diz respeito a Jesus. Ele ensinará
o mundo e o convencerá de que seu pecado consiste em recusar a fé a Jesus. Ele
ensinará ao mundo em que consiste a justiça: é a justiça que Jesus experimentará e que
fará com que os seus não mais o verão. Ele ensinará o mundo e o convencerá na questão
do julgamento: o “príncipe” deste mundo já está julgado.
Que elégkhein significa mais do que simplesmente “ensinar” foi, justamente,
observado por D. A. Carson132. Contudo, Carson entende a “justiça” como sendo a
humana. Para sustentar essa interpretação, deve atribuir um sentido irônico à palavra.
Tal interpretação parece improvável, mesmo levando em consideração que a ironia é um
meio estilístico de João. Em vista dos versículos seguintes, pode-se descrever a função
do Paráclito também com os verbos “anunciar e denunciar”: assim se confirmariam dois
conceitos fundamentais da teologia da palavra dos teólogos da libertação.
16,12-15
Depois da descrição da função do Espírito-Paráclito em relação ao mundo
descreve-se agora sua função em relação aos discípulos. No início, no v. 12, reflete-se,
novamente, sobre o momento em que Jesus fala aos seus. Em Jo 14,30 não havia mais
muito a falar a eles, porque o adversário estava próximo. Agora a razão por que Jesus
pouco fala é que os discípulos ainda não são capazes de entender as suas palavras. Por
trás desta consideração está a reflexão do autor acerca dos tempos da presença e da
ausência de Jesus, neste caso, a necessidade do Espírito para a compreensão das
palavras de Jesus – inclusive em sua significação para a vida e o bem dos discípulos
neste mundo. O verbo bastázein significa “suportar”: os discípulos não são ainda
capazes de entender e admitir as consequências das palavras de Jesus para sua situação
existencial133.
Como “Espírito da verdade”, o Espírito conduzira os discípulos “em toda a
verdade”, v. 13. A escolha da preposição de lugar en em vez da proposição de direção
eis pode estar relacionada com a intenção do autor de evocar um crescimento na
compreensão da verdade pelos discípulos, antes do que uma nova descoberta134. Isto,
porque os discípulos já encontraram e reconheceram a verdade em Jesus (cf. Jo 14,6) e
porque o Espírito não tem outra função senão a de introduzi-los mais profundamente
nessa verdade. Nessa verdade, os discípulos serão capazes de entender o presente, o
passado e o futuro.
130
Cf. C. K. BARRETT, ad locum.
Cf. K. HALDIMANN, Rekonstruktion, 303-316.
132
D. A. CARSON, Function.
133
Cf. ad locum e para os discursos de despedida em conjunto J. RAHNER, Erinnerung.
134
Manuscritos de primeira hora leem aqui eivj em vez de evn (A B pc), mas isso pode ser uma facilitação.
2
A forma evn é atestada por a D L W e.o.
131
Beutler D -91
Na medida em que o espírito se refere às palavras de Jesus, ele o glorificará (v.
14). O leitor já conhece a expressão aplicada à glorificação mútua de Pai e Filho (cf.
acima, Jo 13,31s.). É apenas em Jo 21,19 que o verbo expressa a glorificação de Deus
pela vida ou morte de um discípulo135.
O pensamento que se exprime em Jo 16,14 se justifica, quando se considera que
tudo o que é de Jesus vem do Pai. Com esta consideração, o v. 15 termina a secção136.
Em toda esta seção é importante a dimensão do tempo, quando se quer entender a
situação dos discípulos. Alguns estudiosos suíços do Novo Testamento relevaram isso
recentemente.
Como já mencionado anteriormente, em Jo 16,4 começa uma secção que vai até o
fim do capítulo no v. 33 e na qual, novamente, se encontram elementos fundamentais do
Reino de Deus, como Paulo os descreve em Rm 14,17: “O Reino de Deus não é comer e
beber, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo”137. Jo 16,4e-33 é o único texto
joanino em que se encontram esses quatro elementos e no qual se encontra também o
conceito de “justiça” (nos vv. 8-10). Via de regra, não se toma nota deste fato na
exegese. A menção que João faz a estes elementos do Reino de Deus, também neste
lugar, pode esclarecer a ocorrência conjunta. A “paz” se encontra no fim do capítulo, no
v. 33; a “alegria”, na imagem da mulher que espera o nascimento do filho (vv. 21s.), a
promessa do “Espírito”, nos ditos acerca do Paráclito nesta passagem (vv. 7-15). No
relato da aparição de Jesus aos discípulos na tarde da Páscoa em Jo 20,19-23, “paz”,
“alegria” e “Espírito Santo” aparecem novamente como dons do Ressuscitado. As
promessas de Jo 14,25-27 e de 16,4e-33 se cumprirão.
Do luto à alegria (16,16-24)
A secção que agora começa se destaca daquilo que precede por sua reflexão
cristológica e sobre a situação psicológica dos discípulos depois da despedida de Jesus.
Os discípulos ouvem palavras de consolação em seu luto e de exortação para suas
preces. Com a frase “Eu falei estas coisas por meio de figuras” (taûta em paroimíais
lelálēka hymîn) no v. 25 inicia-se uma nova e última unidade do texto.
A construção da secção é bem mostrada por K. Haldiman138. Segundo ele, a
secção pode ser dividida em três partes principais:
I. V. 16
II. Vv. 17-18
III. A: v. 19ab; B: v. 19c-e; C: vv. 20-22; D: vv. 23-24.
Na 1ª parte, Jesus anuncia que os discípulos em breve não mais o verão, mas
depois o verão de novo. Na 2ª parte, os discípulos perguntam o que podem significar
essas palavras de Jesus. Esta pergunta se refere principalmente ao “pouco de tempo”
(mikrón). Na 3ª parte, o assunto é Jesus, em quatro tópicos:
A. Jesus sabe o que os discípulos gostariam de lhe perguntar (19a.b) (erōtân)
B. Ele repete as palavras da pergunta dos discípulos (19c-e)
C. Ele anuncia luto e alegria para o futuro (20-22)
135
O versículo falta em certo número de manuscritos antigos, como P66 a** sams bomss, mas esta falta pode
ser explicada pelo homeoteleuto com v. 13.
136
Cf. para isso J. ZUMSTEIN; H. WEDER (professor de K. HALDIMANN); A. DETTWILER, Gegenwart.
137
Cf. acerca disso J. BEUTLER, Synoptic Jesus Tradition.
138
Cf. K. HALDIMANN,Rekonstruktion, 326s.
Beutler D -92
D. Ele lhes promete um tempo em que não precisarão mais perguntar (23s.) (erōtân).
Como se pode ver, esta secção é enquadrada pelo tema do “pedir, orar”. Também
o tópico maior, vv. 20-22, é construído concentricamente, com os temas do luto e da
alegria. No início está uma palavra sobre o luto (v. 20); no meio, a palavra sobre a
mulher que espera o nascimento de um filho e passa da preocupação para a alegria (v.
21); no fim, o anúncio da alegria renovada dos discípulos, agora em termos diretos, sem
imagem (v. 22).
16,16-19
No v. 16, Jesus diz que, dentro de pouco tempo, os discípulos não mais o verão,
mas depois de mais um pouco hão de vê-lo novamente. Isso parece uma releitura de Jo
13,33 139. À diferença do sentido em Jo 13,33, trata-se em 16,16 não imediatamente da
partida de Jesus, mas da possibilidade de os discípulos “verem” Jesus, e neste “ver”
implica-se uma sequencia temporal. Pode-se distinguir um tempo antes da partida de
Jesus, depois de sua partida e depois de seu novo aparecimento. É sobretudo para o
tempo intermediário que o Jesus joanino dá instruções e reconforto.
A palavra de Jesus enseja, nos vv. 17-18, uma discussão dos discípulos entre si140.
A construção forma um quiasma. No início e no fim aparece a pergunta: “O que
significa isso?” (tí estin toûto?), no primeiro caso referindo-se ao inteiro dito de Jesus
em Jo 13,33, no segundo caso, somente ao adverbio “pouco tempo” (mikrón). Assim, o
problema parece referir-se, sobretudo, às fases sucessivas da relação de Jesus com os
discípulos.
A resposta de Jesus no v. 19 começa com uma pergunta direta aos discípulos, que
mostra seu conhecimento da discussão que eles tiveram na sua ausência e, também, sua
disposição em ajudar os discípulos a superar suas preocupações. Esta é a intenção dos
versículos seguintes.
16,20-22
Já mostramos a construção dos vv. 20-22. No início encontra-se novamente uma
palavra sobre a tristeza dos discípulos. Eles estão certos ao se preocuparem com o
momento em que Jesus não mais estiver com eles. Eles ficarão tristes, enquanto o
mundo se alegrará.
Mas vira o momento em que essa tristeza se converterá em alegria. Esta
perspectiva é ilustrada, no v. 21, mediante a comparação com a mulher que dará um
filho ao mundo. Primeiro experimenta dor, mas essa dor se transforma em alegria
quando a criança é dada á luz. Kathleen Rushton141 evidenciou a importância da
imagem do nascimento em João, seja neste contexto, seja no diálogo entre Jesus e
Nicodemos, como parte de um imaginário feminino na Bíblia e, especificamente, no
Novo Testamento. Assim como a dor da mãe se deixa transformar em alegria, assim
também a tristeza dos discípulos de Jesus depois de sua partida. Na nova situação, no
v.22, o “ver” aparece em ordem inversa; o texto não diz que os discípulos verão o
139
No v. 16, alguns manuscritos, como A K N G D 068, as famílias f1.13 e o texto majoritário, leem o[ti
u`pa,gw pro.j to.n pat,era, mas isso parece antecipado do v. 17. A tradição textual mais antiga (alexandrina)
não apoio essa lição.
140
V. 18a falta no Codex D, na Vetus Latina e no Syrosinaiticus, mas esta falta se pode explicar por
homeoteleuto com o v, 17. A expressão o] le,gei neste versículo é incerta.
141
Cf. K. RUSHTON, Parables; cf. ainda J. HARTENSTEIN, Aus Schmerz wird Freude.
Beutler D -93
Senhor, mas que ele os verá. Com isso, João sublinha a nova relação entre Jesus e os
seus.
16,23-24
A conexão entre os vv. 19-20 e 23s. pode dar-se por associação. Ao erotân
(“pedir”, “perguntar”) dos discípulos no v. 19 corresponde o mesmo verbo no v. 23.
Não é totalmente claro se Jesus quer dizer que os discípulos não lhe perguntarão mais
nada depois do reencontro com ele, ou se quer dizer que eles não terão mais nada a
pedir-lhe. Aparentemente, a palavra de Jesus aponta nesta última direção, com base no
duplo sentido do verbo. Retoma-se o tema da indefectibilidade da oração, já
mencionado em Jo 14,13s.; 15,7. Mas acrescenta-se que, até agora, não pediram nada ao
Pai em nome de Jesus. Novamente se mostra a significação do tempo final como tempo
da oração indefectível em nome de Jesus.
“Vem a hora” (16,25-33)
Com os versículos que agora se seguem termina o terceiro discurso de despedida.
A fórmula “eu vos falei estas coisas” (taûta ... lelálēka hymîn) emoldura a secção (vv.
25-33). O tema da indefectibilidade da oração em nome de Jesus “naquele dia” é
retomado nos vv. 26s. Novos temas ainda acrescem, como o falar de Jesus em enigma
ou abertamente, o tema da “hora”, a futura dispersão dos discípulos e o encorajamento
que Jesus lhes proporciona: paz e vitória. Com esse encorajamento, o discurso termina.
Segue-se a oração de Jesus em Jo 17, que não faz parte dos discursos de despedida no
sentido próprio.
A partir da estrutura narrativa podem reconhecer-se nesta secção três partes: a
continuação do discurso de Jesus (vv. 25-28), a reação dos discípulos (vv. 29s.) e a
resposta conclusiva de Jesus (vv. 30-33). A contribuição dos discípulos aparece à
primeira vista como expressão de sua compreensão e intuição de fé, mas esta intuição
de fé é questionada e revogada na resposta de Jesus.
16,25-28
O seguinte grupo de versículos agora é conectado sem nova introdução de
discurso. Destaca-se dos versículos anteriores pela introdução sintética e pela
alternância para um novo tema: o falar de Jesus em imagens ou aberto142. A diferença
entre a visão de Jesus e a dos discípulos está na divisão diferente do tempo. Jesus está
no fim de seu percurso terreno e da comunicação de sua mensagem. Assim, o uso do
perfeito no v. 25 se justifica plenamente. O tempo que passou é tempo do falar em
imagens (cf. Jo 10,6). Logo, porém, virá o tempo, a “hora”, em que Jesus falará do Pai,
não mais em imagens, mas abertamente. A expressão “naquele dia” caracteriza a
revelação vindoura como escatológica. Nessa hora escatológica, nesse dia, o Pai dará
tudo aos que creem em Jesus, mesmo sem que tenham rezado por isso, porque o Pai os
ama e eles creram em Jesus. Objeto da fé dos discípulos são a saída de Jesus de junto do
Pai e sua volta ao Pai. Segundo essa divisão do tempo, o momento de sua revelação sem
figuras ainda deve chegar. O conceito da “hora”, que até aqui foi usado no Evangelho
segundo João para a hora escatológica (Jo 4,23; 5,25.28) ou para a “hora” de Jesus (Jo
142
O termo avlla, neste versículo, atestado por muitos manuscritos, acentua este contraste, mas pode ser
uma inserção secundária; está ausente de P 5vid a B C* D* L W, e.o. No lugar do avpaggelw/ encontra-se
no mesmo versículo avpagge,llw ou avnaggelw/. O texto de Nestle-Aland se apoia na tradição antiga de P
66c
A B C* D K L W e.o.
Beutler D -94
2,4; 12,23; 13,1; 17,1), agora é usado em sentido “eclesiológico”, para expressar uma
nova relação entre Jesus e seus fiéis. Para Jesus, essa “hora” é iminente, mas deve ainda
chegar.
16,29-30
Os discípulos acatam o tema dos dois modos nos quais Jesus fala aos seus: em
imagens ou abertamente. Mas eles se enganam quando pensam que o momento do falar
abertamente já chegou. Assim, eles usam duas vezes o advérbio de tempo, “agora”
(nyn). Talvez pensam que, deste modo, possam passar por cima da “hora” de Jesus
como hora de seu sofrimento e morte antes da sua ressurreição.
16,31-33
Exatamente essa opinião é que Jesus combate a seguir. Os discípulos ainda não
chegaram à verdadeira fé nele. Antes, aproxima-se a “hora” de sua dispersão, na qual
eles serão espalhados e abandonarão Jesus–em comunhão com o Pai somente. Esta
admoestação, porém, vem acompanhada de uma promessa: Jesus promete aos seus, que
no mundo conhecerão aflição, sua paz e a vitória sobre o mundo, como ela já venceu o
mundo.
Dois temas destes versículos conclusivos merecem uma explicação pela história
traditiva: a “dispersão” dos discípulos (v. 32) e a promessa da paz (v. 33).
A iminente dispersão dos discípulos, anunciada no v. 32, tem seu precursor em
Mc 14,27 par. Mt 26,3. A base escriturística é Zc 13,7, versículo atingido por
consideráveis diferenças quanto à transmissão do texto. Segundo a Einheitsübersetzung,
o texto massorético soa assim: “Espada, levanta-te contra os meus pastores, contra o
homem de minha confiança – oráculo do Senhor dos exércitos. Fere o pastor, então as
ovelhas serão dispersadas. Dirijo minha mão contra os pequenos”. Na Septuaginta
supõe-se um plural de pastores e de pessoas que ferirão. Sob este aspecto, a citação nos
sinópticos aproxima-se mais do texto massorético. Em João não se fala do pastor, mas
apenas da dispersão (das ovelhas)143. Dela já se falou antes, no cap. 10, no discurso do
Pastor (Jo 10,12). Jesus é aquele que reúne as ovelhas dispersas (Jo 11,52). Também em
Jo 16,32 pode-se reconhecer uma dimensão cristológica, na alusão a Zc 13,7. Quando
Jesus, o pastor, for ferido, os discípulos (as ovelhas) se dispersarão. E no fim será ele
quem os reunirá novamente. Os textos que estão por trás dessa expectativa são,
sobretudo, Jr 23 e Ez 34, aos quais também Jo 10 se refere144. Outra utilização de
Zacarias encontra-se em Jo 19,37 (Zc 12,10).
O outro tema transmitido que se encontra em nosso grupo de versículos é o da
“paz” (v. 33). Na explicação de Jo 14,25-29 já se indicou o pano de fundo históricotraditivo deste tema. Segundo essa explicação, a paz pertence a um campo lexical que se
percebe em Rm 14,17: “O reino de Deus não é comer e beber, mas justiça, paz e alegria
no Espírito santo”. Em nosso capítulo já foram mencionados o dom do Espírito santo
(vv. 7-11.13-15), a justiça (vv. 8s.) e a paz (vv. 20-22). O tema da “paz” vem completar
essa coleção. Em certo sentido, esta promessa da paz antecipa o seu dom na noite da
Páscoa (Jo 20,19-23). Enquanto os discípulos vivem neste mundo, experimentando a
resistência dele, podem ter esperança. Jesus venceu todas as forças que se opõem a
Deus, inclusive o mundo e a morte. Os discípulos podem participar dessa vitória (cf. 1Jo
143
144
Para a recepção de Zc 13,7 no Novo testamento, cf. S. HÜBENTHAL, Transformation, 217-255.
Cf. dazu J. BEUTLER, Hirtenrede.
Beutler D -95
4,4; 5,4s.). Assim podem ser confiantes e corajosos. Enquanto permanecerem em Jesus,
como os ramos na videira, participarão de sua paz.
III
Qual é a mensagem do terceiro discurso de despedida no Evangelho segundo
João? A resposta a esta pergunta aparece nas secções principais deste capítulo. Os vv.
4e-15 são marcados pelo anúncio do Espírito-Paráclito, que virá em socorro aos
discípulos. Na linguagem da teologia da libertação, o Espírito tem, nesta secção, a tarefa
de “anunciar e denunciar”. A função do “denunciar” é atribuída ao Espírito nos vv. 811. Ele denunciará o mundo por causa de sua falta de justiça, no sentido teológico e
cristológico, mas não sem consequências quanto à prática dos mandamentos de Jesus;
neste sentido, portanto, também por causa dos pecados do mundo. Ao “denunciar”
corresponde o “anunciar” do Evangelho (vv. 12-15). Na apresentação do evangelista,
trata-se de uma função do Espírito em relação aos discípulos, mas num sentido mais
amplo reconhece-se aqui também a função do Espírito e da Igreja, de anunciar ao
mundo, à luz da fé, o que está por vir e de abrir, sob esta luz, novos horizontes.
Na secção central, vv. 16-24, o tema principal era a alegria, tratada de maneira
dual em “antes” e “depois”. Depois do tempo do sofrimento dos discípulos no mundo
seguirá um tempo em que lhes serão enxugados as lagrimas dos olhos (cf. Ap 21,4).
Talvez exatamente o mundo do Apocalipse aqui nos ajude para entender e traduzir esta
passagem. Até hoje os cristãos residem como estrangeiros neste mundo, muitas vezes
odiados, excluídos ou mesmo mortos. Mas a vitória será deles, como anuncia também o
fim do capítulo. Suas preces não ficam sem ser atendidas; seu sofrimento se
transformará em alegria. Nesta esperança, os cristãos podem se sentir encorajados, em
alegre expectativa do encontro com seu senhor, que é também o Senhor da História.
Assim chegamos à mensagem dos últimos versículos deste capítulo, vv. 25-33. A
finalidade destes versículos finais parece ser ajudar os discípulos a encontrar seu lugar
na “previsão do tempo de Deus”. As leitoras e leitores das comunidades joaninas já
vivem no tempo depois da morte e da ressurreição de Jesus. Assim, não existe mais para
eles o perigo de querer passar por cima da “hora” de Jesus, o perigo de querer viver na
plenitude escatológica sem a experiência da aflição (thlípsis) que Jesus conheceu e que
também eles devem experimentar. Este caminho de Jesus, eles devem assumi-lo com
Jesus, e fazendo isso podem colocar toda a sua confiança em Jesus.
7. A oração de Jesus em sua despedida (17,1-26)
17 1 Depois de falar estas coisas, Jesus elevou os olhos ao céu e disse: “Pai,
chegou a hora. Glorifica teu filho, para que teu filho te glorifique, 2 assim como deste a
ele poder sobre toda a carne, a fim de que dê vida eterna a todos os que lhe deste. 3
Ora, esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus
Cristo, aquele que enviaste. 4 ”Eu te glorifiquei na terra, levando a termo a obra que
me deste para fazer. 5 E agora Pai, glorifica-me junto de ti mesmo, com a glória que eu
tinha, junto de ti, antes que o mundo existisse.
6
“Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eles eram teus e
tu os deste a mim; e eles guardaram a tua palavra. 7 Agora, eles sabem que tudo quanto
me deste vem de ti, 8 porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as
acolheram; e reconheceram verdadeiramente que eu saí de junto de ti e creram que tu
me enviaste. 9 Eu rogo por eles. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste,
Beutler D -96
porque são teus. 10 Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu, e eu sou
glorificado neles. 11 Eu já não estou no mundo; mas eles estão no mundo, enquanto eu
vou para junto de ti. Pai Santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles
sejam um, como nós somos um. 12 Quando estava com eles, eu os guardava em teu
nome, o nome que me deste. Eu os guardei, e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho
da perdição, para se a Escritura. 13 Agora, porém, eu vou para junto de ti, e digo estas
coisas estando ainda no mundo, para que tenham em si a plenitude de minha alegria.
14
Eu lhes tenho dado a tua palavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do
mundo, como eu não sou do mundo.15 Eu não rogo que os tires do mundo, mas que os
resguardes do maligno. 16 Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo.
17
Santifica-os na verdade: a tua palavra é verdade. 18 Assim como tu me enviaste ao
mundo, eu também os enviei ao mundo. 19 Eu me santifico por eles, a fim de que também
eles sejam santificados na verdade.
20
“Eu não rogo somente por eles, mas também por aqueles que creem em mim
pela palavra deles. 21 Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que
eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. 22 Eu lhes dei a
glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um: 23 eu neles, e tu em
mim, para que sejam consumados na unidade, e o mundo conheça que tu me enviaste e
os amaste como amaste a mim.
24
“Pai, quero que estejam comigo aqueles que me deste, para que contemplem a
minha glória, glória que tu me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo. 25
“Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci, e estes reconheceram que tu
me enviaste. 26 Eu lhes fiz conhecer o teu nome, e o farei conhecer ainda, para que o
amor com que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles”.
I
Jesus encerra suas palavras de despedida não com uma última exortação, mas com
uma oração. Pode ser considerada como uma continuação dos discursos de despedida ou
também como uma síntese. Em todo o caso, nesta oração voltam ideias centrais e
palavras-chaves dos quatro capítulos anteriores. F. J. Moloney viu nas secções
principais dos discursos de despedida, junto com esta oração, uma construção
concêntrica, para a qual se podem alegar observações interessantes 145. Sua reconstrução
pressupõe a coerência de Jo 13,1-38, à frente de Jo 14, Jo 15,1–16,4d e Jo 16,4e-33. É a
mesma divisão que, no fundo, se encontra também no presente comentário. Ponto de
partida são as correspondências entre o primeiro discurso de despedida (Jo 14) e o
terceiro (Jo 16,4e-33), nos quais está no primeiro plano o iminente adeus de Jesus,
ligado à sua nova vinda. A secção intermediária Jo 15,1–16,4d tem certa autonomia e
desdobra o permanecer em Jesus e os temas do amor e do ódio. Mas também a primeira
e a última secções do conjunto, isto é, o relato do lava-pés e a última oração de Jesus,
mostram correspondências. Para Moloney a ideia central é aqui o fato de que Deus deve
ser dado a conhecer. Mas notam-se também outras correspondências. Segundo ambas
estas secções “veio” a “hora” de Jesus (Jo 17,1; cf. 13,1). Esta hora é a hora da
glorificação do Pai por Jesus (17,1.4; cf. 13,31s.), mas também de Jesus pelo Pai
(17,1.5; cf. 17,24; 13,31s.). À prece de Jesus pela unidade dos seus em Jo 17
corresponde o novo mandamento do amor mútuo, em Jo 13,34s. Ao “amor” de Jesus no
145
Cf. F. J. MOLONEY 24.
Beutler D -97
início (Jo 13,1) corresponde o amor do Pai no fim (17,26), como ressaltou Y.
Simoens146.
A sequência das cinco secções maiores dos discursos de despedida não pressupõe,
necessariamente, que tenham sido compostos ao mesmo tempo. É possível que partes
ulteriores retomem partes anteriores e as completem (como releituras). Ainda assim o
texto pode ser percebido e entendido como composição solidária.
Quanto à divisão interna do cap. 17 reina bastante unanimidade. No início, a
oração de Jesus focaliza o próprio Jesus na sua glorificação pelo Pai (vv. 1-5). Depois,
ele reza pelos discípulos que lhe são confiados (vv. 6-19, veja v. 9: “Eu rezo por eles”).
Em continuidade com isso, ele reza pelos que, por causa da palavra dos discípulos,
acreditarão nele (vv. 20-23, veja v. 20: “Não rezo somente por estes”). Com base nas
análises semânticas, aconselha-se ler os vv. 24-26 como uma pequena secção própria,
de encerramento. Aqui Jesus reza tendo em vista os dois grupos previamente
mencionados (depois da renovada exclamação orante: “Pai”, v. 24)147.
Mostra-se que não menos que seis conceitos-chave se encontram em cada uma das
quatro partes que distinguimos. “Pai” (páter, vv. 1.5.11.21.24.25), duas vezes na
primeira e na última secções, como exclamação orante, e bem como moldura, nos vv. 1
e 5; “glória, glorificar” (dóxa, doxázein, vv. 1.4.5.10.22.24); “conhecer” (ginṓskein, vv.
3.7.8.23.25); “dar” (didónai( vv. 2.4.6-8.11s.14.22.24); “enviar” (apostéllein, vv.
3.8.18.21.23.25); “mundo” (kósmos, vv. 5s.9.11.13-16.18.21.23.24).
As últimas secções exibem campos lexicais que lhes são próprias, como mostrará
a análise particular. Na primeira secção, o foco está principalmente na revelação do Pai
por Jesus e, com isso, na glorificação dele, à qual corresponde a glorificação de Jesus
pelo Pai; na segunda, trata-se da salvaguarda dos discípulos na palavra de Jesus e de sua
santificação, que se torna possível pelo “santificar-se a si mesmo” de Jesus. Os
discípulos serão santificados “na verdade” (v. 19), outro tema da segunda secção. A
unidade dos discípulos aparece na segunda secção (v. 11) e é elaborada mais
amplamente na terceira (vv. 21-23). À unidade dos discípulos corresponde, na quarta
secção, o estar com Jesus em sua glória. Aqui é arrematado também o tema do amor,
que estava presente no início dos discursos de despedida (cf. Jo 13,1). O tema se
anuncia na terceira secção da oração (v. 22) e fecha, na quarta secção (vv. 24.26), a
moldura do conjunto dos discursos de despedida.
Como se explicam a oração de Jesus despedindo-se e seus principais temas
mencionados neste lugar? Alguns exegetas apontam, em textos gnósticos ou
sincretistas, uma oração do Revelador antes de sua despedida do mundo. Bultmann148
remete ao Corpus Hermeticum I,29-32 e a um texto maniqueu. C. H. Dodd149 cita uma
lista de correspondências entre o Corpus Hermeticum I e o Evangelho segundo João,
entre os quais Jo 17 (p.ex. “Pai santo” e “santificar-se”).
146
Cf. Y. SIMOENS, La gloire, 55-58; ID., Selon Jean III 719.
H. RITT, Jesu Gebet, divide Jo 17 na óptica da linguística textual. Todavia, as divisões segundo o
conteúdo, que ele apresenta inicialmente, conservam seu valor. O que mais se discute é se os vv. 6-8
pertencem ao contexto anterior ou representam uma secção própria. Como acima argumentamos, faz bom
sentido juntá-los aos vv. 9-19.
148
Cf. R. BULTMANN 374.
149
C. H. DODD, Interpretation, 34.
147
Beutler D -98
Há também exemplos de preces em textos apocalípticos. Carsten Claussen150
aponta para as orações de Esdras (IV Esdras 8,20-36) e de Baruc (ApcBar [syr] 48,224). Essas orações encontram-se em pontos de guinada na vida dos orantes e antecipam
o que está à sua frente. É possível tirar daí algumas conclusões para a oração de Jo 17:
não apenas encerra os discursos de despedida, mas faz também a transição para a paixão
de Jesus151.
Mais próximo de João, porém, temos o Evangelho de Marcos. O segundo
evangelista encerra a cena da última ceia com as palavras “Depois do hino saíram para o
monte das Oliveiras” (kai. u``mnh,santej evxh/lqon eivvj to. o;roj tw/n evlaiw/n, Mk 14,26). J.
Jeremias vê neste versículo uma referência ao “Grande Halel” no fim da celebração da
Páscoa judaica152. É possível que João tenha individualizado, aqui, esta oração final da
última ceia, também porque ele não considera a última ceia como ceia pascal.
Mas em Jo 17 encontramos também elementos da oração de Jesus no jardim das
oliveiras153. Assim a exclamação orante dirigida ao Pai no início de Jo 17, páter (Jo
17,1 e outros; Mc 14,36: abbá ho patḗr), e também a menção à “hora” que veio (Jo
17,1, elḗlythen) ou “deve passar” (parélthēi, Mc 14,35), mas mesmo assim “veio”
(ḗlthen, Mc 14,41).
João não relata a oração de Jesus no jardim de Getsêmani, mas antecipa em certo
sentido essa cena em Jo 12,27s., como se observou há muito154. Em Jo 17 os elementos
da oração de Jesus são conservados, mas encontram-se num novo contexto, na boca de
Jesus, que aqui aparece bem mais seguro e pensando apenas no bem dos seus.
Já foi mostrado que a ligação entre os temas da “glorificação” de Jesus e de sua
“hora”, enquanto hora de sua morte e enaltecimento, foi influenciada pela teologia do
Servo do Senhor segundo Is 52,13–53,12. Mostramos essa conexão ao comentar Jo
13,31s. Ao retomar, do início dos discursos de despedida, esses temas que são
fundamentais para sua teologia, o evangelista ou redator final sublinha a importância
deles para a coerência do texto final.
A designação da oração de Jesus como “oração sacerdotal” se baseia nos vv. 1719, onde se fala da “santificação” dos fiéis pelo Pai e da “santificação” de Jesus para
eles. Essa designação pode ser encontrada já na obra de D. Chytraeus (1530-1600), mas
pode ter raízes mais antigas. Nossa explicação mostrará que a “santificação” de Jesus
para os seus deve ser entendida como a entrega de si mesmo como Revelador155.
II
Jesus orando a respeito de si mesmo (17,1-5)
17,1-5
150
C. CLAUSSEN, Das Gebet.
Para outros textos comparáveis da literatura intertestamentária (veja C. DIETZFELBINGER, Abschied,
256-258, em K. SCHOLTISSEK, Gebet, 199, nota 2): Jub 22,7-9.27-30; VitAd 50; Ps-Philo, AntBib 19,8-9.
152
Cf. J. JEREMIAS, Abendmahlsworte, 34; D. LÜHRMANN, Das Markusevangelium, 242, mostra
reticência a respeito.
153
Cf. J. BEUTLER, Synoptic Jesus Tradition, 173; agora em: DERS., Neue Studien, 97.
154
Assim já R. E. BROWN, Incidents [Mal 862]; J. BEUTLER, Psalm 42/43.
155
Cf. J. BEUTLER, Hohepriesterliches Gebet. Segundo H. W. ATTRIDGE, How Priestly, Jo 17 responde
provavelmente a discussões do fim do séc. I d.C. a respeito da compreensão certa do serviço sacerdotal.
151
Beutler D -99
Os primeiros cinco versículos da oração constituem uma unidade fechada em si
mesma. Ela é arrematada pela analepse da invocação “Pai” e do tema da “glorificação”
do Filho, do v. 1, retomados no v. 5. Estes cinco versículos introdutórios exibem até
uma estrutura concêntrica156. Assim como se correspondem os vv. 1 e 5, assim também
os vv. 2 e 4 com seu retrospecto primeiro para a obra do Pai no v. 2, e depois, a do
Filho, no v. 4. Em ambos os casos se trata daquilo que o Pai “deu” ao Filho: autoridade
sobre toda a carne para dar-lhe vida eterna (v. 2), ou então, a “obra” que o Pai deu a
Jesus para que a levasse a termo (v. 4). No meio está o v. 3, que expressa em que
consiste a vida eterna que Jesus deve dar da parte do Pai. Consiste em dar a conhecer o
Deus único e seu Filho Jesus Cristo; isso vale como enunciado central, já em vista do v.
6, no início da secção seguinte157.
A glorificação mútua do Pai e do Filho até agora só foi objeto de enunciados da
parte de Jesus, como vimos em Jo 13,31s. Agora se torna objeto de oração. No lugar de
“Deus” e “Filho do Homem” vêm agora os termos “Pai” e “(seu) Filho”. Só o tema da
“glorificação” ainda alude ao Servo de Deus de Is 52,13 LXX, mas de todo maneira
ainda pode ser ouvido. Assim como o Servo de Deus levou a termo sua missão, assim
agora o Filho. Por isso, ele pode esperar a glorificação prometida e rezar por ela (cf., ao
lado de Is 52,13 LXX, também Jo 12,28: “Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente”).
Assim como em Jo 13,31s., deve-se distinguir aqui entre a chegada da hora de
Jesus e o momento de sua morte. Em Jo 17 (como em Jo 13) Jesus vê que “veio a hora”,
mas sabe que sua morte ainda espera. Sua “hora” é o momento de sua plena revelação
de Deus, nele, o filho enviado pelo Pai; momento também do dom da “vida eterna”. O
v. 2 fala disso. A fala de Jesus a respeito da autoridade (exousía) lembra a sua aparição
antes do envio dos apóstolos pelo mundo afora em Mt 28,18 e pode ser uma alusão a
este tópico. Mas a formulação aqui é joanina. Jesus veio para que os homens tenham a
vida e a tenham em abundância (Jo 10,10): vida eterna (cf. Jo 6,40). Quando aqui se
nomeia a “carne” como destinatário do dom salvífico de Jesus, quer-se dizer o ser
humano em sua criaturalidade, que Jesus assumiu para a salvação do ser humano e que
necessita de salvação (cf. Jo 6,63). O termo neutro “tudo” significa exatamente essa
humanidade carente de salvação como um todo.
Segundo o v. 3, a “vida eterna” consiste no reconhecimento do único Deus
verdadeiro e do Filho Jesus Cristo que ele enviou. No decorrer do Evangelho segundo
João, até agora a promessa de “vida eterna” está ligada, via de regra, à fé. Segundo Jo
5,24, esta fé é a fé na palavra de Jesus, que é suposta em outros lugares (cf. Jo 3,15,36;
6,40.47; 20,31). A “vida” com base em conhecimento pode lembrar textos semelhantes
na gnose ou no helenismo, mas em todo o caso o conhecimento do “único Deus
verdadeiro” remete para o centro da Escritura de Israel, o Shema‘ Israel de Dt 6,4. Este
texto já ecoou diversas vezes no Quarto Evangelho (cf. Jo 5,44; 8,41s.). A fé neste
único Deus verdadeiro não exclui, portanto, a confissão de seu Filho Jesus Cristo, antes
a inclui, o que evidentemente pressupõe a perspectiva cristã.
156
Assim já Y. SIMOENS (La gloire, 188), o qual, porém, opera nos vv. 1-2 e 4-5 uma tripla subdivisão.
Sua estrutura global do capítulo, concêntrica, não observa a construção linear, que mostra primeiro a
oração de Jesus para si mesmo, depois para os discípulos e no fim paras os que crerem pela palavra dos
discípulos.
157
Neste ponto malogra a proposta de J. BECKER II, 615s., com R. BULTMANN, 378, e R.
SCHNACKENBURG III, 195s., de excluir o versículo como secundário. É verdade que o nome “Jesus
Cristo” ocorre apenas ainda em Jo 1,17, mas também esta é uma passagem que se deve atribuir à camada
ulterior do evangelho de João.
Beutler D -100
Também o tema do conhecimento de Deus tem suas raízes na tradição da fé de
Israel. A promessa de uma nova Aliança em Jr 31,31-34 termina assim: “Já não ensinará
cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhecei ao SENHOR;
porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles–oráculo do SENHOR”
(Jr 31,34). Já as promessas do primeiro discurso de despedida, sobretudo o anúncio de
uma futura morada de Deus junto a seu povo mostraram influência das promessas da
nova aliança, especialmente Ez 36,26. Parece justificar-se a opinião de que em Jo 17
está presente a mesma tradição.
Os vv. 4-5 retomam na ordem inversa o tema da mútua glorificação de Pai e Filho
do v. 1. Na frente está a recordação de que Jesus na sua obra terrestre glorificou o Pai.
No v. 1 a glorificação do Pai pelo Filho foi vista como evento futuro. No v. 4, Jesus a vê
retrospectivamente. Ele terminou a “obra” que o Pai lhe deu a consumar. A
terminologia de uma “obra” (érgon) de Jesus no singular é rara no Evangelho segundo
João, só ocorre ainda em 4,34. O Crucificado morrerá com as palavras: “Está
consumado” (tetélesthai, Jo 19,30). Ele consumou sua obra. Em sua oração, Jesus
antecipa este momento.
A glorificação de Jesus pelo Pai corresponde à do Filho pelo Pai. Em
correspondência literal com o v. 1, Jesus roga por esta glorificação no v. 5. Volta
igualmente a invocação páter. A diferença é que aqui se descreve mais exatamente a
glorificação de Jesus. Jesus deve receber de volta a glória que possuía, junto ao Pai,
antes da fundação do mundo. É a primeira vez que este pensamento aparece no
Evangelho segundo João. Segundo outro lugar, Jesus deve ser glorificado no futuro,
sem que se pense em volta a uma glória junto ao Pai antes de todo tempo (cf. Jo 11,41.
13,31s.). Mas basta pensar que aqui aparece um texto anterior é “relida” por um
posterior, independentemente da questão do autor. A reflexão teológica enxerga na
glória de Jesus, no fim de seu caminho, não a entrada numa realidade nova, mas a volta
à existência que lhe cabe desde a eternidade158. Aqui parece supor-se o Prólogo, que
pode ter sido anteposto ao Evangelho segundo João por ocasião de sua primeira
conclusão159. Ao “estar junto de Deus” (pròs tòn theón) em Jo 1,1.2, corresponde o
“junto de ti” (parà soí), junto do Pai, em Jo 17,5.
Jesus orando por seus discípulos (17,6-19)
Na oração a respeito de si mesmo Jesus reza pela consumação de seu caminho, em
sua iminente glorificação junto ao Pai. No que segue, Jesus dirige o olhar para as
pessoas que, no mundo, escutaram sua palavra e que agora ele deixa. Poderiam ser
chamados de seus discípulos, mas este termo não aparece aqui. O texto destaca aqueles
que receberam sua palavra diretamente daqueles que recebem o anúncio apenas
indiretamente e dos quais se tratará nos vv. 20-22.
O texto se subdivide, à primeira vista, num retrospecto histórico, nos vv. 6-8,
seguido de um discurso de Jesus no presente, nos vv. 9-19. Antes do primeiro
imperativo, no v. 11d, lemos, nos vv. 9-11c, uma caracterização dos discípulos pelos
quais Jesus se dispõe a orar. Um primeiro imperativo “guarda-os” conduz, depois da
invocação orante “Pai santo” no v. 11d, à prece de Jesus pelos seus propriamente. Este
158
Segundo J. BECKER II 622, a visão joanino aqui se diferencia da (pré-)paulina em Fl 2, 9s.: “Segundo
Fl 2, 9s., o Enaltecido recebe uma posição que ultrapassa o status preexistente antes do esvaziamento”.
159
Para correspondências entre o Prólogo e Jo 17, veja J. E. OʼGRADY, Prologue; ele julga que os dois
textos viram a luz simultaneamente. De modo semelhante, em continuidade com esta abordagem, D. LEE,
Prologue.
Beutler D -101
tema do “guardar” continua até o v. 15, sendo que também o v. 16 pertence a este
contexto, visto que se parece com o v. 11a-c, no fim dos versículos introdutórios 9-11c.
O segundo imperativo, “guarda-os na verdade”, no v. 17, introduz os versículos
conclusivos. Este segundo tema, a santificação, já foi tocado na invocação orante “Pai
santo” do v. 11d e completa, com sua dupla menção no v. 19, tanto a secção inteira
como também os versículos conclusivos 17-19ab.
17,6-8
A retrospectiva histórica de Jesus sobre sua obra, antes de sua oração nos
versículos seguintes, lembra a narrativo, que, na retórica clássica, precede a proposição
de finalidade (propositio) e sua fundamentação160. O que aconteceu é narrado, em parte,
no aoristo e, em parte, no perfeito e no imperfeito. No início encontra-se a manifestação
do nome divino por Jesus, no aoristo (v. 6). Circunscreve sua obra reveladora na hora da
história. Até o v. 7, o texto lembra, no perfeito com efeito duradouro, a obra do Pai no
passado: o Pai, desde a eternidade, tem designado seres humanos à fé em Jesus e à
pertença dele, e eles têm guardado sua palavra e reconhecido que tudo o que Jesus
possui vem do Pai. Também isso é realidade permanente. Igualmente permanente é a
transmissão das palavras confiadas a Jesus pelo Pai aos ouvintes da palavra, no v. 8a-c.
