Faculdade de Letras da Universidade do Porto A literacia da leitura em adultos – análise diacrónica de processos de (re)socialização num grupo de Educação e Formação de Adultos, construído no feminino Elisabete Correia Brito Tese elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia na especialidade das Desigualdades, Cultura e Território, sob a orientação da Professora Doutora Natália Maria Azevedo Casqueira e coorientação do Professor Doutor João Miguel Trancoso Vaz Teixeira Lopes Porto Setembro de 2012 Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico (convertido pelo programa Lince). Nas citações de obras portuguesas editadas antes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico mantém-se a grafia original, assim como em todos os documentos em anexo entregues pela autora e os que foram redigidos por outrem antes da entrada em vigor do referido Acordo. A todos aqueles que comigo encetaram esta caminhada e trocaram experiências, opiniões, histórias, lengalengas, sensações, emoções, texturas, contornos, montaram e desmontaram puzzles de memórias e deram sentido a tudo isto... SUMÁRIO Índice de Quadros 11 Índice de Figuras 13 Lista de siglas e acrónimos 15 As peças do puzzle que dão cor à nossa história 19 Introdução − O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem 25 Capítulo 1 − As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa 31 1.1. As sociedades contemporâneas e a aprendizagem ao longo da vida – brecha para a construção de um objeto teórico 31 1.2. Caminhar pela sociologia da educação não escolar: coordenadas de um percurso 37 1.2.1. Algumas correntes teóricas no campo da educação de adultos 40 1.3. Evolução e contextualização internacional da Educação de Adultos 46 1.4. Práticas de Educação e Formação de Adultos em Portugal 57 1.5. Cursos EFA: organização e princípios de ação 65 1.6. Desenho curricular e Referencial de Competências-Chave 67 1.6.1. Nível básico – Linguagem e Comunicação 77 1.6.2. Nível secundário – Cultura, Língua e Comunicação 81 1.7. Dos CRVCC aos Centros Novas Oportunidades 83 Capítulo 2 − A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo 91 2.1. Pelos meandros da alfabetização e da literacia 91 2.2. A literacia na vida adulta no contexto internacional 97 2.3. Passos da literacia de adultos em Portugal: Estudo Nacional de Literacia 102 2.4. As diferentes direções dos modelos teóricos de leitura 104 7 2.4.1. A leitura: da simples descodificação ao diálogo com o imaginário e a abertura para o desenvolvimento das competências da literacia da leitura 109 2.4.2. O modelo de compreensão da leitura e o papel do leitor, do texto e do contexto 115 2.5. As práticas e as competências da leitura nos adultos 127 2.6. A configuração das dimensões de análise que nos norteiam entre trajetórias de vida, práticas e competências de leitura na conjuntura do objeto teórico 132 2.7. Entre as práticas de leitura e as práticas de escrita no quotidiano dos indivíduos 138 2.8. Práticas e políticas públicas de leitura: das bibliotecas públicas às iniciativas conjuntas do Plano Nacional de Leitura 143 Capítulo 3 − Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura 153 3.1. O desenvolvimento humano e as mudanças na idade adulta 153 3.2. O universo feminino e as questões de género: uma ponte com o objeto empírico da investigação 161 3.3. O papel da animação sociocultural e os contextos de receção 172 3.3.1. A animação sociocultural e a educação de adultos 179 3.4. A animação da leitura e os espaços de mediação: articulação entre os cursos EFA e as bibliotecas públicas 184 3.4.1. Abordagens distintas da mediação da leitura em bibliotecas públicas no contacto com os públicos 188 3.5. Deambulações em torno da leitura e as distinções de género 194 Capítulo 4 − A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa 199 4.1. A metodologia e o ecletismo das técnicas envoltas no percurso da investigação 199 4.2. Momentos de reflexão e análise de fontes 206 4.3. Os atores e o investigador no terreno em momentos de diálogo – a entrevista e as histórias de vida 207 8 4.4. Os silêncios e as palavras no percurso do investigador – a observação e o diário de campo 217 4.5. Partilha de experiências e emoções a várias vozes – grupo focal 225 4.6. A conjugação das várias páginas da história – análise de conteúdo 233 Capítulo 5 − Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 237 5.1. Um olhar inicial mais abrangente sobre Portugal continental 237 5.2. Descendo para um patamar meso… a região e a sub-região 249 5.3. Descobrir os concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos na conjuntura do país e da região – contextualização territorial 261 5.3.1. A demografia na conjuntura destes municípios 264 5.3.2. O lugar da educação 276 5.3.3. O mercado de trabalho nestes municípios 282 Capítulo 6 − Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias 285 6.1. Vaguear por entre algumas notas preambulares: o investigador e o grupo 285 6.1.1. A família e as origens das mulheres que encetaram esta caminhada 286 6.1.2. Definição dos trilhos pessoais: a construção de uma nova família entre a melodia e as contrariedades 297 6.1.3. A relação entre a escola e a família: descontinuidade do percurso escolar 309 6.1.4. A entrada do curso EFA B3 em cada um destes trajetos e as suas repercussões 318 6.1.5. As baixas qualificações e o emprego 331 6.1.6. Oportunidades profissionais e a presença de um diploma 337 6.1.7. O lugar da leitura: o antes e o depois da descoberta de outros mundos dentro dos livros e da interação com a leitura 342 6.2. Deambulando em jeito de súmula por entre as histórias que se cruzaram no espaço e no tempo 350 Conclusões − As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar 359 9 Referências bibliográficas 371 Monografias e contribuições em monografias 371 Artigos em publicações periódicas 393 Documentos legislativos e judiciais 397 Documentos estatísticos 400 Sites oficiais consultados [2009-2011] 401 10 Índice de Quadros Quadro 1.1 Comparação dos pressupostos da Pedagogia e da Andragogia 42 Quadro 1.2 Comparação das conceções da Pedagogia e da Andragogia 42 Quadro 1.3 O Conceito de educação de adultos 52 Quadro 1.4 Os seis pilares de uma arquitetura curricular em educação de adultos 73 Quadro 1.5 – Unidades de competência do nível B3 de Linguagem e Comunicação 80 Quadro 2.1 Competências avaliadas no IALS, no ALL e no PIAAC 101 Quadro 3.1 – Distribuição percentual dos adultos que frequentam cursos EFA, no 3.º ciclo e no secundário, de acordo com o género, em diferentes anos, em Portugal continental 167 Quadro 3.2 – Horas ocupadas em distintas atividades num fim de semana, de acordo com o género 170 Quadro 3.3 Definições da animação sociocultural 174 Quadro 3.4 A animação e a difusão cultural 176 Quadro 3.5 Quintessência do papel da animação e do animador 176 Quadro 4.1 Caracterização sociodemográfica dos atores institucionais, à data das entrevistas 210 Quadro 4.2 Caracterização sociodemográfica do grupo 30 de setembro de 2011 212 Quadro 5.1 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente NUTS I (%) 239 Quadro 5.2 Evolução da população residente em Portugal continental 2008, 2009 e 2010 (NUTS I) 240 Quadro 5.3 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 em Portugal continental no que concerne às famílias clássicas e institucionais (NUTS I) 242 Quadro 5.4 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas em Portugal continental, nos censos de 2001 e 2011 (NUTS I) 243 Quadro 5.5 Quadro comparativo do estado civil legal da população residente em Portugal continental, de acordo com os censos 2001 e 2011 (NUTS I) 243 Quadro 5.6 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 relativamente aos níveis de escolaridade em Portugal Continental NUTS I (%) 11 244 Quadro 5.7 – Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, em Portugal continental, entre 2007 e 2010 246 Quadro 5.8 Indicadores do mercado de trabalho, 2008-2010 NUTS I 247 Quadro 5.9 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente na região Centro NUTS II (%) 249 Quadro 5.10 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente na sub-região do Baixo Vouga NUTS III (%) 251 Quadro 5.11 Evolução da população residente na região Centro e sub-região do Baixo Vouga 2008, 2009 e 2010 (NUTS II e III) 252 Quadro 5.12 Comparação dos dados das famílias clássicas e institucionais dos censos 2001 e 2011 na região Centro e sub-região do Baixo Vouga (NUTS II e III) 254 Quadro 5.13 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas, na NUTS II e III (2001 e 2011) 254 Quadro 5.14 Quadro comparativo do estado civil legal da população residente na região Centro e sub-região do Baixo Vouga, de acordo com os censos 2001 e 2011 255 Quadro 5.15 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente aos níveis de escolaridade na região Centro e na sub-região do Baixo Vouga NUTS II e III (%) 257 Quadro 5.16 Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, na região Centro e sub-região do Baixo Vouga, no ano letivo 2009-2010 258 Quadro 5.17 Indicadores do mercado de trabalho, 2008-2010 NUTS II 259 Quadro 5.18 A população residente no feminino e no masculino nos concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos, tendo como referência os censos 2001-2011 (%) 270 Quadro 5.19 Evolução da população residente nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos 2008, 2009 e 2010 271 Quadro 5.20 Comparação do n.º das famílias clássicas e institucionais nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, considerando os censos 2001 e 2011 274 Quadro 5.21 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, tendo como referência os censos 2001 e 2011 275 Quadro 5.22 Estado civil legal da população residente nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) 276 Quadro 5.23 Níveis de escolaridade de homens e mulheres dos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, 2001-2011 (%) 279 12 Quadro 5.24 Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, na nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, no ano letivo 2009-2010 281 Quadro 5.25 Indicadores de mercado de trabalho nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, referente aos censos 2001 283 Quadro 6.1 Origens sociais: a relação dos progenitores com a escola 310 Quadro 6.2 – Registo dos movimentos de requisições na Biblioteca Municipal de Ílhavo, referente ao grupo (2007-2010) 357 Índice de Figuras Figura 1.1 Áreas de competências incorporadas no Referencial de CompetênciasChave – nível básico 68 Figura 1.2 – Funções do formador ideal para a educação de adultos 74 Figura 1.3 – Desenho do Referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos – nível secundário 76 Figura 1.4 Núcleos geradores 81 Figura 1.5 Domínios de intervenção do Centro RVCC 86 Figura 2.1 Visão tradicional da leitura 110 Figura 2.2 Modelo contemporâneo de compreensão da leitura 115 Figura 2.3 Componentes da variável leitor 116 Figura 2.4 Fatores objetivos da compreensão do texto 124 Figura 2.5 – As dimensões de análise 135 Figura 3.1 Critérios que definem a maturidade 158 Figura 3.2 Pirâmide das motivações de Maslow 160 Figura 3.3 Animação sociocultural e Educação de Adultos 181 Figura 4.1– A decoração do espaço 229 Figura 4.2 – Pormenores 229 Figura 4.3 – O saco das histórias 230 Figura 4.4 – O rosto da história 231 Figura 4.5 – A primeira página 231 Figura 5.1 Taxa de atividade de homens e mulheres, entre 2008-2010, NUTS I 248 Figura 5.2 – Delimitação da sub-região do Baixo Vouga (NUTS III) 250 13 Figura 5.3 Taxa de atividade de homens e mulheres, entre 2008-2010, NUTS II 260 Figura 5.4 – Mapa administrativo do distrito de Aveiro, com remissão para a localização geográfica dos concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos 262 Figura 5.5 – Mapa do concelho de Aveiro, reportando-se às suas freguesia 262 Figura 5.6 Mapa do concelho de Ílhavo, remetendo para as suas freguesias 263 Figura 5.7 Mapa do concelho de Vagos, com menção às suas freguesias 264 Figura 5.8 Total da população residente no município de Aveiro, de acordo com o grupo etário, 2001-2011(%) 265 Figura 5.9 Total da população residente no município de Ílhavo, de acordo com o grupo etário, 2001-2011(%) 266 Figura 5.10 Total da população residente no município de Vagos, de acordo com o grupo etário, 2001-2011(%) 267 Figura 5.11 Total da população residente, de acordo com o grupo etário, nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, segundo os dados dos censos 2001 (%) 268 Figura 5.12 Total da população residente, de acordo com o grupo etário, nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, segundo os dados dos censos 2011 (%) 268 Figura 5.13 Níveis de escolaridade do município de Aveiro, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) 277 Figura 5.14 Níveis de escolaridade do município de Ílhavo, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) 278 Figura 5.15 Níveis de escolaridade do município de Vagos, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) 278 14 Lista de siglas e acrónimos ALLS – Adult Literacy and Life Skills ANEFA – Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos ANQ, I.P. – Agência Nacional para a Qualificação, I.P AS – Ambiente e Sustentabilidade ATL – Atividades de Tempos Livres AVC – Acidente Vascular Cerebral B1 – Básico 1 (1.º ciclo de ensino básico) B2 – Básico 2 (2.º ciclo de ensino básico) B3 – Básico 3 (3.º ciclo de ensino básico) BMV – Biblioteca Municipal de Vagos CANAEBA – Conselho Nacional de Alfabetização e Educação Base de Adultos CE – Cidadania e Empregabilidade CLC – Cultura, Língua e Comunicação CNO – Centro Novas Oportunidades CONFITEA – Conferência Internacional de Educação de Adultos CP – Cidadania e Profissionalidade CRP – Constituição da República Portuguesa CRVCC – Centro de Reconhecimento e Validação de Competências-Chave DGFV - Direcção Geral de Formação Vocacional DGLB – Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas DL – Decreto-Lei DR – Diário da República EFA – [Cursos de] Educação e Formação de Adultos ENL – Estudo Nacional de Literacia EST – Equipamentos e Sistemas Técnicos EUROSTAT – Serviço de Estatística da União Europeia FB – Formação de Base FP – Formação Profissionalizante GE – Gestão e Economia GEPE – Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação IALS – International Adult Literacy Survey 15 IEFP – Instituto de Emprego e Formação Profissional IFLA – Federação Internacional das Associações e Instituições Bibliotecárias INE – Instituto Nacional de Estatística IPLB – Instituto Português do Livro e das Bibliotecas IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social IQF, I.P. – Instituto para a Qualidade na Formação, I.P LBSE – Lei de Bases do Sistema Educativo LC – Linguagem e Comunicação MC – Ministério da Cultura ME – Ministério da Educação MV – Matemática para a Vida NO – Novas Oportunidades NS – Nível Secundário NUTS – Nomenclaturas de Unidades Territoriais OECD/OCDE – Organisation for Economic Co-operation and Development (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) PIAAC – Programa Internacional para a Análise de Competências dos Adultos PNAEBA – Plano Nacional de Alfabetização e Educação Base de Adultos PNE – Plano Nacional de Emprego POC – Programa Ocupacional PORDATA – Base de Dados Portugal Contemporâneo PRA – Portefólio Reflexivo de Aprendizagem PRACE – Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado RBE – Rede de Bibliotecas Escolares RBV – Rede de Bibliotecas de Vagos RCC – Referencial de Competências-Chave RCM – Resolução de Conselho de Ministros RNBP – Rede Nacional de Bibliotecas Públicas RVC – Reconhecimento e Validação de Competências RVCC – [Processo de] Reconhecimento e Validação de Competências-Chave S – Saúde SF- Saberes Fundamentais SNQ – Sistema Nacional de Qualificações SIGO – Sistema de Informação e Gestão da Oferta Educativa e Formativa 16 STC – Sociedade, Tecnologias e Ciências TIC – Tecnologias da Informação e Comunicação TV – Temas de vida UC – Unidades de Competência UFCD – Unidade de Formação de Curta Duração UM – Urbanismo e Mobilidade UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 17 As peças do puzzle que dão cor à nossa história Um projeto de investigação não se faz no singular. Ao longo desta caminhada há muitas histórias que se cruzam e toda ela é feita de descobertas pelas sendas da sociologia, que agora vem unir as distintas áreas que têm preenchido o nosso percurso. Ao longo desta investigação fomos juntando as várias peças deste puzzle que agora dá forma à história da nossa pesquisa. Por entre estas peças estamos também nós enquanto atores de um processo plural, feito de experiências, histórias, partilhas, circunstâncias sociais e institucionais, sensações, expectações, dúvidas, ânsias ou mesmo desencantos em determinados momentos, mas todos eles nos conduziram a um cômputo de todas essas aprendizagens. Se ao longo desta pesquisa existe uma pluralidade de sentidos, de texturas e de contornos é porque o puzzle não só da investigação, mas também o puzzle das nossas memórias se foi erigindo com tudo isso e se foi multiplicando. Por isso, nesta fase há algumas referências que se tornam incontornáveis. Primeiramente, não podemos deixar de contemplar este trajeto no âmbito institucional, que envolveu os últimos três anos de pesquisa. Assim, antes de mais, agradecemos à Faculdade de Letras da Universidade do Porto pelos trâmites administrativos e burocráticos e pela possibilidade de nos ter permitido partir à descoberta de novos rumos. Também agradecemos por lá termos encontrado aquela que aceitou o papel de orientadora deste projeto – a Professora Natália Azevedo. Foi uma longa caminhada em que nos fomos conhecendo, partilhando opções e enfrentando os desafios e os revezes que a investigação acarretou. Nos momentos mais negros e densos deste percurso, ela encontrou formas para fazer, ainda que mantendo sempre o rigor das suas orientações, com que a cor voltasse, as palavras saltitassem no papel e as ideias começassem a fazer sentido novamente. Demonstrou o seu espírito crítico, a sua frontalidade, a sua simpatia e conseguiu dar uma leveza incrível a todo este trajeto. Foi, sinceramente, um prazer imenso trabalhar em equipa e ver que também aprendemos a conhecer um pouco mais de cada uma (Esperamos não a ter desiludido). Ao Professor João Teixeira Lopes, na qualidade de coorientador da tese e de alguém que conhece e tem acompanhado o nosso percurso mesmo antes de termos enveredado pelos meandros da sociologia, um franco agradecimento por todo o apoio, 19 pelo interesse, pela disponibilidade, pela confiança, pelas sugestões, pelas palavras e pelos incentivos ao longo desta caminhada, em especial quando os receios surgiam. Este percurso envolve muitas outras pessoas que nos permitiram viver uma multiplicidade de papéis e algumas delas foram essenciais para que este projeto se fosse moldando. Assim, agradecemos às 13 formandas do curso EFA B3 Ação Educativa de Soza, que se tornaram nas 13 meninas adultas, por tudo o que com elas aprendemos, por tudo o que com elas ajudámos a construir, pela disponibilidade, pelas longas horas de diálogo, pelas partilhas, pelo carinho, pela presença, por continuarem do outro lado, por terem feito parte deste percurso e terem dado um toque distinto ao nosso trabalho enquanto formadores e investigadores. Acima de tudo, por terem contribuído para que a cada raiar do sol gostássemos ainda mais daquilo que fazíamos. A todos os colegas formadores e coordenadoras pelos caminhos que trilhámos, em especial àquelas que colaboraram neste projeto, um sincero agradecimento pela partilha de experiências, de modo particular à Dolores, à Mónica e à Gina também pela disponibilidade, pelos comentários, pela tradução e, acima de tudo, pela amizade. Ao Professor António Firmino da Costa um franco agradecimento pela disponibilidade, apesar da dificuldade em coordenarmos agendas, e pelos momentos de diálogo trocados. À Técnica Superior da Biblioteca de Ílhavo agradecemos pela disponibilidade e pela colaboração ao longo desta investigação e ao Presidente da Junta de Freguesia de Soza retribuímos o nosso agradecimento também pela disponibilidade em momentos e situações distintas, pela amabilidade e pela troca de impressões. Ao escritor António Torrado estamos gratos pela gentileza em colaborar connosco neste projeto, concedendo-nos uma singela mensagem para as nossas meninas adultas, atores sociais desta investigação. A Professora Dolores Tavares, aquela senhora que nos delicia com lengalengas e nos faz vibrar com as histórias que partilha, foi, como sempre, de uma graciosidade imensa pela proximidade que estabeleceu entre nós e o escritor. Às técnicas do INE da delegação de Coimbra, Elisabete Martelo e Alexandra Pinto, aos técnicos da Biblioteca Geral, da Biblioteca da Faculdade de Economia e de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e do Centro de Documentação da ESEC estamos gratos pela disponibilidade e pelo apoio técnico. A todos os técnicos da Biblioteca Municipal de Tábua, em particular a Ana Paula, a Cristina e a Cátia, agradecemos por todo o apoio, pela colaboração, pelos 20 diálogos trocados, pelos momentos partilhados, pelo carinho, pelas sugestões, por termos aprendido com todos eles a semear espaços de leitura, a escutar, a sentir e a viver as histórias e por nos continuarem a proporcionar momentos únicos e que se tornaram nas nossas fugas em muitas ocasiões. Aos colegas do curso de Doutoramento agradecemos pelas partilhas, pelas gargalhadas e pelo suporte em muitos momentos, ainda que um pouco à distância. Aos colegas do Serviço de Gestão de Recursos Humanos do Centro de Serviços Comuns da Administração da Universidade de Coimbra deixamos um franco agradecimento pelos desabafos, pelas brincadeiras, pela preocupação, pelos incentivos, pelas partilhas e pela possibilidade de conciliar o estágio naquela instituição com todo o trabalho de campo que esta investigação exigiu. A todos quantos foram fazendo comentários ao longo deste processo, nomeadamente ao Professor Carlos Gonçalves, ao Professor Virgílio Borges Pereira, ao Professor Vítor Sérgio Ferreira, à Professora Isabel Dias porque todos esses comentários permitiram momentos de reflexão. Claro que há também aqueles que ficaram nos bastidores, mas não deixaram de ser um suporte basilar a cada tiquetaque do relógio. Aos amigos agradecemos, sem especificar nomes, pelas nossas ausências físicas, pelos sorrisos e pelo apoio que mesmo à distância foram salientando e reforçando. À família deixamos um sorriso por terem contribuído para sermos quem somos hoje, por nos deixarem voar, pelos afetos, por alguns silêncios e pela compreensão. Com o Gabriel partilhamos, a cada dia, um pouco mais de nós pelo sol e pela energia que foi irradiando, mesmo nos momentos em que o céu por cima de nós teimou em ficar negro como breu e o sol parecia querer desmaiar. Também pelas partilhas, pelas longas horas de trabalho, pelos incentivos, pelos sorrisos, pela compreensão, pela ternura, pela paciência, pelo seu sentido crítico. Acima de tudo, por estar ao nosso lado nesta caminhada feita de sorrisos e lágrimas à mistura. Para que se evitem lapsos e faltem peças neste puzzle, agradecemos a todos os que de forma mais direta ou indireta contribuíram para que esta investigação chegasse ao final – à Joana, à Filomena, ao Sr. Acácio, ao Filipe... Agradecemos, por fim, porque são igualmente importantes, a todos aqueles que se recusaram ou não puderam, por diferentes motivos, participar neste projeto porque também eles contribuíram para o nosso crescimento pessoal e a nível de investigação e nos permitiram reformular, contornar e trilhar novos caminhos. 21 Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor. Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for. Quero brincar de manhã à noite, seja com que for. Quando for grande, quero ser um brincador. Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor. Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer. Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador... A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida. E depois acrescenta, a suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar. A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser brincador. Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta. Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta. Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador. Era um homem simples e dedicado, muito dado, que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras. (Magalhães, 2005, p. 4) I ntrodução O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem A vida é uma viagem, todos o sabemos. Navegação à vista que a rota não foi prevista e o mapa se vai revelando à medida que o tempo caminha. (Antunes, 2010, p.13) O trabalho de investigação que ora apresentamos enquadra-se no âmbito do Doutoramento em Sociologia, na área de especialização das Desigualdades, Cultura e Território, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O presente trabalho centra-se em torno da leitura e das questões de literacia da leitura em adultos, mediante uma análise em diacronia dos processos de (re)socialização num dos grupos que acompanhamos enquanto formadores de cursos de Educação e Formação e Adultos (EFA), para assim podermos dar resposta a uma multitude de inquietações. O período que medeia o final do curso em 2008 e 2011 permitiu-nos estabelecer a análise dos seus percursos ao longo de um certo período de tempo. Este grupo, que se constitui como referencial empírico desta investigação, tem a singularidade de ser construído unicamente no feminino. As mulheres que o integram têm idades compreendidas entre os 28 e os 54 anos e partilharam o mesmo curso EFA B3 no concelho de Vagos, entre 2007/2008, que lhes facultou o 9.º ano de escolaridade. Esta pesquisa é indissociável do nosso percurso pessoal e profissional, que a dada altura se fundem. A nossa trajetória profissional tem-se centrado nas áreas do ensino e da educação e formação de adultos, com ingerências pelas políticas públicas de leitura, em particular pelas práticas de leitura tendo sempre presente o papel das bibliotecas públicas. Quando a sociologia se cruza no nosso caminho estava já patente em nós alguma curiosidade e inquietação com estas problemáticas que nos impeliam para a procura de 25 O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem respostas, por isso fazia todo o sentido abraçar este desafio e isso levou-nos a enveredar pelos meandros da sociologia da educação e da sociologia da leitura. Consideramos que esta incursão pela sociologia contribui para a ampliação do nosso capital pessoal, assim como para o fortalecimento de competências e experiências científicas e pedagógicas. Além disso, ela permite também conglutinar as diferentes áreas que norteiam o nosso percurso e assim desenvolver agora uma abordagem pautada por uma feição sociológica. Na verdade, o olhar sociológico em torno da realidade social consubstancia-se na sua apropriação e é precisamente a partir desta que o nosso intuito se centraliza na construção, gradativa e sistemática, de uma problemática da qual resultam os dados empíricos. Ressalve-se que esta investigação é o corolário não só de toda uma experiência enquanto formadores nestes cursos, mas também enquanto investigadores com o grupo de mulheres acima apresentado e cujos percursos acompanhámos no âmbito desta investigação desde 2009 até à data de fecho da pesquisa em 2011 (30 de setembro), embora se ressalve que não houve uma cisão desse contacto entre o terminus do curso e o início desta investigação. Com a presente investigação quisemos acompanhar este grupo e compreender de que forma estas experiências socializadoras do curso EFA B3 o influenciaram tendo em conta o hiato temporal que se gerou e o que alterou qualitativamente nestas mulheres na sua relação com a leitura. Na verdade, pretendemos acima de tudo analisar como a Formação de Adultos cria novas disposições duráveis que promovam os níveis de literacia da leitura e compreender se as expectativas e as representações geradas por estas mulheres face àquele curso foram atingidas, nomeadamente em termos profissionais. Esta situação leva-nos a tentar perceber se há alterações nesse âmbito decorrentes do curso EFA B3. Além disso, é relevante perceber, em termos escolares, de que modo é que este curso condicionou ou influenciou as suas trajetórias e em que é que ele é diferente daquele que os seus progenitores tiveram. Isto remete-nos para a necessidade de perceber como é que a escola foi encarada no tempo e a importância do capital escolar em momentos distintos dos seus percursos. Como não houve uma cisão radical com estas mulheres após a conclusão do curso, fomo-nos apercebendo de algumas situações que pretendemos aprofundar. O pressuposto com que ficámos aquando do final do curso EFA, em 2008, foi o de haver necessidade de dar continuidade a todo um trabalho que tínhamos iniciado em torno da 26 O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem leitura fora daquele espaço, de modo a aprofundar essa relação e a sustentar algumas lacunas que não foram sanadas. Sabíamos desde logo que de forma mais estreita ou não no seu quotidiano tinham contacto com a leitura, mesmo por necessidades básicas do dia a dia. Naturalmente desejávamos que a leitura do livro fizesse parte do quotidiano destas mulheres e que houvesse uma relação próxima, no sentido de ajudá-las a reforçar competências para que pudessem participar sem constrangimentos na sociedade, mas cremos que a pressão diária do quotidiano do trabalho, da casa e da família pode não lhes permitir esse espaço pessoal. Conquanto essa situação possa ocorrer, pretendemos conhecer que fatores em particular fortalecem ou confinam as suas práticas e os seus modos de relação com a leitura. É precisamente nesta relação com a leitura que é importante entender o papel das bibliotecas nestes quotidianos preenchidos pela casa, pelos filhos, pelo trabalho. Compreender a presença ou não dessa afinidade leva-nos a tentar procurar fundamentos para essa situação e ao mesmo tempo a enquadrá-los no próprio meio em que se inserem. Nesse sentido, perceber o meio em particular em que se movem e o que em particular se constrói em termos de políticas públicas de promoção da leitura ajuda-nos a perceber também opções e necessidades nos seus percursos não só no presente, mas também ao longo do tempo. Cremos que este curso foi, na globalidade, salutar a todos os níveis para estas mulheres, nomeadamente pessoal, profissional e familiar. Porém, não podemos descurar que para que as disposições sejam duráveis devem ser ativadas constantemente com coerência e no tempo. Para a prossecução desta pesquisa optamos por uma estratégia de investigação qualitativa por considerarmos ser aquela que melhor ajuda a responder às nossas inquietudes, recorrendo para tal a uma triangulação que intentamos tornar operacional evocando a técnica da entrevista e das histórias de vida, a observação direta e participante com registos em diário de campo, o grupo focal, a análise de fontes documentais e a análise de conteúdo da informação recolhida. Não podemos descurar que a pesquisa se sedimenta numa encruzilhada constante entre a teoria e a empiria. Não obstante, procuramos também que o discurso à volta da prática da investigação se entrelaçasse e não se tornasse um mero lançar de temas aleatório. Por isso optamos desde logo por dividir este discurso em 6 capítulos, procurando estabelecer paralelismos entre eles e com o objeto empírico que nos ocupa, num entretecer constante entre a teoria e a empiria. 27 O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem Deste modo, no capítulo 1 centramo-nos em questões relacionadas com a aprendizagem na idade adulta, tentando perceber a sua trajetória internacional e em particular a sua evolução em Portugal. De uma forma mais singular, granjeamos compreender o modo de funcionamento dos cursos EFA em Portugal nas vertentes de ensino básico e secundário, assim como o modo de funcionamento dos Centros de Reconhecimento, Validação e Cerificação de Competências (CRVCC), não descurando em diferentes momentos remissões para o nosso objeto empírico. No capítulo 2 procuramos entender o que é afinal a literacia e o que a distingue da alfabetização e para tal acabamos por enveredar pelos estudos desenvolvidos ao longo dos últimos anos, a nível nacional e internacional. Intentamos igualmente perceber os distintos modelos teóricos de leitura, práticas e competências nos adultos, dando também atenção às práticas de escrita no quotidiano e às práticas e políticas públicas de leitura. Além disso, procuramos também aqui explanar as dimensões de análise que norteiam esta pesquisa. O capítulo 3 patenteia um entrosamento entre a educação de adultos e a leitura, em particular os públicos da leitura. Isso leva-nos a tentar compreender melhor quem são estes públicos, o que os caracteriza na idade adulta, perceber o universo feminino e as questões que lhe estão associadas, não deixando de refletir acerca da leitura no seio deste universo, procurando entender que aspetos o distinguem. Neste sentido pretendemos também compreender o papel da animação sociocultural e os seus contextos de receção, assim como a sua relação com a animação de adultos e aí surgem os espaços de mediação, numa articulação estreita entre bibliotecas e cursos EFA. Do capítulo 4 faz parte uma reflexão mais aprofundada em torno da estratégia de investigação qualitativa e de forma particular uma reflexão à volta das diferentes técnicas a que recorremos ao longo deste percurso, não deixando de incidir sobre a nossa posição no terreno, as contrariedades com que nos deparamos e aquilo que alcançamos. No capítulo 5 centramo-nos numa caracterização sociodemográfica dos espaços que envolvem estas mulheres, partindo de um panorama mais macro para um cenário mais micro e próximo delas. O intuito aqui é perceber não só esses cenários em termos de localização espacial, mas também a evolução da população na sua conjuntura demográfica, assim como comportamentos da educação, do emprego e das práticas e políticas culturais. 28 O toque das palavras que espelham pessoas, no início da viagem O capítulo 6 lança um olhar sobre os discursos e as memórias destas mulheres em torno das suas trajetórias. Na apresentação dos seus retratos procuramos explorar experiências e vivências que ao longo dos seus percursos são mais marcantes e que nos ajudem a perceber opções ao longo dessas trajetórias, em particular na sua relação com a leitura. Estes retratos surgem imbuídos de excertos desses discursos e memórias, mas também com alguns momentos de natureza analítica, que se complementam. Para encerrar todo este trabalho de investigação retomamos os objetivos subjacentes a esta problemática para evidenciarmos os resultados alcançados. Realçamos os dados e as interpretações que mais se destacam, procurando também enfatizar algumas pistas do que se pode fazer a vários níveis para reforçar/ consolidar práticas e competências, em particular no meio em que elas se inserem, mas também no que diz respeito aos cursos EFA de uma forma genérica. 29 C apítulo 1 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Formar-se não é instruir-se; é antes de mais refletir, pensar numa experiência vivida (…). Formar-se é aprender a construir uma distância face à sua própria experiência de vida, é aprender a contá-la através de palavras, é ser capaz de a conceptualizar. (Hess, cit. por Nóvoa, 1988, p. 115) Mais do que de instituições especializadas, a educação permanente resultará do facto que os indivíduos viverão constantemente em situações educativas. A separação entre trabalhar e aprender torna-se então impossível. Continuamos a aprender para fazer o que desejamos e continuamos a trabalhar de forma inovadora devido à descoberta de um conjunto de novas possibilidades. (Gorz, cit. por Nóvoa, 1988, p. 112) 1.1. As sociedades contemporâneas e a aprendizagem ao longo da vida – brecha para a construção de um objeto teórico A sociedade contemporânea é vista, na perspetiva de diferentes autores, sob distintas denominações. Giddens, Beck, Lash, Urry, Harvey, Jameson e Featherstone foram alguns dos autores que se debruçaram sobre esta temática e que nos revelam várias abordagens acerca do tema nos seus mais diversos aspetos. A sociedade contemporânea é, então, encarada por alguns como a sociedade da modernidade tardia, 31 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa uma segunda modernidade ou modernização reflexiva ou ainda como uma sociedade do capitalismo desorganizado (Giddens, 1998; Beck, Giddens & Lash, 1994; Beck, 2007). Touraine denomina-a de sociedade pós-industrial, asseverando que “a dissociação entre as estratégias económicas e a construção de um tipo de sociedade, de cultura e de personalidade operou-se rapidamente, e é ela que designa e define a ideia de pósmodernidade” (1994, p. 221). Lyotard dedicou-se igualmente à investigação desta problemática e considera que a pós-modernidade não se assevera contra ou pretende mesmo substituir a modernidade. No fundo, esta pós-modernidade acaba por ser o estado emergente da modernidade. Aliás, atesta que a “estética moderna é uma estética do sublime, mas nostálgica” e que o pós-moderno seria “aquilo que no moderno alega o «impresentificável»” (1987, p. 26). Ele acaba por associar a condição pós-moderna à sociedade pós-industrial computorizada, que é feita sem normas para se formarem novos princípios (2003). Esmiúça as novas tecnologias de produção, de difusão e de uso do conhecimento. O problema é que o conhecimento pode ser codificado de todas as formas, algumas mais acessíveis do que outras. Logo, há na obra de Lyotard mais do que um indício de que o modernismo se modificou pois as condições técnicas e sociais de comunicação também se alteraram. Tal como se pode constatar, o termo não é consensual entre os distintos autores. Nesta sequência, Boaventura de Sousa Santos considera que a questão é complexa. Procura enquadrar esta questão da pós-modernidade na situação portuguesa. Como tal, se por um lado a discussão desta temática parece estar distante, por outro lado é notória a entrada de “artefactos da cultura pós-moderna (…) diariamente em nossas casas por múltiplos canais de informação” (2002, p. 84). Contudo, independentemente da denominação que lhe atribuem, verifica-se, de uma forma geral, um enorme realce da mudança, sendo, naturalmente, mais evidente em alguns autores do que noutros. O mais importante neste caso não será tanto a origem da palavra, mas compreender que à pós-modernidade está associado um período marcado por algumas transformações. Se o projeto sociocultural da modernidade falhou, é necessário um novo paradigma através do projeto da pós-modernidade. É inegável que a tudo isto está associada uma viragem ou mudança cultural. Está claramente presente a noção de evolução, há uma notória mudança subjacente a todos os espaços. Aliás, as origens da discussão em torno desta temática residem, justamente, na crise cultural, sobretudo a partir do pós-guerra. 32 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Não se pode descurar que com a pós-modernidade há uma perda da ligação entre significado e significante, passam a existir múltiplas verdades, narrativas, gostos que, por sua vez, se multiplicam. As pessoas deixaram de ter um mundo e passaram a ter os seus mundos/as suas realidades. Portanto, a desfragmentação conduziu a uma diversidade e heterogeneidade de experiências. Isto faz com que haja uma luta aleatória de significados, dado que estes não são consensuais. Existe nitidamente uma perda de referencialidade. Nas sociedades contemporâneas, também designadas como sociedades do conhecimento e da informação, à medida que estas se tornaram “dimensões cada vez mais estruturantes da sociedade, a intensidade e o ritmo das mudanças a que se assiste são de tal ordem, que obrigam a que os indivíduos desenvolvam, no decorrer da vida, diversos processos de aprendizagem” (Ávila, 2008, p. 36). Sem estes distintos processos de aprendizagem torna-se uma tarefa mais árdua acompanhar as transformações que ocorrem na sociedade em distintos domínios (Ibidem). Neste sentido, Caraça salienta que, além do conhecimento “o que caracteriza e distingue o nosso tempo dos outros passados é a existência de um número considerável de desenvolvimentos significativos durante o decorrer da nossa vida – é, por assim dizer, o elevado ritmo de ocorrência de inovações na nossa sociedade” (1993, p. 47). São estas alterações constantes a um ritmo apressado que levam as pessoas a procurar fazer face a estas novas e constantes exigências de diferentes aprendizagens. Não podemos descurar que estas novas exigências, colocadas pela sociedade aos indivíduos, estão patentes no mercado de trabalho, em que cada vez mais lhes é solicitada a execução de distintas tarefas com graus de complexidade díspares. Para colmatar estas necessidades o papel da educação dos sujeitos é fundamental, não só para a sua autovalorização, mas também para a relação com a própria sociedade. Na verdade “o acesso à aprendizagem, em diversos momentos das trajectórias de vida individuais, torna-se um requisito de integração social, sendo que a sua ausência nas vidas dos indivíduos os coloca em sério risco de exclusão social” (Aníbal & Moinhos, 2010, p. 203). De acordo com a Declaração de Hamburgo apenas o crescimento centralizado no ser humano e a existência de uma sociedade participativa assente no respeito absoluto dos direitos humanos conduzirão a um progresso sustentável (1998). Naturalmente, para que todos os indivíduos possam participar nas diferentes esferas da sociedade, devem estar devidamente preparados em todas as vertentes. Neste sentido Danis refere que o 33 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa desenvolvimento e a aprendizagem são duas palavras estritamente interligadas, uma vez que o desenvolvimento domina as aprendizagens e as aprendizagens imiscuem-se no desenvolvimento (2001). Nesta linha de orientação, Delors enuncia que a educação deve ser vista como uma construção contínua da pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da capacidade que cada um tem de discernir e de agir. Deste modo, deve fazer com que cada pessoa tome consciência de si mesmo e do meio que o cerca e, assim, desempenhar o papel social que lhe compete enquanto trabalhador e cidadão (1996). Na realidade, é imprescindível que a educação permita que todos possam recolher, selecionar e utilizar as mesmas informações. A gestão dessa informação depende, depois, de cada um. Mas, acima de tudo, a educação é um bem coletivo a que todos devem ter acesso. Quando falamos de educação da pessoa humana englobamos também aqui o adulto. Durante muito tempo persistiu a ideia de que a capacidade de aprendizagem atingia o seu apogeu na adolescência. A partir daí, mais precisamente do momento em que se entrava na idade adulta, entrava-se numa fase de estagnação ou, de certa forma, de declínio das capacidades. Na verdade, a idade adulta era encarada como uma fase de estabilidade e inércia e, como tal, a educação convergia unicamente para os jovens. Neste sentido, de acordo com Danis, “a interdição de aprendizagem que pesava sobre o adulto repercutia-se, naturalmente, na percepção do seu desenvolvimento. A mesma imagem de estagnação do adulto enquanto aprendiz transpunha-se, assim, para a imagem do adulto enquanto ser em desenvolvimento” (2001, p.11). Neste seguimento de ideias, Carretero e García Madruga frisam a existência, nas sociedades ocidentais, de um estereótipo sobre a idade adulta e sobre a velhice pelo que se supõe que as capacidades cognitivas, tal como as físicas, diminuem dada a existência de um progressivo declínio desde a juventude (1991, p. 161). Cattell e Horn, através de estudos transversais, fizeram a distinção entre inteligência fluída e inteligência cristalizada (cit. por Carretero e García Madruga, 1991, p. 163). Deste estudo concluíram que existe um declive psicológico da inteligência fluida devido à deterioração da base fisiológica, provocada por doenças ou outras lesões. Em relação à base neurológica da inteligência cristalizada, tendo mais mobilidade, não é afetada negativamente e, simultaneamente, recebe contribuições positivas do aumento da experiência de cada indivíduo. Importa ainda frisar que existe, entre os adultos, uma tendência para a resolução de problemas de acordo com métodos e procedimentos determinados culturalmente. Tal situação provocaria uma falta de prática, que pode explicar a diminuição da inteligência fluida e o aumento da 34 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa cristalizada. Há, todavia, estudos longitudinais mais recentes, realizados por Schaie e os seus colaboradores, que confirmam que existe uma manutenção das capacidades mentais até aos 60 anos (cit. por Carretero e García Madruga, 1991, p. 167). Schaie explica as diferenças entre os dois estudos pelo efeito geracional, uma vez que cada geração teria uma melhor atuação nas provas de destreza intelectual pela influência conjunta de uma melhoria na educação, nutrição e de uma maior prática no uso de testes. Sendo a idade adulta a mais longa de todas as etapas da vida, começou a surgir, no decorrer do século passado, um crescente interesse por esta etapa da vida e pelo facto de que os adultos também podiam aprender. Como tal, começou a haver uma maior preocupação não só com o adulto, mas também com a sua educação. Na realidade, houve algumas datas marcantes no pós-guerra do século XX, que abordamos mais adiante, que incutiram na consciência internacional dois fatores fulcrais na educação de base dos adultos: a sua vertente cívica como veículo da democracia numa perspetiva universalizante da aprendizagem e o desenvolvimento social e económico integral de cada sociedade. Ander-Egg, Gelpi, Nyerere e Fluitman, sublinham que a educação de adultos deve fomentar a mudança nos homens e na própria sociedade (1996). Ao mesmo tempo que fomenta estas alterações deve também ajudar os homens a controlar essas mesmas mudanças que, afinal, foram eles que as produziram. Tudo isto exige um trabalho que Freire designa de “conscientização”, ou seja, o homem deve deixar de ter uma consciência submissa e passar a ter uma consciência crítica, pois só assim conseguirá fazer as suas opções com o intuito de gerar mudanças (2005, p. 9). Com o intuito de dar maior relevo ao papel dos adultos na sociedade, é fundamental encaminhá-los para que, cada vez mais, deem apreço aos prazeres do conhecimento e da pesquisa individual. Naturalmente, a amplificação dos saberes que permitem compreender melhor o ambiente sob os mais distintos aspetos contribui para o despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite compreender o real, por meio da aquisição de autonomia na capacidade de julgar e apreciar (Delors, 1996). Torna-se, assim, uma prioridade incrementar o gosto pela aprendizagem, estimular a sede e a alegria pelo conhecimento, até porque o processo de aprendizagem do conhecimento não estagna e a cada nova e qualquer experiência pode ser enriquecido. Aliás, tal como realça Trigo, a educação e a formação iniciais por si só não são suficientes, ou seja, aquilo que aprendemos até à adolescência ou ao início da juventude (2002). Na verdade, deve acautelar-se essa situação e “continuar a aprender 35 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa cada vez mais e com maior exigência, ao longo de toda a nossa vida, porque a ciência e a tecnologia se renovam todos os dias” (Trigo, 2002, p. 33). Delors complementa esta ideia de Trigo, aludindo ao facto de a educação abranger um espaço cada vez maior na vida das pessoas consoante se verifica também um aumento dos papéis que desempenham na dinâmica das sociedades modernas. Por isso mesmo os indivíduos não podem estacionar com a sua bagagem de conhecimentos inicialmente adquirida até à juventude, uma vez que é necessária uma atualização permanente de saberes (Delors, 1996). Na realidade, a educação deve ser encarada como uma construção contínua da própria pessoa humana, dos seus saberes e das suas aptidões, daquilo que é capaz de decidir ou até mesmo realizar. Acima de tudo, cada um deve tomar consciência não apenas de si mesmo mas de tudo aquilo que o rodeia, para poder desempenhar, da melhor forma possível, o seu papel social. Na verdade, a finalidade da educação é a libertação do homem dos entraves e das limitações da ignorância e da independência (Ander-Egg, Gelpi, Nyerere e Fluitman, 1996). A educação deve acrescentar a liberdade mental e física dos homens: aumentar o controlo sobre si próprios, sobre as suas vidas e sobre o ambiente em que vivem. As destrezas adquiridas mediante a educação devem ser também destrezas libertadoras (Idem). Aliás, tal como refere Freire, “ a educação deve estimular a opção e afirmar o homem como homem”, por isso ela deve ser “desinibidora e não restritiva” (1998, p. 32). Portanto, é necessário que, cada vez mais, se tenha a consciência de que a aprendizagem ao longo da vida não é tão-somente uma atitude de cada um. Ela é, acima de tudo, uma necessidade que a própria sociedade, em constante evolução, exige. Essa necessidade permite que cada indivíduo e cidadão se possa inserir plenamente quer social quer profissionalmente. Mas, falar de educação, de uma aprendizagem ao longo da vida, dos adultos não é uma mera divagação teórica em torno de diferentes autores da sociologia e não só. Esta reflexão inicial em torno das aprendizagens ao longo da vida não é aleatória e esta tese que ora desenvolvemos é o resultado de um processo que se foi erigindo paulatinamente, sem que o tenhamos provocado ou que nos tenha sido imposto. A certa altura, no decorrer do nosso percurso profissional, acabámos por estabelecer contacto com adultos, em particular com adultos que a dado momento da sua vida decidiram conceder à educação e à sua formação um novo ensejo e ao mesmo tempo amplificarem os seus conhecimentos e saberes. O trabalho com estes públicos acabou por se tornar 36 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa um desafio profissional que abraçámos de corpo e alma. De modo paulatino fomos também aprendendo a trabalhar com estes adultos. Fomo-nos apercebendo que o desafio era maior porque muitos destes adultos eram mais velhos do que nós, com uma experiência de vida mais prolongada e diferente da nossa, mas havia algo que nós lhes podíamos dar. Ao longo dos próximos capítulos, mormente os iniciais, é nosso propósito dar a conhecer com minudência os passos que nos conduziram até aqui a este momento, a esta tese, a este objeto teórico e empírico em particular. 