TECNOLOGIA E CIDADE: NOS TRILHOS DO TEMPO Profa. Dra. Ana Cláudia Ribeiro de Souza Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas RESUMO: Neste artigo sublinhamos alguns itens frutos da reflexão do conceitos de autores como S. Hall, R. Koselleck e H. G. Gadamer que nos permitem refletir a filosofia da ciência e a tecnologia nos seus momentos germinais, dialogando com a cidade de São Paulo no alvorecer da República. Ela foi uma destas cidades onde a elite cafeeira implanta mudanças, que pela sua magnitude alteram sua fisionomia social e urbana. Estes autores são pertinentes as discussões da filosofia da ciência no Brasil, na constituição das bases do ensino universitário, como por exemplo, da Escola Politécnica de São Paulo no final do século XIX, levando a discussão de que o historiador faz parte da história, pela historicidade do seu próprio conhecimento problematizando conceitos como experiência, tempo e linguagem na implementação do ensino tecnológico em São Paulo. PALAVRAS-CHAVE: Escola Politécnica; Desenvolvimento Tecnológico; São Paulo. No entanto, importa que nos mantenhamos longe do erro de que o que determina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido (GADAMER, 1997, p. 457). 1. Introdução Brasil, final do século XIX e inicio do século XX, é neste cenário que com a Proclamação da República ocorrida apenas um ano após a libertação dos escravos, o País vivenciou uma significativa mudança em seu sistema produtivo, no qual abandonou as relações escravistas como base da cadeia produtiva, e com isto o conceito de trabalho inerente a este sistema. Mesmo que timidamente, começa a se desenvolver as relações assalariadas não somente na zona urbana, mas também nas áreas de produção rural. E esta é, na realidade, apenas uma das muitas outras transformações que daqui a diante ocorreram em seu vasto território e de modo particular em algumas de suas cidades, que pelo desenvolvimento em diversas áreas, industrial, comercial ou serviços, tornaram-se focos catalisadores das emigrações rurais. O crescimento industrial do País, por exemplo, começa a despontar como um marco necessário a sua modernização e muitas vezes esteve ligado à exploração de uma matéria-prima básica, como a borracha, que promoveu um surto de desenvolvimento em algumas cidades da região Norte, ou o café, que se desenvolvendo nas regiões Sudeste e Sul do País, gerou uma nova elite nacional industrial e urbana que desempenhou o papel de articuladora dessa nova mentalidade modernista a ser desenvolvida na República, onde dentre tantas ações, buscou na ampliação do ensino superior às bases de constituição de uma maior cultura letrada para possibilitar o crescimento do País, isso quando mesmo o ensino primário era privilégio de uns poucos afortunados. Longe estavam os anos em que se falaria de universalização do ensino, pois mesmo hoje continua o desafio de erradicar o analfabetismo no Brasil. O espelho desta nova sociedade industrial passa a ser a cidade, e é nela que encontramos a burguesia desfrutando das benesses da nova tecnologia, como a iluminação elétrica, o bonde e mesmo o cinema, então preto e branco e mudo. Em algumas destas cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Manaus este período será marcado por um grande crescimento populacional provocando uma nova rearticulação urbana de seus sujeitos sociais. Mas, a idéia de cidade, como nos diz D. R. Fenelon: ... nunca deve surgir apenas como um conceito urbanístico ou político, mas sempre encarada como o lugar da pluralidade e da diferença, e por isto representa e constitui muito mais que o simples espaço de manipulação do poder (1999, p. 07). 