A isso corresponde, novamente no aoristo, na segunda metade do v. 8, a acolhida da
palavra pelos anteriormente designados e o seu conhecimento, na fé, de que Jesus foi
enviado pelo Pai. Esta acolhida, novamente, se realiza na hora da história161.
O significado da manifestação do “nome” do Pai, no v. 6, é elucidado a seguir.
Em todo o caso, não se trata simplesmente do ser de Deus, de Deus in se, mas de sua
relação com Jesus e com os humanos. Por isso são paralelizados, nestes versículos, por
um lado, a manifestação do nome de Deus e, por outro, a comunicação e a recepção da
palavra de Deus (vv. 6 e 8). Esta palavra se refere à missão de Jesus e à sua saída de
junto do Pai, como fica claro no v. 8. Sob o nome de Deus, esconde-se, portanto, o Pai
de Jesus.
17,9-11c
Antes do conteúdo da prece de Jesus, depois da alocução, no v. 11d, aparece uma
caracterização daqueles por quem Jesus ora. O “eu” (egṓ) inicial no v. 9 surpreende.
Provavelmente já prepara a oposição entre Jesus que se despede e os discípulos que
permanecem no mundo, no v. 11a-c. A função destes versículos é esclarecer, agora no
presente gramatical, por quem Jesus ora ao Pai. Aparece novamente uma contraposição:
a distinção entre os discípulos, pelos quais Jesus reza, e o mundo, pelo qual ele não
reza. Pelos discípulos ou pelos que creem nele, Jesus reza porque lhe pertencem e lhe
são dados pelo Pai, assim como tudo o que ele tem lhe foi confiado pelo Pai, já que ele
possui tudo em comum com o Pai. Ocorrem no texto dois conceitos de “mundo”: a
totalidade da criação de Deus (v. 5: “antes que o mundo existisse”), mas também o
“mundo” como codinome dos poderes opostos a Deus, que se opõem também a Jesus.
Neste sentido, Jesus não pode orar pelo “mundo”. Aparece aqui um abismo profundo, já
160
Quanto ao gênero literário, fala-se aqui de um “relato de prestação de conta”, que precede a
“introdução à prece” (vv. 9-11a), a “prece” (v. 11b) e a “legitimação da prece” (vv. 12a-13): J. BECKER II
618.
161
J. ZUMSTEIN, Die verklärte Vergangenheit, aponta com razão as funções diferenciadas dos tempos
verbais em Jo 17: o aoristo sublinha a historicidade da missão de Jesus, o perfeito, o efeito permanente
para os fiéis do agir de Deus em Jesus; o verbo predominante aqui é “dar”. O futuro abre a dimensão
escatológica.
Beutler D -102
que nem mesmo a oração de Jesus pode apagar a decisão contra ele e contra a palavra
de Deus. Este aparente determinismo de incredulidade e perdição só pode ser superada
pela referência à tendência dominante do Evangelho joanino para lograr o assentimento
da fé, visível até no final, em Jo 20,30s. Pode ser que no cap. 17 se revele mais a
tendência dualista, necessitando de correção nesse sentido.
Quando, no começo do v. 11, lemos que Jesus não está mais neste mundo, mas os
discípulos sim, a linguagem dualista desaparece. A alternância dos diversos sentidos de
“mundo” faz parte das dificuldades linguísticas na exegese do Quarto Evangelho e,
também, da oração de Jesus em Jo 17. Aqui se trata simplesmente da existência
terrestre, que Jesus abandona quando ele vai ao Pai.
17,11d-16
Com a alocução “Pai santo”, em 11d, o texto conduz à oração de Jesus pelos seus
no mundo. “Santo” significa, na linguagem bíblica, o que pertence a Deus; não é um
atributo moral, mas do ser162. Deus não pertence ao mundo; contrapõe-se a ele em
soberania. Deus Pai deve guardar os que pertencem a Jesus em seu nome, isto é, incluílos permanentemente em sua pertença e fazer com que sejam unidos entre si. Com a
segunda metade da prece, o texto antecipa a secção em que Jesus reza pelos crentes dos
tempos vindouros (cf. infra, vv. 20-23). Provavelmente temos aqui um reflexo de uma
situação em que a reta compreensão da mensagem de Jesus causará ruptura entre
diversos grupos de discípulos ou membros da comunidade. Não estamos longe das
cartas de João.
O termo recorrente “guardar” (tēreîn) já apareceu diversas vezes nos discursos de
despedida. Aí significava, no quadro da teologia da Aliança, sobretudo o guardar os
mandamentos de Jesus no amor a Jesus (cf. Jo 14,15.21.23s.; 15,10) ou à sua palavra (Jo
8.52.55; 15,20; 17,6). Desde agora o Pai deverá guardar os discípulos (Jo 17,11.15),
assim como Jesus o fez durante sua existência terrestre (Jo 17,12). Guardar os
discípulos de Jesus ou os fiéis em nome do Pai significa a mesma coisa que guardá-los
na pertença ao Pai. Dessa ligação a Deus faz parte também a união dos fiéis entre si.
Esse pensamento será desdobrado na secção seguinte.
Os vv. 12-13 são marcados por um contraste temporal, como será o caso também
nos vv. 14-15. Jesus, segundo o v. 12, guardou os que nele creram no nome do Pai que
lhe foi confiado, isto é, na pertença ao Pai, e assim os protegeu eficazmente, menos no
caso do “filho da perdição”, ao qual se devia cumprir a Escritura. Novamente é
lembrado Judas, como já aconteceu em Jo 6,70s.; 13,10s.18s.163. Em 2Ts 2,2, o “filho da
perdição” é o adversário escatológico (o “Anticristo”); aí, a perdição provém dele,
enquanto em João ele é atingido pela perdição. Não se diz qual texto da Escritura se
cumpre nele. A forma linguística faz pensar em Pr 24,22 LXX ou Is 57,4 LXX (tékna
apōleías). O primeiro texto é impertinente como paralelo, pois fala de “filho” (hyiós)
que observa a palavra e por isso evita a perdição (apōleías ektós estin). Mais próximo é
o texto de Isaías, que descreve os que não observam a Lei como “filhos da perdição”. O
162
Cf. H. BALZ, Art. a[gioj ktl), 42s.
Segundo J. BECKER II 616, um redator teria inserido aqui, posteriormente, a referência a Judas; cf. já
R. SCHNACKENBURG III 207, que, porém, não quer ser definitivo. W. M. WRIGHT IV, Greco-Roman
Character Typing, vê na caracterização corrente de Judas como traidor a influência da caracterização
esquemática de pessoas com base em seus comportamentos específicos, de acordo com a retórica grecoromana..
163
Beutler D -103
termo é um semitismo, que tem modelos judaicos164; a referência exata do texto
permanece uma incógnita.
Ao retrospecto do v. 12 liga-se, no v. 13, um olhar sobre o tempo presente. Como
no v. 11, também aqui Jesus fala da volta ao Pai: “eu vou a ti” (pròs sè érkhomai).
Novamente o olhar se fixa nos discípulos, desta vez não por solicitude, mas na
consciência de que a ida de Jesus ao Pai é causa de plena alegria também para os
discípulos. Ressoa aqui, novamente, o tema da alegria escatológica dos discípulos, que
se encontra repetidamente desde o cap. 14 (cf. Jo 14,28, no verbo; 15,11; 16,20-22.24,
peplērōménē); cf. igualmente 1Jo 1,4. Trata-se da alegria de Jesus, a ser participada
pelos discípulos.
Os vv. 14-15 mostram novamente um deslocamento no tempo, agora entre o
passado e o futuro. Com o acentuado “eu” (egṓ) inicial, Jesus opõe sua atitude à do
mundo. De modo permanente (perfeito gramatical), Jesus comunicou aos discípulos a
sua palavra, mas (kaí adversativo) o mundo os odiou. Essa experiência histórica é
novamente expressa no aoristo. Também esse ódio do mundo já foi mencionado nos
discursos de despedida (Jo 15,18-25), com um precedente nas grandes controvérsias de
Jesus em Jerusalém (Jo 7,7). A razão do ódio do mundo em relação aos discípulos está
na origem deles; assim como Jesus, eles não são deste mundo (aqui no sentido de
domínio oposto a Deus)165. Também este modo de pensar é conhecido pelos leitores do
Quarto Evangelho (cf. Jo 8,23).
Depois do olhar retrospectivo sobre a experiência dos discípulos segue-se, no v.
15, a prece de Jesus ao Pai por eles, voltada para o futuro. Não devem ser tirados deste
mundo, mas protegidos contra o Maligno. Assim repete-se, negativamente, a prece do v.
11, onde Jesus rezou para que os discípulos fossem guardados no nome do Pai. Ser
guardado do Maligno refere-se, de fato – como no Pai-Nosso, Mt 16,13 – ao Maligno
como pessoa e não ao mal em geral166. O v. 16 repete quase verbalmente o v. 14cd e é
omitido em alguns manuscritos, mas ele tem aqui sua função como transição para os vv.
17-19. Como Jesus, os discípulos não são do mundo, mas são enviados para dentro do
mundo.
17,17-19
No v. 17, uma segunda prece no imperativo reata com a prece em modo
imperativo do v. 11 (“Pai santo, guarda-os em teu nome”): “santifica-os na verdade”. O
motivo da santidade já se encontrava ancorado na alocução da oração no v. 11. Visto
que, no v. 17, tal alocução falta, tem-se a impressão de que ambas as preces se
completam e se interpretam mutuamente. Como núcleo do guardar os discípulos em
nome do Pai apareceu o ser guardado em Deus, como Pai de Jesus Cristo. Os discípulos
conhecem o Pai pela revelação de Jesus em palavras e ação. A partir daí torna-se se
compreensível a segunda prece, que pede a santificação dos discípulos na verdade.
Assim, não se trata, no v. 17, da consagração cultual, mas da santificação pela palavra
divina, proclamada por Jesus (cf. Jo 15,3) – a palavra da verdade, e mais, a verdade em
pessoa. Este pensamento remonta a Jo 14,6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.
164
Cf. a referência a 1 QS 9,16f.; CD 6,15; Jub 10,3; Mt 23,15 em J. BECKER, loco citato.
Aqui se conecta o discurso do papa Bento XVI no Konzerthaus de Freiburg, dia 25.9.2011, com seu
apelo à “desmundanização” da Igreja, causando discussão. Cf., e.o., TH. SÖDING, In der Welt.
166
Até que ponto a oração de Jesus em Jo 17 se guia pelo Pai-Nosso é até hoje uma questão aberta.
Percebe-se crescente resposta positiva. Acerca disso, compare H. THYEN 678-681 com W. THÜSING, Die
Bitten; W. SCHENK, Die Um-Kodierung.
165
Beutler D -104
“Santificação” significa ser posto à parte do mundo e entregue a Deus. Mas com isso os
discípulos podem também ser enviados ao mundo, como afirma o v. 18. Base da
santificação dos discípulos é a santificação de Jesus por causa deles, segundo o v. 19.
Esta santificação se dá pela comunicação de sua palavra, que é verdade. Assim fecha-se,
a partir do v. 17, esta breve subdivisão167.
Jesus orando pelos crentes futuros (17,20-23)
Na secção seguinte, a oração de Jesus se abre àqueles que chegarem à fé nele pela
palavra dos discípulos. Percebem-se duas construções sintáticas maiores, cada qual com
seu próprio vocabulário: vv. 20s. e vv. 22s. A primeira é dominada pelos seguintes
temas: a fé dos futuros receptores do anúncio e sua unidade entre si, com Deus e com
Cristo. A segunda construção retoma o tema da glorificação, o articula com o tema da
unidade e conduz ao tema do amor, que aparece novo aqui e já prepara os versículos
conclusivos. Enquanto, na secção 17,6-19, o retrospecto sobre o passado nos vv. 6-8
precedia a prece de Jesus, nos vv. 20-23 a ordem é inversa: a prece de Jesus está na
frente (vv. 20s.), seguida do retrospecto no v. 22, ao qual no v. 23 se liga a perspectiva
do futuro168.
17,20-21
Para começar, Jesus esclarece por quem ele reza a seguir: não por “estes”, isto é,
os discípulos lembrados na secção anterior, mas por todos os que futuramente
abraçarem a fé. Já se falou da fé no v. 8, sem que se tornasse o tema dominante. Nos vv.
20s., a fé aparece como conceito-chave, mantendo unido o conjunto de versículos por
sua presença no início e no fim. Inclui assim o tema da unidade dos futuros crentes entre
si, no Pai e no Filho. A fé daqueles que conhecerão Jesus não por seu próprio contato,
mas pela palavra da proclamação, já encontrou lugar na narrativa da fé, como aparece
em Jo 20,24-29, onde se trata da fé baseada na palavra da proclamação. Aqui, em Jo
17,20-23, ocupa o primeiro plano a unidade dos que acreditam em Cristo. Esta unidade
aparentemente está ameaçada. Já o mandamento do amor fraterno dos discípulos em Jo
13,34s. e 15,7-9 pode estar em função dessa intenção. Aqui, em Jo 17, a unidade é
enunciada de modo imediato. Ela é fundamentada na unidade de Jesus com o Pai e na
unidade dos que acreditam em Jesus. Segundo K. Scholtissek169 trata-se aqui de uma
“releitura” de Jo 10, onde a unidade de Jesus e do Pai está no primeiro plano, mas ainda
não formulada como fundamento da unidade dos crentes entre si. Segundo Jo 17, a
unidade dos crentes é ancorada na imanência deles em Jesus, o qual permanece no Pai
como o Pai permanece nele. Já encontramos anteriormente no Evangelho segundo João
este uso linguístico da imanência (cf. Jo 6,56; 10,38; 14,20). Parece remontar antes a
modelos helenistas do que bíblicos170.
No v. 21, em vez de “assim sejam eles em nós”, muitos manuscritos (o texto
majoritário) leem: “assim sejam eles um em nós”. Mas a tradição egípcia antiga tem a
167
A dimensão sacerdotal-cultual é expressa com mais força pelo papa Bento XVI no segundo volume de
seu “Jesus von Nazareth” (93-119). Crítica: M. THEOBALD, Das “hohepriesterliche“ Gebet Jesu. Cf.
outros autores neste debate: K. SCHOLTISSEK, Gebet, 211-216.
168
Os vv. 20s. são novamente eliminados por J. BECKER II 617f. como secundários, mais uma vez com R.
SCHNACKENBURG III 214-218, que remete à crítica literária antiga (215, nota 68). Tais intervenções no
texto baseadas em inconsequências menores de ordem temática ou linguística quase não são mais
defendidas hoje em dia.
169
K. SCHOLTISSEK, Gebet, 206-208.
170
Cf. novamente K. SCHOLTISSEK, In ihm sein.
Beutler D -105
versão mais curta171; a mais longa deve ser considerada uma ditografia sob influência do
contexto.
A unidade dos fiéis não serve apenas para a conservação da comunidade da fé,
mas tem também um efeito missionário. Pode e deve conduzir à fé em Jesus mesmo e
em sua missão da parte do Pai. Pensamento semelhante já apareceu em Jo 13,35: “Nisso
todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amais uns aos outros”. O
pensamento volta em Jo 17,23 e é significativo para responder à pergunta se o
mandamento joanino do amor só interessa ao círculo dos crentes ou se abre também ao
mundo, que deve receber a mensagem de Jesus e acolhê-la na fé172.
17,22-23
À prece de Jesus segue-se a recordação, que fundeia a exigência imediatamente no
dom. Retomam-se, em forma modificada, palavras-chaves da primeira parte do discurso
(17,1-5). A glória/honra que Jesus atribui ao Pai e dele recebe agora é atribuída aos
fiéis. O v. 10 já preparou este pensamento. Aí a glória tinha por base o fato de que Pai e
Filho têm tudo em comum e deixam seu brilho transbordar sobre os discípulos; agora
ela consiste no brilho da unidade que vem do Pai e através de Jesus se comunica ao
círculo dos que creem. Nesta unidade, os discípulos serão consumados, aperfeiçoados,
diz o v.23, usando outra palavra-chave (usada pela última vez na “alegria perfeita” do v.
13). Pela unidade dos fiéis, o mundo chegará à fé na missão de Jesus, como é dito numa
leve adaptação do v. 21; no lugar do “crer” está o “conhecer”, sublinhando a
visibilidade do sinal da unidade.
Como pode a unidade dos que creem em Jesus tornar-se sinal da missão de Jesus
pelo pai? O fim do v. 23 fornece uma indicação. Na unidade dos discípulos exprime-se
o amor, que une o Pai e o Filho, e que engloba e inclui os que creem em Jesus. Assim
insere-se agora a palavra-chave [“amor”]* que se torna o som dominante da oração de
Jesus nos três versículos finais.
17,24-26
Já a renovada alocução orante, “pai” (páter) destaca os versículos finais do
contexto anterior. Fica claro que Jesus agora reza ao mesmo tempo pelos dois grupos
anteriormente mencionados. Faz isso mediante um modo de expressão que é
tipicamente joanino, o uso do neutro: “aquilo que me deste” no sentido de “todos os que
me deste” (cf. Jo 6,37; 17,2). Eles estarão lá onde está Jesus e contemplarão sua glória.
Nesta secção destacam-se dois temas; a ideia da futura “glória” de Jesus, que será
aquela que ele tinha antes da fundação do cosmo, e a retomada do tema do “amor”.
Acresce o tema do “conhecer” que, como o da “glória”, liga esta secção final aos
versículos iniciais 1-5.
Já no v. 24 os temas da “glória” e do “amor” encontram-se interligados: os que
creem verão a glória de Jesus, que o Pai em seu amor lhe deu já antes da fundação do
cosmo.
No v. 25 acresce o tema do “(re)conhecer”. A alocução orante volta ampliada:
“Pai justo” (páter díkaie). Segue-se um novo retrospecto. O “mundo”, mencionado no
v. 24 como totalidade da criação, é mencionado novamente, mas agora significando o
domínio que não se abriu à mensagem de Deus e não reconheceu Deus. A
171
172
Assim P 66vid B C* D W it sa ly pbo boms.
Cf. J. BEUTLER, Kirche als Sekte?
Beutler D -106
caracterização do Pai como “justo” evoca o Deus que exerce a justiça. A única outra
menção à “justiça” se encontrou em Jo 16,8.10, também em conexão com a recusa de
crer em Jesus e, ali, explicitamente relacionado com o juízo. O “mundo” que não
reconheceu o Pai como Pai de Jesus é contraposto aos que reconheceram Jesus em seu
envio da parte do Pai.
Conhecer o Pai e conhecer Jesus significa também reconhecer o “nome” do Pai, já
que ele é o Pai de Jesus. É o que pressupõe o v. 26. Quem conduz a esse conhecimento
é Jesus. Ele manifestou o nome do Pai em sua vida e obra até aqui e o fará novamente:
em sua “hora”. Vemos aqui uma alusão ao início do capítulo: “Pai, chegou a hora” (v.
1). Com o tema do “amor”, o autor remonta ainda mais longe, até o início dos discursos
de despedida, em Jo 13,1. Se ali se mencionava o amor de Jesus aos seus, agora se fala
do amor do Pai por Jesus. Este amor encontrará espaço nos crentes futuros, e Jesus
mesmo fará morada neles. Assim é arrematado também o tema da imanência. O que em
Jo 14,20-23 foi mencionado como promessa, agora é prometido novamente no quadro
da oração que aqui se encerra: a oração de despedida de Jesus.
III
Jo 17 é um texto tardio. Como num prisma, reúnem-se nele os grandes temas dos
discursos de despedida de João e, até, do evangelho joanino inteiro: a revelação do amor
de Deus em Jesus Cristo, o reluzir da glória de Deus nele, a comunicação dessa glória
aos discípulos, a imanência deles em Jesus e, em última instância, em Deus, pela fé em
Jesus; mas, também, as estações do caminho de Jesus rumo à sua “hora”, por um lado já
iniciada, por outro, ainda a ser realizada. Como na frase final de uma sinfonia, ressoam
aqui, uma vez ainda, todos esses grandes temas.
Ao mesmo tempo, Jo 17 é um texto dos primórdios. Embora a unidade dos que
creem em Jesus se encontre ameaçada, é claro o que garantirá essa unidade e o que não
a garantirá. Os discípulos são, e continuam, unidos pela palavra de Jesus, que eles
acolheram na fé, e por seu amor, que ele lhes faz chegar da parte do Pai. Segundo Jo 17,
a unidade dos cristãos não é assegurada por instituições, múnus ou tradição vinculante
fora da palavra transmitida. Em Jo 21, Pedro aparece como aquele que é incumbido do
cuidado pelo rebanho de Jesus, enquanto o Discípulo Amado é introduzido como o
portador da tradição. No cuidado pela unidade, a visão da Reforma se dirigirá mais a Jo
17, a católica, mas a Jo 21. Aqui há espaço para a exploração da dialética que
caracteriza o Quarto Evangelho em sua configuração final173.
173
Compare a este respeito a coletânea publicada por W. BIENER: Einheit als Gabe und Verpflichtung. Cf.
também B. T. VIVIANO, Unity, que estabelece uma conexão com Mt 16,17-19 e 18,18-20 herstellt.
Recentemente, o segundo volume do livro sobre Jesus do papa Bento XVI “Jesus von Nazareth”
provocou debates sobre o conceito da unidade que o papa Bento representa. Cf. D. SATTLER, “… dass sie
alle eins seien”; K. KOCH, Christliche Ökumene; M. THEOBALD, Das “hohepriesterliche” Gebet.
Beutler D -107
A “HORA” DE JESUS: PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO (18,1–
20,31)
No início da secção Jo 18–20, surge a pergunta por que o evangelista João encerra
seu evangelho com um relato da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Entre os
comentadores, principalmente R. Bultmann faz esta pergunta1.
Desde o princípio, o Evangelho segundo João é caracterizado pelo acento dado à
encarnação do Logos divino em Jesus de Nazaré, que assumiu a carne para a salvação
da humanidade. Na escola de Bultmann discute-se a questão se essa encarnação se
tornou plenamente real ou apenas produziu uma aparência, como pretende E.
Käsemann2. Em todo o caso, a vinda de Jesus na carne representa a realidade salvífica
fundante, e por isso pode-se perguntar para que então ainda servem sua paixão, morte e
ressurreição. Segundo Bultmann, foi preciso mostrar até o fim o caminho da Palavra de
Deus feita carne. Os conflitos com os judeus são marcadas pela luta das trevas contra a
luz. A paixão de Jesus é “o êxito vitorioso desta luta”3. Jesus anunciou sua paixão, não
como necessidade de ser morto, mas como o seu vindouro “enaltecimento” e
“glorificação” (hypsōthḗnai e doxasthḗnai)4. Nesta paixão, Jesus é quem age (cf. Jo
14,31: “eu faço”, poiṓ). A ressurreição de Jesus é “a demonstração de sua vitória sobre
o mundo, que já foi alcançada (16,33)”5. Os eventos pascais são “sēmeîa como também
o eram os milagres de Jesus”6. Agora hão de conduzir à fé.
“No fundo, depois do nu/n evdoxa,sqh o`` ui`o` j. tou/ avnqrw,pou [agora o Filho do Homem foi
glorificado], 13,31, Jesus já falou aos seus como o Enaltecido, o Glorificado. Sua obra na
terra estava, portanto, terminada. Contudo, só na cruz, em 19,30, é que ele pronuncia o
tetélestai tete,lestai [está consumado]. Pois a w[ra [hora] de seu doxasqh/nai [ser
glorificado] (12,23; 17,1), seu metabh/nai evk tou/ ko,smou [passar deste mundo] (13,1)
inclui a história da paixão como um todo, e no nu/n [agora] de 13,31 antecipa-se tudo o
que há de acontecer em seguido”7.
Na parte de seu comentário que é dedicada à paixão, morte e ressurreição de
Jesus, Barnabas Lindars retoma a visão teológica de R. Bultmann8. Segundo Lindars, o
Quarto Evangelho se movimenta em torno de dois polos: a encarnação e o
enaltecimento/glorificação de Jesus em sua “hora”. A visão literário-crítica de Bultmann
hoje está superada, mas sua tentativa de explicação do Quarto Evangelho para os
leitores de hoje continua significativa.
Os quatro evangelhos terminam na história da paixão e ressurreição. Pode-se, com
Martin Kähler, definir os evangelhos como “relatos da Paixão com ampla introdução”9.
Isso, porque, em sua forma fundamental, eles se baseiam nas antigas fórmulas de
1
Cf. R. BULTMANN 489s.
Cf. E. KÄSEMANN, Jesu letzter Wille.
3
R. BULTMANN 489.
4
Ibid.
5
R BULTMANN 490.
6
R. BULTMANN 491.
7
R. BULTMANN 489.
8
B. LINDARS 64.
9
Cf. M. KÄHLER, Der sogenannte historische Jesus, 60, nota 1 da p. 59.
2
Beutler D -108
confissão da fé, que tinham como conteúdo a paixão, morte e ressurreição de Jesus para
a salvação dos homens (cf. 1Cor 15,3-4; Rm 4,25).
Nos evangelhos sinópticos, o relato da paixão, morte e ressurreição de Jesus é
preparado de maneira dupla. Por um lado, Jesus, na segunda metade destes evangelhos,
anuncia por três vezes a proximidade de sua paixão, morte e ressurreição (Mc 8,31;
9,31; 10,33s. par.). Por outro lado, cedo se mostra a oposição contra Jesus por parte dos
fariseus, por causa de sua compreensão divergente da Lei. Depois do relato da cura do
aleijado no sábado, em Mc 3,6, lemos: “Ao saírem, os fariseus logo deliberaram com os
herodianos sobre como eliminar Jesus”.
Em João, este propósito aparece num contexto semelhante. A razão para matar
Jesus não é somente que ele lesou a Lei pela cura do aleijado em dia de sábado, mas,
sobretudo, que afirmou ser um com o Pai em sua obra e, em última análise, também em
seu ser: “Por isso, os judeus começaram a perseguir Jesus, porque fazia tais coisas em
dia de sábado. Jesus, porém, deu-lhes esta resposta: ‘Meu Pai trabalha sempre, e eu
trabalho também’. Por isso, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, pois, além de
violar o sábado, chamava a Deus de Pai, fazendo-se assim igual a Deus” (Jo 5,16-18).
Os anúncios de Jesus antes de sua paixão, morte e ressurreição vindouros,
relatados pelos sinópticos, não têm correspondente direto no Evangelho segundo João.
No lugar deles, encontra-se em João um vocabulário que lhe é próprio, quando Jesus diz
que ele deve ser “enaltecido” e “glorificado”. O primeiro termo encontra-se na primeira
metade do Quarto Evangelho em Jo 3,14; 8,28 e 13,32, o segundo, em 7,39; 12,23.28.
Os comentários percebem a significação destas expressões para a conexão interna das
duas partes do Evangelho segundo João10. Outra referência ao futuros sofrimento de
Jesus encontra-se no uso do “ir (embora)” (hypágein) em Jo 7,33; 8,21, retomado em
13,33.36.
Uma descrição extensa das conexões entre a primeira e a segunda metade do
Evangelho segundo João se encontra em J. Zumstein. Primeiro, num artigo11, e depois,
no segundo volume de seu comentário sobre Joaõ12, ele usa os métodos da análise
narrativa. Com a ajuda desses métodos, ele demonstra como João prepara o relato da
paixão, morte e ressurreição de Jesus desde os primeiros capítulos do evangelho. Isso se
dá de quatro modos.
Primeiro temos as conexões temáticas entre as duas partes do evangelho.
Pertencem a isso: a menção ao “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, já
encontrada no testemunho do Batista (Jo 1,29; cf. 1,36). Jesus será condenado, mais
tarde, na hora em que os cordeiros pascais são imolados. Já mencionamos o anúncio de
Jesus de que ele será “enaltecido” e “glorificado”. Além disso, temos a referência à sua
“hora” que ainda não chegou (Jo 2,4; 7,30; 8,20; cf. 7,6 kairós): será a hora de seu
enaltecimento na cruz e de sua consumação (Jo 12,23.27; 13,1).
Em segundo lugar temos os comentários implícitos ou explícitos. Uma remissiva
explícita encontra-se no fim do relato da purificação do Templo, quando Jesus anuncia
que em três dias ele erguerá o Templo destruído: “Ora, ele falava isso a respeito do
santuário que é seu corpo. Depois que Jesus fora reerguido dos mortos, os discípulos se
10
Cf. R. SCHNACKENBURG III 246 quanto ao “ser enaltecido”; outros autores para o “ser glorificado”: R.
BULTMANN 489; B. LINDARS 64; X. LÉON-DUFOUR 11s.; F. J. MOLONEY 481s.; U. SCHNELLE 286; K.
WENGST 195.
11
Cf. J. ZUMSTEIN, Johanneische Interpretation.
12
Cf. ID. II 191s.
Beutler D -109
recordaram de que ele tinha dito isso e creram na Escritura e na palavra que Jesus havia
falado” (Jo 2,21s.). Mais adiante anuncia-se o dom do Espírito para o momento da
glorificação de Jesus (Jo 7,39). A palavra de Caifás, dizendo que é melhor um só morrer
pelo povo do que perder-se o povo inteiro (Jo 11,50), imediatamente é relacionada com
a iminente morte salvífica de Jesus (v. 51). De modo análogo, o narrador refere o
anúncio de Jesus acerca de seu “enaltecimento” iminente ao modo de sua execução (Jo
12,33). Em outros lugares remete-se indiretamente ou por meio da “ironia joanina” à
paixão de Jesus (cf. Jo ,19-21; 6,51-53; 7,33-36; 8,21s.; 12,32-34; 14,4-6; 16,16-19).
Um terceiro modo de conexão das duas partes do evangelho é o modo usado na
secção de transição Jo 11–12. Esta, por um lado, encerra a secção dos sinais de Jesus
por meio do último grande sinal, a ressuscitação de Lázaro em Jo 11,1-46; por outro,
prepara a história da Paixão por meio da força simbólica da ressuscitação de Lázaro,
com a consequente decisão de matar Jesus (Jo 11,47-52) e com a unção de Jesus em
Betânia (Jo 12,1-8). Efeito semelhante tem a chegada dos gregos, em Jo 12,20-36.
Em quarto lugar, a representação da paixão, morte e ressurreição em Jo 13–20 está
em continuidade com a primeira metade do evangelho, no sentido de mostrar a
soberania de Jesus também na hora de sair do mundo. Isso se mostra desde o relato do
lava-pés em Jo 13,1. Repete-se este traço na cena da detenção, no processo romano
contra Jesus e, mesmo, no relato da crucificação, que descreve Jesus no meio dos dois
outros crucificados, com o título da cruz proclamando sua dignidade régia. O relato do
descimento da cruz e do sepultamento fala da salvação que eflui de seu coração, bem
como de sua dignidade, ilustrada pelo no sepultamento no túmulo novo de um amigo
abastado.
De onde provém a representação joanina da morte de Jesus como “enaltecimento”
e “glorificação”? Já apontamos que João parece assumir o início do quarto cântico do
Servo segundo Is 52,13 LXX: “Eis que meu servo compreenderá e será enaltecido e
glorificado sobejamente” (ivdou. sunh,sei o`` pai/j mou kai. u`ywqh,setai kai. doxasqh,setai
sfo,dra). Na explicação de Jo 12,20-36 mostramos quão fortemente Isaías e a
representação do Servo do Senhor influenciaram João. Essa conexão ficou muito tempo
escondida, porque o evangelista usou, no lugar do termo Servo do Senhor, o título Filho
do Homem, retomado dos sinópticos.
Como são construídos os capítulos 18–20 de João? A compreensão de uma secção
do evangelho depende essencialmente de seu contexto. Como era de se esperar, as
diversas propostas dos estudiosos são muito divergentes. A razão disso são os critérios
usados para a divisão do texto. Nosso comentário, a seguir, partirá essencialmente da
análise narrativa e distinguirá as cenas segundo a alternância dos indícios de tempo e
lugar, bem como dos personagens e da ação. Diversas secções podem também ser
distinguidas pelas estruturas concêntricas, que se podem observar especificamente em
Jo 18–20.
Uma divisão do relato da Paixão em João do ponto de vista narrativo já se
encontra em R. Bultmann. Ele distingue quatro partes: a detenção de Jesus (Jo 18,1-11),
Jesus diante do sumo sacerdote e a negação de Pedro (18,12-17); Jesus diante de Pilatos
(18,28–19,16a); crucificação e sepultamento (19,16b-42).
Já em R. Schnackenburg13 as quatro secções são reduzidas a três: a detenção e o
interrogatório judaico (Jo 18,1-27); o processo diante de Pilatos (18,28–19,16a); via
13
Cf. R. SCHNACKENBURG III 246-352. Na p. 248 está a subdivisão da primeira e terceira secções.
Beutler D -110
crucis, crucificação e sepultura (19,16b-42). Esta divisão segue também pontos de vista
dramáticos14. Os acontecimentos de João 18,1-27 decorrem de noite e têm dois palcos: o
jardim e o palácio do sumo sacerdote; os acontecimentos de 18,28–19,16a se dão na
manhã seguinte, também em dois palcos: dentro e fora do pretório. Os acontecimentos
de 19,16b-42 se situam na tarde, também em dois palcos: Gólgota e o “jardim”, lugar de
sepultamento de Jesus. Com os palcos, mudam também os personagens envolvidos.
Segundo A. Janssens de Varebeke15, seguido por outros autores16, as três partes do
relato joanino da Paixão se dividem cada qual em sete cenas, com peso especial na cena
central e algumas correspondências nas outras cenas em estrutura concêntrica. A
primeira parte pode, em concordância livre com Janssens de Varebeke (que subdivide
Jo 18,1-4 em 18,1 e 2,4), ser dividia como segue:
18,1-3 Chegada em Getsêmani
18,4-9 Jesus encontra o comando de detenção
18,10-11 Ação de Pedro e censura de Jesus
18,12-14 Jesus levado ao sumo sacerdote
18,15-18 Primeira negação de Pedro
18,19-24 Jesus interrogado pelo sumo sacerdote e conduzido a Caifás
18,25-27 Segunda e terceira negação de Pedro
No centro encontra-se a cena principal: Jesus em frente do sumo sacerdote de
Israel. Esta cena é enquadrada pelas cenas da incompreensão e da negação de Pedro. A
segunda e a penúltima cenas mostram Jesus em sua superioridade frente ao comando de
detenção e ao sumo sacerdote. A primeira e a última cena mostram Jesus como aquele
que é traído e negado.
A segunda parte, com o processo romano contra Jesus (Jo 18,28–19,16b), pode
igualmente ser subdividida em sete cenas, como já foi proposta por R. Schnackenburg17
(tendo um precursor em R. Bultmann18). As cenas se revezam por meio de uma
contínua alternância entre o adro e o interior do pretório. Pilatos sai até os “judeus”, que
exigem a morte de Jesus, e depois entra novamente para falar com ele, convencendo-se,
progressivamente, da inocência dele. No centro está a coroação de Jesus com espinhos,
Jo 19,1-319. Assim resulta a seguinte construção:
18,28-32 fora: Jesus conduzido a Pilatos, Pilatos e os “judeus”
18,33-37 dentro: Pilatos e Jesus (Jesus “rei dos judeus”)
18,38-40 fora: Pilatos e os “judeus”
19,1-3 dentro: flagelação de Jesus e coroação com espinhos
19,4-7 fora: Pilatos e os “judeus”
19,8-12 dentro: Pilatos e Jesus (com menção aos “judeus”)
14
Cf. para isso L. SCHENKE 334-339.
A. JANSSENS DE VAREBEKE, Structure.
16
Cf. DE LA POTTERIE, Passion; G. MLAKUZHYIL, Christocentric Literary Structure; L. SCHENKE (cf. nota
14) para as segunda e terceira secções principais.
17
R. SCHNACKENBURG III 275s.
18
R. BULTMANN 503-515 tem seis subsecções.
19
Cf. R. E. BROWN II 859.
15
Beutler D -111
19,13-16b fora: Pilatos, Jesus e os “judeus”; condenação de Jesus
A explicação detalhada ajudará a compreender as correspondências particulares.
Pode-se mencionar ainda a menção à Páscoa no início (18,28) e no fim (19,14), com
uma menção de importância estrutural menor no meio (18,39). Também nesta parte as
duas cenas mais significativas para a autorrevelação de Jesus se encontram na segunda e
na penúltima cena. A primeira e a última são de natureza cênica, sendo que a última
serve de transição para a terceira parte principal.
Também a respeito da terceira parte principal do relato joanino da paixão, Jo
19,16c-42, reina ampla unanimidade. Para A. Janssens de Varebeke é a morte de Jesus
na cruz que está no centro, Jo 19,28-30. Com este intuito, ele une 19,16c(17)-19 e 2022. Mas os comentários recentes veem aqui duas cenas, enquanto em 19,38-42 (duas
cenas para Varebeke) só uma20, o que produz o seguinte resultado:
19,16c-18 Via crucis e crucificação de Jesus
19,19-22 Pilatos e o título da cruz
19,23-24 A repartição das vestes de Jesus
19,25-27 Jesus confia sua mãe ao Discípulo Amado
19,28-30 A sede de Jesus, o vinagre, a morte de Jesus
19,31-37 Pilatos e a ordem de quebrar as pernas
19,38-42 O sepultamento de Jesus por José de Arimateia; a menção ao “jardim”
No centro se encontra a “outorga” de Jesus confiando sua mãe ao Discípulo
Amado. A importância do Discípulo Amado para os leitores ou a comunidade leitora de
João nos convida a atribuir a esta cena valor simbólico. Muitos exegetas veem nesta
cena também um gesto de Jesus pelo qual ele confia à sua mãe a comunidade
representada pelo Discípulo Amado.
Diferentemente dos capítulos 18–19, não há unanimidade sobre a divisão do cap.
20. Todos os comentadores veem em Jo 20 duas partes principais: os acontecimentos
junto ao sepulcro na manhã da Páscoa, Jo 20,1-18, e o encontro de Jesus com os
discípulos no seu lugar de reunião em 20,19-29; depois, segue o final literário do
evangelho nos vv. 30-31, antes do suplemento, o cap. 21. Mas na subdivisão das duas
partes principais de Jo 20, os caminhos se separam. R. Schnackenburg21 divide os vv. 118 em duas cenas, 1-10 e 11-18, enquanto R. E. Brown22 vê apenas uma cena.
Analogamente, R. Schnackenburg23 divide 10,19-29 em duas cenas, vv. 10-23 e 24-28;
R. E. Brown24, ao contrário, não subdivide esta secção. L. Schenke25 vê em Jo 20, antes
do final no v. 30, cinco cenas: vv. 1-10, 11-17, 18, 19-23 e 24-29. Recomenda-se,
contudo, distinguir as cenas de modo mais preciso segundo os indícios de tempo e
lugar, personagens e ação. Segundo estes critérios temos seis cenas antes dos versículos
finais 30s.:
20
Cf. L. SCHENKE 359.
R. SCHNACKENBURG III 355-380.
22
R. E. BROWN II 979-1017.
23
R. SCHNACKENBURG III 380-399.
24
R. E. BROWN II 1018-1051.
25
L. SCHENKE 369-371.
21
Beutler D -112
20,1-2 Maria Madalena junto ao sepulcro e informando Pedro e o Discípulo
Amado
20,3-10 Pedro e o Discípulo Amado junto ao sepulcro (remissiva à Escritura)
20,11-18 Maria Madalena junto ao sepulcro e reconhecimento de Jesus
20,19-23 Os discípulos reconhecem Jesus: paz, alegria, dom do Espírito
20,24-25 Tomé não chega a crer em Jesus
20,26-29 Tomé chega a crer em Jesus
20,30-31 Conclusão: pela fé alcançar a vida
No meio desta composição em sete partes está a cena do encontro de Jesus com os
discípulos na noite do dia da Páscoa, quando o Ressuscitado concede aos seus
discípulos os dons escatológicos: paz, alegria e Espírito Santo (cf. Rm 14,17 e Jo 14,2628; 16,4e-33). Até o v. 18, Jesus ainda está subindo para junto do Pai, mas a partir do v.
19 ele volta até os seus26.
1. A detenção de Jesus e o processo dos judeus (18,1-27)
18 1 Dito isso, Jesus saiu com seus discípulos para o outro lado da torrente do
Cedron. Lá havia um jardim, no qual ele entrou com os seus discípulos. 2 Também
Judas, o traidor, conhecia o lugar, porque Jesus muitas vezes ali se reunia com seus
discípulos. 3 Judas, pois, levou o batalhão e os guardas dos sumos sacerdotes e dos
fariseus, com lanternas, tochas e armas, e chegou ali. 4 Jesus, então, sabendo tudo o
que ia acontecer com ele, saiu e disse: “Quem procurais?” 5 Responderam: “Jesus de
Nazaré!”. Ele disse: “Sou eu”. Judas, o traidor, estava com eles. 6 Quando Jesus disse
“Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra. 7 De novo perguntou-lhes: “Quem
procurais?” Responderam: “Jesus de Nazaré”. 8 Jesus retomou: “Eu já vos disse que
sou eu. Se é a mim que procurais, deixai que estes aqui se retirem”. 9 Assim se cumpria
a palavra que ele tinha dito: “Não perdi nenhum daqueles que me deste”. 10 Simão
Pedro, que tinha uma espada, puxou-a e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe
o lóbulo da orelha direita. O nome do servo era Malco. 11 Jesus disse a Pedro: “Põe a
espada na bainha. Será que não vou beber o cálice que o Pai me deu?”