1.2. Caminhar pela sociologia da educação não escolar: coordenadas de um percurso Quando falamos de aprendizagem associamo-la à educação e às políticas educativas. Nesse sentido, Delors, no seu relatório Educação: um tesouro a descobrir, faz referência a elas como “um processo permanente de enriquecimento dos conhecimentos, do saber-fazer, mas também e talvez em primeiro lugar, como uma vida privilegiada de construção da pessoa, nas relações entre os indivíduos, grupos e nações” (1996, p. 12). Falar de educação e de políticas educativas conduz-nos à sociologia da educação. Na ótica de Canário, este campo da Sociologia permitiu, particularmente a partir dos anos 80, “a descoberta” do estabelecimento de ensino, entendido como um sistema social aberto ao meio envolvente, e que corresponde a um “meio de vida” para todos os seus habitantes” (2008, p. 138). Ainda que não nos delonguemos em demasia sobre o assunto, consideramos que é pertinente darmos algumas pinceladas para nos referirmos a um subcampo da sociologia da educação denominado como sociologia da educação não escolar, tendo em conta que atualmente, num cenário de pós-modernidade, a escola já não detém de todo o monopólio das aprendizagens e dos conhecimentos. Neste sentido, não podemos olvidar o facto de que sendo a “sociologia da educação um campo científico construído em grande medida por causa da Escola, ele não pode reactualizar-se verdadeiramente se continuar confinado aos contextos e processos educativos formais” (Afonso, 2005, p. 143). Aliás, no nosso dia a dia são múltiplos os contextos de aprendizagem. A sua criação não implica, tal como foca Afonso, que haja uma “nova fragmentação (ou especialização) do saber sociológico. (…) Trata-se apenas de contribuir para abrir e 37 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa alargar as fronteiras da sociologia da educação para além dos limites em que esta disciplina tem sido muitas vezes enclausurada” (Afonso, 2005, p. 144). No fundo, a sociologia da educação deve ser “sensível à emergência e à centralidade social de novos contextos e processos educativos (informais e não formais), de modo a dar conta de outras formas de educação, formação e aprendizagem, não subordinadas e não subordináveis ao paradigma escolar” (Idem, p. 143). Aliás, Afonso clarifica o conceito da educação não escolar, sublinhando que o não escolar tanto pode ocorrer na escola como fora da escola, basta que estejamos perante formas de educação e aprendizagem que sejam diferentes daquelas em torno das quais se estrutura a escola tradicional. Dito de outra maneira, mesmo numa escola tradicional pode haver alguns momentos e espaços de educação e aprendizagem (informal e não-formal) que não estejam condicionados pela sequencialidade curricular, pela rigidez da programação, pela avaliação em função da certificação e da classificação, ou pelas assimetrias nas relações entre professores e alunos (Ibidem) Quando nos reportamos a este subcampo da Sociologia direcionamos o nosso olhar e a nossa atenção para as práticas de educação e formação de adultos, consideradas como um “laboratório de experiências de práticas educativas não escolares” que é, tal como a educação escolar, uma “instância de socialização” (Aníbal & Moinhos, 2010, p. 175; Lesne, 1977, p. 23). Tendo em conta a própria realidade social do país consideramos que estes contextos de educação de adultos e aprendizagem ao longo da vida devem continuar a ser explorados e a sua importância deve ser asseverada, até porque a estes contextos deve estar associada uma necessidade de conceber, de criar e de imaginar (Lengrand, 1973). As necessidades anteriormente gizadas foram extremamente importantes ao longo do nosso percurso com estes públicos porque foram eles que nos fizeram crescer enquanto pessoas, mas também enquanto profissionais e isso permitiu-nos construir um trabalho mais personalizado e adequado aos diferentes indivíduos com quem nos fomos cruzando. Este trabalho desenvolvido no contexto da educação de adultos, aliado à curiosidade e a um frenesim que nos caracteriza despertou em nós um “bichinho” que nos conduziu a esta investigação. Deste modo, esta tese surge na sequência de todo um trabalho no terreno enquanto formadores em contextos de educação de adultos e decorrente dessa vertente profissional de uma investigação anterior no âmbito do Mestrado em Educação e Bibliotecas sobre a promoção da leitura (Brito, 2008). 38 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa O objeto empírico que nos leva a enveredar pelos meandros desta investigação é constituído por um grupo de treze mulheres, com idades compreendidas entre os 28 e os 54 anos, que integrou um desses contextos de educação de adultos, entre 2007/2008, no concelho de Vagos, sem deixarmos de trazer também para aqui alguns atores institucionais que nos permitem aprofundar e contextualizar a importância da ação institucional neste âmbito. Estas treze mulheres aquando do início daquela formação detinham baixas habilitações escolares e estavam destituídas de qualificações formais, daí a necessidade de obterem a equivalência ao 9.º ano de escolaridade (3.º ciclo de ensino básico) e ficarem dotadas de competências comunicacionais e relacionais não só ao nível pessoal, social e profissional, mas também de competências técnico-práticas fundamentais para o seu desempenho profissional. Conquanto não nos detenhamos neste momento em torno do objeto teórico, mas apenas sobre o objeto empírico, salientamos a existência de dois objetivos mais gerais que conduzem o nosso trabalho ao longo desta investigação. Considerando então o objeto empírico que nos rodeia, pretendemos não só analisar como a Formação de Adultos cria novas disposições duráveis que promovam os níveis de literacia da leitura, através da construção de retratos sociológicos centrados nos modos de relação com a leitura, mas almejamos também compreender as expectativas e as representações destas mulheres face a essa formação que frequentaram. Fragmentando esses objetivos e trabalhando-os de forma mais operacional e concreta, podemos traçar outros objetivos mais específicos e que nos permitem ir um pouco mais além na pesquisa. Pretendemos, deste modo, analisar o que remanesceu do trabalho desenvolvido num projeto de formação de públicos leitores; analisar os hábitos de leitura do grupo e os seus modos de relação com a leitura; identificar dificuldades em relação à aprendizagem da leitura em cada uma destas mulheres e relacionar essas dificuldades com o género, o meio social de origem e as suas trajetórias de vida; identificar fatores de promoção da literacia e da leitura que possam contribuir para a formação de políticas públicas (contextos de ativação de disposições para a leitura) e compreender a missão institucional em relação às políticas públicas de leitura nos concelhos em que estas residem e pretende-se analisar, através do tempo, diferentes percursos de aprendizagem na idade adulta, nomeadamente familiares, escolares e profissionais. 39 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa 1.2.1. Algumas correntes teóricas no campo da educação de adultos Há uma série de correntes teóricas que grassam presentemente no campo da educação e formação de adultos com proveniência num conjunto diversificado de perspetivas defendidas por diferentes autores. Não é nosso propósito fazer uma menção exaustiva de todas, mas uma alusão a alguns autores e às suas teorias, mormente aquelas que se apresentam como uma crítica ao currículo clássico. Um conceito relativamente recente e que faz parte destas teorias é o de andragogia. Este conceito foi lançado por Malcolm Knowles, na década de 60 do século XX, no âmbito da educação de adultos, conquanto o termo tenha sido citado pela primeira vez, em 1833, por um professor de gramática alemão – Alexander Kapp (Knowles, 1990). O sistema da andragogia de Knowles estabelece uma conexão entre o desenvolvimento e a aprendizagem de adultos. A partir desta década a educação de adultos passa a estar assinalada por estas perspetivas. Não obstante, Canário considera, a este propósito, que a importância e a fortuna do conceito de andragogia devem ser entendidas no contexto da década de sessenta, marcada, por um lado, pela rápida expansão e diversificação da oferta educativa dirigida aos adultos e, por outro lado, pela procura sistemática das teorias e dos procedimentos mais pertinentes e adequados a este nova população-alvo da ação educativa deliberada (2008, p. 131). Apesar de alguns autores considerarem a andragogia uma teoria geral da educação de adultos, Requejo Osório menciona que “a «andragogia» é um termo e uma reflexão teórica que não se enraizou na tradição europeia. Este prefere assumir como ponto de referência, tanto teórico como prático, a expressão «educação de adultos»” (2003, p. 121). Também Silva aborda esta questão da educação de adultos, frisando que esta realça a necessidade de “superar a rigidez de algumas divisões institucionais – entre educador e educando (…) caminhando para estratégias pedagógicas (ou andragógicas) mais polarizadas em aprendizagens autogeridas e recíprocas (entre formadores e formandos)” (1990, p.101). Canário, por sua vez, encara o facto de se estimularem práticas de educação alternativas que possibilitam uma apreciação, um aperfeiçoamento e uma “superação da forma escolar” como um contributo central da andragogia (2008, p.135). As ideias de Knowles emergem a partir de uma observação crítica do sistema formal de ensino, que se baseia nos princípios da pedagogia. Sendo esta considerada a 40 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa arte de ensinar crianças, ter-lhe-á parecido evidente que a aprendizagem de adultos e crianças ou mesmo adolescentes seria díspar. Segundo Knowles, no modelo pedagógico ao professor cabe decidir o que é aprendido, quando e como é aprendido, bem como o controlo em torno daquilo que é efetivamente assimilado, ou seja, as aprendizagens. Deste modo, ao aprendente/ aluno resta-lhe um papel de submissão (1990). Malglaive considera que a formação de adultos ressalta a “alquimia da passagem à acção, a qual se torna o próprio princípio de qualquer formação oposta ao ensino” (1995, p. 33). Apercebemo-nos, então, que a pedagogia recorre essencialmente a uma metodologia de transmissão e receção. Neste caso, o professor transmite e o aluno absorve a informação. É preciso ter em conta que, nesta situação, o objetivo a alcançar por crianças e jovens é o de obter um nível ou grau, com o intuito de progredir no sistema de ensino. Por isso se verifica esta aquisição de conteúdos programáticos. Aliás, os resultados obtidos são sinal do sucesso ou insucesso escolar. Portanto, o modelo pedagógico confere ao professor a responsabilidade de decidir não só o que é ensinado, mas também como e quando deve ser ensinado. Dito de outra forma, o educador é encarado como o sujeito que conduz os seus educandos à memorização mecânica de um determinado conteúdo ou matéria. O aluno tem, assim, um mero papel passivo, num processo em que se constata que os alunos aprendem somente aquilo que lhes é transmitido, não sentem a necessidade de descobrir como poderão usar aquele conhecimento posteriormente nas suas vidas. O conceito que o professor tem do aluno é de alguém dependente, sendo que o papel ou importância da experiência não é do aluno, mas do professor. Na realidade, os métodos de ensino clássicos são o centro da metodologia pedagógica. O aluno não precisa, portanto, de saber aplicar instantaneamente a informação que reteve. Ele aprende somente para ser aprovado e a orientação da aprendizagem é centrada na lógica do conteúdo de um sujeito. Na verdade, para os alunos, a formação é um meio de obter conhecimento dada por um determinado sujeito. De certa forma, acumula e memoriza a informação sobre temas escolares específicos; a motivação é estimulada pelas notas, pela aprovação ou reprovação do professor ou ainda pela própria pressão dos pais. De facto, a aplicação dos métodos pedagógicos em adultos pode reverter em insucesso ou numa aprendizagem pouco interessante e até mesmo desmotivadora. Esta desmotivação e falta de interesse derivam da falta de articulação entre a teoria e a 41 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa prática e outros métodos que diferem do dinamismo e das diferentes dimensões da vida e dos papéis que representam na sociedade. Os Quadros 1.1 e 1.2 estabelecem uma comparação entre os pressupostos e as conceções da pedagogia e da andragogia, numa articulação que permite destacar as divergências entre a educação de crianças e adolescentes e a formação de adultos, no que diz respeito a diferentes parâmetros. Quadro 1.1 Comparação dos pressupostos da Pedagogia e da Andragogia Pressupostos Pedagogia Andragogia Autoestima Dependência Auto - orientação Experiência De pouca importância Base de integração para o material novo Maturação Perspetiva temporal Orientação para a Desenvolvimento biológico Atividades desenvolvimentais Pressão social relacionadas com papéis sociais Aplicação adiada Aplicação imediata Centrada no assunto Centrada em problemas aprendizagem Fonte: Adaptado de Cross (Knowles, cit. por Cross, 1981, p. 224). Quadro 1.2 Comparação das conceções da Pedagogia e da Andragogia Conceções Pedagogia Andragogia Orientada por uma autoridade, Mutualidade, respeitoso, colabo- formal, competitivo rante, informal Planificação Pelo professor Mútua Diagnóstico de necessidades Pelo professor Mútua Formulação de objetivos Pelo professor Negociação Organização do processo de Lógica do assunto: unidades de Sequenciado ensino conteúdo preparação do aluno; unidades Clima em termos da de problemas Atividades Técnica de transmissão Técnicas de experimentação Avaliação Pelo professor Rediagnóstico mútuo de necessidades; mediação mútua do programa Fonte: Adaptado de Cross (Knowles, cit. por Cross, 1981, p. 224). 42 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Freire enuncia, a propósito da pedagogia, que a educação se torna num ato de depositar, sendo os educandos os depositários e o educador o depositante – “Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a conceção “bancária” da educação” (2005, p. 60). A propósito da conceção “bancária” de que Freire nos fala, ele acentua ainda que se educa “para arquivar o que se deposita. Mas o curioso é que o arquivado é o próprio homem, que perde assim o seu poder de criar, se faz menos homem, é uma peça” (1998, p. 38). No decorrer do seu trabalho, Knowles estabeleceu seis pressupostos ou princípios andragógicos que determinam as perspetivas do adulto enquanto aprendente e que se apresentam em contraste relativamente à visão que ele expõe como postulados do modelo pedagógico (1990). Sistematizando: Nos adultos a vontade de saber surge por iniciativa própria. Eles, pelos mais diversos motivos, procuram mais formação. Ressalve-se o reconhecimento da experiência dos adultos, não só a que vão adquirindo pela idade, mas também com a diversidade de experiências em contextos díspares. Os adultos não são simples aprendizes sem experiência. Na realidade, a sua experiência de vida é um fator bastante proeminente, até porque os adultos aprendem de forma distinta das crianças. Os adultos sentem necessidade de saber, de modo a realizar nas suas vidas algo diferente ou melhor (trabalho, por exemplo). Claro que, por vezes, no decorrer dessa aprendizagem é preciso incutir-lhes alguns estímulos. Os adultos revelam-se dispostos a orientar a sua própria aprendizagem, tendo o formador a responsabilidade de encaminhá-los fornecendo-lhes aquilo de que eles necessitam. Relativamente à orientação da aprendizagem, os adultos centram-se na realização de tarefas e na concretização de problemas específicos. Investem a sua energia na aprendizagem de temas que os possam auxiliar no dia a dia. A predisposição para aprender é o princípio que traça o modo como os adultos se mostram mais abertos às novas aprendizagens. Esta não é, de todo, uma simples aprendizagem. Na realidade, esta aprendizagem faz com que eles sejam capazes de encarar e solucionar todo e qualquer obstáculo com que se deparem nas diferentes áreas da vida, em detrimento de uma aprendizagem 43 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa centrada num determinado conteúdo ou disciplina. Os adultos aprendem com maior eficiência se a informação estiver inserida num determinado contexto de vida real. A motivação e o estímulo para aprender relacionam-se com tudo o que possa auxiliar o adulto a solucionar os problemas do quotidiano. Deparamo-nos com vários fatores que podem influenciar a motivação: emprego, salário, autoestima, autoconfiança, qualidade de vida, entre outros. Knowles menciona que não nos podemos limitar a efetuar uma transposição da teoria da educação dos jovens, que ele denomina de pedagogia, para uma situação onde aqueles que aprendem são adultos (Idem). Os educadores ou formadores devem ser profissionais capazes de estabelecer uma colaboração com os alunos/ formandos e realça o facto de somente um formador capaz se pode tornar um andragogo por oposição a um pedagogo (Knowles, 1990, p.64). Pode estabelecer-se aqui uma associação com uma passagem de Freire onde ele acentua que Não se ensina, professor, há um pelos respetivos grupo, reduzindo 10). aprende-se em “reciprocidade de consciências”; não há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo (2005, p. É também Freire que afirma que “o destino do homem deve ser criar e transformar o mundo, sendo sujeito de sua ação” (1998, p. 38). Com isto não se pretende transmitir a ideia de que uma é melhor do que a outra. Aliás, é o próprio Knowles que diz que alguns pressupostos pedagógicos são realistas para os adultos em algumas situações e algumas conjeturas andragógicas são realistas para as crianças em determinadas situações, frisando que não pretende com isso dizer que uma é boa e a outra é má (cit. por Cross, 1981, p. 225). Não deixa ainda de acrescentar que o modelo pedagógico é um modelo ideológico que exclui todas as suas hipóteses andragógicas, ao passo que o modelo andragógico é um sistema de hipóteses que compreende as hipóteses pedagógicas (Knowles, 1990). Em Bernstein deparamo-nos com uma análise do conceito de enquadramento, mencionando o autor que este conceito possibilita a caracterização da estrutura do sistema de comunicação que é a pedagogia (1975). Remete-nos para a forma do contexto em que o conhecimento é difundido e recebido, na forma específica da relação pedagógica que se estabelece entre o professor e o aluno. No fundo, encaminha-nos para um leque de opções dadas quer ao professor quer ao aluno, de modo a controlar aquilo 44 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa que se transmite e recebe no quadro da própria relação pedagógica, ou seja para o grau de controlo que o professor e o aluno podem exercer sobre a sua seleção, organização, ritmo de aprendizagem de conhecimento transmitido e recebido no seio da relação pedagógica. Quanto maior o controle do processo de transmissão por parte do professor, maior é o enquadramento. Efetivamente, Bernstein utiliza a distinção entre currículo de coleção e currículo de integração para estabelecer a tipologia dos códigos escolares, recorrendo a diferenças concretas entre sistemas de educação. Como tal, menciona que toda a organização do conhecimento educacional que implique uma forma de classificação rígida produz um código de coleção, enquanto uma classificação flexível motiva um código de integração (Bernstein, 1975). Mezirow aborda igualmente a educação de adultos, mas numa outra perspetiva, rompendo com os pressupostos de uma visão racional (1991). Mezirow, na sua obra Tranformative Dimensions of Adult Learning apresenta diferentes influências na sua conceptualização da aprendizagem, estando claramente patente a presença da teoria crítica de Habermas, mencionando que este último sustenta que o conhecimento origina três tipos de interesses – instrumental, prático e emancipatório. O primeiro relaciona-se com o ambiente e o meio envolvente; o segundo tem a ver com o relacionamento com os outros, o que implica necessariamente a comunicação e, por último, o emancipatório associa-se ao poder, ou seja, ao entender dos propósitos do conhecimento (Idem). Na verdade, quando Habermas, de acordo com Mezirow, se refere a um conhecimento emancipatório, considera que somos conduzidos através da reflexão a identificar e a desafiar as nossas perspetivas de significado distorcidas. O mesmo autor considera que a educação de adultos pode ser encarada como um esforço organizado para ajudar aqueles que têm já idade suficiente para serem responsáveis pelos seus atos – os adultos - a adquirir e melhorar as suas compreensões, as suas habilidades e as suas disposições e considera que é fulcral para este processo ajudá-los a refletir criticamente e a agir eficazmente nas suas crenças, nos seus valores, nos seus sentimentos, bem como nos seus julgamentos de valores que acompanham e moldam uma interpretação (Mezirow, 2000). Mezirow detém-se em torno da teoria da aprendizagem transformativa e para ele “a aprendizagem é concebida como um processo de utilizar as interpretações anteriores com vista a construir uma interpretação alterada acerca do sentido da experiência actual, em ordem a guiar a acção futura” (cit. por Quintas, 2008, p. 24). Aliás, ele 45 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa considera que a reflexão é um processo para avaliar criticamente o conteúdo, o processo ou as premissas dos nossos esforços para interpretar e dar sentido a uma determinada experiência, mencionando ainda que a aprendizagem comunicativa envolve um trabalho com as ideias dos outros, o que requer de nós, de modo frequente, um confronto com o desconhecido (Mezirow, 1991). Não obstante as diferentes teorias, é importante frisar, tal como refere Ávila, que é o modo como a partir da reflexão sobre a especificidade dos processos da educação e formação dirigidos aos adultos começam a ser pensados, e progressivamente adotadas, estratégias pedagógicas mais adequadas para essa população e ultrapassadas algumas limitações das abordagens do currículo até aí prevalecentes, as quais tenderiam a desvalorizar em absoluto os conhecimentos e competências anteriores, bem como não terem em conta os contextos de utilização das novas aquisições (2008, p. 301). Tendo em conta que as orientações dominantes nos dias de hoje se enquadram na prossecução das teorias referidas, a educação de adultos deve contribuir para que a própria sociedade se torne mais tolerante e instruída, contribuindo assim para o seu crescimento. Desta forma, pode-se considerar a educação de adultos como um instrumento de desenvolvimento basilar da própria sociedade. 1.3. Evolução e contextualização internacional da Educação de Adultos Nas últimas décadas do século XX torna-se visível um aumento do interesse concedido à educação de adultos. A nível internacional não se podem descurar alguns momentos-chave e a criação de documentos no que diz respeito a este tipo de educação. Salvaguarde-se que é num clima de reconstrução europeia, após a 2.ª Guerra Mundial, que se pode falar de um incitamento deste tipo de educação. Desses momentos-chave fazem parte aquelas que denominamos como CONFITEA’s – Conferência Internacional sobre a Educação de Adultos. Em 1949 ocorre a primeira Conferência internacional de educação de adultos, em Elseneur (Dinamarca), com o intento de fazer com que a educação de adultos estivesse ao serviço da paz e da implementação de uma civilização completa e humana, num clima ainda de pós-guerra. Aliás, a educação é um elemento fulcral para o desenvolvimento económico, social e político de todos os povos e constitui-se como um esforço capital para se colocarem em prática os princípios consagrados na Declaração 46 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Universal dos Direitos do Homem, sendo ainda um dos requisitos prévios para o robustecimento das relações tranquilas entre os povos (UNESCO, 1960). Nesta altura a educação de adultos está associada à educação popular. Não obstante, este conceito vai sofrendo alterações, sobretudo com a Conferência de Montreal, no Canadá, em 1960. Nessa altura verifica-se uma ampliação do próprio conceito. Desta Conferência fica a ideia de que é fulcral incutir nas pessoas a necessidade de uma aprendizagem contínua. A educação de adultos é, de acordo com a informação apresentada nesta conferência, um instrumento basilar, a partir do qual se podem alcançar determinados objetivos – aprender é aqui a palavra-chave, até porque o respeito mútuo, a compreensão e a simpatia são qualidades que a ignorância destrói e que o saber desenvolve (Idem, p. 11). Fala-se designadamente da formação profissional ou da aprendizagem de uma nova profissão ou função, como contributo para o progresso técnico; da participação de cada indivíduo em diferentes formas de vida cultural da sociedade a que pertence e da liberdade de escolha para poder optar entre diferentes possibilidades. Nesta conferência é assinalada pela UNESCO a utilidade e a necessidade de cultivar a dimensão social e individual dos adultos. Ambiciona-se, deste modo, formar novos homens e mulheres, capazes de erigir uma nova sociedade. Podem perceber-se aqui duas das suas preocupações quanto aos adultos: a alfabetização e a formação profissional. Neste momento, sendo a palavra-chave aprender, se o homem aprende a sobreviver, abrir-se-lhe-ão possibilidades de progresso social e de bem-estar pessoal até então desconhecidos (Ibidem). A principal finalidade da educação de adultos é a de facultar à humanidade um constante enriquecimento de valores, dado que o homem é um ser complexo com variadas necessidades e que para tê-las em conta não basta meramente encontrar soluções fragmentárias. Os programas de educação de adultos devem satisfazer essas necessidades por inteiro. Aliás, era necessário “erradicar o analfabetismo. De acordo com o princípio da subsidiariedade e solidariedade, apelou-se aos países ricos que tomassem em mãos essa tarefa de alfabetização dos países mais pobres” (Silvestre, 2003, p. 87). Assinala-se igualmente que o respeito das forças intelectuais e espirituais, que conferiram à humanidade um património permanente de valores e princípios, deve continuar a encontrar na constante evolução dos modos de vida formas de se expressar. A partir desta ideia faz-se um apelo a todos os povos para que encarem a educação de 47 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa adultos como um elemento fundamental e uma componente vital para o sistema educativo de cada país (UNESCO, 1960). Em 1972, em Tóquio, na terceira edição da CONFITEA fica a ideia de que a educação de adultos devia trespassar a sociedade: o trabalho, o lazer, as atividades cívicas (1972). Nesta conferência já não se fala simplesmente, tal como nas anteriores, de uma alfabetização primária. Nesta última aborda-se a alfabetização funcional, que permite às pessoas uma interpretação da realidade em que estão inseridas. A alfabetização constitui-se como uma oferta educativa de segunda oportunidade. Exemplo disto é a campanha lançada durante os anos 60 pela UNESCO, recorrendo ao método de alfabetização funcional, “cuja orientação principal preconizava a combinação entre a aquisição da leitura e da escrita e a formação de base, designadamente profissional, segundo estratégias intensivas (...) e segundo programas diversificados e flexíveis” (Silva, 1990, p.13). Pela primeira vez, em Tóquio, surge o conceito de educação de adultos como um subsistema da educação permanente. A educação de adultos torna-se uma condição essencial no processo de democratização e progresso da educação, económico, social e cultural das nações. Considera-se no relatório final desta conferência que a alfabetização funcional para além de propender para o desenvolvimento socioeconómico, almeja avivar uma consciência social junto dos iletrados, com a finalidade de os tornar artesãos de uma nova e melhor sociedade (UNESCO, 1972). Salvaguarde-se ainda que alfabetização funcional tem as suas raízes, tal como frisa Lengrand, teórico e prático da educação de adultos, numa análise aprofundada de insuficiências e fracassos dos modos tradicionais de alfabetização. No passado – e ainda hoje, em muitas circunstâncias – acontecia na maior parte das vezes que os adultos analfabetos recebiam um ensino dos rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo, independentemente dos contextos sociais e económicos em que se encontravam inseridos, e sem se levarem em conta as consequências e as utilizações ulteriores dos conhecimentos adquiridos, em função da personalidade do adulto considerada no seu conjunto (1973, pp. 106-107) No mesmo ano é publicado pela UNESCO um relatório coordenado por Edgar Faure, intitulado Aprender a ser, que acabaria por se constituir como um manifesto da educação permanente (1973). Neste relatório deparamo-nos com um cotejar de uma “lógica escolar e cumulativa” a uma “concepção de aprendizagem encarada como coincidente com o ciclo vital e a construção da pessoa, correspondendo a um percurso de “aprender a ser” (Canário, 2001, p. 90). 48 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Em 1976, ocorre uma Conferência Geral em Nairobi de onde saem algumas recomendações relativamente ao desenvolvimento da educação de adultos e onde predomina a ideia de que esta não pode ser encarada intrinsecamente, senão como um subconjunto incorporado num projeto global de educação permanente, abrangendo esta todas as dimensões da vida, todos os ramos do saber e todos os conhecimentos, sendo o seu promotor o ser humano (1976). A noção da educação de adultos como subconjunto integrado num projeto global da educação permanente está já consolidada, uma vez que esta ligação vem já da CONFITEA do Japão. Em Nairobi discute-se ainda a necessidade de alfabetização e de desenvolvimento rural. Faz-se menção à necessidade de aquisição de outros saberes, que não os básicos, por todas as pessoas, de modo a alcançar o pleno progresso. É sugerido a este propósito que não se deve tão-só ajudá-las a adquirir conhecimentos elementares – a leitura, a escrita, o cálculo, a compreensão de fenómenos naturais e sociais –, mas também facilitar-lhes o acesso a um trabalho coletivo, a estimular a sua compreensão e o domínio dos problemas de higiene, saúde, economia doméstica e educação dos filhos e ainda a desenvolver a sua independência e participação na vida coletiva. A quarta Conferência Internacional de Paris, em 1985, fecha este ciclo, convertendo a educação de adultos um projeto equitativo que associe e coordene a educação formal com o mundo do trabalho. Assim, a principal medida a tomar em relação à educação de adultos é o combate ao analfabetismo. Aliás, a alfabetização é encarada com um problema complexo e que não depende unicamente do meio ambiente, mas também de componentes históricos, culturais, políticos e sociais de cada povo, daí que um dos objetivos fosse o da eliminação completa do analfabetismo até ao ano 2000 (UNESCO, 1985). Pela primeira vez, desde o início deste ciclo de conferências da UNESCO acerca da educação de adultos, alude-se a uma estratificação no seio da alfabetização. Abordase, deste modo, a alfabetização funcional, social e cultural, combatendo aquela ideia que grassou até então em que a educação de adultos e a alfabetização eram vistas como “sinónimos” (Canário, 2008, p. 49). Quer a alfabetização funcional, que a social, quer a cultural devem ser moldadas de acordo com as transformações que sucedem na sociedade e na vida de cada indivíduo. Aliás, acrescenta-se que enquanto a alfabetização funcional deve contribuir para que cada um domine mais as funções que exerce em determinado trabalho, para ampliar os seus conhecimentos teóricos e práticos e também que lhes permita novas perspetivas, a alfabetização social deveria ser um meio para 49 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa aquisição dos instrumentos necessários para dominar a palavra escrita e abrir caminho para a sua integração no seu meio cultural, social e político (UNESCO, 1985). Na realidade, perante esta alfabetização social não se pretende somente obter o domínio da escrita, mas também lograr um caminho de integração e participação das pessoas no seu ambiente cultural, social e político (Requejo Osório, 2004). Nesta conferência, a educação é encarada como um direito para todos ao longo de toda a vida (1985). A principal medida a adotar nesta matéria é pelejar contra o analfabetismo em todas as suas feições. Há um outro ponto que se acentua de forma assaz nesta conferência: o direito de aprender, considerado um desafio capital e um instrumento indispensável para a sobrevivência da humanidade (Idem, p. 73). Portanto, aprender é, mais uma vez, a palavra-chave, sendo aqui renovada a sua importância como condição preliminar para o desenvolvimento do ser humano. Em Paris defende-se ainda uma educação de adultos inscrita na educação permanente que coopere para o incentivo do desenvolvimento humano, económico e social. Nesta conferência está ainda patente a necessidade de estabelecer uma comunicação entre a educação formal e a educação informal. Ainda que os projetos de alfabetização levados a cabo pela UNESCO se sustentassem numa cisão com o modelo escolar, estes acabam “pervertidos e provocaram precisamente o contrário do que proclamavam, a escolarização da sociedade” (Cavaco, 2009, p. 115). Aliás, Nóvoa alude precisamente a essa situação, acentuando que a grande força da Educação Permanente tem-se revelado, simultaneamente, a sua grande fragilidade. Ao exigir “menos escola” nem por isso a Educação Permanente deixou de provocar “mais escolarização”, pois ao intervir em todas as idades da vida e em todos os espaços sociais ela estendeu-se a zonas da sociedade até aí imunes à ação pedagógica tradicional, e fê-lo, veiculando frequentemente uma conceção escolarizante da formação. É verdade que as perspetivas da Educação Permanente podem contribuir para uma autonomia progressiva das pessoas e para o investimento educativo dos espaços de vida e do trabalho. Mas, (…) é necessário inverter uma certa lógica de raciocínio (1988, p. 114). Em 1997 teve lugar em Hamburgo a quinta Conferência Internacional sobre a educação de adultos, num contexto de continuidade das anteriores conferências internacionais. Nesta considera-se que a educação de adultos é a chave para o século XXI, reforçando que é “simultaneamente, uma consequência de uma cidadania activa e uma condição para a participação plena na sociedade” (UNESCO, 1998, p. 7). Pretende- 50 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa se, assim, que a educação ao longo da vida seja uma realidade mais significativa na vida de cada um. Nesta conferência é fortalecido o tema da alfabetização, considerada “um catalisador da participação nas actividades sociais, culturais e económicas, bem como na aprendizagem ao longo da vida” (UNESCO, 1998, p. 10). Na realidade, pretende-se facultar distintas oportunidades de aprendizagem aos mais marginalizados e excluídos. Nesta conferência é proposto um leque de atividades e compromissos da educação de adultos, em redor de dez temas básicos para o futuro: a educação de adultos e a democracia; o desafio do século XXI; melhorar as condições e a qualidade da educação de adultos; garantir o direito universal à alfabetização e ao ensino básico; educação de adultos, igualdade e equidade nas relações entre homens e mulheres e maior autonomia da mulher; educação de adultos relacionada com o meio ambiente, a saúde e a população; educação de adultos e cultura, meios de comunicação e novas tecnologias da informação; educação para todos os adultos; os direitos e aspirações dos diversos grupos; os aspetos económicos da educação de adultos e fortalecimento da cooperação e da solidariedade internacionais. Tendo em consideração esta última conferência de Hamburgo, não podemos deixar de determinar uma certa analogia com a conferência de Nairobi. Esta última aborda já a definição do conceito de educação de adultos. Analise-se o Quadro 1.3, para melhor compreender o vínculo entre ambas. Se nos detivermos nestas duas definições, torna-se percetível que elas coincidem nas ideias essenciais, conquanto a forma como são expostas possa ser distinta. Assim, a educação de adultos é um processo que tem como finalidade a produção de uma aprendizagem, independentemente do conteúdo, nível ou método. Enquanto na definição apresentada em Nairobi se fala em contextos de aprendizagem formal e informal, em Hamburgo menciona-se unicamente uma aprendizagem formal ou não. Porém, posteriormente, é frisado que a educação de adultos engloba a educação formal, permanente, informal e ocasional. A definição patente na última conferência, em 1997, atribui um maior realce à aprendizagem, assim como à multiculturalidade, estando também patente uma aquiescência de perspetivas teóricas e analíticas. 51 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Quadro 1.3 O Conceito de educação de adultos Conferência Geral de Nairobi Conferência Internacional de Hamburgo (1976) (1997) A expressão “educação de adultos” “Por educação de adultos entende-se o designa a totalidade dos processos organizados de conjunto de processos de aprendizagem, formal ou educação, seja qual for o conteúdo, o nível ou o não, graças ao qual as pessoas consideradas adultos método, sejam formais ou não formais, ou que pela sociedade a que pertencem desenvolvem as prolonguem ou substituam a educação inicial suas capacidades, enriquecem os seus dispensada nas escolas e universidades, e sob a conhecimentos, e melhoram as suas qualificações forma de aprendizagem profissional, graças às técnicas ou profissionais ou as reorientam de modo quais as pessoas consideradas como adultos pela a satisfazerem as suas próprias necessidades e as da sociedade a que pertencem, desenvolvem as suas sociedade. A educação de adultos compreende a atitudes, enriquecem os seus conhecimentos, educação formal e a educação permanente, a melhoram as suas competências técnicas ou educação não formal toda a gama de oportunidades profissionais ou dão-lhes uma nova orientação, e de educação informal e ocasional existentes numa fazem evoluir as suas atitudes ou o seu sociedade educativa multicultural, em que são comportamento numa dupla perspetiva de um reconhecidas as abordagens teóricas e baseadas na enriquecimento integral do homem e uma prática”. participação no desenvolvimento económico e cultural equilibrado e independente. Fonte: Adaptado de UNESCO, 1976, p. 2; UNESCO, 1998, p. 7. Nesta conferência de Hamburgo, subordinada ao tema Aprender na Idade Adulta – uma chave para o século XXI – são delineados como objetivos: Sublinhar a importância da vida educativa em idade adulta; Incentivar os compromissos, à escala planetária, a favor do direito dos adultos à aprendizagem ao longo da vida; Trocar experiências sobre experiências atuais e aperfeiçoamentos necessários; Recomendar políticas e prioridades para o futuro e adotar uma “Declaração sobre a Educação de Adultos” e um “Plano de Ação para o Futuro”; Promover a cooperação internacional. (UNESCO, 1998, p. 3) Considerando os textos das conferências anteriores e os objetivos traçados nesta conferência, é clara a presença, nas conferências anteriores, de uma centralização da educação de adultos como ramo do sistema educativo, no âmbito da educação permanente. Tal como frisa Melo, esta ampliação da Educação de Adultos “foi ganhando espaço e influência nas mais variadas dimensões da vida social” mais concretamente quando salienta na sua definição de educação de adultos a importância da educação não formal e informal (Ibidem). 52 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Importa ainda salientar que nesta conferência nos deparamos com uma orientação para o desenvolvimento de competências, uma vez que “os desafios do século XXI exigem criatividade e competências dos cidadãos de todas as idades” (UNESCO, 1998, p. 16). O relatório de Delors, publicado anteriormente a esta conferência, salienta os quatro pilares da educação – aprende a ser, aprender a fazer, aprender a conhecer e aprender a viver juntos –, destacando-se neste relatório o “conceito de aprendizagem ao longo da vida” como a “chave que dá acesso ao século XXI” (Idem, p. 15). Recuando um pouco no tempo, anteriormente à última CONFITEA, não podemos descurar a ocorrência, em 1990, da Conferência Mundial sobre Educação para Todos de Jomtien, na Tailândia, onde foi aprovada a Carta Mundial sobre a Educação Para Todos. Nesta Conferência, bem como no Fórum Mundial de Dakar, em 2000, considerou-se que a educação tem um papel determinante para preparar os indivíduos e transformar a sociedade (2000, p. 12). Aliás, o intuito primordial em Jomtien é, tal como o próprio nome sugere, alcançar a educação básica para todos. Pretende-se que a educação seja capaz de satisfazer as necessidades mais prementes da aprendizagem. Além disso, é frisado que a educação básica “é mais do que uma finalidade em si mesma” (UNESCO, 1990, p. 5). Ela é o sustentáculo para a aprendizagem e o desenvolvimento humano permanentes sobre a qual os países podem edificar, sistematicamente, níveis e tipos mais avançados de educação e capacitação. Para tal, é necessário uma nova visão acerca da educação, pautada pela universalidade e pela equidade e direcionada para crianças, jovens e adultos. No seio do calendário de ação de Jomtien é designado um calendário de avaliação em que, até 2001-2002, fossem avaliados os sucessos e os obstáculos. Esta avaliação realiza-se com o Fórum Mundial de Dakar. Este, sendo uma continuação de Jomtien, defende uma educação básica continuada e de qualidade, assente nas necessidades de cada indivíduo. Além disso, importa acentuar que uma educação básica nestes parâmetros é um dos principais objetivos a atingir antes de 2015. Neste âmbito, importa ressalvar os objetivos traçados no decorrer deste Fórum Mundial e que se resumem em seis pontos essenciais, abrangendo neste caso não só a educação de adultos, mas a educação de uma forma genérica. Os dois primeiros pontos referem-se à educação para as crianças, os dois pontos seguintes estão associados à educação dos jovens e dos adultos e nos dois últimos aborda-se a questão da igualdade de género e da melhoria da qualidade da educação, de modo a garantir padrões mais elevados. Assim, nos objetivos delineados estabelece-se um marco de ação para que 53 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa todos os indivíduos possam exercer o seu direito a aprender e ao mesmo tempo contribuir para o desenvolvimento da própria sociedade: 1) Extensão e melhoria da proteção e educação integrais da primeira infância, particularmente para as crianças mais vulneráveis e desfavorecidas; 2) Garantir que antes de 2015 todas as crianças, e principalmente aquelas que se encontrem em situações difíceis e pertencentes a minorias étnicas, tenham acesso a um ensino primário gratuito e obrigatório de boa qualidade e que o terminem; 3) Garantir que sejam atendidas todas as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos mediante um acesso equitativo a uma aprendizagem adequada e programas de preparação para a vida ativa; 4) Aumentar em 50% até 2015 o número de adultos alfabetizados, em particular as mulheres, e facilitar a todos os adultos um acesso equitativo à educação básica e à educação permanente; 5) Suprimir as disparidades entre os géneros no ensino primário e secundário até 2005 e conseguir antes de 2015 a igualdade entre os géneros na educação, em particular garantindo às mulheres um acesso equitativo a uma educação básica de boa qualidade, assim como um bom rendimento; 6) Melhorar os aspetos qualitativos da educação defendendo parâmetros mais elevados, para que se alcancem resultados de aprendizagem reconhecidos e mensuráveis, especialmente na leitura, na escrita, aritmética e competências práticas essenciais (UNESCO, 2000). Ao ano de 1995 está associado o lançamento do Livro em Branco da Educação e Formação – rumo à sociedade cognitiva, pela Comissão Europeia. Nele são apresentadas propostas para a implementação de medidas de formação de adultos no campo europeu em contextos distintos, nomeadamente o escolar, o profissional ou o informal. Há um acentuar do acesso à cultura e ao desenvolvimento das pessoas, bem como das suas competências profissionais. A aprendizagem ao longo da vida acaba por marcar a promoção da própria cidadania. Canário considera, todavia, que o realce que é aplicado na importância da educação e da formação assenta, essencialmente, “numa perspectiva de sobredeterminação da educação por uma lógica de carácter económico que, cumulativamente, induz uma visão redutora e pobre dos fenómenos educativos” (2008, p. 89). Aliás, Canário acaba por apelidar esta perspetiva como “funcionalista”, uma vez que está patente neste Livro uma “visão utilitária e instrumental da educação ao serviço da economia” (Idem, p. 91). 