2. Fundamentação teórica Autores como S. Hall, R. Koselleck e H. G. Gadamer nos permitem refletir a filosofia da ciência e a tecnologia nos seus momentos germinais, e a cidade de São Paulo no alvorecer da República é uma dessas cidades onde a elite cafeeira implanta mudanças, que pela sua magnitude alteram a fisionomia social e urbana. Neste artigo nos propomos sublinhar alguns itens frutos da reflexão destes autores por acreditarmos serem pertinentes as discussões da filosofia da ciência no Brasil, na constituição das bases do ensino universitário. E, temos aqui a discussão de que o historiador faz parte da história, pela historicidade do seu próprio conhecimento, advindo daí a necessidade de se problematizar, entre outros, conceitos como experiência, tempo e linguagem. Nosso foco de atenção nos conduzirá à Escola Politécnica de São Paulo. Nosso objeto de pesquisa é então sobre um passado, mas não tão passado se lembrarmos que o ensino superior como hoje entendemos no Ocidente, tem suas origens na Europa Medieval já nos idos do século XII, e que nos Estados Unidos da América, esse ensino é implantado já no século XVI. 2 Nossa hipótese é a de que os ecos da implantação desta escola de engenharia, precipuamente de ensino tecnológico, ainda se encontram por demais presente nesta cidade, que no final do século XIX e primeiras décadas do século XX passou a conviver com sua segunda instituição de nível superior: a Escola Politécnica, inaugurada em 15 de fevereiro de 1894 e criada pela Lei Estadual nº 191, de 24 de agosto de 1893, sendo essa resultado da fusão de duas leis anteriores, a de nº 26, de 11 de maio de 1892, que autorizava a fundação de uma Escola Superior de Agricultura e de uma Escola Superior de Engenharia e a da Lei Estadual nº 64, de 17 de agosto de 1892, que previa a criação do Instituto Politécnico que contaria com uma Escola Superior de Matemática e Ciências Aplicadas às Artes e Indústria (SANTOS, 1985, p.424). A Escola Politécnica funcionou inicialmente na Av. Tiradentes, no Solar do Marquês de Três Rios, no bairro do Bom Retiro, essas instalações foram demolidas por volta de 1930 quando da restauração viária daquela região proposta pelo prefeito Prestes Maia. Seu edital de fundação apregoava a criação de cursos de engenharia nas áreas de civil, industrial e agrícola, além de um curso anexo de artes mecânicas. A formação destes novos quadros competente ajudaria a enfrentar, como veremos a seguir, o processo de urbanização da cidade que teve uma forte ênfase na construção civil. No espaço acadêmico da Escola Politécnica foram gestadas ações quanto ao pensar, organizar e construir do viver urbano de São Paulo nas primeiras décadas de século XX. Isto se deve a uma multiplicidade de fatores, dentre estes as relações que se estabeleceram entre a engenharia e a ciência na elaboração de um discurso científico e tecnológico para o desenvolvimento da cidade, que, cremos, ter tido na Escola Politécnica sua gênese e difusão social. O que hoje é dado como conhecido, como o conteúdo epistemológico de conceitos como técnica e tecnologia, naquele momento fundamental da sistematização do conhecimento em bases científicas em solo nacional, estava em franca discussão, mas em sintonia com as idéias de progresso e desenvolvimento difundidos pelos partidários do Partido Republicano, majoritário no cenário político paulistano. Podemos vislumbrar as transformações urbanas paulistas, já tão analisadas em seus aspectos sócio-político-econômicos, a partir das salas de aula de sua escola de engenharia. Percorrendo os corredores da Escola Politécnica, procuraremos auscultar os projetos de articulação e re-articulação do sócio-urbano nas experiências de seus sujeitos sociais. Pois as concepções de ensino pertinentes às origens de Escola Politécnica influenciaram na construção 3 do projeto da modernidade industrial paulistana. Exemplo disso é a participação dos politécnicos no sistema ferroviário, e nas obras de saneamento da cidade. Durante o período que abordaremos a Escola Politécnica possuiu apenas dois diretores. Antônio Francisco de Paula Sousa, desde sua fundação até 1917, quando de seu falecimento e Francisco de Paula Ramos de Azevedo, de 1917, e também até seu falecimento, em 1928. Na discussão da filosofia da ciência