12
O batalhão, o comandante e os guardas dos judeus tomaram Jesus consigo,
amarraram-no 13 e o conduziram, primeiro, a Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote
daquele ano. 14 Caifás é quem tinha aconselhado aos judeus: “É melhor um só homem
morrer pelo povo”.
15
Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus. Este discípulo era
conhecido do sumo sacerdote. Ele entrou com Jesus no pátio do sumo sacerdote.
16
Pedro ficou do lado de fora, perto da porta. O outro discípulo, que era conhecido do
sumo sacerdote, saiu, conversou com a empregada da porta e levou Pedro para dentro.
17
A menina da porta disse a Pedro: “Não pertences tu também aos discípulos desse
homem?” Ele respondeu: “Não”. 18 Os servos e os guardas tinham feito um fogo, pois
fazia frio; estavam se aquecendo, e Pedro se pôs com eles para se aquecer.
19
O sumo sacerdote interrogou Jesus a respeito dos seus discípulos e de seu
ensinamento. 20 Jesus respondeu: “Eu falei abertamente ao mundo. Eu sempre ensinei
nas sinagogas e no templo, onde os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas. 21 Por
26
Esta estrutura fundamental encontra-se também, e.o., em S. S. SCHNEIDERS, em sua dissertação não
publicada The Johannine Resurrection Narrative (Roma 1975).
Beutler D -113
que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que eu falei; eles sabem o que eu
disse”. 22 Quando assim falou, um dos guardas que ali estava deu uma bofetada em
Jesus, dizendo: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” 23 Jesus respondeu-lhe:
“Se falei mal, mostra em que falei mal; e se falei corretamente, por que me bates?”
24
Anás, então, mandou-o, amarrado, a Caifás.
25
Simão Pedro continuava lá, aquecendo-se. Disseram-lhe: “Não és tu,
também, um dos discípulos dele?” Pedro negou: “Não”. 26 Então um dos servos do
sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro tinha cortado a orelha, disse: “Será
que não te vi no jardim com ele?” 27 Pedro negou de novo, e na mesma hora um galo
cantou.
I
O relato do Quarto Evangelho da paixão, morte e ressurreição de Jesus inicia-se
com o comparecimento de Jesus diante do mais alto conselho religioso e civil judaico, o
Sinédrio, em Jo 8,1-27. Segundo acima proposto, a secção se divide em sete cenas. O
comparecimento de Jesus diante do sumo sacerdote Anás está no centro (vv. 12-14).
Em Jo 18,1-11 narra-se em três cenas a detenção de Jesus. Depois da cena central do
comparecimento diante de Anás seguem-se novamente três cenas, nas quais Pedro e
Jesus se revezam como protagonistas.
Também na explicação do relato joanino da Paixão põe-se a questão das fontes.
Quando se aceita fundamentalmente a influência sinóptica sobre o Evangelho segundo
João, valem dois modelos: a dependência direta do Quarto Evangelho dos sinópticos ou
a dependência de um relato pré-joanino da Paixão, influenciado pelos sinópticos. Esta
última é a opinião do livro de A. Dauer27 sobre Jo 18,1–19,30. Dauer reconhece em Jo
18,4-9 o trabalho redacional do evangelista, independentemente da tradição, mas nos
vv. 1-3 e nos vv. 10-11 teríamos a influência de uma fonte pré-joanina influenciada
pelos sinópticos. Maurits Sabbe, um dos principais representantes da escola de Lovaina,
põe em xeque esta hipótese28. Um argumento a seu favor está no fato de que também
segundo Dauer o quarto evangelista compôs os vv. 4-9 independentemente de qualquer
fonte29. Ora, quando o evangelista consegue trabalhar independentemente a parte
central, a gente se pergunta se ele não era capaz disso também nos demais versículos,
recorrendo aos sinópticos.
Pergunta semelhante se dirige à tentativa de Paul N. Anderson de postular para o
relato joanino da Paixão uma tradição joanina independente dos sinópticos, a qual,
porém, mostraria relações e influências mútuas com as tradições sinópticas e présinópticas30.
Em diálogo com A. Dauer discutimos aqui as indicações concretas de João, como
o riacho Cedron no v. 1, o nome de Malco no v. 10 e a nomeação de Pedro no mesmo
versículo. Como mostra M. Sabbe31, o evangelista ama as indicações concretas. Essa
tendência se pode constatar na elaboração dos ciclos festivos judaicos em Jo 5–10.
Diante disso não parece necessário postular uma fonte não sinóptica para explicar as
indicações concretas que aparecem em João. Aparentemente o evangelista tinha uma
imagem suficientemente concreta da área urbana de Jerusalém para descrever o
27
A. DAUER, Passionsgeschichte.
M. SABBE, Arrest.
29
So auch C. H. WILLIAMS, I Am He.
30
Cf. P. N. ANDERSON, Aspects of Interfluentiality.
31
Cf. M. Sabbe, Arrest.
28
Beutler D -114
caminho que Jesus e de seus discípulos levava para fora de Jerusalém: era a travessia do
riacho do Cedron. Na escola de Lovaina é analisado também o caráter joanino dos vv.
4-9. Como observa M. Sabbe num complemento a seu artigo32, os seus colegas
lovanienses F. Neirynck e T. Snoy contam também aqui com a influência sinóptica nos
motivos do cumprimento das Escrituras e da saída de cena dos discípulos, sendo que
João transforma numa liberação aquilo que nos sinópticos é uma fuga dos discípulos.
Com um argumento a fortiori pode-se dizer, então, que Dauer, se ele defende o caráter
redacional dos vv. 4-9 sem utilização de sua fonte, deveria desistir de postular tal fonte
ainda mais nos versículos em que se nota influência sinóptica.
II
A chegada de Jesus no Getsêmani (18,1-3)
Esta cena dá sequência aos discursos de despedida de Jesus. Segundo a explicação
que aqui apresentamos o texto seria originalmente a continuação de Jo 14,31. No texto
atual do Evangelho, a cena da detenção se segue à oração conclusiva de Jesus no fim
dos discursos. Segundo João, Jesus não se retira no jardim para rezar, ele vem da
oração. A cena inicial forma uma inclusão com a última cena da secção e também com a
terceira. Com Jo 18,25-27, a primeira cena tem em comum o tema do “jardim” (cf. a
pergunta de servo do sumo sacerdote “Não te vi com ele no jardim?”). O tema se
reencontrará no fim da história da paixão em 19,39 e passará então para o relato da
ressurreição (Jo 20,15). Com a terceira cena (Jo 18,10-12), os três versículos iniciais de
têm em comum o campo lexical das armas: assim como os soldados e os guardas do
sumo sacerdote vieram com armas, assim Pedro puxa da espada. No meio entre as duas
cenas está a autorrevelação de Jesus.
18,1
Os primeiros dois versículos são marcados pela contraposição de Jesus e seus
discípulos de um lado (v. 1) e Judas e sua tropa do outro (vv. 2-3). No v. 1, Jesus “sai”
da cidade, no v. 4 ele “sai” do jardim no qual ele se havia retirado. Na tradição sinóptica
falta a torrente do Cedron33, em João não é nomeado o Getsêmani. Provavelmente, o
evangelista queria evitar a menção a este lugar: na sua visão, Jesus já conheceu a agonia
e venceu a angústia da morte (Jo 12,27s.). Ao entrar no seu sofrimento, Jesus aparece
seguro e soberano.
18,2-3
Só neste momento o público leitor se dá conta de que era noite, pois Judas e sua
tropa aparecem lá “com tochas e lanternas”. No momento em que Judas deixou a sala da
ceia, já era noite (Jo 13,30), o que certamente também aludia a algo mais profundo: o
domínio do poder das trevas. A tropa que Judas leva consigo consiste em representantes
da potência ocupadora romana e servos da autoridade judaica (o termo speîra indica
uma coorte, ou eventualmente um manipulum, sob o comando de um khilíarhos, “chefe
de mil”. Uma coorte era o décimo de uma legião e comportava uns cinco mil soldados.
O relato de João dá a impressão de que a inteira coorte estacionada na fortaleza Antônia
foi mobilizada para prender Jesus. Eles vêm também “com armas”. A única arma de
32
Cf. ibid., 388.
Segundo C. KARAKOLIS, “Across the Kidron Brook”, poderia haver aqui uma alusão à fuga de Davi,
que, para pôr a salvo sua realeza, cruzou a torrente do Cedron em 2Sm 15,23. Jesus não foge, mas
conserva sua dignidade real para lá da morte.
33
Beutler D -115
Jesus será o poder de sua palavra. O encargo de Judas não poderia ser de comandar toda
aquela tropa militar, mas apenas de mostrar-lhes o caminho para o lugar onde Jesus
ficava.
O encontro com o comando (18,4-9)
18,4
No início do relato joanino da paixão e morte de Jesus, o evangelista lembra que
Jesus sabia tudo o que o esperava. A frase do v. 4 remete para trás, para Jo 13,1, o início
do relato da última ceia, que começa com as mesmas palavras. A superioridade de Jesus
se mostrará também nos momentos ulteriores de sua via crucis. Antes de sua morte será
lembrado, novamente, que ele sabia que tudo estava consumado (Jo 19,28). Jesus entra
no seu sofrimento não apenas com plena consciência daquilo que o esperava, mas
também com a decisão de não se opor a seu destino. Por esta razão, ele “sai” do jardim,
em vez de esperar que lhe peçam sua identidade e depois o aprisionem.
18,5-6
A resposta da tropa pressupõe o uso linguístico cristão “Jesus de Nazaré”, em gr.
Nazōraîos. Este termo deixa transparecer algo do vocabulário de Israel: as raízes nêzer,
“broto”, ou nazîr, “consagrado a Deus”. A resposta de Jesus é clara e direta: “Sou eu”.
Discute-se, porém, sobre o sentido destas palavras. De imediato significam a
identificação de Jesus com a pessoa procurada. Além disso, a expressão “Sou eu”
parece aludir a uma fórmula, encontrada repetidamente no Segundo Isaías, pela qual
Deus se dá a conhecer, garantindo a solidez de suas promessas (a fórmula anî hû em Is
41,4; 43,10.13.25; 46,4; 48,12; 51,12; 52,6 e também em Dt 32,39)34. Em Jo 18,5.6.8
reconhece-se também o aspecto da superioridade de Deus e/ou do salmista sobre seus
inimigos. Os inimigos “recuam”, “caem por terra”, cf. Sl 26,2; 34,4; 55,10 LXX. O
texto não fala de alguma ação de Judas. Ele apenas “estava com eles”. Para o
evangelista, a pertença de Judas à turma dos adversários é mais importante que sua
participação no aprisionamento (por exemplo, pelo beijo, como nos sinópticos). Desde
Jo 6,64, Jesus se mostra ciente de quem o vai trair.
18,7-8
O v. 7 retoma verbalmente os vv. 4-5, e o v. 8 lembra a resposta de Jesus no v. 5.
Agora o peso está na identificação: eu sou aquele que procurais, e, sendo assim, deixai
os outros se retirarem. Jesus poupa aos seus discípulos a participação no seu destino e
também a fuga descrita nos outros evangelhos35.
18,9
O versículo final desta subsecção é uma fundamentação da resposta de Jesus em
relação aos seus discípulos, remetendo a uma palavra que ele havia falado
anteriormente. Segundo a edição de Nestle-Aland, a expressão se refere a Jo 6,39: “E
esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me
deu, mas os ressuscite no último dia”. O mesmo sentido está presente na palavra do
34
Cf. C. H. WILLIAMS, I Am He.
H. MARDAGA, The Meaning, vê um desenvolvimento nas três afirmações VEgw, eivmi de Jesus em Jo
18.5.6.8: desde a identificação à teofania e, por fim, ao engajamento pelos discípulos por meio da
identificação de Jesus. Semelhantes estruturas triplas não são raras em João. Ao triplo “eu sou” de Jesus
corresponde o triplo “eu não” de Pedro na cena da negação Jo 18,17.25.27 (“ele negou”) e a tripla
reparação em Jo 21,15-17.
35
Beutler D -116
Bom Pastor em Jo 10,28: “Eu lhes dou a vida eterna. Por isso, elas nunca se perderão e
ninguém há de arrancá-las da minha mão”. Mas pensa-se também na palavra da oração
sacerdotal em Jo 17,12: “Nenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição, para se
cumprir o que estava na Escritura”. É difícil decidir qual seria a referência36. De toda
maneira, Jesus pode referir-se a sua promessa, enunciada já antes da Paixão, de que
nenhum dos seus se perderia. Assim, em Jo 18,9, Jesus mostra-se novamente o Bom
Pastor, que protege os seus na hora do perigo.
A fórmula introdutória “assim se devia cumprir a palavra que ele tinha dito”
causa admiração, porque a fórmula de cumprimento, em outros lugares da Paixão, serve
para apontar o cumprimento de uma palavra da Escritura. Por isso, pode-se perguntar se
o uso dessa fórmula para introduzir uma palavra de Jesus significa que João a inclui
como parte da Escritura. Olhando, porém, o papel da Escritura no Evangelho segundo
João, devemos responder negativamente. Antes, significa que, em João, a palavra de
Jesus recebe uma autoridade que se equipara à da Escritura.
A ação de Pedro e sua censura da parte de Jesus (18,10-11)
18,10
Esta breve cena tem a forma de um apotegma biográfico: um determinado
acontecimento provoca um dito de Jesus. E com isso termina-se a secção. O v. 10
descreve uma tentativa de Pedro para defender seu senhor. Com a arma na mão, Pedro
se parece com a tropa descrita nos vv. 2-3, que saíra para prender Jesus. Não é nesse
nível que se defende a missão de Jesus! Diante de Pilatos, Jesus declara: “Minha realeza
não é deste mundo. Se minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para
que eu não fosse entregue aos judeus. Mas minha realeza não é daqui” (18,36). Mais de
uma vez no Quarto Evangelho, Pedro mostra-se inconfiável e limitado em sua
compreensão da fé. Esta impressão será confirmada na continuação do relato. Por outro
lado, porém, Pedro aparece também como aquele que pode expressar a fé em Jesus de
modo representativo, e segundo Jo 21,15-17 ele aceita a incumbência de Jesus. Pelo
menos para a redação final do Quarto Evangelho, Pedro não aparece como uma figura
sombria.
18,11
Em sua palavra a Pedro, Jesus convida o discípulo a desistir da violência. O
fundamento disso é o caminho que o Pai designou para Jesus. A palavra de Jesus remete
à cena do Getsêmani nos evangelhos sinópticos (Mt 26,39.42 parr.), na qual Jesus reza
para que o cálice passe dele, porém finalmente assume a vontade do Pai. Em João, Jesus
mostra a mesma disposição, porém, sem antes rezar para que o cálice passe dele. Tal
hesitação só foi descrita em Jo 12,27s, que antecipa a cena do Getsêmani. Agora, no
momento de sua detenção, Jesus aparece como senhor da situação, disposto a assumir a
vontade do Pai. As leitoras e leitores verão nesta palavra de Jesus um convite à
fidelidade em todas as circunstâncias, mas também à não-violência37.
Jesus diante do sumo sacerdote (18,12-14)
Esta cena ocupa o centro do conjunto maior 18,1-27, e no centro da cena está
Jesus. As leitoras e leitores provavelmente se perguntarão por que, nesta cena, Jesus
nem fala nem age; mas isso se deixa esclarecer a partir da situação: a partir de sua
36
37
Cf. die Diskussion bei R. E. BROWN II 811s.; R. SCHNACKENBURG III 255.
Cf. dazu E. SCHEFFLER, Jesus’ Non-Violence.
Beutler D -117
detenção, Jesus está submisso à vontade de outros–no fundo, à vontade de seu Pai, que
designou para ele este caminho. O evangelista mostra Jesus sendo detido pelo
comandante da tropa (v. 12), mas acrescenta duas observações. A primeira se refere à
pessoa de Anás (v. 13), a segunda, a Caifás (v. 14). O evangelista lembra que este disse
que era melhor que um só morresse pelo povo. Assim se exprime o sentido teológico da
cena.
18,12
João permanece fiel à sua visão de que Jesus foi preso pelo poder romano em
conluio com as autoridades judaicas. A isso se acrescenta a menção ao chefe de mil
(khilíarkhos), comandante do destacamento militar romano. Os oficiais da justiça
judaica são chamados de “os judeus”, de acordo com o uso linguístico de João. Jesus é
“levado” e “amarrado”, entregue às mãos dos homens.
18,13-14
No início do v. 13 arremata-se a descrição da detenção de Jesus: “Conduzem-no,
primeiro, a Anás”. Depois, num primeiro comentário, o evangelista faz a apresentação
de Anás. Ele é o sogro de Caifás, sumo sacerdote desse ano. Os relatos sinópticos da
Paixão não mencionam Anás. Ele aparece, porém, em Lc 3,2, no início da atividade de
João Batista e também em At 4,6, no processo de Pedro. Segundo as predições da
Paixão (Mc 8,31; 10,33), Jesus será condenado “pelos sumos sacerdotes”. Isso – como
também Mc 14,55 par. Mt 26,59 – pressupõe sumos sacerdotes no plural. João introduz
a figura de Anás pela referência a seu parentesco com Caifás, que era sumo sacerdote
daquele ano (cf. Jo 11,49). Isto significa, provavelmente, apenas que naquele ano Caifás
exercia o sumo sacerdócio, não, porém, que era só naquele ano e que a função trocava
anualmente. No v. 14 se estabelece expressamente um laço com a cena da condenação
de Jesus em Jo 11,47-53.
Primeira negação de Pedro (18,5-8)
Esta cena constitui o quinto subconjunto de Jo 18,1-27. Vendo o todo, percebe-se
que Pedro aparece, pelo menos por inclusão, na primeira, na terceira, na quinta e na
sétima cena do conjunto, enquanto na segunda, quarta e sexta, Jesus é a figura
dominante. Na terceira cena, Pedro já obtém um perfil por sua ação “militar” contra o
servo do sumo sacerdote, a fim de defender seu Senhor pela espada. Ele não tinha
entendido que a detenção de Jesus fazia parte do desígnio salvífico de Deus, assumido
por Jesus. Na quinta e na sétima cena, Pedro aparece cada vez mais afastado de seu
senhor38. E assim ele deixa o palco, no Evangelho segundo João, para só reaparecer no
relato da Páscoa.
Na tradição sinóptica, a tripla negação de Jesus por Pedro já aparece ligada ao
interrogatório de Jesus no palácio do sumo sacerdote. Segundo Marcos e os outros
sinópticos, a tripla negação se segue ao interrogatório. João, porém, antecipa a primeira
negação e, assim, cria um contraste entre a atitude de Jesus e a do seu tão respeitado
discípulo. Pela inclusão no meio das cenas da negação, o interrogatório de Jesus ganha
para as leitoras e leitores um peso muito particular. É reforçado, deste modo, o contraste
entre Jesus e seus discípulos39.
38
39
Cf. B. ESCAFFRE, Pierre et Jésus.
Cf. ibid.
Beutler D -118
Nos sinópticos não aparece a figura do “outro discípulo”; essa figura é própria de
João, como também sua proximidade ao sumo sacerdote. Se essas feições se baseiam
em alguma tradição não se deixa mais verificar.
18,15-16a
Segundo o texto, Pedro “segue” Jesus no caminho até Anás; o verbo ēkoloúthei
parece quase uma ironia joanina. De fato: o discípulo segue Jesus meramente no espaço;
logo aparecerá que ele não adota a atitude de um discípulo. Ele é ladeado por “um outro
discípulo”. Este não é chamado “o outro discípulo”, o que teria facilitado sua
identificação com o Discípulo Amado (cf. Jo 20,2s.). Contudo, a favor dessa
identificação pleiteiam sua proximidade a Pedro e o fato de que ele, em Jo 18,15,
propicia a entrada a Pedro.
18,16b-d
O outro discípulo, com base na sua proximidade ao sumo sacerdote, faz com que
Pedro possa entrar no pátio do palácio de Anás.
18,17
A atendente da porta parece reconhecer Pedro e pergunta se ele não é um
discípulo “desse homem”. Pode até ter apontado Jesus que se encontra no mesmo
pátio40. Por isso parece mais pesada ainda a negação de Pedro: “Não sou” (ouk eimí),
pois esta fórmula retoma e inverte, ironicamente, o duplo “eu sou” (egṓ eimi) de Jesus
na cena da detenção (vv. 5 e 8) e faz contraste com o repetido “eu” (egṓ) de Jesus na
cena seguinte (vv. 21s.). Pedro está a caminho da progressiva perda de sua identidade.
18,18
A mesma impressão se depreende do v. 18. Os servos e os guardas acenderam um
fogo de brasa e se aquecem em redor. O mesmo se diz de Pedro. Ele nem age, nem fala.
O fogo de brasas faz pensar no de Jo 21,9, e a semelhança do termo parece ser
intencional. O mesmo Pedro que teve de se aquecer na companhia dos guardas terá de
renovar sua fidelidade a seu Senhor, que o acolhe junto ao fogo de brasas.
O interrogatório de Jesus perante o sumo sacerdote e sua transferência a
Caifás (18,19-24)
O lugar que ocupa a secção seguinte provocou bem cedo tentativas de
transposição. O aparato crítico de Nestle-Aland (28. ed.) menciona três variantes para o
texto da maioria: 1) sequência vv. 13, 24, 15, 19-23, 16-18: syss; 2) sequência vv. 13,
24, 14-23, 24: 1195 syhmg Cyrcom; 3) sequência vv. 13a, 24, 13b, 14-23, 24: 225. Todas
essas tentativas têm em comum o desejo de assimilar a ordem do texto em João à ordem
dos sinópticos. Mas já vimos que a ordem do texto em João se explica pelos objetivos
literários e teológicos do quarto evangelista. Assim, Jesus aparece agora diante de Anás
para ser investigado quanto a seu ensinamento e seus discípulos.
Existe notável diferença entre João e os sinópticos relativamente ao “processo
judaico” de Jesus; essa diferença é discutida nos comentários antigos. Em João, não há
processo judaico formal contra Jesus. A razão é que Jesus, segundo o quarto
evangelista, já foi condenado à morte pelo Sinédrio, na cena de Jo 11,47-53, à qual
remete Jo 18,14. As diferenças nos pormenores, entre João e o relato sinóptico, se
40
Cf. B. ESCAFFRE, ibid.
Beutler D -119
explicam, na literatura exegética, de duas maneiras: ou João utilizou uma fonte própria,
apoiada ou não nos sinópticos, ou não houve tal fonte e João concebeu seu relato por si
mesmo, na base dos evangelhos sinópticos.
Como fizemos até agora, seguimos a proposta da escola de Lovaina, segundo a
qual João concebeu seu relato da Paixão tendo por única base os evangelhos sinópticos.
Maurits Sabbe é quem elaborou e fundamentou essa proposta relativamente à secção em
consideração41. Posição semelhante é defendida por Frank J. Matera42, segundo o qual
João escreveu seu evangelho usando exclusivamente Marcos como base. Sua opinião,
porém, é menos convincente que a de M. Sabbe, que apresentou sua proposta cinco anos
depois de Matera, discutindo os argumentos deste.
Segundo M. Sabbe, a ausência do processo judaico no relato da Paixão em João se
explica porque esse processo já foi apresentado em Jo 11,47-53 e porque o inquérito da
atividade e da autoconsciência de Jesus pelas autoridades judaicas já foi relatada em Jo
10,22-39, tendo por resultado a tentativa dos “judeus” de apedrejar Jesus (10,31s.) ou de
prendê-lo (10,39).
O interrogatório de Jesus pelo sumo sacerdote Anás é explicado, por Sabbe, a
partir de sua posição social e de seu parentesco com Caifás. João demonstra tendência a
dar um nome a personagens que nos outros evangelhos ficam anônimas. Assim
acabamos de ver, em 18,10, que o servo do sumo sacerdote cuja orelha Pedro cortou
recebe o nome de Malco. Segundo essa tendência, João podia citar o nome do sumo
sacerdote que abriu o inquérito contra Jesus e que os três primeiros evangelhos não
nomearam: Anás. Em Josefo encontramos a informação de que Anás – sumo sacerdote
de 6 a 15 d.C. – tinha cinco filhos que o sucederam na função de sumo sacerdote. Caifás
não era propriamente seu filho, mas como genro era parente do mesmo modo.
No lugar do inquérito judaico de Anás, os sinópticos relatam um processo judaico
perante Caifás, em duas fases: uma, em sessão noturna e outra, de madrugada (Mc
14,53-65; 15,1). Nesse processo diante de Caifás são tratados dois temas: a atividade de
Jesus, especialmente em relação ao Templo, e sua identidade como pretendente a
Messias e presumido Filho de Deus. Esses temas já foram tratados por João
anteriormente. A questão do Templo e a palavra de Jesus sobre sua destruição e
reconstrução em três dias já foram tratados em Jo 2,18-22. Em Jo 10,22-39, o assunto
foi a dignidade de Jesus como Messias e Filho de Deus. Assim não foi necessário
retomar esse tema em Jo 18. E, como já mencionamos, Jo 11,47-53 relatou uma
condenação formal de Jesus pelo Sinédrio presidido pelo sumo sacerdote Caifás.
Só a cena da bofetada tem paralelo nos sinópticos. No evangelho de Marcos
(14,65) lemos, depois da condenação de Jesus na sessão noturna do sinédrio: “Então
alguns começaram a cuspir em Jesus e, cobrindo o rosto de Jesus, esbofeteavam-no,
dizendo: ‘Profetiza!’. E os guardas davam-lhe bofetadas” (cf. Mt 26,67; Lc 22,63-75).
Em João, Jesus se encontra só na presença do sumo sacerdote e de alguns de seus
servos. Assim a cena é reduzida aos maus tratos aplicados por uma única pessoa.
Como é construída a secção 18,19-24? No início está a pergunta do sumo
sacerdote a Jesus, formulada como oração indireta (v. 19). Jesus responde em oração
direta (v. 20s.). Sua resposta é seguida pela reação de um servo do sumo sacerdote: ele
serve a Jesus uma bofetada no rosto e repreende-o (v. 22). Em sua resposta, Jesus
41
42
Cf. M. SABBE, John 10.
Cf. F. MATERA, Jesus before Annas.
Beutler D -120
justifica sua atitude e questiona a do servo do sumo sacerdote (v. 23). O sumo sacerdote
não toma mais a palavra, mas envia Jesus, algemado, a seu genro Caifás (v. 24).
18,19
O sumo sacerdote Anás (cf. Lc 3,2; At 4,6) interroga Jesus a respeito de seus
discípulos e de seu ensinamento. Segundo Bernadette Escaffre, a formulação de sua
pergunta como oração indireta mostra claramente seu baixo perfil no relato joanino. No
interior da secção inteira, Anás não toma uma única vez a palavra em oração direta43.
Por ocasião da pergunta referente aos discípulos, as leitoras e leitores pensarão em sua
“dispensa” por Jesus em 18,8, bem como no crescente afastamento de Pedro, relatado
nos versículos imediatamente anteriores e que resultou na primeira negação expressa.
18,20-21
Jesus responde somente à segunda parte da pergunta, que diz respeito à sua
doutrina. Sua resposta é apresentada em oração direta, o que mostra seu alto perfil na
narrativa. A linguagem é joanina: Jesus falou “abertamente ao mundo” e “nada às
escondidas” (parrēsíai, “abertamente” encontra-se nove vezes em João, nos sinópticos
só uma vez: Mc 8,32; laleîn, “falar” e kósmos, “mundo” são termos corriqueiros em
João, e en kryptṓi ocorre ainda em Jo 7,4.10). Para o ensinamento de Jesus na sinagoga,
os leitores pensarão em Jo 6,59, e para seu ensinamento no Templo, nos discursos dos
capítulos 5 e 7–10. O pronunciamento de Jesus faz pensar em Jo 7,25s., onde alguns
hierosolimitanos dizem: “Não é este a quem procuram matar? Olha, ele fala
publicamente (parrēsíai), e ninguém lhe diz nada. Será que os chefes reconheceram que
realmente ele é o Cristo?” No mesmo capítulo, Jesus falou de seu ensinamento: “O meu
ensinamento não vem de mim mesmo, mas daquele que me enviou” (Jo 7,16). Em sua
resposta ao sumo sacerdote, ao dizer que ensinou abertamente e que seus discípulos
podem dar testemunho de seu ensinamento, Jesus se refere a textos como estes.
18,22
A resposta de Jesus não suscita uma réplica do sumo sacerdote, mas um ato de
violência de um dos seus servos, que esbofeteia Jesus com a reprimenda: “É assim que
respondes ao sumo sacerdote?” A suprema autoridade judaica não foi capaz de entender
o sentido das palavras de Jesus. Para a corte do sumo sacerdote, as palavras de Jesus
soaram apenas como provocação e falta de respeito.
18,23
Em sua reação, Jesus se mostra a par da situação e até superior. Coloca o servo do
sumo sacerdote diante de um dilema: ou não foi verdade o que ele disse, e então se
deveria mostrar o erro, ou ele falou o certo, e então a bofetada foi injusta. Na cena
inteira mostra-se a superioridade de Jesus, que se pôde observar desde o início da
história da Paixão em Jo 18,1. Assim, a última oração direta nesta cena é reservada a
Jesus.
18,24
O sumo sacerdote não reage verbalmente. Permanece mudo. Manda Jesus,
algemado, a Caifás. A reduplicação dos sumos sacerdotes mostra também sua falta de
identidade44. Não se relata inquérito algum de Caifás (cf. v. 28). Assim, a autoridade
43
44
Cf. B. ESCAFFRE, Pierre et Jésus, 64.
Cf. B. ESCAFFRE, Pierre et Jésus, 58-61.
Beutler D -121
judaica no seu conjunto não foi capaz de encontrar em Jesus culpa alguma que
justificasse sua condenação.
Segunda e terceira negação de Pedro (18,25-27)
As três cenas da negação encontram-se também nos sinópticos. A principal
diferença entre o relato joanino da tripla negação e o dos sinópticos é que João insere,
entre a primeira negação e as duas últimas, a cena do inquérito do sumo sacerdote.
Assim, ele reforça o contraste entre Jesus, que “dá testemunho”, e Pedro, que “nega”
(cf. Jo 1,20).
Em Marcos, uma parte dos manuscritos mencionam um canto do galo depois da
segunda negação de Pedro (Mc 14,68). Isso poderia expressar uma advertência. João
não segue esta tradição textual. Outra diferença entre João e os sinópticos é que, nestes,
a mesma empregada do sumo sacerdote, que perguntara a Pedro se ele não estava com
Jesus de Nazaré, repete sua pergunta e a dirige ao pessoal em redor. Em João são outras
pessoas que dirigem a pergunta diretamente a Pedro, o qual nega ser dos discípulos de
Jesus. Assim, a negação de Pedro aparece mais pessoal e direta.
As diferenças maiores encontram-se na terceira negação. Nos sinópticos não se
menciona que a pessoa que indaga se Jesus é parente de Malco; em vez disso, o pessoal
no pátio do sumo sacerdote suspeita que Pedro é próximo de Jesus por ele ser galileu,
por ter acento galileu. Em Marcos e Mateus, Pedro começa aqui a praguejar e a jurar
que ele não conhece esse homem. E em Marcos (14,72), nesse momento, o galo canta
pela segunda vez. Os três sinópticos relatam que Pedro, com o canto do galo, se lembra
da palavra de Jesus de que ele o negaria três vezes antes que o galo cantasse (duas
vezes). Lc 22,61 acrescenta ainda que nesse momento Jesus dirigiu o olhar para Pedro,
que começou a chorar.
Em João, esses elementos estão ausentes. A figura de Pedro não mostra
sentimento, nem contrição45. A exegese pormenorizada mostrará até que ponto isso
corresponde à sua visão de Pedro.
A construção desta unidade textual se percebe facilmente. É uma sequência de
duas breves cenas: no v. 25 a segundo negação de Pedro, nos vv. 26s., a terceira. As
palavras das pessoas que fazem perguntas a Pedro são introduzidas pelo presente
histórico, as respostas de Pedro pelo aoristo, e isso, duas vezes com o mesmo verbo:
“ele negou” (ērnḗsato) (cf. 13,38).
18,25
O v. 25 retoma a menção a Pedro em Jo 18,18. No fim da primeira negação foi
dito: “Pedro se pôs com eles e aquecia-se”. Bernadette Escaffre46 observa que Pedro,
nestas cenas, aparece cada vez menos ativo. Não age mais, apenas está em determinada
lugar, no caso, na companhia daqueles que prenderam Jesus como colaboradores das
autoridades judaicas inimigas de Jesus. Que Pedro precisava se aquecer contrasta com a
coragem com que Jesus enfrenta a autoridade judaica e o mau trato do servo do sumo
sacerdote.
18,26-27
45
Na Johannespassion de Johann Sebastian Bach insere-se neste lugar: “e ele saiu e chorou
amargamente”, mas isso é emprestado pelo poeta a partir dos relatos sinópticos (cf. Mt 26,75; Lc 22,62).
O poeta não queria que seus ouvintes de Leipzig perdessem esse detalhe...
46
Cf. B. ESCAFFRE, Pierre et Jésus, 61-63.
Beutler D -122
A última pergunta dirigida a Pedro o mostra sempre mais na defensiva. A forma
da pergunta faz esperar uma resposta positiva. O homem que pergunta a Pedro é um
parente de Malco, que Pedro acabou de ferir na orelha. Portanto, fala por saber pessoal,
acentuado pela menção do “jardim” como lugar da ocorrência. Para Pedro isso poderia
ser uma lembrança de sua pertença ao grupo dos discípulos até aquele momento. Apesar
disso, ele nega “novamente” (pálin), como diz o texto, sua pertença a Jesus. Esta
resposta merece apenas formulação em oração indireta. Nesse momento, o galo canta,
de acordo com a predição em Jo 13,38. Como observa B. Escaffre47, a única voz que se
faz ouvir no fim deste relato é a do galo.
No restante do relato da Paixão em João, Pedro não mais aparece. Só torna a
aparecer em Jo 20,2, junto com o Discípulo Amado. Também João se supõe o que é
sabido pelos outros evangelhos: que Pedro ficou em Jerusalém e se encontrou entre os
primeiros que ficaram sabendo de uma aparição do Ressuscitado. Segundo João, isso
aconteceu no encontro de Jesus com o grupo dos discípulos que lhe ficaram fiéis, na
tarde do dia da Páscoa, segundo Jo 20,19-23. No capítulo 21, Jesus perguntará Pedro a
respeito de sua fidelidade e de seu amor por ele, antes de lhe predizer que partilhará o
destino de seu mestre numa morte violenta (Jo 21,15-19). Assim, Pedro poderá servir de
modelo de identificação para as leitoras e leitores, do mesmo modo como outros
homens e mulheres que, corajosamente, confessaram sua fé em Jesus48.
III
Na configuração literária e teológica de seu relato da detenção de Jesus e de sua
apresentação à autoridade judaica, o evangelista nos mostra as linhas mestras de seu
pensamento. No relato joanino, Jesus aparece com relevo mais alto do que nos
sinópticos. Não apenas sabe com clareza o que o espera, mas ele vai ao encontro do
comando de detenção de modo soberano e decidido. No “sou eu” de Jesus ecoa até uma
autoconsciência divina. Por isso, os guardas e os soldados que deveriam prendê-lo caem
por terra diante de sua palavra. Jesus não se apoia em poder terrestre, por isso não deixa
Pedro enfrentar a tropa com a arma. Diante do sumo sacerdote, fica calado, só toma a
palavra quando da pergunta acerca de seus discípulos. Eles não têm culpa: João
transforma a fuga dos discípulos numa liberação formal.
Nesta secção aparece uma contraposição de Pedro a Jesus. Vimos que, no decurso
do relato, Pedro perde sempre mais seu perfil. Se, na terceira cena acima, ele mostrava
incompreensão em relação a Jesus, na quinta e na sétima ele o nega três vezes, e isso, no
momento em que Jesus, indefeso, mas sem medo, se confronta com o sumo sacerdote.
Exatamente essa contraposição que o quarto evangelista esboça entre Jesus e
Pedro passa um sinal forte ao público leitor. Não devem negar; devem confessar, como
o fez Jesus. Senão, também eles, como Pedro, correm risco de perder a personalidade e
deverão, como ele, esperar um recomeço de sua biografia a partir da Páscoa.
2. O processo romano contra Jesus (18,28–19,16b)
18 28 De Caifás, levaram Jesus ao pretório. Era de madrugada. Eles mesmos não
entraram no pretório, para que não se contaminassem, mas pudessem comer a páscoa.
29
Pilatos saiu ao encontro deles e disse: “Que acusação apresentais contra este
47
48
Cf. B. ESCAFFRE, Pierre et Jésus, 57.
Cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
Beutler D -123
homem?” 30 Eles responderam: “Se não fosse um malfeitor, não o teríamos entregado a
ti!” 31 Pilatos disse: “Tomai-o vós mesmos e julgai-o segundo vossa lei”. Os judeus
responderam: “Não nos é permitido matar ninguém”. 32 Assim se cumpriu o que Jesus
tinha dito, indicando de que morte havia de morrer.
33
Pilatos entrou, novamente, no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és
o Rei dos Judeus?” 34 Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo, ou outros te
disseram isso a respeito de mim?” 35 Pilatos respondeu: “Acaso sou eu judeu? Teu
povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?” 36 Jesus respondeu:
“Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, os meus guardas
lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui”.
37
Pilatos disse: “Então, tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu dizes que eu sou rei. Eu
nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da
verdade escuta a minha voz”. 38 Pilatos lhe disse: “Que é a verdade?”
Dito isso, saiu novamente ao encontro dos judeus e declarou: “Eu não encontro
nele nenhuma culpa”. 39 Ora, existe entre vós um costume de que, por ocasião da
Páscoa, eu solte um preso. Quereis que eu vos solte o Rei dos Judeus?” 40 Eles, então,
se puseram a gritar: “Este não, mas Barrabás!” Barrabás era um assaltante.
19 1 Pilatos, então, levou Jesus e o mandou açoitar. 2 Os soldados trançaram uma
coroa de espinhos, puseram-na sobre a cabeça de Jesus e o vestiram com um manto de
púrpura. 3 Aproximavam-se dele e diziam: “Viva o Rei dos Judeus!”, batendo-o no
rosto.
4
Pilatos saiu outra vez e disse aos judeus: “Olhai! Eu o trago aqui fora, diante de
vós, para que saibais que eu não encontro nele nenhuma culpa. 5 Então, Jesus veio
para fora, trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Ele disse-lhes: “Eis o
homem”! 6 Quando o viram, os sumos sacerdotes e os seus guardas começaram a
gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos respondeu: “Levai-o, vós mesmos, para
crucificá-lo, porque eu não encontro nele nenhuma culpa”. 7 Os judeus responderamlhe: “Nós temos uma Lei, e segundo esta Lei ele deve morrer, porque se fez Filho de
Deus”.
8
Quando Pilatos ouviu isso, ficou com mais medo ainda. 9 Entrou no pretório
outra vez e perguntou a Jesus: “De onde és tu?” Jesus não deu resposta. 10 Então
Pilatos disse-lhe: “Não me respondes? Não sabes que tenho poder para te soltar e
poder para te crucificar?” 11 Jesus respondeu: “Tu não terias poder algum sobre mim,
se não te fosse dado do alto. Por isso, quem me entregou a ti tem maior pecado”. 12 Por
causa disso, Pilatos procurava soltar Jesus. Mas os judeus gritavam: “Se soltas este
homem, não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei declara-se contra César”.
13
Ao ouvir essas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal,
no lugar conhecido como Pavimento (em hebraico: Gábata). 14 Era o dia da
preparação da Páscoa, por volta da hora sexta. Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso
rei”. 15 Eles, porém, gritavam: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Vou
crucificar o vosso rei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos rei senão
César”. 16 Pilatos, então, entregou Jesus para ser crucificado.
Beutler D -124
I
Das três partes do relato joanino da Paixão, a parte central, Jo 18,28–19,16b, é a
melhor articulada49. Praticamente todos os estudiosos reconhecem a subdivisão em sete
cenas. Inicialmente devemos perguntar se o v. 28 pertence à primeira cena ou representa
uma introdução literária da secção inteira, correspondendo à nota final em 19,16b. Um
argumento para ver em Jo 18,28 uma introdução que precede as sete cenas poderia ser
que as cenas seguintes (exceto 19,1-3) são caracterizadas pelo “entrar” ou “sair” de
Pilatos. Mas aconselha-se não considerar este verbo como o único elemento estruturador
na distinção das cenas. Os critérios para a distinção são as indicações de espaço, tempo,
pessoas agentes e alguns sinais estilísticos (p.ex. a referência à Escritura ou a uma
palavra de Jesus, geralmente no fim de uma cena, cf. Jo 18,32). Segundo estes critérios,
recomenda-se ver Jo 18,28 como parte da primeira cena, com os indícios de espaço, “o
pretório”, e de tempo, “era de madrugada”. Como na introdução narrativa de Jo 18,1-3,
também em 18,28-32 se confrontam dois grupos ou representantes de grupos, no caso
de Jo 18,28-32: os “judeus” versus Jesus, que está sendo conduzido a Pilatos.