54 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Em 2000 é também produzido pela Comissão Europeia O Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, com o intuito de promover a sua “aposta na aprendizagem ao longo da vida” (Comissão Europeia, 2000, p. 3). Neste Memorando acaba por se inserir uma nova visão da aprendizagem, mais vasta, deixando de ser somente uma componente da educação e da formação. Esta situação torna-se ainda mais percetível quando se sublinha que Os próprios indivíduos são os atores principais das sociedades do conhecimento. Acima de tudo, o que conta é a capacidade humana de criar conhecimento e de o usar eficaz e inteligentemente, em contextos de mutação contínua. Para desenvolver plenamente esta capacidade, as pessoas têm de querer e ser capazes de assumir o controlo das suas próprias vidas – em suma, tornar-se cidadãos ativos. A melhor forma de dar resposta ao desafio da mudança reside na educação e na formação ao longo da vida (Idem, p.8). A extensão da definição que dá nome a este Memorando encaminha-nos para três tipos de aprendizagem: - Aprendizagem formal: decorre em instituições de ensino e formação e conduz a diplomas e qualificações reconhecidos. - Aprendizagem não-formal: decorre em paralelo aos sistemas de ensino e formação e não conduz, necessariamente, a certificados formais. A aprendizagem não-formal pode ocorrer no local de trabalho e através de atividades de organizações ou grupos da sociedade civil (organizações de juventude, sindicatos e partidos políticos). Pode ainda ser ministrada através de organizações ou serviços criados em complemento aos sistemas convencionais (aulas de arte, música e desporto ou ensino privado de preparação para exames). - Aprendizagem informal: é um acompanhamento natural da vida quotidiana. Contrariamente à aprendizagem formal e não-formal, este tipo de aprendizagem não é necessariamente intencional e, como tal, pode não ser reconhecida, mesmo pelos próprios indivíduos, como enriquecimento dos seus conhecimentos e aptidões. (Idem, p.9). Embora a aprendizagem informal possa não ser reconhecida como sinal de enriquecimento de conhecimentos, sabemos que há uma multiplicidade destes contextos no nosso dia a dia que nos proporcionam momentos de aprendizagem, sem que tenhamos noção disso. Não obstante, constata-se na nossa sociedade a existência de uma certa “subjectivação da responsabilidade educativa em resultado da qual os adultos encaram a educação como um dever, uma saída para a necessidade de se manterem informados e 55 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa empregáveis” (Guimarães, 2010, p. 449). Nesta sequência, Rubenson defende que “é da responsabilidade dos indivíduos frequentarem ofertas educativas adequadas à criação e manutenção do capital humano” (cit. por Guimarães, 2010, p. 449). Daí que tal como consta no Memorando, os indivíduos sejam os atores centrais nesta sociedade do conhecimento (Comissão Europeia, 2000). Transcorridos dez anos desde o estabelecimento dos objetivos do Fórum de Dakar e de acordo com o Relatório de Acompanhamento da Educação para Todos – Chegar aos marginalizados, os resultados obtidos desde então são ainda desiguais. Naturalmente não nos vamos delongar em detalhe sobre os dados analisados neste relatório. Importa-nos acentuar que entre 1985-1994 e o período de 2000-2007 a taxa de alfabetização de adultos aumentou 10% e atualmente situa-se nos 84%. Salienta-se ainda que o número de mulheres alfabetizadas aumentou a um ritmo mais acelerado relativamente aos homens (UNESCO, 2010a). É preciso atentarmos que numa economia mundial baseada no conhecimento a aprendizagem e as competências desempenham um papel cada vez mais importante na configuração de perspetivas de crescimento económico, prosperidade partilhada e redução da pobreza, embora de acordo com o relatório se padeça de uma indiferença silenciosa relativamente ao terceiro objetivo traçado em Dakar (Idem). Não se pode descurar ainda que existe uma preocupação no que diz respeito aos adultos e ao facto de algumas pessoas não chegarem a adquirir as competências básicas de leitura, escrita e cálculo depois de terem frequentado a escola. Nestes casos acabam por se deparar com uma situação de desvantagem e ficam mais limitados no plano socioeconómico. Esta situação acaba por afetar a sociedade de uma forma geral porque se ressente também da perda de oportunidades que isso representa para o aumento da produtividade, a prosperidade partilhada e a participação na vida política (Idem, p. 18). A sexta Conferência Internacional sobre a educação de adultos concretiza-se em 2009, em Belém do Pará, no Brasil. Esta conferência oferece a oportunidade para abrir novos caminhos e identificar objetivos claros e linhas de ação viáveis para serem alcançados na próxima década. No relatório global acerca desta Conferência é abordado o facto de a educação de adultos fornecer meios para que as pessoas possam enfrentar os desafios do desenvolvimento do século XXI. Esta possibilita que as pessoas adquiram conhecimentos, habilidades e valores que lhes facultam uma melhoria da sua qualidade de vida atual e futura. Além disso, permite-lhes também descortinar os recursos que necessitam, identificar novas possibilidades para adquiri-los e usá-los de 56 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa forma a cumprir as suas aspirações. A equidade é a palavra-chave das deliberações desta sexta Conferência internacional, sendo o acesso equitativo e a participação expressões claras da inclusão educacional e social sustentável da justiça. Não deixa de ser salvaguardado neste relatório que as pessoas, independentemente da idade, têm direito à educação básica, que se torna um pré-requisito para a aprendizagem futura (UNESCO, 2010b). Um pouco neste sentido salienta-se o facto de ser necessário “criar situações educativas, contextos dinâmicos em que se insiram grupos significativos (…) em torno de problemáticas que toquem efectivamente a vida das pessoas e possuam potencialidades de aprofundamento constante, nas áreas do cognitivo, do estéticoafectivo, da sociabilidade” (Silva, 1990, pp. 103-104). 1.4. Práticas de Educação e Formação de Adultos em Portugal Sendo a aprendizagem ao longo da vida um princípio basilar para o desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo, é compreensível que a educação de adultos tenha sido encarada como uma prioridade. Assim, a educação de adultos alcançou uma maior profundidade e amplitude, tendo-se tornado igualmente terminante no local de trabalho, em casa, na sociedade, à medida que “quer homens e mulheres, se esforcem por criar novas realidades em todas as etapas da vida” (UNESCO, 1998, p. 15). No enquadramento desta temática, Ander-Egg, Gelpi, Nyerere e Fluitman afirmam que a educação de adultos tem de estar direcionada para o apoio ao desenvolvimento dos homens (1996). Ela deve, na verdade, contribuir para amplificar as destrezas do homem em todos os sentidos, deve ajudá-lo a decidir por si mesmo, em cooperação, o que é o desenvolvimento. Além disso, deve ajudá-lo também a pensar com clareza e capacitá-lo para examinar as possíveis opções, tendo em conta os seus próprios objetivos e ainda conferir-lhes a capacidade necessária para que as suas decisões se transformem em realidade. Delors complementa, asseverando que a educação de adultos procura suprir as disparidades em relação ao nível de instrução na sociedade, concedendo aos seus participantes a satisfação do desejo pessoal de alargar os seus horizontes (1996). Deste 57 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa modo, prepara-os não só para a vida ativa como também para poderem exercer as suas responsabilidades cívicas. A educação dos adultos deve contribuir para o fortalecimento da autoestima, da comunicação, da tolerância, do respeito pela diferença e da mudança social a partir da incrementação do pensamento crítico. Ao facultar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de conhecimentos, capacidades e atitudes – saberes –, estamos a facultar a aquisição de determinadas ferramentas que permitem ao adulto agir e reagir perante situações, mais ou menos complexas, de vida. No fundo, a ser cidadão. Na verdade, ser cidadão implica o desenvolvimento pessoal, profissional e social, promovido pelo aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver, aprender a estar. Em suma, aprender a aprender. Tal como refere Silvestre, as décadas de 70 e 80 do século XX são “aquelas que vêem iniciar um ciclo que pretende dar visibilidade no nosso país às recomendações e conceitos da UNESCO nas suas várias conferências e reuniões” (2003, p. 111). Deste modo, a partir de 1974, com a libertação do regime ditatorial, a Educação de Adultos, adquire contornos mais precisos. Aliás, o 25 de Abril de 1974 é considerado uma data histórica em Portugal, uma vez que os acontecimentos políticos que se desencadeiam acabam por ter sequelas em diferentes níveis, nomeadamente na economia, na sociedade e na cultura (Benavente & Melo, 1978). O historial da Educação de Adultos em Portugal pode considerar-se ainda relativamente recente, tendo em conta que é em finais de 1975, com uma reestruturação da Direção Geral da Educação Permanente, que se define o quadro do sistema nacional, relativo à Educação de Adultos. Este viria a traduzir-se no Plano Nacional de Alfabetização. Mas, de acordo com Benavente e Melo, este não devia visar meramente a redução das taxas de analfabetismo, considerando que a alfabetização deve ser encarada como “aspecto fundamental de um processo de mobilização popular total para que o povo, no seu conjunto e em sectores específicos, em cada tarefa, seja o sujeito colectivo da construção da nova sociedade” nem como uma “máquina de fazer diplomas para pessoas que, mesmo alfabetizadas, em nada mudaram a sua consciência da realidade e da prática social” (Idem, p. 34). No ano seguinte, mediante a Portaria n.º 419/76 de 13 de julho é explanada a nova conceção de Educação de Adultos. De acordo com esta Portaria é necessário “encorajar um processo de aprendizagem relativamente aos adultos, que faça destes – individualmente ou em grupo – sujeitos da sua própria educação e agentes criadores de uma verdadeira cultura nacional” (1976, p. 1545). 58 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Em 1979 ocorre um momento de viragem no que se refere à política educativa de adultos, a partir do momento em que a Assembleia da República aprova, por unanimidade, a Lei n.º 3/79, de 10 de janeiro. Esta lei faz referência à eliminação gradativa do analfabetismo e à educação base de adultos que afirma as suas linhas em quatro planos: o conceptual, o dos princípios, o metodológico e o das estruturas. Deste modo, no plano conceptual a alfabetização passa a desenvolver-se a partir da aprendizagem da leitura e da escrita, seguida de outros programas de educação não formal em que a alfabetização é entendida na dupla perspetiva da valorização pessoal dos adultos e da sua progressiva participação na vida cultural, social e política, tendo em vista a construção de uma sociedade democrática e independente. No que respeita aos princípios, a responsabilidade e iniciativa do Estado consubstanciam-se no reconhecimento e apoio das iniciativas de outras entidades como: associações de educação popular, coletividades de cultura e recreio, cooperativas de cultura, organizações populares de base territorial, organizações sindicais, comissões de trabalhadores e organizações confessionais. No que à metodologia diz respeito é função do Governo desenvolver um Plano Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos (PNAEBA), integrado num plano mais abrangente de educação de adultos. Este plano tem como objetivo eliminar o analfabetismo, de forma sistemática e gradual, e conceder a todos os adultos um progressivo acesso aos vários graus de escolaridade obrigatória, tendo sido importante na medida em que “revogou todo o passado e relançou o futuro da EFA” (Silvestre, 2003, p. 115). Por último, no que se refere às estruturas, cria-se o Conselho Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos (CANAEBA) ao qual cabem competências de sensibilização da consciência nacional e de acompanhamento e avaliação do Plano. Portanto, este Plano é, até 1986, um documento de referência obrigatória relativamente à educação de adultos, tendo sido estabelecidos alguns objetivos principais quanto à Educação de Adultos neste Plano: o desenvolvimento cultural e educativo da população, tendo em mente a sua valorização pessoal e a sua gradual participação na vida cultural, social e política; assegurar, de modo permanente, a satisfação das necessidades fundamentais de educação formal e informal de adultos, através da aplicação gradativa, em todo o país, de um sistema regionalizado que assevere a mobilização e a participação das populações, coordene a utilização de todos os recursos educativos e constitua a origem de um sistema de educação permanente; asseverar as condições para que todos os adultos que o desejem tenham acesso à 59 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa alfabetização e, de modo progressivo, aos graus de escolaridade obrigatória; assegurar a melhoria da qualidade pedagógica das ações de alfabetização e de educação de base dos adultos (Ministério da Educação, Secretaria de Estado dos Ensino Básico e Secundário & Direcção Geral de Educação Permanente, 1979). Não obstante, estes objetivos não podem ser encarados separadamente uns dos outros, uma vez que eles concretizam um projeto global que é do da Educação de Adultos, mediante a Lei n.º 3/79 e as recomendações da UNESCO, decorrentes da Conferência de Nairobi. Em 1986 é publicada a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), que vem definir os princípios organizativos do sistema educativo. Neste estão inseridas a educação pré-escolar, a educação escolar e a educação extraescolar. A LBSE define que a educação pré-escolar, no que respeita ao seu aspeto formativo, é complementar e/ ou supletiva da ação educativa da família, com a qual é estabelecida uma estrita coadjuvação; a educação escolar abrange o ensino básico, secundário e superior, integra modalidades especiais e abarca atividades de ocupação de tempos livres; a educação extraescolar compreende atividades de alfabetização e de educação de base, de aperfeiçoamento e atualização cultural e científica e a iniciação, reconversão e aperfeiçoamento profissional (1986, art.º 4.º). Esta desenvolve-se num quadro aberto de distintas iniciativas, quer formais quer informais. O ensino recorrente de adultos é encarado, de acordo com a mesma Lei, como uma modalidade especial da educação escolar que tem como finalidade garantir uma escolaridade de segunda oportunidade – “destinado aos indivíduos que não tiveram oportunidade de se enquadrar no sistema de educação escolar na idade normal de formação” –, e apresenta planos e métodos de estudo específicos, atribuindo os mesmos diplomas a certificados conferidos pelo ensino regular (Idem, n.º 2 do art.º 20.º) Esta lei prevê também a organização da formação profissional de forma recorrente. Esta, para além de complementar a preparação para a vida ativa iniciada no ensino básico, propende para uma inclusão dinâmica no mundo do trabalho pela obtenção de conhecimentos e de competências profissionais, de modo a responder às necessidades nacionais de desenvolvimento e ao progresso tecnológico (LBSE, 1986). A educação extraescolar é uma parte integrante do sistema educativo e define os seus objetivos e as suas atividades no contexto de múltiplas iniciativas, de âmbito formal e não formal. Todavia, o quadro geral relativo à organização e ao desenvolvimento da educação de adultos na vertente do ensino recorrente e da educação extraescolar são apenas designados pelo Decreto-Lei n.º 74/91, de 9 de fevereiro. De 60 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa acordo com este Decreto-Lei, a educação de adultos deve possibilitar a cada indivíduo ampliar os seus conhecimentos e alargar as suas potencialidades, tendo em vista o desenvolvimento integral, bem como a sua participação ativa no desenvolvimento social, económico e cultural; prosperar relativamente ao trabalho, por meio de uma preparação apropriada às exigências da vida ativa e ainda incrementar posturas positivas no que diz respeito à formação e às necessidades de aperfeiçoamento e de valorização pessoal e profissional. A partir de 1996 constata-se a existência de um reforço em torno das preocupações com a educação e formação de adultos. Deste modo, em maio de 1998, o Plano Nacional de Emprego (PNE) lança as raízes e as fontes renovadoras da Educação e Formação de Adultos. O PNE, de acordo com a Resolução de Conselho de Ministros n.º 59/98 e as linhas de estratégias delineadas, assevera a promoção da articulação entre os domínios da educação, formação e emprego, através do reconhecimento de processos de aprendizagem não formais, designadamente os associados aos contextos de trabalho, de vida e de ações de formação não certificados formalmente; e o lançamento de um programa S@ber +, propendendo para a Educação e Formação de Adultos ao longo da vida (Trigo, 2002). Inicialmente, este programa está a cargo de um grupo de missão criado precisamente nesse ano. Em 1998, é, então, constituído um grupo de missão para o desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos, por meio da RCM n.º 92/98, de 14 de julho. Com esta Resolução, assistimos a um relançamento da educação de adultos em Portugal, motivada pelo reconhecimento do direito à educação e formação ao longo da vida e pela premente necessidade de um compromisso nacional que desse uma resposta aos novos requisitos da sociedade de conhecimento globalizada, bem como às alterações da vida profissional. Portanto, pretende-se retificar todo um passado assinalado pelo atraso nesta área e contribuir com respostas eficientes aos objetivos definidos, surgindo aqui a nova designação que passa a ser dada à educação de adultos em Portugal, talqualmente hoje a conhecemos – Educação e Formação de Adultos. No enquadramento desta RCM surge o Programa de Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos e o grupo de missão incumbido da sua concretização. Este grupo de missão exerce funções ao longo de seis meses apenas e acaba por se tornar no “embrião de um instituto público, dotado de autonomia científica, técnica e administrativa” (Cabete, 2006, p. 112). Após este período, constitui-se a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, em 61 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa setembro de 1999, transitando para a sua comissão instaladora as incumbências do grupo de missão, então extinto. A ANEFA é, assim, criada pelo Decreto-Lei n.º 387/99, de 28 de setembro, numa altura em que se reitera uma aceitação do conceito de educação de adultos definido pela UNESCO, em 1997, mediante a Declaração de Hamburgo. De acordo com este documento, a educação de adultos é definida como um conjunto de processos de aprendizagem, formais ou não formais, através dos quais os adultos desenvolvem as suas capacidades, enriquecem os seus conhecimentos, aperfeiçoam qualificações técnicas e profissionais e se orientam para satisfazer simultaneamente as suas próprias necessidades e as das suas sociedades (DL n.º 387/99, p. 6672). Esta Agência, com a natureza de instituto público dotado de personalidade jurídica e com autonomia científica, técnica e administrativa, tem a dupla tutela dos Ministérios do Trabalho e da Solidariedade e da Educação (Idem, art.º 2.º e 3.º). É concebida como estrutura de competência relativamente à conceção de metodologias de intervenção, de promoção de programas e projetos e do apoio a iniciativas da sociedade civil, no âmbito da educação e formação de adultos e na construção gradual de um sistema de reconhecimento e validação das aprendizagens informais dos adultos. De acordo com Duarte, a ANEFA surge para se imiscuir em novos domínios, nomeadamente no que diz respeito ao reconhecimento, validação e certificação de competências e ao alargamento, diversificação, integração e flexibilização da oferta, não deixando de haver um estímulo para a procura (2002). À ANEFA são-lhe conferidas, mediante o estabelecido no art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 387/99, de 28 de setembro, algumas competências, designadamente: Incrementar e difundir modelos, metodologias e materiais de intervenção pedagógica e socioeducativa, relativos à educação e formação de adultos, outorgando uma especial relevância às pessoas mais carenciadas nesta área; Impulsionar programas e projetos no âmbito da educação e formação de adultos, a expandir por iniciativa própria ou através da mediação de entidades públicas e privadas, nomeadamente por meio da celebração de contratos-programa; Corroborar em projetos e iniciativas de educação e formação de adultos que se relacionem com as prioridades deliberadas e detenham um caráter inovador, em particular as modalidades de ensino à distância e multimédia, com acompanhamento presencial; 62 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Impulsionar a articulação entre entidades públicas e privadas, a nível central, regional e local, no sentido do desenvolvimento da política de educação e formação de adultos, sobretudo através de parcerias territoriais; Erigir, paulatinamente um sistema de reconhecimento e validação das aprendizagens informais dos adultos, tendo como objetivo a certificação escolar e profissional; Concretizar estudos e promover a investigação no âmbito da educação e formação de adultos, tal como apoiar a formação especializada de formadores e outros agentes de intervenção socioeducativa; Motivar, comunicar e orientar os adultos no que diz respeito à possibilidade e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida; Coadjuvar em projetos de cooperação nos domínios da educação e formação de adultos, direcionados para as comunidades portuguesas de emigrantes e para as comunidades imigrantes a residir em Portugal e a países de língua oficial portuguesa. O Decreto-Lei n.º 120/2002, de 3 de maio, aprova a Lei Orgânica do XV Governo Constitucional e, mediante o seu artigo 26.º, alude ao facto de a ANEFA ficar sujeita a uma “superintendência conjunta”, “cabendo a tutela funcional e patrimonial ao Ministério da Educação”. A ANEFA funciona em regime de instalação por um período de dois anos, estatuto que mantem até à sua integração na Direção Geral de Formação Vocacional (DGFV). A DGFV avoca, assim, as atribuições da ANEFA e a este novo organismo impende, de acordo com o Decreto-Lei n.º 208/2002, de 17 de outubro, a “concepção da componente pedagógica e didáctica do sistema educativo relativamente à política de formação a cargo do ME, incluindo a certificação das qualificações, coordenando e acompanhando a concretização da mesma” (art.º 16.º). Todavia, em 2006 surgem algumas alterações, mormente através do Decreto-Lei n.º 213/2006, de 27 de outubro, onde é aprovada a nova lei orgânica relativa ao Ministério da Educação. Após a aprovação do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), este Ministério sofre também uma reorganização. Mediante o mesmo Decreto-Lei ressalva-se o facto de ser pretender “dotar o Ministério da Educação enquanto departamento responsável pela política nacional de educação e formação vocacional relativa ao sistema educativo no âmbito do ensino pré-escolar, básico e secundário” (2006, p. 7525). 63 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa No que se refere à forma de organização, e mais concretamente à estrutura, esta é simplificada em serviços centrais e periféricos. Conquanto prossiga as atribuições do ME, constitui-se como um organismo sob “superintendência e tutela conjuntas dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da Educação e do Emprego e Formação Profissional”, de acordo com o art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 213/2006. Com esta alteração surge a Agência Nacional para a Qualificação, I.P. (ANQ, I.P.). Já em 2007, conforme o Decreto-Lei n.º 276-C/2007, de 31 de julho, é criada e aprovada a estrutura orgânica da ANQ, I.P., sucedendo, deste modo, nas atribuições da DGFV e do Instituto para a Qualidade na Formação, I.P. (IQF, I.P.). São ressalvadas as competências detidas por este último em matéria de acreditação das entidades formadoras e centros de recursos em conhecimento. Portanto, a DGFV e o IQF, I.P. são extintos. Na realidade, a DGFV é objeto de estruturação, passando a integrar a administração indireta do Estado, com a designação de ANQ, I.P. Neste sentido, a ANQ, I.P. é um organismo de tutela ministerial conjunta entre os Ministérios do Trabalho e da Solidariedade Social e da Educação, em consonância com a missão e as atribuições que lhe são cometidas pela nova lei orgânica do Ministério da Educação. É ainda dotada de autonomia administrativa, financeira, científica, pedagógica e com património próprio. A ANQ, I.P. tem como missão “coordenar a execução das políticas de educação e formação profissional de jovens e adultos e assegurar o desenvolvimento e a gestão do sistema de reconhecimento, validação e certificação de competências” (DL n.º 276-C/2006, n.º1 do art.º 3.º). A nova Agência tem como atribuições coordenar a oferta de educação e formação profissional de jovens e adultos de dupla certificação, bem como os correspondentes dispositivos de informação e orientação; dinamizar a oferta de educação e formação profissional de jovens e adultos e monitorizar os seus resultados; coordenar o desenvolvimento curricular e as metodologias e materiais de intervenção específicos para a educação e formação de adultos com dupla certificação – escolar e profissional. Além disso, importa referir que à ANQ, I.P. cabe ainda a autorização da criação de Centros de Novas Oportunidades, designados como CNO, tendo em consideração o grau de cobertura assegurada pela rede de centros, de acordo com as necessidades de qualificação da população; a gestão da rede de Centros Novas Oportunidades, regulando as condições do seu funcionamento, procedendo à sua avaliação e acompanhamento, tem como finalidade a manutenção de padrões de qualidade. No seguimento do que tem 64 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa sido dito acerca da ANQ, I.P. é importante frisar que os estatutos desta foram aprovados pela Portaria n.º 959/2007, de 21 de agosto (art.º 1.º). 1.5. Cursos EFA: organização e princípios de ação Os cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA) constituem uma aposta central da ANEFA. Após uma fase inicial de experimentação, que atinge o ponto culminante com o seu lançamento nacional, no ano 2000, há uma evidente rutura com os modelos até aí vigentes. É incontestável que esta tipologia de educação de adultos ocorre num contexto nacional e internacional em que, acima de tudo, se atribuem como prioridades a qualificação e as competências de cada indivíduo. Com estes cursos ambiciona-se, através da redução de défices de qualificação da população adulta, uma cidadania participativa e de responsabilidade, a empregabilidade e a inclusão social e profissional. Neste modelo integrado de educação/ formação é notória uma abordagem distinta dos tradicionais modelos escolares. Na realidade, há dois itens que se podem ressalvar como exemplificativos dessa diferenciação: o contexto de aprendizagem deixa de ser a escola e passam a ser as diferentes experiências do quotidiano de cada indivíduo e os diplomas são substituídos pelas competências. De acordo com Nogueira o projeto EFA aposta em adultos com baixas qualificações, propõe percursos de educação e formação (apropriados a cada sujeito adulto) que os leva à certificação escolar básica e à formação profissionalizante, fomenta a educação e a formação ao longo da vida ao criar processos de reconhecimento e validação de competências alcançadas ao longo da vida, na maior parte das vezes fora do sistema escolar (2000). Além disso, ressalva ainda que o “projecto EFA, como convém a todo o projecto de Educação de Adultos, apoia-se em desenhos curriculares flexíveis, com percursos formativos diversificados, orbitando em redor de “processos individualizados, modulares, integrados” e integradores” (Idem, p 7). E só de acordo com o panorama de modelo curricular flexível como este é que se podem ter em conta as experiências dos adultos e traçar “práticas educativas inovadoras” que propiciem a “reflexão na acção” e enalteçam a independência e as competências dos adultos enquadrados nestes cursos (Rothes; Silva; Guimarães; Sancho & Rocha, 2006, p. 182). 65 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa O modelo de formação dos cursos EFA assenta em determinados princípios, regulamentados pela Portaria n.º 817/2007, que revoga o Despacho Conjunto n.º 1083/2000 de 20 de novembro, na redação dada pelo Despacho Conjunto n.º 650/2001, de 20 de julho, e pelo Despacho n.º 26401/2006, de 29 de dezembro. Importa, assim, ressalvar que num primeiro ponto se fala numa perspetiva de educação e formação ao longo da vida, que representa um instrumento facilitador da inserção sócio-profissional e de uma progressão para níveis subsequentes de qualificação. Leitão designa-a como “perspectiva construtivista do currículo, de inovação e da aprendizagem de formandos e formadores” (2003, p. 9). Um segundo ponto diz respeito aos percursos flexíveis de formação determinados a partir de processos de Reconhecimento e Validação de Competências, denominadas por RVC, previamente obtidas pelos adultos por via formal, não formal ou informal. O terceiro princípio assenta em trajetos formativos desenvolvidos de forma estruturada, integrando uma formação de base, uma formação tecnológica ou apenas a primeira. O penúltimo princípio centra-se num modelo de formação modular organizado a partir de unidades de competência, de unidades de formação ou de ambas, constantes, respetivamente, dos referenciais de competênciaschave para a educação e formação de adultos e dos referenciais de formação que fazem parte do Catálogo Nacional de Qualificações, dando privilégio à distinção de percursos formativos e a sua contextualização no meio social, económico e profissional dos formandos. Por último, é salientado o desenvolvimento da formação centralizada em processos reflexivos e de aquisição de saberes e competências que complementem e fomentem as aprendizagens do módulo de Aprender com Autonomia, para o nível básico de educação e o nível 2 de formação profissional e ainda do Portfólio reflexivo de aprendizagens, para o nível secundário e nível 3 da formação profissional (art.º 6 da Portaria n.º 817/2007). Apercebemo-nos, então, que é em 2007 que os cursos EFA se estendem também ao secundário. Em 2008, com a entrada em vigor da Portaria n.º 230/2008, de 7 de março, é revogada a Portaria n.º 817/2007. Na Portaria regulamentada em 2008 introduzem-se alguns ajustamentos no regime jurídico dos cursos de EFA e regulamentam-se as formações modulares, fazendo parte do mesmo instrumento jurídico duas modalidades fundamentais para a qualificação de adultos. Não obstante, em 2010, a Portaria n.º 711/2010, de 17 de agosto, vem estabelecer algumas alterações à anterior, mormente nos artigos 1.º, 19.º e 38.º, relativos à dupla certificação e à constituição dos grupos de formação. Em 2011 ocorre uma segunda 66 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa alteração à Portaria n.º 230/2008, de 7 de março, mediante a introdução da Portaria n.º 283/2011, de 24 de outubro, que procede à alteração de um maior número de artigos, através da republicação da Portaria n.º 230/2008 na sua versão atual, em anexo à Portaria regulamentada em 2011. De acordo com esta última Portaria, faz-se alusão ao facto de A aplicação das regras e procedimentos definidos naquela portaria aconselha a introdução de algumas alterações, nomeadamente ao nível da organização e desenvolvimento dos cursos e das formações modulares, em particular no que concerne à constituição de grupos, a fim de continuar a fomentar ambientes de aprendizagem estimulantes que favoreçam o processo de aquisição de projetos enriquecedores, mas ao mesmo tempo permitir uma melhor gestão dos recursos públicos, potenciando a sua racionalização (Portaria n.º 283/2011, Preâmbulo). Devido, então, ainda a algumas dificuldades de operacionalização não resolvidas pela Portaria n.º 711/2010, esta última Portaria, publicada em 2011, pretende estabelecer uma adaptação do enquadramento das modalidades de educação e formação de adultos, com vista a afiançar o “acesso da população à qualificação e, em simultâneo, a sustentabilidade do sistema”, mediante uma gestão rigorosa de recursos (Ibidem). 1.6. Desenho curricular e Referencial de Competências-Chave Nos cursos EFA há dois pilares fundamentais - Formação de Base e Formação Profissionalizante. Embora nos detenhamos a partir de agora em torno da Formação de Base, não podemos deixar de acentuar que estas duas componentes devem ser “dialogantes e solidárias, num cenário pedagógico que permita criar pontes entre as concepções presentes em cada uma das modalidades com organizações curriculares distintas”, isto porque a Formação de Base se norteia pela abordagem de competências e a Formação Profissionalizante adota o arquétipo das unidades capitalizáveis do IEFP (Silva, 2002, p. 89). Na Formação Profissionalizante o desenho curricular varia consoante a especificidade do curso EFA. O modelo/ desenho curricular para o ensino básico, com distintos percursos formativos, é construído a partir de um Referencial de Competências-Chave (RCC). Tal como afirma Leitão, este Referencial de Competências-Chave faz descolar a educação e formação de adultos do modelo escolar, baseado na aquisição de conhecimentos compartimentados através da frequência de disciplinas e áreas disciplinares cujos programas se organizam por conteúdos, para um modelo 67 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa centrado em competências a adquirir ou reforçar de acordo com temas de vida significativos para cada grupo em formação, em função dos desempenhos exigidos a cada adulto no seu quotidiano (Leitão, 2002b, p. 76). Este Referencial contempla quatro domínios base – Formação de Base (FB) –, que se intercetam: Linguagem e Comunicação (LC), Matemática para a vida (MV), Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) e Cidadania e Empregabilidade (CE). Este último é transversal aos três domínios inicialmente enumerados, uma vez que age no campo dos comportamentos e das atitudes, propendendo principalmente para um trabalho através do uso de competências em conjunturas específicas, direcionando para aquilo que alguns cognominam de competência social (Ávila, 2008). No seu conjunto as três primeiras áreas – LC, MV, TIC – aglutinam “as competências básicas de literacia e numeracia, e ainda um outro domínio, cada vez mais incontornável, o das tecnologias da informação e comunicação, muitas vezes designado “literacia informática”” (Idem, p. 267). A partir da Figura 1.1 pode-se atestar essa mesma interceção entre os módulos da Formação de Base. Aliás, a partir dele pode-se constatar a transversalidade e transferibilidade entre estas áreas. Temas de vida (TV) Cidadania e Empregabilidade (CE) Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) Linguagem e Comunicação (LC) Matemática para a vida (MV) Cidadania e Empregabilidade (CE) Fonte: Leitão, 2002, p. 13; Correia & Cabete, 2000, p. 5; Alonso et al., 2002, p. 19. Figura 1.1 Áreas de competências incorporadas no Referencial de CompetênciasChave – nível básico 68 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Cada uma destas áreas especifica-se, por sua vez, em quatro unidades de competência, alvo de creditação. Estas Unidades de Competência (UC) são construídas por anéis de saberes designados por critérios de evidência – saber, saber-fazer, saberser/ estar/ tornar-se. Cada módulo tem uma duração de referência de 100 ou 200 horas e organiza-se em unidades formativas com um mínimo de 25h para os níveis B1 e B2 e de 50h para o nível B3. A área de Linguagem e Comunicação, com a qual já trabalhámos nestes contextos de formação, integra, nos seus níveis B2 e B3, o desenvolvimento de competências no domínio da Língua Estrangeira, tal como se pode verificar mediante a análise do Anexo 1A. Nogueira considera que se trata de um “referencial unificador que faz a quadratura do processo: orienta, estrutura, sustenta e guia” (2000, p. 9). Na verdade, percebe-se que este referencial orienta todo o funcionamento quer da equipa quer do júri de validação, estrutura o processo de RVC e a análise do dossier pessoal de cada formando, orienta o trabalho dos próprios formandos e ainda sustém o projeto dos cursos EFA. Além disso, é definido em termos de competências a adquirir pelo adulto, é adaptado ao contexto, ao grupo e ao território e integra competências e áreas estruturantes. É necessário haver uma constante adaptação do discurso ou das atividades à realidade dos formandos. O referencial tem, portanto, de ser sempre contextualizado. O processo de Reconhecimento e Validação de Competências baseia-se no balanço de competências previamente adquiridas pelos adultos. Este processo é desenvolvido pelo mediador, recorrendo este a uma intervenção que conjuga momentos de trabalho individual e/ou em grupo. A validação de competências é da responsabilidade de um júri, constituído pelo mediador e pelos formadores de base e por um avaliador externo devidamente acreditado pelo organismo competente para desenvolver e gerir a rede de centros RVCC, de acordo com a legislação em vigor. Portanto, todo este processo de RVC tem como objetivo colocar a experiência de cada formando no centro da aprendizagem, relançando a motivação do adulto, num caminho em que as necessidades são específicas e individualizadas. Na prática, o adulto, pela identificação de situações já vivenciadas, expõe as suas competências reais, à medida que vai revelando competências e aptidões. As competências acabam, assim, por ser uma conjugação do saber com o saber-fazer e o saber-ser. Na realidade, não é mais do que uma combinação entre a teoria e a prática. De acordo com Couceiro, “ a experiência e a vida estão profundamente ligadas à produção de saberes e de conhecimento” (2002, p. 42). Este modelo conjuga um domínio particular de desenvolvimento das capacidades 69 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa para uma autonomia da aprendizagem – Aprender com Autonomia –, que reúne três unidades de competência: a integração, o relacionamento interpessoal e o aprender a aprender. Estas três unidades têm um duplo objetivo. Pretende-se não só propiciar aos formandos as técnicas e os instrumentos de autoformação, mas também coadjuvar a integração no grupo, a aquisição de hábitos de trabalho, determinar compromissos e definir normas (Leitão, 2003). A propósito de competências, termo a que temos feito algumas referências em torno dos cursos EFA, consideramos relevante aludir a uma das definições, que melhor expõe a matriz conceptual e operativa proposta pela ANEFA, quanto aos cursos EFA. Deste modo, de acordo com Bellier, a competência realiza-se a partir de saberes constitutivos, incluindo nela “um pouco de saber, muito de saber fazer e frequentemente – mas não sempre – de saber-estar” (2001, p. 244). Não se trata de estabelecer uma soma entre elas, elas devem ser integradas, organizadas, articuladas e arquitetadas. Por isso é que se supõe que “existe «algo mais» nas capacidades que lhes permite justamente transformarem-se, juntas, em competência” (Ibidem). E na continuação desta definição, deparamo-nos com uma reflexão de Meirieu, que ilustra e identifica as opções metodológicas que devem enquadrar e sustentar os cursos EFA. Este afirma que uma abordagem pelas competências abrange o lugar dos saberes académicos ou não, em ação: reúnem recursos, habitualmente determinantes, para identificar e resolver problemas, preparar e tomar decisões. Naturalmente, não terão utilidade se não estiverem disponíveis no momento adequado e aptos a adaptar-se à situação. Assim, a formação de competências exige uma “pequena revolução cultural” que não obste a passagem de uma lógica de ensino para uma lógica de animação, baseada no princípio de que as competências se constroem pela sua prática ou aplicação em situações intrincadas e, no fundo, “trata-se de aprender, fazendo, a fazer o que não se sabe fazer” (Meirieu, cit. por Perrenoud, 1998, pp. 71-72). Este conceito implica a capacidade de agrupar saberes isolados, que permitam a cada adulto, num determinado contexto ou num determinado local e momento, adquirir a aptidão para se ajustar às exigências que condicionam a sua vida. Aliás, as próprias experiências de cada um e as diferentes formas de aquisição do conhecimento por via informal podem contribuir para a aquisição e desenvolvimento de diferentes competências. O exercício profissional, os papéis sociais, os processos de socialização, isto é, o percurso biográfico de cada adulto ou formando, são fatores que implicam que se tenha em consideração a sua experiência de vida, na qual se produzem e manifestam 70 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa as competências da vida. Tal como salienta Silva, o modelo pedagógico tem de se transferir da “dimensão contemplativa do conhecimento para uma dimensão prática e empreendedora, inscrita nos modos de cognição prática que caracterizam os adultos pouco escolarizados e cujos saberes foram construídos pelas práticas e pelos exercícios do dia a dia” (2002, p. 86). Há, aliás, uma necessidade de interligar competências formalizadas e competências informais, complementando-as reciprocamente, para que as primeiras não se esgotem em aprendizagens escolares ritualizadas e descontextualizadas, por um lado, e as segundas não permaneçam apenas enquanto rotinas profissionais e circunscritas, não transponíveis, não generalizáveis e não atualizáveis, por outro (Costa, 2002, pp. 8-9). O adulto pode, eventualmente, não possuir determinada competência, mas pode perfeitamente ter potencial/ capacidades para desenvolvê-la a posteriori. Aliás, as competências não fazem parte dos saberes das pessoas, não podem ser avaliadas independentemente das próprias pessoas. São evidências que precisam de demonstração, que vão realçar a experiência, a reflexão e a motivação do adulto. O desenho curricular, apresentado nos Anexos 1B e 1C, organiza a formação para o nível básico numa tipologia de percursos (B1, B1+ B2, B2, B2+ B3 e B3) variáveis, num sistema de horas ancorado ao Referencial de Competências-Chave. Salvaguarde-se que o primeiro é aquele que estava vigente na altura em que o curso EFA a que nos reportamos ocorreu. O segundo introduz já as alterações efetuadas pela Portaria n.º 283/2011. Mediante a análise destes dois documentos percecionamos que existem algumas diferenças entre ambos, nomeadamente na especificidade do número de horas na formação de base e na formação profissionalizante. A formação tecnológica/profissionalizante (FP) surge em áreas profissionais a definir e a ajustar de acordo com os diferentes grupos e contextos. Os seus perfis e respetivos conteúdos fazem parte do Referencial da Formação do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Esses conteúdos estruturam-se em diferentes unidades capitalizáveis que integram cada uma das áreas de formação. Importa frisar que estas unidades são complementadas com formação em contexto real de trabalho. Os temas de vida são uma área transversal no currículo, cujos temas, selecionados a partir das questões mais significativas para cada grupo de formandos, informam e organizam a construção curricular. Na realidade, os temas de vida e as respetivas 71 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa atividades integradoras devem contemplar temas relacionados com o desenvolvimento profissional e outros que o grupo de formandos considere terem a relevância necessária. Na verdade, cada uma das atividades integradoras não é mais do que uma síntese que agrega abordagens e aprendizagens em cada uma das diferentes áreas, direcionada não só para a resolução de problemas, mas também para a atualização das competências de cada formando. Ela é, assim, uma conjugação daquilo que podemos denominar de diferentes ingredientes. Aliás, “a articulação entre as várias áreas de competências (articulação horizontal) é um dos aspectos sublinhados no referencial” e “os “temas de vida”, enquanto espaço de contextualização de competências mobilizadas a propósito de diferentes problemas e situações da vida quotidiana, cumprem essa função de articulação horizontal” (Ávila, 2008, p. 268). Tudo isto contribui para satisfazer determinados objetivos, mormente a aprendizagem significativa e funcional; a concretização do aprender a aprender e da autonomia, implicando o planeamento, a pesquisa, a seleção, o relacionamento, o trabalho em equipa e a responsabilização; a passagem das competências do contexto formativo para o social; a auto e heteroavaliação integrada e global; a afirmação e visibilidade do trabalho concretizado, das potencialidades transportadas das competências adquiridas e a transdisciplinaridade e trabalho conjunto dos formadores. De acordo com Nogueira cada formador, cada conteúdo, cada processo não se desenvolvem individualmente (2000). Aliás, cada um por si só não tem qualquer sentido. Por isso é que deve subsistir a ideia de uma unidade sistemática que extravase a identidade, a presença e o efeito de cada um destes componentes do processo formativo. Nos cursos EFA, cada formador de cada módulo deve trabalhar sempre em articulação com os restantes, não é de todo o objetivo destes cursos trabalhar cada módulo separadamente e de forma rígida. Aliás, nem faria qualquer sentido se tal ocorresse, uma vez que os conteúdos dos diferentes módulos se complementam no trabalho que realizam em conjunto. Não podemos olvidar talqualmente que para que as aprendizagens em cada módulo e no curso de uma forma geral produzam efeitos é importante que sejam úteis e tenham significado para os adultos e tudo isso “implica conhecer as suas representações, culturas, linguagens, modos de cognição” (Rothes; Silva; Guimarães; Sancho & Rocha, 2006, p. 199). Em todo este trabalho é também fundamental o recurso a alguma criatividade por parte dos formadores para fazer essa articulação, de modo a que cada formador consiga trabalhar os objetivos não de forma individual, mas coletivamente. Todos os formadores de forma contígua devem trabalhar 72 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa numa “lógica construtivista, contextualizada nos quadros de interacção e nos “mundos de vida” dos adultos”, de modo a que seja exequível, com um conhecimento da própria realidade envolvente, apostarem na “promoção das competências sociais de base e na consolidação das práticas de maior envolvimento e implicação sociais” (Idem, p. 182; p. 189). Neste sentido, importa analisar o Quadro 1.4 como uma síntese dos pilares da “arquitectura curricular” em educação de adultos (Nogueira, 2000, p. 10). São, assim, estes pilares que encorpam a estrutura da educação de adultos, de acordo com Nogueira. Quadro 1.4 Os seis pilares de uma arquitetura curricular em educação de adultos Pilar globalizador Tem em atenção toda a pessoa e o seu contexto sociocultural. Assenta nos seus interesses e necessidades Pilar ativo Converte a pessoa em sujeito ativo do processo formativo, numa dinâmica de ação – reflexão – ação. Pilar indutivo Institui o concreto como situação de partida. Em seguida, generaliza, fornecendo processos de abstração. Tudo assenta à partida na bagagem cultural das pessoas. Pilar participativo Rompe as barreiras entre educador/educando. É o facilitador das relações habituais na formação e fora dela. Pilar grupal Desenvolve a consciência de pertença a um grupo que favoreça as condições de aprendizagem de cada pessoa. Possibilita situações de desenvolvimento pessoal e projeção social que podem incidir na transformação da realidade. Isto não interfere com o tratamento individualizado nos processos de aprendizagem. Pilar flexível Programa-se de forma flexível, com respeito pelos participantes. Fonte: Nogueira, 2000, p. 10. Considerando que o formador de adultos não vive isolado e que se realiza na equipa pedagógica, é importante reter que ele também vive de uma “discussão colectiva, de cedências recíprocas, do contributo para a intercomunicabilidade e de interdisciplinaridade” (Idem, p. 11). Ainda o mesmo autor fala do formador ideal para a educação de adultos, referindo-se a cinco funções-chave, tal como se pode comprovar através da figura a seguir apresentada (Figura 1.2). 