se tem presente a indicação de C. Lefort, para que: “... fizéssemos surgir várias figuras ali onde distinguimos apenas uma” (1997, p. 295). Em mais de vinte anos de história, na administração desses dois diretores, uma multiplicidade de sujeitos sociais emergem, entre docentes, discentes e administrativos. Estamos assim indo à busca da especificidade histórica nas experiências dos sujeitos históricos inseridos na problemática do desenvolvimento e da inserção da tecnologia na cidade de São Paulo. O substrato do conceito experiência, como nos sugere H. G. Gadamer vai de Aristóteles a Hegel, passando por Esquilo e Bacon, a se constituir “... em algo que faz parte da experiência histórica do homem” (1997, p.525), onde: “A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude” (1997, p. 527). E ainda: “A verdadeira experiência é assim experiência da própria historicidade” (1997, p. 528). É na experiência da construção de uma linguagem técnica a partir de 1894 que a Escola Politécnica passa a se estruturar na cidade de São Paulo, e ela não está sozinha nessa experiência, pois concomitante a sua criação, ocorrem também, para compor a intelectualidade paulistana, instituições como a Escola Normal, fundada para preparar as normalistas responsáveis pelo ensino primário das crianças republicanas, o Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, fundado simultaneamente em várias capitais brasileiras, reunia os grupos locais de intelectuais, além de organizar bibliotecas e museus, e o Museu Paulista, destinado ao estudo da história natural da América do Sul e do Brasil, além de colecionar e arquivar documentos relativos à independência política do Brasil. Assim encontramos aqui um terreno fértil de construção das experiências sociais. Não devemos, então, como nos alerta H. G. Gadamer, nos descuidarmos da questão da linguagem, pois ela é interpretativa das experiências de cada grupo, são fenômenos que expressão as experiências vividas no social, bem como as palavras também são frutos da experiência social. 4 Nós somos inúmeras possibilidades de linguagens, e os engenheiros da Escola Politécnica traduzem suas preocupações com a estrutura urbana da cidade na linguagem de seus ensaios, teoremas, plantas e cálculos, mas essas também são expressões de suas experiências sociais cotidianas (1997, p. 559-576). Pensar o tempo presente sem compartimentá-lo em definições prontas e acabadas é um dos atuais desafios do meio acadêmico, pois as experiências sociais vividas pelos sujeitos históricos em seu tempo não podem ser apreendidas pela academia como um objeto geométrico de proporções rígidas, definidas e acabadas. Essas experiências não estão postas de uma vez para sempre, como que emolduradas no tempo estático, não, elas estão em constante diálogo com o historiador que delas se aproxima, sabendo que o tempo é sempre o tempo presente, e como nos diz J. G. Herder: Propriamente, cada objeto mutável tem a medida de seu tempo em si mesmo; subsiste incluso quando não existiria nenhum outro; os objetos do mundo não possuem a mesma medida de tempo... Assim, pois, no universo existem (se pode dizer com propriedade e atrevimento) em um momento, muitos e inúmeros tempos (1993, p. 14) O tempo presente está repleto de dimensões diversas que se dão a conhecer num ir e vir continuo por meio dos diversos tipos de linguagem, que se configuram numa das fontes para que possamos dialogar com o passado. Esse tempo passado continua sendo revisitado pelos historiadores que nele estão sempre re-descobrindo múltiplas formas, seja num olhar sobre novas fontes ou quiçá num novo olhar sobre as fontes já tantas vezes re-visitadas, mas agora questionadas com novas interrogações. Para os sujeitos sociais o tempo não é linear, nem progressivo, pois este assim pensado foi uma construção do iluminismo, na base da estrutura do capitalismo. O processo da Revolução Industrial é inicialmente identificado como uma mudança tecnológica dos meios de