II
Jesus conduzido a Pilatos. Pilatos e os “judeus” (18,28-32)
A primeira cena no processo romano se baseia em Mc 15,1 par. Mt 17,1-2; Lc
23,1. Os evangelhos sinópticos relatam a entrega de Jesus a Pilatos. Segundo Marcos
(15,1) os sumos sacerdotes, segundo Mateus (27,12) os sumos sacerdotes e os anciãos
acusam Jesus diante de Pilatos. Em Lucas (23,2s.) se encontra a acusação de que Jesus
lesou leis judaicas e romanas com a incitação à revolta e a recusa de pagar o imposto,
como também com a pretensão de ser o Messias. Em João, só esta última acusação é
mencionada.
18,28
Com o v. 28, inicia-se o último dia da vida de Jesus, descrito nas secções Jo
18,28–19,16b (processo romano contra Jesus) e 19,16c-42 (crucificação, morte e
sepultamento de Jesus). As indicações de tempo e espaço ajudam a distinguir as cenas.
Agora é cedo de madrugada. Levam Jesus ao pretório, residência funcional do
procurador Pôncio Pilatos. Não se diz quem são esses atores, mas pode ser concluído
dos versículos anteriores: são os guardas das autoridades judaicas e estas mesmas. Na
sequência o texto falará nos “judeus” (ioudaîoi) como a autoridade judaica. Em Jo 19,6
são mencionados os “sumos sacerdotes e os guardas” (hoi arkhiereîs kaì hoi hypērétai),
em 19,15, os sumos sacerdotes (arkhiereîs). Diferentemente dos evangelhos sinópticos,
em João o Sinédrio não exerce mais nenhum papel na condenação de Jesus: já decidiu
matar Jesus, em Jo 11,47-53, e não é mais mencionado.
Os judeus evitam entrar no pretório do poder ocupador romano para não se
contaminarem antes da páscoa. Os comentários, via de regra, veem aí um traço da ironia
joanina. Os que observam escrupulosamente as regras da pureza cultual não hesitam em
matar o verdadeiro cordeiro de Deus, que é Jesus Cristo. Esta associação de ideias se
confirma pela menção à festa da Páscoa no fim do processo romano de Jesus, quando
49
Cf. para esta secção, e.o., J. BLANK, Die Verhandlung vor Pilatus; R. BAUM-BODENBERGER, Hoheit in
Niedrigkeit; A. CHARBONNEAU, “Quʼ-as-tu fait?”; C. H. GIBLIN, John’s Narration; C. DIEBOLDSCHEUERMANN, Jesus vor Pilatus (SBB 32); ID., Jesus vor Pilatus (BN); M. DE BOER, The Narrative
Function; J. ZUMSTEIN, Der Prozess Jesu.
Beutler D -125
ele é condenado à cruz, em Jo 19,14: a “hora sexta” que ali se menciona era o momento
da imolação dos cordeiros pascais previsto pela tradição judaica.
18,29-30
Numa primeira interlocução, Pilatos pergunta aos “judeus”, para os quais ele saiu
do pretório, qual acusação eles têm contra “esse homem”. A resposta do grupo judeu é
bastante fraca. Não se comprova nenhum crime, apenas se exprime um pressuposto: não
teriam trazido Jesus até Pilatos se não fosse um malfeitor. Neste momento, Pilatos
aparece numa luz positiva, enquanto os acusadores aparecem negativamente,
emaranhados em preconceitos.
18,31
Desde o início, Pilatos mostra tendência a não se intrometer no conflito entre
Jesus e a autoridade judaica. Ele propõe que eles o julguem segundo sua lei.
Respondendo, os judeus alegam não terem o direito de executar ninguém. Por isso
querem se servir do poder estatal romano para eliminar Jesus, o rei deles. A ironia
continua.
18,32
O evangelista vê na exigência de crucificar Jesus o cumprimento da palavra na
qual Jesus predisse de que tipo de morte ele morreria: seu “enaltecimento” na cruz (cf.
Jo 12,32).
Primeiro diálogo de Jesus e Pilatos (18,33-38b)
O longo diálogo entre Jesus e Pilatos concorda com o relato sinóptico só no início
e no fim. A pergunta (ou suposição) de Pilatos, “tu és o rei dos judeus?”, encontra-se
verbalmente em Mc 15,2 par. Mt 27,11 e Lc 23,3. Tudo faz crer que João utilizou este
elemento fixo da tradição. João tem em comum com os sinópticos também a resposta de
Jesus: “Tu o dizes” (cf. os mesmos versículos nos sinópticos). As outras palavras do
diálogo de Jesus e Pilatos em Jo 18,34-36.37s-38a, porém, parecem ou emprestadas de
outra fonte ou criadas pelo evangelista. Esta é a hipótese que hoje mais se aceita e que
nós também defendemos.
18,33-34
Para se formar uma ideia da acusação das instâncias judaicas, Pilatos se retira no
pretório, manda chamar Jesus e lhe pergunta: “Tu és o rei dos judeus?” Segundo o texto
transmitido, adotado também em Nestle-Aland (28ª ed.), a palavra de Pilatos seria uma
pergunta (“Tu és...?”). Segundo outra interpretação, representada por M. de Boer 50, a
frase de Pilatos seria uma asserção: “Tu és o rei dos judeus!”. Segundo este exegeta,
Pilatos nunca põe em xeque a dignidade régia de Jesus, quando entendida em nível
religioso e não político. Em sua reposta, Jesus entende a frase de Pilatos antes como
asserção do que como pergunta. Assim, Jesus não lança dúvida sobre sua dignidade
régia. Mas para entendê-la adequadamente é preciso ter o acesso adequado à sua
personalidade. Os judeus que acusaram Jesus diante de Pilatos não tinham esse acesso
aberto e positivo.
18,35-36
50
Cf. M. DE BOER, The Narrative Function.
Beutler D -126
Entre ambas as possibilidades de entender sua pergunta, Pilatos escolhe a
segunda: outros lhe falaram da dignidade régia de Jesus, para acusá-lo. Eram o seu povo
e os sumos sacerdotes que o acusaram por ter-se apresentado como rei dos judeus. Mas
para Pilatos, de novo, ser rei dos judeus não é crime. Então, que fez Jesus, mesmo?
Em sua resposta, Jesus confirma a impressão de Pilatos de que no seu caso não se
trata de um rei que represente um perigo para o Império romano. Jesus explica que seu
reino não é deste mundo. A prova se encontra no fato de que, senão, seus súditos o
teriam socorrido. Visto que Jo 18,36, ao lado de 3,3.5, é o único texto no Evangelho
segundo João em que se fala do Reino de Deus, recomenda-se ver a coerência dos dois
lugares. No diálogo com Nicodemos, Jesus explica as condições para entrar no Reino de
Deus. No capítulo 18, este reino aparece como o reino de Cristo51. Na medida em que o
reino de Jesus é o Reino de Deus presente na história, pode-se dizer que não é deste
mundo. Esta visão se confirma na continuação do diálogo de Jesus com Nicodemos em
Jo 3,13, onde Jesus diz: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu: o
Filho do Homem”.
18,37
Em sua última intervenção no diálogo, Pilatos vê corroborada sua impressão de
que Jesus é um rei e pede que Jesus afirme isso. Jesus responde positivamente (embora
se possa pensar que é antes Pilatos do que Jesus mesmo que vê um rei em Jesus). Para
isso considere-se a palavra seguinte de Jesus, na qual ele afirma ser rei, porém,
precisamente para dar testemunho da verdade. Em nenhum outro texto o Quarto
Evangelho diz que Jesus tenha sido “gerado” (ou “tenha nascido”); mas o termo
gennēthênai em Jo designa mais do que uma descendência meramente física (cf. Jo 1,13
“de Deus”, ek theoû; 3,13ss.; “de cima”, ánōthen). Assim, a expressão parece significar
o mesmo que a forma que se segue, “vir ao mundo” (cf. Jo 1,9 e 3,19, a respeito da luz,
e 6,14, a respeito de Jesus como profeta; 9,39; 12,46. 16,28 etc.).
O que significa o ter vindo Jesus ao mundo “para testemunhar da verdade”? 52
Tudo depende do que se entende por “verdade”. Na primeira metade do século XX
reinava a tendência de compreender esse termo joanino a partir dos textos helenísticos e
gnósticos. A “verdade” seria então a realidade divina que se dá a conhecer. Mas depois
da descoberta dos textos de Qumrã mostra-se que os textos joaninos se aproximam mais
do pensamento bíblico e hebraico. A verdade é então o desígnio salvífico de Deus que
se manifesta no tempo final. Nos textos de Qumrã encontra-se também o discurso das
“testemunhas da verdade” (1QS 8,6) aplicado aos membros da comunidade como
portadores de sua mensagem. Estamos aqui perto do uso joanino. O “testemunhar”
conserva, em João, seu sentido forense. No “grande processo” entre Jesus e o mundo
incrédulo são apresentados testemunhos e testemunhas em favor de Jesus. Nisso, Jesus
dá testemunho acerca de si mesmo. Assim como ele “testemunha” coisas do céu (cf. Jo
3,11.12), assim também ele “testemunha da verdade” no sentido da revelação divina que
ele comunicou53. “Testemunhar da verdade” significa então mais do que testemunhar a
verdade. Jesus se posiciona a favor da verdade no grande processo entre ele o “mundo”,
como antes dele fez João Batista (cf. Jo 5,33; quando em 3Jo 3 a formula é retomada,
esse fundo forense não é mais visível).
51
Segundo R. SCHNACKENBURG III 284 é recomendável não misturar as duas realidades, pois em Jo 3,3.5
trata-se de um âmbito celestial, em Jo 18,36 não propriamente.
52
Cf. para a exegese deste versículo J. BEUTLER, Martyria, 318-325.
53
Cf. para esta interpretação da “verdade” em João: I. DE LA POTTERIE, La vérité.
Beutler D -127
Para perceber a verdade da qual Jesus dá testemunho e para se apropriar dela é
preciso ser “nascido” ou “gerado” da verdade. O texto lembra aqui Jo 1,12s. – só os que
“nasceram de Deus” tornam-se filhos de Deus – e Jo 8,47: “Quem é de Deus escuta a
Palavra de Deus. Vós não escutais, porque não sois de Deus”. A respeito do ser gerado
de Deus, cf. também 1Jo 2,16; 3,10; 4,3.
18,38ab
A resposta de Pilatos “Que é verdade? “ recebeu interpretações diversas. Para uns
(R. Bultmann e sua escola54) significa que o Estado admite sua incompetência em
matéria de filosofia e religião; para outros significa que Pilatos não é capaz de
compreender as palavras de Jesus, porque ele não está disposto a crer nele. Esta última
interpretação parece preferível.
Pilatos e os judeus. A oferta de amnistia (18,38c-40)
Depois do primeiro encontro com os porta-vozes dos “judeus” no momento em
que entregaram Jesus (Jo 18,28-32) e depois do primeiro encontro com Jesus (Jo 18,3338b), Pilatos concebeu um primeiro juízo acerca de Jesus: ele é um “rei dos judeus” do
qual o Estado romano não precisa ter medo. Esta ideia está no fundo da cena seguinte,
que descreve novo encontro entre Pilatos e os representantes dos “judeus”.
Ao comparar esta cena de João com os sinópticos (Mc 15,6-14 parr.), percebe-se
que João a abreviou visivelmente. O “novamente” (pálin) pode ser um vestígio da
tradição (cf. Mc 15,13). Em Lucas encontramos uma cena na qual Pilatos declara Jesus
inocente perante os sumos sacerdotes e os notáveis do povo (Lc 22,13-16). Este texto
pode ter sido a base de Jo 18,38c-e. Sempre segundo Lucas, Pilatos propõe ao povo e
aos seus representantes flagelar Jesus, para depois liberá-lo (Lc 23,22). Este texto pode
ter influenciado Jo 19,1.
18,38c-f
Pilatos sai novamente em direção aos “judeus”, que estão à sua espera, e lhes
comunica o resultado de seu inquérito: não encontrou razão para condenar Jesus.
18,39
Como político, Pilatos sabe que os líderes dos judeus não ficariam satisfeitos se
ele liberasse Jesus impune. Assim apresenta-lhes uma proposta que os coloca diante de
um dilema: anistiar o “rei dos judeus” com base numa anistia que aqui se supõe ser
praxe anual por ocasião da Páscoa. Será que os judeus vão recusar a anistia para seu
próprio rei?
18,40
Mas os “judeus” gritam: “Não este, mas Barrabás”55, e o evangelista acrescenta
que Barrabás era um ladrão. Essa caracterização de Barrabás como ladrão serve
provavelmente para contrapô-lo a Jesus, o justo. O termo lēistḗs evoca antes um ladrão
54
Cf. R. BULTMANN 507s.; H. SCHLIER, Jesus und Pilatus.
Literalmente: “eles gritaram novamente”. O termo pa,lin causa problema aqui, e por isso manuscritos
antigos o substituem por pa,ntej (“todos”), enquanto outros combinam pa,lin pa,ntej. Mas a lição pa,lin se
recomenda como lectio difficilior, e também por sua atestação antiga: P 60 a B L W 0109 579. Assim
também Nestle-Aland 28ª ed.. N. VERHELST, The Johannine Use, discute as diversas maneiras de explicar
pa,lin (por exemplo, por empréstimo de Mc 15,13), mas no fim pergunta se se deve valorizar tanto este
termo que faz parte do uso preferencial de João.
55
Beutler D -128
do que um terrorista, como mostra a comparação com Jo 10,1.8.10. O bom pastor vem
às ovelhas através da porta preocupado com o bem delas, o assaltante pula a cerca e só
vem para roubar e matar. Ladrão é Judas, como se diz no relato da unção (Jo 12,7)56.
A flagelação e coroação com espinhos (19,1-3)
Esta cena certamente se situa no interior do pretório, embora falte a menção ao
“entrar” de Pilatos. A sequência de cenas caracterizadas pelo sair e entrar de Pilatos não
é interrompida.
Coisa semelhante se diga da falta de diálogo em Jo 19,1-3. A proposta de Carola
Diebold-Scheuermann57 para ver aqui uma espécie de “interlúdio” não oferece
suficiente firmeza. Aliás, mesmo esta autora inclui 19,1-3 na sequência de “cenas”.
Segundo as observações de diversos autores, depois do artigo de A. Janssens de
Varebeke58, nossa cena encontra-se no centro de uma narrativa composta de sete cenas e
constitui o auge dessa sequência. Os atributos honoríficos aqui atribuídos a Jesus à
primeira vista parecem escárnio, mas para quem reflete contêm um sentido profundo.
Jesus é, de fato, rei.
Mais uma vez, João usa de modo livre os sinópticos. Em Marcos (15,15) e Mateus
(28,26) a flagelação de Jesus e a zombaria dos soldados seguem depois da decisão de
Pilatos de condená-lo, de acordo com o costume romano: no fim dos maus tratos os
soldados revestem Jesus com sua roupa e o levam para a crucificação. Na visão joanina,
porém, é diferente. O espetáculo do maltratado exposto ao escárnio, vestido de um
manto régio e coroado com espinhos deveria suscitar compaixão nos chefes dos judeus.
Assim João prepara a cena seguinte, na qual Jesus será conduzida até os “judeus” em
mais uma tentativa de suscitar neles a compaixão.
19,1
Em João a flagelação não faz parte, como em Lc 23,16.22, de uma proposta feita
aos líderes judaicos para liberar Jesus depois do castigo, mas a ideia fundamental parece
ser a mesma. Um Jesus flagelado poderia suscitar compaixão para com o “rei dos
judeus” e agraciamento por parte da autoridade judaica. Na prática romana, a flagelação
se seguia ao veredicto da pena mortal. João pode ter invertido a ordem para dar a Pilatos
a oportunidade de mudar os corações dos judeus antes de pronunciar uma condenação.
19,2-3
A seguir descreve-se a tortura de Jesus em quatro elementos. Os soldados trançam
uma coroa de espinhos e a impõem na cabeça de Jesus; vestem-no com um manto
escarlate; aproximam-se dele e o saúdam dizendo “Salve, rei dos judeus”; e o
esbofeteiam. Os primeiros três elementos servem para ridicularizar Jesus, que se teria
apresentado como “rei dos judeus”. Para os leitores, esta homenagem como “rei dos
judeus” tem duplo sentido. Na cena central do processo romano Jesus recebe honra
como rei, mas um rei que só é reconhecível para quem crê nele e é “da verdade” (cf. Jo
18,37), pois “seu reino não é deste mundo” (Jo 18,36).
56
Cf. S. WITETSCHEK, Ein Räuber.
Cf. C. DIEBOLD-SCHEUERMANN, Jesus vor Pilatus (SBB), 268-275.
58
Cf. supra, nota 16.
57
Beutler D -129
Pilatos e os “judeus”. A apresentação de seu “rei” (19,4-7)
A cena seguinte caracteriza-se por três intervenções discursivas de Pilatos e duas
dos sumos sacerdotes e seus servidores. Jesus não toma a palavra, ele é conduzido
passivamente para fora do pretório para ser apresentado à multidão.
A cena do “Ecce Homo” não tem correspondente nos sinópticos. Nestes, o
escárnio de Jesus com o manto purpúreo e a coroa de espinhos acontece no pátio do
pretório. Jesus não é apresentado à multidão na frente do prédio; por conseguinte, a cena
do escárnio não é conectada com a tentativa de Pilatos de liberar Jesus (cf. Mc 15,1650). Nos sinópticos, o pretexto de que Jesus se faz passar por “rei dos Judeus” encontrase também em conexão com o processo romano (cf. Mc 15,2-12 par.). No processo
judaico diante do sumo sacerdote Caifás (cf. Mc 14,61 par.), Jesus dá resposta
afirmativa ao sumo sacerdote que pergunta se ele é o Messias, o Filho do Bendito. Em
Jo 19,7s., esta afirmação aumenta o medo de Pilatos por ter em mãos um homem de
origem misteriosa, bem como sua indisposição em condená-lo à morte.
19,4-5
Pela terceira vez (depois de Jo 18,29 e 18,38c) Pilatos deixa o pretório para se
encontrar com o grupo dos “judeus”. Ele manda trazer Jesus, ornado com o manto
purpúreo e com a coroa de espinhos. A intenção de Pilatos, de suscitar compaixão
aparece em suas palavras: “Olhai! Eu o trago aqui fora, diante de vós, para que saibais
que eu não encontro nele nenhuma culpa”. E quando Jesus vem para fora, Pilatus o
apresenta com as palavras: “Eis o homem”. Estas palavras de Pilatos são tão conhecidas
quanto difíceis de compreender. O sentido mais simples poderia ser: “Eis a criatura
humana em toda a sua miséria, mas também em sua inocência”. Alguns exegetas59 veem
na palavra de Pilatos uma alusão ao Filho do Homem segundo Daniel–mas isso seria
uma declaração não de rebaixamento, mas de exaltação, que não caberia bem neste
contexto.
19,6-7
A apresentação de Jesus sofredor e humilhado não suscita compaixão nos sumos
sacerdotes e nos guardas, mas o contrário. Eles continuam a ver em Jesus um pretenso
Messias, se não coisa pior, e gritam “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos tenta pela última
vez neutralizar esse desejo dos representantes dos judeus, atribuindo a eles a
responsabilidade da crucificação de Jesus: “Levai-o, vós mesmos, para crucifica-lo,
porque eu não encontro nele nenhuma culpa”. A proposta parece mais um exemplo da
ironia joanina, pois as leitoras e leitores sabem que a autoridade judaica não dispõe do
ius gladii, o poder da condenação à pena capital, e que a forma da execução por causa
de blasfêmia, em todo o caso, seria o apedrejamento (cf. Jo 10,31; At 7,59). Os “judeus”
aceitam a oferta de Pilatos, pelo menos em parte, ao afirmarem que Jesus, segundo a lei
deles, deve morrer, por ter-se declarado Filho de Deus. Mas continua suposto que eles
não têm as possibilidades judiciais para condenar e executar Jesus.
Jesus novamente perante Pilatos (19,8-12)
Na estrutura global de Jo 18,28–19,16b, a cena que agora se segue está em
penúltimo lugar. Se se quer ver nesta secção uma estrutura concêntrica, esta cena
corresponde à segunda cena do conjunto, onde temos o primeiro encontro entre Jesus e
59
Recentemente C. K. BARRETT 520s.; outros autores, veja R. SCHNACKENBURG III 295, nota 66.
Beutler D -130
Pilatos, Jo 18,33-38b. Esta correspondência é percebida por diversos autores,
ultimamente por M. de Boer60. Pode-se dizer, com relativo acerto, que estes dois
diálogos são os dois últimos “discursos de revelação” de Jesus antes de sua morte. Na
primeira secção, Pilatos pergunta quem é Jesus, na segunda, de onde ele vem. Em sua
resposta Jesus revela–também para as leitoras e leitores–o mistério de sua identidade e
de sua origem. Na visão joanina, a identidade de Jesus se define a partir de sua origem.
Por esta razão, ambas as secções se completam.
A delimitação da secção Jo 19,8-12 foi questionada, recentemente, por Carola
Diebold-Scheuermann61. Para ela, o v. 12 não pertence ao diálogo, mas constitui o
“ponto de inflexão” do processo judaico depois dos três diálogos. Pilatos ouve a gritaria
dos “judeus” lá fora, pressionando-o, mas ele continua dentro do pretório. Contudo, não
convém misturar a análise narrativa, que pergunta pelas pessoas envolvidas e pelas
indicações de tempo e lugar, com a análise dramática, que examina o decorrer do
processo de Jesus segundo as regras do antigo drama (que, de fato, encontra seu ponto
alto na “peripécia”).
A pequena cena é, na realidade, produto do trabalho literário e teológico do
evangelista. A interlocução sobre a origem de Jesus não consta da tradição sinóptica. O
único elemento comum em ambas as apresentações consiste no motivo do silêncio de
Jesus: Jesus não responde à pergunta de Pilatos (nos sinópticos: a pergunta acerca da
acusação), e Pilatos se admira com isso (cf. Mc 15,5 par. Mt 27,12ss.).
19,8-9
Esta cena se conecta com a anterior pela declaração dos “judeus” de que Jesus se
teria feito “Filho de Deus” (v. 7). O procurador romano desconhece as raízes bíblicas
desse título em relação ao “Messias” ou “Rei dos Judeus”, mas ele conhece o título
“filho de deus” em sua dimensão religiosa na cultura greco-romana.
O mundo dos gregos e romanos conhecia o “filho de deus” no sentido do herói ou
do dominador, descendente imediato dos deuses, não raras vezes com mãe humana.
Desde o tempo de Júlio César, a mitologia greco-oriental fizera sua entrada na religião
romana. Assim, a designação de Jesus como “filho de deus” poderia expressar sua
origem divina. Por isso, Pilatos pergunta a Jesus: “De onde és tu?” Jesus não responde à
pergunta. A razão disso está no diálogo anterior, Jo 18,33-38b, no qual Jesus se
apresentou como rei num sentido transcendente, como testemunha da verdade. Se
Pilatos não entendeu o sentido das palavras de Jesus naquele momento, seria difícil
esperar que agora o entendesse.
19,10-11
Pilatos toma novamente a palavra e pergunta a Jesus por que não lhe responde.
Acaso Jesus não sabe que Pilatos tem poder tanto para crucificá-lo como para dar-lhe a
liberdade? Com esse enunciado, Pilatos permanece no nível político. Como
representante do Estado romano, Pilatos tem o poder jurídico para condenar Jesus ou
liberá-lo. Ao responder, Jesus não se interessa pela definição da autoridade de Pilatos
afirmada meramente em nível político e humano. Pilatos não teria autoridade nenhuma
sobre Jesus se não lhe fosse dada do alto. Em última instância, Pilatos deve seu poder a
Deus–esse Deus que é o Pai de Jesus Cristo. Assim, a culpa de Pilatos se mede de
acordo com o papel que lhe coube no plano salvífico divino. Por essa razão, o traidor
60
61
Cf. M. DE BOER, The Narrative Function.
Cf. C. DIEBOLD-SCHEUERMANN, Jesus vor Pilatus (SBB), 74-81, 173-178.
Beutler D -131
tem maior culpa que o procurador romano, que é mero instrumento dos adversários de
Jesus e do discípulo que o entregou.
19,12
A resposta de Jesus aumentou o medo de Pilatos para condenar esse homem
misterioso. O narrador “onisciente” apresenta os judeus lá fora, em frente do pretório,
como sabedores de que Pilatos tem medo de decidir contra Jesus; eles gritam, lá de fora:
“Se soltas este homem, não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei, se declara
contra César”. Assim, o argumento volta ao nível político. Discute-se se o título “amigo
do César” (= do Imperador) tinha importância especial para o procurador Pôncio
Pilatos. É possível que ele tenha sido nomeado por Seiano, co-regente de Tibério até o
ano de 31 d.C. Segundo Tácito (Ann. 6,8), cada um que fosse próximo de Seiano
poderia contar com a amizade do César62. Discute-se então se Pilatos tomou sua decisão
sobre Jesus antes ou depois de ter caído em desgraça junto a Seiano. Em todo o caso,
Pilatos teria entrado em dificuldades se se tivesse decidido a favor do “rei dos judeus”.
Uma decisão a favor de Jesus podia pôr em perigo sua posição e sua carreira política.
Esse raciocínio não ficou sem efeito sobre Pilatos, como parecerá na cena seguinte.
A condenação de Jesus (Jo 19,13-16b)
Com a cena de Jo 19,13-16b termina o processo romano de Jesus segundo Jo
18,18–10,16b. Se consideramos Jo 18,18-32 como primeira cena (não dividindo-a entre
o v. 28 como “introdução” e os vv. 29-32 como “primeira cena”), encontramos ali os
mesmos protagonistas que aparecem agora, na última cena, Jo 19,13-16b: Jesus, Pilatos
e os “judeus”.
A cena se realiza, novamente, como a primeira, ao exterior, fora do pretório. Ela
se compõe de duas interlocuções entre Pilatos e os “judeus” e um comentário do
evangelista.
O diálogo entre Pilatos e a multidão, que conduz à repetida exclamação
“Crucifica-o!”, parece remontar ao diálogo a respeito da anistia em Mc 15,6-15 (par. Mt
27,15-26; Lc 23,17-25). Também esta cena sinóptica termina com a “entrega” de Jesus à
vontade do povo. A forma passiva “para que fosse crucificado” (hína staurōthêi)
encontra-se também em Marcos (15,15) e Mateus (27,26), e o tema da “entrega à
vontade deles”, em Lucas (23,25).
19,13
A última cena do processo romano de Jesus se dá, novamente, fora do pretório. O
catalisador é a multidão intimidando Pilatos porque não será mais amigo do César, se
liberar Jesus. Assim, Pilatos, pela última vez, traz Jesus à frente do pretório e senta-se
no tribunal. Gramaticalmente poder-se-ia entender ekáthisen epì bḗmatos de modo
transitivo: “ele o fez sentar-se no tribunal”. Em tempos recentes, sobretudo I. de la
Potterie63 animou-se por esta interpretação. Ele a encontra no evangelho apócrifo de
Pedro e em Justino (Apol. 1,35,6), entre outros, fundamenta-a linguisticamente e
entende-a no sentido da ironia joanina: Jesus, o acusado, destinado a ser ludibriado, se
revela para os que creem como verdadeiro juiz do mundo. Mas esta proposta não
62
Cf. R. E. BROWN II 880.
Cf. I. DE LA POTTERIE, Jésus roi et juge, baseado em autores mais antigos, desde A. VON HARNACK e A.
LOISY.
63
Beutler D -132
convence, e já R. E. Brown64 alistou os argumentos contrários: em caso de dúvida a
forma grega ekáthisen em sentido transitivo exigiria o pronome pessoal no acusativo; na
Bíblia grega, desde a Septuaginta, ekáthisen tem sempre o sentido intransitivo; o
evangelho de Pedro e Justino são posteriores a João e, por isso, dificilmente utilizáveis
para estabelecer o sentido; aliás, no relato joanino da Paixão a questão não é a função
judicial de Jesus, mas sua dignidade régia; o escarnecimento de Jesus é obra dos
soldados, não de Pilatos, que sempre de novo tenta liberar Jesus; a solene menção ao
lugar do julgamento corresponde à maneira cuidadosa de João de descrever as cenas da
Paixão de Jesus segundo tempo e lugar. Por isso é melhor preferir a interpretação
tradicional.
Também o Litóstroto, em aramaico Gábata, suscitou discussão nos meios dos
exegetas e dos arqueólogos. Durante muito tempo pensou-se num pavimento romano
encontrado debaixo do convento Ecce Homo das irmãs de Sião na proximidade da
fortaleza Antônia, no nordeste da montanha do Templo. Mas esse pavimento parece
datar do século II, no tempo da reconstrução de Jerusalém como Aelia Capitolina. Por
isso, prefere-se definir a indicação topográfica de João a partir da residência do rei
Herodes, que era utilizada para hospedagem dos procuradores romanos em suas
passagens por Jerusalém especialmente nos períodos festivos. Essa residência
encontrava-se não longe da atual porta de Jafa, no lado ocidental da cidade antiga de
Jerusalém65.
19,14ab
A nota temporal no v. 14 tem sentido duplo. Por um lado indica-se com exatidão a
hora da condenação de Jesus, a “hora” no sentido estrito joanino. Por outro, atribui-se à
hora sexta do dia de preparação antes da Páscoa um sentido simbólico; é o termo final
para afastar todo fermento das casas judaicas e o momento em que se começa a
imolação dos cordeiros pascais no recinto do Templo. Em vista do simbolismo do
cordeiro pascal na cristologia joanina, em Jo 1,29.36 (“Eis o cordeiro de Deus”), parece
plausível ver nesta nota cronológica um sentido simbólico.
19,14c-15
Neste momento, Pilatos parece decidido a condenar Jesus. Senão, não precisaria
assentar-se no tribunal. Assim, sua palavra aos judeus, “eis o vosso rei”, parece mais
uma reafirmação de sua própria inocência do que uma última tentativa de salvar Jesus
(que neste momento não traz mais as vestes e os símbolos do escárnio). Os
comentaristas veem uma semelhança entre a exclamação de Pilatos e seu gesto de lavar
as mãos em Mt 27,24 (quando diz: “Sou inocente do sangue deste homem; o caso é
convosco!”). Segundo Jo 19,15, os “judeus”, respondem com o grito “Fora! Fora!
Crucifica-o!”. Não acolhem o argumento de Pilatos, de que Jesus seria o rei deles. Por
isso, Pilatos o usa pela última vez: “Crucificarei o vosso rei?”, mas a multidão não se
sensibiliza. Eles respondem: “Não temos rei senão César”. Com estas palavras, decidese a sorte de Jesus.
Neste lugar fica claro que a multidão judaica, com as palavras “Não temos rei
senão César”, renunciou não só a Jesus como seu rei, mas também a toda esperança
64
Cf. R. E. BROWN, The Death, II, Appendix III.D, 1388-1393. Argumentos contrários reunidos por J.
VERHEYDEN, I. de la Potterie.
65
Cf. G. SCHNEIDER, Art. praitw,rion: EWNT III (1983) 346-348: 347.
Beutler D -133
messiânica. Para levar Jesus à cruz, os “judeus” de Jo 19 estão dispostos a renegar suas
mais preciosas esperanças.
19,16ab
No final desta interlocução entre Pilatos e a multidão popular, o narrador anota
brevemente: “Pilatos, então, entregou-lhes Jesus para ser crucificado”. A decisão de
Pilatos e a condenação de Jesus à morte de cruz estão contidas na palavra “entregou”.
Evidentemente, a multidão popular judaica não tinha poder para crucificar Jesus. Por
isso, devemos observar a forma gramatical do termo “crucificar”. Está no modo passivo.
Pilatos entrega Jesus aos “judeus” para que seja crucificado pela justiça e pela força
militar romanas66.
III
Diferentemente dos sinópticos, no relato da Paixão em João o processo de Jesus
propriamente corre diante do foro romano. A condenação à morte de Jesus já tinha sido
decidida pela autoridade judaica anteriormente (Jo 11,47-53). É de admirar que, no final
do processo romano, não se relata um veredicto formal de Pilatos. A razaõ pode ser que,
desde o início, no centro do processo romano não está Pilatos, como juiz, mas Jesus,
como rei67. Já no primeiro diálogo entre Jesus e Pilatos, em Jo 18,33-38b, o assunto é o
reinado de Jesus. Na terceira cena, Jo 18,38c-40, o título régio de Jesus permanece o
tema dominante na altercação entre Pilatos e a multidão. Na quarta cena, que é central,
novamente no pretório, os soldados escarnecem Jesus como rei dos judeus (Jo 19,1-3), e
o público leitor reconhece o verdadeiro rei no meio dessa paródia. Na quinta cena, Jesus
com suas insígnias régias, é trazido diante da multidão, que imediatamente exige sua
morte (Jo 19,4-7). Desde fora, ela insiste nisso, enquanto Pilatos tem seu último diálogo
com Jesus em Jo 19,8-12. O argumento da multidão é que Jesus se teria declarado rei.
Na última secção, Jo 19,13-16b, ouve-se novamente, por três vezes, o título de “rei”.
Este título voltará mais uma vez no letreiro da cruz (Jo 19,19-22), que Pilatos fez
colocar acima de Jesus e confirmou, inclusive, contra a resistência das autoridades
judaicas. Para as leitoras e leitores, Jesus morre como rei, do mesmo modo que viveu
como rei e como rei ressuscitará.
O sentido da dignidade régia de Jesus apareceu, sobretudo, no diálogo entre Jesus
e Pilatos em Jo 18,33-38b. A dignidade de Jesus consiste em ser mensageiro da
mensagem de Deus, que é a “verdade”. Na visão joanina, o núcleo da mensagem de
Jesus é precisamente que Jesus, como “o Filho de Deus” (Jo 19,7-11), traz uma
mensagem do coração de Deus. Ele faz isso como “testemunha da verdade” (Jo 18,37),
e com engajamento da própria vida. Os primeiros cristãos se verão solicitados a
testemunhar por sua vez (cf. Ap 2,13; 11,3; 17,6), assim como o fez João Batista (Jo
5,33). Este chamado continua sempre atual.
3. Crucificação, morte e sepultamento de Jesus (19,16c-42)
19 16 Tomaram, pois, Jesus consigo. 17 Ele, carregando sua cruz, saiu para o
lugar chamado Caveira (em hebraico: Gólgota). 18 Lá, o crucificaram com outros dois,
um de cada lado, ficando Jesus no meio.
66
L. DEVILLERS, La croix, vê no dativo auvtoi/j (‘lhes”) um dativo de interesse; refere-se aos “judeus”,
representados pelos sumos sacerdotes, mencionados imediatamente antes (v. 15).
67
Agora elaborado de modo convincente por R. A. PIPER, The Characterisation.
Beutler D -134
19
Ora, Pilatos tinha mandado escrever e afixar na cruz um letreiro, em que
estava escrito: “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”. 20 Muitos judeus leram o letreiro,
porque o lugar onde Jesus foi crucificado era perto da cidade, e estava escrito em
hebraico, em latim e em grego. 21 Os sumos sacerdotes dos judeus disseram então a
Pilatos: “Não escrevas: ‘O Rei dos Judeus’, e sim: ‘Ele disse: Eu sou o Rei dos
Judeus’. 22 Pilatos respondeu: “O que escrevi, escrevi”.
23
Depois que crucificaram Jesus, os soldados pegaram suas vestes e dividiram
em quatro partes, uma para cada soldado. A túnica era feita sem costura, uma peça só
de cima a baixo. 24 Eles combinaram: “Não vamos rasgar a túnica. Vamos tirar sorte
para ver de quem será”–para que se cumprisse a Escritura: “Dividiram entre si minha
roupa e tiraram a sorte sobre minha túnica”. Foi isso que os soldados fizeram.
25
Ora, junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria
de Cléofas, e Maria de Mágdala. 26 Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo
que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!” 27 Depois disse ao discípulo:
“Eis a tua mãe!” A partir daquela hora, o discípulo a acolheu junto de si.
28
Depois disso, sabendo Jesus que tudo já estava consumado, e para que se
cumprisse a Escritura até o fim, disse: “Tenho sede”! 29 Havia ali uma jarra cheia de
vinagre. Amarraram num ramo de hissopo uma esponja embebida de vinagre e a
levaram à sua boca. 30 Ele tomou o vinagre e disse: “Está consumado”. E, inclinando a
cabeça, entregou o espírito.
31
Era o dia de preparação do sábado, e este seria um dia maior. Para que os
corpos não ficassem na cruz no sábado, os judeus pediram a Pilatos que fossem
quebradas as pernas deles e que os tirassem da cruz. 32 Os soldados foram e quebraram
as pernas, primeiro a um e depois ao outro, dos que foram crucificados com Jesus.
33
Mas quando chegaram a ele, viram que já estava morto. Por isso, não lhe quebraram
as pernas, 34 mas um soldado golpeou-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu
sangue e água. 35 Aquele que viu dá testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro. Ele
sabe que fala a verdade, para que vós também creiais.s 36 Isto aconteceu para que se
cumprisse a Escritura que diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos”. 37 E um outro
texto da Escritura diz: “Olharão para aquele que traspassaram”.
38
Depois disso, José de Arimateia pediu a Pilatos para retirar o corpo de Jesus;
ele era discípulo de Jesus, mas às escondidas, por medo dos judeus. Pilatos o permitiu.
José veio e retirou o corpo. 39 Veio também Nicodemos, aquele que anteriormente tinha
ido a Jesus de noite; ele trouxe uma cem libras de unguento feito de mirra e aloés.
40
Eles pegaram o corpo de Jesus e o envolveram, com os perfumes, em faixas de linho,
do modo como os judeus costumam sepultar. 41 No lugar onde Jesus foi crucificado
havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo, onde ninguém tinha sido ainda
sepultado. 42 Por ser dia de preparação para os judeus, e como o túmulo estava perto,
foi lá que colocaram Jesus.
I
Com a via crucis e a crucificação de Jesus inicia-se a terceira e última parte do
relato joanino da paixão e morte de Jesus. Como mostramos antes, também esta parte
divide-se em sete cenas. No centro não parece estar a morte de Jesus, mas seu legado: a
entrega da mãe ao discípulo e do discípulo à mãe. Aqui, a tradição joanina do evangelho
é ancorada no Discípulo Amado.
Beutler D -135
Sobre as primeiras três cenas – até a repartição das vestimentas de Jesus – há
poucos estudos. Há mais atenção para a relação entre o texto joanino e a tradição
sinóptica do que para a explicação sincrônica do texto68. R. A. Culpepper relaciona
ambos os aspectos69. Começa com as diferenças entre a representação sinóptica e a
joanina: “Elementos centrais do relato sinóptico estão totalmente ausentes de João.
Assim não há: (1) o escárnio na cruz; (2) o ladrão arrependido; (3) trevas, embora João
goste do simbolismo luz-trevas; (4) a contagem das horas (menos em 9,14, a “hora
sexta”), embora João tenha mencionado frequentemente a vinda da hora de Jesus; (5) o
rasgar-se da cortina do Templo, embora João tenha colocado a purificação do Templo
no início da atividade de Jesus; (6) o grito de desespero; (7) o terremoto; (8) a abertura
dos sepulcros, embora João tenha falado da abertura dos sepulcros e relatado a
ressuscitação de Lázaro; (9) a confissão do oficial, embora João em seu evangelho
acentue a confissão de Jesus como ‘Filho de Deus’”70.
Por outro lado, Culpepper reconhece no relato joanino também elementos que
pertencem à tradição evangélica comum71. Jesus leva sua cruz para um lugar chamado
Gólgota. Ele é crucificado no meio de dois outros. Sobre sua cruz é colocada um
inscrição com o título “Rei dos judeus”. Os soldados oferecem a Jesus vinagre ou vinho
amargo de beber. Mencionam-se as últimas palavras de Jesus. Testemunhas confirmam
a morte de Jesus. Seu corpo é tirado da cruz e sepultado por José de Arimateia. Estas
correspondências mostram que João segue uma tradição geralmente aceita da morte de
Jesus.
Parece que João retomou de sua tradição os traços que julgou importantes,
enquanto omitiu outros de acordo com os critérios de sua teologia. A seguir olharemos
de mais perto as observações de Culpepper.
II
A via crucis e a crucificação de Jesus (19,16c-18)
19,16c
No início desta cena apresenta-se um problema de compreensão. A expressão
“levaram Jesus” pode referir-se às pessoas mencionadas no v. 16a, os judeus (supondose que Pilatos lhes teria entregado Jesus) ou os soldados romanos. Com bastante
segurança pode-se dizer que se trata dos soldados romanos, por duas razões: (1) os
“judeus” não tinham autoridade para executar uma pena capital (cf. Jo 18,31), e o texto
menciona expressamente os soldados romanos como órgão executivo da pena (cf. vv.
23s.); (2) João segue em grandes linhas a apresentação dos sinópticos; ora, segundo Mc
15,30 par. Mt 27,31, são os soldados romanos que levam Jesus para fora da cidade
depois de o ter escarnecido e maltratado. É provável que João pense nos mesmos atores
nesta fase do drama.