73 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Figura 1.2 – Funções do formador ideal para a educação de adultos Deste modo, importa explanar, também um pouco de acordo com a nossa experiência anterior com estes cursos e estes públicos no papel de formadores, que o formador deve ser um programador, tendo em conta que interpreta e adapta as orientações oficiais, construindo um projeto de formação adaptado a cada indivíduo/ grupo, mas é também um investigador porque agrega o pensamento e a ação. Quando (re)constrói os eixos do desenho curricular torna-se um arquiteto e converte-se num inovador porque (re)analisa, em função dos contextos e das necessidades de cada situação específica e não deixa de ser um avaliador, visto que (re)interpreta a sua própria ação e a de todos os atores envolvidos no processo de formação (Nogueira, 2000). A equipa pedagógica, de acordo com o reconhecimento prévio das competências, estima o percurso educativo baseando-se em contextos concretos e de interesse particular, recorrendo aos temas de vida, que aglutinam um conjunto de interesses de vida dos adultos. Ao mesmo tempo, estes temas de vida permitem que os adultos se identifiquem com as atividades realizadas. Aliás, estes temas de vida surgem como um núcleo integrador da própria construção curricular. Há, portanto, um constante desafio para se partir da ação para a reflexão e desta, novamente, para a ação. Importa salientar que as unidades de competência de cada módulo são interpretadas como um todo, para o qual concorrem os critérios de evidência. Estes são analisados como pistas para o desocultar das competências, evidenciadas através de atividades que conjuguem vários saberes e conhecimentos. Estas denominam-se de 74 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa atividades integradoras e ligam entre si diferentes unidades das áreas de competênciachave. Naturalmente, existe sempre uma articulação com as vivências dos próprios formandos, de modo a que estes se envolvam e comprometam. Nos cursos EFA não se pode descurar a presença e o papel do mediador. Importa, todavia, explicitar um pouco mais este papel no seio dos cursos e na relação com o grupo. Este é um dos elementos inovadores, conjuntamente com a estrutura modular e com a centralidade na experiência do adulto. O mediador tem como funções a intervenção no processo de recrutamento e seleção dos formandos, a condução do processo de Reconhecimento e Validação de Competências, a orientação do módulo de Aprender com Autonomia e, se possível, o asseguramento da monitoragem na área de competência-chave de Cidadania e Empregabilidade. Além disso, cabe-lhe também asseverar o acompanhamento e a orientação pessoal, social e pedagógica de todos os formandos, tal como a articulação entre os formandos e a equipa pedagógica (Leitão, 2003). Em síntese, o mediador é um elemento facilitador da integração dos formandos, que impede a recorrência da abstenção e abandono. Se até este momento nos detivemos em redor dos cursos EFA de nível básico, importa agora centrarmo-nos um pouco nos cursos EFA de nível secundário, mais recentes que os primeiros. Os cursos EFA NS permitem dar continuidade à formação para aqueles adultos que possam ter interrompido esse percurso num dado momento, desde que tenham “idade igual ou superior a 18 anos” e não tenham concluído o ensino “secundário de escolaridade, sem a qualificação adequada para feitos de inserção ou progressão profissional” (Rodrigues, 2009, p. 22). Não obstante, há uma clara “evolução no grau de complexidade das competências e saberes a desenvolver, assente num modelo de formação que mantém um conjunto de critérios pedagógicos relativamente aos cursos EFA de nível básico, numa perspectiva integrada e de continuidade” (Canelas, 2007, p. 11). Mas há um pilar base que se mantém e este permite que o adulto possa obter igualmente a dupla certificação entre o escolar e o profissional. Claro que tal situação decorre, mais uma vez, da conjugação entre a Formação Base e a Tecnológica. No que concerne à sua estrutura, estes cursos agregam na Formação de Base três áreas de competências-chave – Cidadania e Profissionalidade (CP), Sociedade, Tecnologia e Ciência (CLC) e Cultura, Língua e Comunicação (CLC), a qual aprofundamos mais adiante, tendo em conta que esta é uma área relevante para a nossa análise. Mediante a Figura 1.3 podemos analisar o modelo de articulação das áreas de 75 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Competências-Chave, em que o adulto com as suas práticas e situações de vida ocupa uma centralidade. Este não é o desenho original apresentado no Referencial NS, mas uma adaptação ao mesmo. Não obstante, através dele apercebemo-nos da presença não só das áreas de FB, mas também da formação tecnológica e da língua estrangeira, que normalmente é o Inglês, acabando por ser um cômputo de toda a estrutura do curso. A FB revela um caráter transdisciplinar e transversal, procurando que as temáticas desenvolvidas nos diferentes módulos não sejam isoladas entre si, mas que haja uma correlação entre elas no sentido de auxiliar não só na aquisição, mas também no reforço de competências por estes adultos. Área Cidadania e Profissionalidade - (transversal) Área Sociedade, Tecnologia e Ciência (operatória) Adulto em situações de vida Formação tecnológica Área Cultura, Língua e Comunicação (operatória) Língua estrangeira Área Cidadania e Profissionalidade (transversal) Fonte: Rodrigues, 2009, p. 31. Figura 1.3 – Desenho do Referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos – nível secundário Ressalve-se que as competências-chave são concebidas e verificadas a partir de temas abrangentes, denominados Núcleos Geradores, que variam de acordo com as áreas (oito específicos para CP; sete comuns a STC e CLC). As unidades de competência e os concernentes critérios de evidência enformam as três dimensões de competência que dizem respeito a cada área de formação de base, em que exploraremos a posteriori as de CLC. 76 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa O desenho curricular, exposto no Anexos 1D e 1E, organiza a formação para o nível secundário numa tipologia de percursos (S e S3, tipos A, B ou C) num sistema de horas ancorado ao Referencial de Competências-Chave, sendo que no primeiro se faz a especificação do número de horas por cada módulo/ área, independentemente de ser um percurso escolar ou um percurso de dupla certificação e no segundo apresenta-se o plano curricular de dupla certificação. Nos cursos EFA NS estão, porém, patentes algumas alterações e uma delas verifica-se no seu desenho curricular, onde se constata a presença de uma nova área denominada como Área de Portefólio Reflexivo de Aprendizagens, vulgo PRA. A aplicação deste PRA apresenta-se com um duplo objetivo: permite não só “reconstruir as aprendizagens, porque articula os saberes das diferentes áreas e componentes da formação”, mas também se constitui como um “instrumento de avaliação por excelência” (Rodrigues, 2009, p. 16; Canelas, 2007, p. 16). Além disso, o PRA neste contexto “nasce e vai sendo construído a partir de processos participados, entre formandos, mediador e formadores, no que diz respeito às aprendizagens a empreender” e acaba por espelhar não só o próprio formando, como também todo o seu “processo de aprendizagem individual” porque permite ao adulto refletir acerca não só dos saberes e das competências que adquiriu ou que desenvolveu, mas também das dificuldades que sentiu e de eventuais lacunas que persistam (Rodrigues, 2009, p. 68). Pelo exposto apercebemo-nos que estes cursos de nível secundário assentam em quatro eixos basilares: o desenvolvimento de um processo de Reconhecimento e Validação de Competências; a definição de percursos formativos individuais com base em Unidades de Competência; a operacionalização da área de PRA e a articulação entre Formação de Base e a Formação Tecnológica (Canelas, 2007). Na realidade, estas formações devem ressalvar o aprender a aprender, na medida em que os adultos que as integram se predisponham a participar em todas as dimensões da sociedade. Falamos de um âmbito mais restrito como o da família, mas também da própria comunidade, do emprego ou mesmo do lazer. 1.6.1. Nível básico – Linguagem e Comunicação Linguagem e Comunicação é um dos módulos da Formação de Base dos cursos EFA de nível básico, supramencionado, e é também aquele que nos permitiu concretizar 77 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa um trabalho mais estreito com os adultos que frequentam estes cursos, de modo particular aqueles que constituem o objeto empírico desta investigação. Este módulo destaca-se pela diversidade de instrumentos de trabalho a que pode recorrer. Falamos, neste caso, de textos, orais ou escritos, visuais (exemplo: poesia visual) ou outros, sendo que todos são vistos como uma forma de Linguagem, que vai permitir estabelecer a Comunicação. No que concerne à Linguagem e Comunicação, é imprescindível termos em consideração o apoio que confere a outras áreas, visto que é necessário recorrer a uma ou várias das suas unidades de competência a qualquer momento. Fala-se da oralidade, da escrita, da interpretação, não só de texto, mas também de linguagem não-verbal, análise e mesmo a síntese das mais diversas situações ou tipologias. A articulação com todos os módulos de formação de base e profissionalizante é fundamental. Consideramos que esta articulação é também fulcral para conferir maior dinamismo e vivacidade na aquisição das competências do módulo. Deste modo, é essencial ter em conta alguns critérios metodológicos. A este propósito, Rothes enuncia a flexibilidade no planeamento da formação; a integração de competências relativas às diferentes áreas; a diferenciação pedagógica, articulando a componente teórica com a prática; a aquisição/ reforço de competências pessoais e sociais, essencial para o desenvolvimento das competências profissionais; a valorização do caráter funcional de educação e formação de adultos, tendo em conta os papéis sociais destes (2002). Na verdade, esta preocupação deve orientar a forma como se transmitem os saberes; a responsabilização dos formandos, indispensável como contributo para a aquisição e reforço de determinadas competências; a utilização de novas tecnologias da informação e da comunicação como complemento; o papel fundamental do formador, a quem é atribuído o papel de facilitador, que estimula as aprendizagens. Para o desenvolvimento das competências de cada adulto é sempre necessária a conjugação com a história de vida de cada formando, bem como das suas necessidades, das suas expectativas e dos seus desafios pessoais e profissionais. Portanto, a matriz construída deve permitir, de acordo com Silva, a mobilização em função das necessidades e motivações; o envolvimento e a participação ativa nas propostas e atividades de aprendizagem; a relação entre a aprendizagem e a experiência vivida; a organização das aprendizagens por projetos temáticos e significativos para o adulto e/ou em torno da resolução de problemas; a aplicação/ utilização imediata das aprendizagens 78 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa realizadas e das competências adquiridas; a receção pelo adulto, o mais cedo possível, de feedback da utilização das proficiências; o respeito pela diversidade de processos mentais inscritos nas suas práticas e resultantes de experiências singulares (2002). Há outro elemento que não podemos descurar e que procuramos incutir ao longo do nosso trabalho enquanto formadores, mais concretamente nesta área da Linguagem e Comunicação e na área que abordamos com mais detalhe mais adiante que é a de Cultura, Língua e Comunicação. Esse elemento tem a ver com o facto de se respeitarem “os adultos na sua singularidade, a partir das suas experiências”, sem que isso signifique reduzir a formação a algo “simplista ou facilitista” (Rothes; Silva; Guimarães; Sancho; & Rocha, 2006, p. 201). Pelo contrário, aquilo que se pretende e o que tentámos sempre incutir foi uma “preparação para as crescentes exigências que a vida social coloca”, procurando ser “qualitativamente (…) exigentes nos princípios, nas finalidades, nas atitudes, nos procedimentos, nas estratégias, nas situações de aprendizagem, nos materiais pedagógicos, na avaliação”, de modo a que aquilo que lhes passámos fizesse sentido e pudessem aplicar aquilo que “bebiam” da formação no seu quotidiano, nas mais distintas situações (Ibidem). No que se refere às áreas de competências-chave deste módulo, quaisquer formas de expressão do pensamento são abrangidas. Na realidade, quando pensamos em Linguagem não podemos cingir-nos exclusivamente a ela na sua vertente verbal porque não faria qualquer sentido. Linguagem implica muito mais do que a comunicação através das palavras. Implica, na realidade, o uso, e também a compreensão, de outras formas de linguagem, que permitam aos formandos estabelecer uma relação, e consequentemente comunicar, com o outro – o gesto, o ícone, a Língua Gestual, os diferentes códigos. Desta forma, este módulo compreende quatro unidades de competência, que suportam o Referencial: Unidade A: Oralidade; Unidade B: Leitura; Unidade C: Escrita; Unidade D: Linguagem não-verbal. A propósito das unidades de competência do Referencial que dizem respeito ao nível B3, que é aquele que se coaduna com o nosso universo de estudo e que permitiu o estabelecimento desta relação com o grupo que nos conduziu a esta investigação, construímos um quadro com base nas indicações de Alonso, Imaginário, Magalhães, Barros, Castro, Osório e Sequeira uma vez que não consideramos de extrema relevância neste enquadramento fazer menção aos restantes níveis – B1 e B2. Estão elencadas no Quadro 1.5 as unidades de competência referentes a cada uma das áreas/ unidades acima mencionadas e uma tipologia de documentos para cada uma, de acordo com os autores. 79 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Esta tipologia constitui-se como um conjunto de sugestões apresentadas e tornam-se, assim, um ponto de partida para que a triagem dos documentos seja a mais apropriada para cada contexto. O referencial torna-se um mentor e não prescritor, uma vez que manifesta maleabilidade suficiente diante das competências e das dificuldades que cada adulto possa apresentar. Daí que aos formadores caiba o papel de avaliar essas necessidades e de estruturar as atividades com caráter enriquecedor a distintos níveis. Quadro 1.5 – Unidades de competência do nível B3 de Linguagem e Comunicação LC3C Unidades de competência Oralidade Tipologia dos documentos Interpretar e produzir enunciados orais Exposição; entrevista; debate. adequados a diferentes contextos, fundamentando opiniões. Leitura Interpretar textos de caráter informativo Crónicas jornalísticas e literárias (nomea- reflexivo, argumentativo e literário. damente as histórico-literárias); texto narrativo; texto poético; texto dramático. Escrita Produzir textos informativos, reflexivos Notícia; crónica; resumo; texto narrativo e persuasivos. (nomeadamente diarístico ou memorialista e conto); texto publicitário. Linguagem Interpretar e produzir linguagem não- Teatro; não-verbal verbal documentos sonoros e visuais. adequada a contextos cinema; televisão; publicidade; diversificados, de caráter restrito ou universal. Fonte: Adaptado de Alonso et al., 2002 Se nos detivermos um pouco em torno do Quadro que mencionámos anteriormente, apercebemo-nos que a competência da oralidade envolve uma adequação do discurso a distintos e variados contextos de comunicação. Na leitura são apresentadas várias sugestões que englobam uma multiplicidade de documentos de trabalho. Naturalmente, é notória aqui a presença de textos de índole diversa, com tipologias e complexidades distintas e com dimensões variadas. Mas sobre o ato de ler, a leitura e tudo o que isso implica, bem e a sua importância em relação ao nosso universo de estudo abordamos com mais pormenor no próximo capítulo, numa estreita ligação com a própria escrita, que no nível B3 se revela numa valorização desse 80 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa processo. Ainda pela análise do Quadro acima constatamos que a linguagem não-verbal se torna uma dimensão indispensável, numa simbiose com a própria oralidade. Falar, ler ou escrever são atos incorporados na comunicação verbal. Efetivamente, cada um deles implica uma determinada apropriação do mundo que passa por um conhecimento linguístico. Tal situação é que distingue todos estes atos da linguagem não-verbal. Não podemos descurar que todos estes atos fazem parte de um ato maior que é o da comunicação e “comunicar não é, simplesmente dizer o que se pretende transmitir. O modo como se dizem as coisas é crucial, e difere de uma pessoa para outra, pois a linguagem usada é um comportamento social aprendido” (Tannen, cit. por Rego, 2007, p. 406). Na verdade “o que dizemos e ouvimos é profundamente influenciado pela experiência cultural de cada um” (Ibidem). 1.6.2. Nível secundário – Cultura, Língua e Comunicação O módulo de Cultura, Língua e Comunicação, que tivemos também a oportunidade de trabalhar ainda que não com o objeto empírico que ora nos ocupa, tem os seus sustentáculos em sete Unidades de Competência, que são criadas, tal como já frisámos anteriormente, a partir de sete Núcleos Geradores – Figura 1.4 – e é nestes que nos deparamos com os temas que vão trabalhar os três pontos distintos – “cultural, linguística e comunicacional” havendo entre eles uma articulação integrada e contextualizada (Gomes, 2006, p. 23). Fonte: Adaptação de Gomes, 2006, p. 68 Figura 1.4 Núcleos geradores 81 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Neste Referencial considera-se, portanto, uma visão tripla centrada nestas três áreas. A Cultura está direcionada para as artes e para os meios de comunicação de massa, mais concretamente direciona-se para as “práticas de produção e recepção em diversos campos, incluindo desde os domínios comummente designados ‘clássicos’ – música, artes visuais, dança, teatro, livro, património – a outros como as actividades socioculturais, os media e as indústrias culturais” (Gomes, 2006, p. 63). A dimensão da Língua surge associada à “identidade do indivíduo”, estando aqui patente não só a língua materna, mas também a língua estrangeira, tal como percecionámos no desenho do referencial que surge na Figura 1.4 (Ibidem). Há igualmente uma preocupação com os diferentes níveis de domínio da língua e que são explanados no Referencial de forma clara. Falam, assim, do nível linguístico-instrumental, em que a língua serve para falar de outros objetos; o propedêutico, possibilitando o acesso a outros conhecimentos, ciência, tecnologia ou arte (onde estão incluídos os mais diferentes usos da língua, como por exemplo, os lúdicos e os estéticos) e o nível metalinguístico, em que a língua se assume como objeto de análise (Gomes, 2006, p. 64). A última dimensão é a da Comunicação e nesta é destacada uma perspetiva sociolinguística, considerando que se acentua o “sistema de acção social” e o “código cultural”, sendo ainda destacadas as diferentes linguagens, não fazendo somente referência à escrita e à fala, mas também a “todas as outras linguagens que fazem parte da comunicação humana, como a matemática, a tecnológica, a pictórica, a musical, a teatral, a gestual (dança) e, duma forma geral, todas as linguagens artísticas” (Ibidem). Ela acaba por se constituir como um campo transversal. Outro aspeto relevante para a compreensão do modo de funcionamento do módulo está relacionado com os domínios de referência e que se subdividem em quatro pontos: DR1 (CLC no contexto privado) onde se insere o contexto pessoal e toda uma multiplicidade de experiências e saberes adquiridas nesse contexto; DR2 (CLC no contexto profissional) que engloba os contextos socioprofissionais dos adultos; DR3 (Saberes, Poderes e Instituições) que agrega as interações entre os indivíduos e as instituições sociais e o DR4 onde nos deparamos com um contexto macro-estrutural (Estabilidade e Mudança: da Sociedade ao Universo) em que se tenta compreender o indivíduo como “elemento de um Universo e de uma sociedade em permanente mudança” (Gomes, 2006, p. 67). 82 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Pretende-se no nível secundário que o adulto que obtenha a certificação de nível secundário interaja na Área CLC em diferentes domínios de comunicação evidenciando competências várias que lhe permitam atuar adequadamente, com espírito crítico, responsabilidade e autonomia (…). Deverá evidenciar competências que passam pela leitura, compreensão e produção de textos de diferentes tipologias e suportes, com finalidades utilitárias, formativas, lúdicas e estéticas, havendo nestes procedimentos graus de complexidade variada (…) (Gomes, 2006, p. 78). Torna-se, assim, percetível que a leitura e a escrita continuam a ser trabalhadas recorrendo a suportes distintos, utilizando tipologias diversificadas. Dado o caráter flexível do próprio Referencial, cabe um pouco a cada formador selecionar os textos de acordo com os próprios conteúdos e com o grupo com o qual está a trabalhar. Não se pode descurar que os graus de complexidade devem ser distintos e diversificados, dependendo também da sua funcionalidade. Considerando o Referencial, o formador pode abranger uma panóplia de tipos textuais, até porque não deixa de estar também patente a exigência de interpretação de toda uma linguagem não-verbal (visual, sonora, simbólica). Sendo, então, o Referencial apenas um elemento orientador, o formador acaba por ter a liberdade para fazer essa seleção ou sugestão de textos de distintas tipologias e essa mescla quer de tipologias quer de complexidade contribuirá para o desenvolvimento de competências culturais, linguísticas e comunicativas. Pensando nesta maleabilidade e nesta autonomia de que falámos anteriormente, é importante reter que é precisamente a postura de “abertura e a capacidade de articular pontos de vista, saberes e capacidades que permitem construir novas perspectivas, novos saberes e outras atitudes que fundamentam e legitimam a autoridade do formador” (Rothes; Silva; Guimarães; Sancho & Rocha. 2006, p. 198). 1.7. Dos CRVCC aos Centros Novas Oportunidades Os Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências são uma outra vertente do modelo de Educação e Formação de Adultos desenvolvida pela DGFV. Estes centros, articulados entre si, são espaços privilegiados, a partir dos quais é possível identificar as competências que as pessoas vão adquirindo por vias informais e não formais de aprendizagem e através de um processo integrado de reconhecimento e validação, proceder à certificação dessas mesmas proficiências. 83 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Importa, neste caso, especificar o sentido informal e não formal. Assim, uma aprendizagem não-formal é aquela que ocorre em paralelo com os sistemas de ensino e formação e não implica necessariamente a obtenção de certificados formais. Esta pode decorrer no local de trabalho, através de atividades de organizações ou de grupos. A aprendizagem informal é aquela que advém da vivência natural do quotidiano. Esta aprendizagem não implica necessariamente premeditação, podendo, eventualmente, não ser reconhecida pelos próprios indivíduos, como enriquecimento dos seus conhecimentos e na aquisição de novas competências. Aliás, muitas pessoas adquirem competências ao longo da vida a partir de múltiplas experiências, sem terem sequer frequentado qualquer sistema de educação ou de formação. Neste sentido, Cardinet refere que “o Reconhecimento de Saberes Adquiridos que decorrem da experiência, qualquer que ela seja, acaba por constituir um direito fundamental do indivíduo”. (cit. por Leitão, 2002a, p. 10) Mediante a Portaria n.º 1082-A/2001, de 5 de setembro, o Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) assenta na estratégia europeia para o emprego e no PNE, sendo encarado como um incentivo e um apoio efetivos à procura de certificação e de novas oportunidades de formação. Permite, desta forma, o reconhecimento, pelos sistemas de educação e formação, das competências adquiridas pelos adultos no decorrer do seu percurso pessoal e profissional. Tal como salienta Ávila, “uma das principais marcas destes centros é o facto de a sua constituição ser da iniciativa, não das estruturas centrais do Estado, mas sim das próprias entidades promotoras, as quais podem ser quer públicas, quer privadas” (2008, p. 272). Não existe apenas uma preocupação com a instalação dos centros RVCC, mas também, e acima de tudo, que haja uma articulação entre os vários centros, em que a informação circule e seja partilhada entre as diferentes equipas. De acordo com a Carta de Qualidade dos Centros RVCC, aprovada pela direção da ANEFA, a rede dos Centros RVCC é um espaço privilegiado de comunicação, de cooperação e de primazia na esfera do Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências dos cidadãos. Não se pode descurar a articulação constante com redes análogas a nível comunitário. Além disso, faz parte de um sistema mais amplo de relações que tem como objetivo a coesão social, enquanto elementos que impulsionam o desenvolvimento das pessoas e a própria competitividade das organizações. Torna-se percetível que os CRVCC, centrados no Referencial de Competências-Chave, desenvolvem a sua atividade em torno de três 84 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa eixos básicos: o reconhecimento, a validação e a certificação de competências e encontram-se reunidos num roteiro estruturante (Leitão, 2002). Importa, todavia, explicitar, de forma mais vasta, cada um destes eixos. O reconhecimento de competências está relacionado com a identificação pessoal das competências preliminarmente adquiridas pelo adulto e que se identifica com um conjunto de atividades (entrevistas individuais e de grupo, atividades práticas), fundadas numa lógica de balanço de competências. Para tal recorre-se a uma variedade de instrumentos que, assim, permitam ao adulto refletir e avaliar as suas experiências de vida e profissionais. Assenta, particularmente, na história de vida do adulto, exigindo, deste modo, o acompanhamento por profissionais que auxiliam o adulto na descoberta daquilo que foi aprendendo ao longo da vida e com as diferentes situações. Deste modo, o adulto apercebe-se que nas diversas atividades que desempenhou, assim como nas responsabilidades de que foi incumbido, efetuou aprendizagens e, consequentemente, desenvolveu determinadas competências. Isso leva a que haja não só um “reconhecimento social e formal de competências”, mas também um “reconhecimento pessoal” (Ávila, 2008, p. 273; Couceiro, 2002, p. 43). Tal como menciona Cabete, neste momento o desempenho do adulto e dos profissionais torna-se imprescindível (2006). A validação das competências está associada a um ato mais formal. Neste caso, está relacionada com um conjunto de atividades que permitem que o adulto avalie as suas competências, no que concerne às quatro áreas de competências-chave e que integram a Formação de Base dos cursos EFA: Linguagem e Comunicação, Matemática para a Vida, Tecnologias da Informação e da Comunicação e Cidadania e Empregabilidade. Este ato culmina com a presença de um júri de validação que examina e avalia o dossier pessoal de cada adulto, construído com o apoio do profissional de RVCC. No caso de haver algumas competências que suscitem dúvidas por não estarem bem documentadas, o júri poderá pedir a sua demonstração. A certificação, que ratifica as competências obtidas, reconhecidas e validadas com a emissão final de uma carteira pessoal de competências e do certificado alcançado, dá equivalência ao 3º, 2º ou 1º ciclo do Ensino Básico. Esta é a fase que Ávila denomina de “oficialização das competências” (2008, p. 273). Tendo em conta os três eixos de intervenção supra enunciados, os centros RVCC asseveram uma oferta diversificada de serviços junto dos adultos, bem como da comunidade local: animação local, informação, aconselhamento, acompanhamento, formações complementares e provedoria (Correia & Cabete, 2002). Prestam, assim, um 85 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa serviço permanente de acolhimento, informação e aconselhamento aos adultos que recorrem a este serviço. É importante salvaguardar que estes centros surgem “ na e da dinâmica enraizada no trabalho directo com as populações, promovido por entidades que asseguram uma Rede de Parcerias” (Correia & Cabete, 2000, p.4). De acordo com o art.º 1.º, alíneas a) e b) da Portaria n.º 1082-A/2001, o Sistema Nacional de RVCC estrutura-se a partir do Referencial de Competências-Chave de educação e formação de adultos da ANEFA e do Regulamento do Processo de Acreditação das Entidades Promotoras dos Centros RVCC. Os Centros de RVCC estão encaminhados para dois pólos de intervenção distintos, com objetivos díspares, mas cada um deve operacionalizar e potenciar o outro. Falamos de uma intervenção relativamente ao meio e uma intervenção relativamente ao adulto. Neste âmbito, o Centro estrutura-se de acordo com o contexto de intervenção no meio interno – o centro – e no meio externo – comunidade local – através das atividades estruturantes, ou seja, todas as atividades que garantem o pleno funcionamento e manutenção do Centro e com o contexto de intervenção ao nível dos adultos através dos serviços de Reconhecimento, Validação e Certificação (Leitão, 2002a). Poder-se-á constatar aquilo que anteriormente foi frisado, através da figura 1.5 que a seguir se apresenta. MEIO INTERNO: Sistema de Informação, Organização técnico-pedagógica. ADULTO: Divulgação; Reconhecimento de competências; Formações complementares; Validação de competências; Certificação de competências; Provedoria. MEIO EXTERNO: Diagnóstico local; Promoção e divulgação; Redes e parcerias. Fonte: Leitão, 2001, p. 19 Figura 1.5 Domínios de intervenção do Centro RVCC 86 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa No âmbito do reconhecimento, validação e certificação de competências, a ANEFA deu incentivos para a construção gradual de uma Rede Nacional de Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. Esta é, na verdade, uma forma de atribuir certificação escolar, para ultrapassar as situações em que a escolaridade é inferior à obrigatória. A Portaria n.º 1082-A/2001, de 5 de setembro, menciona no seu artigo 2.º, ponto 1, que os centros RVCC são criados com o intuito de acolher e orientar os adultos maiores de 18 anos e que não possuem o 9.º ano de escolaridade. Pretende-se, assim, melhorar os níveis de certificação escolar e de qualificação profissional, numa perspetiva de aprendizagem ao longo da vida. Os primeiros centros RVCC começam a funcionar em 2000, altura em que ainda se demarcavam alguns procedimentos e orientações. Numa primeira fase são criados seis centros RVCC, sob observação. Estes, em colaboração com a tutela, num trabalho conjunto e partilhado de reflexão-ação, auxiliaram na definição e na consolidação dos traços orientadores e estruturantes do sistema nacional RVCC. Os CRVCC são promovidos por entidades públicas e privadas, devidamente acreditadas, inicialmente, pelo Sistema de Acreditação da ANEFA. Posteriormente passaram a ser monitorizados pela ANQ, I.P. Falamos de entidades com implantação e capacidade técnica instalada a nível local, regional e nacional. Por outras palavras, referimo-nos a estabelecimentos de ensino, centros de formação profissional, autarquias, empresas e associações. Deste modo, a rede de CRVCC constrói-se a partir da acreditação de entidades de natureza diversa, substancialmente enraizadas na comunidade em que estão inseridas. Este processo de acreditação de entidades promotoras de centros entrou em funcionamento em 2001. Não se pode descurar que o sistema RVCC desempenhou um importante papel no sentido de melhorar as qualificações da população ativa portuguesa, nomeadamente no que se refere às habilitações escolares dos adultos (Portaria n.º 86/2007). Neste sentido, desde a sua criação sentiu-se necessidade de atualizar o sistema, tendo em consideração a experiência adquirida. A 14 de dezembro de 2005 é feita a apresentação pública da Iniciativa Novas Oportunidades do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, com o objetivo de alargar o referencial mínimo de formação até ao 12.º ano de escolaridade para jovens e adultos. De acordo com as alterações implementadas à Portaria n.º 1082A através da Portaria n.º 86/2007, de 12 de janeiro, é necessário “actualizar o sistema em face da experiência adquirida e da evolução 87 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa entretanto verificada, cerca de cinco anos após a implementação definitiva deste dispositivo de educação e formação de adultos (2007, Preâmbulo). Além disso, acentuase no mesmo documento a “aplicação de um referencial de competências chave nos processos de reconhecimento, validação e certificação de competências, assim como a expansão da rede de centros correspondente, ora designados por Centros Novas Oportunidades” (Ibidem). Com as alterações introduzidas pela mesma Portaria, estes centros não se destinam apenas a acolher e orientar os adultos maiores de 18 anos e que não possuam o 9.º ano de escolaridade, tal como acontecia inicialmente. O nível secundário passou a ser implementado, com o intuito de elevar os níveis de qualificação da população portuguesa. Além deste ponto que constitui uma das missões destes Centros cabe-lhes ainda ter de fomentar a procura de novos processos de aprendizagem, de formação e de certificação por parte dos adultos com baixos níveis de qualificação escolar e profissional e, por último, asseverar a qualidade e a relevância dos investimentos realizados numa política efetiva de aprendizagem ao longo da vida, valorizando socialmente os processos de qualificação e de certificação de adquiridos (Gomes, 2007). Estes adultos, consoante as situações, são orientados para um processo de RVCC, para um curso EFA ou para outro percurso educativo mais adequado. Importa salientar, após estas alterações, que existem entidades competentes que emitem a certificação obtida pelo processo de RVCC. Falamos dos estabelecimentos de ensino públicos e privados com autonomia pedagógica e dos centros de formação profissional do IEFP. A gestão da rede dos Centros Novas Oportunidades, segundo o art. 15.º do Decreto-Lei n.º 396/2007, de 31 de dezembro, compete à ANQ, I.P., regulando esta “as condições do seu funcionamento, procedendo à sua avaliação e acompanhamento, tendo em atenção a manutenção de elevados padrões de qualidade”. Além disso, é também à ANQ I.P. que compete autorizar a criação dos Centros Novas Oportunidades, designados como CNO. Este Decreto-Lei delibera, assim, o regime jurídico do Sistema Nacional de Qualificações, vulgo SNQ, e decreta as estruturas que atestam o seu funcionamento. Tendo em conta que os CNO fazem parte do Sistema Nacional de Qualificações, enquadrado pelo regime jurídico constituído pelo Decreto-Lei n.º 396/2007, de 31 de dezembro, é autorizada a criação de novos centros, aumentando a rede já existente. Essa lista de centros é divulgada através do Despacho n.º 6950/2008. 88 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Na Portaria n.º 230/2008, de 7 de março, já anteriormente mencionada a propósito dos cursos EFA, alude-se ao facto de o lançamento da Iniciativa Novas Oportunidades ter sido um “marco fundamental para a expansão e consolidação dos cursos de nível básico”, mas também ter criado “uma nova oferta para o nível secundário (…) permitindo integrar nessa oferta cursos de habilitação escolar” (Preâmbulo). É igualmente importante salientar no âmbito da Iniciativa Novas Oportunidades a presença do Sistema de Informação e Gestão da Oferta Educativa e Formativa (SIGO), tendo em conta que este funciona como “instrumento único de registo de informação que permite o acompanhamento, a monitorização e a gestão no âmbito do Sistema Nacional de Qualificações, processos anteriormente dispersos por diferentes organismos” (Portaria n.º 612/2010, Preâmbulo). A sua utilização permite uma “gestão integrada das ofertas educativas e formativas, possibilitando uma melhor legibilidade da rede e maior simplificação administrativa” (Ibidem). A atividade desenvolvida por um Centro Novas Oportunidades estrutura-se através de um conjunto de fases de intervenção que têm reflexo em níveis de serviço a assegurar, nomeadamente o acolhimento dos adultos e a sua inscrição no CNO; o diagnóstico/ triagem que permite conhecer o perfil do adulto; o encaminhamento dos adultos tendo em conta a resposta educativa e formativa mais adequada; o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, onde estão inerentes processos metodológicos que permitem evidenciar as competências e, por fim, o acompanhamento ao plano de desenvolvimento pessoal, visando o percurso do adulto após a passagem pelo processo RVCC (Gomes, 2007). Em 2009 brotaram os resultados dos primeiros estudos de avaliação externa à Iniciativa Novas Oportunidades, fruto de uma parceria da ANQ I.P. com a Universidade Católica Portuguesa, coordenada por Roberto Carneiro. Em 2010 é publicado um relatório, com base nos trabalhos desenvolvidos após a apresentação pública dos primeiros resultados em 2009, referente à avaliação externa que compreende os anos 2009 e 2010. Neste relatório um dos pontos salientados tem a ver com o facto de no plano estratégico, e num horizonte de médio prazo, a Iniciativa Novas Oportunidades encerra um potencial precioso e de inigualável riqueza conceptual para inspirar a estruturação de um sistema de Aprendizagem ao Longo da Vida suscetível de colocar Portugal na dianteira dos demais países Europeus e da OCDE, que normalmente lhe servem de benchmark” (Carneiro, 2010, p. 12). 89 As aprendizagens ao longo da vida: configuração de um objeto de pesquisa Esta é uma das principais conclusões deste relatório com os resultados centrais, conclusões e também recomendações concernentes à Avaliação Externa do Eixo Adultos da Iniciativa Novas Oportunidades. Independentemente do percurso que os adultos possam optar é importante reter que, acima de tudo, a sua motivação e a “capacidade de explicitarem as suas representações mentais” são factores fulcrais para que estes possam traçar “projectos de aprendizagem e transformarem os seus modos de ler o mundo” (Rothes; Silva; Guimarães; Sancho & Rocha, 2006, p. 191). 90 C apítulo 2 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Eu vivo hoje no mundo dos livros, mas não nasci no mundo dos livros. (Grilo, 2009 p. 192) Sou um bom leitor e um mau leitor. Cada vez pior porque cada vez mais difícil de convencer. Pertenço à espécie de leitores que não podem ler livros sem se lerem nos livros. Ou antes, sem que os livros os leiam. Não foi saber, foi a ânsia de possuir conhecimentos enfiando-os como contas do rosário no fio da memória aquilo que procurei e procuro ainda em cada romance, em cada poema, em qualquer coisa escrita ou não escrita. (…) Ler um livro é confrontá-lo connosco. (…) (Lourenço, cit. por Morão, 2010, pp. 33-34) 2.1. Pelos meandros da alfabetização e da literacia Com as constantes alterações que têm ocorrido na sociedade, tal como nos apercebemos no capítulo anterior, é solicitado, cada vez mais, às pessoas o desenvolvimento de tarefas com graus de complexidade distintos, que implicam, por sua vez, o aperfeiçoamento de diferentes competências. Por isso torna-se necessário que os indivíduos desenvolvam “processos de aprendizagem”, de modo a conseguirem acompanhar as transformações, as complexificações e a cadência constante e acelerada das mudanças que ocorrem no dia a dia porque se tal não sucede tornam-se paulatinamente mais vulneráveis e dependentes (Ávila, 2008, p. 36). De acordo com a OCDE, o investimento no capital humano, com base nos conhecimentos e nas capacidades, é essencial a diferentes níveis, particularmente para a coesão social, para o emprego e para a própria prosperidade económica (OECD, 1998). 91 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Neste sentido, no capítulo anterior fizemos também menção à alfabetização e às alterações que esta foi sofrendo ao longo dos últimos anos, a nível internacional. Também em Portugal foram ocorrendo mutações nesse sentido, decorrentes de todas estas alterações. A alfabetização é encarada tão-só como o ato de ensinar e de aprender a leitura, a escrita e o cálculo, daí a existência da convicção de que a escolarização poderia erradicar o analfabetismo. Não obstante, tornou-se percetível que a escolarização não é sinónimo de alfabetização e que as dificuldades persistiam. Como salienta Lahire, durante muito tempo saber ler e escrever foram sinónimo de decifrar, o simples oralizar, e saber copiar palavras, frases ou pequenos textos (2005, pp. 13-14). Assim, emerge em Portugal, em 1995, um novo conceito, mais estruturado e alargado que nos remete para um novo tipo de analfabetismo, “dito funcional” principalmente com a concretização de um Estudo Nacional de Literacia A literacia em Portugal: resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica (Benavente, 1996, p. 4). Fala-se, tal como o próprio nome do estudo o indica, do conceito de literacia, que emerge como a “capacidade de usar competências (ensinadas e aprendidas) de leitura, de escrita e de cálculo” (Benavente, 1995, p.3; 1996, p. 4). Todavia, este novo conceito entre nós era já usado nos Estados Unidos e em Inglaterra. Tendo em consideração estes dois termos literacia e alfabetização, importa salientar as suas distinções, até porque esta última está associada a um grau formal de escolaridade. Embora nas últimas décadas se venham realizando estudos em torno da análise destas competências na população adulta e se venha falando acerca destes temas, propomo-nos ao longo deste capítulo, sem nos querermos tornar demasiado enfadonhos ou repetitivos em torno destas temáticas, fazer uma abordagem relativamente a alguns aspetos que podem contribuir para melhor compreendermos o nosso objeto de estudo. Tentamos antes de mais analisar de que forma estes termos são definidos no Dicionário de Língua Portuguesa. Pegamos numa edição impressa, mas já com alguns anos, e deparamo-nos com a alfabetização como “a acção de alfabetizar”, que por sua vez nos remete para um “ensinar o alfabeto, ministrar a instrução primária” (Costa & Melo, 1997, p. 79). Procuramos posteriormente o termo literacia e o mais aproximado que encontramos foi “literato”, mas que não tem propriamente a ver com aquilo que pretendemos e acaba por ser uma expressão demasiado redutora. Optamos, assim, por recorrer às novas tecnologias e fazer uma pesquisa num dicionário on-line. Aí encontramos as duas palavras e com um significado ligeiramente distinto. Apercebemo92 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo nos que a alfabetização continua a surgir como a acção de alfabetizar, mas agora também como a acção de propagar o ensino da leitura e associa-a à escolarização e à instrução (Dicionário Priberam). Neste caso, a literacia aparece-nos como a capacidade de ler e de escrever, mas também de compreender aquilo que é lido (Idem). Está aqui também patente a entrada da expressão literacia no léxico português, bem como uma clarificação dos vocábulos. Refletindo, de modo mais aprofundado, em torno destes dois conceitos acima mencionados, apercebemo-nos que enquanto a alfabetização está relacionada com a “condição de ser (ou não) iniciada na língua escrita, independentemente do grau de domínio”, a literacia está associada à capacidade de utilização da língua escrita (Delgado-Martins, Ramalho & Costa, 2000, p. 13). Deste modo, a alfabetização é considerada como um conhecimento adquirido e a literacia um conhecimento processual e amplo. Portanto, a partir do despontar deste novo conceito, começou a falar-se de um novo tipo de analfabetismo que evidencia incapacidades no âmbito da leitura e da escrita e diminui a capacidade de participação na vida social. O que realmente acontece é que as aprendizagens, em muitos casos, são deficientes, mal sedimentadas e pouco utilizadas ao longo da vida (Benavente, 1995; 1996). São precisamente essas aprendizagens deficitárias que fazem com que as pessoas, embora consigam ler e escrever, não consigam concretizar tarefas básicas no seu dia a dia (Walter, 1999; Lahire, 2005). A propósito deste novo conceito, Pinto refere que a literacia é encarada como um processo que, à semelhança da alfabetização enquanto processo individual, se encontra em construção e sujeita a uma atualização contínua (2002). Esta atualização ocorre tendo em conta a necessidade de acompanhar as mudanças que acontecem continuamente na sociedade. Até porque a identidade de cada indivíduo nunca é definitiva, existe sempre imperfeição, daí que não possa ser assumida sem a participação ativa deste nessa mesma sociedade. Por isso, espera-se que cada indivíduo faça um incessante investimento, dado que este é um processo que implica um permanente envolvimento da sua parte. Daí que se pretenda com este novo conceito “dar conta da posição de cada pessoa num continuum de competências” que se estende as vários níveis, nomeadamente social, profissional, cultural e pessoal e que permite que os indivíduos alcancem os seus propósitos, ampliem os seus conhecimentos, assim 93 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo como o seu potencial e ainda que participem na sociedade (Benavente, 1996, p. 4; Vanhuelle, 2001; UNESCO, 2005a). Não obstante, a literacia depende não só da posse de habilidades e conhecimentos, mas também da forma como estes são aplicados pelas pessoas no meio ambiente envolvente (Walter, 1999). Isto remete-nos um pouco para o discurso de Freire, que embora nos fale de alfabetização a encara como mais do que um mero domínio mecanizado das técnicas de leitura e de escrita. Nas suas palavras ela é o “domínio dessas técnicas em termos conscientes. É entender o que se lê e escrever o que se entende”, denominando esta situação como um ato de “incorporação”, até porque considera que “alfabetizar é conscientizar”, em que os indivíduos questionam a realidade e procuram mudá-la (1979, p. 72; 2005, p. 9). Portanto, não se trata unicamente de uma memorização mecanizada e automática dos termos, das frases, descurando todo o meio envolvente, mas existe uma “atitude de criação e recriação” (Freire, 1979, p. 72). Portanto, a literacia ou o “letramento” expressão usada no português do Brasil abrange uma diversidade de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais (Kleiman, 1995; Soares, 2002). Foi-se assumindo durante algum tempo, de forma errónea, que a aprendizagem da leitura e da escrita que se realizavam na escola habilitava automaticamente qualquer indivíduo para a compreensão e para a produção de qualquer tipo texto, ao longo da vida adulta. É inegável que um indivíduo com autonomia na leitura e na escrita se adapta mais facilmente à sociedade, uma vez que o texto escrito constitui, nos dias de hoje, um elemento fundamental nas relações sociais e profissionais. Por tudo isto, é notória a necessidade premente de desenvolver capacidades mais específicas em relação à leitura e à escrita. Não podemos deter-nos meramente nos níveis básicos. É necessário que cada indivíduo esteja preparado quando se deparar com qualquer tipo de documento, independentemente da situação ou do local, até porque embora não existindo uma correspondência absoluta entre o grau de escolarização e os níveis de literacia dos indivíduos, “não significa que o aumento da escolarização não tenda, também, a aumentar as competências de uso de saberes” (Benavente, 1996, p. 5). Se essas competências não forem aplicadas no dia a dia, nomeadamente no contexto profissional, elas tornam-se “vulneráveis à regressão”, ou seja, se os indivíduos não recorrem a elas no seu quotidiano, em situações e contextos díspares, e do seu percurso de vida elas vão-se esbatendo e mesmo regredindo (Ávila, 2008, p. 87). O conceito de 94 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo literacia veio propagar a ideia de que as capacidades de escrita, de numeracia, das TIC e outras se desenvolvem/perdem. Mediante a entrevista exploratória, o sociólogo Firmino da Costa considera que a literacia envolve uma maior profundidade e sentido. A literacia não é algo que se obtenha de forma instintiva ou natural, ela implica um empenho constante de todos, com um trabalho de “planificação consciente, de práticas intencionais e sistemáticas, com processos de monitorização constantes, e de avaliação, com um espírito de abertura à inovação” (Azevedo, 2009, p. 3). Tal como é definido no primeiro estudo ENL concretizado em Portugal em torno da literacia, o conceito remete-nos para as capacidades de “processamento da informação escrita na vida quotidiana”, ou seja, conduz-nos para os usos diários, mais para competências do que propriamente para níveis de escolarização, o que permite assim que se caminhe para uma formação efetiva e completa do indivíduo (Benavente, 1996, p. 22; Azevedo, 2009). Pensando nos termos opostos aos de alfabetização e literacia, se o analfabetismo faz com que os indivíduos não sejam capazes de identificar as palavras, a iliteracia, embora permita a determinada pessoa ler as palavras e as frases, não permite que estes compreendam o seu significado. Assim, a iliteracia nos adultos acabou por se tornar um problema social, associado à crise laboral e ao aumento do desemprego, o que levou trabalhadores pouco qualificados a procurarem formação, sendo exemplo disso muitos dos indivíduos que procuram a formação de adultos e que pertencem a populações mais descapitalizadas do ponto de vista cultural (Horellou-Lafarge & Segré 2007; Lahire, 2005). Lahire, a propósito do termo que denomina de illetrisme, considera que uma das formas contemporâneas de desigualdade social é precisamente a discrepância face à escrita (2005, p. 15). Na verdade, definições como a de leitura, que abordamos mais adiante, ou de literacia foram sofrendo mutações ao longo dos tempos, em uníssono com as próprias mudanças da sociedade, da economia e da cultura. Esta crescente aceitação da importância da aprendizagem ao longo da vida acabou por expandir estes conceitos. Daí que as preocupações se tenham alargado e tenhamos começado a encarar a literacia de forma diferente. Atualmente, vivendo num mundo tecnologicamente avançado, esperase que um número crescente de indivíduos utilize as informações a partir de uma panóplia de materiais, com graus de complexidade distintos, que lhe são apresentados todos os dias (Kirsh, 2001). 