produção, mas é possível perceber bem mais que isso, já que uma expressiva transformação social desencadeou-se oriunda da necessidade de novas articulações entre os diversos grupos envolvidos não só no processo produtivo, mas em toda a conjuntura histórica do momento. Aqui a ciência ganha contornos de deusa e transforma-se em sinônimo de progresso, esse identificado com a modernidade. No Brasil, e em São Paulo, vivencia-se essa transformação social-tecnológica numa menor brevidade temporal do que em países como Inglaterra, por exemplo, onde Peter Gay visualiza todo o século XIX como um tempo de incertezas para os ingleses, incertezas essas 5 advindas das rupturas pelas quais os diversos grupos sociais estavam vivenciando, como as novas obrigações no trabalho e na sociedade civil criando assim um misto de esperanças e ansiedades desconhecidas. Entre as camadas pobres multiplicavam-se as agitações pelos temores dos novos tempos enquanto que entre os “bons burgueses”, uma classe em expansão que viria a se constituir como classe média, esses mesmos novos tempos eram esperados como expectativa de dias melhores (GAY, 1987, p. 12-45). É neste contexto que ganha ênfase o evolucionismo cultural proposto por E. B. Tylor que afirmava ser a história da humanidade, a história de um desenvolvimento ascendente, conectando a história social a um continuo progresso tecnológico oriundo da ciência (GAY, 1987, p. 25). 3. A cidade, a tecnologia e a Escola Politécnica O processo de industrialização é um fato eminentemente urbano e com isso, em dimensões até então não experimentadas a cidade passou a ser reduto da ciência e do progresso. Esse mundo surgido com a dinâmica da indústria forja em seu seio novas relações sociais, tanto quanto novas formas produtivas. No Brasil encontramos concatenados às mudanças da produção econômica uma nova ordem política, a República. É fomentado pelo novo governo um ideário de progresso associado ao desenvolvimento tecnológico, onde um espaço especial estaria reservado à categoria emergente dos engenheiros, arautos da ciência. Com os lucros advindos das lavouras cafeeiras do Vale do Paraíba, São Paulo irá pouco a pouco, e depois velozmente adentrar na busca de sua modernidade, da sua belle epoque. Na segunda metade do século XIX as duas principais cidades brasileiras eram Rio de Janeiro, Capital Federal, e Manaus, capital dos trópicos, modernizada na velocidade dos trens expressos por conta do látex. São Paulo, bem, São Paulo era um pequeno núcleo urbano que tinha em suas fazendas cafeeiras seu grande destaque. A capital contava com aproximadamente 240 mil habitantes e cortada pelos rios Anhangabaú e Tamandatueí, com suas ruas iluminadas por lampiões a gás e tendo como principal meio de transporte os bondes puxados por burros. Alicerçado no desenvolvimento das exportações do café, a cidade sofre um rápido processo de urbanização, com a expansão de seu perímetro urbano, impõem-se problemas que necessitavam da arte da engenharia para serem solucionados. A implantação da Escola Politécnica vem de encontro a essa conjuntura. 6 A instalação de uma instituição de ensino superior traz em si a marca da modernidade e em São Paulo isto é marcado com a criação da Escola Politécnica que se configura como a terceira instituição de ensino técnico superior do País, criada após a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, de 1810, e a Escola de Minas de Ouro Preto, de 1875. Em São Paulo existia apenas, enquanto ensino superior, a Academia do Largo São Francisco, instalada em 1827, para a formação de bacharéis em Direito. Sabemos que o processo de urbanização é eixo de múltiplas culturas e temporalidades e que cada conceito associado a uma palavra tem sua historicidade, como nos diz R. Koselleck: Cada conceito depende de uma palavra, porém cada palavra não é um conceito social e político. Os conceitos sociais e políticos contêm uma concreta pretensão de generalidades e são sempre polissêmicos, contém