19,17
A via-sacra é descrita por João como ação pessoal de Jesus. Não se menciona a
ajuda de Simão de Cirene. Jesus aparece como independente até o último minuto. Falta
também a cena, mencionada por Lucas, das mulheres que mostram sua compaixão. Para
68
Cf. u. a. H.-J. KOLLMANN, Kreuzigung.
R. A. CULPPEPPER, Theology.
70
Cf. ibid., 21. tradução de J. Beutler.
71
Cf. ibid.
69
Beutler D -136
João não se trata de sentimentos religiosos ou de compunção, mas da soberania de
Jesus. O nome da colina à qual conduzem Jesus é mencionado por João em grego e em
aramaico, como em Mateus e Marcus. Lucas tem apenas a tradução grega (Lc 23,33).
19,18
O fato da crucificação de Jesus, nos quatro evangelhos, é mencionado em uma só
palavra, e em João, numa frase subordinada. A razão disso pode ser a grande força
simbólica que esta cena tem para João. Quanto à linguagem, a cena é unificada e
emoldurada pelo termo “escrever”. Pilatos “escreveu” (égrapsen), ou mandou escrever
(v. 19), e no fim reforça: “O que escrevi, escrevi”.
Pilatos e o título régio na inscrição da cruz (19,19-22)
A cena aparece no Quarto Evangelho muito explicitada e, por isso, também
ressaltada. A razão pode ser a grande força simbólica que esta cena tem aos olhos de
João. Linguisticamente ela é articulada e emoldurada pela palavra “escrever”. Pilatos
“escreveu/mandou escrever” (v. 19) e no fim corrobora: “O que escrevi, escrevi”.
19,19-20
Só João menciona que foi Pilatos quem mandou afixar o letreiro sobre a cruz.
Também é só em João que se encontra o texto extenso “Jesus de Nazaré, rei dos
judeus”. Nos sinópticos falta o nome de Jesus. O texto de João acentua a identificação
de Jesus de Nazaré como “rei dos judeus”, tema central no relato da Paixão segundo
João. Só João menciona que o texto estava redigido em três línguas: hebraico, latim e
grego. Com R. A. Culpepper72, podemos ver no hebraico uma referencia ao mundo
religioso ao qual Jesus pertence, enquanto o latim remete ao mundo político, e o grego,
ao ambiente cultural de Jesus. Os primeiros leitores desse letreiro são os judeus que
saem da Cidade Santa, logo ali.
Com R. A. Culpepper73 podemos também nos debruçar sobre o significado das
diversas partes da inscrição. A dignidade régia de Jesus já foi proclamada por um dos
primeiros discípulos, Natanael (Jo 1,49). Depois do sinal dos pães, a multidão quer
proclamar Jesus rei (Jo 6,15). Em Jo 12,12-15, Jesus entra como rei messiânico na
Cidade Santa, sentado num burrinho, segundo a profecia de Zacarias (Zc 9,9). Esta
dignidade régia permanece como tema dominante nos processos judaico e romano de
Jesus até sua condenação à morte. Em João, o tema está em conexão com o
enaltecimento e a glorificação de Jesus, campo semântico ligado à teologia do Servo de
Deus (cf. Jo 52,13 LXX).
Desde o início Jesus aparece no Evangelho segundo João como “rei de Israel”. No
Prólogo, a vinda do Logos para junto dos “seus” (Jo 1,11) talvez ainda não se refira a
isso, como comentamos ad locum, mas de toda maneira a dignidade régia pertence à
teologia do quarto evangelista e se torna dominante no duplo processo de Jesus, como
foi mostrado. Retrospectivamente, o Quarto Evangelho deve conduzir à fé de que “Jesus
é o Cristo, o Filho de Deus”, e, assim, à vida em seu nome (Jo 20,31).
Uma descoberta arqueológica poderia jogar mais luz sobre o título da cruz.
Segundo Maria-Luisa Rigato74, uma tabuleta conservada na basílica romana Santa
Croce di Gerusalemme contém o texto da inscrição da cruz. A tabuleta encontra-se ali
72
Cf. ibid.
Cf. ibid., 23-26.
74
M.-L. RIGATO, Il titolo della croce.
73
Beutler D -137
numa capela atrás da abside da basílica e, segundo M.-L. Rigato, representa uma cópia
do original, que já no primeiro milênio, antes das cruzadas (com seu escasso senso
crítico), chegou até Roma, provavelmente no tempo de Gregório Magno. Se essa
hipótese for confirmada, a tabuleta pode corroborar a versão joanina da inscrição,
diferente da forma curta dos sinópticos. O texto grego contém o termo
“NAZARENOUS”, e o latim, “NAZARENUS”, ambos escritos de forma ainda bem
legível, da direita para a esquerda, como era uso aceite naquele tempo.
19,21-22
Em João, e somente nele, o título “rei dos judeus” provoca irritação nos “judeus”.
Eles se dirigem a Pilatos, com o pedido de que modifique o título “rei dos judeus” para
uma afirmação de Jesus: “Ele disse: Eu sou o rei dos judeus”. Bem na linguagem
lacônica do procurador romano, Pilatos responde: “O que escrevi, escrevi”. A impressão
de M. de Boer75 parece confirmar-se: segundo João, Jesus podia de fato ser “rei dos
judeus” aos olhos de Pilatos, desde que isso não mexesse com os interesses do Império
romano (como rei de um “reino não deste mundo”, segundo a expressão de Jesus). Para
o público leitor, Jesus permaneceu o rei dos judeus, e não só dos judeus, como sugere
também a inscrição em três línguas.
A repartição das vestes de Jesus (19,23s.)
Nos sinópticos, a repartição das vestes de Jesus segue imediatamente depois da
crucificação e é narrada em poucas palavras (6 a 12 palavras). Em João, a cena
encontra-se depois daquela do título da cruz e é desdobrada bem amplamente (67
palavras). Assim aparece imediatamente a importância da cena aos olhos do quarto
evangelista. No início e no fim do texto são mencionados os “soldados” como atores,
formando-se uma inclusão que amarra a breve secção.
19,23a-f
Nos sinópticos, o sujeito da ação está implícito no contexto anterior. Em João, os
soldados são explicitamente mencionados como atores. Assim se estabelece uma
conexão com a penúltima cena, em que se relatou a crucificação de Jesus. Nos
sinópticos, a repartição das vestes de Jesus é relatada com as palavras do Sl 22,19. João,
nesse momento, distingue entre o relato e o cumprimento da Escritura. Inicialmente,
descreve com exatidão, passo a passo, a ação dos soldados, distinguindo entre a roupa
de cima (ta himátia) e a túnica do corpo (khitṓn). Segundo João, quatro soldados
participam da execução de Jesus. Relata que eles primeiro dividem as vestes de cima em
quatro partes e depois tomam a túnica. Esta distinção falta nos sinópticos, mais
provavelmente provém do paralelismo no Sl 22,19: “Dividiram entre si minhas vestes e
tiraram a sorte sobre minha túnica”.
19,23g-24
A túnica de Jesus é caracterizada no pormenor: é “sem costura”, “uma peça só de
cima a baixo”. A expressão “de cima” (ánōthen) encontra-se também alhures em João e
se refere normalmente à origem “de cima/do alto”: cf. o novo nascimento “de cima”, Jo
3,3.7, e a origem do revelador “do alto”, Jo 3,31. A autoridade de Pilatos vem “do alto”
(Jo 19,11). A unidade da túnica de Jesus poderia aludir à unidade do corpo de Jesus e de
sua Igreja. Assim o interpretaram os Padres da Igreja e assim o interpreta, recentemente,
75
Cf. M. DE BOER, Narrative Function.
Beutler D -138
A. A. Culpepper76, que, de confissão batista, não é suspeito de copiar acriticamente
opiniões dos Santos Padres. Com a decisão de tirar a sorte sobre a túnica de Jesus, os
soldados cumprem literalmente as palavras de Sl 22,19, ou seja, do salmo da Paixão por
excelência.
Para o tema da unidade em João cabe observar ainda outros lugares, como a
predição da única grei em torno do único pastor, Jo 10,16, a morte de Jesus e reunião
dos filhos de Deus dispersos, Jo 11,52, a oração de Jesus pela unidade dos seus, Jo 17, e
o fato de que, na pesca milagrosa, a rede com os 153 grandes peixes (que devem
significar igrejas) não se rasga (Jo 21,11).
O legado de Jesus (19,25-27)
A cena do “legado de Jesus” ocupa no relato joanino da paixão, morte e sepultura
de Jesus um lugar central (Jo 19,16c-42). Aceitamos que o relato se divide em sete
cenas, das quais esta cena é a quarta, a cena central.
Poucas secções no Novo Testamento em geral e no Evangelho segundo João em
particular têm conhecido interpretações tão diversificadas. Na história da Igreja
prevalece, desde os Santos Padres, uma interpretação mariana. Essa visão está presente
até hoje principalmente na exegese católica, notavelmente na exegese de língua
francesa. Em primeiro plano está então que Jesus confia à sua mãe o Discípulo Amado,
como representante da futura comunidade77, ou que ele confia sua mãe ao discípulo, que
a acolhe “junto de si” 78.
Na exegese fora do espaço católico, e também com católicos em Lovaina ou na
Alemanha, encontra-se um modelo que prefere ver o Discípulo Amado como centro da
cena. Estes autores baseiam-se na constatação de que, no fim do relato, o discípulo
acolhe consigo a mãe de Jesus, não o contrário. Uma visão equilibrada nos é fornecida
numa contribuição de Jean Zumstein79. Este autor suiço não opõe à interpretação
espiritual da tradição uma interpretação literal, mas descobre no texto uma dimensão
simbólica que não se deduz, sem mais, da tradição. Segundo Zumstein, nossa secção
pertence a uma série de textos simbólicos nos quais as palavras têm um sentido mais
profundo, fundamentado no sentido literal. Neste sentido, a acolhida da mãe pelo
Discípulo Amado tem um significado para a comunidade pós-pascal: o Discípulo
Amado torna-se o ponto de referência não só para a família de Jesus, mas também para
a nascente família dos fiéis.
Esta visão confirma-se a partir do contexto de Jo 19,25-27. Em todas as secções
que precedem ou seguem nosso texto, percebe-se uma dimensão simbólica. A
crucificação mostra Jesus no meio de dois outros crucificados. A inscrição ressalta sua
dignidade régia. A repartição de suas vestes lembra a união da comunidade. A sede de
Jesus moribundo é, afinal, sua sede da salvação dos homens. Sangue e água que fluem
de seu lado significam os dons pós-pascais da salvação. Seu sepultamento num sepulcro
novo mostra novamente sua majestade e dignidade. Também o contexto mais amplo nos
convida a entender teológica e simbolicamente o texto em questão. O Discípulo Amado,
que repousou sobre o peito de Jesus, tem acesso imediato ao seu senhor. Ele conhece os
segredos de Jesus e é o único a saber quem trairá Jesus. Ele acompanha Jesus no
76
Cf. R. A. CULPEPPER, Theology, 27s.
Cf. I. DE LA POTTERIE, La parole.
78
Cf. ID., Et à partir.
79
J. ZUMSTEIN, Joh 19,25-27.
77
Beutler D -139
caminho da cruz e chegará como primeiro entre os discípulos à fé pascal. Assim não é
por acaso que ele se encontra ao pé da cruz, mas de acordo com seu papel no contexto
narrativo do Evangelho segundo João. Nele se desenha o futuro círculo dos discípulos e
nele este círculo terá seu ponto de orientação.
19,25
O v. 25 introduz um grupo de mulheres que estão ao pé da cruz. Há alguma
diferença com a apresentação dos sinópticos (Mc 15,40; Mt 27,55s.; Lc 23,49)80. João
menciona a presença das mulheres antes da morte de Jesus, os sinópticos, depois.
Segundo os sinópticos, as mulheres observam a morte de Jesus de longe, em João
encontram-se na proximidade imediata da cruz. Há também diferenças na composição
do grupo. A maioria dos comentadores recentes veem em João quatro mulheres ao pé da
cruz (em paralelo com os quatro soldados que repartem entre si as vestes de Jesus, v.
23). São: a mãe de Jesus, a irmã da mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena. Como já
nas bodas de Caná, a mãe aparece em adição a um círculo de discípulos. Com ela, é
introduzido também o Discípulo Amado. A presença da mãe de Jesus neste momento é
da maior importância. Ela está presente nos momentos decisivos da vida de Jesus, no
início de sua vida pública e no fim. Em ambos os casos ela é chamada de “mulher”, e
menciona-se a “hora” de Jesus. Sua presença emoldura, pois, toda a vida de Jesus81.
19,26-27
Os dois versículos que agora se seguem devem ser lidos em conjunto. Jesus se
volta, desde a cruz, primeiro para sua mãe, que ele chama de “mulher”, como em Jo 2,4,
em lhe confia o Discípulo Amado. Se tivéssemos só este versículo, o sentido
mariológico da cena seria patente. Segue-se, porém, um segundo versículo, no qual
Jesus confia sua mãe ao Discípulo Amado. Segundo este versículo, o Discípulo Amado
toma a mãe de Jesus “consigo”. Esta expressão (eis tà ídia) deu azo a diversas
interpretações. O sentido se conclui a partir do direito israelita. A mãe que perde seu
último filho não tem mais rede social. Assim, ela necessita uma pessoa que a adote,
normalmente algum outro parente. Em nosso texto é o Discípulo Amado que assume
essa função82.
A cena tem, evidentemente, também uma dimensão simbólica. O grupo dos
discípulos e a família de Jesus se encontram e começam a unir-se. Não raramente se
remete, aqui, à tradição sinóptica de Mc 3,31-35, segundo a qual os irmãos de Jesus e
sua mãe o procuram para lhe falar. Ali, Jesus exprime certo distanciamento em relação à
sua família e aponta como sua mãe e irmãos aqueles que se reúnem em torno dele para
fazer a vontade de Deus. No Evangelho segundo João os irmãos de Jesus têm um papel
subordinado. Nas bodas de Caná, eles estão, sem mais, presentes (Jo 2,12) e, antes da
partida de Jesus para a festa das Tendas, provocam-no para ir à festa a fim de que
manifeste ali sua dignidade com sinais. O evangelista não hesita em ver nisso uma
prova de sua falta de fé (Jo 7,3-5). Assim, a família de Jesus ainda não está integrada no
grupo dos discípulos.
A cena de Jo 19,25-27 pode servir, portanto, para conectar os dois grupos entre
eles. A família de Jesus, representada pela mãe, é confiada ao Discípulo Amado. Ele
80
Cf. M. SABBE, Johannine Account.
V. KOPERSKI, The Mother of Jesus, vê uma moldura constituída pelo papel de Maria no início do
evangelho (Jo 2,1-12) e de Maria Madalena no fim, no relato pascal Jo 20,1-2.11-18.
82
Cf. F. NEIRYNCK, Eivj ta. i;dia; ID., Short note.
81
Beutler D -140
reconhecerá na mãe de Jesus também a sua mãe, como ela reconhece no Discípulo
Amado o seu filho, no lugar de Jesus, que entrega a sua vida para dá-la novamente.
A morte de Jesus (19,28-30)
A narrativa da morte de Jesus segue a visão joanina. Uma primeira observação
mostra que não o relato da morte de Jesus, mas o legado de Jesus está no centro da
composição Jo 19,16c-42. Na descrição dos últimos momentos na vida de Jesus, o
evangelista mostra a mesma orientação teológica que se deixa observar, desde o início
do relato da Paixão, na cena da detenção. Jesus se manifesta em sua dignidade. No
Quarto Evangelho, ele morre, não como nos sinópticos com um grito de lamento porque
Deus o abandonou, mas com a expressão de sua consciência de ter levado a termo sua
obra: “Está consumado”.
19,28
O texto começa com uma fórmula de introdução típica de João: “depois disso”
(metà toûto) e com uma referência ao “saber” de Jesus acerca do que o esperava, o que é
também um elemento típico no começo de outras secções do relato joanino da Paixão
(cf. 13,1; 18,4). Jesus entra no seu sofrimento e também na sua hora final em plena
consciência daquilo que o espera. Neste momento ele sabe que “tudo já está
consumado”. O verbo se encontra nos vv. 28 e 30 e significa, no perfeito da voz
passiva, que algo “tem sido levado a termo”. Discute-se a que se liga a parte da frase
“para que se cumprisse a Escritura” (hína teleiōthḗi hē graphḗ). Segundo alguns, liga-se
à palavra seguinte de Jesus, “tenho sede”. Parece, contudo, melhor ligar a expressão ao
contexto anterior. A Escritura inteira fala de Jesus e anuncia-o. Em Jesus a Escritura
alcança seu cumprimento. Não é só um ou outro traço da vida de Jesus que se encontra
predito na Escritura, mas o próprio Jesus, com sua missão, é predito nela83.
O verbo teleióō (“levar a termo, consumar”) encontra-se quatro vezes no
Evangelho segundo João e exprime a “consumação” da obra que Deus encomendou a
Jesus (Jo 4,34; 17,4) ou das “obras” do Pai (Jo 5,36). Segundo Jo 17,23 os discípulos
devem ser “consumados” na unidade. No presente versículo, Jo 19,28, encontra-se o
perfeito passivo de teléō para expressar o cumprimento da Escritura num sentido
eminente.
Que significa a exclamação “Tenho sede”? Nos sinópticos encontra-se, neste
lugar, apenas a sede física de Jesus, com a oferta de vinagre ou vinho azedo. Em João, a
sede tem sentido espiritual e teológico. É a sede de que Jesus fala no diálogo com a
samaritana: “Dá-me de beber” (Jo 4,7). Assim como o alimento de Jesus é fazer a
vontade do Pai e levar a termo sua obra (Jo 4,34), assim também a sua sede. Só assim
“correrão rios de água viva do seu interior” (Jo 7,38). Discute-se a que texto da
Escritura alude a palavra de Jesus. Alguns pensam em Sl 69,22, outros em Sl 22,16.
Também é possível que seja uma referência a Sl 42,1, visto a significância desse salmo
em outras cenas da segunda parte do Evangelho segundo João (cf. Jo 11,33.38; 12,27;
13,21; 14,1ss.)84.
19,29
A ação dos soldados remonta à tradição sinóptica (Mc 15,23 par.), que se refere ao
Salmo 69,22. Pode-se ver na ação dos soldados um último exemplo de “ironia joanina”.
83
84
Cf. W. KRAUS, Vollendung; J. BEUTLER, Gebrauch; H.-J. KLAUCK, Geschrieben.
Cf. J. BEUTLER, Psalm 42/43.
Beutler D -141
Em sua sede, Jesus recebe somente vinagre. Ninguém entende sua sede verdadeira. O
ramo de hissopo com o qual lhe alcançam o vinagre não serve muito para esse fim, pois
é uma planta pequena e de ramos flexíveis. A planta parece ter um sentido simbólico,
pois pertence à celebração pascal: “Tomai alguns ramos de hissopo, molhai-o no sangue
que estiver na bacia, e marcai a travessa da porta e suas colunas laterais com o sangue
que estiver na bacia” (Ex 12,22; cf. 12,7). Assim, mais uma vez, a morte de Jesus é
relacionada com a páscoa e o cordeiro pascal.
19,30
Ao contrário do que dizem os sinópticos (Mc 15,23), Jesus não recusa o vinagre.
Quer provar a amargura do sofrimento até o fim. Com este gesto, Jesus leva a termo sua
obra e missão. Diz: “Está consumado”; e, com estas palavras, morre85. Discute-se, nos
estudos recentes, o sentido do sintagma que exprime a morte de Jesus: parédōken tò
pneûma. Muitas vezes é entendido no mesmo sentido que os termos usados nos
sinópticos: exépneusen (Mc 15,37; Lc 23,46) ou aphêken to pneûma (Mt 27,50), “ele
expirou (o espírito)”86. Mas o verbo com que João descreve o último momento de Jesus
é outro: parédōken tò pneûma. O verbo paradídonai significa “entregar” ou “trair”;
aqui, evidentemente, trata-se do primeiro sentido.
Temos novamente uma releitura joanina da tradição sinóptica. Jesus não “expira
seu espírito”, mas “entrega o Espírito”, no sentido pleno joanino. Visto que, em João,
Sexta-Feira Santa, Páscoa, Ascensão e Pentecostes coincidem, vemos aqui antecipada a
comunicação do Espírito no dia da Páscoa (Jo 20,22s.), que corresponde à descida do
Espírito em Pentecostes segundo os Atos dos Apóstolos (At 2)87. No momento da morte
de Jesus realiza-se sua “hora”. Ele é enaltecido à direito do Pai e pode, então, conceder
aos seus o dom do Espírito. É neste o sentido que o evangelista, em 7,38s, comentou os
rios de água viva: “Ele disse isso falando do Espírito que haviam de receber os que
acreditassem nele; pois não havia o Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido
glorificado” (Jo 7,39).
A abertura do lado de Jesus (19,31-37)
A morte de Jesus não é descrita, em João, como um evento cósmico; a terra não
treme, a cortina do Templo não se rasga em duas partes, os mortos não saem dos
sepulcros, nem aparecem a muitos na Cidade Santa88. Nem ouvimos a confissão do
centurião ao pé da cruz. Os acontecimentos depois da morte de Jesus são descritas por
João em dois momentos, distribuídos sobre dois grupos de pessoas; de um lado, os
“judeus”, Pilatos e os soldados romanos (vv. 31-17), do outro lado, José de Arimateia e
Nicodemos (vv. 38-42). A primeira cena serve para constatar a morte real de Jesus com
suas consequências físicas e espirituais; a segunda descreve o sepultamento solene por
dois de seus adeptos.
Sobretudo a primeira cena é um exemplo clássico para a crítica literária no sentido
de investigação de fontes e redações. Um dos últimos representantes dessa maneira é
85
Cf. R. BERGMEIER, Tete,lestai.
Assim a Einheitsübersetzung de 1980: “Er gab seinen Geist auf [Ele ‘desistiu de’ seu espírito]”.
87
Alegando os Padres gregos, opõe-se à interpretação pneumatológica H.-U. WEIDEMANN, Der Tod Jesu
388; DERS., Der Gekreuzigte, 573s. Contudo, do fato de que em João pneu/ma poderia ser equivalente de
yuch, (“alma”) não segue que deve ser necessariamente assim. Faz sentido ligar o dom do Espírito em
João à “hora” de Jesus.
88
Na Johannespassion de J. S. Bach o autor do texto completou aqui João com citações de Mateus,
porque o público de Leipzig assim esperava.
86
Beutler D -142
Jürgen Becker89. Ele distingue em nossa narrativa duas fases da reelaboração do
hipotético relato pré-joanino da paixão, morte e ressurreição de Jesus: a mão do
evangelista e a da “redação eclesial”. Na realidade, pouco remonta ao evangelista, que
segue principalmente o fio narrativo do relato da paixão pré-joanino. A menção ao
testemunho da testemunha ocular em Jo 19,34.35 vem da redação eclesial, que, reagindo
às incipientes tendências gnósticas, ressalta a morte física de Jesus e realça, em função
da fé autêntica da comunidade, o testemunho do Discípulo Amado (cf. Jo 21,24). Para
muitos autores, estes versículos têm também um sentido sacramental, considerado típico
da redação eclesial.
Nos últimos anos passou-se a dar menos importância à separação do texto em
camadas e a considerá-lo em sua unidade final. O aspecto diacrônico se mostra fecundo
especialmente no estudo da relação entre as duas citações da Escritura nos vv. 36-37 e o
texto joanino.
19,31
Como já no início do processo de Jesus (cf. Jo 18,28), os judeus se mostram
preocupados com a observância da Lei. Segundo Dt 21,23, os cadáveres dos pendurados
não podiam ficar pendurados numa árvore ou estaca durante a noite e deviam, antes da
noite, ser afastados e sepultados. De acordo com o texto joanino havia ainda uma
premência complementar: o dia seguinte seria um sábado e “grande dia de festa” (cf. Jo
7,37). Por isso, os “judeus” pedem a Pilatos que mande quebrar as pernas de Jesus e dos
dois outros crucificados, para assim acelerar a morte.
19,32
Pilatos atende ao pedido dos “judeus”, e os soldados quebram as pernas dos dois
que foram crucificados com Jesus. O texto produz um ritardando, intensificando no
leitor a expectativa quanto ao que vai acontecer com Jesus. O relato passa pelos
“crucificados com ele” antes de chegar até o “Crucificado”, que é o centro da atenção
das leitoras e leitores.
19,33
Jesus, porém, já está morto e, por isso, os soldados não lhe quebram as pernas. De
novo o leitor se pergunta o que vai acontecer com Jesus.
19,34
A resposta vem de imediato. Os soldados não quebram as pernas de Jesus, mas
um deles pega uma lança e golpeia o lado de Jesus. Imediatamente saem sangue e água.
Este fato, evidentemente, tem diversas dimensões de compreensão. Fisicamente,
demonstra que não se pode negar a morte de Jesus. Num nível mais profundo, a água e
o sangue que fluem do lado de Jesus podem ter um sentido simbólico, mas os
comentadores não são unânimes a respeito desse sentido.
Diversos comentadores veem neste fato uma referência simbólica aos sacramentos
do batismo (água) e da Eucaristia (sangue). Esta interpretação, ao lado de outros
sentidos simbólicos, já se encontra nos Santos Padres90. Mas restam algumas dúvidas.
Segundo a sequência dos sacramentos esperar-se-ia “agua e sangue” em vez de “sangue
e água”. Aliás, o sangue não é usado como símbolo da Eucaristia. Em 1Jo 5,6s. fala-se
89
90
Cf. J. BECKER II 704-712
Cf. E. C. HOSKYNS 636-638, e.o.
Beutler D -143
das três testemunhas: “Espírito, agua e sangue”, o que se refere antes à vinda de Jesus
não só na água (seu batismo), mas também no sangue (derramado na cruz).
Por tais razões, J. P. Heil91 lembra, neste lugar, o papel da água no Evangelho
segundo João, desde o batismo de João até o batismo que Jesus propicia, conforme
anunciado pelo Batista: o batismo no Espírito (Jo 1,33). O tema volta no diálogo entre
Jesus e Nicodemos, em Jo 3,1-10, e, em outra forma, no convite de Jesus para vir até ele
e beber–convite interpretado pelo evangelista como anúncio do dom do Espírito (Jo
7,37-39). A isso acresce que Jesus morre enquanto “entrega o Espirito” (Jo 19,30). Este
Espirito pode ter encontrado sua expressão sensível na água que jorra do lado aberto de
Jesus.
19,35
Neste lugar introduz-se uma testemunha. Os comentadores não são concordes
sobre se seu testemunho se refere ao fato mencionado por último, o fluxo de sangue e
água do lado de Jesus, ou à inteira cena da quebra das pernas e da abertura do lado de
Jesus. Merece atenção a opinião de J. Becker92, segundo o qual o testemunho se refere à
cena inteira. O objeto direto do testemunho seria a morte de Jesus; o indireto, o fluxo de
sangue e água do seu lado. Como dissemos acima, uma interpretação sacramental da
cena não é garantida.
Todos os comentaristas remetem aqui a Jo 21,24, mas a semelhança dos dois
textos não permite inferir que sejam da mesma mão. Em Jo 21,24 aparece com clareza
um grupo eclesial que garante a confiabilidade da testemunha. Em Jo 19,35 é o narrador
que garante a confiabilidade da testemunha, que também assegura que a testemunha é
consciente de sua confiabilidade. Seu testemunho é narrado “para que creiais”. Também
esta intencionalidade, voltada para o público leitor, não se encontra em 21,24, mas sim,
em 20,31. Assim há razões para duvidar que 19,35 e 21,24 venham da mesma mão.
19,36
Como muitas vezes no Evangelho segundo João (cf. Jo 18,9; 19,24) a cena se
encerra com uma referência à Escritura, no caso, uma referência dupla. A origem da
primeira citação já foi proposta. Alguns autores pensam, ao lado de Ex 12,10.46 LXX e
Nm 9,12, também em Sl 34,21, onde é prometido ao justo que nenhum de seus
membros será quebrado93. João pode ter combinado as duas tradições para falar do
destino de Jesus.
19,37
No v. 37 acresce outro testemunho escritural. O texto se refere claramente a Zc
12,10. A forma do texto veterotestamentário não é clara. No texto massorético não é
claro se a casa de Davi e os habitantes de Jerusalém olham para um traspassado ou para
Deus, que eles traspassaram (dependendo da vocalização de ’ly: ’eley ou ’elay). A
Septuaginta evita o problema e lê como modelo raqadu (katōrkhḗsanto), “eles
dançaram”, em vez de daqaru. Áquila, Símaco e Teodocião estão mais próximos do
texto massorético94. João e a primeira tradição cristã leem unanimemente o texto que
temos em Jo 19,37, que constitui um testimonium cristão. Segundo Sandra Hübenthal95,
91
J. P. HEIL, Blood and Water.
Cf. J. BECKER II 708.
93
Cf. M. J. J. MENKEN, Quotations, 147-166.
94
Cf. ibid., 167-185.
95
S. HÜBENTHAL, Transformation, 215.
92
Beutler D -144
o texto continua “aberto” e foi “preenchido” pela primeira comunidade cristã. A casa de
Davi e os hierosolimitanos olharam para aquele que traspassaram. No lugar deles vem a
comunidade dos leitores, que olha para o crucificado e encontra a salvação (cf. Jo
3,14s.).
O sepultamento de Jesus (19,38-42)
Ambas as cenas Jo 19,31-37 e 19,38-42 têm construção semelhante96: um grupo
de pessoas ou uma única pessoa dirigem-se a Pilatos e pedem algo a respeito do corpo
de Jesus (eperṓtēsa(e)n ton pilâton ... hína), no primeiro caso, os “judeus”, no segundo,
José de Arimatea. Em continuidade encontram-se referências à crucificação (os
“crucificados com ele” no v. 32, o lugar onde Jesus “fora crucificado” no v. 41). No
início da secção (v. 31) e no fim encontra-se uma referência ao “dia de preparação”. A
secção dos vv. 38-42 divide-se em duas subsecções: a iniciativa de José de Arimatea,
que pede a Pilatos o corpo e o obtém (v. 38), e o sepultamento de Jesus por José de
Arimatea e Nicodemos (vv. 39-42).
19,38
Com a usual transição “depois disso” (metà taûta), João passa para a unidade
seguinte e introduz um personagem novo: José de Arimateia. Este remonta à tradição
sinóptica (cf. Mc 15,42-46). Segundo Marcos, José de Arimateia é um membro
respeitado do Sinédrio, segundo Mateus (27,57), além disso, um homem rico e discípulo
de Jesus, segundo Lucas (23,50), um homem bom e justo. João retoma o motivo de
Mateus, de que José era discípulo, e modifica-o: ele era discípulo, mas às escondidas,
“por medo dos judeus”. Tais discípulos clandestinos de Jesus, também entre os
membros do Sinédrio, são mencionados em outros lugares de João (Jo 12,42s.). Mas
agora, José de Arimateia mostra sua coragem (cf. Mc 15,43 tolmḗsas).
19,39
Nesta altura, Nicodemos entra em cena. É introduzido por João com as mesmas
palavras que José de Arimateia: ele “veio” (êlthen oûn ... êlthen dé). Nicodemos é
caracterizado a partir de Jo 3,1s.: aquele que “anteriormente tinha ido a Jesus de
noite”97. Nesta referência retrospectiva pode-se reconhecer também uma valoração:
aquele que uma vez foi a Jesus de noite por medo de ser observado, agora em pleno dia
se dispõe a cooperar com a sepultura de Jesus. No meio entre essas duas cenas ocorreu
outra, quando Nicodemos no sinédrio intercedeu a favor de Jesus e exigiu que se
aplicasse devidamente a Lei–correndo risco de ser considerado como um desses galileus
ou como discípulo de Jesus (Jo 7,50-52). Assim, Nicodemos pode ser considerado um
exemplo para o público leitor. Como ele, também as leitoras e leitores deverão chegar a
uma fé em Jesus que eles professam sem medo, mesmo correndo risco98.
O motivo do embalsamamento de Jesus parece antecipado da cena das mulheres
que, segundo Mc 16,1, vão ao sepulcro para embalsamar Jesus. Por outro lado o motivo
é preparado pela cena da unção de Jesus na casa de Lázaro (Jo 12,1-8) ou na casa de
Simão, o leproso (Mc 14,3-9; Mt 26,6-13; cf. Lc 7,36-50). A monumental quantidade de
mirra e aloés (umas cem libras) mostra a generosidade de Nicodemos e, sobretudo, a
dignidade de Jesus. Ele não é enterrado como um João Ninguém, mas como um rei ao
qual cabe a maior honra.
96
Cf. ibid., 166.
Cf. J.-M. AUWERS, La nuit; P. DSCHULNIGG, Nikodemus.
98
Cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
97
Beutler D -145
19,40
Segundo João, Jesus é embalsamado depois de sua morte, antes de sua deposição
e do fechamento do sepulcro. Os dois homens o envolvem em faixas de linho (othónia),
um motivo que se encontra também em Lc 24,12 e Jo 20,6s., na cena do sepulcro vazio
de Jesus. As leitoras e leitores se lembrarão também de Lázaro, que saiu do sepulcro
amarrado nas faixas. Para João, Jesus embalsamado e envolvido em faixas é realmente
morto e, conforme critérios humanos, não voltará mais ao meio dos vivos.
19,41
O lugar do enterro é num “jardim”. Os leitores se lembrarão do início do relato da
Paixão: Jesus é detido num “jardim”. Assim o motivo do jardim emoldura o relato da
Paixão como um todo (Jo 18,1; 19,41). Alguns intérpretes veem neste motivo uma
alusão ao jardim do Éden ou, antes, ao jardim mencionado no Cântico dos Cânticos.
Esta intuição ganha mais peso quando Maria Madalena vê em Jesus um “jardineiro”
(kēpourós, Jo 20,15, cf. ali).
O fato de Jesus ser sepultado num sepulcro novo no qual ninguém tinha sido
sepultado sublinha, novamente, o seu valor. Só uma pessoa de destaque podia gozar de
tal luxo.
19,42
A narrativa termina com o sepultamento de Jesus e com uma nota de tempo e
lugar. Entre estas duas notas existe correlação: Jesus deve ser sepultado antes do início
do sábado, que é ao mesmo tempo uma grande festa dos judeus, e o fato de o sepulcro
se encontrar perto do lugar da crucificação facilita isso. Pela última vez, o público leitor
é confrontado com as duas maneiras em que se pode explicar a Lei: por um lado, ela é
observada até pelos adeptos de Jesus; por outro lado, ela é também levada à plenitude
(cf. Jo 19,28-30). O relato termina com o nome de Jesus, como também começou com
este nome (cf. Jo 18,1).
III
O evangelista nos transmite a imagem da elevação e da dignidade de Jesus até a
execução, morte e sepultamento99. Por um lado, Jesus enfrenta sua via crucis
autonomamente e sem ajuda; por outro lado, também seus adversários, como Pilatos e
os soldados, contribuem para realçar sua dignidade, como aparece em sua crucificação
no meio de dois outros e no título da cruz. Jesus morre sem grito de desespero, em
fidelidade vivida até o fim à obra da salvação que o Pai lhe encomendou. Ele é
embalsamado e sepultado como um rei. Ninguém pode tirar-lhe a dignidade.
Antes da morte de Jesus mencionam-se apenas as quatro mulheres ao pé da cruz e
o Discípulo Amado. A estes diz respeito o legado de Jesus, no qual se prefigura um
legado à comunidade, especialmente na mãe de Jesus, que é confiada ao discípulo que o
acolhe consigo. Outros discípulos saem da sombra só depois da morte de Jesus. José de
Arimateia e Nicodemos demonstram coragem diante do representante do poder estatal
99
Esta feição é realçada por J. FREY, Edler Tod. Outras feições do relato joanino da Paixão são, segundo
Frey, a morte eficaz, a morte substitutiva e a morte salvífica. Remetemos à abundante literatura alegada
por Frey.
Beutler D -146
romano. Talvez eles tenham um significado em vista do futuro, pois a comunidade
cristã tinha de temer mais o poder estatal romano do que o judaísmo100.
4. O relato da Páscoa. As aparições de Jesus aos discípulos
(20,1-31)
20 1 No primeiro dia da semana, bem de madrugada, quando ainda estava escuro,
Maria de Mágdala foi ao túmulo e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo. 2 Ela
saiu correndo e foi se encontrar com Simão Pedro e com o outro discípulo, o qual Jesus
amava. Disse-lhes: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram”.
3
Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo. 4 Os dois corriam juntos, e o
outro discípulo correu mais depressa, chegando primeiro ao túmulo. 5 Inclinando-se,
viu ali as faixas de linho, mas não entrou. 6 Simão Pedro, que vinha seguindo, chegou
também e entrou no túmulo. Ele observou as faixas de linho aí, 7 como também o lenço
da cabeça, que não estava com as faixas, mas enrolado num lugar à parte. 8 O outro
discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também, viu e creu. 9 De fato,
ainda não tinham compreendido a Escritura segundo a qual ele devia ressuscitar dos
mortos. 10 Os discípulos, então, voltaram para casa.
11
Maria tinha ficado perto do túmulo, do lado de fora, chorando. Enquanto
chorava, inclinou-se para olhar dentro do túmulo. 12 Ela enxergou dois anjos, vestidos
de branco, sentados onde tinha sido posto o corpo de Jesus, um na cabeceira e outro
nos pés. 13 Os anjos perguntaram: “Mulher, por que choras?” Ela respondeu:
“Levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram”. 14 Dizendo isto, Maria virou-se
para trás e enxergou Jesus, de pé. Ela não sabia que era Jesus. 15 Jesus perguntou-lhe:
“Mulher, por que choras? Quem procuras?” Pensando que fosse o jardineiro, ela
disse: “Senhor, se foste tu que o levaste, dize-me onde o colocaste, e eu irei buscá-lo”.
16
Então, Jesus falou: “Mariame!” Ela voltou-se e exclamou, em hebraico: “Rabuni!”
(que quer dizer: Mestre). 17 Jesus disse: “Não me segures, pois ainda não subi para
junto do Pai. Mas vai dizer aos meus irmãos: estou subindo para junto do meu Pai e
vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. 18 Então, Mariame de Mágdala foi anunciar aos
discípulos: “Eu vi o Senhor”, e contou o que ele lhe tinha dito.
19
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, os discípulos estavam
reunidos, com as portas fechadas por medo dos judeus. Jesus entrou e pôs-se no meio
deles. Disse: “A paz esteja convosco”. 20 Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os
discípulos, então, se alegraram por verem o Senhor. 21 Jesus disse, de novo: “A paz
esteja convosco. Como o Pai me enviou também eu vos envio”. 22 Então, soprou sobre
eles e falou: “Recebei o Espírito Santo. 23 A quem perdoardes os pecados, serão
perdoados; a quem os retiverdes, ficarão retidos”.
24
Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando
Jesus veio. 25 Os outros discípulos contaram-lhe: “Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse:
“Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas
dos pregos, se eu não puser a mão no seu lado, não crerei”.
26
Oito dias depois, os discípulos encontravam-se reunidos na casa, e Tomé
estava com eles. Estando as portas fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse:
“A paz esteja convosco”. 27 Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as
100
Cf. R. CASSIDY, Fourth Gospel.
Beutler D -147
minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. Não sejas incrédulo, mas
crê!” 28 Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” 29 Jesus lhe disse: “Creste
porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem ter visto!”
30
Jesus realizou ainda muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão
escritos neste livro. 31 Mas estes estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o
Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida, em seu nome.
I
Na explicação de Jo 20 mostra-se novamente o prisma diversificado dos métodos
e das abordagens hermenêuticas na exegese joanina. Na escola “clássica” da Europa
central prevalece, até o segundo volume do comentário de J. Becker (3ª ed. 1991), a
abordagem diacrônica. Becker distingue entre um relato pré-joanino da paixão, morte e
ressurreição de Jesus, a redação pelo evangelista e uma continuação pela assim chamada
“redação eclesial”101. A maioria do capítulo remontaria ao relato pré-joanino (as
mulheres e Maria Madalena junto ao sepulcro, a visita de Pedro ao sepulcro, o encontro
entre Jesus e Maria Madalena). A figura do Discípulo Amado seria uma inserção da
“redação eclesial”. Do evangelista seriam somente algumas feições redacionais e a cena
de Jo 20,19-23, parcialmente construída sobre a secção dos discursos de despedida Jo
14,15-24.
Outros autores examinam a relação entre o texto de João e a tradição sinóptica.
Para a assim chamada “escola de Lovaina”, esta tradição é suficiente como base para o
texto joanino102; isso se confirmaria pela autenticidade textual de Lc 24,12 (Pedro
correndo ao sepulcro)103. Esta visão se impõe sempre mais nestes últimos anos e goza
de maior plausibilidade que o método da análise das fontes ao modo de J. Becker, o
qual não dispõe de documentos conhecidos e precisa primeiro reconstruí-los.