95 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo A literacia não pode ser encarada tão-só como um mero instrumento (Pinto, 2002). Ela deve ser vista como um “conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita” e devem ser produzidas através de processos sociais mais vastos e responsáveis para fortalecer ou contestar valores e formas de repartição de poder, patentes nos contextos sociais (Soares, 2002, pp. 74-75). Acaba, assim, por ser aquilo que as pessoas fazem com as capacidades de leitura e de escrita, num determinado contexto e a forma como essas capacidades estabelecem uma relação com as necessidades, valores e práticas sociais (Soares, 2002). Existe, portanto, um envolvimento de cada indivíduo no seu contexto social. Não se pode descurar que as práticas de literacia “não decorrem num vácuo social abstracto, mas inscrevem-se sempre em determinados quadros sociais e culturais envolventes” (Benavente, 1996, p. 112). Fernandes considera também que a literacia está associada a um domínio da leitura, da escrita, entre um misto de outros “actos criativos ou analíticos” relacionados com o conhecimento e capacidade numa determinada área de desempenho (2007, p. 19). A propósito deste contexto, Lytle e Wolfe aludem a quatro sentidos ou metáforas em que inserem a literacia a literacia como capacidade que engloba as competências básicas de leitura, escrita, matemática; a literacia como tarefa que inclui a habilidade para funcionar eficazmente em contextos de vida; a literacia como prática onde se fala em contextos sociais e culturais na qual se usa a literacia e ainda como reflexão crítica, relacionada com o processo de interpretar o mundo, de ler o mundo (cit. por Walter, 1999; Freire, 2000). A literacia é, na verdade, um conceito “plural e dinâmico”, daí que a sua definição não tenha um caráter imutável (UNESCO, 2009, p. 18). Fala-se já não só em literacia, mas em literacias ou mesmo “multiliteracias”, mais precisamente em “diferentes níveis de literacia, incutindo assim pluralidade a um termo normalmente usado no singular” (Pinto, 2002, p. 102; Oliveira, 2008). Apesar de as competências de leitura, escrita e numeracia continuarem a ser o sustentáculo da literacia, o conceito, à medida que a sociedade foi sofrendo alterações, foi conseguindo um alcance polissémico, daí falar-se em literacias, uma vez que aqui se reúnem as competências que o indivíduo precisa para o “bom desempenho social” (Azevedo, 2009; Oliveira, 2008, p. 63). Walter e Vanhulle acabam por ir um pouco ao encontro das palavras de Pinto e de Oliveira quando nos levam a uma reflexão interior em torno das múltiplas literacias, associadas a diferentes domínios da vida, nomeadamente literacia académica, literacia 96 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo informática, literacia científica, literacia visual, literacia tecnológica, literacia cultural e até mesmo a literacia política, entre muitas outras, qualquer uma delas amplamente valorizada e discutida na nossa sociedade (1999; 2001). A literacia é, na verdade, um conceito lato que incorpora e dá realce a uma diversidade de competências, num contexto de um mundo em constante transformação, em que é pedido a cada indivíduo que seja capaz de adquirir e apreender a informação em diferentes suportes e, acima de tudo, compreendê-la, e é precisamente isso que a torna um repto a que todos, de modo coletivo, temos o dever de dar resposta (Coutinho & Azevedo, 2009; Oliveira, 2008; Azevedo, 2007). 2.2. A literacia na vida adulta no contexto internacional Quando olhamos para a literacia na vida adulta a nível internacional deparamonos com três grandes momentos-chave, em que são desenvolvidos estudos que procuram compreender e avaliar as aptidões e as competências dos adultos no domínio da literacia. Ao falar acerca destes estudos não pretendemos analisá-los até à exaustão, até porque já longas páginas se escreveram sobre o tema, mas é nosso intuito perceber de que forma influenciaram o estudo desenvolvido em Portugal acerca desta temática, as suas preocupações e objetivos e de que forma é que esses estudos direcionam posteriormente as políticas públicas delineadas. Assim, na década de 90, mais concretamente em 1994, surgiu o primeiro estudo internacional de literacia direcionado para os adultos, denominado IALS – International Adult Literacy Survey. Esta pesquisa alargada processa-se a partir de 1994 e representa, até à data, a pesquisa de maior alcance realizada a nível internacional em torno destas questões e em que Portugal participou. Esta pesquisa é uma pesquisa comparativa à volta da literacia dos adultos, e tornou-se um esforço colaborativo que envolveu várias organizações internacionais, agências intergovernamentais e governos nacionais (Kirsh, 2001). É importante salvaguardar que esta pesquisa abrange uma população situada entre os 16 e os 65 anos. Ressalve-se igualmente que este estudo acabou por se tornar num elemento basilar para a investigação desenvolvida em torno da literacia, tal como veremos mais adiante. 97 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Nesta pesquisa a literacia é definida como sendo a capacidade de usar a informação impressa e escrita para responder às necessidades que a sociedade coloca, para atingir metas pessoais e para desenvolver os conhecimentos e os potenciais de cada um (Kirsh, 2001; Kirsh & Murray, 1998). Dada a proliferação dos documentos escritos, a definição acaba por chamar a atenção para o facto de não se entender a literacia tão-só como um conjunto de competências isoladas de leitura e de escrita, mas a sua aplicação em contextos concretos e em situações distintas no que diz respeito às várias esferas da vida de um adulto. Tal como se diz expressamente na definição, são tidas em conta as necessidades e as ambições de cada indivíduo, sem que se descurem as da própria sociedade. Esta pesquisa fundamenta-se em dois objetivos basilares, sendo que o primeiro está associado ao desenvolvimento de escalas que permitam a comparação do desempenho da literacia dos adultos com uma vasta sucessão de competências. O segundo objetivo prende-se com a descrição e a comparação das competências de literacia dos adultos nos diferentes países (Kirsh, 2001). Nesta pesquisa, a literacia é avaliada de acordo com três domínios que abrangem um conjunto de competências relevantes para a concretização de tarefas díspares. Falamos da literacia em prosa, relativa ao conhecimento e às competências necessárias para compreender diferentes tipos de textos em livros, jornais, enunciados; a literacia documental, entendida como o conhecimento e as competências essenciais para a localização e o processamento de informação constante em formulários, mapas, impressos e, por último, a literacia quantitativa que envolve operações aritméticas, baseando-se em documentos escritos, nomeadamente livros de cheques (Thorn, 2009; OECD & Statistics Canada 2000; Kirsh & Murray, 1998; Kirsh; Jungeblut & Mosenthal, 1998). Importa ainda salientar que o facto de a literacia nos remeter para um continuum de aptidões leva a que haja níveis de literacia com graus de dificuldade distintos. São considerados cinco níveis de literacia: nível 1, onde se enquadram pessoas com baixas competências, em que o indivíduo tem dificuldades em compreender uma informação simples do dia a dia; no nível 2 encontram-se pessoas que até desenvolvem competências, mas o seu baixo nível de proficiência dificulta-lhes enfrentarem as novas exigências com que se deparam; o nível 3 é considerado o mínimo adequado para encararem as necessidades do quotidiano numa sociedade cada vez mais complexa e, 98 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo por último, os níveis 4 e 5, em que se enquadram os sujeitos que revelam competências mais elevadas no processamento da informação escrita (OECD & Statistics Canada, 2000). No relatório final apresentado em torno deste estudo são realçadas algumas ideias, de certo modo mesmo conclusões, e às quais é pertinente fazer menção. A pesquisa do IALS acaba por ilustrar a distribuição das proficiências de literacia não só em cada país, mas também entre os diferentes países numa escala internacional. As deficiências no que respeita às competências de literacia não dizem somente respeito a grupos marginais, mas a largas proporções da população adulta em todos os países, mesmo nas economias mais desenvolvidas se encontram défices relativamente a estas proficiências. Em alguns países um número significativo de adultos com baixa escolarização demonstram até elevados níveis de competência de literacia, mas noutros tal não acontece, uma vez que apenas uma pequena porção de adultos adquire o nível de competências necessárias. Muitas vezes, adultos com baixas competências de literacia não tem consciência desse défice de competências relativas à literacia e nem sequer consideram tal facto como um problema (Idem). A segunda pesquisa concretizada em torno desta temática, conhecida como ALL – Adult Literacy and Life Skills Survey – ocorre entre 2002-2006. Inicialmente estavam envolvidos sete países e mais tarde associaram-se-lhe mais cinco. Esta pesquisa envolve o esforço empreendido pelos governos, agências de estatística nacionais, instituições de pesquisa e agências multilaterais, sendo o desenvolvimento e a gestão deste estudo coordenados pelo Statistics Canada e pelo Educational Testing Service, em colaboração com outras instituições (OECD, 2005). Este estudo baseia-se no IALS, embora se constatem algumas alterações relativamente ao que foi delineado no estudo anterior, mantendo o objetivo basilar da pesquisa no facto de se pretender avaliar o impacto das competências dos adultos. A principal mudança que se verifica numa primeira análise entre o IALS e o ALL está relacionada com a substituição da avaliação quantitativa pela numeracia, que exige competências que permitam gerir problemas matemáticos em situações diversas e a introdução da avaliação de resolução de problemas, que nos encaminha para o domínio da cognição. Tal como acontecia no IALS, o ALL define as competências ao longo de um continuum de proficiência. 99 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Quando se abordam os perfis comparativos de competências dos adultos nesta pesquisa há algumas ideias que sobressaem e que nos levam o focar a nossa atenção nessa direção. Salienta-se que, dependendo do país, entre um terço e mais de dois terços da população adulta não alcança aquele que os especialistas consideram o nível mínimo para lidar com as exigências da sociedade. Os resultados do ALL confirmam os dados alcançados com o IALS, em que muitos adultos revelam dificuldades em lidar com a literacia e com a numeracia. Foca-se ainda que a idade e as competências estão inversamente relacionadas em todos os países e que essa relação é complexa, não deixando, a este propósito, de se salvaguardar que as competências podem ser adquiridas, desenvolvidas, conservadas e perdidas ao longo da vida. De acordo com o mesmo relatório, afora os possíveis efeitos do envelhecimento, a influência da idade nas competências não funciona de modo isolado, até porque, contrariamente, denota experiências de vida que ocorrem em distintas etapas (OECD, 2005). Pode-se dizer, de certa forma, que um sucessor destas pesquisas é o Programa Internacional de Avaliação das Competências dos Adultos, vulgo PIAAC, sob a égide da OCDE que o lançou, e que se encontra em curso neste momento e cujos resultados finais serão apresentados em 2013. Daí que tenhamos dito anteriormente que o IALS representa, até agora, a pesquisa de maior alcance a nível internacional. Saliente-se que o PIAAC tem início na 2.ª metade de 2007. Este estudo é um “retrato atual” e é considerado como a mais ampla pesquisa internacional para a avaliação de competências cognitivas realizada até hoje e envolve 27 países, que constituíram as suas equipas, e Portugal é convidado a participar neste estudo pelo facto de ser um Estadomembro integrado na OCDE (Sociólogo, 60 anos, Anexo 4T; Ávila, 2011). Mediante esta pesquisa pretende-se averiguar e mensurar conhecimentos e competências da população fundamentais para exercerem a sua participação nas sociedades atuais, envolvendo uma população que compreende indivíduos com idades entre os 16 e os 65 anos, sendo as entrevistas concretizadas no alojamento. De acordo com o relatório de atividades relativo a 2010, considera-se que a integração de Portugal neste estudo permitirá seguir de perto os novos desenvolvimentos teóricos, metodológicos e empíricos relativos a esta área de investigação. Naturalmente, os dados que daí advém possibilitam situar Portugal no contexto internacional no que diz respeito às competências da população adulta, assim como analisar e compreender o desenvolvimento dessas proficiências, mediante a comparabilidade de dados não só 100 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo entre os países participantes, mas também deste estudo em relação aos anteriores (Ávila, 2011). Este estudo torna-se ainda um desafio relativamente aos anteriores pelo facto de implementar algumas inovações, sendo que a divulgação destes resultados permitirá determinar novas estratégias de trabalho e redefinir políticas públicas em Portugal. Além disso, há também um número mais alargado de países participantes relativamente aos estudos anteriores; está patente um alargamento das próprias dimensões/ competências analisadas e avaliadas e há um papel central na utilização das tecnologias da informação. Esta pesquisa emprega “ferramentas diferentes, muito suporte eletrónico. Há 20 anos não havia tantas tecnologias culturais novas. Há um novo impulso em reconhecer a consciência pública dessas ferramentas e expandir a visibilidade no domínio das novas TIC” (Sociólogo, 60 anos, Anexo 4T). Além disso, não podemos descurar que aquilo que é inovação é precisamente “a resolução de problemas – problemas intelectuais operativos - esta resolução de problemas é enriquecida em contextos quotidianos, que impregnam o quotidiano” e se compararmos este com o primeiro estudo desenvolvido internacionalmente – IALS – a originalidade está justamente no recurso às “novas tecnologias e na resolução de problemas intelectual formalizado” (Ibidem). O Quadro 2.1 congrega os três estudos anteriormente mencionados e a evolução relativamente às competências avaliadas, constatando-se de uns para os outros, a incrementação de novas competências, ou seja, vai-se verificando um alargamento dos domínios referentes à literacia. Quadro 2.1 Competências avaliadas no IALS, no ALL e no PIAAC IALS ALL PIAAC 1994-2000 2002-2006 2008-2013 Componentes de leitura Literacia em prosa Literacia em prosa Literacia em leitura Literacia documental Literacia documental Literacia em leitura Literacia quantitativa Numeracia Numeracia Resolução de problemas --- Resolução de problemas em cenários tecnologicamente enriquecidos Fonte: Ávila; Ramos; Botelho; Mauritti & Rodrigues 2011, p. 8. 101 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo 2.3. Passos da literacia de adultos em Portugal: Estudo Nacional de Literacia Tal como aludimos anteriormente, o primeiro, e até hoje único, estudo nacional de avaliação de competências de literacia na população adulta é, precisamente, aquele que foi coordenado por Ana Benavente, em 1995 – ENL. Considerando a sua quadratura temporal, acaba por se inspirar no modelo teórico e metodológico das pesquisas desenvolvidas internacionalmente, remetendo, do mesmo modo, para “contínuos multidimensionais de competências” (Benavente, 1996, p. 103). Não obstante esta inspiração, mormente do IALS, há pontos que distanciam este estudo internacional do português. Assim, o primeiro dos traços diferenciadores é o facto de os suportes usados no estudo nacional terem sido coligidos unicamente em Portugal, estando o segundo associado ao número inferior de tarefas no ENL, de modo a simplificar quer a recolha quer a análise dos dados (Ávila, 2008). De acordo com Benavente, “a avaliação da literacia da população adulta, tendo em vista a identificação da estrutura de distribuição das respectivas competências e, ainda, a identificação e análise dos factores e dos processos sociais que lhes estão associados” acabou por se constituir como o objetivo capital deste estudo (1996, pp. 1213). Não obstante, para além deste objetivo central, estão patentes nesta pesquisa outros propósitos que a norteiam, nomeadamente um querer compreender a situação portuguesa relativamente às competências de literacia da sua população, situada entre os 15 e os 64 anos; propiciar alguns dados de confrontação com resultados de estudos internacionais efetuados nesta área; formular suposições no que concerne às razões e sequelas das situações com que se depararam ao longo do estudo; identificar variáveis e ainda reconhecer temas para estudos posteriores (Benavente, 1996). A partir destas linhas torna-se percetível que esta pesquisa não pretende meramente dar conta de “fenómenos estatísticos e dicotómicos”, como acontece com a antítese alfabetismo/ analfabetismo, mas compreender a partição dissemelhante das competências de leitura, escrita e cálculo, assim como a utilização que delas fazem os indivíduos, no seu dia a dia (Gomes, 2003, p. 64). Esta pesquisa acaba por patentear a situação do país no que diz respeito a estas matérias e há alguns aspetos que consideramos pertinente salientar, pensando na análise do nosso objeto empírico. Deste modo, o estudo revela que, àquela altura, o perfil de literacia da população em Portugal era assaz débil, e que havia uma distribuição 102 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo desproporcional das competências de literacia dos indivíduos. Efetivamente, a literacia não é de todo algo que possamos dizer que uns possuem e outros não, mas a verdade é que os seus graus são variáveis e é precisamente o que este estudo revela, situando-se os números mais elevados nos níveis mais baixos da escala que vai de 0 a 4. Outro aspeto que é salientado nesta pesquisa está relacionado com o facto de nem sempre pessoas com o mesmo grau de escolarização apresentarem o mesmo nível de literacia, constatando-se uma oscilação. Outro dado importante está associado aos antecedentes familiares da população atual, que conduz não só a um vazio de certificados escolares, mas também à presença de “contextos domésticos empobrecidos em livros e outros materiais escritos”, uma vez que não são enriquecidos “por hábitos, práticas” e muito menos existe um “clima social enriquecido pela leitura” (Benavente, 1996, p. 402; Sociólogo, 60 anos, Anexo 4T). Os reduzidos níveis de literacia da população portuguesa obtidos mediante esta pesquisa acarretam consequências não só a nível individual, mas também coletivo. Falase da possibilidade de exclusão social, das contrariedades de “acesso ao emprego, à informação e à cultura”, mesmo a uma ausência de motivação no trabalho, a uma participação cívica e política diminuta ou outro tipo de riscos que podem acarretar ainda mais uma regressão das capacidades dos indivíduos (Amaro, 2004, p. 44; GEPE, 2009; Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Neste enquadramento, Gomes emprega o termo “literexclusão” para se referir a essa dimensão da exclusão social que patenteia as “incapacidades processuais dos indivíduos se relacionarem e utilizarem a informação escrita em materiais impressos através das competências básicas de literacia, como são a leitura, a escrita e o cálculo” (2003, p. 88). Neste sentido, o termo utilizado deve ser compreendido em três níveis distintos de exclusão social. Assim, num primeiro nível reporta-se a uma exclusão que está associada à inaptidão para empregar a informação escrita; num segundo nível deparamo-nos com as sequelas sociais que advém pelo facto de não possuir as competências anteriormente indicadas e, por último, num terceiro nível, estão os indivíduos que se sentem excluídos pelo facto de não possuírem essas competências, o que não lhes permite lidar com determinadas situações do quotidiano (Idem). Fazendo uma ponte com o que fomos abordando ao longo do capítulo anterior, este estudo acaba por se direcionar também para o ensino de adultos e da educação permanente, uma vez que não basta concentrar os esforços apenas nos mais jovens 103 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo porque a população adulta, com distintos percursos de vida, revela ínfimas competências perante as crescentes exigências de literacia e a panóplia de conjunturas que elas permitem nesta sociedade em constante ebulição (Benavente, 1996). De acordo com a análise apresentada num relatório em torno da dimensão económica da literacia, está patente o facto de se considerar que a educação de adultos fomenta competências que auxiliam os indivíduos na adaptação às exigências da nova economia e permitem uma participação total na vida económica e social (GEPE, 2009). Os resultados do estudo desenvolvido por Benavente permitem dar os primeiros passos a nível nacional em torno de uma reflexão sobre o perfil da literacia da população portuguesa e abrem portas para o desenvolvimento da investigação nesta área, para que paulatinamente se fosse amplificando. 2.4. As diferentes direções dos modelos teóricos de leitura Quando falamos de leitura não podemos deixar de fazer menção, ainda que não demasiado extensiva ou alongada, aos diferentes modelos teóricos desenvolvidos por distintos autores, que a encaram de formas díspares. Deste modo, salientamos a existência dos modelos ascendentes, também denominados buttom-up, dos modelos descendentes ou top-down e ainda dos modelos interativos. Saliente-se que falar acerca destes modelos é falar da leitura sob diferentes perspetivas, ou seja: descodificação, compreensão e descodificação e compreensão, respetivamente. Nos modelos ascendentes ou buttom-up o processo de leitura materializa-se a partir de uma “análise do estímulo visual”, uma vez que o seu ponto de partida se situa nos símbolos gráficos, avançando para o reconhecimento das letras, das sílabas, das palavras, terminando nas frases, o que faz com que este processo ascendente se possa considerar também hierárquico que parte de um nível inferior para um nível superior (Vila Maior, 2003, p. 31; Vaz 1998). Mediante esta primeira impressão, é visível que este modelo se direciona para um processo de descodificação, uma vez que está mais centralizado nos grafemas e nos fonemas como condição de acesso ao significado. Neste caso é atribuída ao leitor uma função exclusivamente de receção, de descodificação ou até de decifração, sendo descurado o papel do contexto da leitura, assim como os conhecimentos anteriormente adquiridos pelo leitor enquanto auxiliadores da compreensão. Nestes modelos a leitura é encarada como “a capacidade 104 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo de transformar uma mensagem escrita no seu equivalente oral, de forma a atingir a compreensão da mensagem escrita” (Sim-Sim, 2006, p. 38). Quando falamos destes arquétipos ascendentes sobressaem os modelos de dois autores, que acabam por ser representativos nesta área. Falamos do modelo de Gough e do modelo de LaBerge-Samuels. O modelo exposto por LaBerge-Samuels individualiza-se pela atenção e pela automaticidade, sendo que, em primeiro lugar, se efetua a descodificação, que será automática (1994). Só a posteriori é que surge a compreensão. No modelo de Gough o reconhecimento visual das letras precede a atribuição de um determinado significado. Logo, a leitura é vista como um processo linear e feito em série. Tudo começa com o reconhecimento das letras, avança com a representação sonora e termina com a integração da palavra na frase. Na aceção de Gough, ler consiste numa sequência ordenada de transformações (Rumelhart, 1994). Neste modelo, depois da identificação da palavra passa-se à inclusão desta na frase. Tudo isto sobrevém de forma sequencial, ou seja, as palavras, de acordo com a escrita ocidental, processam-se da esquerda para a direita, segundo a ordem que surgem na frase. São assim reservadas na memória primária até que a frase se forme. A partir deste momento, as frases já completas passam da memória primária para o que Gough denomina de PWSGWTAU Place Where Sentences Go When They Are Understodd , que em português se cognomina como o lugar para onde vão as frases quando são percebidas (Idem). Nos modelos descendentes ou top down a base reside no facto de o processo de leitura encetar nas hipóteses que o leitor formula e não com as letras, palavras ou frases tal como sucedia nos modelos anteriores. Isto ocorre consoante a experiência que o leitor detém e com o seu conhecimento da linguagem e do mundo. Goodman, a propósito destes modelos, assevera que se compreendermos que o cérebro é o órgão humano de processamento da informação; que o cérebro não é prisioneiro dos sentidos mas que controla os órgãos sensoriais e seletivamente usa o input que deles recebe; então não nos surpreenderá que o que a boca diz na leitura em voz alta, não é o que o olho viu, mas o que o cérebro produziu para que a boca o diga (cit. por Ferreiro & Teberosky, 1986, p. 269). Nestes modelos, o leitor confere ao texto sentido, infirmando-o ou confirmando-o, mediante a interação que é feita com o seu conteúdo. O leitor busca uma compreensão global, através de um percurso descendente, partindo de um nível superior – as suas 105 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo experiências e os seus conhecimentos – para um nível inferior – aspetos grafofonológicos, lexicais e gramaticais do texto (Goodman, 1994). Nestes modelos a qualidade da interpretação depende da qualidade dos conhecimentos que o leitor adquiriu previamente. Contudo, estes modelos desvalorizam em demasia o reconhecimento das palavras e enaltecem em superabundância a interpretação inicial e o próprio contexto. Estes modelos evidenciam algumas dificuldades em explanar as condições em que o leitor não tenha um conhecimento razoável acerca de um determinado tema ou assunto, capaz de lhe possibilitar enunciar suposições diante do pouco tempo dispensado para o reconhecimento de letras e de palavras. O modelo de Goodman assume uma maior importância e representatividade nesta área, sendo frequentemente denominado também como modelo psicolinguístico, dada a influência que agrega da linguística contemporânea e da psicologia cognitiva. Tendo como intento que toda a leitura tem como finalidade a aquisição de significado, Goodman aponta um modelo de leitura que inclui as fontes de informação a que o leitor recorre, os diversos ciclos através dos quais se desenrola o processo e as estratégias cognitivas empregues na construção do sentido do texto. Como fontes de informação, o leitor recorre à informação grafo-fonológica, mais simbólica, a sintática, que é estrutural, e a semântica, que confere significado, traçando o sentido do texto (Goodman, 1994). O processo de leitura ocorre através de uma sucessão de ciclos concatenados: ciclo ótico, inicialmente, dizendo respeito ao contacto dos olhos com o texto; ciclo percetivo, em que o leitor escolhe os estímulos gráficos mais significantes; ciclo sintático, onde o leitor assenta os seus conhecimentos sobre o funcionamento e a organização gramatical da língua e, por último, o ciclo semântico, em que se gera o significado (Vaz, 1998). À partida, os ciclos supra mencionados sucedem-se e repetemse até ao momento em que o leitor para ou que o texto termina. Contudo, isso não implica que eles ocorram constantemente e sempre com a mesma sequência, uma vez que nem sempre é preciso percorrer todos os passos na construção do significado. Na realidade, pretendendo o leitor atingir a compreensão de um determinado texto pode perfeitamente suprimir os ciclos que considere não serem necessários, à medida que se amplifica a sua eficiência leitora (Idem). 106 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Ao longo do transcorrer deste processo de compreensão, de acordo com Goodman, o leitor recorre a diversas estratégias cognitivas no sentido de trabalhar essa mesma informação (1994). Deste modo, deparamo-nos com o reconhecimento e início da tarefa ou da leitura; seleção da informação; inferência; confirmação ou infirmação das predições estabelecidas; correção; finalização da leitura (Idem). Normalmente, um determinado leitor decide ler com o intuito de encontrar novidades, de procurar uma informação específica. Há um motivo que o leva a tomar essa decisão. Com o intuito de não deter informação desnecessária e que lhe pode dificultar a compreensão, o leitor deve, deste modo, selecionar apenas a informação que o pode auxiliar na aquisição de significado. Por isso é que os olhos leem somente o que o leitor seleciona, não se delongando diante daquilo que não o possa ajudar na compreensão total do texto. Após a seleção, o leitor acaba sempre por realizar uma predição ou antecipação do texto, em relação ao seu final, por exemplo. À medida que vai avançando nas suas leituras vai confirmando ou não as suas predições. Com o intento de preencher toda a informação explícita de determinado texto, o leitor apela a estratégias de inferência. Nesse âmbito, ele recorre ao seu conhecimento linguístico e conceptual, permitindo-lhe deduzir a relação entre determinadas personagens do texto ou o espaço, por exemplo. Tal como afirma Goodman uma inferência envolve o fornecimento de informações que não estão no texto. Cada texto acaba por ser uma representação incompleta de sentido, de modo a que quem escreve espera que cada leitor extraia as suas ilações (1994, p. 1123). A partir da confirmação ou infirmação, o leitor pode constatar e avaliar se está realmente a assimilar determinado texto. Assim, tem consciência se as suas opções anteriores foram as mais corretas ou não. Deste modo, pode reformular ou não essas opções, de acordo com as conclusões a que chegar depois dessa análise. No momento em que o leitor se apercebe de uma falha de compreensão procura ultrapassar o problema. Tal como salvaguarda Goodman os leitores desenvolvem estratégias de correção para assim reconstruirem o texto e recuperarem o seu sentido (Ibidem). As estratégias de correção apresentam-se, assim, sob duas formas: uma relaciona-se com uma reavaliação da informação processada e o colocar de novas alternativas, predições e interpretações, caso se justifique; a segunda implica um retorno ao texto para obter mais informação e, consequentemente, adquirir uma melhor compreensão do mesmo (Goodman, 1994). 107 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Portanto, e ainda na aceção do mesmo autor, os textos são construídos pelo autor para serem compreendidos pelo leitor, embora o sentido não passe diretamente de um para outro (Idem). O sentido está não só no autor, mas também no leitor. O texto revela um potencial para evocar o sentido por ele mesmo. Na verdade, o sentido não é uma característica intrínseca a cada texto, mas conciliando as características do autor, do texto e do leitor obtém-se o sentido do texto. A finalização é uma decisão deliberada do leitor, podendo este recorrer a ela nas mais diversas situações. Pode sobrevir quando o leitor finaliza o texto ou simplesmente por desprendimento, estorvos na compreensão, falta de tempo, ou alguma outra circunstância que altere as suas opções. Olhando quer para os modelos ascendentes quer para os modelos descendentes nota-se uma certa tendenciosidade, uma vez que valorizam determinados pontos em detrimento de outros. Porém, os pontos ostentados por uns e por outros constituem as competências necessárias que um leitor fluente necessita. Com o assomar dos modelos interativos surge uma posição intermédia, que se pode considerar uma alternativa face a uma inadequação dos modelos que se podem assumir como unidirecionais. Neste caso em particular é imputada uma importância igualitária aos fatores sensoriais, sintáticos, semânticos e pragmáticos, ao conteúdo do texto e aos conhecimentos do leitor. Na verdade, a leitura é contemplada como um processo de interação e interinfluência de modelos descendentes e modelos ascendentes – de nível superior e de nível inferior, o que permite um equilíbrio no concernente à leitura. Sim-Sim considera que no momento em que há um reconhecimento visual das palavras pelo leitor é “activada uma via directa de acesso ao significado” (2006, p. 39). Não obstante, quando o leitor não identifica essa forma visual, de uma forma global, o acesso ao significado faz-se de uma forma indireta, ou seja, através da feição fonológica das palavras sons (Ibidem). Assim, um leitor fluente recorre alternada e simultaneamente a estratégias miscigenadas – descendentes e ascendentes – para eduzir sentido ao texto (Sim-Sim, 2006). No que concerne aos modelos interativos Rumelhart é o autor que, quiçá, mais se destaca pela sua relevância. Este autor não dá proeminência aos modelos ascendentes nem aos modelos descendentes, conquanto considere que ambos são necessários e têm a sua importância (1994). O processo ascendente de descodificação da informação de um texto a partir das suas letras é essencial para que se possa compreender o significado da 108 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo mensagem, mas as expectativas do leitor, de acordo com os seus conhecimentos prévios ativado através de elementos sensitivos, sintáticos e semânticos vão fazer com que este desenvolva, de forma personalizada, o sentido dessa mensagem. Está, assim, patente valorização dos elementos do texto e do papel do leitor na construção do significado. De acordo com este modelo a informação do sistema gráfico, inserida naquele que se denomina como armazém de informação visual, é depois dissecada por um dispositivo de captação de traços, que guarda os traços essenciais que compõe o fluxo de entrada sensorial a ser analisado num sintetizador de padrões. Estabelece-se deste modo comunicação entre este sintetizador de padrões com os conhecimentos ortográfico, lexical, sintático e semântico. O sintetizador de padrões ou centro de mensagens parte da informação extraída do fluxo de entrada para suportar um conjunto de hipóteses sobre essa informação. Cada uma dessas fontes de conhecimento observa e analisa constantemente o sintetizador de padrões, deparando-se com hipóteses que estejam relacionadas. Essas hipóteses podem ser confirmadas, invalidadas ou simplesmente eliminadas do sintetizador de padrões, o que poderá suscitar novas hipóteses (Rumelhart, 1994). 2.4.1. A leitura: da simples descodificação ao diálogo com o imaginário e a abertura para o desenvolvimento das competências da literacia da leitura Indo ao encontro do que frisámos no início deste capítulo, não podemos deixar de salvaguardar que atualmente é exigida a todos os cidadãos a aquisição e o desenvolvimento das competências da leitura e da escrita. Torna-se, assim, natural que o desenvolvimento destas competências permita a cada indivíduo crescer em sociedade e desenvolver outras proficiências. Mas para falarmos de competências de leitura precisámos entender primeiro este último conceito, falando neste caso concreto da leitura do livro, da leitura do texto escrito. Tradicionalmente a leitura é encarada, tal como pudemos constatar pelo exposto anteriormente no ponto 2.4., como um processo de codificação/ descodificação e a sua aprendizagem incide, essencialmente, no papel da decifração dos símbolos gráficos. O leitor comporta-se como recetáculo inerte da informação que é facultada pelo texto (Rafael, 1994). Aliás, Prole ilustra bem a conceção deste modelo mais teórico e 109 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo tradicional de leitura, salientando que esta “não era mais do que o acto de transformar, ou converter, uma sequência gráfica numa sequência fónica e o leitor um agente passivo, ou neutral, face a um sentido inerente ao texto ou à intencionalidade do emissor/ escritor”, fazendo com que esta surgisse com uma simples oralização assente numa análise visual (2005, p. 31; Veloso, 2005; Sim-Sim, 2006). Pensar na leitura deste modo é circunscrevê-la a uma leitura meramente “funcional ou de trabalho: uma leitura para… e de sentido único” (Prole, 2005, p. 31). Considerando esta visão mais tradicionalista de que falamos observe-se a Figura 2.1, na qual se pode constatar que o leitor procura o sentido do texto, que é transposto posteriormente para a sua mente, ou seja, o leitor ia esgravatar no texto o sentido que o autor lhe tinha atribuído (Giasson, 1993). Leitor Texto Fonte: Giasson, 1993, p. 19 Figura 2.1 Visão tradicional da leitura Todavia, as perspetivas mais recentes consideram como objetivo fulcral da leitura a compreensão, a interpretação dos sentidos, resultando o ato de ler de “um conjunto de estratégias, de operações de processamento complexo”, remetendo-nos para um modelo mais interativo (Prole, 2005; Rafael, 1994, p. 108). Desta forma, compreende-se que a leitura de um determinado texto ou livro está muito para além da mera apreensão das palavras, das frases ou mesmo dos parágrafos. Tal como salientam Santos e Sardinha, ela é “muito mais do que reconhecimento de sons, de sílabas ou palavras num contexto” (2009, p. 115). Neste sentido, a leitura não pode ser vista tão-só como intelectual, uma vez que a parte emocional e afetiva estão muito presentes neste processo (Vale, 1999). Aliás, a leitura abarca muito mais do que a mera movimentação dos olhos. Na verdade, ler envolve “construir” e “trocar sentidos. E os sentidos são resultado do compartilhamento da visão do mundo do homem” porque quando abrimos um livro estamos a abrir “perspectivas, informações” e a incentivar “sentimentos, sensações e 110 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo criatividade” (Sousa, 2009, p. 53; Pereira & Gardin, 2010, pp. 484-485). Mas, na leitura, não podemos limitar-nos a sentir e a compreender aquilo que está no texto, mas também aquilo que não vemos na mancha que preenche as páginas do livro, aquilo que se esconde nos espaços em branco, o que está entre as palavras e debaixo delas (Castro, 2007). Daí que ela possa suscitar uma infinidade de sentimentos e possa fazer rir ou chorar, criar momentos de ansiedade, reacender lembranças e memórias e/ou muitos outros sentimentos. Na verdade, a leitura, [é] um exercício humano complexo. Não é o consumismo do livro que inverte tendências. Não é esse o sentido primário de ler. A etimologia latina, legere, supõe a capacidade de «colher», mas implica também, e sobretudo, a capacidade de «escolher», o que conduz necessariamente ao exercício de julgar e de intervir – aliás, o termo grego anagnostes (e vale a pena aduzi-lo) que significa «leitor» reporta-se a «reconhecimento» – anagnorisis – e este está relacionado com anagignosco que significa «conhecer a fundo» – por reconhecimento direto, analítico e organizado (Nascimento, 2006, p. 293). Por tudo isto, cada leitor é diferente do outro, uma vez que a forma como vai compreender o texto vai depender dos seus conhecimentos, de todas as experiências vivenciadas anteriormente, dos seus valores socioculturais e também do lugar que ocupa na sociedade. Não podemos esquecer, naturalmente, a presença do leitor como “coprodutor de texto, na medida em que reúne uma série de efeitos de sentido” ¨ cit. por Reis & Lopes, 1998, p. 221). Torna-se, assim, evidente que o (Bellemin-Noel, leitor, de acordo com esta perspetiva, acarreta consigo não só o conhecimento que adquiriu previamente, mas também o seu acervo psicológico, social e moral, transpondo para a leitura as suas vivências e recolhendo dela novos saberes. Perante esta perspetiva, Manguel considera que a leitura é “cumulativa e avança numa progressão geométrica” (1998, p. 32). Podemos encarar a leitura como uma atividade que se compara ao modo como analisarmos a nossa vida, por isso “ao lermos construímos representações ou interpretações com base nas quais especulamos e formulamos hipóteses sobre o que pode acontecer a seguir, mantendo ou retificando as interpretações do que ficou para trás à luz do que lemos agora”, daí que o sentido do texto não seja unívoco, mas plural (Sousa, 1990, p. 117; Horellou-Lafarge & Segré, 2007). A leitura não deve ser tão-só um ato mecânico, mas uma tarefa que exige atenção e concentração e um conhecimento prévio para alcançar a compreensão (Cerrillo, 111 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Larrañaga & Yubero, 2002). Nesta lógica a leitura é “trabalho, é produção de significados, construção colectiva. Leitura é diálogo” (Vale, 1999, p.55). Com efeito, a partir da relação entre a leitura que faz do mundo e a leitura da palavra escrita, o leitor vai enriquecendo os seus conhecimentos e desenvolvendo-se enquanto pessoa humana e cidadão numa determinada sociedade. Daí considerarmos que não é possível interpretar a leitura pura e simplesmente como uma mera descodificação de signos. Segundo o Manifesto da Unesco, a leitura “fornece as condições básicas para a aprendizagem ao longo da vida, para uma tomada de decisão independente e para o desenvolvimento cultural do indivíduo e dos grupos sociais” (Gill, 1997, p. 117). Na verdade, a memorização mecânica da descrição de um determinado objeto não traduz o conhecimento desse mesmo objeto, ou seja, uma não implica forçosamente a outra (Freire, 2000). Por isso, a leitura de um texto, encarada como pura descrição de um objeto materializa-se com a finalidade de memorização. Desta forma não se pode considerá-la uma leitura real e muito menos se pode retirar dela o conhecimento acerca do objeto a que o texto se refere. A leitura é, assim e antes de mais, um processo cognitivo que abarca a “interacção entre pensamento e linguagem, leitura e texto, conhecimentos linguísticos e extra-linguísticos. É, no fundo, um acto de criação permanente”, em que indivíduo concebe e reproduz o seu sentido do mundo, traçando a sua própria personalidade enquanto leitor (Sardinha & Relvas, 2009, p. 144). Não podemos esquecer que leitura não é basicamente um “processo visual”, uma vez que quando lemos utilizamos dois tipos de informação, uma “visual e outra nãovisual” (Smith, cit. por Ferreiro & Teberosky, 1986, p. 269). A informação visual é exequível pela organização das letras na página impressa ou manuscrita. Contudo, a informação não visual é despertada pelo próprio leitor. A informação não visual primordial é a competência linguística do próprio leitor. Todavia existem outras informações não visuais que influenciam o leitor, mormente o conhecimento acerca do tema, a identificação do suporte material do texto, que nos permite saber algo acerca do texto, mesmo antes de começarmos a lê-lo. Ferreiro e Teberosky acrescentam uma outra informação não visual: a identificação do suporte material do texto (1986). Estando perante signos escritos que alinham uma mensagem, o leitor coordena o movimento dos olhos para seguir as linhas da esquerda para a direita e este mesmo movimento é interrompido em diversos momentos. Esta atividade percetiva conduz o leitor à atribuição de um determinado significado ao texto escrito. Após a realização do 112 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo mesmo acaba por estabelecer uma comparação entre esse significado e o conjunto de experiências vivenciadas por si anteriormente. Aliás, o leitor “numa postura interactiva, constrói os significados do texto, modifica-o e recria-o” e “produz a leitura e cria o texto a partir do lugar social e histórico que representa” (Vale, 1999, pp. 54-55). A leitura é um valor em si mesma (Cerrillo, Larrañaga & Yubero 2002). Na verdade, as pessoas necessitam da leitura, não somente no que esta tem de descodificador de símbolos, mas também como um meio para alcançar determinadas destrezas, atitudes, competências, que serão, na realidade, indispensáveis para a sua participação na vida quotidiana e para que cada indivíduo se integre, sem quaisquer problemas, na sociedade da qual faz parte. Daí que ela também permita atualizar disposições sociais (Lahire, 1993). Sim-Sim refere também, a propósito da leitura, que esta é um “acto complexo” e ao mesmo tempo linguístico, cognitivo, social e afetivo e que o seu âmago se encontra na conjugação do significado entre o leitor e os conhecimentos que este detém acerca de determinado tema que está a ler, entre o texto e o seu autor (2006, p. 8). Desta forma, a qualidade do texto pode ser maior ou menor tendo em conta também a qualidade do leitor que com ele se depara e é a partir do contacto entre cada leitor e cada texto que surge “o sabor da leitura” (Ibidem). Goulemot acrescenta que a leitura é revelação pontual de uma polissemia do texto literário (2003, p. 120). A leitura leva-nos à descoberta do belo, ao prazer de viajar sem sair do sítio, no tempo e no espaço, informa-nos, faz-nos chorar, rir, pensar e empolgar. De acordo com Gomes, aprender a ler é “conquistar uma voz, desenvolver a capacidade de dialogar com o Outro” (2000, p. 10). Portanto, é essencial propagar essa mesma ideia de explorar as páginas de um livro que dialogue com cada um de nós e que não se limite a descrever, que seja capaz de estimular o espírito de descoberta e de interpelação contínuo para que a leitura não seja um ato mecanicista e destituída de qualquer significado (Chauveau, 1993; Foucambert, 1994). Se ela for encarada desta forma, o leitor pode senti-la como algo demasiado árduo que, de certo modo, ainda se vai aguentando, mas não é de forma alguma uma experiência que possa provocar uma determinada fruição. Falando precisamente em prazer, Morão defende uma conceção de leitura não só como instrumento do saber, mas também de deleite, ampliando os horizontes através da fruição de universos reais e imaginários (2010). 