ambas as coisas, não são apenas simples palavras para a ciência e para a história. ... Uma palavra contém várias possibilidades de significado, um conceito unifica em si a totalidade do significado (1993, p. 116 e 117). Assim: São Paulo - urbano - Escola Politécnica constituem-se no eixo de uma problemática de pesquisa, não em sua conceituação atual, mas no que a hermenêutica destas palavras reportam àquele momento histórico anteriormente descrito. A articulação entre aqueles conceitos à experiência histórica do seu tempo descortina os modos do pensar o urbano em São Paulo, nas salas de aula, gabinetes e escritórios da Escola Politécnica, trilhando o cotidiano daquele tempo, na busca de compreender a mentalidade daquela época, suas experiências e seus costumes, que hoje é ocultado pelo próprio tempo que passou, mas também pelas temporalidades dos sujeitos, nós e eles, e do re-significado dos conceitos no presente histórico. A República traz consigo os símbolos da modernidade, deixando para o Império os ícones da tradição. Essa bipolaridade será outro eixo de nossa pesquisa, como argumenta A. Giddens: ... nas sociedades tradicionais, o passado; é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (apud HALL, 2002, p. 14). E nos diz Hall: A modernidade, em contraste, não é definida apenas como a experiência de convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida (2002, p. 15). 7 “Uma forma altamente reflexiva de vida”, cremos que os espaços da Escola Politécnica eram adequados para pensar, projetar e principalmente concretizar este novo espaço urbano paulistano desejado pelos “bons burgueses”, que viam os novos tempos com olhares de júbilo e esperança, para lembrarmos Peter Gay. Neste espaço de ensino da engenharia, seria possível rapidez em propor soluções adequadas aos problemas locais, sem mais necessitar esperar a vinda e soluções dos engenheiros de outros países ou quiçá do Rio de Janeiro ou Minas Gerais. Não, agora nos próprios gabinetes, instalados na Av. Tiradentes a modernidade paulistana poderia ser gestada. Um exemplo disso é que em 1905, então com menos de 10 anos de funcionamento, é lançado o Manual de Resistências dos Materiais, pelo Grêmio Politécnico, com informações sobre propriedades físicas, mecânicas e químicas dos materiais de construção a serem usados nas futuras construções e cálculos estruturais realizados nos solos do Vale do Anhangabaú e nas margens do Rio Tamandatueí. Ali estavam contempladas indicações experimentais a cerca dos materiais de construção brasileiros, numa abrangência que levou tal publicação a tornar-se referência na área, sendo posteriormente citado em periódicos de engenharia (SANTOS, 1985, p. 415). Outro exemplo, também na área da construção civil acontece em 1913 quando o Gabinete de Resistência dos Materiais participou do estudo experimental completo e ensaio dos materiais utilizados no primeiro edifício de concreto armado de São Paulo, construído à Rua Direita, nº 7. Esse estudo foi completado por uma prova de carga sobre um pavimento interior do edifício (SANTOS, 1985, p.213). 4. O Ensino Politécnico e as Companhias Ferroviárias Vários autores afirmam que “... a construção das estradas de ferro foi o primeiro grande desafio que a engenharia teve de enfrentar aqui no Brasil” (TELLES, 1984, p. 227) e que “... foi exatamente o café o principal responsável pela necessidade das estradas de ferro” (TELLES, 1984, p. 228), isso por que há toda essa correlação entre a implantação do transporte ferroviário como elemento fundamental para dinamizar o setor agro-exportador, e desses dois como fator da urbanização de cidades, com a construção de repartições públicas, e construções particulares, com a necessidade de se organizar os serviços de utilidade pública, em prol das lavouras 8 cafeeiras. A necessidade de toda essa infra-estrutura urbana, entre outros fatores, favorecia o crescimento da atuação do engenheiro na área das ferrovias, bem como atividade