Os estudos sobre Jo 20 na época recente privilegiam, via de regra, uma
abordagem sincrônica do texto. J. Zumstein104 interpreta Jo 20 como caminho da fé para
as leitoras e leitores. Narrativamente, o tema é a fé pascal. As pessoas agentes no texto
representam diversos modos de acesso à ressureição de Jesus. Nisso se percebe uma
progressão desde a mera busca do corpo de Jesus ao encontro com ele, inicialmente com
base na interpretação certa do um sinal, depois, na compreensão da Escritura e
finalmente no encontro face a face. No fim está a fé que não mais se baseia no encontro
visual, mas na palavra do anúncio (Tomé). As leitoras e leitores se reconhecerão
sobretudo em Tomé105.
Martinus de Boer106 pergunta pela conexão entre a despedida de Jesus e sua
ressurreição. Segundo De Boer, todos os textos em Jo que falam de sua despedida se
referem à subida para junto do Pai e, portanto, à sua ressurreição. A única exceção são
os textos que falam de seu “enaltecimento” e “glorificação”, que visam claramente ao
“enaltecimento” na cruz e, simultaneamente, ao enaltecimento junto do Pai. Antes já foi
mostrado que este modo de falar se refere ao quarto cântico do Servo (Is 52,13 LXX).
Segundo De Boer, estes textos não são característicos da linguagem joanina e seriam
101
J. Becker II 714-720; a mesma divisão em camadas é pressuposta em ID., Auferstehung, 62-79.
Cf. R. BIERINGER, “They Have Taken away”; ID., “I Am Ascending”.
103
Cf. D. ZELLER, Ostermorgen.
104
J. ZUMSTEIN, Narratologische Lektüre.
105
Semelhante caminho de fé descreve S. M. SCHNEIDERS, Touching the Risen Jesus.
106
M. DE BOER, Jesus’ Departure.
102
Beutler D -148
secundários em comparação com os outros, que interpretam a despedida no sentido do
enaltecimento junto ao Pai. Mas esta proposta não convence, pois os textos que falam
do destino de Jesus no sentido do Servo de Javé devem ser considerados como
plenamente integrados, literária e teologicamente, no Evangelho segundo João.
A leitura de Jo 20 por Kelli S. O’Brien107 se assemelha à de J. Zumstein, mas ela
vê no Discípulo Amado uma figura pálida, que não toma posição, à diferença de Maria
Madalena. A autora provavelmente esquece que o Discípulo Amado em nossa perícope
representa antes a fé pascal da comunidade leitora e não tanto um exemplo de fé vivida.
Como é construído o capítulo? Ao contrário dos capítulos 18–19, a divisão do
capítulo 20 ainda não conta com a unanimidade dos comentadores. Todos veem uma
articulação em duas partes principais: os fatos em torno do sepulcro vazio na manhã da
Páscoa, em 20,1-18, e os encontros de Jesus com os discípulos no cenáculo, nos vv. 1929, seguidos do primeiro final de João em 20,30-31 (antes do epílogo Jo 21). Mas a
subdivisão dessas duas partes principais conta com diversas propostas. Rudolf
Schnackenburg108 divide Jo 20,1-8 em duas cenas: vv. 1-10 e 11-18. Raymond Brown109
vê aqui uma única cena com dois episódios. R. Schnackenburg divide também 20,19-29
em duas cenas, vv. 19-23 e 24-28. R. E. Brown vê aqui novamente uma única secção
com dois episódios. L. Schenke110 vê em Jo 20, antes do final, cinco cenas: vv. 1-10.1117.18.19-23 e 24-29. Para mais clareza, convém aplicar a Jo 20 também a grade da
análise narrativa articulada segundo as ópticas de tempo, lugar, agentes e ação. Na base
desses critérios distinguem-se em Jo 20 seis cenas:
20,1-2
20,3-10
20,11-18
20,19-23
20,24-25
20,26-29
20,30-31
Maria Madalena encontra o sepulcro vazio e informando Pedro e
o Discípulo Amado;
Pedro e o Discípulo Amado vão ao sepulcro (referência à
Escritura)
Maria Madalena junto ao sepulcro: reconhece Jesus
Aparição de Jesus aos discípulos na noite da Páscoa
Tomé não chega à fé no Ressuscitado
Tomé chega á fé no Ressuscitado
Notícia final: pela fé se chega á vida.
No meio desta composição de sete partes encontra-se a cena do encontro de Jesus
com seus discípulos na noite da Páscoa, na qual Jesus Ressuscitado entrega a seus
discípulos os dons escatológicos: a paz, a alegria e o Espírito Santo (cf. Rm 14,17 e Jo
14,26-28; 16,4e-33). Até o v. 18 Jesus se contra em sua subida para junto do Pai, mas a
partir do v. 19 ele volta do Pai para junto dos seus111.
II
Maria de Mágdala ao sepulcro de Jesus (20,1-2)
A base do relato joanino está na tradição sinóptica da ida das mulheres ao
sepulcro na madrugada do primeiro dia depois da Páscoa (Mc 16,1-4; Mt 28,1-3; Lc
24,1-3). Nesse relato, Maria Madalena é a primeira de uma lista de outras mulheres. O
107
K. S. O’BRIEN, Written.
R. SCHNACKENBURG III 354s.
109
R. E. BROWN II 995.
110
L. SCHENKE 369-371.
111
Cf. S. M. SCHNEIDERS, Johannine Resurrection Narrative.
108
Beutler D -149
momento da chegada das mulheres ao sepulcro é o despontar do sol, de manhã cedo–
uma indicação que serve menos para a versão joanina. Mateus descreve o próprio
acontecimento da ressurreição, o que também não serve para a representação joanina. O
equívoco de Maria Madalena é bem sintetizada nas palavras de Lucas, que podem ter
influenciado a reelaboração de João: “Por que procurais o vivente entre os mortos? Ele
não está aqui, ele ressuscitou” (Lc 24,5s.).
20,1
A breve cena começa com uma indicação de tempo e lugar. Maria Madalena, no
primeiro dia da semana, se dirige ao sepulcro de Jesus e encontra a pedra removida.
Pode-se perguntar por que o sábado antecedente, grande sábado até, não é relatado 112. O
evangelista não lhe dedica uma só palavra. Isso espanta mais ainda porque o evangelista
conta cuidadosamente tanto os dias antes da morte de Jesus como os depois da
ressurreição. Nas duas direções se pode calcular uma semana: seis dias desde a unção de
Jesus na casa de Lázaro até a Páscoa (Jo 12,1) e, depois, a semana que vai da primeira
aparição (20,19-23) até a última (20,26-28). Mas no sábado, o fluxo narrativo parece
radicalmente interrompido. Com o narrador, também o leitor ou leitora participa aqui na
“hora zero” da salvação, a transição da morte para a vida, da escuridão para a luz.
Assim, não é por acaso que Maria Madalena, nas últimas horas da noite, antes do
despontar do sol, se dirige ao sepulcro. O que ela faz é descrito com cinco verbos no
presente histórico. Os dois primeiros descrevem a chegada de Maria Madalena ao
sepulcro e a descoberta de que a pedra tinha sido retirada.
20,2
Os três verbos seguintes descrevem a reação de Maria Madalena. Ela “corre” e
“vem” até Pedro e o Discípulo Amado e lhes “diz”: “Tiraram o Senhor do sepulcro e
não sabemos onde o colocaram”. Nesta frase, a 1ª pessoa do plural supõe um grupo de
pessoas que se dirigiram ao túmulo – fato que os leitores podem pressupor a partir dos
sinópticos. O texto de João não fala aqui da presença dos anjos que poderiam ter
explicado a Maria o fato do sepulcro vazio. Esse fato só é explicado mais tarde, nos vv.
11-13. Por isso, Maria aparece aqui bem confusa. A razão dessa confusão é, no fundo,
que Maria considera o cadáver de Jesus como se fosse Jesus Cristo mesmo e assim
procura o seu Senhor no sepulcro. Ela pensa que se pode levar o “seu Senhor” de um
lugar para outro. Assim, ela se encontra no primeiro passo de um caminho de fé que ela
deve percorrer e no qual ela deve se deixar acompanhar pelas leitoras e leitores.
Pedro e os Discípulo Amado junto ao sepulcro de Jesus (20,3-10)
O modelo textual para este episódio parece encontrar-se em Lc 24,12: “Pedro se
levantou, correu para o túmulo e, curvando-se, viu só as faixas de linho; e foi para casa,
admirando-se acerca do que acontecera”. Este texto está em Nestle-Aland (28ª ed.) e no
Greek New Testament, mas nesta edição ele é marcado com a mais baixa nota de
probabilidade. De fato, o textus brevis, sem o v. 12, é classificado entre as “nãointerpolações ocidentais”, consideradas durante muito tempo como formas mais
originais. Hoje, porém, o texto sem a suposta interpolação, representado sobretudo pelo
códice D (Bezae Cantabrigensis), é considerado antes como resultado das abreviações
que o copista deste códice faz para tornar o texto mais compreensível. A tradição textual
egípcia mais antiga conserva muitas vezes, e também aqui, o textus longus. No Quarto
112
Cf. para isso e para o que segue M. STARE, “Es ist vollendet”.
Beutler D -150
Evangelho a figura do Discípulo Amado parece acrescentada pelo evangelista. Como
em outros lugares, também aqui ele está aparentemente em concorrência com Pedro.
20,3
Segundo a representação do Quarto Evangelho, Pedro e o Discípulo Amado
correm juntos ao sepulcro de Jesus, segundo o texto grego (eis tò mnēmeîon em vez de
epì to mnēmeîon, como já em Jo 20,1, à diferença de Mc 16,2).
20,4
A preferência pelo Discípulo Amado corresponde à visão joanina. É ele quem
recosta na ceia “ao lado de Jesus” (Jo 13,23) e está perto dele no último momento de sua
vida (Jo 19,26s.). Do mesmo modo, ele é o primeiro a chegar ao túmulo de Jesus.
20,5
Segundo João, o Discípulo Amado vê por primeiro as faixas de linho, mas não
entra no túmulo, por respeito a Pedro. A parte da frase “curvando-se viu as faixas de
linho” (parakýpsas blépei ... tà othónia) é dito agora a respeito do Discípulo Amado,
não de Pedro como em Lc 24,12.
20,6
Pedro “vê deitadas as faixas de linho”, como já o Discípulo Amado antes dele. A
repetição da fórmula, mais uma vez, parece remontar ao modelo literário.
20,7
Acresce a referência ao sudário que esteve na cabeça de Jesus, mas agora se
encontra, devidamente enrolado, num lugar á parte. Este elemento falta na tradição
sinóptica e ocasionou discussões sobre sua origem e seu sentido. Em João parece ter o
sentido de um “sinal”.
20,8
Esta suspeita consolida-se no v. 8: “O outro discípulo, que tinha chegado primeiro
ao túmulo, entrou também, viu e creu”. O público leitor se pergunta como o fato de o
sudário se encontrar enrolado ao lado das faixas mortuárias de Jesus pôde ter levado à fé
pascal. Poderíamos pensar que se trate de uma conclusão lógica a partir da boa ordem
em que se encontrava o sudário: indicaria uma ação de Jesus e não de um ladrão. Mais
convincente, porém, é a proposta de Sandra S. Schneiders113: uma alusão ao véu que
cobria o rosto de Moisés depois de ele ter falado com Deus, enquanto ao falar com Deus
ele retirava o véu (Ex 34,33). Este elemento foi acolhido na mais antiga tradição cristã
(cf. 2Cor 3,7-18). Segundo Paulo, o véu que escondia a glória de Deus foi removido em
Cristo. Não se exclui que João tenha utilizado essa imagem para sugerir a glória de
Cristo que os cristãos agora podem contemplar abertamente. O Discípulo Amado teria
chegado a esta fé quando viu o sudário de Jesus enrolado diante de si.
20,9
No v. 9 surge um problema de tradução. Segundo uma possibilidade, o texto pode
ser lido como segue: “Pois ainda não tinham compreendido a Escritura de que ele
deveria ressuscitar dos mortos”114. Este sentido é óbvio quando se interpreta que, ao
menos naquele momento, o Discípulo Amado entendeu o sentido da Escritura. Outra
113
114
S. M. SCHNEIDERS, Face Veil
Cf. Bíblia de Jerusalém
Beutler D -151
possível tradução seria: “Pois ainda não estavam entendendo a Escritura...”115. Segundo
esta interpretação, o Discípulo Amado teria chegado à fé com base do sinal visto e
interpretado de modo certo, mas o sentido da Escritura se abriria para ele somente mais
tarde. Resta a pergunta: quando?
20,10
A volta dos discípulos para casa se explica a partir de Lc 24,12, onde se lê que
Pedro voltou para casa “admirando-se acerca do que acontecera”. Em João, os dois
discípulos voltam para casa, um deles repleto da fé pascal, o outro ainda não. Esta
situação diferenciada explica a maneira um tanto banal com que o relato joanino se
termina.
As leitoras e leitores foram conduzidos um pouco mais longe no caminho da fé no
Ressuscitado. Pela primeira vez, um discípulo chega á fé pascal – não por acaso o
Discípulo Amado. Do mesmo modo como é amado por Jesus, também ama seu Senhor
e tem “olhos para ver”. Com seu olhar aberto para seu Senhor, ele o reconhece também
pelo sinal tão modesto que é um sudário enrolado que ele vê diante de si. O amor lhe
abre os olhos para aquilo que a outros continua escondido, mesmo sendo colunas da
Igreja.
Maria Madalena ao túmulo de Jesus (20,11-18)
Na explicação do relato do encontro entre Jesus e Maria Madalena, novamente se
mostram diversos modelos da exegese do Quarto Evangelho. Até a metade do século
XX prevalecem, em torno desta secção do evangelho, as investigações histórico-críticas.
Nas três últimas décadas do século XX percebe-se forte interesse feminista116. H. W.
Attridge117, no “Feminist Companion to the New Testament”, apresenta as grandes
linhas dos estudos sobre a palavra de Jesus “não me segures”. Os estudos recentes, não
raramente, supõem em Maria uma atitude ainda imperfeita. Ela não se dá conta do novo
modo de ser de Jesus e de sua necessidade de subir para junto do Pai, nem de seu
próprio acesso limitado a Jesus. Apesar disso, Maria Madalena aparece como discípula
exemplar e mensageira de Jesus para os outros.
Desde a virada do século percebe-se na pesquisa uma tendência à investigação
literária e teológica mais profunda. Susanne Ruschmann118 lê o texto na perspectiva da
“releitura”, retomada de J. Zumstein, A. Dettwiler e K. Scholtissek. Na narrativa do
encontro entre Jesus ressuscitado e Maria Madalena vemos referências às narrativas da
vocação dos primeiros discípulos, Jo 1,35-51, e aos discursos de despedida,
especialmente Jo 14,18-20,21-23. Entre os temas que Jo 20 e Jo 14 têm em comum
destacam-se os do “amor”, do “ver” e da “vida”. Para Sandra M. Schneiders119 aparece
nesta secção uma mudança na representação do corpo de Jesus. Maria Madalena busca
um cadáver e tem de aprender que Jesus não vive mais corporalmente no sentido antigo.
Também não o pode segurar desse modo. Jesus vive num novo modo de corporeidade,
que inclui também o corpo da comunidade nascente. Deste corpo falará a cena de Jo
20,19-23. Donald Senior120 expressa seu reconhecimento para sua colega californiana e
115
Einheitsübersetzung, Lutero.
CF. P. PERKINS, “I Have Seen the Lord”; J. BEUTLER, Frauen und Männer.
117
H. W. ATTRIDGE, “Don’t Be Touching Me”.
118
Cf. S. RUSCHMANN, Maria von Magdala.
119
S. M. SCHNEIDERS, Resurrection; cf. ID., Touching the Risen Jesus.
120
D. SENIOR, Resurrection
116
Beutler D -152
a convida a estudos mais avançados sobre a corporeidade dos fiéis quando da
ressurreição.
A aparição de Jesus a Maria Madalena na manhã da Páscoa não é atestada por
nenhuma tradição neotestamentária independente. O texto mais próximo é o da aparição
às mulheres que foram ao sepulcro segundo Mt 28,9-10121. Esse texto fala de duas
Marias: Maria Madalena e “a outra Maria”. O texto de Mc 16,9-11 (no final secundário
de Marcus) é apoiado em Jo 20,1-2.11-18; o de Mc 16,12s., em Mt 28,9-10. O relato de
Mt 28,9-11 acrescenta à sua base literária, Mc 16,1-8, a aparição de Jesus às mulheres
que tinham ido ao sepulcro. Com Rudolf Schnackenburg122, podemos suspeitar que os
relatos não estão no mesmo nível de tradição: o relato da aparição às duas mulheres
parece secundário em relação ao da descoberta do sepulcro vazio (o qual ainda
transparece em Jo 20,1-2 e 20,3-10, bem como em Lc 24,1-11.12). Na comparação dos
relatos evangélicos percebe-se uma evolução da aparição dos anjos às mulheres
comunicando-lhes a ressurreição de Jesus e uma aparição de Jesus mesmo a essas
mulheres. Na lista das testemunhas oculares em 1Cor 15,3-8 não aparecem as mulheres,
mas isso poderia explicar-se pelo fato de que o testemunho de mulheres no mundo
antigo não era valorizado.
A estrutura da secção. Segundo os critérios da análise narrativa, Jo 20,11-18 se
divide em três unidades:
– Maria Madalena junto ao sepulcro em diálogo com os dois anjos, vv. 11-13;
– Maria Madalena encontra Jesus, vv. 16-6;
– Maria Madalena enviada por Jesus, vv. 17-18.
Em sua dissertação não publicada, Sandra M. Schneiders123 organiza a secção
segundo três fases no caminho espiritual de Maria Madalena, cada vez expressas por um
particípio:
– Maria Madalena chora (klaíousa, v. 11);
– Maria Madalena se volta (strapheîsa, v. 16);
– Maria Madalena anuncia (aggéllousa, v. 18).
Na primeira fase, Maria Madalena é tomada inteiramente por seu luto e incapaz de
entender a ressurreição. Na segundo fase, ela “se volta”, não só física, mas também
espiritualmente, e se torna capaz de reconhecer Jesus. Na terceira fase, ela passa a ser
mensageira para os apóstolos.
20,11-13
No v. 11, o narrador retoma o fio do v.2. O público leitor se lembra de que Maria
Madalena tinha corrido até a cidade para informar Pedro e o Discípulo Amado a
respeito do sepulcro vazio. Surpreendentemente, ela se encontra novamente ao túmulo
no início da presente secção. Agora é descrito seu estado de ânimo: ela chora. E neste
momento, ela percebe no túmulo dois anjos: um no lugar onde repousou a cabeça de
Jesus, outro, no lugar dos pés.
Respondendo à pergunta por que ela chora, Maria Madalena repete o erro que ela
já exteriorizou no v. 2, ao confundir o cadáver de Jesus com Jesus mesmo: “Levaram o
meu Senhor e não sei onde o colocaram”. Há duas diferenças com o v. 2: Maria agora
121
Mais extenso R. BIERINGER, “I Am Ascending”.
Cf. R. SCHNACKENBURG III 379s.
123
S. M. SCHNEIDERS, Johannine Resurrection Narrative.
122
Beutler D -153
fala do “seu” Senhor, revelando sua relação pessoal com Jesus; e não fala mais no
plural, “não sabemos”, mas no singular, “não sei”. Esses detalhes revelam a mão do
evangelista.
20,14-16
Nesta secção é dito duas vezes que Maria “se voltou”. No primeiro lugar, no v.
14, o verbo guarda seu sentido literal, mas na segunda vez, no v. 16, provavelmente
entra também um sentido figurativo e espiritual. No v. 14, Maria de Mágdala se curva
para ver dentro do túmulo e depois se vira para fora, percebendo Jesus, sem reconhecêlo. Já se realiza para ela a promessa de Jesus no discurso de despedida: os seus, que o
amam, o verão (Jo 14,9, com o mesmo verbo no grego). Mas ela não o reconhece, ou
seja, não “entendeu” a aparição (cf. Jo 20,9, onde os discípulos não “tinham entendido”
o sentido da Escritura). No diálogo que se segue, Jesus retoma a iniciativa e pergunta a
Maria Madalena por que ela chora e quem ela busca. As leitoras e leitores se lembrarão,
provavelmente, da cena da detenção, na qual Jesus tomou a iniciativa com a pergunta
“A quem buscais?” (Jo 18,4.7). Mais ainda apresenta-se à memoria a cena do encontro
com Jesus com os primeiros dois discípulos, quando ele perguntou: “O que procurais?”
(Jo 1,38). Por causa dessa semelhança, S. Ruschmann124 vê em Jo 20,11-18 uma
variante do tema do discipulado segundo João. Ao chamar seus discípulos, Jesus não se
impõe, mas tenta responder às aspirações interiores deles. Maria Madalena continua no
seu erro, confundindo Jesus com o jardineiro, e se aprofunda ainda mais em seu erro,
confundindo Jesus com o seu cadáver que se pode transportar.
A cena chega a seu ápice no v. 16. O reconhecimento de Jesus é descrito num
brevíssimo diálogo, introduzido por um novo “voltar-se” de Maria Madalena: “Mariam”
– “Rabbuni”, isto é: “Mestre”. O uso da forma hebraica, aliás, aramaica, do título de
Jesus não se explica por uma tradição especialmente antiga, mas pelo tom pessoal do
diálogo. Assim se reconhecem os amantes nos romances antigos, nas cenas de
reconhecimento (anagnṓrisis) depois de longo período de afastamento e de busca125. No
âmbito bíblico ecoam aqui as cenas do Cântico, nas quais se descreve como os amantes
se buscam mutuamente e, finalmente, se encontram (cf. Ct 3,1-4). Nesta literatura
encontra-se também o motivo do jardim126, evocado pela figura de Jesus como
jardineiro.
20,17-18
O relato termina numa dupla palavra de Jesus a Maria Madalena e na execução da
palavra por Maria. A primeira parte da palavra a Maria Madalena é negativa. Os
comentadores não concordam quanto à tradução certa e o sentido da injunção de Jesus:
mḗ mou háptou. Por causa do tempo da injunção, a Einheitsübersetzung e outras
traduzem por “não me segures”.
A injunção recebe sua justificação na frase seguinte: “pois ainda não subi para
junto do Pai”. Segundo essa compreensão, a questão não é que Maria não pode tocar em
Jesus, mas que ela não o deve reter no seu caminho rumo ao Pai. R. Bieringer127, porém,
propõe, com boas razões, considerar novamente a tradução “não me toques”. Esta
tradução se recomenda quando se considera o uso do verbo na Septuaginta e no resto do
124
Cf. S. RUSCHMANN, Maria von Magdala.
O exemplo mais antigo é a Odisseia.
126
Cf. Ct 4,12-16; 5,1; 6,2.11; 8,13.
127
Cf. R. BIERINGER, “I Am Ascending”.
125
Beutler D -154
Novo Testamento. Pensa-se, então, em certo recato de Maria diante de Jesus como lugar
da presença de Deus, em analogia com as injunções de Números para se manter
afastado do lugar santo128. Jesus está no ponto de subir para junto do Pai (anabaínein) e
de abrir aos discípulos o acesso para lá. O abraçar dos pés de Jesus pelas mulheres na
manhã pascal, mencionado em Mt 28,9, teria então recebido uma reinterpretação.
Muitos comentadores distinguem entre a subida de Jesus para junto do Pai na hora
de seu “enaltecimento” na cruz, incluindo a glorificação, e a subida que no diálogo com
Maria Madalena ainda é vista como por vir. Mas, no fundo, parece que se trata do
mesmo movimento. O enaltecimento de Jesus na cruz continua no acontecimento
pascal, e Maria Madalena será testemunha da subida de Jesus para junto do Pai ainda
antes que, a partir do v. 19, se relate a nova vinda de Jesus até os seus.
A seguir, Maria Madalena recebe a incumbência de anunciar aos “irmãos” de
Jesus que ele está subindo para junto de seu Pai e o Pai deles, seu Deus e o Deus deles.
É a primeira (e única) vez que aparece no Evangelho segundo João o termo “irmãos”
para os discípulos. Já que Deus é o Pai de todos os que creem em Jesus, estes podem ser
chamados “irmãos” de Jesus. A fórmula “meu pai e vosso Pai” não cria distância, mas,
pelo contrário, exprime a razão por que Deus se torna o Pai dos que creem; porque ele é
o Pai de Cristo ressuscitado.
Maria Madalena assume a incumbência que Jesus lhe confiou e vai até os
discípulos para lhes anunciar a boa notícia. As palavras que o evangelista escolheu
evocam a formulação do testemunho apostólico da ressurreição de Jesus: “Eu vi o
Senhor” (cf. v. 25 e 1Cor 9,1). Desde a época patrística, aponta-se que Maria de
Mágdala é a “apóstola dos apóstolos”. O primeiro autor cristão que fala neste sentido é
Hipólito de Roma, no início do século III129. Só mais tarde, desde Gregório Magno,
Maria Madalena é identificada com a pecadora arrependida de Lc 7,36-50, o que lhe
conferiu o caráter ambíguo que até hoje determina sua imagem na pregação e na arte
cristãs. O movimento feminista toma Jo 20,11-18 como ponto de partida para exigir um
papel ativo da mulher na pregação e no ministério da Igreja.
Jesus aparece aos discípulos na tarde da Páscoa (20,19-23)
A divisão de Jo 20 em duas partes é comumente aceita. Valiosa é a observação de
Sandra M. Schneiders130, de que Jesus, na primeira metade (vv. 1-18), está num
movimento ascendente em direção do Pai, na segunda metade (vv. 19-29), num
movimento descendente. Já em Jo 14 observamos algo semelhante: em Jo 14,1-14,
Jesus se despede dos discípulos e vai ao Pai, em Jo 14,15-24, ele “vem” com seus dons
escatológicos (cf. Jo 14,25-29). Mostraremos que a cena de Jo 20,19-23 se explica bem
diante desse pano de fundo. As duas cenas seguintes são separadas de Jo 20,19-23 por
um lapso de tempo. Fala-se primeiro de um encontro dos dez discípulos com Tomé, que
não tinha presenciado o encontro com Jesus no dia da Páscoa, depois de um encontro
com os onze, Tomé incluído, oito dias depois. No final está a (primeira) conclusão
literária do evangelho, Jo 20,30-31.
Em Jo 20,19-23 percebe-se nitidamente a influência do evangelho de Lucas,
notadamente na da cena de Lc 24,36-49. A frase “Ele se pôs no meio deles e disse-lhes:
128
Cf. Nm 3,10.28; 17,28; outros textos acerca do “acesso”: 1,51; 3,38; 18,3s., cf. R BIERINGER, loco
citato, 231.
129
Comm. in Canticum, ed. N. BONWETSCH, 67.
130
Cf. S. M. SCHNEIDERS, Johannine Resurrection Narrative.
Beutler D -155
Paz esteja convosco” (e;sth eivj to. me,son kai. le,gei auvtoi/j\ eivrh,nh u`mi/n) encontra-se
quase verbalmente em Lc 24,36 (levemente diferente: e;sth evn me,sw| auvtw/n). Na cena de
reconhecimento, o mostrar das mãos e dos pés é substituído, em João, pelo mostrar as
mãos e o lado, em referência à cena de Jo 19,37-39. Lucas fala também da alegria dos
discípulos (Lc 24,41) e do dom do Espírito (24,49). Na óptica de Lucas, este dom, a
“promessa” do Pai, só será conferido mais tarde, a saber, em Pentecostes (At 2). A
autoridade para perdoar os pecados mostra algumas correspondências com a deferência
da autoridade a Pedro ou aos Doze para “ligar” e “desligar” sobre a terra (Mt 16,19;
18,18)131. Mas ali se trata, antes, da autoridade para tomar decisões doutrinais
vinculantes.
Ao lado destes paralelos o texto de João mantém, contudo, seu significado próprio
no contexto132.
A secção pode ser dividida em duas cenas cenas paralelas: vv. 19-20 e 21-23. Na
primeira, trata-se do reconhecimento de Jesus, na segunda, da incumbência que ele
comunica.
Jesus aparece no meio dos seus e lhes dirige a saudação da paz; v. 19;
um gesto de Jesus: mostra suas mãos e seu lado: v. 20;
uma reação dos discípulos: a alegria: v. 20b.
Jesus saúda os seus novamente com a saudação da paz e a fórmula de envio: v. 21;
um gesto de Jesus: ele sopra sobre eles: v. 22a;
uma palavra de envio: vv. 22b-23.
20,19
O longo v. 21 descreve o tempo, o momento e as circunstâncias da aparição de
Jesus, antes de descrever a aparição mesma. Cada elemento tem significado teológico.
A indicação do tempo situa a aparição de Jesus no dia da Páscoa. Assim, o espírito é
conferido no dia da Páscoa, não em Pentecostes. “O primeiro dia da semana” será
futuramente o dia sagrado dos cristãos. Podemos dizer que Jesus apareceu no
“domingo”, o dia que para os cristãos substitui o sábado. O lugar da aparição de Jesus
continua incerto. Sandra M. Schneiders133 apontou que Jesus aparece lá onde “os
discípulos estavam reunidos”. Também este elemento terá continuidade na
comunidade134. A razão por que os discípulos estão reunidos atrás de portas fechadas
pode surpreender as leitoras e leitores. Esperar-se-ia que os discípulos, pela mensagem
de Maria de Mágdala, tivessem tomado coragem. Mais uma vez vemos que as diversas
partes de Jo 20 não se seguem segundo uma lógica férrea. Esta observação vale também
para a sequência de Jo 20 e 21.
A vinda de Jesus é descrita com três verbos: “veio”, “pôs-se no meio” e “disse”. O
primeiro verbo surpreende, é especial num relato pascal. Mas a expressão escolhida se
explica a partir da teologia joanina. Para João, a “hora” do enaltecimento e da
glorificação é a “hora escatológica”. Assim, para João, coincidem, em última análise,
não apenas Sexta-Feria Santa, Páscoa, Ascensão e Pentecostes, mas ainda o dia da
“vinda” de Jesus para o juízo do mundo. “Amém, amém, digo-vos: vem a hora, e é
131
Cf. G. KORTING, Binden und Lösen; G. CLAUDEL, Jean 20,23; para a comparação cristão-islâmica da
secção, veja A. F. MOHAMED–F. SORG, Friede sei mit euch!.
132
Cf. para isso E. HAAG, Aus Angst zur Freude.
133
Cf. S. M. SCHNEIDERS, Johannine Resurrection Narrative.
134
H.-U. WEIDEMANN, Eschatology, acentua a dimensão litúrgica do relato joanino da Ressurreição.
Beutler D -156
agora, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão”
(Jo 5,25). A vinda do Filho do Homem para o juízo e o dom da vida no último dia vai
para a margem (cf. Jo 5,28s.; 6,39.40.44.54, no quadro do cap. 6, que poderia ser de
uma mão ulterior). Já no primeiro discurso de despedida, em Jo 14,15-24, Jesus falou de
seu futuro “vir” aos seus, no Espírito, como também pessoalmente e junto com o Pai, na
hora da comunidade pós-pascal135.
Jesus “se pôs no meio”; a expressão mostra que a reunião dos discípulos é o lugar
privilegiado da manifestação de Jesus. A saudação da paz de Jesus retoma Jo 14,27;
16,33. A paz prometida antes se torna agora o dom pascal de Jesus.
20,20
A aparição inesperada de Jesus provoca nos discípulos dúvida a respeito de sua
identidade. Por isso, Jesus lhes mostra suas mãos e seu lado. Pode-se perguntar por que
não bastava ver o rosto. Mas para o evangelista é de suma importância a identidade
entre o crucificado e o ressuscitado. As mãos de Jesus tinham sido perfuradas na
crucificação, seu lado tinha sido traspassado pela lança dos soldados romanos. É mesmo
este crucificado que morreu e que foi retirado da cruz que os discípulos reconhecem
neste momento do reencontro pascal. Por isso, ficam cheios de alegria, como Jesus lhes
tinha predito na hora de sua despedida (Jo 16,20-22).
20,21
A segunda cena é introduzida pela repetição da saudação da paz, que passa
imediatamente para o tema da cena: a incumbência que Jesus confia a seus discípulos.
Essa incumbência está baseada numa missão. Os discípulos são enviados por Jesus
assim como ele foi enviado pelo Pai. Como também em outros casos, em João, a relação
entre Jesus e o Pai não apenas determina a relação entre Jesus e os discípulos, mas uma
é construída sobre a outra: a missão de Jesus pelo Pai fundamenta a missão da qual os
discípulos são incumbidos. Eles participam da missão do Filho.
20,22
O gesto com o qual Jesus comprova sua identidade corresponde ao gesto que
introduz a missão dos discípulos. Ele sopra sobre eles e diz: “Recebei Espírito Santo”.
O verbo utilizado lembra dois episódios importantes da história da salvação. Deus
“sopra” sobre Adão e lhe comunica o sopro de vida (Gn 2,7); e o profeta anuncia um
“sopro” do Espírito sobre os ossos ressequidos do povo de Israel, que lhe dará nova vida
(Ex 37,9)136. Em ambos os casos, a Septuaginta usa emphysáō, o mesmo verbo que se
encontra em Jo 20,22. O texto do profeta se encontra entre a criação e a nova criação em
Jesus. O dom do Espírito já foi anunciado pelo evangelista para a “hora” da glorificação
de Jesus (Jo 7,39). Agora chegou a hora.
Para a compreensão certa do v. 23 é importante que Jesus, segundo o v. 19, se
coloca no meio dos “discípulos”. Esses discípulos são aqueles sobre os quais Jesus
sopra e aos quais ele comunica sua incumbência. A tentativa de W. Kurz137 (com o
Catecismo da Igreja Católica) de restringir este círculo de discípulos aos apóstolos ou
aos ministros da Igreja não se pode basear neste texto.
20,23
135
Cf. supra, comentário a Jo 14,15-24.
Cf. T. R. HATINA, John 20,22.
137
Cf. W. KURZ, Test Case.
136
Beutler D -157
O verso que encerra esta secção138 recebe explicações diversas. O problema
começa com a tradução correta do texto grego. “Perdoar” os pecados, isso se entende,
mas o que quer dizer krateîn, “reter”? Assimilando o sentido a Mt 16,19, a
Einheitsübersetzung de 1980 interpreta: “recusar o perdão”, mas essa tradução recebeu
merecida crítica139. Por isso, preferimos aqui a tradução “aos quais os retiverdes, a eles
ficam retidos”, na mesma linha da tradução de Lutero revisada.
O versículo começa com uma constatação positiva: comunica-se aos discípulos a
autoridade de perdoar pecados. Essa autoridade corresponde à missão messiânica de
Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Na medida em que,
em Jesus, se cumprem as promessas escatológicas, também a remissão dos pecados se
torna realidade (cf. Jr 31,34, acerca da Nova Aliança: “Eu perdoo a vossa culpa, não
penso mais em vossos pecados”). Os discípulos podem enunciar esse perdão dos
pecados a todos os que creem em Jesus. Os primeiros Pais da Igreja consideraram o
batismo como o lugar no qual se comunica esse perdão; outros, como também o
Magistério, pensam no sacramento da reconciliação. Mas convém afirmar, com Rudolf
Schnackenburg140, que a discussão em torno do lugar institucional do perdão dos
pecados é de data recente e não encontra resposta imediata no texto de Jo 20,23. “Reter”
os pecados significa simplesmente declarar que alguém ainda não possui a fé que
conduz ao perdão dos pecados.
Neste lugar cabe contemplar o pano de fundo histórico-traditivo dos principais
temas de Jo 10,19-23. Em João, como em Lucas (24,36-49), encontra-se um campo
semântico “paz, alegria e Espirito Santo”. Em Jo 14,25-28, Jesus promete aos discípulos
o dom do Espírito Santo (v. 26) e sua paz (v. 27)141. Também fala da alegria que os
discípulos conhecerão, se nesse momento de seu retorno ao Pai eles o tiverem amado (v.
28). Numa “releitura” desta secção, estes temas se encontram, novamente, ligados ao
tema da justiça, em Jo 16,4e-33. A “justiça” se encontra em João só aqui (14,8-10); o
Espírito Santo é prometido nos vv. 7-14, a “alegria”, nos vv. 20-22, e a paz, no
versículo final 33. Em outro lugar142 já se apontou que este campo lexical se abre a
partir de Rm 14,7, onde Paulo escreve: “O Reino de Deus não é comida e bebida, mas
justiça, paz e alegria no Espírito Santo”. Essa definição de Paulo é importante porque o
Reino de Deus não é um conceito caracteristicamente paulino. O Apóstolo o retoma da
tradição. Além disso, esse texto é a única definição do Reino de Deus na Bíblia inteira.
O fundo veterotestamentário dessas promessas messiânico-escatológicas já foi mostrado
acima, no comentário a Jo 14,25-29. Ele remonta, passando pelos profetas exílicos e
pós-exílicos, até a ideologia régia do Antigo Oriente.
O encontro dos discípulos com Tomé (20,24-25)
Trata-se aqui de uma cena de transição, que nos comentários e monografias
geralmente não é tratado como secção separada. A razão para separar estes versículos
dos que seguem é que, entre os vv. 24s. e 26-29, há uma ruptura no tempo e as dramatis
personae são outras, como também a ação. Por isso convém explicar as duas cenas
separadamente.
20,24
138
Cf. para este versículo J. BEUTLER, Resurrection.
Cf. H.-U. WEIDEMANN, Nochmals Joh 20,23.
140
Cf. R. SCHNACKENBURG III 388.
141
Cf. acima ad locum.
142
Cf. ibid.; J. BEUTLER, Habt keine Angst, 90-104; ID., Do not Be Afraid, 82-93, 109.
139
Beutler D -158
O versículo nos comunica um fato ligado ao primeiro encontro de Jesus com os
discípulos no dia da Páscoa. Naquele dia, Tomé não estava com os discípulos. Por quê?
Isso não parece ser do interesse do evangelista. Ele se interessa pelas diversas formas do
crer. Outras especulações dizem respeito ao nome de Tomé. Segundo L. Devillers143 o
nome de “Dídimo” deveria ser traduzido por “o duplo” antes que por “gêmeo”. Isto
seria uma alusão ao duplo rosto de Tomé (como do deus Jano), porque pertence ao
grupo dos que viram e creram, mas também ao grupo dos que não viram e, contudo,
creram. Esta proposta é muito hipotética. O apelido “Dídimo” é dado a Tomé também
em Jo 11,16 e 21,2, e parece antes um apelido do interior do grupo dos discípulos do
que da comunidade pós-pascal.
20,25
A cena se constitui de um breve diálogo. Os dez discípulos dizem a Tomé:
“Vimos o Senhor”. Tomé responde com a exigência de um contato físico com o
Ressuscitado. A palavra dos dez discípulos se inspira também nas palavras de Maria
Madalena (Jo 20,18), que também se encontram em 1Cor 9,1 e parecem ser uma espécie
de fórmula “apostólica” do testemunho do Ressuscitado. Para Tomé, este testemunho
deveria ter sido o suficiente como fundamento da fé pascal, mas, como na aparição aos
dez discípulos, o testemunho não recebe eco (cf. Jo 20,19-23 depois de 20,18). As
palavras com as quais Tomé exige um encontro fisico com Jesus correspondem quase
completamente ao gesto com o qual Jesus mostrou aos discípulos suas mãos e seu lado.
Acresce o lugar dos pregos que perfuraram as mãos. Este elemento corresponde ao uso
dos romanos de perfurar as mãos do crucificado, mas pode também ser uma
reminiscência de Sl 22,17.
A aparição diante dos discípulos na presença de Tomé (20,26-29)
O vocabulário desta secção é determinado, em grande parte, pelo fato de ter sido
usado em duas cenas anteriores. Isso vale, sobretudo, para os vv. 26-27. No v. 26, o
evangelista retoma a cena da aparição de Jesus no fim da tarde da Páscoa, Jo 20,19-23, e
no v. 27, a exigência de Tomé relatada no v. 25. Os dois últimos versículos têm uma
formulação mais independente e conduzem à confissão de Tomé e à bem-aventurança
que Jesus pronuncia a favor dos que creem sem terem visto, que encerra a parte
narrativa do Evangelho segundo João em sua forma original144.
20,26
Esta cena se situa “oito dias depois”. Os comentadores veem nesta indicação uma
referência às reuniões dos fiéis no tempo das origens cristãs, no primeiro dia da semana,
o domingo145. A indicação do tempo se une bem à do lugar, “novamente reunidos
dentro”. Não se entende bem a menção às portas fechadas. Provavelmente refere-se aos
discípulos como círculo fechado, pois o medo dos judeus não mais é mencionado como
motivo das portas fechadas. Para o progresso da narrativa importa que Tomé agora está
presente com os outros discípulos.
20,27
Depois de sua renovada saudação de paz, Jesus se dirige diretamente a Tomé. O
“narrador onisciente” se lembra bem exatamente das palavras de Jesus no v. 25 e as
143
Cf. L. DEVILLERS, Thomas.
Cf. para esta secção J. KREMER, “Nimm deine Hand”.
145
Cf. o aceno em F. J. MOLONEY 537 e novamente H.-U. WEIDEMANN, Eschatology, 282.
144
Beutler D -159
coloca agora na boca de Jesus. Jesus convida Tomé a pôr seu dedo “aqui” e a colocar
sua mão no lado do Senhor, mas a injunção principal está no fim: “Não sejas incrédulo,
mas crê!”