113 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Na realidade, todos precisamos de aprender a ler. Lemos porque é essencial, mas o importante será aprender a deslizar “pela leitura com o gosto e a apetência que criam o prazer em que se enraízam e solidificam as aprendizagens que, como andar de bicicleta, nunca se perdem” (Sim-Sim, 2006, p. 9). Não podemos descurar o facto de que se não praticarmos continuamente o ato de ler, vamos perdendo o jeito, se assim lhe pudermos chamar. Ora, isto acontece com muitas outras coisas, até mesmo andar de bicicleta. Por isso é que este deve ser um ato contínuo, até mesmo para que possamos ir desenvolvendo e aperfeiçoando outras competências porque, como rabisca Pedro Homem de Mello no seu poema Havemos de ir a Viana “quem pára perde-lhe o jeito e morre a todo o momento” (cit. por Sim-Sim, 2006, p. 9). De acordo com Poslaniec, ler é uma operação na qual um determinado leitor tem um papel a desempenhar, ocorrendo um diálogo com o imaginário (2004). No fundo, “saber ler é ter a possibilidade de dispor de um instrumento próprio para adquirir conhecimentos, um saber, informações sobre o mundo e os homens”, porque ler é “efectivamente entrar num universo de signos mortos, que a leitura torna vivos, activos” (Jolibert & Gloton, 1978, pp. 48-49). A literacia está, portanto, relacionada com a atual definição da noção de leitura, que temos vindo a explanar. Não obstante, independentemente da evolução que os conceitos vão sofrendo, é necessário que aprendamos a compreender o texto escrito, mas isso, como outras atividades do nosso quotidiano, exige esforço. Se a leitura significa esforço, constitui igualmente trabalho, reflexão, investigação e ampliação do conhecimento (Grilo, 2009). Pensando no caso concreto dos formandos que integram os cursos EFA, não basta assegurar que estes tenham um ambiente copioso em “produtos literácitos”, mas é essencial que, conhecendo os usos sociais da leitura e da escrita, na diversidade dos seus contextos, “tomem consciência das práticas e das oportunidades para a aprendizagem que a sociedade define e valoriza, acedendo ao conhecimento das estruturas ideológicas subjacentes a essas práticas” (Landis, cit. por Azevedo, 2009, p. 9). Tal como salienta Azevedo, assimilar e saber desenvolver competências leitoras assegura aos seus “detentores a posse de uma chave capaz de os auxiliar na descoberta de domínios maravilhosos onde poderão beneficiar das mais fecundas viagens e encontros” (2009, p. 149). Ao longo da segunda metade do século passado saber ler tornou-se uma necessidade social. A leitura é uma atividade dinâmica em constante evolução, pelo que as maneiras de ler, de compreender, de interpretar variam consoante 114 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo as competências e os investimentos individuais porque, na verdade, os livros não deixam de ser “portas e janelas que se abrem para universos infinitos de possibilidades, onde cada leitor decide o caminho a tomar” (Horellou-Lafarge & Segré, 2007; Taquelim, 2005, p. 91). 2.4.2. O modelo de compreensão da leitura e o papel do leitor, do texto e do contexto Tal como acentuámos anteriormente, os modelos de leitura mais recentes valorizam o papel do leitor, que, integrando as diversas competências e exercendo interação com o texto, invocam os seus conhecimentos e as suas vivências anteriores, refletem acerca do seu intento de leitura e decompõem os vários elementos concernentes ao contexto. Na verdade, o processo de leitura abrange três aspetos cruciais: o leitor, o texto e o contexto, ou seja, as condições em que esse encontro ocorre e que leva um número cada vez mais alargado de autores a realçar o papel destes três elementos. Giasson sugere, neste sentido, um esquema que atesta a relação que se constitui entre estes elementos da compreensão da leitura e que apresentamos na Figura 2.2. (1993). Estas três variáveis da leitura são indissociáveis e demonstram o facto de a leitura ser, precisamente, considerada um processo interativo e não um simples consumo passivo (Horellou-Lafarge & Segré, 2007, p. 104). A compreensão envolve variações de acordo com a relação que for estabelecida entre as três componentes, tendo em conta que o grau de compreensão é tanto maior quanto maior a convergência dos três elementos (Vaz, 1998). Fonte: Adaptado de Giasson, 1993, p. 21 Figura 2.2 Modelo contemporâneo de compreensão da leitura 115 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo O leitor é considerado o mais intrincado dos elementos que integra o modelo de compreensão. Abrange estruturas cognitivas, que dizem respeito aos conhecimentos acerca da língua e do mundo que detém, e estruturas afetivas, concernentes às suas atitudes e interesses em relação à leitura. É preciso ter em consideração que estas estruturas – cognitivas e afetivas – se constituem como características que o leitor tem, independentemente das condições de leitura, e estas interagem com o texto e com o contexto, com o intuito de contribuir para a construção pessoal de um determinado significado. No âmbito de uma qualquer leitura, é compreensível que haja uma interposição de conhecimentos e interesses que, em relação a um texto e a um contexto concreto, contribuem para uma melhor ou pior compreensão desse mesmo texto (Giasson, 1993). O leitor faz uma abordagem da leitura mediante a conjugação das estruturas acima mencionadas com o recurso a diferentes processos, tal como é observável na Figura 2.3, que a seguir se apresenta e que passamos a explanar com mais detalhe. Estruturas cognitivas Conhecimentos sobre a língua Estruturas afetivas Conhecimentos sobre o mundo Estruturas Leitor Microprocessos Processos Processos de elaboração Processos de integração Processos metacognitivos Macroprocessos Fonte: Giasson, 1993, p. 25 Figura 2.3 Componentes da variável leitor Nesta sequência, consideramos pertinente discernir as duas subvariáveis que integram as estruturas cognitivas. Deste modo, no que diz respeito aos conhecimentos acerca da língua, é necessário considerar quatro sistemas que o leitor precisa de conhecer para encontrar o sentido do texto/ da leitura: o sistema fonológico que permite 116 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo fazer a distinção dos fonemas de uma determinada língua; o sistema sintático que tem a ver com a ordem das palavras na frase e com a relação entre as palavras, as frases e os parágrafos; o sistema semântico que concerne ao sentido das palavras nas relações com as outras palavras e permite ao leitor selecionar as ideias principais e estabelecer associações, de acordo com as suas vivências e ainda o sistema pragmático, que diz respeito à atribuição de uma determinada entoação ao texto (Giasson, 1993). No que concerne aos conhecimentos acerca do mundo, a compreensão está associada ao uso de conhecimentos prévios para desenvolver um novo conhecimento, até porque, sem esses conhecimentos que já detém, quando se depara com um texto mais confuso ou complexo, este “não é apenas difícil de interpretar; para falar com rigor, ele não tem significação” (Adams & Pruce, cit. por Giasson, 1993, p. 27). Assim, diante de um novo texto o leitor vai integrar a nova informação, pelo que a compreensão do texto advém da relação que se estabelece entre a representação que o leitor possui do mundo e os elementos do texto. Os leitores não são, de todo, “tábuas rasas”, marionetas ou mesmo “recetáculos vazios” (Lopes, 2007, p. 5). Há sempre um background deste, relacionado com a sua história de vida, as suas experiências, os seus contactos, as leituras que fez anteriormente. Aliás, os modelos de relação do leitor com os livros multiplicam-se, tal como as reinterpretações, dado que dependem das experiências de vida de cada leitor. Não esqueçamos, todavia, que quanto maior o número de conhecimentos que o leitor tiver, tanto melhor será a sua leitura. Conquanto, as experiências por si só não sejam suficientes torna-se fundamental falar sobre elas para ampliar o volume de conceitos e enriquecer o vocabulário. Precisamente na sequência desta forma de encarar o leitor, Manguel traça uma metáfora que representa essa relação que se estabelece entre leitor e livro, acentuando que “o mundo que o livro é, devora-o o leitor, que é uma letra no texto do mundo. (…) Nós somos aquilo que lemos” (1998, p. 182). Assim, independentemente da forma como o leitor lê, o resultado final é a fusão de ambos porque “texto e leitor entrelaçamse, criando novos níveis de sentido, de forma que, de cada vez que extraímos alguma coisa do texto ao ingeri-lo, nasce simultaneamente algo nele que ainda não apreendemos” e o leitor pode tornar-se um “ sonhador acordado” (Manguel, 1998, p. 182; Lahire, 2003, p. 129). Não se trata de uma mera apreensão das letras ou dos espaços em branco entre elas, mas da extração de uma mensagem. Se, na verdade, ocorresse uma simples 117 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo descodificação da leitura, o texto não seria mais do que uma mera apreensão de frases. Por isso é que o leitor deve apresentar uma postura ativa diante da leitura, de acordo com os seus conhecimentos e vivências. Não podemos limitar-nos a uma descodificação da palavra porque se nos detivermos nessa fase jamais seremos realmente leitores. Aquele que lê deve ser um investigador de sentidos, um explorador do texto. (Chauveau, 1993). Portanto, o leitor, apresentando essa postura interativa, constrói o significado do texto, altera-o e reprodu-lo (Vale, 1999). Não podemos avocar que todos aqueles indivíduos que frequentam a escola e adquiriram a técnica da leitura se transmutam instantaneamente leitores, até porque a posição social que o leitor ocupa exige mais do que o simples domínio de uma técnica, ela abrange igualmente uma “forma de posicionamento face ao escrito e às práticas de apropriação dos sentidos textuais” e esse posicionamento, que faz parte do percurso individual de cada indivíduo, é “uma função de um processo social mais vasto que prescreve um conjunto de convenções sobre possibilidades e impossibilidades, inerentes às acções individuais e sociais da leitura” (Sousa, 1999, p. 131). Daí que a identidade do leitor seja um processo evolutivo, em que gradativamente esta se vai delineando, sendo que o leitor se constrói lendo e que tem de traçar o seu caminho no sentido de uma “leitura compreensiva, fluida, mantendo um ritmo adequado; expressiva, entoando para dentro como se estivesse a ler em voz alta.” (Taquelim, 2005, p. 93). Essa leitura ou leituras contribuem para o aperfeiçoamento do nível de compreensão do texto e não esqueçamos que uma boa compreensão conduz a novos textos. Não descuremos que a formação do leitor é um processo demorado e permanente, daí a necessidade constante de impulsionar a bagagem cultural desse mesmo leitor. As estruturas afetivas, tal como mencionámos no início deste ponto, estão relacionadas com os interesses e as atitudes de cada leitor, ou seja, estão associadas à postura geral face à leitura e aos interesses cultivados pelo leitor. Todos temos interesses distintos nas mais variadas áreas, desde a música, passando pela fotografia, viagens, cinema, entre uma imensa panóplia de outros exemplos. Assim, se um determinado texto fizer menção a algum dos interesses de um dado leitor, poderá avocar a sua atenção e despertar-lhe interesse em maior ou menor grau. Além disso poderão ainda integrar as estruturas afetivas “a capacidade de arriscar [do leitor]; a sua autoimagem em geral; a sua auto-imagem como leitor, o medo do insucesso…” (Giasson, 1993, p. 31). 118 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Para além das estruturas, o leitor recorre também a distintos processos que lhe dão azo a que possa compreender o texto (Figura 2.3). No que aos processos de leitura diz respeito, importa ressalvar que estes ocorrem simultaneamente e não sequencialmente. Relativamente a estes processos Irwin apresenta uma classificação que os divide em cinco categorias: os microprocessos que auxiliam na compreensão da informação que a frase encerra, havendo um reconhecimento das palavras; os processos de integração, que permitem que se estabeleça a ligação entre as proposições ou as frases, uma vez que aqui podemos deparar-nos com a utilização de conectores e referentes e a dedução baseada em esquemas; os macroprocessos que encaminham para a compreensão do texto na sua globalidade, e onde nos deparamos com a identificação das ideias principais e os resumos, por exemplo; os processos de elaboração que estão relacionados com as previsões e as imagens mentais que o leitor realiza, com as respostas afetivas que este dá à leitura, a ligação que estabelece com os conhecimentos que possui e, por último, os processos metacognitivos que orientam a compreensão do leitor perante determinado texto, permitindo, assim, que este se adapte ao texto e à situação em si (cit por Giasson, 1993). Aliás, neste momento o leitor pode aperceber-se que não está a compreender aquilo que lê e pode voltar atrás nessa leitura para retomar aquilo que perdeu e poder compreender efetivamente o texto. A propósito desta primeira variável, importa delongarmo-nos um pouco numa reflexão em torno de outro conceito e que nos ajuda a compreender um pouco melhor esta evolução da importância do leitor em todo este processo. Falamos da estética da receção, em que o papel desempenhado por aquele que se denomina de recetor/leitor passa a ter uma relevância maior (Silva, 2000; Eco, 2004; Jauss, 1987). Na primeira metade do século XX, mais particularmente nos anos 30, Ingarden emerge como o primeiro teorizador da indeterminação estética. A ele interessa-lhe a forma como o mundo aparece à consciência cognoscente, ou seja, como a obra de arte vive e se apresenta na consciência cognoscitiva do leitor. A partir dos anos 60 descortinaram na teoria de Ingarden um novo modelo de análise do texto, através da obra de arte. Fala-se, então, da doutrina dos pontos de indeterminação, ou seja, a obra de arte tem sempre espaços por determinar e por completar, até porque salienta que “as vivências do autor deixam de existir precisamente no momento em que a obra por ele criada começa a existir” (Silva, 2000; Ingarden, 1979, p. 30). Neste sentido, Silva considera mesmo que “os pontos de indeterminação e as lacunas representam factores 119 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo textuais que desenvolvem e potenciam a liberdade semiótica do leitor”, o que permite que haja “uma cooperação heurística e hermenêutica particularmente atenta, reflexiva e dinâmica” (Silva, 2000, p. 329). Na ótica de Eco, desde a década de 1960, as teorias da receção têm surgido como forma de reação a vários fatores, nomeadamente à rigidez de certas metodologias estruturalistas que previam a possibilidade de investigar a obra de arte ou o texto na sua objetividade de texto linguístico; à natural severidade de certas semânticas formais anglo-saxónicas que entendiam alhear-se de toda e qualquer situação ou circunstância de uso ou contexto em que se enviassem sinais ou enunciados e, por fim, ao empirismo de alguns contributos sociológicos (2004). Deste modo, começa a ocorrer uma multiplicação de teorias em torno do leitor. Surgem, assim, distintas orientações acerca da estética da receção. Esta estética está associada à valorização da função do leitor na investigação literária contemporânea. Neste sentido, Iser surge como o maior exponente da estética da receção externo ao contexto alemão. Jauss é considerado como o mais inabalável dos críticos da estética da receção, que veio renovar a história literária, já que esta não pode ser meramente a história das formas e dos géneros, das obras ou mesmo dos autores, tornando-se a receção dos públicos um elemento fulcral (Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Pensando precisamente em Jauss, não podemos deixar de aludir ao comentário dele acerca do facto de durante muito tempo a história da literatura ter sido a história dos autores e das obras (1987). Para ele, o leitor, que integra o modelo atual que vimos explanando, era simplesmente reprimido ou silenciado. Portanto, a literatura só se converte realmente em processo histórico concreto a partir do momento em que os leitores podem julgar as obras que leem, aceitando-as ou recusando-as, elegendo-as ou esquecendo-as (Jauss, 1987; Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Nesta altura, Jauss parte de uma visão em que se encara o recetor como um leitor criativo e situado num determinado contexto, historicamente contextualizado e condicionado do ponto de vista sociocultural, o que faz com que o leitor se torne o protagonista. Não é aceitável para ele e para a estética da receção que a materialização do objeto estético de Ingarden – encarado como um ato de receção realizado por um leitor concreto num determinado contexto –, seja traçada mediante a estrita perspetiva da fenomenologia inicial. A vida das obras literárias e a existência da tradição literária traduzem-se na sequência histórica das receções literárias e, deste modo, a verdadeira história literária é 120 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo aquela que elucida como é que cada obra foi vivendo através de consecutivas receções. Zimmerman, baseado-se em Jauss, assevera que o processo em que a receção passiva do leitor se transforma em receção ativa tem implícito uma série de normas a que chamamos “horizonte de expectativas” (1987, p. 41; Jauss, 1987, p. 77). Pode encararse esse horizonte de expectativas como um sistema simbólico de referências do recetor/ leitor ao longo da sua socialização, da sua experiência ou da sua vida. A propósito desse “horizonte de expectativas” de que falámos anteriormente, Jauss aborda a questão das concretizações literárias, que não são mais do que uma junção do horizonte de sentido inscrito no texto e do horizonte de sentido implícito nas expectativas do leitor (Jauss, 1987). Portanto, estão dependentes da competência dos leitores, das suas pressuposições e perspetivas que neles, sucessivamente, vai criando o contacto com a obra e que podem ser alimentadas por certos elementos (nome do autor, título, subtítulo). O objeto estético resulta, assim, de uma certa interação de sentido criada no texto com a interposição criativa do leitor, contributo dado a partir da sua contextualidade, horizonte de expectativas e competência literária. Neste sentido, Jauss faz a distinção entre horizonte de expectativas literárias, constituídas por leituras prévias do leitor; as expectativas concretas dos leitores, que são relativas aos seus desejos, às suas necessidades e às suas experiências sociais concretas e que estão articuladas não só com a sua pertença a uma classe social, mas também à sua história de vida e, por último, os códigos socioculturais, os valores, as normas, os gostos que fazem parte do seu universo, bem como dos seus níveis de competência (Horellou- Lafarge & Segré, 2007). Mediante estas teorias de Jauss e da estética da receção verifica-se, deste modo, uma transformação no papel atribuído por Ingarden ao leitor, colocando-se a ênfase na importância da sua intervenção e dilatando-se as margens da sua liberdade semiótica. O caráter decisivo do leitor deixa, então, de residir apenas no facto de ter uma participação ativa e passa a consistir no facto de ter uma participação criativa, conquanto condicionada. A liberdade do leitor já não se confina à mera iniciativa de atualizar as potencialidades do texto, mas de combinar elementos dados pelo texto com outros elementos também produtores de sentido estético, procedentes do texto. A participação criativa do leitor, que abordámos anteriormente, aclara-se com os contributos teóricos de Iser (1987). Este parte da posição da estética da receção para aquilo que hoje se denomina como crítica da resposta do leitor. Na ótica de Iser, “o papel do leitor representa, sobretudo, uma intenção que apenas se realiza através dos 121 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo actos estimulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente unidos” (1996, p. 75). Na verdade, ele concebe a receção do texto literário como uma resposta imposta e espicaçada pela própria estrutura do texto. Os estudos de Iser colaboram no sentido de uma fundamentação da estética da receção. Posto isto, constata-se uma dupla transformação no conceito de indeterminação semântica introduzido por Ingarden. Por um lado atribui à indeterminação semântica do artefacto textual um caráter estrutural, por outro lado confere a essa estruturação parcialmente indeterminada de objeto artístico um caráter apelativo. Deste modo, aquilo que denominamos de brancos ou vazios do objeto artístico deixam de ser concebidos como simples omissões localizadas em certos trechos do texto e que o leitor podia completar. Por isso, para Iser, a indeterminação semântica ganha um caráter mais global, dado que se relaciona com a própria articulação dos elementos textuais, estendendo-se à ação do leitor até que ele intervenha no plano da associação e organização dos elementos textuais. Enquanto Ingarden considera que os pontos textuais de indeterminação estão passivamente à espera e disponíveis para serem preenchidos, Iser entende que a indeterminação estrutural exige, provoca e orienta até a intervenção do leitor, traduzindo-se num apelo à sua função criativa (1979, 1987). Antes dos leitores empíricos, que em determinado contexto entram em interação com o texto, existe uma instância de receção que o texto, por si só, implica, graças à condição de entidade comunicativa. Este leitor não é mais do que uma estruturação textual que estimula e orienta a receção criativa da obra literária, predispondo os leitores empíricos para reagirem interpretativamente de determinado modo. O modelo de Iser apresenta uma complexa relação hermenêutica entre o que no texto constitui a sua estrutura de solicitação à resposta e a receção do leitor. Esta resulta de uma operação seletiva que o leitor realiza perante um texto cujas potencialidades semântico-pragmáticas são historicamente exploradas de uma forma variável pelas múltiplas receções. Isto constitui, assim, um modelo bi-ativo do leitor: texto/leitor, que salvaguarda a autonomia do objeto artístico e do leitor, isto é, respeita a natureza autónoma e a distinta função semiótica de um e de outro, mas implica a sua interação. Na verdade, o texto é dirigido à leitura, ou seja, é um objeto artístico, intencional, constitutivamente estruturado para visar o ato de leitura. Assim, esta intencionalidade 122 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo textual vem responder à ação hermenêutica do leitor, a partir dessa forma de competência comunicativa que é a sua competência literária. Em Iser está patente uma influência recíproca entre texto e leitor, considerando-se neste caso o ato de leitura como um processo individual. Aliás, Iser considera que o texto apenas adquire vida quando é “concretizado” e essa concretização não pode ser autónoma da disposição individual de cada leitor (1987, p. 215). Por tudo isso, a leitura pode considerar-se um processo que interpola entre a liberdade, a criação e o constrangimento (Horellou-Lafarge & Segré, 2007, p. 105). Eco, identificando-se com a teoria de Iser, considera que os textos necessitam a qualquer momento da cooperação dos leitores. Aliás, o leitor faz o preenchimento do sentido do texto, procurando, ao mesmo tempo, definir os limites interpretativos e os horizontes de expectativas gerados pelo texto. Nesta sequência, Eco refere, a propósito da estética da receção, que esta torna seu o princípio hermenêutico de que a obra se engrandece ao longo dos tempos com as interpretações que dela forem dadas mas tem também patente a conexão existente entre o “efeito social da obra e o horizonte de expectativas dos destinatários historicamente situados” (2004, p. 30). De acordo com Silva o ato de leitura só se concretiza se ocorrer mutuamente uma interceção de dois policódigos: o do leitor e do recetor. Na verdade, confirma esta ideia salientando que a leitura do texto literário se efetua quando emerge “a fusão de dois horizontes: o horizonte implícito do texto e o horizonte representado pelo leitor no acto de leitura desse texto” (2000, p. 314). Mas o leitor não é tão-só “efeito da leitura de um único texto, nem se configura ex nouo e de raiz em virtude da leitura de cada texto, embora se modifique como entidade semiótica, em grau variável, em cada leitura que perfaz” (Idem, p. 315). Nesta lógica, a leitura é descoberta, invenção sempre renovada pelo leitor do sentido do texto que se caracteriza pela sua pluralidade (Horellou-Lafarge & Segré, 2007, p. 104). Na verdade, a descoberta do leitor como instância substancial e integrante do texto artístico torna-se um elemento crucial da estética da receção. O recetor do texto deixa de ser entendido como um simples destinatário inerte para passar a despontar como um agente ativo que coopera na elaboração de sentido, ou seja, deixa de existir uma imobilização de sentido e passa a ocorrer a movimentação do mesmo. Ainda a propósito das questões relacionadas com o leitor, Cerrillo acaba por sintetizar de forma simples a situação do leitor e do não leitor, salientando que 123 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo O leitor não nasce, faz-se; mas o não leitor também: fazemo-nos leitores ou não leitores com o passar do tempo, no decorrer de um processo formativo no qual intervém o desenvolvimento da personalidade, e no qual vivenciamos experiências leitoras motivadoras e desmotivadoras, quase sempre em dois únicos contextos, o familiar e o escolar (2006, p. 25). Depois de nos termos centrado com mais detalhe em torno da variável leitor, passamos agora a dissecar a variável texto o segundo elemento que mencionámos como integrante do processo de compreensão da leitura. Os fatores que influenciam a compreensão do texto são, por um lado, a estrutura do texto e, por outro lado, aquilo que se denomina como facilitadores do texto, que são próprios da comunicabilidade didática. Esses fatores objetivos, tal como podemos ver mediante a análise da Figura 2.4, são passíveis de ser classificados (Hernández Hernández & García García, 1991). Linguística Semântica Estruturas do texto Lógica Expressiva Teleológica Características gráficas Espaçamento Fatores objetivos do Extrínsecos Indicadores iniciais texto que intervêm na Perguntas associadas compreensão Observações à margem Facilitadores do texto Ilustrações Organizadores gráficos Integradores didáticos Intrínsecos Clarificadores semânticos Nível de estruturação Fonte: Adaptado de Hérnandez Hernández & García García, 1991, p. 99. Figura 2.4 Fatores objetivos da compreensão do texto 124 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Se nos detivermos na Figura acima deparamo-nos, desde logo, num primeiro plano com as estruturas textuais – condições linguísticas e semânticas, formatos proposicionais, expressivos e intencionais, usados pelo autor na organização das suas ideias – e de facilitadores do texto (Hernández Hernández & García García, 1991; Giasson, 1993). Estes últimos dividem-se, num segundo plano, em facilitadores extrínsecos e intrínsecos. Os primeiros estão inseridos no corpo do texto e dizem respeito a aspetos sensoriais caraterísticas gráficas como por exemplo partes do texto sublinhado ou negrito para destacar, ou o espaçamento. Ainda no que concerne a este tipo de facilitadores, é importante realçar que alguns destes elementos acabam por estar à margem do texto. Enquadram-se aqui informações como os índices, os títulos, os sumários, os guiões, os resumos, que compreendem informações que acabam por orientar a nossa leitura. Da mesma forma o facto de se colocarem perguntas em relação a determinado texto auxilia o leitor na aquisição da informação, uma vez que associa a pergunta ao texto que leu e estabelece, assim, determinadas relações (Hernández Hernández & García García, 1991). Ainda nesta sequência de reflexão em torno dos facilitadores extrínsecos, as ilustrações englobam, simplesmente, todas as pinturas, desenhos ou mesmo fotografias inseridas no texto e estas acabam por ser uma forma de apoio para aclarar e alargar não só os conteúdos do texto, mas também como uma forma de motivação para a própria leitura. Também as anotações à margem do texto os esclarecimentos, as definições e palavras-chave que podem surgir num dos lados do texto são relevantes enquanto elementos complementares do mesmo. Neste caso em particular as anotações acabam por funcionar, de certa forma, como uma espécie de síntese ou orientação do texto (Idem). O último dos elementos comporta os organizadores gráficos que funcionam como um complemento do texto e tornam mais evidentes os conteúdos e a própria estrutura do texto. Estes compreendem, por exemplo, os diagramas, os esquemas ou mesmo gráficos e são elementos que coadjuvam na organização do material e permitem em simultâneo a memorização imediata porque se torna numa forma mais fácil de assimilar ideias e mesmo a compreensão da informação (Hernández Hernández & García García, 1991). Por outro lado, se atentarmos mais uma vez na Figura 2.4, encontramos igualmente os facilitadores intrínsecos, sendo que estes se encontram no próprio corpo do texto e se relacionam com o seu conteúdo. Enquadram-se aqui os integradores 125 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo didáticos, os classificadores semânticos e o nível de estruturação do texto. Na realidade, na redação de um determinado texto não é suficiente que as ideias sobrevenham de forma sequencial ou coerente, são necessários, por vezes, outros indicadores que permitam alcançar precisamente essa compreensão. Daí a necessidade de recorrer aos integradores didáticos – frases ou fragmentos do texto que procuram alcançar e relacionar a informação. Estes têm como intento que o leitor consiga estabelecer a ligação entre cada peça do puzzle constituindo um todo, de modo a que se consiga situar no tema e compreendê-lo na globalidade, de forma integrada síntese, conclusão (Idem). No que aos clarificadores semânticos diz respeito, Hernández aponta distintas estratégias didáticas, quer em relação ao texto escrito quer em relação ao texto oral (cit. por Hernández Hernández & García García, 1991). Na realidade, o que se pretende é que as ideias expostas sejam claras. Para tal, o recurso à explicitação, à redundância, à ilustração analógica, à exemplificação e à simplificação informativa e ainda o afastamento de interferências ou ambiguidades são aspetos relevantes que contribuem para essa clarificação do texto (Idem). O último dos elementos que integra os facilitadores intrínsecos está associado ao nível de estruturação do texto. Tal como a própria denominação encerra, este refere-se à disposição e ordenação das ideias ao longo do texto e à natureza das suas relações, sequenciais e claras, de modo a permitir ao leitor um melhor acompanhamento da linha organizativa do tema em questão (Hernández Hernández & García García, 1991). A terceira variável deste modelo de compreensão diz respeito ao contexto, que encerra todas as condições em que o leitor se encontra quando entra em contacto com o texto, independentemente do tipo. O contexto acaba por se constituir como um fator externo ao texto, portanto, não se pode confundir este contexto com a conceção de contexto linguístico ou cotexto, apresentada por János Petöfi e outros linguistas (Silva, 2000). Importa agora aqui mencionarmos esta noção de cotexto ou contexto, fazer tãosó uma breve alusão a uma das suas funções principais e que está associada à “criação de efeitos de intra e intertextualidade, (…) conferindo a um texto a unidade de sentido indispensável à constituição da obra literária como um todo” (Ceia, n.d.). Não obstante, o contexto que aqui nos ocupa é outro e pode ser individualizado em três níveis distintos: contexto psicológico, contexto social e contexto físico (Giasson, 1993). 126 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Deste modo, pela própria denominação apercebemo-nos que o contexto psicológico se relaciona com o interesse pelo texto sobre o qual o leitor se debruça, a sua motivação e a sua intenção perante a leitura. Um indivíduo que até goste de ler, diante de uma ou outra leitura, numa determinada altura, pode não demonstrar motivação pelos mais diversos motivos: preocupação, frustração, vontade de estar noutro local. É importante também referir que a forma como o leitor encara o texto irá exercer influência sobre o modo como ele retém e compreende a informação desse mesmo texto. O contexto social tem a ver com as interações que ocorrem durante a leitura entre o leitor e o formador, por exemplo, ou entre esse leitor e os outros leitores. Fala-se, nomeadamente, de situações de leitura individual ou em grupo. O contexto físico, por sua vez, abarca as características físicas e ambientais que envolvem a leitura, sendo que o ruído ou a temperatura ambiental, por exemplo, são elementos perturbadores neste contexto (Giasson, 1993). Considerando as três variáveis que expusemos anteriormente – leitor, texto e contexto –, é de ressalvar que o leitor vai fazendo uma reconstrução do sentido do texto, de acordo com as suas competências comunicativas. Assim, embora a qualidade dos conhecimentos que ele já detém seja um fator fulcral para a compreensão do texto, a leitura é também um fator que concorre para o aperfeiçoamento e consubstanciação desses conhecimentos. Por tudo isso, “o acto de ler não cabe numa definição única, na medida em que tal seria espartilhar uma realidade fértil e complexa” (Vila Maior, 2003, p. 39). 2.5. As práticas e as competências da leitura nos adultos A intensidade e os modos de relacionamento que cada pessoa detém com a leitura ao longo das várias etapas da sua vida estão na base da formação de práticas mais ou menos estruturadas e é precisamente a incorporação de disposições nos processos de socialização em circunstâncias de vida particulares que se manifesta em escolhas sociais diversas, que, por sua vez, nos remetem para gostos e consumos específicos (Freitas, Casanova & Alves, 1997). Quando falamos de práticas de leitura não podemos descurar que existe uma forte analogia entre estas e o capital escolar dos indivíduos (Lahire, 1993; Bourdieu, 2005, 2007). Como é que os indivíduos com baixo capital escolar lidam com a informação 127 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo escrita? Havendo um baixo capital escolar, também as práticas de leitura são mais diminutas. Não se pode olvidar que “durante um certo período da existência de cada um, [a leitura] foi a única prática de durabilidade obrigatória”, mas é preciso que ela se prolongue para lá da escola e se torne uma prática efetiva (Barbier-Bouvet, cit. por Freitas & Santos, 1992, p. 69). Devido a este sentido de obrigatoriedade atribuído pela escola, a leitura acaba por ser encarada, muitas vezes, como uma experiência árdua e desprovida de qualquer prazer. Na verdade, muitas pessoas leem porque precisam, mas não vivem aquilo que leem. Seguramente que a leitura não é de todo um prazer quando surge como imposição, quando é concretizada contra a própria vontade ou simplesmente por uma necessidade. A leitura e o livro são vistos como um mero objeto ou atividade escolar, ou seja, um simples instrumento de aprendizagem. Angers tece, na sua obra, um comentário que se adequa ao sentimento que fomos observando no contacto inicial com algumas destas mulheres enquanto formadores – “Para mim, livros (…) eram sinónimo de trabalhos da escola e de leitura árida e ponto final” (2008, p. 100). Quando se fala acerca das práticas de leitura da população portuguesa, de uma forma geral, deparamo-nos com algumas pesquisas extensivas onde encontramos, precisamente, uma tipificação dessas práticas (Freitas; Casanova & Alves, 1997; Freitas & Santos, 1992; Lopes & Antunes, 2000, 2001; Neves, 2011). Mediante estas pesquisas é possível percecionar algumas tendências em que se aferem, nomeadamente o decréscimo gradual dos leitores de livros e o acréscimo dos leitores de jornais, vincando-se o aumento dos leitores de revistas e há ainda a referência ao facto de existir alguma continuidade de uma geração para outra, ou seja de pais para filhos, no que concerne à relação com as práticas de leitura (Freitas; Casanova & Alves, 1997). No início do século XXI e de acordo com pesquisas extensivas mais recentes, verifica-se uma ampliação dos leitores em relação aos 3 suportes – livros, revistas e jornais −, com destaque para estes últimos, assim como os leitores cumulativos, que se rodeiam dos diferentes suportes (Neves, 2011). É também relevante neste estudo salvaguardar que os níveis assim como o perfil social dos leitores oscilam de acordo com o suporte em causa (Idem). A leitura assoma como cada vez mais fundamental em diversos contextos, mas, ao mesmo tempo, fraciona-se e separa-se, passando a estar atracada em variados suportes (Ávila, 2008). São múltiplas as situações e os contextos do quotidiano em que se faz um 128 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo apelo à leitura nos mais diversos supedâneos, além do livro, os quais Boaventura de Sousa Santos denominou como “artefactos da cultura pós-moderna” (2002, p. 84). Falamos, nomeadamente, da leitura de legendas ou notas de rodapé de um filme, de uma notícia na televisão, dos ingredientes e preparação de uma receita, de um jornal ou revista, de folhetos publicitários, de formulários diversos, de recibos, de cartas de diferentes entidades, as mensagens, de manuais de instruções e se pensarmos nas novas tecnologias temos também a internet, com os e-mails, os blogs, o Facebook, o Messenger e uma panóplia de informação acessível apenas com um clique. Parte destas leituras acabam por ter um pendor mais “instrumental” porque, tal como acentua Cerrillo, “lê-se para outras coisas”, nomeadamente para sabermos como funciona algo, para sabermos aquilo que necessitamos, para sabermos o que sucedeu, por curiosidade, entre outros (2006, p. 34). Conquanto ao longo desta pesquisa tenhamos em conta a presença de todos estes suportes no quotidiano do nosso objeto empírico, pretendemos aqui centrar-nos sobretudo numa noção mais direcionada para a leitura de livros, uma vez que foi, precisamente, essa a ausência que sentimos no quotidiano daquelas mulheres enquanto formadores. Uma multiplicidade de outros suportes foi estando, mais ou menos, presente nesse dia a dia, nas mais distintas situações, nomeadamente em termos profissionais ou familiares, mesmo sem se aperceberem. Todavia, é importante percebermos se essas práticas passam pela leitura de livros, uma vez que muitas das dificuldades de compreensão leitora se encontram na vacuidade de uma prática de leitura continuada (Prole, 2005). No inquérito sobre os hábitos de leitura dos portugueses constatou-se que para a não-leitura o fator tempo é uma das principais razões apresentadas devido a uma saturação de obrigações quotidianas, sendo mais referenciado pelas mulheres, assim como o facto de preferirem fazer outras coisas que não a leitura (Freitas & Santos, 1997). Neste caso há mil e uma tarefas que se vão acumulando, desde o trabalho, aos filhos, passando pela casa. Aliás, o tempo foi, precisamente, aquando do início daquela formação um dos motivos apresentados por estas mulheres para essa ausência de leitura. Mas, para além de uma leitura em busca de informação, onde reside aquela leitura que se faz por fruição e que nos leve a fazer dela uma prática? Muitos podem ter-se fartado realmente do livro enquanto objeto ou instrumento de aprendizagem durante uma determinada fase da sua vida. Pensando nesse contacto inicial com este grupo, era 129 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo perfeitamente visível que algumas delas não tinham chegado até então a ter um verdadeiro contacto com o livro que lhes permitisse criar determinados laços com a leitura. Para que a leitura, neste caso do livro, não seja um fardo ou uma rotina é necessário que haja ferramentas que conduzam ao desenvolvimento do gosto e do prazer por esse momento partilhado entre o leitor e o livro, porque o gosto se nutre do “insólito e da imaginação” (Morais, 1997, p. 15). É fundamental que ocorra um encontro crucial com o livro, com um determinado género, tema, personagem, estilo, ao ponto de haver uma envolvência e uma projeção do leitor nessa leitura porque gostar de ler não é um dom inato, é algo que se adquire e que se alimenta e que nos permite um certo deleite do ponto de vista estético (Poslaniec, 2004; Nunes, 1998; Mialaret, 1974). Tudo isto porque ler é despertar, é entrar em cada uma das páginas do livro e descobrir tudo aquilo que está por detrás. Aliás, pode-se até estabelecer uma comparação entre um livro e uma caixa ou um baú. Embora aparentemente possam não ter nada a ver um com o outro, consideramos que esta ligação faz todo o sentido. Tal como nutrimos desejo e curiosidade pelo que o baú possa conter, também podemos sentir tudo isso quando abrimos um livro e nos deparamos com uma série de personagens. De certa forma, é como se essas personagens que estavam escondidas no livro pudessem sair dele e ser desfrutadas por cada leitor, independentemente de ser criança ou adulto porque o leitor se forma numa relação direta com o livro. Aliás, após a descoberta do prazer pela leitura de um determinado livro, podem partir para novos rumos, entrando em livros mais exigentes, mais difíceis (Poslaniec, 2004). Não sendo a leitura meramente intelectual, uma vez que a parte emocional e afetiva estão muito presentes neste processo, não podemos descurar que ela pode suscitar um turbilhão de sentimentos, por exemplo podemos rir ou chorar, podemos ter momentos de ansiedade, reavivar lembranças ou memórias (Vale, 1999, p. 54). Por tudo isto, cada leitor é distinto do outro, uma vez que a forma como vai compreender o texto vai depender dos seus conhecimentos, de todas as experiências precedentes, dos seus valores socioculturais e também do lugar que ocupa na sociedade. Por tudo isso ela é uma “prática complexa e multifacetada”, uma vez que, ao mesmo tempo que diverte, forma intelectual e moralmente cada leitor, amplifica a capacidade de imaginação, bem como a capacidade crítica, fomenta a aquisição de cultura, a autonomia pessoal e a própria relação social (Antão, 1997). Tal como salienta 130 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Cerrillo, podemos até aprender a ler, mas a experiência da leitura não é algo que se simplesmente se assimila, ela alcança-se pela “emoção, pelo contágio e pela prática” (2006, p. 33). Quando falamos do prazer da leitura há algo que importa ter em conta e que tem a ver com o facto de não podermos ter o desejo de ler se não soubermos o que isso é, mas há um aspeto extremamente importante que contribui para impulsionar esse desejo: ouvir uma leitura em voz alta, que é, ao mesmo tempo, forma de expressão, lugar habitado de significados e uma forma deleitosa que nos afaga nessa partilha do prazer (Morais, 1997; Antão, 1997; Castro, 2007; Sim-Sim, 2006). Na realidade, ouvirmos alguém ler em voz alta pode proporcionar-nos deleite e despertar em nós o desejo. Quem lê em voz alta acaba por “oferecer tesouros” e Pennac considera que para “abrir o apetite de um leitor, nada melhor do que dar-lhe a cheirar uma orgia de leitura” (2002, p. 138). Outrossim, de acordo com Morais, a audição da leitura através da voz de outra pessoa tem uma tripla função: cognitiva, linguística e afetiva (1997). A nível cognitivo revela-se uma janela de novos conhecimentos, além de ajudar a uma melhor interpretação, a uma melhor estruturação e assimilação da informação e ainda a uma melhor composição de esquemas mentais. No concernente à função linguística, a audição da leitura possibilita a clarificação de um conjunto diversificado de conexões entre a linguagem escrita e a linguagem falada, particularmente o sentido da leitura. Mediante a função afetiva ocorre uma descoberta do mundo da leitura através da voz, embebida por melodias distintas e plena de significado (Idem). Estas três funções fundem-se em algo tão simples como: se aquele que lê “se recusa a habitar a sua leitura, as palavras mantêm-se letras mortas, e isso sente-se”, mas se, pelo contrário, se ele lê e o prazer que tem prepondera nessa leitura, então também aqueles que o ouvem vão entrar nessa leitura através da voz que escutam e, tal como aquele que lê, vão desfrutar desse mesmo prazer (Pennac, 2002, p. 186). Cerrillo, Larrañaga e Yubero fazem alusão à expressão “prazer de ler”, referindo que a leitura só se converte realmente em prazer quando é ativa, criativa e habitual (2002). Para alcançar esta etapa é necessário percorrer um longo caminho, no qual é preciso rigor, solidão, disciplina e perseverança. O prazer pela leitura constrói-se paulatinamente. Pretende-se que os adultos disponibilizem os meios necessários para que as crianças possam encontrar esse prazer. Conquanto, é também imprescindível que 131 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo outros adultos ou instituições façam o mesmo com estes adultos. Este foi, precisamente, o caminho que trilhámos ao longo daquela formação. Aliás, considerámos igualmente pertinente inflamar nelas esse sentimento para que pudessem da mesma forma partilhálo não só com os filhos ou familiares mais novos, mas também com todas as crianças das instituições onde pudessem vir a trabalhar. Não descuramos que nesta relação livro/leitor, o tempo que cada leitor dedica à leitura é seu porque o faz segundo o seu ritmo e assim percorre um caminho de descoberta, independentemente do local em que o faça. Também as maneiras de ler dependem das condições de leitura. Além disso, não esqueçamos que objeto livro circula de mão em mão, muda-se, empresta-se, oferece-se (Horellou-Lafarge & Segré, 2007). As competências podem e devem ser compreendidas enquanto disposições para ação e não tão-só como um conjunto de comportamentos, elas constituem habitus ou esquemas de ação (Bourdieu, 1982, 2005, 2007; Lahire, 2003). Nesta linha, a literacia, entendida enquanto competência, desponta como um recurso ao dispor dos indivíduos e que estes propenderam a convocar em distintas conjunturas. Não podemos cogitar, contudo, que as competências de leitura se limitam a um simples agrupar de comportamentos ou de práticas, mas através dessas práticas mobilizam-se competências e não podemos descurar que o desenvolvimento das proficiências leitoras constitui uma tarefa para a vida (Ávila, 2008; Viana, 2005). A literacia da leitura corresponde, assim, à capacidade de cada pessoa perceber e utilizar textos escritos e pensar com detenção sobre eles, de modo a atingir os seus propósitos, a ampliar os seus próprios conhecimentos e competências e a interagir de modo ativo na sociedade (Prole, 2005). 2.6. A configuração das dimensões de análise que nos norteiam entre trajetórias de vida, práticas e competências de leitura na conjuntura do objeto teórico Na sequência daquilo que temos vindo a explanar em torno da leitura, nomeadamente no ponto anterior, consideramos que é pertinente ainda acrescentar que o prazer da palavra se descobre “no espaço de afectos que conseguimos construir em torno do objecto livro, e em torno do jogo, do riso” (Taquelim, 2005, p 93). Na verdade, 132 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo “ler é uma experiência social que, estimulando e desenvolvendo a curiosidade, nos torna argutamente atentos às emoções, permitindo-nos encontrar o Homem na pluralidade dos seus aspectos e vivências” (Rolande Causse, cit. por Azevedo, 2007, p. 150). Pensando precisamente na palavra como esse “espaço de afectos” recuamos um pouco no tempo e refletimos acerca de todo o trabalho que desenvolvemos, entre 2007/2008, no concelho de Vagos, com o grupo do curso EFA Ação Educativa B3, que fazia parte de uma camada da população mais descapitalizada do ponto de vista cultural e que implicou o desenvolvimento de todo um processo de ressocialização (Taquelim, 2005, p 93). Na verdade, a nossa grande aposta, aquando daquele curso, com aquele grupo centralizou-se na leitura, dadas as inúmeras dificuldades e o notório distanciamento que se verificava à partida. Considerando que com esta investigação pretendemos dar continuidade a esse projeto, é relevante para a reflexão em torno das dimensões analíticas incidirmos o enfoque nos pontos de chegada da investigação inicial para depois refletirmos em torno daquilo que pretendemos com a investigação que ora nos ocupa. Embora com este trabalho desenvolvido à volta da leitura pretendêssemos ajudá-las a descobrir o prazer da leitura através das palavras, incrementar práticas, ajudar a ultrapassar dificuldades e com isso contribuir para a ampliação do nível de competências, considerámos que tal estímulo também as poderia auxiliar no trabalho ulterior a desenvolver com crianças. No final da formação apercebemo-nos que as formandas, a partir da dinamização de distintas estratégias criativas, aplicadas nas sessões de LC, desenvolveram a sua capacidade de interpretação, bem como o interesse pela leitura. Certamente, no final ainda persistiam dificuldades mais proeminentes em cinco das formandas. Contudo, as dificuldades patentes requeriam um trabalho continuado que ultrapassava as barreiras daquela formação que tinha limites temporais fixos (Brito, 2008). Verificámos também que, diante da pluralidade de estratégias criativas, as formandas se apresentaram recetivas às inovações, verificando-se alterações no seu quotidiano relativamente à leitura, não só em relação a elas, mas também aos próprios filhos e na relação que se criou através da leitura. Neste âmbito, constatámos uma alteração em relação ao panorama inicial, com os baixos níveis de literacia da leitura, notando-se uma maior envolvência na globalidade das atividades em sensivelmente dez dos elementos do grupo. Com efeito, pelo menos em cinco dos elementos do grupo, de forma mais proeminente, essas alterações conduziram a resultados muito positivos. 