industrial em São Paulo, já que às margens nas ferrovias, em seus pontos de paradas, as cidades se constituíam. A importância das estradas de ferro na engenharia nacional pode ser avaliada por esse juízo dado por P. C. da S. Telles: É importante observar que, por essa época [1890] até cerca de 1920-30, a engenharia ferroviária era a especialidade mais importante, e até quase única da engenharia brasileira: fazer engenharia no Brasil era, praticamente, sinônimo de projetar, construir ou operar estradas de ferro (TELLES, 1984, p. 387). Para que isso ocorresse, foi necessário o ingresso de disciplinas ligadas à temática das ferrovias no ensino universitário. Isto começou a acontecer em 1858 no Rio de Janeiro, quando da grande reforma na Escola Militar, passando a denominar-se Escola Central, e ainda sujeita a administração militar; ministravam-se matemática, ciências físicas e naturais e engenharia para civis, e esses cursos passaram a ter um enfoque voltado para as problemáticas das estradas de ferro. Desta Escola, saíram os primeiros engenheiros brasileiros que se dedicaram às questões ferroviárias, como: Francisco Pereira Passos, Antônio Pinto Rebouças, João Teixeira Soares, Herculano Velloso Ferreira Penna, Antônio Augusto Fernandes Pinheiro, João Chrockatt de Sá Pereira de Castro e Hermillo Cândido da Costa Alves (TELLES, p. 453-457). Além do ensino de disciplinas ligadas às estradas de ferro serem ministradas na Escola Central, surge, nas oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil, a Escola Ferroviária Nacional voltada exclusivamente para a formação e o estudos de problemáticas dessa área, sendo essa de nível médio e não superior. Na primeira metade do século XIX as estradas de ferro se consolidaram como o meio de transporte da agricultura e do comércio no Brasil. No período imperial, a resolução nº 101, de 31 de outubro de 1835, da Assembléia Legislativa, promulgada pelo regente Diogo Antonio Feijó, autorizou o governo a conceder o privilégio a uma ou mais companhias para a construção de estradas de ferro do Rio de Janeiro para as capitais das províncias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. O caminho que percorreria a estrada de ferro do Rio de Janeiro até Porto Alegre necessariamente passaria pelo estado de São Paulo, mas por questões diversas, dentre essas a falta de profissionais nacionais que pudessem levar a frente tal projeto, nesse momento, a construção dessa estrada de ferro não se concretizou, embora pudesse ter sido a primeira em terras paulistas (PINTO, 1903, p. 28-35). 9 Ainda na primeira metade do século XIX, o governo paulista tentou dar início à implantação do sistema férreo no Estado, com a edição de várias legislações sobre o assunto, mas também sem maiores sucessos. Entretanto, devido à bem-sucedida lavoura de cana-de-açúcar na região de Itu e Porto Feliz, começava-se a delinear o projeto de uma estrada de ferro ligando essas cidades ao porto de Santos, principal cidade portuária do Estado, passando pelos municípios de S. Carlos, atualmente Campinas, e Constituição, atual Piracicaba. Dentre os fatores apontados para o insucesso das tentativas desse período estão a grande soma de capitais que tal empreendimento necessitaria e a falta de pessoal com conhecimento técnico-científico da região, então sujeitos com suas experiências. Com todo o desenvolvimento subseqüente, quando se formou a primeira turma de engenheiros politécnicos, São Paulo já contava com uma média de 3.393 km de estradas de ferro, dos quais 905 km pertencentes à União Sorocabana e Ituana, 863 km pertenciam a Paulista, 139 km à Inglesa, e os demais divididos entre pequenas empresas, e percursos de companhias de outros Estados (FERREIRA, 1959, p. 124). Uma escola de engenharia era muito bem-vinda por essas terras aonde o progresso chegava tão velozmente, embora com ele também os desastres e as desconfianças no seu uso. Certamente, os paulistas não esqueceram e ainda tinham na