Os comentadores interpretam o convite de Jesus de diversos modos. Para Rudolf
Bultmann146, Tomé representa uma fé que procura basear-se sobre a própria experiência
física da realidade do Ressuscitado. A este modo de crer contrapõe-se outro, que se
baseia somente sobre a palavra do anúncio. Autores mais recentes propõem uma visão
mais dinâmica das palavras de Jesus. Para a geração apostólica, o acesso a Jesus era
ainda possível mediante um encontro histórico, físico: eles podiam vê-lo, ouvi-lo,
apalpá-lo. A geração seguinte devia aceitar a proclamação da mensagem da
ressurreição. Tomé representa a transição da fé dos apóstolos para a fé da comunidade
pós-apostólica. Ele deveria ter aceito a mensagem da ressurreição da parte dos dez e
assim “ser crente”, em vez de, “incrédulo”, exigir sinais visíveis do Ressuscitado147.
20,28
Tomé não acata o convite de seu Senhor, mas formula uma confissão de fé de
valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título do Senhor é o que cabe àquele
que entrou na sua glória (João reserva este título para Jesus ressuscitado). O título
“Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e cria, assim,
uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João inteiro.
20,29
Uma palavra de Jesus encerra esta breve secção. A primeira metade pode ser
entendida como pergunta ou como asserção, mas essa diferença não é relevante. Tomé
creu porque viu. A segunda metade chama bem-aventurados os que não viram e,
contudo, creem148. R. Vignolo149 examinou a forma do macarismo em Jo 13,17 e 20,29.
Em Jo 13,17 são chamados bem-aventurados os que fazem o que Jesus ordena. Em Jo
20,29 são bem-aventurados os que acatam o querigma pascal sem terem visto. Em
ambos os casos, uma atitude humana recebe a promessa de um dom divino, como em
outros macarismos bíblicos. O último destes dois macarismos encerra não apenas o
relato joanino da paixão, morte e ressurreição de Jesus, mas toda a parte narrativa do
evangelho em sua forma original (antes do apêndice cap. 21). Assim, as leitoras e
leitores são reconduzidos à sua situação vital. Como Tomé, eles mesmos dependem,
para crer, do testemunho apostólico. Sem ver, eles podem ser bem-aventurados, felizes,
porque encontraram seu Senhor na fé em sua palavra.
Uma perspectiva totalmente diferente é encontrada num texto de Elaine Pagels 150,
discutido por P. J. Judge151. Segundo E. Pagels, Jo 20,24-29 seria uma polêmica do
cristianismo joanino contra o Evangelho de Tomé. Segundo o Evangelho de Tomé, que
a autora situa no meio do primeiro século, a verdadeira fé consistiria num encontro
pessoal com Deus, que não necessita da fé no Jesus ressuscitado. A verdadeira salvação
vem de dentro, com base no conhecimento de si, que pode receber ajuda do Revelador.
João teria contraposto essa visão à sua, segundo a qual a confissão pertence à fé, e esta
146
Cf. R. BULTMANN 539S.
Cf., e.o., U. VANNI, Il risorto; J. FREY, “Ich habe den Herrn gesehen”, 283s.; R. BIERINGER, “They
Have Taken Away”, 630.
148
Para este versículo comparado nos evangelhos, cf. P. J. JUDGE, A Note.
149
Cf. R. VIGNOLO, Quarto vangelo.
150
E. PAGELS, Beyond Belief., esp. capítulo 2 “Gospels in Conflict: John and Thomas”.
151
Cf. P. J. JUDGE, John 20,24-29.
147
Beutler D -160
fé necessita da palavra externa do anúncio. Judge baseia sua crítica no fato de que os
especialistas julgam difícil situar o Evangelho de Tomé antes do Evangelho segundo
João. A “salvação” segundo João não só pode, mas deve ser encontrada não só com
base em experiências interiores, mas também com base na adesão exterior. Além disso,
existe uma análise do texto que mostra que Tomé não é apresentado como simplesmente
obstinado ou incrédulo, mas apenas como alguém que solicita uma forma de acesso a
Jesus que não é mais atual. Crer em Jesus com base no “ver” era coisa legítima, e Jo
20,30s. acentua isso mais uma vez, mas o tempo desse acesso a Jesus está no fim, e
assim Tomé representa as gerações futuras da fé.
Primeiro final do evangelho (20,30-31)
Os últimos dois versículos do capítulo não pertencem mais ao fluxo narrativo,
mas se situam em outro nível (segundo J.-N. Aletti152: no nível “metanarrativo”). Com
estes versículos encerra-se a parte principal do Evangelho segundo João, antes do
“epílogo” do cap. 21, considerado secundário pela maioria dos exegetas 153. M. Lattke154
aponta que Tertuliano parece pressupor um Evangelho segundo João que termina no
cap. 20. A compreensão de Jo 20,30s. depende, em parte, de como se interpreta o
conceito de sēmeîon (“sinal”) em Jo 20,30.
20,30
Segundo este versículo, Jesus realizou ainda muitos outros “sinais” que não estão
registrados neste livro. A presença do conceito “sinal” surpreende neste lugar. Foi
utilizado pela última vez em 12,37, num texto comparável: embora Jesus tivesse tantos
“sinais” entre os judeus, eles não acreditaram nele. Jo 20,30 fala dos “sinais” que Jesus
havia realizado diante dos discípulos e convida à fé em Jesus. Como se explica o grande
lapso entre os “sinais” de Jo 2–12 e a ocorrência dos “sinais” em Jo 20,30s.?
Segundo R. Bultmann (que segue A. Faure) e sua escola, Jo 20,30 é o final
original da “fonte dos sinais” que ele postula155. Esta fonte se apoia numa teologia
segundo a qual se chega à fé em Jesus com base em seus “sinais”, contemplados e bem
entendidos. O evangelista, porém, mostraria ceticismo diante dessa teologia e a teria
corrigido por uma teologia da fé baseada na palavra. Ao se apropriar desse modelo,
porém, permanece a pergunta de como o evangelista chegou a encerrar seu escrito com
uma visão que não correspondia à sua. Para evitar este problema foram apresentadas
diversas propostas.
Segundo Hanna Roose156, o termo sēmeîon em Jo 20 se refere sobretudo aos dois
últimos sinais, o do cego de nascença em Jo 9 e o da ressuscitação de Lázaro em Jo 11.
No primeiro, descreve-se o caminho de um homem rumo à fé; no segundo, Jesus
aparece como o doador da vida. Assim preparam-se os conceitos fundamentais de Jo
20,30s. Uma alternativa para esta proposta existiria em situar o último sinal de Jesus em
sua paixão, morte e ressurreição. Para Hans-Christian Kammler157, os “sinais” de que
fala Jo 20,30s. são as aparições de Jesus ressuscitado sã. Gilbert van Belle158 mostra
152
Cf. J.-N. ALETTI, Les finales.
Para a comparação de ambos os finais, cf. e.o. C. ROBERTS, John 20:30-31. D. MARKL pondera: será
que Jo 1,1; 20,30 s; 21,24 aludem ao quadro do Pentateuco? (Cf. bibliografia).
154
M. LATTKE, Joh 20,30s.
155
R. BULTMANN 541.
156
H. ROOSE, Ein (un)passender Schluss?
157
H.-C. KAMMLER, Die “Zeichen“; a mesma proposta em J. R. MICHAELS 1020 ss.
158
G. VAN BELLE, The Meaning; ID., Christology; ID., L’unité.
153
Beutler D -161
simpatia por esta proposta, mas pensa que os sinais anteriores estão incluídos. Assim o
vê também Thomas Söding159. Por isso, recomenda-se neste texto uma compreensão dos
“sinais” que não se limite aos sete “sinais” de Jo 2–10, mas que inclua também o evento
da morte e ressurreição de Jesus e as manifestações de Jesus depois da Páscoa.
Os “sinais” encontram-se agora registados num “livro”, que ocupa seu lugar como
testemunho a favor de Jesus (cf. Jo 5,39) ao lado das Escrituras de Israel, sem se tornar
uma arte delas.
20,31
O testemunho oral dos Doze, “Nós vimos o Senhor”, é agora substituído por um
livro. Este livro foi escrito “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e
para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Os comentadores discutem a forma
original do verbo “crer”: pisteúēte ou pisteúsēte. A primeira forma é o subjuntivo
presente, que significaria “para que continueis crendo”; a segundo forma é o aoristo
ingressivo do subjetivo, que significaria “para que chegueis a crer”. D. A. Carson160
defende o aoristo num sentido ‘missionário”, mas a maioria dos comentadores recentes
defende o presente, atestado pelos manuscritos gregos mais antigos; assim,
recentemente, D. G. Fee161. Neste caso, a finalidade do evangelho seria encorajar as
leitoras e leitores para que permaneçam na fé em Jesus. A isso se acrescenta uma outra
perspectiva: a coragem de confessar a fé em Jesus, intrepidamente, em circunstâncias
contrárias (como Nicodemos, o cego de nascença, os apóstolos e as mulheres que se
engajaram na proclamação de Jesus)162.
Qual é o conteúdo da fé à qual o Evangelho segundo João deve conduzir?
Segundo D. A. Carson163: que o Messias e Filho de Deus é Jesus. Entre todos os
candidatos para os títulos messiânicos e a dignidade divina, Jesus é o único ser humano
que merece esse título. O argumento linguístico de Carson, segundo o qual a ausência
do artigo [antes de Jesus]* indica o predicado, não é partilhado pela maioria dos autores,
pois nomes próprios podem carecer o artigo, sem consequências para a interpretação. É
preferível, por isso, reconhecer como escopo do Evangelho segundo João em geral e do
relato da ressurreição em particular que Jesus é o Cristo/Messias, no sentido em que isso
foi desenvolvido no decurso do evangelho164. Esta confissão de fé já se encontra
implantada nas palavras de Marta, no fim do diálogo com Jesus depois da morte de seu
irmão Lazaro: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus,
aquele que deve vir ao mundo” (Jo 11,27).
III
Para que serve, afinal, um capítulo joanino sobre a ressurreição? No sua vida
terrestre, Jesus anunciou diversas vezes que o Filho do Homem deveria ser “enaltecido”
e “glorificado” ao chegar sua “hora”. Essa hora é a hora de seu enaltecimento na cruz.
Ao morrer, Jesus “entrega o Espírito”. O que segue depois é então um desdobramento
do que aconteceu na “hora” de Jesus. A primeira metade de Jo 20 mostra Jesus ainda em
sua partida para o Pai. Na segunda metade, Jesus “vem” novamente para os seus, de
159
T. SÖDING, Die Schrift.
D. A. CARSON, Purpose; ID., Observations.
161
D. G. FEE, Text and Meaning.
162
Cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
163
D. A. CARSON, Purpose.
164
Assim também L. CARDELLINO, Testimoni.
160
Beutler D -162
modo que sua volta se expande na história empírica. Ele não vem com as mãos vazias,
mas traz os seus dons escatológicos: a paz, a alegria e o Espírito Santo. Com isso se
torna possível o perdão dos pecados.
O caminho de Jesus de volta aos seus corresponde ao caminho dos discípulos na
fé. Não é em primeira instância um caminho que se pode percorrer a pé. Também tal
caminho é mencionado: Maria Madalena vai ao sepulcro, Pedro e o Discípulo Amado
até correm. Mais importante, porém, é o caminho interior que conduz ao
reconhecimento do Ressuscitado. Maria Madalena procura o cadáver de Jesus e pensa
que, assim, encontrará seu “Senhor”. A mensagem do anjo não é suficiente para livrá-la
de seu erro. Também Pedro e o Discípulo Amado procuram Jesus no sepulcro e não o
encontram. Mas o Discípulo Amado reconhece o Ressuscitado no sudário dobrado
separadamente: o véu é retirado do rosto de Jesus, assim como foi retirado de Moisés.
Entretanto é tempo para que Maria Madalena veja o seu Senhor face a face e o
reconheça pelo som de sua voz. Ela aceita ser incumbida por Jesus de levar a boa-nova
de sua ressurreição aos Apóstolos. Estes podem então reconhecer Jesus no meio deles.
Ele lhes dá seus dons salvíficos e os engaja no serviço de sua mensagem de
reconciliação.
Tomé representa os cristãos que não podem mais contemplar Jesus face a face. No
início, ele deveria chegar à fé pascal pela mensagem pascal dos outros discípulos. Com
isso abre-se a porta para o anúncio de Jesus ressuscitado através dos tempos. Leitoras e
leitores do Evangelho segundo João se sentirão aqui interpelados. É construída a ponte
para o momento presente. Assim como confessam Jesus como o vivente, eles se
reconhecerão presenteados com seus dons pascais. Eles vão querer transmitir a paz de
Jesus e sua alegria, no Espírito Santo.
Beutler D -163
Epílogo: Jesus, Pedro e o Discípulo Amado (Jo 21,1-25)
21 1 Depois disso, Jesus manifestou-se de novo aos discípulos, junto ao mar de
Tiberíades. Foi assim que ele se manifestou: 2 Estavam juntos Simão Pedro, Tomé,
chamado Dídimo, Natanael, de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu e outros dois
discípulos dele. 3 Simão Pedro disse-lhes: “Estou partindo para a pesca”. Eles
disseram: “Nós também vamos contigo”. Saíram e entraram no barco, mas naquela
noite não pescaram nada. 4 Já de manhã, Jesus estava aí na praia, mas os discípulos
não sabiam que era Jesus. 5 Ele perguntou: “Filhos, tendes alguma coisa para comer?”
Responderam: “Não”. 6 Ele lhes disse: “Lançai a rede à direita do barco e achareis”.
Eles lançaram a rede e não conseguiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de
peixes. 7 Então, o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: “É o Senhor!” Simão
Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu sua roupa–pois estava nu–e atirou-se ao
mar. 8 Os outros discípulos vieram com o barco, arrastando as redes com os peixes. De
fato, não estavam longe da terra, mas somente uns duzentos côvados. 9 Quando
chegaram à terra, viram brasas preparadas, com peixe em cima e pão. 10 Jesus disselhes: “Trazei alguns dos peixes que apanhastes”. 11 Então, Simão Pedro subiu e
arrastou a rede para terra. Estava cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes; e
apesar de tantos peixes, a rede não se rasgou. 12 Jesus disse-lhes: “Vinde comer”.
Nenhum dos discípulos ousava perguntar: “Quem és tu?”, pois sabiam que era o
Senhor. 13 Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu-lhes, e de modo semelhante, o peixe.
14
Esta foi a terceira vez que Jesus, ressuscitado dos mortos, se manifestou aos
discípulos.
15
Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu
me amas mais do que estes?” Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo”.
Jesus lhe disse: “Apascenta os meus cordeiros”. 16 E disse-lhe, pela segunda vez:
“Simão, filho de João, tu me amas?”. Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu
te amo”. Jesus lhe disse: “Pastoreia as minhas ovelhas”. 17 Pela terceira vez,
perguntou a Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas?” Pedro ficou triste, porque lhe
perguntou pela terceira vez: “Tu me amas?”. E respondeu: “Senhor, tu sabes tudo; tu
sabes que eu te amo”. Jesus disse-lhe: “Apascenta as minhas ovelhas”.
18
“Amém, amém, digo-te: quando eras jovem, tu mesmo te cingias e andavas por
onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te
levará para onde não queres ir”. 19 Disse isso para dar a entender com que morte
Pedro iria glorificar a Deus. E acrescentou: “Segue-me”.
20
Voltando-se, Pedro viu que também o seguia o discípulo que Jesus amava,
aquele que na ceia se tinha inclinado sobre seu peito e perguntado: “Senhor, quem é
que te trai?” 21 Quando Pedro viu aquele discípulo, perguntou a Jesus: “E este,
Senhor?” 22 Jesus respondeu: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te
importa? Tu, segue-me”. 23 Por isso, divulgou-se entre os irmãos que aquele discípulo
não morreria. Ora, Jesus não tinha dito que ele não morreria, mas: “Se eu quero que
ele permaneça até que eu venha, que te importa?”
24
Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e as pôs por escrito. E nós
sabemos que seu testemunho é verdadeiro. 25 Ora, Jesus fez ainda muitas outras coisas.
Se todas elas fossem escritas uma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia
conter os livros a serem escritos.
Beutler D -164
I
O Evangelho segundo João poderia terminar com a nota final Jo 20,30s. Também
teologicamente, tudo é dito com a cena de Tomé em Jo 20,26-29. O público leitor foi
preparado para sua própria situação, na qual ele é chamado a crer sem ter visto Jesus
fisicamente. Para sua missão anunciadora, a comunidade nascente é provida do Espírito
de Jesus (Jo 20,19-23). Então, que se espera ainda?
Até os primórdios da crítica bíblica moderna, no início do tempo do Iluminismo,
afirmava-se a unidade do Quarto Evangelho, bem como sua origem da mão de João,
filho de Zebedeu. Nesta óptica, o fato de mais uma aparição de Jesus e o dialogo com
Pedro, em Jo 21, eram julgados, com toda certeza, complementações importantes aos
olhos do evangelista.
A situação se modificou com a chegada da crítica literária, no sentido da distinção
das fontes e camadas no Evangelho segundo João, no início do século XX1. Sobretudo
dois eruditos de Göttingen propõem aqui uma visão nova. Segundo Eduard Schwartz, o
Evangelho segundo João não pode remontar ao filho de Zebedeu, porque este, como
deixa suspeitar Mc 10,39, deve ter sido martirizado como seu irmão Tiago (cf. At 12,2).
O Quarto Evangelho remonta, pois, a um autor mais tardio, e é preciso distinguir entre
um primeiro esboço, redações ulteriores e interpolações secundárias. A esta camada
mais recente pertencem o cap. 21 e a identificação do Discípulo Amado com o apóstolo
e autor do evangelho. Também o colega de Schwartz em Göttingen, Julius Wellhausen,
distingue no Quarto Evangelho um escrito básico e reelaborações ulteriores, as quais,
via de regra, se enxertam em passagens joaninas. Wellhausen considera secundária
grande parte dos discursos de Jesus em João. Jo 21, com a identificação do Discípulo
Amado com o filho de Zebedeu, pertenceria à camada mais recente do evangelho
joanino, com utilização, aparentemente, de tradição efesina.
A atribuição de Jo 21 a uma camada ulterior do Evangelho segundo João
determina também em grande medida a investigação crítica do séc. XX. Grande influxo
exerceu, nisso, a crítica literária de Rudolf Bultmann, em seu comentário a João. O
estudioso de Marburg distingue no interior do Quarto Evangelho uma fonte de
discursos, de inspiração gnóstica; uma fonte de sinais; uma fonte do relato joanino de
paixão e ressurreição; a mão do evangelista e, ainda, uma assim chamada “redação
eclesial”, que devia tornar palatável, à Grande Igreja, esse evangelho considerado muito
próximo do gnosticismo. O cap. 21, segundo Bultmann, pertenceria a esta última
camada. Essa proposta se encontra também em autores evangélicos2 e católicos3 de
língua alemã influenciados por Bultmann, mesmo que em tempos recentes se fale antes
numa “redação joanina” ou “pós-joanina”, acentuando-se a continuidade ao lado da
descontinuidade.
Desde a década de 1970 aumenta a tendência a explicar o Evangelho segundo
João–como se faz como outros textos bíblicos –, como ele se apresenta, prescindindo de
fontes e camadas literárias, ou até negando explicitamente a existência dessas 4. Mas
1
Cf. J. BEUTLER, Der Abschluss, 254-256.
Cf. o comentário de J. BECKER, e.o.
3
Teve muita influência o estudo de G. RICHTER, Studien, que, com seu enfoque literário-crítico,
influenciou os alunos do editor J. HAINZ de assim conheceu ampla divulgação. Também M. THEOBALD
no seu comentário presta tributo à herança literário-crítica de Bultmann.
4
G. VAN BELLE, Lʼunité littéraire, defende expressamente a coerência de Jo 21 com o contexto
antecedente; assim também M. HASITSCHKA, The Significance.
2
Beutler D -165
percebe-se que também estes autores, que seguem um modelo de explicação sincrônico,
veem em Jo 21 um apêndice ou epílogo5.
Aqui se mostra útil a proposta de Jean Zumstein para aplicar a Jo 21 o modelo
explicativo da “releitura”6. Segundo este modelo, há textos que só se podem entender
como referindo-se a outros textos, dos quais haurem o seu sentido. Este modo de ver se
deixa aplicar a Jo 21 em sua relação com os capítulos anteriores. Em Jo 21, o Evangelho
segundo João recebe uma “rescrita continuadora”. Não se trata mais de mostrar quem é
Jesus, mas como se devem ver Pedro e o Discípulo Amado na óptica de Jesus. Assim,
em primeira instância, no cap. 21, Pedro é dominante em relação ao Discípulo Amado e
é ele praticamente o único parceiro de diálogo com Jesus, mas o Discípulo Amado
recebe no decurso do capítulo um perfil sempre mais pronunciado e, no fim, torna-se o
portador decisivo da tradição da comunidade leitora. E assim se encerra o evangelho.
A construção de Jo 21 se deixa determinar segundo os pontos de vista da análise
narrativa. Nos primeiros quatorze versículos encontramos o relato de um terceira
aparição de Jesus a seus discípulos, depois da ressurreição. No centro está a cena da
pesca milagrosa. Segue-se um diálogo de Jesus com Pedro. Depois, Jesus, por três
vezes, pergunta Pedro a respeito de seu amor a ele, e três vezes Pedro responde (vv. 1517). Segue-se uma palavra de Jesus, com a qual prediz o destino que espera Pedro,
concluindo com um apelo ao seguimento (vv. 18s.). Quando Pedro então pergunta o que
acontecerá ao Discípulo Amado, Jesus não responde à pergunta, mas repete para Pedro
o apelo ao seguimento (vv. 20-22). Então o narrador interpreta a palavra de Jesus a
Pedro, prevenindo mal-entendido (v. 23). No v. 24, o narrador identifica o Discípulo
Amado com o autor do evangelho que se acaba de ler, antes de encerrar, no v. 25, sua
obra com um final literário análogo ao de Jo 20,30s.
II
A terceira aparição de Jesus aos discípulos (21,1-14)
Na interpretação de Jo 21,1-14, novamente aparecem as diferentes abordagens
metodológicas do Evangelho segundo João. Até nos anos 90 do século passado
predomina a histórico-crítica.
Rudolf Pesch7 reconstrói uma tradição comum que teria constituído a base de Lc
5,1-11 e Jo 21,1-14. As concordâncias entre os dois evangelhos não lhe parecem
suficientes para legitimar a dependência do texto joanino em relação a Lucas. O autor
joanino teria acolhido, além da tradição da pesca milagrosa, outra que se referia a uma
aparição de Jesus à beira-mar. João teria combinado as duas tradições e acrescentado
alguns elementos que lhe pareciam importantes. Segundo Pesch, o autor de Jo 21 se
limita à combinação das duas tradições, sem modificá-la quanto ao essencial.
Frans Neirynck8 julga que Jo 21,1-14 exemplifica que o texto joanino só pode ser
entendido como retomando os evangelhos sinópticos. As modificações em relação a Lc
5,11 se explicam perfeitamente pelas intenções literárias do autor de Jo 21. A hipótese
representada por R. Pesch, de que o autor tenha combinado duas tradições, parece pouco
plausível a Neirynck, visto que, depois da narrativa da pesca milagrosa, sobra pouca
5
Aqui se situa o comentário de U. SCHNELLE.
Cf. J. ZUMSTEIN, Die Endredaktion
7
R. PESCH, Fischfang.
8
F. NEIRYNCK, John 21.
6
Beutler D -166
matéria para uma história de aparição à beira-mar. O motivo da refeição à qual Jesus
convida os discípulos poderia vir da pergunta de Jesus em Lc 24,41: “Tendes aqui algo
a comer?”. O motivo dos peixes poderia vir de Jo 6,13. Tanto a narrativa de Lc 5 como
a de Jo 21 giram em torno da figura de Pedro. A palavra de Pedro: “Senhor, afasta-te de
mim”, em Lc 5,8, corresponderia à exclamação em Jo 21,7: “É o Senhor!”; não é
preciso deduzir esse elemento de uma fonte pré-joanina suplementar. O Discípulo
Amado não tem lugar fixo no relato joanino; só se reencontra em Jo 21,20. O motivo do
seguimento de Jesus poderia remeter a Jo 1,38 e assim, como uma espécie de inclusão,
amarrar o evangelho inteiro.
Segundo R. Fortna9, a proposta de Neirynck não convence. Segundo ele, o texto
joanino contém muitos elementos que não se explicam a partir da tradição sinóptica. O
vocabulário de ambos os textos é muito diferente. Em João falta a reação de Pedro. Por
outro lado, o texto joanino contém elementos que faltam em Lucas, como a
incapacidade de reconhecer Jesus, a retirada das redes para a terra, os 153 peixes
grandes, o fato de que a rede não se rasga e a refeição do Ressuscitado com os
discípulos. Este último elemento poderia provir de Lc 24. Resultado: Fortna vê
confirmada sua hipótese de uma “fonte dos sinais” ou “evangelho dos sinais”.
Visão semelhante encontra-se com Lutz Simon10. Ele vê em Jo 21, como em
outros textos do Evangelho segundo João, uma superposição de escrito básico e
redação. Ao escrito básico devem ser atribuídas as narrativas da pesca milagrosa e da
aparição de Jesus. A redação teria acrescentado, aqui como em outros textos, a figura do
Discípulo Amado. Esta figura é, como alhures, contraposta à figura de Pedro. Para Lutz
Simon, Pedro representa a “função”, o Discípulo Amado a “autoridade”. No justo
equilíbrio entre estas duas dimensões da Igreja, a comunidade joanina e a comunidade
leitora podem encontrar uma base segura e confiável para a sua fé. Assim, a
investigação diacrônica leva a uma visão sincrônica, que levanta a pergunta da
pragmática do texto.
Peter Hofrichter11 permanece no paradigma histórico. Ele submete Jo 21,1-14 a
uma investigação estilística e com base nisso descobre duas camadas literárias no texto
examinado: a camada de Pedro (em duas fases) e a do Discípulo Amado. A camada de
Pedro se revela mais antiga e original e corresponde ao hipotético escrito básico, a
camada do Discípulo Amado é mais nova e corresponde ao que se chama a “redação”
na escola de Georg Richter, na qual Hofrichter se inclui.
Em tempos recentes, tais projetos histórico-críticos são questionados a partir de
uma explicação mais sincrônica. Para Sandra M. Schneiders, em sua dissertação, Lc
5,1-11 e Jo 21,14 provêm da mesma tradição. Por outro lado, a narrativa de Jo 21,1-14
não se deve entender somente a partir da reelaboração de fontes e tradições. O relato
inteiro é “histórico”, mas não real. O Discípulo Amado e Pedro representam duas
dimensões da comunidade: a proximidade a Jesus na contemplação e na missão. Assim,
o último capitulo de João descreve o caminho da fé daqueles que não viram, mas
contudo creram. Neste sentido, Jo 21 não é um corpo estranho no Evangelho segundo
João.
Na sua obra Sinais narrados, Christian Welck submete as abordagens históricocríticas ao Evangelho segundo João à uma crítica metodológica. Segundo este autor
9
R. T. FORTNA, Reading.
L. SIMON, Petrus.
11
P. HOFRICHTER, Joh 21.
10
Beutler D -167
deve-se dar prioridade ao acesso literário. Christian Welck12 vê no inteiro Evangelho
segundo João um texto coerente (com o perigo de confundir um a priori metódico a
favor da sincronia com um julgamento sobre o texto de João). Ele vê em Jo 20,30–21,25
o final do Evangelho segundo João. Jo 21,1-23 é um texto sobre o Discípulo Amado em
função de sua legitimação. Dignas de consideração são as observações deste autor sobre
o Discípulo Amado como figura literária e ideal, não necessariamente histórica.
A opinião de Christian Welck a respeito do papel principal do Discípulo Amado
em Jo 21 não é partilhada por T. Wiarda13. Este vê com boas razões o papel dominante
de Pedro em Jo 21,1-23. Isso se mostra a partir de cinco pontos decisivos e que são
importantes para o público leitor: Pedro se decide para a pesca (v. 3); ele reage à
presença de Jesus e ao milagre (v. 7); ele responde à pergunta de Jesus (vv. 15-17); ele
recebe de Jesus uma predição e apelo (vv. 18-19) e também uma censura (vv. 21-22).
Perspectivas diacrônicas e sincrônicas aparecem também em trabalhos recentes.
Segundo G. Blaskovic14, João tomou Lc 5,1-11 como base para seu texto. Mas o
evangelista não parece como mero colecionador e redator de textos da fonte, mas como
autor autônomo. Ao lado do Evangelho de Lucas, João utilizou também outros textos,
inclusive de seu próprio evangelho, como Jo 6 e a história da vocação dos primeiros
discípulos, em Jo 1,35-51, e também os textos sobre o Discípulo Amado. Em sua forma
final, o texto de Jo 21 é um relato de reconhecimento.
Michael Labahn permanece mais na linha da escola de Lovaina, que explica o
texto joanino preponderantemente a partir dos sinópticos. Como nos outros relatos de
milagre, ele vê também em Jo 21,1-14 uma “oralidade secundária”15. A fonte principal
continua sendo Lc 5,1-11, mas a expressão verbal de João diverge tanto de Lucas, que
mal se pode imaginar o texto de Lucas como modelo escrito direto de João. Por outro
lado, João acolhe alguns elementos que não pertencem ao relato de milagre (da pesca
milagrosa) como tal e que estão relacionados com a redação lucana, tais como a
dimensão missionária e a ligação à vocação dos discípulos. Com isso se exclui que João
tenha utilizado uma forma pré-lucana da tradição. Ao lado da influência intertextual de
Lucas está também a intratextual, de Jo 1–20, especialmente a multiplicação dos pães e
a caminhada sobre o lago em Jo 6,1-15.16-22.
Maurizio Marcheselli16 examina Jo 21 com o modelo da “releitura”. O capítulo se
apresenta como unidade literária, mas mostra também muitas conexões com os
primeiros vinte capítulos de João. Os conceitos sustentadores de Jo 21,1-14 são o
“manifestar-se” de Jesus, a “refeição” e a “missão”. Desdobram-se estes conceitos
básicos. Marcheselli considera também o aspecto eclesiológico, ao qual voltaremos.
Antes da exegese pormenorizada, um olhar sobre a estrutura de Jo 21,1-14.
Distinguimos três cenas: vv. 1-3, 4-8 e 9-14. Depois da introdução (v. 1) fala-se de uma
primeira tentativa de pesca, sem sucesso, por parte dos discípulos durante a noite (vv. 23). No v. 4 aparece Jesus. A cena acontece de madrugada e descreve uma nova tentativa
de pesca, agora com sucesso (vv. 4-8). Na terceira e última cena descreve-se uma
refeição que Jesus preparou e à qual ele convida os discípulos (vv. 9-13). A narrativa se
encerra com um comentário do evangelista (v. 14). Pela menção ao “manifestar-se” de
12
C. WELCK, Erzählte Zeichen.
T. WIARDA, John 21,1-23.
14
G. BLASKOVIC, Erzählung.
15
M. LABAHN, Fischen, 135f.; cf. ID., Beim Mahl, 773.
16
M. MARCHESELLI, Avete qualcosa.
13
Beutler D -168
Jesus (duas vezes no v. 1 e ainda no v. 14), a narrativa é arrematada, apresentando-se
como unidade textual fechada.
21,1-3
O v. 1 serve de introdução para os vv. 2-14 e também para a secção inteiro dos vv.
2-23. O conceito “manifestar-se” amarra os vv. 1-14 e, por causa da repetição no fim do
versículo, também o próprio v. 1. “Manifestar-se” não se encontra alhures nos relatos
das aparições pascais de Jesus. Ele se encontra, porém, em sentido cristológico, no
Evangelho segundo João desde o cap. 1: o Batista é enviado para que Jesus “seja
manifestado a Israel” (Jo 1,31). Em Jo 7,4, os irmãos de Jesus incitam-no para que viaje
a Jerusalém a fim de lá “manifestar-se ao mundo” por meio de obras espetaculares.
Jesus, porém, deve esperar seu “tempo”, que chegará com a sua morte e ressurreição (Jo
7,6). Este momento chegou em Jo 21,1. Jesus manifestar-se-á aos seus discíuplos, mas
essa manifestação não se limitará a Israel; alcançará o mundo inteiro, que espera a
salvação. Pela substituição do “vir” (érkhesthai, Jo 20,20.26) por “manifestar-se”
percebe-se um deslocamento, da visão cristológica para a eclesiológica: Jesus se
manifesta aos seus.
Depois disso (metà taûta), no início do v. 1, é uma fórmula corriqueira no início
das narrativas em João (cf. 6,1; 7,1). Não surpreende enquanto fórmula; mas surpreende
porque, assim, é sugerida uma continuidade do relato depois de Jo 20,30s., como se não
houvesse problema em contar mais outros relatos da ressurreição.
“Junto ao mar de Tiberíades” indica o lugar da manifestação de Jesus. Até aqui,
João, como Lucas (e o final secundário de Marcos), só falou das aparições de Jesus em
Jerusalém, à diferença de Mateus. Convém lembrar, porém, que o lago de Tiberíades é o
cenário da pesca milagrosa em Lc 5,1-11, com a qual o relato joanino parece ter muito
em comum. Marcus chama esse lago de “mar da Galileia” (Mc 1,6), Lucas, de “lago de
Genesaré” (Lc 5,1). O narrador de Jo 21 tomou a mesma liberdade: nomeou o lago de
acordo com a necessidade e o costume de seu público leitor. A mesma expressão, “mar
de Tiberíades”, aparece também em Jo 6,1.
O v. 2 descreve o grupo dos discípulos que se encontram junto ao lago, e o v. 3, a
atividade deles. A expressão “eles estavam juntos” (êsan homoû) faz pensar nos
discípulos na tarde da Páscoa e oito dias depois (Jo 20,19s.26). Mas aqui, os discípulos
estão juntos para retomar sua profissão civil. Os nomes dos discípulos são, em parte,
tomados da tradição joanina (“Simão Pedro”, “Tomé, chamado Dídimo”, “Natanael”),
em parte, da tradição sinóptica segundo Lc 5 (“os filhos de Zebedeu” e novamente
“Pedro”). A expressão “dois outros de seus discípulos” criou um vazio a ser preenchido
pelo público leitor. Pouco depois, encontraremos no texto o “discípulo que Jesus
amava” (v. 7), que poderia pertencer aos dois discípulos anônimos e ser um dos filhos
de Zebedeu. Esta obscuridade, provavelmente consciente, foi destacada por H. Thyen17.
O autor do Evangelho segundo João, ou o de Jo 21, pelo que parece, deixa a identidade
do Discípulo Amado vaga conscientemente.
A designação de Pedro como “Simão Pedro” faz pensar em Jo 1,40, e a de “Tomé,
chamado Dídimo”, em Jo 11,6; a caracterização de Natanael como sendo de Caná da
Galileia lembra Jo 2,1-11. Pelas expressões escolhidas, o autor liga o cap. 21 ao corpo
do evangelho.
17
H. THYEN, Noch einmal.
Beutler D -169
Depois da nomeação dos discípulos no v. 2 segue, no v. 3, a descrição daquilo que
fazem. No início está a comunicação de Pedro, “parto para a pesca”, e a decisão dos
discípulos de acompanhá-lo. Logo segue a notícia do insucesso. A disposição e
convocação de Pedro surpreende, por duas razões. Até aqui não era do conhecimento do
leitor o fato de Pedro e os primeiros discípulos serem, juntos, pescadores do mar da
Galileia. Mais ainda surpreende que Pedro aparentemente voltou à Galileia para retomar
sua profissão civil, como se Jesus não o tivesse enviado com os outros discípulos para a
missão de perdoar os pecados (Jo 20,21-23). As dúvidas recrudescem quando, a seguir,
ouvimos que nem Pedro, nem algum outro discípulo, reconhece o Senhor na margem do
lago. Esta terceira “manifestação” de Jesus depois de sua ressurreição parece mais uma
“primeira” – e isso não se explica facilmente com os métodos da leitura sincrônica.
A diferença principal entre o relato joanino e o de Lucas consiste nisto, que, em
Lc 5,4, Jesus ordena a Pedro de lançar a rede para pescar, enquanto em Jo 21,3 o
próprio Pedro toma a iniciativa. Esta diferença pode ter um fundo teológico. A pescaria
por conta própria vai malograr, a por ordem de Jesus será coroada de sucesso. Isto se
mostrará logo depois, na segunda tentativa de pesca, em execução da ordem de Jesus (v.
6). É digno de nota que Pedro, nesta cena, aparece como inconteste porta-voz do grupo
dos discípulos, a quem todos os outros se aliam sem hesitação. No Evangelho segundo
João, antes do cap. 21, Pedro mal possui autoridade, prescindindo de sua confissão de fé
em Jo 6,69, texto que pode ter sido acrescentado sob influência da tradição sinóptica18.
O resto do v. 3 descreve o malogro da tentativa de pesca por iniciativa própria.
Mesmo que o motivo se encontre também em Lucas, para o imaginário joanino não é
por acaso que o a pesca malograda se dá “de noite”. A noite é, em João, símbolo do
afastamento de Deus. Nicodemos vem a Jesus “de noite” (Jo 3,2). É preciso fazer as
obras de Deus enquanto é dia; vem a noite, quando ninguém mais pode trabalhar (Jo
9,4). No momento em que Judas deixa o grupo dos discípulos para entregar Jesus, é
noite (Jo 13,30). A pesca só produzirá sucesso na luz da madrugada, por ordem de Jesus
(Jo 21,4s.)
21,4-8
Nos versículos seguintes, vv. 4-8, é narrada a aparição de Jesus à beira do lago, no
crepúsculo matutino. Jesus continua sendo o centro dos versículos que agora se seguem.
No v. 4 se relata que os discípulos não o reconheceram. No v. 5, Jesus se dirige aos
discípulos com a pergunta se eles têm algo a comer. Eles dizem que não. Então Jesus
toma novamente a iniciativa e ordena-lhes que lancem a rede. Eles acatam o convite e
logram rica pesca (v. 6). O Discípulo Amado reconhece Jesus por causa da pesca
milagrosa e Pedro se lança à água para ir ao encontro do Senhor (v. 7). Então também
os outros discípulos vêm à terra e puxam a rede cheia de peixes (v. 8).
A indicação do tempo no v. 4, “de madrugada”, delimita esta cena da precedente.
Durante a noite, os discípulos não pescaram nada. Na visão do autor de Jo 21, a razão é
que tentaram pescar por iniciativa própria. Estão na noite – não só em sentido literal. Na
luz da madrugada lhes aparece Jesus, mas os discípulos não o reconhecem
imediatamente, o que não deixa de ser estranho depois de Jo 20,19-23 e 20,26-29.
A pergunta de Jesus no v. 5 não se explica facilmente como introdução à cena da
pesca milagrosa; prepara antes a cena da refeição. “Filhinhos” (paidía) não ocorre no
resto do Evangelho segundo João, mas sim em 1Jo 2,14.18 como alocução aos membros
18
Para isso, ver também M. LABAHN, Beim Mahl, 766s.
Beutler D -170
da comunidade; cf. teknía em Jo 13,33. A palavra pertence ao vocabulário sapiencial. O
termo prosphágion (literalmente “complemento alimentar”, usado principalmente para
peixe) é único no Novo Testamento, mas se insere bem na terminologia da refeição,
retomada nos vv. 9-13. Assim a pesca é articulada com a refeição que vai seguir, como
bem observou Maurizio Marcheselli19.
A pesca propriamente é relatada no v. 6 no vocabulário adequado. O convite de
lançar a rede pelo lado direito pode se relacionar com a ideia do lado direito como lado
da sorte, ou também pela diacronia. Os discípulos não conseguem puxar a rede à terra
por causa da grande quantidade de peixes. O verbo helkýein corresponde ao vocabulário
joanino, cf. 6,44; 12,32, onde é usado em sentido metafórico em relação a Jesus ou a
Deus, que atraem para si os fiéis.
No v. 7 aparece inesperadamente o Discípulo Amado, que não fora nomeado na
apresentação dos sete discípulos no v. 2. Como de costume, ele se encontra ao lado de
Pedro. Exclama: “É o Senhor”. Este título cabe a Jesus depois de sua ressurreição. Não
o Discípulo Amado, mas Pedro se lança à água para se encontrar com Jesus. A cena é
semelhante à da corrida ao sepulcro em Jo 20,1-10. Em ambos os casos é o Discípulo
Amado que por primeiro reconhece Jesus ou sua ressurreição, enquanto a Pedro cabe a
preferência no acesso a Jesus. Que Pedro “se cinge” não é imediatamente
compreensível. Provavelmente, L. Hartmann20 acerta quando vê uma conexão entre o
“cingir-se” do v. 7 e o “ser cingido” por outro, na sua velhice, segundo o v. 18.
No v. 8, seguem agora os outros discípulos com o barco. Por causa da quantidade
dos peixes, eles mal conseguem puxar a rede à terra. Como nos vv. 6 e 11, o autor usa
aqui o termo ikhthýs e não opsárion, que fica reservado para o peixe preparado21.
21,9-14
À história da pesca milagrosa segue-se a da refeição que Jesus preparara para os
seus. Esta última parte do conjunto narrativo é caracterizada pela frequente troca do
sujeito. No v. 9 relata-se que os discípulos na praia encontram uma fogueira de brasas,
sobre a qual pão e peixe preparados. No v. 10, Jesus fala e manda os discípulos
trazerem algo dos peixes que pescaram. Pedro, no v. 11, acata a ordem. Depois, no v.12,
Jesus convida os discípulos a comer da refeição que lhes preparou, enquanto eles ficam
inseguros a respeito de sua identidade. O oferecimento dos alimentos por Jesus, no v.13,
está descrita em termos quase eucarísticos. O v. 14 constata que essa era a terceira
manifestação de Jesus depois de sua ressurreição.