133 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Falamos não só do desenvolvimento de práticas de leitura, mas também de melhorias quanto à expressão escrita e oral e também uma maior autonomia. Isto fez com que praticamente metade do grupo, a partir do momento em que se tornou mais confiante e autónomo, propusesse novas atividades, passando a ter um papel mais ativo e dinâmico na criação/ execução das atividades. Atendendo à diversidade de estratégias desenvolvidas, o grupo começou a ter uma posição mais crítica em relação àquilo que gostava ou não, o que lhes permitia selecionar, mormente, as leituras (Brito, 2008). No que concerne às atividades em que era necessário um maior envolvimento e exposição face a outros públicos houve, na quase totalidade do grupo, um crescimento quanto à autonomia, diminuindo um pouco a dependência em relação ao formador. Além disso, o medo e a insegurança iniciais evolaram-se paulatinamente, tendo em conta que à medida que os próprios formadores foram confiando e acreditando nelas, a autoconfiança e a autoestima foram aumentando (Idem). A motivação exercida sobre elas para um processo de mudança perante a leitura contribuiu para o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Falamos não só do seu desenvolvimento e crescimento individual e em grupo enquanto sujeitos sociais, mas também de tudo o que conseguiram assimilar a partir das experiências que vivenciaram. O módulo de LC procurou ser um suporte em todo este processo, proporcionando-lhes os meios necessários para que elas, por iniciativa própria, continuassem a desenvolver competências e práticas (Idem). De acordo com Guerra, a nível analítico, “a necessidade de comparabilidade entre os sujeitos e o evitamento da descrição que prepara a interpretação exigem um questionamento complexo que vai muito para além do senso comum” (2010, p. 53). Voltando ao presente e recuperando essas mulheres, consideramos, no âmbito desta investigação, quatro dimensões de análise relacionadas entre si – trajetória familiar, trajetória escolar, trajetória profissional e práticas de leitura –, analisadas sob parâmetros temporais distintos – anteriormente a 2007 e após 2008, sendo que o período de formação 2007/2008 é também importante para compreendermos o antes e o depois, até porque aquilo que pretendemos é analisar a evolução no tempo do nosso grupo. Saliente-se que se pretende estabelecer uma relação entre as distintas trajetórias procurando relacioná-las e compreender de que modo é que estas contribuem para o desenvolvimento de competências de leitura, tal como se pode constatar através da Figura 2.5. 134 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Trajectória escolar Trajectória familiar Competências de leitura - literacia da leitura Trajectória profissional Práticas de leitura Figura 2.5 – As dimensões de análise Pensando no trabalho que foi desenvolvido ao longo de todo o curso e naquilo que alcançámos há interrogações que se levantam agora e que nos levam a tentar compreender como se concebem disposições duráveis que impulsionem os níveis de literacia da leitura através dos cursos EFA. Embora não pretendamos com isto generalizar, é importante percebermos como é que esse trabalho pode ser concretizado no terreno, fornecendo pistas aos profissionais que contactam com estes públicos. Estando numa posição privilegiada pelo facto de conhecermos os pontos de chegada de todo um trabalho construído num lapso temporal concreto anterior a este permite-nos agora partir desses pontos com um conhecimento mais fidedigno e mais alargado para conhecermos os seus percursos. Deste modo, através dos discursos em diacronia destes atores pretendemos compreender a sua trajetória familiar, através da análise da sua origem familiar e do seu agregado inicial, passando pelas diferentes fases da sua vida, até ao alargamento do seu próprio agregado, procurando destacar os aspetos mais proeminentes em cada um destes momentos e que podem, de algum modo, condicionar as restantes trajetórias. Há interrogações que se levantam após o encerramento do curso e que nos levam a procurar respostas. Se tivermos em consideração, por exemplo, a insegurança e a baixa autoestima verificadas aquando do início do curso, podemos questionar-nos sobre o que 135 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo pode, em algum momento destas trajetórias, ter conduzido a essa situação. De que forma é que a sua trajetória familiar pode ter despoletado consequências nos restantes percursos? Qual a importância atribuída pelos diferentes sujeitos às distintas fases da sua vida? Que lugar ocupa a leitura no seio familiar? O curso acarretou alguma alteração no seio familiar? De que modo é que este exerceu influência sobre a família após o seu termo? A trajetória escolar encerra outro dos eixos analíticos que pretendemos dissecar numa perspetiva diacrónica. Aspiramos compreender a regularidade/ irregularidade destes percursos até ao momento em que estes atores se cruzam e a posteriori de que modo é que estes percursos transcorreram. No âmbito da trajetória escolar importa ainda ver se num determinado tempo, vivido individualmente, desde 2008 até ao presente, houve da parte delas alterações relativamente a esse percurso e o que pode ter ou não afetado essas decisões. A propósito da interseção destes percursos individuais em torno do curso EFA B3, entre 2007 e 2008, na sequência da sua trajetória escolar, tentamos agora compreender também os efeitos do curso sobre o seu sistema plural de disposições, para podermos perceber as dificuldades e os aspetos que poderiam ter sido mais desenvolvidos (Lahire, 2003). Assim, pretendemos, agora, continuar a acompanhar este grupo e tentar perceber de que forma as experiências socializadoras o influenciaram, tendo em conta a formação recebida e o hiato temporal que entrementes se gerou. Nesta dimensão várias questões se colocam relativamente aos parâmetros temporais em análise. Até que ponto existem discrepâncias entre as habilitações destas mulheres e aquelas que os seus progenitores detinham? Foi a escola desvalorizada enquanto projeto estendido no tempo pela família? Conduziu isso ao abandono da escola? Que relação se pode antever entre a dimensão económica familiar e esse abandono? Qual a importância do capital escolar em distintos momentos temporais? De que forma é que o curso de Educação e Formação de Adultos que frequentaram condicionou as suas trajetórias? As expectativas e representações criadas ao longo do curso e em torno deste foram alcançadas? Ocorreu, de algum modo, uma regressão disposicional? Tal como acentua Lahire, “não incorporamos um hábito durável em apenas algumas horas e certas disposições constituídas podem enfraquecer ou apagar-se pelo facto de não encontrarem condições para a sua actualização, e às vezes mesmo pelo facto de encontrarem condições de repressão” (2005, p. 21). 136 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo As trajetórias profissionais encerram em si também um leque alargado de informações que nos permitem compreender não só factos relacionados com as áreas em que estas têm trabalhado, mas também as aspirações destas mulheres face a esta trajetória, nos distintos momentos de que falámos inicialmente. Aliás, almejamos compreender as expectativas e as representações destas mulheres face ao curso EFA Ação Educativa B3 que frequentaram, analisando, através do tempo, diferentes percursos de aprendizagem na idade adulta, entre eles os profissionais. Importa aqui perceber um antes e depois do curso e analisar de que modo é que este pode ter alterado os seus quotidianos profissionais, através do desempenho de um novo tipo de funções. Terá este curso sido um mero interregno em termos profissionais? Terão estas mulheres, face também a condicionantes socioeconómicas e ao próprio panorama nacional, procurado um trabalho semelhante àquele que tinham anteriormente ao curso? Que obstáculos podem ter condicionado estas trajetórias? Como é que as baixas habilitações condicionam o acesso ao emprego ou mesmo à progressão profissional? Por fim, pretendemos analisar de que modo as práticas de leitura, que conduzem ao desenvolvimento de competências, encaixam ou não nos seus percursos antes de 2007 e após 2008. As trajetórias de vida, o meio social e o género são fatores importantes para essa análise. Aliás, uma análise panorâmica sobre as práticas de leitura do grupo em estudo e os modos de relação com a leitura, permitir-nos-á também identificar dificuldades patentes e latentes em relação à mesma. Intentamos compreender o que modificou qualitativamente nestas mulheres na sua relação com a leitura, tendo em conta a formação recebida e o lapso temporal existente. De acordo com Ávila, depois da escola, o contexto profissional é “reconhecido como um dos domínios que mais pode promover, e requerer, o contacto com a informação escrita, através dos mais variados suportes” (2008, p. 73). Não obstante, frisa também que a “leitura pessoal é a que maior importância tem ao nível da construção da identidade pessoal”, até porque a leitura e a escrita são “actos individuais, que encerram um processo pessoal de construção de significados, mas são também, e essencialmente, actos sociais, quando se partilham e contribuem para o desenvolvimento colectivo” (Ávila, 2008, p. 75; Sardinha & Relvas, 2009, p. 157). Neste sentido podemos questionar-nos se terá a leitura passado a ter uma maior importância no quotidiano pessoal e profissional destas mulheres ou, pelo contrário, 137 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo poderemos falar de um retrocesso das disposições. Considerando estas trajetórias, como interferem os diferentes contextos de vida de cada uma destas mulheres no desenvolvimento das suas competências de leitura? De que forma se reflete nos dias de hoje a influência da leitura sobre os filhos? O contacto estabelecido com as bibliotecas no decorrer do curso foi pautado somente por estes momentos fugazes ou continua a ser uma prática frequente no eixo temporal que decorreu desde o final do curso? Que fatores vêm reforçar ou limitar as suas práticas e os seus modos de relação com a leitura? Além disso, como é que o meio, em particular os concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos, contribuem no quotidiano com políticas públicas de promoção da leitura para estes públicos, de modo a colmatar as necessidades destas mulheres? A resposta às questões que fomos paulatinamente lançando ao longo desta reflexão acabam por estar presentes na análise em profundidade dos percursos de vida de cada uma destas mulheres e com quem traçámos esta caminhada, mais adiante. Interessa-nos, portanto, fazer uma leitura sociológica em torno destas dimensões que atravessam as trajetórias destas mulheres em concreto, uma vez que consideramos que a reflexão sociológica em torno das práticas de leitura e de escrita não só insere uma “brecha na unidade da teoria da prática”, como desempenha “um importante contributo para as discussões teóricas sobre as sociedades contemporâneas” (Lahire, 2003, p. 181; Ávila, 2008, p. 81). 2.7. Entre as práticas de leitura e as práticas de escrita no quotidiano dos indivíduos No homem sempre esteve patente a necessidade de comunicar e interagir com os outros. Nos primeiros tempos comunicava com aqueles que lhe estavam próximos através de grunhidos ou de bramidos (McMurtrie, 1997). Naturalmente, socorria-se também, para transmitir as suas ideias, como apendículo do som, dos gestos e da mímica. Mesmo depois de articular os sons continuam a recorrer ao gesto, tal como acontece nos dias de hoje. Não descuramos o recurso à linguagem não-verbal, até porque esta pode “gerar mais impacte do que as próprias mensagens verbais” (Rego, 2007, p. 147). Contudo, a linguagem e o som não bastam para satisfazer as suas necessidades naqueles tempos. Como tal, recorria a desenhos ou até mesmo gravuras 138 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo para se poder expressar e esta foi a primeira tentativa para fazer com que o pensamento e o sentimento se tornassem visíveis de uma forma mais permanente, através do nascimento da “pictografia”, em que as paredes das cavernas apareciam pintadas com “touros e bisontes, cavalos e renas” (McMurtrie, 1997; Quelhas, 2008, p 67). Há uma série de marcos que é necessário ter em consideração quando falamos da escrita e que passamos a mencionar de forma quase fotográfica. Deste modo, falar do aparecimento das placas de argila na Mesopotâmia no 4.º milénio a.C., do despontar de sistemas de registo mais “flexíveis e simbólicos”, tal como a escrita hieroglífica no Antigo Egito ou mesmo dos carateres chineses, no 3.º milénio a.C., da invenção do alfabeto pelos fenícios em 1200 a.C. e das ulteriores alterações com o aparecimento de novos alfabetos, sem se olvidar, conquanto, o enorme contributo de Gutenberg, com a imprensa, em meados do século XV, leva-nos a considerar estes como alguns dos momentos-chave no próprio crescimento do homem e que acarretaram uma enorme mutação no que diz respeito às feições da própria comunicação (Sim-Sim, 2006, p. 7; McMurttrie, 1997; Horellou-Lafarge & Segré, 2007; Ávila, 2008). Aliás, a invenção da escrita patenteia “a possibilidade de utilização de um meio de comunicação à distância, ou seja, a separação física entre emissor e receptor, sem recurso a qualquer tipo de contacto (visual ou sonoro) entre eles” (Ávila, 2008, pp. 43-44). Os homens do início do séc. XV sonhavam com um processo que permitisse avultar, a baixo custo, os exemplares de um mesmo livro. Sem este problema, ninguém se teria preocupado em procurar a solução: a imprensa. Mas continuou-se a escrever à mão, pois o Ocidente ainda não dispunha de todos os recursos indispensáveis à adoção de um processo de reprodução mecânica. Aquilo que se pode cognominar como indústria tipográfica era, desde a sua origem, sob a forma de artesanato, tributária de uma matéria-prima sem a qual nada era possível no seu domínio o papel. A invenção da imprensa teria sido ineficiente se este novo suporte do pensamento, proveniente da China, não tivesse surgido na Europa porque “o papel, mais do que qualquer outra coisa, contribuiu para o grande êxito da imprensa, esta por sua vez universalizou o seu emprego” (McMurttrie, 1997, p. 83). Foi, então, no século XII que se assistiu ao advento desta nova espécie de pergaminho trazido pelos mercadores que mantinham relações com árabes. Apesar de inicialmente não parecer ter as mesmas qualidades externas de um pergaminho, pois era mais fino e frágil, o papel ganha terreno e começam a instalar-se, em Itália, os primeiros moinhos 139 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo de fabrico de papel por volta de 1276 e acaba, paulatinamente, por se estender ao resto da Europa e o papel começa, assim, a comutar o pergaminho (McMurttrie, 1997). Em Portugal, de acordo com documentos constantes na Torre do Tombo, o uso de papel remonta ao reinado de D. Dinis, uma vez que terá sido este, em 1305, que estabeleceu que os tabeliães escrevessem as suas notas recorrendo ao papel em detrimento do pergaminho como até aí havia acontecido (Idem). Na primeira metade do séc. XV, os investigadores tentavam encontrar um meio cómodo de multiplicar os livros, que fosse suscetível de ser utilizado de maneira mecânica, ou seja, compor uma página por meio de carateres móveis independentes. Neste domínio, beneficiariam da experiência dos ourives e dos gravadores de medalhas e de moedas. Nesta altura, conhecia-se já não só a técnica de fundição em moldes de metal ou de terra, como também a da cunhagem. Estava a conceber-se a ideia de adaptar esta técnica às necessidades da imprensa, tendo-se tateado durante muito tempo antes de chegar à solução definitiva. As gravuras de metal acabaram por ser substituídas pelas xilogravuras, o que permitiu uma maior facilidade de impressão. Começa a haver também, posteriormente, uma preocupação com o embelezamento e a própria decoração dos livros, nomeadamente através das ilustrações e da própria ornamentação, nomeadamente das letras (McMurttrie, 1997). Com o decorrer dos séculos, o livro foi-se desenvolvendo até nos chegar às mãos nos moldes que hoje conhecemos e foi precisamente essa evolução no âmbito das técnicas de fabrico e de propagação dos textos impressos que acabou por tornar possível o desenvolvimento da prática da leitura (Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Não obstante, não podemos de todo olhar para essa evolução de forma estanque ou alheada do seu contexto cultural, social e económico (Idem). Nos nossos dias, o leitor que abre um livro sabe que encontra imediatamente, a partir da primeira página, todas as informações que o conduzem ou não para a leitura: o nome do autor, o título da obra, o lugar de edição e o nome do editor, a data de publicação. É inegável que, ao longo dos tempos, o livro, através da palavra escrita, se arrogou como uma das maiores fontes do saber. Pelo seu caráter duradouro e pelo facto de ser, enquanto objeto, estável e constante, o livro permanece ainda, atualmente, como um veículo de inoculação de uma memória cultural de um povo, de disseminação de princípios e valores humanos, de preservação do conhecimento e também como forma de entretenimento em espaços de lazer. 140 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Todavia, quando falamos do livro, reportamo-nos à leitura. Esta conglutina algumas funções capitais da sociedade, quer a nível moral, cultural, social ou mesmo em relação aos variados saberes. A leitura, enquanto prática social, é sempre um meio e nunca um fim. Acaba por se constituir como um dos principais instrumentos que possibilita ao indivíduo situar-se com os outros. Nas sociedades atuais, a leitura é uma competência basilar, sendo que uma deficiente capacidade da leitura compromete o sucesso académico e social de cada indivíduo, dado que esta, para lá da sua função utilitária é um fator de socialização e de reconhecimento social. Tal como ler, escrever também não pode ser considerada uma atividade tão-somente mecanizada, não se confinam em técnicas e habilidades de descodificação de palavras (Vitorino, 2007). Consultamos mais uma vez o dicionário de Língua Portuguesa, disponível on-line, e escrever surge definido como “pôr, dizer ou comunicar por escrito; encher de letras; compor, redigir; ortografar”, enquanto no dicionário impresso, numa versão mais antiga, considera-se que escrever é “representar por meio de caracteres gráficos; compor (uma obra literária); redigir; narrar; ortografar” (Dicionário Priberam; Costa & Melo, 1997, p. 733). Estabelecendo um paralelismo entre as duas definições, constatamos que elas pouco diferem no essencial. O “carácter visual da escrita” só é percetível através do leitor, ou seja, da leitura que este faz do texto escrito (Vitorino, 2007, p. 11). Daí que não possamos desagregar estes dois conceitos porque a noção de leitura está associada à noção da palavra, neste caso da palavra escrita. Não podemos esquecer que se o domínio da leitura implica um processo constante, também a escrita nunca é total, implica um processo de aprendizagem continuado e durável no tempo e que o ato de ler e escrever servem, essencialmente, para comunicarmos, para expressarmos ideias, experiências, opiniões, sentimentos, fantasias, para termos acesso àquilo que outros viveram, cogitaram, sentiram ou opinaram (Cerrillo, Larrañaga & Yubero, 2002) A leitura e a escrita não são tão-só atos individuais, que abarcam um processo pessoal de construção de significados, mas são também, particularmente, atos sociais quando se compartem e concorrem para o desenvolvimento coletivo (Sim-Sim, 2006; Sardinha & Relvas, 2009). É fundamental termos em consideração que a leitura funciona como uma maisvalia para o desenvolvimento da escrita, contudo não podemos olvidar que a escrita é igualmente um contributo substancial para a aprendizagem da compreensão da leitura 141 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo (Balça, 2007). A escrita não deve ser encarada meramente como um produto, mas deve considerar-se como um processo que, paulatinamente, se vai edificando. Para que se possa proceder a essa estruturação é necessária uma planificação das ideias a transmitir, redigir o texto e revê-lo. Além disso, a palavra impressa permite retroceder vezes sem conta nos enunciados, ponderando, reformulando, contestando, adotando ou simplesmente rejeitando as ideias apresentadas (Mineiro, Bemfica & Cardoso, 2010). Bresson salvaguarda que a escrita é uma codificação da linguagem oral, o que não significa que a língua escrita seja uma mera cópia da oralidade, uma elementar repetição de fórmulas, nem muito menos um simples agregar de fonemas e grafemas no papel em branco, ela implica a produção e a perceção de uma imensidade de novas mensagens (2003; Ferreiro & Teberosky, 1986; Jolibert & Gloton, 1978). Se pensarmos no dia a dia tal não é possível porque existem pontos distintos entre a oralidade e a escrita, em que esta última exige uma estruturação mais cuidada. A escrita, tal como salienta Lahire, decompõe a “cadeia sonora, o fluxo contínuo de enunciados orais ou signos descontinuados e leva a tomar consciência dessa realidade a que chamamos «palavra» e que não preexistia à sua descoberta pela escrita” e cada indivíduo aprende a arquitetar, a debelar e a reorganizar letras dispersas para metamorfoseá-las e arrecadá-las numa lista de palavras (2003, pp. 135-136). A promoção do desenvolvimento das práticas de leitura e de escrita provoca o desenvolvimento do conhecimento explícito, formal, claro, regrado, fácil de ser comunicado (formalizado, por exemplo, em textos, desenhos, esquemas) e na prática da oralidade (Balça, 2007). Há claramente diferenças entre os usos, a frequência e até mesmo no domínio da escrita pelos atores sociais nas sociedades atuais. Deste modo, é necessário ter em conta que “as técnicas de objectivação do tempo, da linguagem, do espaço” são, não só incutidas pela escola, mas também acabam por ser “quotidianamente utilizadas pelos actores na sua vida familiar, pessoal, profissional, lúdica” (Ávila, 2008; Lahire, 2003, p. 182). Se pensarmos nas práticas de escrita no âmbito profissional torna-se percetível que estas constituem nos dias que correm “competências de processamento de informação necessárias (e exigidas) a uma proporção cada vez maior de trabalhadores” e essas exigências fazem com que haja da mesma forma cada vez maior competitividade e os indivíduos têm de colocar as suas fasquias cada vez mais altas para poderem fazer face às constantes exigências, até 142 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo porque a escrita é “o tipo mais elevado e complexo de comunicação” (Ávila, 2008, p. 77; Lerner, cit. por Rebelo, 1992, p. 128). A passagem de uma tradição de oralidade para uma tradição escrita não tem somente a ver com uma alteração no modo de comunicação e de memorização (Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Ela acaba por acarretar uma série de alterações, dado que permite também uma maior reflexão antes de as palavras passarem para o papel. Se a oralidade é um processo imediato, o mesmo não acontece com a escrita. A leitura e a escrita são inseparáveis, afinal todos leem e todos escrevem (Horellou-Lafarge & Segré, 2007; Mineiro, Bemfica & Cardoso, 2010). Na vida quotidiana, tal como salientámos relativamente à leitura, está cheia de textos escritos – bilhetes, listas, cartas, produtos de supermercado, sinalização de trânsito, diários, panfletos, os livros eletrónicos ou os denominados e-books, que permitem, além de guardar a obra original, gravar as anotações que o leitor possa fazer (Horellou-Lafarge & Segré, 2007). Enfim, há uma panóplia de suportes que agregam a palavra escrita e com os quais nos deparamos todos os dias. Lahire considera que estes documentos em que a escrita está patente se constituem como “instrumentos de formação da nossa temporalidade, da nossa espacialidade e da nossa linguagem” (2003, p. 158). 2.8. Práticas e políticas públicas de leitura: das bibliotecas públicas às iniciativas conjuntas do Plano Nacional de Leitura As políticas culturais constituem-se, teoricamente, como um objeto de excelência para a sociologia. Mas uma política “mesmo antes de merecer o epíteto de cultural, requer uma intencionalidade, isto é, o accionar de recursos tendo em vista alcançar determinados objectivos” (Lopes, 2008, p. 59). Na realidade, deparamo-nos com duas dimensões fundamentais das relações sociais: a cultura ou o campo cultural e o poder ou campo político (Costa, 1997; Bourdieu, 2001). Estes campos constituem, assim, dois sustentáculos da organização das sociedades e de todas as relações sociais que nela ocorrem. Relativamente às políticas culturais, está consagrado na Declaração universal sobre a diversidade cultural, pela UNESCO, que as políticas culturais, enquanto asseverem a livre propagação de ideias e de obras, têm a incumbência de criar condições favoráveis para a produção e disseminação de “bens e serviços culturais 143 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolver-se nos planos local e mundial” (2002, p. 4). Deste modo, cada nação deve definir a sua política cultural e aplicá-la, recorrendo aos meios de ação que considere serem mais apropriados. Aliás, a denominação políticas culturais encaminha-nos para as políticas concernentes à cultura não só num nível mais diminuto como o local, mas também a nível mais amplificado como o nacional, regional ou até mesmo num plano internacional. Pretende-se que estas tenham um resultado direto nas representações culturais dos indivíduos, dos grupos e até mesmo das próprias sociedades, abrangendo não só a prolificação, a propagação e a divulgação de atividades, bens e serviços culturais, mas também o acesso a eles porque um precisa necessariamente do outro (UNESCO, 2005b). As políticas culturais contemporâneas são, na sua base, políticas públicas (Costa, 1997). Pode-se, então, considerar uma política pública como o espelho da vontade, por parte de distintos setores da sociedade, em progredir numa determinada direção e evidencia igualmente uma articulação congruente de medidas com a finalidade de alterar uma determinada situação. Quando falamos de políticas públicas é importante não descurarmos que estas podem ter um enorme impacto no nível e na distribuição social das competências, o que obriga aqueles que estão à frente do poder a compreender o “processo de aquisição, manutenção e perda de competências nas suas sociedades, a forma como as competências influenciam os resultados de saúde, económicos, sociais e educativos” (GEPE, 2009, p. 47). Neste caso particular fala-se das políticas públicas de leitura e, naturalmente, é preciso muito mais do que o mero acesso aos livros e à leitura por parte dos indivíduos. É necessária a existência de incentivos para que este encontro possa dar frutos. Por isso, cada vez mais, é necessário o incremento de iniciativas públicas que visem estimular o encontro dos livros com os leitores ou com os potenciais leitores. Até porque, cada vez mais, se pretende que os potenciais leitores venham a integrar o leque de reais leitores, mediante o contacto com suportes distintos de leitura. Estas políticas que podemos denominar de promoção da leitura acabam por ser medidas que aspiram um aumento dos níveis de literacia e das práticas de leitura não pensando unicamente no desenvolvimento dos indivíduos, mas também das próprias sociedades, e ao mesmo tempo pensando na formação de leitores para colmatar esses défices (Neves, Lima & 144 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo Borges, 2008). Pese embora a panóplia de outras práticas, às quais já aludimos anteriormente no decorrer deste capítulo, é necessário que os adultos compreendam os benefícios das práticas da leitura, até porque as leituras que se concretizam em contextos de lazer constituem fatores relevantes que espelham e proporcionam o crescimento e o progresso das sociedades, a que acima fizemos menção (Neves, 2010). Deparamo-nos com uma definição mais completa em torno desta temática no estudo que foi elaborado sobre as Práticas de leitura nos países da OCDE, em que A noção de práticas de promoção (ou de fomento) da leitura [se] relaciona com a criação, junto de uma dada população, de competências de compreensão do código escrito (alfabetização), com a elevação dos níveis de leitura em geral ou relativamente a um suporte em particular (designadamente o livro), em quantidade e/ou em qualidade, com a elevação dos níveis de compreensão do texto escrito e da sua utilização quotidiana (literacia) ou ainda com o enraizamento dos hábitos e do gosto pela leitura (Neves, Lima & Borges, 2008, p. 10) A promoção da leitura é uma inquietação ainda relativamente nova em Portugal, até porque data de 1997 o lançamento do Programa Nacional de Promoção da Leitura, sob a égide do então Instituto Português do Livro e das Bibliotecas do Ministério da Cultura IPLB/MC, atual Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas DGLB. Portanto, um dos espaços públicos que pode, efetivamente, contribuir para essa divulgação, para esse estímulo, para esse incentivo e motivação é a Biblioteca Pública e tem-se constatado, ao longo dos últimos anos um empenho contínuo de ampliação dos concelhos abrangidos pela Rede Nacional de Bibliotecas Públicas RNBP e do número das bibliotecas públicas (Neves, Lima & Borges, 2008). O hábito cultural de frequência de um espaço como o da biblioteca não é partilhado pela globalidade dos indivíduos, daí que ainda haja muitas pessoas que encaram a biblioteca no seu sentido tradicional, ou seja, a biblioteca vista como um simples local de “conservação de artefactos de uma memória simbólica e de distribuição/ difusão desses materiais” (Azevedo, 2007, p. 153). Daí que os seus utilizadores não possam ser, como aconteceu durante muito tempo, vistos como meros consumidores de um determinado produto cultural. Devem ser olhados como sujeitos produtores desse conhecimento. Daí que as bibliotecas devam caminhar, cada vez mais, no sentido de se consolidarem como um espaço dinâmico para a produção e promoção da criação cultural aberto a todos. 145 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo As bibliotecas, independentemente do tipo de biblioteca, são, em simultâneo, um portal de acesso à informação, um meio para combater a iliteracia tradicional e digital e ainda um espaço cultural. Tal como sublinha M. B. Nunes, as bibliotecas não pretendem tão-só que os seus utilizadores tenham acesso à informação, mas que, acima de tudo, tenham acesso ao conhecimento (2007). Segundo as Diretrizes da IFLA/UNESCO, a Biblioteca Pública, enquanto portal de acesso ao conhecimento, é considerada como um requisito básico para a aprendizagem ao longo da vida, para o crescimento cultural de cada indivíduo, bem como dos grupos sociais (2003). Até porque, de acordo com essas Diretrizes, a Biblioteca Pública é encarada como uma organização estabelecida, apoiada e financiada pela própria comunidade. Este apoio e financiamento são dados não só pelas autoridades locais, regionais ou nacionais, mas também por quaisquer outras formas de organização coletivas (Idem). A Biblioteca Pública presta o acesso ao conhecimento, à informação e a obras imaginativas a partir de uma série de recursos e serviços e está à disposição de todos os membros da comunidade. Com efeito, a disponibilização destes serviços pelas Bibliotecas Públicas baseia-se na igualdade para todos, sem distinção de raça, deficiência, idade, sexo, religião, nacionalidade, língua, nível de instrução ou condição social. Assim é necessário ter em atenção que as Bibliotecas Públicas se constituem como um meio de criação de uma determinada igualdade no acesso e na redistribuição da riqueza de informação, sendo esta vista como um direito fundamental para a cidadania. Nos dias de hoje este acesso é fulcral, dado que as aptidões de informação, leitura e literacia são aspetos basilares para as distintas conjunturas da vida dos indivíduos (Usherwood, 1999). No presente podemos considerar que as bibliotecas públicas “têm equipamento fundamental” e acabam por se tornar “pólos de circulação e de fornecimento de meios” e exprimem uma multiplicidade de papéis pela variedade de espaços e de serviços que disponibilizam (Sociólogo, 60 anos, Anexo 4T; Lopes & Antunes, 2001). Sendo a biblioteca um espaço público, é natural que se impulsione o leitor para a leitura, para partir à descoberta do que a biblioteca lhe pode oferecer, seduzi-lo, motiválo para que a sua ida àquele espaço se torne um hábito e não uma visita esporádica, uma vez que na biblioteca ele pode encontrar sempre novidades (Nunes, 1998). Torna-se assim claro que à Biblioteca Pública cabe a função da promoção e criação de hábitos de 146 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo leitura desde a primeira infância. Conquanto, esta não é a sua única missão. Ela deve igualmente apoiar a educação individual e a autoformação, bem como a educação formal a todos os níveis; asseverar a cada indivíduo os meios necessários para que este possa evoluir de forma criativa; estimular a imaginação e a criatividade das crianças e dos jovens; promover o conhecimento acerca da herança cultural, a estima pelas artes e pelas realizações e inovações científicas; possibilitar o acesso a todas as formas de expressão cultural; promover o diálogo e a diversidade intercultural; apoiar a tradição oral; apoiar, participar, nos casos em que seja necessário, criar programas e atividades de alfabetização para as distintas faixas etárias (Gill, 2003). Na verdade, este conjunto de missões atribuídas às Bibliotecas Públicas concorre para o enriquecimento de cada cidadão, uma vez que faz com que este encare a informação de forma crítica e não passiva. Afinal, numa sociedade cada vez mais exigente, é fundamental saber distinguir a informação que interessa e que é suscetível de ser metamorfoseada em conhecimento daquela que é acessória e supérflua. Por isso um espaço como a Biblioteca Pública além de ser um portal de informação é também uma instância de mediação e um lugar de educação intercultural, tendo em conta que permite uma interação com a diferença e com a pluralidade de pontos de vista. Não podemos descurar que ela se manifesta como um local singular onde simultaneamente qualquer cidadão, de forma gratuita, pode escolher aquilo que pretende fazer: ler um livro, consultar os jornais ou revistas mais recentes, ouvir música, ver um filme ou documentário, visitar exposições, conversar com escritores, participar em debates ou estar presente em conferências, entre muitas outras atividades que vão sendo disponibilizadas pelas diferentes instituições (Nunes, 1998). No fundo, a Biblioteca Pública, “portal de acesso ao conhecimento, não só ajuda a combater a iliteracia, e algumas novas formas de exclusão social e cultural, como também contribui para o reforço da cidadania” (H. B. Nunes, 2007, p. 29). Isto faz com que ela seja encarada não só como um lugar de encontro cultural, mas também seja um local de interação social (Idem). As bibliotecas públicas acabaram por se tornar num sustentáculo marcante e essencial em todo o trabalho de formação que desenvolvemos com o grupo de mulheres que constitui o nosso objeto empírico, e em particular nos projetos de leitura que desenvolvemos no âmbito do módulo de LC. Aliás, as bibliotecas com as características que temos vindo a aflorar foram nessa altura uma descoberta para aquele grupo, mas, 147 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo apesar disso, acabaram por se tornar, aliadas ao nosso trabalho enquanto formadores, num alicerce fundamental para o desenvolvimento das competências de leitura. Tendo em conta que a formação em causa não ocorreu em qualquer escola o contacto com as bibliotecas poder-se-ia tornar mais distante. Naturalmente, quando os cursos ocorrem em escolas é possível estabelecer uma maior proximidade entre os grupos e as bibliotecas escolares. Neste caso concreto houve necessidade de ultrapassar barreiras e estreitar laços com diferentes bibliotecas públicas, para que tivessem a perceção do trabalho que se vai realizando nos diferentes espaços. Não obstante, quando falamos de políticas públicas de leitura não podemos centrar-nos unicamente nas bibliotecas públicas, até porque foram surgindo outras iniciativas. Deste modo, em 2006, foi lançado o Plano Nacional de Leitura PNL , que acaba por ser uma resposta institucional, coordenada pelo Ministério da Educação, em articulação com o Ministério da Cultura e o Gabinete do Ministro dos Assuntos Parlamentares, face à preocupação relativamente aos reduzidos níveis de literacia da população (RCM n.º 86/2006, p. 4856). O desenvolvimento de competências de leitura e de escrita e o aumento e aprofundamento dos hábitos de leitura a nível de toda a população constituem-se como objetivos fulcrais deste Plano, de uma forma genérica. Aqui não são apenas as escolas a ter um papel fundamental, também as bibliotecas escolares, as bibliotecas públicas e instituições de formação têm um papel relevante em todo este trabalho. O Plano Nacional de Leitura é, na verdade, “um instrumento de política pública de alcance abrangente, vocacionado para a produção de efeitos de mudança positiva nas atitudes relativamente à leitura, nas práticas de leitura e nas competências de literacia ao nível da sociedade como um todo” (Costa, 2011, p. 95). Quando pensamos no PNL podemos associá-lo, desde logo, a todo um trabalho desenvolvido com as crianças e com os jovens. Mas certamente não estaríamos aqui a dissertar sobre ele. Não obstante, após uma preocupação inicial com os mais novos em diferentes projetos, em 2009, o PNL, em parceria com a ANQ e em articulação com a Rede de Bibliotecas Escolares RBE fomentou um novo projeto, denominado Novas Oportunidades a Ler +. Deste modo, com este projeto caminhou-se, de forma manifesta e dirigida, para uma população que até então era mencionada pela ação do PNL apenas de uma forma dissimulada: fala-se da população adulta, mais concretamente dos indivíduos com competências mais reduzidas, o mesmo acontecendo com os hábitos de 148 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo leitura, uma vez que correspondem a uma população pouco escolarizada e, portanto, mais descapitalizada (Costa, 2011). Este projeto tem como intuito “apoiar o desenvolvimento do gosto pela leitura junto do público adulto que frequenta os Centros Novas Oportunidades e, através destes, junto dos seus círculos de familiares e de amigos”, o que permite disseminar práticas que podem levar ao aprofundamento de competências (Ministério da Educação e Ciência, 2010, p. 4). Considerando o “caso de cooperação neste projeto há uma evolução com a ideia de que os procedimentos de incentivo podiam ser úteis para os CNO’s e, assim, os filhos poderem ter mais à-vontade, estarem mais informados para a leitura”, permitindo, assim, “enriquecer o contexto extraescolar das crianças. Parece estar a expandir-se, mas tem de se esperar” (Sociólogo, 60 anos, Anexo 4T). No que concerne a este projeto foram traçadas algumas linhas orientadoras, em que é tida em conta a prolificação de um ambiente de leitura no Centro Novas Oportunidades; a dinamização de atividades de leitura inseridas em diversas áreas dos Referenciais de Competências-Chave; o apoio de percursos pessoais de leitura e ainda a constituição de um acesso pontual às bibliotecas, bem como à utilização dos distintos recursos que estas disponibilizam (Ministério da Educação e Ciência, 2010). Ao mesmo tempo que são definidas estas orientações na brochura acerca deste projeto, são também tidas em consideração linhas de ação que implicam a promoção da leitura em família, numa coordenação entre a promoção e o estímulo à leitura; a promoção da leitura livre, que conduz os adultos a lerem sobre as temáticas que lhe despertam mais interesse; a promoção de comunidades leitoras e ainda a proposta de frequência das bibliotecas e a utilização dos recursos disponíveis (Ministério da Educação e Ciência, 2010; Costa, 2011). Além disso, são dadas algumas sugestões de iniciativas que podem ser desenvolvidas com os adultos, iniciativas essas que, embora com denominações distintas, acabaram por estar presentes ao longo do curso EFA em que trabalhámos com as mulheres que integram também agora o nosso estudo, embora algumas dessas atividades fossem sendo desenvolvidas no tempo, uma vez que a duração de um curso EFA dá azo à programação e enquadramento de dinâmicas mais ou menos continuadas. Por exemplo, relembremos o Momento da história, concretizado em cada uma das sessões de LC, ou mesmo a Chocoleitura, em que lhes era pedido que contassem entre elas ou para crianças de algumas instituições uma história, de modo a que se incutissem 149 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo nessas leituras expressividade, ritmo, jogos de fisionomia, atmosferas distintas com a voz e assim colmatar a falta de fluência na leitura (Brito, 2008,2009, 2011). Ao mesmo tempo essas histórias eram depois aproveitadas para partilharem em casa com os filhos. Também a partilha de outras leituras foi feita entre elas, tal como também é sugerido neste novo projeto ANQ/PNL. Mas muitas outras atividades de promoção da leitura foram sendo desenvolvidas não só num contexto mais restrito de formação, mas também da própria comunidade. Para lá desta ampliação de públicos, este projeto envolve igualmente novos protagonistas que contribuem para a promoção da leitura. Assim, aos elementos das equipas técnico-pedagógicas dos CNO, em parceria com os responsáveis pelas bibliotecas escolares, cabe essa dinamização. De acordo com a última avaliação externa do PNL, constata-se a adesão ao projeto de 183 CNO, alcançando-se assim no primeiro ano de implantação (2009/2010) uma taxa de adesão de 40%. Em junho de 2011 teve início um novo período de inscrições no projeto NO a Ler+ (Costa, 2011). Apercebemo-nos que englobado neste projeto Novas Oportunidades a ler + está patente, no sítio da Internet do PNL, a referência a Iniciativas EFA a ler +, embora ainda em construção. Apercebemo-nos, deste modo, que está prevista a configuração de uma nova vertente relativamente à promoção da leitura nestes públicos. Aquando de uma primeira análise deste projeto NO a ler + consideramos, desde logo, ser uma lacuna em relação a estes públicos a restrição aos CNO’s, uma vez que muitos adultos frequentam cursos EFA através de outras instituições de ensino e formação que não necessariamente escolas ou CNO’s. Nessa análise inicial surgiu a dúvida que era clara para nós, considerando a nossa experiência anterior com instituições de formação externas, se assim as pudermos denominar. De que modo se criam disposições para a leitura nesses adultos? De que modo se ultrapassam burocracias e se estabelece um contacto mais próximo destes com as bibliotecas públicas ou mesmo escolares? Estas são algumas das perplexidades que nos acompanham nesta análise. Claro que cada formador ou cada equipa pedagógica pode ultrapassar barreiras e por iniciativa própria criar e desenvolver uma diversidade de projetos em que a leitura é a protagonista, mas isso pode abranger um número diminuto de adultos, tal como aconteceu com as dinâmicas que foram sendo aplicadas no curso EFA B3 de Ação Educativa, no concelho de Vagos, entre 2007/2008. Além 150 A literacia da leitura: enquadramento de um objeto teórico em estudo disso, não podemos descurar a necessidade de motivação da própria equipa para o desenvolvimento deste trabalho. Cremos que a construção desta nova iniciativa pode ter uma maior envolvência, implicando formadores e formandos nesta relação com a leitura, e que se consigam alimentar práticas de leitura e, concomitantemente, se desenvolvam novas disposições duráveis que promovam os níveis de literacia da leitura. Não obstante, não se pode descurar a posteriori que é necessária, por parte dos formadores, flexibilidade, um trabalho articulado e adequação das iniciativas aos grupos. Não podemos limitar-nos a transpor para todos os grupos as mesmas dinâmicas porque eles são distintos e no seio destes grupos não podemos olvidar as singularidades de cada indivíduo porque “o social não se reduz ao colectivo ou ao geral”, ele encontra-se “também nos traços mais singulares de cada indivíduo” (Lahire, 2005, p. 36). 