memória os acontecimentos do dia 6 de setembro de 1865 quando chegaria à Estação da Luz o primeiro trem procedente de Santos, mas que descarrilou em Pari. São Paulo agora formaria profissionais capazes de evitar acidentes como esse e outros tantos que a modernidade trazia a cidade. Vários podem ser os fatores que indicam a correlação entre o ensino na Escola Politécnica e as companhias ferroviárias paulistas. Dentre esses, vamos destacar em nossa análise quatro: a correlação e a interligação realizadas pelo corpo docente da Escola, com diversas Companhias. Vários dos seus professores, a começar por Paula Sousa, exerciam funções ligadas ao sistema ferroviário, favorecendo: o intercâmbio entre ambas; a formação dada aos discentes que tinha disciplinas, como Estradas, Tráfego e Economia Política, voltadas para essa área; as estradas de ferro como área de trabalho que se iniciava com o prêmio de praticagem oferecido pelas próprias Companhias Ferroviárias; e a parceria entre ambas no que diz respeito aos laboratórios da Escola, que pela sua amplitude será analisado no próximo item. 10 Podemos dizer que a correlação da Escola Politécnica com as estradas de ferro paulista encontra suas origens na própria atuação de Paula Sousa, antes de ele se tornar o primeiro diretor da casa. Tendo se formado engenheiro em 1867, com 25 anos, em Karlsruhe na Alemanha, ao retornar ao Brasil assumiu alguns cargos públicos, dentre eles o de Ministro da Agricultura. Em São Paulo, o governador Saldanha Marinho encarregou-o de organizar e dirigir a Repartição de Obras Públicas da Província, que mais tarde tornar-se-ia um dos principais redutos de trabalho dos politécnicos. No início de sua atuação profissional, organizou os projetos para a construção da Estrada de Ferro Ituana, onde instituiu pela primeira vez a bitola de 1,00m. Nesse mesmo período, foi nomeado árbitro na questão suscitada entre a Companhia Paulista e os empreiteiros da construção da linha que ligava de Jundiaí a Campinas sobre qual bitola deveria ser usada na extensão da linha. Foi também chefe do trecho de Tatuí à Rio Claro, no prolongamento das linhas da Companhia até aquela cidade (Escola Polytechnica, 1914, p. 4). A presença de Paula Sousa nessa discussão é importante, pois a bitola é uma característica fundamental tanto do traçado como da exploração ferroviária, e a contenda sobre a dimensão da mesma era de basilar na constituição da malha ferroviária de um País. Alguns defendiam que deveria haver uma uniformidade nessas dimensões, com a prévia fixação de um padrão geral para todas as linhas capazes de constituir, um dia, artérias mais ou menos importantes da rede geral. Outros afirmavam que só um profundo estudo técnico e econômico permitiria, em cada caso, chegar à solução mais conveniente para uma determinada área. Mas bitolas diferentes numa malha ocasionariam dificuldades de condições técnicas e no regime do sistema de tráfego. No Brasil, devido às condições topográficas, extensão territorial, população e elementos naturais de riquezas, tal discussão era de acirrar os ânimos entre os engenheiros. Em 1903, A. A. Pinto afirmou: ... o exame d’este assumpto, que estava alias ao alcance dos conhecimentos da época, foi completamente descurado. Não só não houve nenhum empenho em adoptar um typo uniforme para as linhas principaes, como a bitola preferida para as primeiras linhas foi a menos compatível com as condições peculiares ao meio (PINTO, 1903, p. 90). Na Europa, a bitola normal em uso para as grandes linhas era d de 1,45m. No Brasil, alguns engenheiros como Paula Sousa, contra a indicação de todas as circunstâncias para o uso de uma bitola mais modesta, como a de 1,20m, por exemplo, foi adotada como bitola padrão pelo 11 Plano Nacional de Viação a de 1,60m, chamada bitola larga. Essa foi a bitola das primeiras linhas construídas, como a da Estrada de Ferro D. Pedro II, a da São Paulo Railway, e da Companhia Paulista. Essa bitola, pelo menos por algumas