Antes de olhar para a tradição à base do texto ou para sua pragmática no leitor,
cabe analisar de mais perto os versículos aqui em pauta. No v. 9 está central a refeição
preparada por Jesus. Os discípulos que vieram à terra veem as brasas com o peixe e o
pão preparados por Jesus. O fogo de brasas lembra aquele com o qual Pero se aqueceu
na noite de sua tripla negação. Assim já se prepara a tripla renovação de sua fidelidade e
amor a Jesus (vv. 15-17). Quanto ao peixe preparado por Jesus lemos agora, nos vv. 10
e 13, opsárion, terminologia usada só nesta secção e na cena da multiplicação dos pães,
em Jo 6,9.11.
O v. 10 é cunhado totalmente no vocabulário joanino. Novamente o peixe
preparado é chamado de opsárion. O ato de pescar é expresso por um verbo que em
19
M. MARCHESELLI, Avete qualcosa.
L HARTMAN, Attempt.
21
Cf. A. PITTA, Ichthys.
20
Beutler D -171
outros textos de João é usado para as diversas tentativas de prender Jesus (piázo, cf. Jo
7,30.32.44; 8,20; 10,39; 11,57). Nos sinópticos só aparece uma vez, em outro contexto e
forma (piézo, em Lc 6,38). Sem uma reflexão sobre a dimensão narrativa, fica
incompreensível a ordem de Jesus, visto que já tem outro peixe preparado para os
discípulos.
A ordem de Jesus é acatada por Pedro, porta-voz do grupo, no v. 11. Os outros
tinham puxado a rede até a margem (v. 8), mas só Pedro a leva à terra (para helkýein, cf.
v. 7), cheia de 153 grandes peixes. Apesar da grande multidão de peixes, a rede não se
rasga. Este elemento é frequentemente interpretado como imagem da unidade da
comunidade. O número de 153 permanece bastante enigmático. Corrado Marucci22
distingue quatro soluções:
– o modelo “histórico”: pescaram-se e contaram-se, de fato, 153 peixes;
– o modelo “ictiológico”: segundo João existem 153 espécies de peixes;
– o modelo da “simbologia dos números”: desde o tempo de Agostinho procura-se um
simbolismo numérico (p. ex., 153 = soma dos números 1 a 17 etc.).
– o modelo “gemátrico”: o número representa uma sequência de letras (como Eglaim,
lugar mencionado em Ez 47,10 em relação com o saneamento da fonte do Templo
que, segundo Ez 47,1-11, sai do lado direito [!] do Templo).
Com boas razões, Marucci se mostra cético quanto a essas tentativas de
explicação. A solução poderia estar na análise narrativa23 (cf. infra).
A mais antiga interpretação dos 153 grandes peixes encontra-se no comentário a
Ezequiel de Jerônimo24. Em Ez 47 fala-se da fonte do Templo, que, crescendo até um
rio considerável, se lança no mar Morto, o qual, assim, fica saneado. Neste mar pululam
os peixes, e estes fazem Jerônimo pensar nos 153 grandes peixes de Jo 21,11. Para ele,
representam 153 espécies de peixes encontradas no autor grego Opianus Cilex [da
Cilícia]*. Com isso se pensa na diversidade universal das multidões de povos, reunidas
pela obra missionária. São importantes a conexão de Jo 21,11 com a tradição da fonte
do Templo e com os temas de vida e plenitude, mesmo sem a interpretação gemátrica
dos nomes En Gadi e En Eglaim em Ezequiel25.
No v. 12, Jesus convida os à refeição a manhã. O verbo se restringe a este texto
(também v. 15) e Lc 11,37. O tipo da refeição se explica pela hora matutina, depois da
pesca, e pelo costume dos cristãos de realizar sua refeição cultual no dia do domingo, de
manhã cedo. A tensão entre a hesitação dos discípulos e o fato de eles saberem que é o
Senhor não se resolve facilmente. Talvez haja um indício no verbo exetázein, que
significa antes “examinar” do que “perguntar”. Os discípulos podiam estar tentados a
procurar, como Tomé, provas da identidade do Ressuscitado, mas desistem, porque tais
provas, afinal, não são necessárias.
No v. 13 menciona-se pela primeira vez o “vir” de Jesus. O verbo érkhesthai não
representa aqui o vir escatológico de Jesus ressuscitado, como em 20,19.26, mas
descreve apenas um movimento de Jesus em direção aos seus, com feições de encontro.
22
C. MARUCCI, Significato.
Cf. T. NICKLAS, “153 grosse Fische”.
24
Commentariorum in Ezechielem Prophetam Libri XIV, PL 25, 474C, agora em CChr.L 75, ed. F.
GLORIE, 717. Cf. a referência em R. E. BROWN II 1074, agora mais elaborada em M. RASTOIN, Encore
une fois.
25
Como faz M. RASTOIN, Encore und fois. Outras propostas gemátricas em M. KILEY, Three More Fish
Stories.
23
Beutler D -172
Os verbos com que se descreve o gesto de Jesus soam conhecidos ao público leitor. De
fato, são tomados de Jo 6,11, sem o elemento da “ação de graças”. Mas também sem
isso o vocabulário é eucarístico. A distribuição dos peixes (com o termo opsárion)
lembra esse mesmo versículo.
O versículo final, 14, resume todo o acontecimento sob o tema da “manifestar-se”
de Jesus. Ele se manifesta tanto no milagre da pesca quanto no convite para a refeição.
O termo tríton é utilizado como advérbio (“pela terceira vez”), sem demonstrar a
presença de uma “fonte dos sinais”26.
Quanto à história da tradição subjacente a Jo 21,9-14 reina bastante unanimidade
entre os exegetas. Por uma lado pode haver influência da cena da pesca milagrosa, Lc
5,1-11, por outro lado da aparição de Jesus na Páscoa, Lc 24,36-49. Segundo a opinião
mais comum, o contato do texto joanino com os sinópticos é indireto, segundo a escola
de Lovaina, antes direto. Na cena de Lc 24,36-49, Jesus pergunta aos discípulos:
“Tendes algo para comer” (ékheté ti brṓsimon entháde?, Lc 24,41). Logo Jesus
consome um pedaço de peixe diante dos olhos deles. Em Lucas, a cena tem orientação
apologética; o fato de Jesus comer diante dos olhos de seus discípulos prova a
verdadeira corporeidade de sua ressurreição. cf. At 10,41).
Em João a refeição que Jesus prepara diante dos seus tem outra finalidade. Jesus
não participa da refeição, ele a oferece. A orientação não é apologética, mas
eclesiológica. Jesus, que, simbolicamente, se encontra na beira-mar, naquela margem
em que os discípulos tinham sido convidados a avançar mar adentro, preparou para eles
o dom vivificante da eucaristia. Os discípulos contribuem para isso com os peixes que
eles mesmos pescaram. O público leitor fica sem saber se Jesus comeu dos peixes que
os discípulos aportaram. Novamente o texto deixa aqui um “vazio”, que as leitoras e
leitores devem preencher.
Com isso é plantada a pergunta da estratégia narrativa do texto. Segundo Maurízio
Marcheselli27, a pesca, nesta perícope, representa a obra missionária do grupo dos Doze,
e a refeição, a Eucaristia. A mistura das duas espécies de peixes em Jo 21,4-11 –
aqueles que os discípulos pescaram e o opsárion oferecido por Jesus – significa a
ligação interna de duas dimensões da Igreja: para fora, a missão, para dentro, a
celebração da comunidade. Jesus inspira ambas as orientações e as leva à unidade.
Os repetidos “vazios” no texto devem ser preenchidos pelas leitoras e leitores. As
perguntas de como uma só pessoa podia trazer tantos peixes à terra ou por que a rede
não se rasga não se resolvem com a lógica do dia a dia, mas convidam o público leitor a
descobrir, na narrativa, dimensões da fé. O mesmo vale da tensão entre o “saber” dos
discípulos acerca da identidade do homem na praia e o desejo deles de examinar. Nesta
óptica poderíamos ver no número “indecifrável” dos “153 grandes peixes” um aceno às
especulações que foram feitas na história da pesquisa, na linha da última frase do
evangelho: “Nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever”28.
A missão de Pedro e seu chamado ao seguimento (21,15-19)
Em Jo 21 aparece um interesse especial pela pessoa de Pedro. Ele ocupa o
primeiro lugar na enumeração dos sete discípulos que se encontram na margem do mar
de Tiberíades (v. 2). É ele que toma a iniciativa para ir pescar (v. 3). Quando o
26
Cf. F. NEIRYNCK, Note.
M. MARCHESELLI, Avete qualcosa.
28
Cf. novamente T. NICKLAS, “153 grosse Fische”.
27
Beutler D -173
Discípulo Amado diz que o homem na praia é Jesus, Pedro se cinge e pula na água para
ir ao encontro do Senhor (v. 7). No momento em que Jesus pede que os discípulos
tragam à terra os peixes que pegaram, Pedro é quem acata esta ordem (v. 11). Assim, do
início ao fim, Pedro aparece como o porta-voz e protagonista.
O diálogo seguinte se dá entre Jesus e Pedro. Nos vv. 15-17, Jesus pergunta a
Pedro três vezes se ele o ama e o designa como pastor das suas ovelhas. Nos vv. 18-19,
tendo predito a Pedro seu futuro, Jesus ordena que o siga. Nos vv. 20-22, Jesus responde
a uma a pergunta de Pedro acerca do destino do Discípulo Amado. No v. 23, o autor
explica essa resposta.
Ao longo do capítulo, o Discípulo Amado avança sempre mais para o primeiro
plano. No v. 7, ele é introduzido como o discípulo que por primeiro reconhece Jesus à
margem do lago e comunica isso aos outros. Isso prepara as cenas seguintes. No diálogo
entre Jesus e Pedro, nos vv. 15-23, ele aparece como objeto da conversa. Os vv. 20-23
servem para explicar uma palavra de Jesus, dizendo que o Discípulo Amado deve
“permanecer”. Esse “permanecer” do Discípulo Amado é interpretado nos dois últimos
versículos do capítulo. No v. 24, ele é identificado como aquele que “escreveu” o
evangelho que precede (pelo menos, a última parte dele). Este livro escrito não pode
contar todos os fatos de Jesus, pois o mundo inteiro não bastaria para acolher os livros
que seria preciso escrever.
Do ponto de vista narrativo percebe-se, no texto, um deslocamento da figura de
Pedro para aquela do Discípulo Amado. Pedro continua como porta-voz do grupo, mas
o Discípulo Amado avança, entretanto, sempre mais como a autoridade que fundamenta
a fé da comunidade leitora por causa de seu testemunho registrado em livro. Assim põese a questão do sentido da incumbência de Pedro como “Pastor”, no diálogo de Jo
21,15-17.
21,15-17
Esta breve secção caracteriza-se pelas repetições, com leves variações. Quase
todos os verbos estão no presente, exceto ērísthēsan (eles comeram) e elypḗthē (ele se
entristeceu) no v. 17. O primeiro serve para abrir a cena, o segundo fala da reação de
Pedro à tripla pergunta. No triplo diálogo não se nomeia a pessoa que toma a palavra.
Forma-se assim um relato de muita vivacidade, reforçado ainda pelo uso constante do
presente histórico (seis vezes légei, literalmente, “ele diz”). Pela enumeração deúteron
... tríton (“pela segundo vez”, “pela terceira vez”) cria-se um clímax claramente
perceptível em direção ao final do diálogo, onde se insere bem o estado de alma de
Pedro: “ele se entristeceu” (elypḗthē).
Pela expressão “depois de comerem” (hóte oûn ērístēsan), o v. 15 liga a secção à
precedente (cf. v. 12). Só no primeiro versículo mencionam-se os nomes dos
interlocutores: “Jesus” e “Simão Pedro”. Este último nome é retomado no versículo
seguinte em sua forma arcaica: “Simão, filho de João”, não mais mencionado desde a
cena da vocação em Jo 1,42, porém presente na cena de Cesareia de Filipe, Mt 16,17. A
referência a Jo 1,42 pode significar o início de uma nova relação, de acordo com a do
primeiro encontro entre Jesus e Pedro. A reminiscência de Mt 16,17 lembra a
incumbência confiada a Pedro na cena de Cesareia de Filipe.
No que se segue, os autores discutem se as expressões diferenciadas para “amar”
(agapân/phileîn), “apascentar” (bóskein/poimaínein) e “ovelhas” (próbata/arnía)
Beutler D -174
representam apenas variações lexicais ou nuanças diferentes. K. M. McKay29 conclui,
de um estudo minucioso, que pelo menos nos casos de “apascentar” e de “ovelhas” não
se percebem diferenças semânticas. Possivelmente há diferença entre as diversas
expressões para “amar”, agapân e phileîn. O primeiro verbo vem do vocabulário da
Septuaginta, o segundo, do helenístico. Mas a diferença não tem muito peso.
O sentido da pergunta do v. 15, “Amas-me mais do que estes?”, continua em
discussão. A maioria dos exegetas a interpreta no sentido aqui formulado, como
referindo-se a diversas pessoas. Outra possibilidade seria traduzir: “Amas-me mais do
que estas coisas?”, referindo-se à atividade profissional de Pedro30. Mas a referência a
pessoas e não a coisas justifica-se pelo papel de liderança que Pedro tem em Jo 21 31.
Possivelmente a pergunta alude à autoconfiança de Pedro quando prometeu a Jesus que
nunca o abandonaria (Jo 13,37). A tripla pergunta se explicaria a partir da tripla negação
de Pedro em Jo 18,15-18.25-27. Pedro deve renovar seu amor e fidelidade a Jesus antes
que possa receber dele o cuidado de seu rebanho.
O amor a Jesus faz pensar, aliás, no mandamento-mor do amor a Deus em Dt
6,4ss., ao qual se referem Jo 5,41-44 e 8,41s., cf. também 14,15-24. Ao confessar seu
amor a Jesus, o Filho de Deus, Pedro corresponde a este mandamento fundamental de
Israel.
O tema do pastor que apascenta o rebanho é preparado no discurso do pastor em
Jo 10,1-18.26-29. Este discurso é inspirado pelo tema do pastor na profecia exílica e
pós-exílica (cf. Jr 23 e 24). Jesus mesmo é o bom pastor que o Pai prometeu ao povo de
Israel. Ele apascenta o rebanho do Senhor e está disposto a dar sua vida pelas ovelhas
que lhe são confiadas. Pedro deve segui-lo nisso. O rebanho que lhe é confiado
permanece o rebanho do Senhor32.
O conceito do pastor está presente também em outros textos do Novo Testamento
que falam da incumbência do líder da comunidade cristã (cf. 1Pd 5,1-4; At 20,28; Ef
4,11). Na 1Pd (5,1), o apóstolo se chama “co-ancião” dos anciãos das comunidades da
Ásia Menor. Exorta os anciãos a apascentar corretamente o rebanho de Deus (5,2). O
autor da Carta aos Hebreus chama Jesus “o grande pastor das ovelhas” (13,20). Assim
se confirma a orientação dada os pastores da comunidade para verem em Jesus a origem
e modelo original do seu serviço.
A relação entre Jo 21,15-17 e Mt 16,17s. é discutida não somente na literatura
católica33. Os textos têm em comum a designação de Pedro para o serviço da
comunidade dos fiéis. Em Mateus a incumbência é formulada num tom mais judicial.
Não obstante, a tradição da exegese católica vê conexão entre os textos de Mateus e de
João, no sentido de “promessa” e “conferência” do primado. Desde a metade do século
XX propõe-se também ver por trás de ambos os textos uma tradição a respeito de um
acontecimento pós-pascal. Isso não deixou de suscitar irritação nos círculos romanos34.
29
K. M. MCKAY, Style.
So S. BARBAGLIA, “Darai la tua vita”.
31
Cf. M ORSATTI, “Mi ami di più”.
32
Assim acentua também M. ÖHLER, Der “Mietling“ Petrus. Mas isso não significa que Pedro, neste texto
e em João em geral, aparece mais como pastor “mercenário” do que como pastor certo. Se, uma vez,
reparou sua desistência na negação e fuga, agora pode ser estabelecido como pastor.
33
Cf. A. VÖGTLE, Messiasbekenntnis; ID., Ekklesiologische Auftragsworte; U. WILCKENS, Joh 21,15-23;
U. HECKEL, Hirtenamt
34
Assim, o professor do Pontifício Instituto Bíblico Maximilian Zerwick SJ recebeu no pontificado de
João XXIII a proibição de lecionar por ter levantado, numa conferência no norte da Itália, a pergunta da
30
Beutler D -175
Mas a partir do concílio Vaticano II também a exegese católica aprendeu a compreender
os textos neotestamentários a partir de seu conteúdo teológico. No texto de Mt 16
exprime-se a convicção da Igreja siríaca de um primado de Pedro entre os apóstolos. O
texto de Jo 21 não está muito longe disso. O papel de Pedro tem sido examinado por
diversos grupos de trabalho, inclusive ecumênicos, com posições geralmente bastante
próximas da parte de católicos e protestantes35. Até o fim do século II não se deduz de
Mt 16 e Jo 21 um primado do bispo de Roma. A doutrina completa do primado da
jurisdição do Papa em relação à igreja inteira só se encontra a partir dos papas Inocêncio
III (1199) e Bonifácio VIII (1303).
21,18-19
Depois da incumbência de Pedro para apascentar as ovelhas segue-se uma
exortação que diz respeito sua relação com Jesus: ele deve segui-lo. A breve secção é
introduzida pela fórmula “Amém, amém, digo-te”, que também em outros textos
joaninos introduz uma palavra de Jesus (cf. 1,51; 3,3, e.o.). Segue-se uma palavra de
Jesus a respeito de Pedro, em duas partes, no indicativo (depois dos três imperativos dos
vv. 15-17). A primeira parte se refere ao passado de Pedro, a segunda, a seu futuro.
Nesta palavra dupla mostra-se a tensão entre juventude e idade provecta, entre cingir-se
e ser cingido, entre ir aonde se quer e ir aonde não se quer. Conecta-se a isso uma
explicação do narrador. No final aparece um convite de Jesus no imperativo presente.
Os tempos utilizados nesta secção mostram um movimento do passado para o futuro e,
daí, novamente para o presente. Esse movimento parece importante para a dimensão
pragmática do texto. O convite de Jesus a Pedro para segui-lo é retomado no v. 22.
A introdução da secção no v. 18, com a fórmula “Amém, amém, digo-te”, confere
à palavra de Jesus alto grau de solenidade e de confiabilidade. Já apontamos os
contrastes na descrição da biografia de Pedro. O verbo “cingir-se” foi utilizado
anteriormente na preparação de Pedro para se lançar à água (v. 70). Possivelmente
Jesus se refere conscientemente a estes gestos. Paro o futuro, Jesus prediz a Pedro que
outro lhe cingirá as mãos estendidas. Ao ir aonde quer corresponde a ir aonde Pedro não
quer. O vocabulário e a forma literária da palavra fazem pensar num provérbio.
Segundo a palavra profética de Jesus, Pedro conhecerá a mesma sorte que seu Senhor,
cf. Jo 18,12s.: “O batalhão, o comandante e os guardas dos judeus tomaram Jesus
consigo, amarraram-no e o conduziram, primeiro, a Anás”. O vocabulário não é
exatamente o mesmo que em Jo 21,8, mas encontram-se verbos sinônimos; trata-se da
mesma experiência.
No início do v. 19, o narrador interpreta a linguagem figurativa do versículo
anterior. Com a predição de que Jesus será conduzido para onde não quer foi indicado o
seu martírio. No Evangelho segundo João, a expressão “glorificar Deus pela morte
(violenta)” foi utilizada em conexão com a morte de Jesus na cruz (cf. 12,32). O verbo
doxázō é utilizado, no Evangelho segundo João, para a “glorificação” de Jesus pelo Pai
ou para a “glorificação” do Pai pelo Filho (cf., por exemplo, Jo 13,31s.). Um único texto
em Jo 1–20 menciona os discípulos como “glorificando” a Deus, a saber, Jo 15,8, no
discurso da videira verdadeira: os discípulos “glorificam” Deus quando produzem muito
fruto. Ora, o capítulo em que este texto ocorre é atribuído por muitos autores atuais a
uma camada posterior à camada principal do Quarto Evangelho. O uso do verbo
Anton Vögtle, se não estaria por trás de Mt 16,18 e a atribuição do primado em Jo 21,15-17 o mesmo
evento pós-pascal. A proibição só foi retirada sob o papa Paulo VI. Cf. J. BEUTLER, Zerwick, Max.
35
Cf. u. a. R. E. BROWN, K. DONFRIED, J. REUMANN, ed., Peter in the New Testament.
Beutler D -176
“glorificar” está sendo “eclesializado”. Coisa semelhante nota-se em Jo 21,19: Pedro
“glorificará” Deus por sua morte violenta, assim como seu Senhor o fez antes dele.
Assim explica-se a ordem: “Segue-me!”. No relato da vocação de Pedro (Jo 1,41s.) não
se mencionou uma ordem expressa de Jesus a Pedro para segui-lo. Pode-se dizer que a
exigência de Jesus em Jo 21,19 retoma a vocação de Pedro em Jo 1,41s. e a completa,
de modo que, assim, se cria uma inclusão entre o capítulo primeiro e o último.
Para a origem da vocação de Pedro ao seguimento em Jo 21,19 devemos apontar
novamente a história da pesca milagrosa em Jo 5,1-11. O relato de Lucas substitui os de
Marcos (1,16-20) e Mateus (4,18-22), segundo os quais Jesus, à beira do mar da
Galileia, convocou os primeiros quatro discípulos a segui-lo com a predição de que faria
deles “pescadores de homens”. Lucas retoma este anúncio e o aplica a Pedro: “A partir
de agora pescarás homens” (Lc 5,10). O texto lucano termina assim: “E conduziram os
barcos à terra e, deixando tudo, seguiram-no” (Lc 5,11). O último verbo é retomado em
Jo 21,19 e aplicado a Pedro: “Segue-me!” (akoloúthei moi).
O fluxo narrativo de Jo 21,15-19 permite reconhecer um movimento do agir para
o sofrer, e nisso esconde-se uma estratégia narrativa. Os vv. 15-17 ainda focalizam o
agir de Pedro. Unido a seu Senhor no amor, ele deve apascentar o rebanho dele. Na
primeira metade do v. 18 ainda se descreve a iniciativa de Pedro, que se pode cingir e ir
aonde quer. O ponto de virada se encontra na segunda metade da comparação: Pedro
será cingido por outro e conduzido aonde ele não quer. Sem dúvida, o autor de Jo 21
descreve nesse movimento uma evolução na existência do discípulo. O engajamento
pelo rebanho do Senhor pode ter consequências para a própria vida, até o sacrifício da
própria vida. Suscitar a disposição para isso é algo que já apareceu como finalidade
constante do Evangelho segundo João36.
A palavra de Jesus acerca do Discípulo Amado. Segundo final do
Evangelho segundo João (21,20-25)
Ao diálogo entre Jesus e Pedro acerca da missão de Pedro, fundada no amor, e
acerca de seu destino (Jo 21,15-17.18s.), segue-se outro diálogo, acerca do Discípulo
Amado (vv. 21-23). A pergunta de Pedro a respeito desse outro discípulo não recebe
resposta de Jesus, antes, parece ser rechaçada. No lugar de tal resposta vem a repetição
do convite: “Tu, segue-me” (sý me akoloúthei. v. 22), semelhante ao convite do v. 19,
akoloúthei moi. O verbo akoloutheîn enquadra, assim, o grupo dos versículos 20-22.
Pedro vê o Discípulo Amado “seguindo” Jesus e pergunta o Senhor a respeito dele. A
pergunta não é respondida diretamente por Jesus; antes, o diálogo termina com a
renovada injunção dirigida a Pedro: “Segue-me”. Sob este duplo respeito, o v. 23 é um
comentário do autor de Jo 21 num nível que se situa para lá do nível narrativo. O
versículo explica o verdadeiro sentido da palavra de Jesus a respeito do Discípulo
Amado e corrige uma interpretação errônea.
Os dois últimos versículos do capítulo (e do Evangelho segundo João inteiro)
novamente focalizam o Discípulo Amado. Este é identificado com a testemunha
autêntica e com o autor “destas coisas”. O verbo gráphein faz a transição entre os vv. 24
e 25. O mundo inteiro não poderia conter os livros que deveriam ser escritos para
apresentar exaustivamente o que Jesus fez. Normalmente se vê aqui uma alusão a Jo
20,30s.37. Nota-se a introdução da 1ª pessoa nestes dois versículos: a 1ª pessoa do plural
36
37
Cf. J. BEUTLER, Faith and Confession.
Semelhantemente C. ROBERTS, John 20:30-31.
Beutler D -177
no v. 24 e do singular no v. 25. O “nós sabemos” do v. 24, a respeito da verdade do
testemunho do Discípulo Amado, torna-se “eu penso” – a respeito da insuficiência do
mundo inteiro para conter os livros a serem escritos para descrever exaustivamente o
que Jesus fez. O sentido desta repetida 1ª pessoa será explicado na exegese
pormenorizada38.
21,20-23
Antes de ver as diversas interpretações históricas e literárias dos vv. 20-23
convém explicar o sentido literal. Novamente temos de distinguir entre um dialogo de
Jesus e Pedro, nos vv. 20-22, e o comentário do narrador, v. 23.
Os dois primeiros versículos, 20-21, são conectados pela palavra-chave “ver”. No
v. 20, Pedro “vê” (blépei) o Discípulo Amado seguindo Jesus. Segue-se uma
identificação desse discípulo. No v. 21 reaparece o verbo “ver” (idṓn) e, em seguida, a
pergunta acerca desse discípulo. O Discípulo Amado é caracterizado por uma referência
à primeira cena em que ele aparece no Quarto Evangelho, a Última Ceia (Jo 13,23.25).
Tais analepses servem para conectar o cap. 21 com o corpo do Quarto Evangelho.
Mostra-se ao mesmo tempo certa superioridade do Discípulo Amado em comparação
com Pedro: ele é o discípulo que se reclinou sobre o peito de Jesus e lhe pôde fazer a
pergunta que nenhum outro poderia fazer, precisamente porque ele era “o discípulo que
Jesus amava”. A pergunta de Pedro no v. 21 refere-se à pessoa e ao destino do
Discípulo Amado. A razão poderia ser a exigência de que Pedro o seguisse até a morte
violenta. A pergunta sobre o Discípulo Amado seria então de saber se este discípulo
teria futuramente o mesmo destino.
Segundo o v. 22 Jesus recusa responder à pergunta e se limita a uma repetida
exortação a Pedro para que o siga. Pedro não se deve meter em especulações sobre o
destino de outros discípulos, mas levar a sério sua própria vocação para seguir Jesus até
o fim.
No seu comentário no v. 23, o autor de Jo 21 interpreta a resposta a Pedro. O
verbo usado por Jesus, “permanecer” (ménein) permitia interpretações diversas. Podia
ser interpretado como o anúncio de um permanecer físico do Discípulo Amado até o dia
da nova “vinda” de Jesus. Mas era possível também interpretá-los teologicamente: o
Discípulo Amado deveria “permanecer” até a nova vinda de Jesus na qualidade de
testemunha de Jesus próxima e fiel – portanto, testemunha confiável –, também no
testemunho registrado no livro. Este é, segundo o autor de Jo 21, o sentido autêntico da
palavra de Jesus39.
Até tempos recentes muitos comentadores abordam o texto com perguntas
históricas e biográficas. O discípulo morreu de fato, e a comunidade se pergunta o que
significava a palavra de Jesus de que ele devia “permanecer”. Jesus não teria falado de
seu permanecer num sentido biográfico-físico, mas teria exortado Pedro a segui-lo
independentemente de se o Discípulo Amado morresse ou continuasse vivo. Assim
ficava aberta a possibilidade da morte do Discípulo Amado apesar da palavra de Jesus.
E assim pôde aparecer no texto o grupo de discípulos que se exprime no v. 24,
afirmando a origem e confiabilidade do Quarto Evangelho como obra do Discípulo
Amado. Assistimos aqui ao início da “escola joanina” e da “tradição efesina”40.
38
Cf. para os versículos seguintes, novamente, J. BEUTLER, Der Abschluss.
Cf. W. WINANDY, Le disciple.
40
Esta visão encontra-se, e.o., nos comentários de R. SCHNACKENBURG und R. E. BROWN.
39
Beutler D -178
Entre os autores contemporâneos aumenta a tendência a ler o texto com os
métodos da atual crítica literária, portanto sincronicamente41. O texto não permite usá-lo
como “janela” para um mundo por trás dele, exterior ao texto. Que a morte do Discípulo
Amado já tenha ocorrido é uma especulação que o próprio texto exclui. O texto
confirma a obrigação de Pedro de seguir Jesus com tudo o que isso implica; não deve
preocupar-se com o destino do Discípulo Amado. O “permanecer” do discípulo se
realiza no testemunho conservado no seu livro.
Se se relaciona a palavra de Jesus à imortalidade do Discípulo Amado, a morte do
Discípulo Amado a falsifica. Existe a possibilidade de interpretá-la de modo diferente.
Para os representantes da abordagem histórica basta o indício de que Jesus não falou de
uma preservação do Discípulo Amado da morte. Para os representantes da explicação
literária e teológica deve-se procurar o sentido da palavra de Jesus e mostrar em que
sentido o Discípulo Amado “permanece” até a nova vinda de Jesus.
21,24-25
Assim atinge-se o segundo final do Evangelho segundo João. O v. 24 consiste de
uma frase nominal (estín, “é”) e uma frase verbal (oídamen, “sabemos”), à qual se liga
uma frase nominal subordinada, que começa com hóti (“que”). A primeira frase,
nominal, é determinada por dois particípios, um no presente (martyrṓn,
“testemunhando”) e outro no aoristo (grápsas, “tendo escrito”). O pronome
demonstrativo que abre a frase, hoûtos (“este”), é usado de modo anafórico e se refere
claramente ao “discípulo” (mathētḗs) mencionado nos vv. 20 e 23. Este discípulo é a
testemunha “destas coisas” (toútōn) e também “as escreveu” (grápsas taûta). O termo
toútōn (“estas coisas”) provavelmente se refere à mesma realidade que taûta, referindose a tudo o que anteriormente está escrito, o evangelho inteiro, sua última parte, seu
último capítulo ou a última secção. Em analogia com o primeiro final do evangelho, em
Jo 20,30s., recomenda-se uma compreensão que inclua o Evangelho segundo João
inteiro. De modo comparável a Jo 19,35, aqui, um grupo anônimo de discípulos (na
primeira pessoa do plural) atesta que o Discípulo Amado é fidedigno. A construção do
verbo martyreîn (“testemunhar”) com a preposição perí (“a respeito de”) pertence à
linguagem típica do Quarto Evangelho. Nos capítulos 1–15, essa construção se refere a
uma única pessoa que é objeto do testemunho, Jesus. Só no relato da paixão e
ressurreição, perí é usado para acontecimentos que são objeto de testemunho: o lado
aberto de Jesus do qual saem sangue e água (Jo 19,35) e as ações de Jesus como um
todo (Jo 21,24)42.
Embora o v. 25 falte na forma original de um dos manuscritos mais antigos do
Novo Testamento, o Codex Sinaiticus (séc. IV), sua originalidade é geralmente aceita
pela crítica textual. A construção da frase é complicada. Primeiro vem uma frase
principal nominal, seguida de uma frase relativa, a qual se estende numa segunda frase
relativa, que por sua vez é determinada por uma frase condicional; e na apódose dessa
frase condicional encontra-se o verbo oîmai (“eu penso”) na 1ª pessoa do singular, que
está em contraste com a 1ª pessoa do plural oídamen (“sabemos”) do v. 24. O sentido do
v. 25 é semelhante ao do primeiro final do Evangelho segundo João. O relato
evangélico não exaure o conteúdo. Jesus fez muitas outras coisas que não estão
registradas no livro; se se quisesse registrá-las, o mundo inteiro não poderia conter os
41
Cf., e.o., L. HARTMAN, An Attempt; B. V. GAVENTA, The Archive; H. THYEN, Noch einmal; J.
ZUMSTEIN, Endredaktion; J.-N. ALETTI, Les finales.
42
Cf. J. BEUTLER, Art. marture,w, 960-962.
Beutler D -179
tais livros. Com isso se quer dizer que um testemunho materialmente completo a
respeito de Jesus não é possível, nem necessário, pois as ações selecionadas são
suficientes para conduzir à fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Diversas interpretações destes dois últimos versículos são possíveis. Os autores
que leem os vv. 20-23 na óptica histórica, veem no v. 24 uma personalidade histórica e
perguntam pela realidade “extratextual” do Discípulo Amado. As respostas, desde os
dias de Ireneu de Lião, são:
– João, filho de Zebedeu43;
– o presbítero João mencionado por Papias de Hierápole44;
– um presbítero hierosolimitano, João, mencionado em At 4,645.
O problema é que, em nenhum lugar do Evangelho segundo João e também não
nos versos conclusivos, se menciona o nome do Discípulo Amado. Por isso, o leitor de
hoje se pergunta se é preciso saber o que autor mantém escondido.
Numa leitura histórico-crítica, o versículo final é interpretado segundo esse
paradigma. A afirmação de que o mundo inteiro não poderia conter os livros a serem
escritos para apresentar exaustivamente as ações de Jesus46 é, para autores como Rudolf
Bultmann, convencional e deve ser atribuída a um redator ulterior. Mas a referencia a
Wettstein47 aqui alegada não pode ser justificada pelo “Novo Wettstein”48.
Outra possibilidade é compreender os versículos finais numa óptica literária e
respeitar o silêncio do Evangelho segundo João quanto à identidade do Discípulo
Amado. Aqui vem em primeiro lugar Orígenes, o primeiro que escreveu um comentário
sobre João (prescindindo do comentário do gnóstico Heracleão, citado por Orígenes).
De acordo com uma série de autores recentes, o Discípulo Amado é uma figura ideal,
não corresponde necessariamente a alguma figura histórica49. Segundo estes estudiosos,
o autor do Quarto Evangelho ou seu editor se servem da figura do Discípulo Amado
para assegurar a fidedignidade da mensagem do Quarto Evangelho. Como Jesus
repousou “no seio do Pai” (Jo 1,18), assim o Discípulo Amado “no seio de Jesus” (Jo
13,23), tornando-se o seu mensageiro fidedigno. O oídamen (“sabemos”) de Jo 21,24
não comprova a existência de um grupo ou comunidade50, mas seria um meio estilístico
para assegurar a aceitação pelo público leitor. Nesse contexto pode-se apontar que o
“testemunho” em João não se refere somente aos fatos exteriores de uma vida, mas à
sua dimensão de revelação que se exprime nos fatos exteriores. Exemplos disso se
encontram em Jo 1,34 (“este é o Filho de Deus”), em 1Jo 1,1-4 “(a Palavra da Vida”) e
em 1Jo 4,14 (“que o Pai enviou o Filho como Salvador do mundo”).
A identificação do Discípulo Amado como autor do Quarto Evangelho serve à
finalidade de dar a este evangelho uma autoridade inabalável. Ele foi o discípulo que
estava mais perto de Jesus, especialmente nos momentos decisivos de sua despedida,
43
Assim a tradição desde Ireneu.
Assim, reatando com A. HARNACK , sobretudo M. HENGEL, Frage.
45
Assim M.-L. RIGATO, L’apostolo; ID., La testimonianza di Policrate, ID., La testimonianza di Papia; J.
WINANDY, Le disciple.
46
Cf. dazu L. CARDELLINO, Chi rifiuta.
47
Cf. R, SCHNACKENBURG III 448.
48
Cf. NEUER WETTSTEIN I/2 859; cita-se aí somente a frase de Tito Lívio de que o mundo inteiro não
poderia conter o poderio militar do çpovo romano.
49
Cf. A. KRAGERUD, Lieblingsjünger; J. KÜGLER, Jünger; H,. THYEN, der sich stark auf den Kommentar
von F. OVERBECK stützt.
50
Cf. R. BAUCKHAM, Testimony; H. THYEN.
44
Beutler D -180
cruz e ressurreição, e ele deixou seu testemunho em forma escrita, o Quarto Evangelho.
Longe de ser uma conclusão banal, também em comparação com o primeiro final do
evangelho em Jo 20,30s., este segundo final atualiza o primeiro no sentido de uma
“releitura”. O termo-chave decisivo é “escrever”, retomado do v. 24 no v. 25 e duas
vezes repetido. As últimas palavras do Quarto Evangelho são graphómena bíblia,
“livros escritos”. A palavra se fez texto.
III
Jo 21 não é simplesmente um apêndice aos capítulos anteriores, narrando uma
terceira aparição de Jesus ressuscitado aos seus discípulos e palavras de Jesus a esses
discípulos ou a respeito deles. O capítulo pode ser compreendido como “releitura” do
Evangelho segundo João até então disponível. Já antes se mostrou alguma intriga entre
o papel de Pedro e o do Discípulo Amado. Na Última Ceia não era Pedro, mas o
Discípulo Amado quem estava recostado sobre o peito de Jesus e por ele soube da
identidade do traidor. Pedro prometeu ao seu Senhor fidelidade até a morte, mas
desistiu, lamentavelmente, quando no pátio do sumo sacerdote lhe perguntaram se
pertencia a Jesus. Junto à mãe de Jesus encontra-se ao pé da cruz somente o Discípulo
Amado. Na manhã da Páscoa cabe a Pedro a preferência para entrar no sepulcro vazio,
mas o Discípulo Amado reconhece por primeiro o Senhor como aquele que vive. Esta
visão é continuada e levada a termo em Jo 21.
Pedro é o único discípulo com o qual Jesus entra em diálogo em Jo 21. A ele cabe
a iniciativa da pesca, primeiro por conta própria e sem sucesso, depois por ordem de
Jesus e com resultado estonteador. Jesus o pergunta a respeito de seu renovado amor a
ele e com base nisso lhe confia o cuidado de suas ovelhas. Ele o chama para o
seguimento de maneira permanente e até a última consequência da morte violenta.
Assim surge, em retrospecto, uma visão modificada do Quarto Evangelho sobre a figura
de Pedro. Isso pode ter correspondido a seu papel e reconhecimento na comunidade
cristã nascente, sem que daí se deva deduzir que assim o evangelho joanino,
considerado gnosticizante, se deveria tornar aceitável à Grande Igreja.
Em Jo 21, o Discípulo Amado só toma uma vez a palavra, mas com muito peso,
quando no homem que está sobre a praia ele reconhece o Senhor. A partir daí ele ganha
mais perfil nas palavras de Jesus e do narrador. Não se trata em primeiro lugar de
especular sobre seu destino. Mais importante é que ele “permanece” até a nova vinda de
Jesus. Aparece que esse “permanecer” não significa sua existência física prolongada,
mas sua presença no testemunho. Este testemunho se encontra agora guardado no livro
que ele escreveu, no Quarto Evangelho. Ele continua presente neste livro, e por seu
testemunho permanece presente também aquele de quem ele trouxe a notícia: o Senhor.
Aos deslocamentos observados acrescem outros. Assim se fala agora sem
reticencias de um novo “vir” do Senhor também depois seu vir pascal. Também
notamos uma focalização mais forte do texto sobre a comunidade incipiente. Como se
viu com justeza, até Jo 20 tratava-se de quem é Jesus; agora, o assunto é quem são
alguns dos discípulos conforme as palavras de Jesus. Nesse contexto é relevante o
encargo “funcional” de Pedro do cuidado das ovelhas de Jesus. Aparece a perspectiva
do múnus eclesial. Não é fundado doravante na fé de Pedro (cf. Jo 6,69), mas em seu
amor a Jesus; e, neste amor, o mandamento-mor de Israel encontra sua concretização.
Ao múnus acrescenta-se a comunhão da mesa. Jesus convida os discípulos a uma
refeição matutina, e isso, com expressões que lembram ao mesmo tempo a
multiplicação milagrosa dos pães e também a celebração da Eucaristia. Também o
Beutler D -181
cenário junto ao lago de Tiberíades lembra o relato da multiplicação dos pães em Jo 6 e
o relato do discurso do pão na sinagoga de Cafarnaum com seu encerramento
eucarístico. Jesus continua com os seus não apenas no múnus de Pedro, mas também
nos dons que ele proporciona à comunidade que celebra e recorda, e na qual ele mesmo
está presente.
O permanecer de Jesus com os seus em sua palavra não é desvalorizado por isso.
Ao contrário. O Quarto Evangelho não termina na palavra de encargo de Pedro, mas no
apelo para o seguimento e na proclamação do Discípulo Amado como testemunha fiel e
fidedigna, cujo livro mantém firme e segura a ligação a Jesus. A contribuição
permanente de Jo 21 para o presente e o futuro da Igreja pode estar nesta mútua
complementação de palavra, sacramento e múnus.
Beutler D -182
Índice de referências bíblicas
Foram incluídos todos os lugares do Evangelho segundo João exceto os que são
tratados sob o respectivo título de capítulo.
Antigo Testamento
{{orig. pp. 561-576}}
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