décadas do século XIX, prevaleceu também nos ramais. Em 1867, a conclusão da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí representou a transposição da Serra do Mar, trecho mais complicado da ligação ferroviária entre o mar, com a cidade de Santos e o seu porto, e o planalto, e todas as cidades da região como São Paulo, Campinas e Jundiaí. Esse feito abriu caminho para a iminente difusão da malha viária do Estado. Como conseqüência de sua atuação neste setor, Paula Sousa publicou em 1873 o livro Estradas de Ferro da Província de São Paulo. Paula Sousa discutia a superioridade da bitola estreita, de 1,00m sobre a bitola larga, de 1,60m, apregoando a necessidade da diminuição da distância entre os trilhos pelas vantagens oferecidas pela bitola estreita que eram as de: curvas de menor raio; menor largura da plataforma, terraplenos e obras; economia de lastro, dormentes e trilhos; material rodante mais barato; menor resistência à tração e economia nas obras de arte, sobrepondo-se assim às desvantagens de: menor capacidade de tráfego; menor velocidade e necessidade de baldeação nos entroncamentos com outras bitolas, que pela adoção inicial pela bitola padrão seria inevitável. Com a difusão de várias companhias de estradas de ferro no Estado, ele vislumbrava num futuro próximo, o que de fato ocorreu, a incompatibilidade de interligar a malha ferroviária dessas diversas companhias, caso cada uma utilizasse uma dimensão de bitola ou uma determinada distância entre os trilhos. Paula Sousa abriu então um escritório de engenharia em Campinas, de onde procurou difundir o uso de bitolas estreitas, como as Decauville. Em 1883, convidado pelo então Barão do Pinhal assumiu o cargo de engenheiro chefe da Estrada de Ferro Rio Clarense, difundido a metodologia de, ao se construir uma obra, iniciar pelos trabalhos de campo e utilizar um instrumental tecnológico, como o tacômetro. Em três meses, terminou a exploração e o projeto de 105 quilômetros de linhas de estrada. Já em 1888, assumiu a Inspetoria Geral da Companhia Ituana re-estabelecendo o tráfego ora quase interrompido, com a estruturação dos seus trilhos e bondes (Escola Polytechnica, 1914, p. 4). 5. Considerações 12 Podemos dizer que para muitas das questões do nosso tempo, desenvolvimento dos transportes, por exemplo, o passado não é compreensivo, como a atuação de Paula Sousa no desenvolvimento, mas de fato ele não foi vivido para se tornar respostas às nossas inquietações presentes, mas para responder as inquietações do seu próprio tempo, assim sendo, cada experiência tem a sua própria temporalidade, cada época tem seu próprio ponto de gravidade, e este é o terreno fascinante no trabalho do historiador. Buscar perceber em cada época as linguagens constitutivas daquele momento, o contexto no seu contexto, procurando entender nos documentos históricos as mudanças lá acontecidas, na experiência de determinados grupos sociais. Estamos efetuando nossa reflexão naquele passado não tão passado onde mais de 100 anos nos separam de nosso sujeito histórico determinado, de nosso objeto de pesquisa, mas que na realidade não são “sujeito” e “objeto”, são experiências vivenciadas por outros sujeitos, eles também históricos como nós. Assim sendo, essa transitoriedade do tempo permite um horizonte móvel entre nós historiadores presentes, e o passado presente nas suas experiências históricas por nós pesquisadas, como afirmam H. G. Gadamer: O passado próprio e estranho, ao qual se volta à consciência histórica, forma parte do horizonte móvel a partir do qual vive a vida humana e que a determina como sua origem e como sua tradição (1997, p. 455). 6. Referências Escola Polytechnica, O Estado de S. Paulo, p. 4, 4 de maio de 1914. FENELON, D. R., org. Cidades. São Paulo: Ed. Olho d'Água, 1999 (Série: Pesquisa em História). FERREIRA, B. História das Ferrovias Paulistas, in: Engenharia, vol. XVII, no 203, p. 99-144, 1959. 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