151 C apítulo 3 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura O que é ser homem ou mulher é uma definição social, pois a fisiologia é sempre mediada pela cultura. (Turner, cit. por Schouten, 2011, p. 29) As pessoas, hoje, não andam, correm; Não param, cruzam-se; Não conversam, gesticulam; Não escutam, ouvem; Não veem, olham; Não sentem, reagem, Não convivem, estão juntas. As pessoas, hoje, caminham lado a lado sem jamais se encontrarem. (Ferreira, cit. por Lopes, 2006, p. 570) 3.1. O desenvolvimento humano e as mudanças na idade adulta Quando se aborda a questão do desenvolvimento humano fala-se daquilo que denominamos como o ciclo vital de cada indivíduo, que o acompanha desde o nascimento até à velhice, passando pela juventude e pela idade adulta. Considerando o homem como um ser social e em relação, não só com o meio envolvente, mas também com a própria sociedade, está desde que nasce inserido num grupo social primário, onde tem início todo o processo de socialização, que é a família (Foufe Quintas & Sánchez Castaño, 1998; Castillo & Sánchez, 2003; Alvarez Núñez, 1992). Aliás, é precisamente neste ambiente que ele cresce e adquire normas de conduta, valores que norteiam o seu percurso. Bernstein considera que a socialização na família se desenrola no conjunto de 153 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura situações fundamentais que estão ligadas umas às outras. Neste sentido, e no final da análise que estabelece, distingue quatro tipos de situações: uma situação de inculcação moral, que corresponde à relação de autoridade ao longo da qual se inculca à criança as regras morais com os seus distintos fundamentos; uma situação de aprendizagem cognitiva, em que a criança alcança o conhecimento objetivo das pessoas e dos objetos e obtém aptidões/ capacidades de índole diversa; uma situação de imaginação ou de descoberta, em que a criança é alentada a experimentar e a recriar espontaneamente o seu mundo, de acordo com a sua conceção e à sua maneira e, por último, uma situação de comunicação psicológica, em que a criança aprende a receber os seus estados afetivos, bem como os dos outros (1975). Não obstante, para além da família enquanto principal instância de socialização nas sociedades contemporâneas, há outros elementos que fazem parte desse grupo de socialização primária, mais restrito, nomeadamente os amigos, os vizinhos, e essa socialização perdura, através de grupos secundários, de certo modo mais institucionalizados, sendo exemplo disso a escola, o trabalho. Ressalve-se que o homem sente necessidade de se integrar em diversos grupos ao longo do seu percurso de vida. Se o homem sente essa necessidade de se integrar em grupos distintos, o que é afinal um grupo? Maisonneuve considera que um grupo abarca “conjuntos sociais de variadíssima grandeza e estrutura” em que o “único traço comum (…) consiste na pluralidade de indivíduos e na sua solidariedade implícita” (2004, p. 5). Shaw, por sua vez, acentua que um dos fundamentos essenciais pelos quais se constrói um grupo tem a ver com o facto de existir um conjunto de pessoas com carências comuns, designadamente afetivas, lúdicas, económicas, e que, por isso, se agregam a fim de encontrar soluções (cit. por Alvarez Núñez, 1992). Alvarez Núñez considera que existem elementos basilares que acabam por estar subjacentes a qualquer grupo. Deste modo, salienta cinco itens que caracterizam um grupo: um conjunto de pessoas que exercem entre si uma interação numa relação direta, em que existe uma influência mútua; a existência de propósitos e metas comuns, compartidos entre os vários elementos, deixando-se em aberto o facto de haver algum elemento com um objetivo específico; deve haver igualmente uma diferenciação de papéis e uma estrutura em que cada elemento do grupo tenha um papel específico no com o intuito de concretizar os objetivos comuns ao grupo; deve existir outrossim um sistema de normas e regras que demarcam e organizam a conduta de cada elemento do 154 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura grupo; por último salienta-se a existência de uma consciência do grupo, ou seja, uma apreensão deste como entidade singular e diferenciada, juntamente (2002, p. 204). Importa salvaguardar que, independentemente do âmbito do grupo de que falemos (por exemplo, trabalho, lazer), está patente uma diversidade de papéis que pode ser distribuída pelos vários elementos, mas importa que o objetivo seja unívoco para que não haja dispersão. Não obstante, independentemente do tipo de grupo em que esteja inserido, “o indivíduo socializa-se, interiorizando valores, normas, disposições que o tornam um ser socialmente identificável” (Dubar, 1997, p. 79). Bernstein considera que, do ponto de vista sociológico, a classe social determina profundamente as formas de socialização. Aliás, assevera que a estrutura das classes influencia o trabalho e os papéis educativos, norteia as relações que as diferentes famílias possam ter umas com as outras e afeiçoase à experiência social primária adquirida no seio da família, acrescentando ainda que o sistema de classes influencia deveras a distribuição do saber entre os membros de uma sociedade (1975). Para além do início de todo um processo de socialização, há outro aspeto que importa reter, ainda que tenuemente, e que tem a ver com os estudos desenvolvidos nomeadamente por Piaget, mais direcionados para a infância e adolescência, cuja teoria mantém a existência de um conjunto de mudanças que ocorrem com a idade e em que emerge o conceito de estádios de desenvolvimento cognitivos: sensório-motor, préoperatório, operações concretas e operações formais (García Madruga & Carretero, 1991). Na teoria de Piaget é importante ressalvar que os estádios de desenvolvimento cognitivo pressupõem o aparecimento e a consolidação de mudanças qualitativas na estrutura da inteligência, assim como é possível efetuar previsões em torno das tarefas que estão associadas a determinada idade, de acordo com essa estrutura, uma vez que cada estádio possui uma determinada formalização de tipo lógico-matemático (Idem, p. 146). Conquanto, Piaget acabou por se focar essencialmente num universo de pequeninos e aquilo que nos ocupa neste estudo é um universo que corresponde à idade adulta. Não negamos que a infância e a adolescência são fundamentais para a construção do adulto, até porque na adolescência, por exemplo, é quando ocorrem as alterações físicas mais evidentes. Porém, vamos centralizar-nos mais em concreto na fase da idade adulta, que é aquela em que se insere o nosso objeto empírico. 155 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Quando pensamos na idade adulta a primeira e mais simples aceção que nos ocorre é que aquela que corresponde uma parte da vida do indivíduo que podemos situar num limite que vai desde os 20-25 anos até por volta dos 60-65 anos (Blanco Abarca, 1991; Rogers, 2002). Não obstante, consideramos que a idade não se pode constituir como uma forma de definição de um adulto, tendo em conta que diferentes indivíduos com a mesma idade não possuem o mesmo nível de desenvolvimento. Knowles considera que a noção de adulto pode ser entendida sob quatro aceções distintas: biológica, jurídica, social e psicológica (1990). De acordo com este autor somos adultos a partir do momento em que temos a capacidade de nos reproduzimos; em que podemos votar, conduzir, casar sem qualquer anuência; quando iniciamos no mundo do trabalho e, por último, quando temos ampla consciência de que somos responsáveis pelas nossas próprias vidas e possuímos a capacidade de autogestão (Knowles, 1990). Mucchielli, um pouco na lógica de Blanco Abarca e mesmo de Knowles, alude ao facto de este conceito englobar “homens e mulheres com mais de 23 anos e que ingressaram na vida profissional assumindo papéis sociais e responsabilidades familiares, contando com uma experiência direta do existir” (1998, p. 16). Mezirow encara, assim, o adulto como uma pessoa com idade suficiente para ser responsável pelos seus atos ou seja, alguém que está apto para compreender as suas decisões, para fazer opções lógicas com autonomia, tendo em consideração a sua responsabilidade social (2000, p. 24). Consultamos, mais uma vez, o Dicionário de Língua Portuguesa, para percebermos qual a aceção que este nos daria acerca deste conceito e apercebemo-nos que o adulto é aquele que “já está em idade compreendida entre a adolescência e a velhice”, aquele “que já atingiu todo o desenvolvimento” (Dicionário Priberam de Língua Portuguesa). Esta visão genérica acaba por ser, do mesmo modo, uma visão também reducionista desta fase da vida dos indivíduos. Não obstante, a definição que acaba por estar patente em cada um destes autores e mesmo no dicionário, acaba por se tornar demasiado incompleta, uma vez que, tal como salienta Blanco Abarca, o tempo e a idade, também uma natureza cronológica, detém um significado sociocultural de maior relevo (1991, p. 203). Fundamentando-se em estudos de distintos autores, e na sequência desta incompletude do conceito, Blanco Abarca alude ao facto de o indivíduo não ser unicamente um ser histórico quando se pensa na idade, mas ele é um ser social, um elemento ativo de una estrutura de papéis e estatutos (Ibidem). Aliás, este não pode ser encarado simplesmente de acordo com os 156 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura distintos momentos da sua cronologia, há uma diversidade de ocorrências que se estendem ao longo desses anos, que alternam segundo a sociedade e os momentos que vão preenchendo a própria história (Blanco Abarca, 1991). Rogers, considera ainda, nesta lógica, que esta designação pode remeter-nos para um estádio no ciclo da vida, afinal todos somos inicialmente crianças, posteriormente jovens e só depois adultos, mas pode também encaminhar-nos para um subconjunto social, em que os adultos são necessariamente distintos das crianças ou pode ainda incluir um conjunto de ideias e valores, que correspondem à vida adulta (2002). O mesmo autor salvaguarda que este é um conceito em que se sentem dificuldades em termos de definição, mas quer a infância, que encerra o início da vida de um indivíduo, quer a vida adulta estão imbuídas de uma construção social. Singer traça algumas linhas em torno desta temática, acrescentando que “de todas as idades, é aquela que forma, dirige e modela a realidade social e individual” (2004, p. 89). Levinson, nas pesquisas que efetua, distingue três períodos no ciclo de vida de um homem adulto, considerando aquilo que podemos designar como uma idade adulta preambular, uma meia-idade adulta e uma idade adulta tardia (1978). Não esqueçamos que para as mulheres, tal como para os homens, as épocas são distintas, cada uma com o seu carácter peculiar. Em cada época homens e mulheres atravessam a mesma sequência de períodos no desenvolvimento da idade adulta e as mesmas idades (Levinson, 1996, p. 413). Embora se pudesse pensar que esta fase da idade adulta era marcada pela estabilidade, Levinson reitera que ela é preenchida por momentos de estabilidade realmente, mas também por períodos de transição (1978). Tal como salienta Fonseca, acerca da perspetiva de Levinson, existe uma “alternância de períodos de «construção de estruturas» e períodos de «mudança de estruturas» ” (2005, p. 46). Se pensarmos no dia a dia, constatamos que há, efetivamente, momentos em que não necessitamos de mudar aquilo que temos, mas há outros em que, por diversas circunstâncias, nos conduzem a momentos de reflexão, de exploração e mesmo transformação, o que acaba também por nos encaminhar para novas aprendizagens e faz com que haja um constante dinamismo nas práticas dos indivíduos. Outrossim, para percebermos um pouco mais toda esta imbricação, veja-se a Figura 3.1, em que se tenta perceber as ocorrências a nível social e a nível individual 157 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura que acabam por conduzir à maturidade do indivíduo adulto e a partir do qual vamos percebendo aquilo que temos vindo a mencionar. Nível social Nível individual Na nossa sociedade situa-se entre os Idade cronológica 20-25 anos e os 60-65 anos Através da idade cronológica o indivíduo adquire Posição e localização do indivíduo Estatuto da idade no seio do estrato da idade adulta Este estatuto e posiciona- mento na estrutura da idade traduz-se no ato de assumir - Ações, atitudes, comportamentos que se Papéis esperam das pessoas que se encontram dentro da faixa da idade adulta. - Matrimónio - Paternidade/ Maternidade - Normas da idade, buscas e expectativas - Trabalho sociais, tarefas de desenvolvimento O conteúdo destes papéis varia consoante - Industrialização; - Oscilações económicas; - Acontecimentos históricos; - Características culturais ou de subcultura. Socialização Fonte: Adaptado de Blanco Abarca, 1991, p. 207. Figura 3.1 Critérios que definem a maturidade 158 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Efetivamente, a idade cronológica em cada indivíduo apresenta limites temporais, tal como já salientámos. Contudo, essa idade cronológica, a nível social, permite a cada indivíduo aquilo que é denominado como o estatuto da idade e que lhe vai permitir desenvolver determinados papéis sociais o de marido/ esposa, o de pai ou mãe e o de trabalhador/ trabalhadora, sendo estes apenas alguns de entre uma infinidade de outros papéis sociais que acabam por estar associados à idade adulta (Blanco Abarca, 1991). Tal como salvaguarda Fonseca “o desenvolvimento supõe a ocorrência de mudanças ao nível do funcionamento e do comportamento individuais” (2005, p. 19). Não esqueçamos, todavia, que há uma série de fatores industrialização; oscilações económicas; acontecimentos históricos ou mesmo características culturais ou de uma subcultura não só a nível individual, mas também social. O processo de socialização de cada indivíduo acaba por ser feito disso mesmo. Aliás, “as abordagens culturais e funcionais da socialização acentuam uma característica essencial da formação dos indivíduos: esta constitui uma incorporação dos modos de ser (de sentir, de pensar e de agir) de um grupo, da sua visão do mundo e da sua relação com o futuro” (Dubar, 1997, p. 79). Através da Figura 3.1, anteriormente apresentada, constatamos que ali acabam por estar patentes os critérios que definem a maturidade de um adulto. Quando falamos da maturidade de um adulto não podemos olvidar um conceito relevante, que é a motivação. Esta noção foi apresentada por Maslow, um dos autores mais proeminentes nesta área, que analisa a importância da recompensa de necessidades na motivação humana. A motivação é, enquanto “processo”, aquilo que provoca e impele para a adoção de uma determinada conduta, que sustém uma atividade e que a orienta num determinado sentido, o que nos leva a considerar que é aquilo que espicaça, que conduz e condiciona comportamentos (Balancho & Coelho, 1996, p. 17). Castillo e Sánchez frisam que a motivação pode ser entendida como a causa ou a razão que move uma pessoa a atuar de determinada forma (2003, p. 20). Pode, assim, a motivação ser considerada como a força motriz que impele e move os indivíduos em muitas situações. É inegável que todos os indivíduos têm necessidades e essas necessidades são fonte da motivação. Aliás, sempre que sobrevém uma determinada carência, cada pessoa atua consoante essa motivação, de modo a satisfazê-la. Mediante uma leitura da Figura 3.2 deparamo-nos com cinco tipos de necessidades, que se apresentam de forma 159 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura ascendente, hierárquica e em níveis distintos e que contribuem para o crescimento permanente dos indivíduos. Fonte: Adaptado de Maslow, 1970; Castillo & Sánchez, 2003, p. 20; Rogers, 2002, p. 96. Figura 3.2 Pirâmide das motivações de Maslow Posto isto, podemos constatar que na base da hierarquia estão as necessidades que denominamos como básicas fisiológicas. Nestas englobamos a fome, a sede, o sono, o descanso, mas também a atividade. Logo de imediato encontramos as necessidades físicas e de segurança, onde se insere a estabilidade, a proteção, o bem-estar psicológico e a confiança. A meio da hierarquia fala-se das necessidades de pertença e de amor, em que se enquadra a necessidade que as pessoas têm de amor e de afeto, mormente a de criar amizades, relações que se alimentam quotidianamente, como é exemplo a necessidade de os indivíduos se inserirem em grupos distintos. As necessidades de estima ocupam o quarto patamar desta pirâmide e estão associadas ao respeito e à estima, não só de cada pessoa, mas em relação a todos os outros com quem se relaciona. No topo da hierarquia emergem as necessidades de autorrealização que, tal como o próprio nome sugere, estão associadas à autossatisfação de cada indivíduo. Não obstante esta hierarquia ela não é forçosamente a mesma para todas as pessoas, uma vez que essa situação depende da importância que cada pessoa atribui às 160 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura suas necessidades individuais e depende também das circunstâncias que envolvem as pessoas e que podem levá-las a alterar essa ordem hierárquica (Castillo & Sánchez, 2003; Maslow, 1970; Rogers, 2002). Falar desta fase da vida dos indivíduos torna-se necessário na medida em que este é o universo, num panorama mais macro, dos cursos de educação de adultos e deste grupo em particular. O dinamismo que caracteriza a idade adulta deve acompanhar do mesmo modo a política educativa que em Portugal se vai desenvolvendo, com o intuito de apoiar estes adultos na sua constante construção a todos os níveis. 3.2. O universo feminino e as questões de género: uma ponte com o objeto empírico da investigação Olhando para este estudo que ora desenvolvemos há uma questão que não podemos deixar de lado uma vez que ela nos remete para o objeto empírico de toda esta investigação. Consideramos fundamental atentar com mais detalhe sobre o universo feminino e as questões de género para melhor podermos também compreender estas mulheres. Conquanto, para as percebermos é fulcral analisarmos o contexto global, compreender a sua evolução e postura em diferentes momentos na sociedade, os papéis que ocupam, sem excluir algumas remissões para o outro género masculino. Por isso falar sobre a mulher é abordar um pouco da sociologia do género, da sua condição, dos papéis sociais que foi desempenhando na sociedade ao longo dos tempos, mormente em Portugal (Schouten, 2011). No caso concreto desta investigação, o nosso universo revela uma homogeneidade social de acordo com o género uma vez que é constituído unicamente por mulheres. Walby considera que a sociologia tem contribuído para a transformação daquela perceção tradicional das relações entre homens e mulheres (2005). Quando se aborda esta temática torna-se pertinente que nos questionemos acerca do que é realmente ser homem e mulher e essa uma questão levantada por distintos autores, sem que com isso pretendamos fazer uma abordagem demasiado exaustiva acerca de tudo o que lhes está associado a estas terminologias ou mesmo discorrer acerca do percurso das teorias feministas (Neto; Cid; Pomar; Peças; Chaleta & Folque, 2000; Almeida, 1999). 161 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Na verdade, falar acerca do género é abordar questões em torno de um dos “princípios organizadores mais importantes da vida social”, em que este é encarado como sendo a “especificidade de homens e mulheres sob os pontos de vista social cultural e psicológico” e não podemos descurar que está patente “ a todos os níveis e aspectos da vida social”, por exemplo no trabalho, na educação, na religião (Schouten, 2011, p. 13; Amâncio, 2003). Aquela que se denomina de socialização primária é essencial na própria socialização do género e na produção da uma identidade. Quando falamos acerca destas temáticas é fulcral que se diferenciem conceitos como sexo e género, tendo em conta que o primeiro não é de todo o “elemento explicativo das diferentes atribuições sociais de mulheres e de homens” e, além disso, este é um conceito que acaba por estar agregado a desigualdades de foro biológico, físico, anatómico que ocorrem, precisamente, entre homens e mulheres, considerando-se mesmo o sexo como um “marcador físico e morfológico de conotação biológica” (Barroso, Nico & Rodrigues, 2011, p. 93; Amâncio, 2003, p. 694). Aliás, falar de sexo masculino e sexo feminino acaba por ter agregada a remissão para um conjunto de cromossomas XX ou XY. Brandão considera que o género acaba por ser também “um sistema de desigualdade, um sistema hierárquico, que traduz um certo estado das relações de poder entre homens e mulheres” e em que há uma clara dominação masculina (2007, p. 49; Bourdieu, 1999). Aliás, Bourdieu considera que esta “visão androcêntrica” é “continuamente legitimada pelas próprias práticas que determina: pelo facto de as suas disposições serem o produto da incorporação do preconceito desfavorável contra o feminino que é instituído na ordem das coisas” (1999, p. 28). Tentamos perceber de que modo é que os conceitos sexo e género eram apresentados num Dicionário de Língua Portuguesa comum, neste caso através de uma pesquisa on-line, e deparamo-nos com várias definições. Assim, à noção de sexo atribui-se a “diferença física ou conformação especial que distingue o macho e a fêmea”, o “conjunto de indivíduos do mesmo sexo”, a “relação sexual” e os “órgãos sexuais externos”, havendo ainda uma alusão ao sexo forte e sexo fraco, remetendo, tradicionalmente, para o homem e para a mulher, respetivamente (Dicionário Priberam de Língua Portuguesa). Pegando nesta menção ao sexo forte e sexo fraco, Schouten salvaguarda que estas expressões se alicerçam, sobretudo, em “diferenças físicas perceptíveis, tais como o tamanho e a altura do corpo e a maior força que os homens, em geral, demonstram” (2011, p. 30). Contudo, a própria expressão “força” leva a 162 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura autora a uma reflexão em torno deste conceito, uma vez que considera que ele é “multiinterpretável” (Ibidem). Procuramos, então, perceber que definições estavam associadas ao conceito de género e deparamo-nos com uma multiplicidade de noções: 1. Grupo de espécies que entre si têm certas analogias. 2. Classe. 3. Modelo. 4. Gosto. 5. Feitio. 6. Maneira. 7. Modo. 8. Qualidade. 9. Força. 10. Calibre. 11. Estilo. 12. Propriedade de algumas classes de palavras, nomeadamente substantivos e adjectivos, que apresentam contrastes de masculino, feminino e por vezes neutro, que podem corresponder a distinções baseadas nas diferenças de sexo. 13. Conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo dos indivíduos. 14. Cada um dos produtos ou artigos de um conjunto de víveres ou provisões. (Mais usado no plural.) 15. Cada um dos artigos de um conjunto de mercadorias ou de fazenda (Mais usado no plural) (Dicionário Priberam de Língua Portuguesa). Após uma leitura mais demorada em torno destas últimas definições apercebemonos que há uma aproximação, ainda que ténue, ao conceito do ponto de vista das ciências sociais, mormente quando o género é encarado como “um conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo dos indivíduos” (Ibidem). A afirmação da igualdade entre homem e mulher fez com que houvesse uma desvalorização das diferenças que teimaram em grassar durante muito tempo, até porque essas diferenças acabam por estar associadas a binómios como dominação/dependência, ação/ inércia. A existência do reconhecimento da igualdade não implica forçosamente que se suprimam as diferenças entre homens e mulheres. Deve, na verdade, reconhecerse “a flexibilidade e a plasticidade dos papéis” (Neto; Cid; Pomar; Peças; Chaleta & Folque, 2000, p. 5). Não obstante, a propósito desta igualdade, Puleo García considera que não se encontra qualquer polémica no que concerne à ideia da igualdade de todos os homens, de uma forma generalizada, mas acabam por surgir algumas hesitações quando se fala da igualdade entre homens e mulheres. (2006). Naturalmente, o objetivo não é termos uma sociedade repleta de “seres clónicos”, mas sabermos direcionar estas questões da igualdade para uma eliminação de barreiras que afetam a mulher em termos de integração social (Puleo García, 2006, p. 29). Essas barreiras a que nos reportámos anteriormente acabam por criar “diferenças de igualdade de oportunidades, assentes numa multiplicidade de estereótipos sociais e culturais”, que tem feito com que, ao longo dos tempos, se verificasse uma proeminência dos homens perante as mulheres nas 163 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura mais diversas áreas da vida social (Neto; Cid; Pomar; Peças; Chaleta & Folque, 2000, p. 8). Durante muito tempo, o homem foi encarado como o trabalhador, o chefe da família e, como tal, era também aquele que socialmente administrava os interesses da família, a mulher limitava-se apenas a um papel de submissão, subordinação e acabava por posicionar-se num nível de inferioridade relativamente àquele. Inserida numa sociedade particularmente masculinizada, a mulher cumpria o papel de mãe, cabendolhe também a ela lhe o papel de apoio à família e o de dona de casa. Estas eram competências especificamente femininas. Esta visão da sociedade de outrora é marcada pela imagem do patriarcado, em que está nitidamente patente um “sistema de estruturas sociais e práticas nas quais os homens dominam, oprimem e exploram as mulheres” (Walby, cit. por Schouten, 2011, p. 16). Na verdade, Portugal viveu, até aos anos setenta do século passado, numa verdadeira sociedade patriarcal, em que o homem/marido/ pai era, efetivamente, o chefe da família. No decorrer do século XX, sobrevêm grandes alterações com os movimentos feministas. Neste sentido, Almeida faz alusão à década de 60 do século passado, como uma época assaz agitada, com o aparecimento dos movimentos estudantis e feministas na Europa democrática e na América do Norte, em que se discutia a “ordem masculina e patriarcal” de que falávamos anteriormente e em que estes movimentos contestavam a supremacia da manifesta ordem masculina e patriarcal e exigiam o direito de uma cidadania ampla para as mulheres (1999, p. 111). Também em Portugal a situação das mulheres sofre mutações com a queda do Estado Novo. Conquanto, já em 1968 ocorreram algumas alterações, designadamente o facto de ter sido concedida à mulher a igualdade de direitos políticos, independentemente do seu estado civil e a igualdade eleitoral, uma vez que, de acordo com a legislação promulgada nesse ano, “são eleitores (…) todos os cidadãos portugueses, maiores ou emancipados, que saibam ler e escrever português” (Guimarães, 1989; Canço, 2007; Lei n.º 2137/1968, p. 191). Além disso, com as sequelas advindas do fim do regime político ocorreram algumas transformações relativamente ao trabalho, à família e à educação, até porque no decorrer dos anos 70 e 80, em Portugal, se assiste a um “ressurgimento da luta pela igualdade das mulheres, o que foi designado por “feminismo de segunda vaga” ou “feminismo moderno” também” (Magalhães, 1998, p. 5). É nesta altura que despontam alguns dos instrumentos que dão azo à construção da igualdade entre homens e 164 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura mulheres em Portugal. A menção a esta igualdade de género está bem patente na organização social que a Constituição da República Portuguesa, vulgo CRP, em vigor a partir de 1976, propaga. Embora se tenham verificado atualizações desde a sua criação (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro e Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto), há uma menção no artigo 9.º, alínea h, à promoção da igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios, no artigo 13.º menciona-se que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei ”independentemente do “sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (Lei Constitucional n.º 1/2005, p. 4644; Canço, 2007, pp. 47-48). Não obstante, outros artigos se destacam pela sua relevância no que à igualdade diz respeito, designadamente relacionados com direitos pessoais da mulher, direitos relativos à família, ao casamento e à filiação, à liberdade de escolha de uma profissão e de acesso à função pública, bem como a participação na vida pública, à saúde, ao ensino (Lei Constitucional n.º 1/2005, p. 4644; Canço, 2007). Em 1978 entra também em vigor a revisão do Código Civil, assente já nos novos princípios de igualdade, convertendo o anterior em que se fazia menção ao poder marital como base do matrimónio, deixando a mulher casada, a partir daí, a ter um estatuto de subordinação face ao marido. Assim, de acordo com o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, passou a existir um reconhecimento a ambos os cônjuges da liberdade de exercício de qualquer profissão ou atividade sem o consentimento mútuo (Canço, 2007). Nesta sequência, foi igualmente suprimida a conceção que existia em torno do exercício do poder paternal e da figura de chefe de família por parte do homem (Canço, 2007; Decreto-Lei n.º 496/77). Outrossim, estas alterações no Código Civil e a introdução destes princípios de igualdade acabam por fazer com que o ano de 1978 seja caracterizado como uma fase de “GRANDE VIRAGEM na história da Mulher portuguesa” (Guimarães, 1989, p. 30). Não podemos descurar que as mulheres, durante muito tempo, se situaram no limiar dos mais pobres. Quando falamos de pobreza neste contexto reportamo-nos às suas habilitações académicas, evidenciadas durante muito tempo pelas taxas mais elevadas de analfabetismo; ao trabalho, pela parca participação das mulheres no mundo laboral e ainda pela sua condição de donas de casa, que caracterizava uma ampla maioria das mulheres. O Decreto-Lei n.º 392/79, de 20 de setembro, propende para a 165 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura garantia da igualdade entre os cidadãos e repulsa qualquer tipo de discriminação que pudesse verter sobre a mulher relativamente ao homem, propalando-se ainda a promoção da igualdade entre homens e mulheres no trabalho, no emprego e na formação profissional. No âmbito da igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres, Portugal avocou compromissos que transcorrem da sua participação em organizações de foro internacional, e que estão consagrados nos diferentes tratados, regulamentos, diretivas que foram sendo publicados. De entre esses documentos podem destacar-se alguns mais recentes, onde nos deparamos com a Carta dos Direitos Fundamentais ou as diretivas adotadas, nomeadamente as diretivas n.º 2000/78/CE e n.º 2000/73/CE, onde se consagra a igualdade de oportunidades e de tratamento entre homens e mulheres a diferentes níveis, designadamente no emprego, trabalho e remuneração, ou o Pacto Europeu para Igualdade entre Mulheres e Homens, em que se confirma a “vontade dos Estados-membros de avançar determinadamente com políticas para promover o emprego de homens e mulheres e garantir um equilíbrio mais adequado entre vida profissional e vida privada para responder aos desafios demográficos” (Comunidade Europeia, 2000; Canço, 2007; Comissão das Comunidades Europeias, 2007, p. 3). No Relatório da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre a Igualdade entre Homens e Mulheres – 2007 ressalva-se que existe uma situação nitidamente “desfavorável das mulheres em relação aos homens no mercado de trabalho” e que essas desigualdades acabam por estar patentes nas “formas de trabalho” e na “segregação do mercado de emprego”, que, por sua vez, incide em disparidades salariais (Comissão das Comunidades Europeias, 2007, p. 5). No que concerne à educação e à própria formação, constata-se, pelos dados da ANEFA de 2002 83,5% de mulheres e 16,5% de homens frequentam cursos EFA, pelos números constantes no portal do Ministério da Educação relativos a 2006/2007 45,6% de homens e 54,4% de mulheres a frequentarem o 3.º ciclo nestes cursos, continuando o número de mulheres igualmente superior ao dos homens no 1.º e 2.º ciclos, pelas estatísticas da educação relativas a 2009/2010 32,7% de homens e 67,3% de mulheres no 3.º ciclo de cursos EFA e conjuntamente pelo contacto que fomos tendo com diferentes grupos EFA ao longo dos últimos anos que levam a considerar que os cursos EFA são constituídos de modo predominante por uma 166 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura população feminina (Araújo & Fernandes, 2002, p. 144; Ministério da Educação; GEPE, 2010, p. 24). Aliás, o objeto empírico alvo desta investigação ilustra aquilo que acabámos de dizer e traduz um pouco do panorama da população destes cursos. Neste caso particular o curso foi preenchido exclusivamente por mulheres. Aquando do início do curso eram catorze elementos, tendo um deles desistido ainda na fase inicial por motivos que não importa agora referenciar e que em nada tiveram a ver com o curso em si, mas o elemento que abandonou o curso enquadra-se também no género feminino. Este valor discrepante mantém-se no nível secundário, em que se verifica uma percentagem de 60,6% de mulheres e de 39,4% de homens a frequentarem cursos EFA NS no ano de 2009/2010, tal como se pode constatar mediante uma leitura do Quadro 3.1, a seguir apresentado (GEPE, 2010, p. 24). Quadro 3.1 – Distribuição percentual dos adultos que frequentam cursos EFA, no 3.º ciclo e no secundário, de acordo com o género, em diferentes anos, em Portugal continental Género 3.º Ciclo ensino básico Secundário 2002 2006/07 2008/09 2009/10 Homens 16,5% 45,6% 33,2% 32,7% Mulheres 83,5% 54,4% 66,8% 67,3% Homens ------ ------ 38,2% 39,4% Mulheres ------ ------ 61,8% 60,6% Fonte: Adaptado de Araújo & Fernandes, 2002, p. 144; GEPE, 2008, p. 31; 2010, p. 24; 2011, p. 24. Estes dados contribuem para que se possa compreender a crescente entrada da população feminina no mercado de emprego e da formação. Na verdade, a educação acaba por se constituir como um instrumento fundamental para uma melhoria do estatuto da mulher, bem como para a sua realização pessoal, profissional, que leva também a necessidades decorrentes de fatores económicos, no âmbito da sociedade em que está inserida (ONU, 1981). Estas preocupações com a valorização da mulher através da educação acabam por estar patentes na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Beijing, em setembro de 1995, pretendendo-se, assim “garantir 167 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura a igualdade de acesso das mulheres à educação, eliminar o analfabetismo feminino, melhorar o acesso das mulheres à formação profissional, ao ensino científico e tecnológico e à educação permanente” (Delors, 1996, p. 197). Na sequência do Quadro acima apresentado e dos valores da população feminina nestes cursos, consideramos igualmente relevante salientar que naquele em particular todos os módulos da FB, a que fizemos menção no capítulo 1, foram assegurados por mulheres e nós estivemos no seio desse grupo. Este panorama vem reforçar a ideia do papel da mulher no campo profissional. De acordo com um estudo efetuado na década de 90 do século passado, as mulheres portuguesas possuíam já nessa altura “das mais elevadas taxas de actividade económica da Europa, falando neste caso de trabalho a tempo integral” (Almeida, 1999, p. 124). Aliás, é necessários termos em consideração que “o emprego feminino formal, e sobretudo o das mulheres casadas e das mães com filhos pequenos, é portanto, uma realidade que desde a década de 80 assume contornos muito intensos na sociedade portuguesa” (Idem, p. 125). Amâncio, baseando-se num misto de pesquisas aponta, relativamente ao universo laboral (trabalho pago), a existência de uma perseverança nas disparidades de género (2010). Apensa a mesma autora que a dominação masculina, de que Bourdieu falava, não é uma propriedade dos homens, mas é uma propriedade da conceção do seu modo de ser na medida em que se confunde com a conceção dominante de pessoa, ao nível de um modelo de comportamento. É por isso que quando situamos os indivíduos em contextos públicos, como os do trabalho, os homens afirmam a sua distintividade de forma relativamente consistente, mas as mulheres fazem-no sob certas condições: a de que este comportamento não implique uma rutura com o modo de ser feminino e a de que ele não subverta a natureza da relação entre os sexos” (2010, p. 180). Conquanto, a relevância da educação da mulher não se confina meramente a estabelecer uma igualdade de oportunidades no desenvolvimento de aptidões, ela é igualmente importante pelo facto de lhe permitir o acesso à participação na vida pública. Um pouco neste sentido, também Delors acentua, no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, que A educação das mulheres é provavelmente um dos investimentos mais rentáveis que um país pode fazer. Oferecer mais possibilidades às mulheres, e em especial às mulheres e às jovens excecionalmente dotadas, é abrir caminho ao aparecimento de uma elite feminina e permitir a sua preciosa contribuição nos processos de decisão para o progresso da educação e o desenvolvimento sustentável (1996, p. 215). 168 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Para além de todas estas alterações em termos de legislação, a partir dos anos 70 registaram-se também grandes alterações no seio da família em Portugal, mormente o baque da taxa de nupcialidade, as novas formas de viver a conjugalidade que não apenas através do casamento, a queda da fecundidade mediante o recurso a formas de contraceção, a dilação da formação escolar e um consequente retardamento de início de uma vida adulta ativa, a entrada das mulheres no mercado de trabalho e um aumento da escolaridade feminina (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres & Wall, 1998; Almeida, 1999). Se tivermos em consideração a conjugalidade ou mesmo o próprio casamento podemos aperceber-nos de mutações que foram ocorrendo ao longo dos últimos anos relativamente à mulher, tendo em conta que houve uma alteração da forma como esta era vista, deixando de ser apenas a esposa e a mãe, o que permitiu uma redefinição da sua própria identidade. Também a maternidade deixa de ser encarada como uma obrigação de foro biológico e converte-se numa opção racional, uma vez que permite à mulher fazer escolhas como a de ter ou não ter filhos, o número ou mesmo o momento para tê-los (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres & Wall, 1998; Schouten, 2011). Claro que tudo isto se aborda de uma forma mais genérica, uma vez que há sempre situações particulares e acidentes que continuam a acontecer. Considerando este panorama, a partir do momento em que a mulher teve a possibilidade de decidir sobre essas questões, as perspetivas de construção das suas identidades acabam também por ser afetadas. Mas se pensarmos numa situação oposta, a “não-concretização do papel para que foram socializadas pode provocar sentimentos de desgosto, luto, raiva e autoculpabilização” (Schouten, 2011, p. 55). Não obstante, a nível familiar, as mulheres continuam a desempenhar o papel de maior realce, quer nos trabalhos domésticos quer na própria educação dos filhos. Constata-se, deste modo, que a mulher passou a acumular outros papéis para além daqueles que já detinha dentro de casa. Agora, afora o papel de mãe e de doméstica, passou a ter também a sua vida e carreira profissional. De acordo com dados do EUROSTAT os homens portugueses são aqueles que menos cooperam nas tarefas domésticas, embora se constate uma crescente participação por parte destes nos “labores da produção doméstica e parental” (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres & Wall, 1998; Aboim, 2007, p. 38). Neste sentido, Almeida remete-nos para o facto de existir ainda uma contiguidade com situações do passado no âmbito 169 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura familiar e que é assaz saliente e ainda que se verifique este movimento crescente e veloz das mulheres em áreas ditas tradicionalmente masculinas, o mesmo não sucedeu, tal como já frisámos, em relação à entrada dos homens em espaços também tradicionalmente femininos, daí que “ a casa continua assim a não ser um espaço misto”, mas um espaço em que as mulheres acabam por deter a primazia (1999, p. 127; Inglez, 2007). Por isso, este panorama acaba por concorrer para uma manutenção de obstáculos a uma total igualdade de oportunidades entre homens e mulheres porque estas acabam por ter de acarretar, assim, com “uma pesada acumulação e sobrecarga de papéis: aos de dentro, juntaram-se os de fora de casa” (Almeida, 1999, p. 127; Amâncio, 2007). Neste sentido, leia-se o Quadro 3.2, em que podemos ver a articulação entre o trabalho profissional e as tarefas domésticas ou cuidados com as crianças ou outros familiares, em relação aos homens e às mulheres e através do qual podemos constatar aquilo que precisamente focámos anteriormente em relação às tarefas domésticas e pode-se, como complemento, ter em conta o inquérito sobre “Família e género” apresentado por Amâncio (2007). Tal como realça Schouten, a mulher tem uma ligação peculiar com a família e com o espaço privado, mas isso não implica que ela fosse ou que seja propriamente “a “dona” de casa” (2011, p. 71). Quadro 3.2 – Horas ocupadas em distintas atividades num fim de semana, de acordo com o género Horas ocupadas em diversas atividades durante o fim de Sexo Horas dispensadas Horas dispensadas Discrepância de pelos homens pelas mulheres horas semana Trabalho pago (abrangendo (H - M) 9.0 8.1 +0.9 Lazer e cuidados pessoais 3.1 2.3 +0.8 Trabalho doméstico e cui- 1.3 3.8 -2.5 deslocações) dados com filhos e outros familiares Fonte: Adaptado de Torres, 2005, p. 111. 170 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura As desigualdades e até mesmo alguns desequilíbrios no que respeita às oportunidades entre homens e mulheres continuam a grassar nos dias de hoje. Aliás, enquanto os homens e as mulheres não fruírem de “uma distribuição mais ou menos igualitária de responsabilidades caseiras, as condições básicas para uma igualdade de oportunidades não estão cumpridas” (Schouten, 2011, p. 122). Há ainda um aspeto que consideramos pertinente ser abordado quando falamos da família, conquanto de forma mais ténue e concisa tendo em conta o próprio contexto em que a temática é abordada e à qual é feita menção mais adiante, e que tem a ver com a violência doméstica, neste caso, que vitíma a mulher e que acaba por estar, ainda nos dias de hoje, “inerente à relação conjugal” (Dias, 2004; Schouten, 2011, p. 71). Acaba por estar patente neste tipo de relação um certo tipo de dominação e a uma “prevalência de certos traços patriarcais” (Dias, 2004, p. 2). Bourdieu considera, na sua obra, que a dominação masculina persevera, naquilo que é fundamental, nas sociedades atuais, através de instituições e mecanismos que a reproduzem, nomeadamente a família (1999). Nestes casos não podemos descurar que “a protecção da esposa agredida exige disposições especiais que tenham em conta o carácter privado e íntimo da relação, em particular a coabitação dos cônjuges e a dependência económica e social da mulher casada” (Silva, 1991, p. 385). Tendo em conta esta dependência, podemos encontrar aqui uma relação entre o género e a classe, uma vez que, de acordo com os estudos existentes “à medida que a escolaridade é mais baixa e a profissão menos qualificada, aumenta a tolerância em relação à violência, verificando-se o inverso quando os capitais escolares, económicos e culturais são mais elevados” (Casimiro, 2002, p. 627). Como última nota em torno destas questões de género, não podemos descurar que os papéis sociais que desempenhamos diferem conforme o grupo a que pertencemos, o local onde nos encontramos ou a época em que habitamos. Aliás, “o grau com que cada um dos agentes de socialização afecta o processo de aprendizagem social depende do papel a ser aprendido, do género do indivíduo e do seu nível de desenvolvimento” (Neto; Cid; Pomar; Peças; Chaleta & Folque, 2000, p. 23). Na verdade, uma parte dos papéis sociais são apreendidos de acordo com o sexo a que pertencemos e são uma aquisição cultural e quer homens quer mulheres acabam por ser, não só atores, mas também construtores de realidades distintas na sociedade em que se inserem. 171 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura 3.3. O papel da animação sociocultural e os contextos de receção No seio da animação sociocultural é fundamental, antes de mais, determo-nos um pouco em torno do conceito mais genérico que é o de animação. Um dos primeiros autores que se debruçou sobre esta temática foi o belga M. Hicter, que considerou que as práticas que visam ajudar o homem a compreender o seu ambiente social, económico, político, jurídico e cultural, e a tomar consciência dos problemas aí levantados e dos meios e da vontade para resolvê-los correspondia àquilo que se denominava de animação (Quintana, 1993, p. 13). Não obstante, Quintana não considera que esta definição de animação seja a mais pertinente, tendo em conta que a sua noção está associada às principais formas como ela se apresenta, daí que este autor acaba por enveredar por uma análise conceptual detendo-se na etimologia da palavra, que advém de uma dupla raiz latina. O termo animação procede, assim, da palavra latina anima, que significa “vida”, “alimento”, “espírito”, “implica provocar e estimular” e da palavra latina animus que denota motivação, movimento ou dinamismo, um processo inverso de “dentro para fora” (Quintana, 1993, p. 13; Moulinier, Ventosa, cit. por Miguel Badesa, 1995, p. 18; Perez Serrano, 2011, p. 105; Froufe Quintas & González Sánchez, 1995). No fundo, animação é dinamização, ativação, ímpeto das atividades humanas efetuadas por grupos, ou seja, acaba por ser uma forma de pôr em relação as pessoas com o seu meio envolvente (Miguel Badesa, 1995; Quintana, 1993). O Dicionário de Língua Portuguesa revela uma definição genérica do termo animação em que esta é o “acto ou efeito de animar; vivacidade no falar, no olhar, nos movimentos; alegria geral; concorrência de muita gente que manifesta vivacidade; movimento (de idas e vindas, entradas e saídas) ” (Dicionário Priberam). A animação sociocultural, um dos ramos da animação, é um campo ainda relativamente recente na área da dinâmica social, uma vez que desde há apenas umas décadas é que lhe tem sido atribuído maior relevo, por se considerar relevante para uma melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e também como uma ferramenta essencial para a ocorrência de uma mudança social (Perez Serrano, 2004). De acordo com a UNESCO, a animação sociocultural é entendida como o conjunto de práticas sociais que têm como intuito o estímulo da “iniciativa, bem como a participação das 172 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura comunidades no processo do seu próprio desenvolvimento e na dinâmica global da vida sócio-política em que estão integradas” (Lopes, 2006, p. 95). Sabe-se que as origens da animação sociocultural remontam ainda ao pós-guerra, em França. Após 1945 sentiu-se a necessidade de readquirir os valores democráticos europeus arrasados pela ocupação nazi e fazer com que o conceito de liberdade voltasse a aplicar-se de acordo com a tradição humanista ocidental. Consequentemente irrompeu em França um vasto movimento de educação popular e nesta atmosfera acabou por brotar a animação enquanto técnica para incitar todo este movimento cultural, consolidada nos anos 60. Em Portugal atingiu o seu fulgor na segunda metade da década de 70 do século transato (Lopes, 2006). Na ótica de Lopes, a animação sociocultural em Portugal propala-se, até aos dias de hoje, em seis fases distintas (Idem). Assim, a primeira fase, de 1974 a 1976, é a denominada fase revolucionária da animação sociocultural, que acaba por se constituir como um método eficaz para a intercessão junto da comunidade a diferentes níveis. A segunda fase, que se estende de 1977 a 1980 é considerada como a fase constitucional, em que as instituições governamentais acabam por assumir centralidade na intervenção. A terceira fase patrimonialista estende-se de 1981 a 1985 e caracteriza-se pela investigação centralizada na preservação e na recuperação do património cultural. Entre os anos de 1986 e 1990 ocorre a fase em que se verifica a transferência da animação sociocultural da alçada do poder central para o domínio do poder local. Entre 1991 e 1995 estamos perante a fase multicultural e intercultural, em que tal como o próprio nome indica, se verifica uma preocupação com a valorização do multiculturalismo, ou seja, “a necessidade de aprendermos a viver juntos” (Idem, p. 311). A última fase tem início em 1996 e propala-se até à atualidade. Esta caracteriza-se pelo facto de ser a fase da animação sociocultural da era da globalização, que se distingue por uma constante necessidade de descobrir soluções para os reptos da atualidade. Quintana faz menção à animação sociocultural como uma atuação intencional para transformar as atitudes individuais e coletivas mediante a prática de atividades sociais, culturais e lúdicas, feitas de um modo participativo (1993, p. 30). Com esta definição, encara-se a animação como um ato de fazer com que as pessoas sejam parte integrante de um processo que as transforme em membros ativos e protagonistas de um crescimento positivo, que, por sua vez, envolve crescimento cultural e social, que se 173 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura apoia no desenvolvimento da comunidade em que esses mesmos indivíduos vivem (Quintana, 1993). Considerando a análise de diferentes definições de vários autores apresentada por Miguel Badesa, a animação sociocultural é vista pelos mesmos sob várias perspetivas. Destacamos somente, de modo aleatório, parâmetros de alguns autores. De entre essa vasta panóplia de autores, uns consideram-na uma prática social, outros um modelo de intervenção, outros ainda um conjunto de ações. De modo mais sintético, apresentámos o Quadro 3.3., com uma breve sistematização de algumas dessas noções. Neste seguimento, Miguel Badesa acaba por elaborar uma definição em torno deste conceito e revela que, do seu ponto de vista, a animação sociocultural é um modelo de intervenção, com certas ações de prática social, dirigidas e destinadas a animar, ajudar, dar vida e colocar em relação cada indivíduo com a sociedade em geral, sendo que esta intervenção se realiza mediante a utilização de instrumentos que potenciem o esforço e a participação social e cultural (1995). Quadro 3.3 Definições da animação sociocultural Autor Ander- Caride Grosjean Hicter Quintana UNESCO X X Egg Definição Prática social Conjunto ações de Esforço X X X X Modelos de intervenção Tecnologia X Método de intervenção X Fonte: Adaptado de Miguel Badesa, 1995, p.49; Apesar disso, quando pensamos na animação sociocultural temos de ter em conta a diversidade conceitual de que Lopes nos fala, em que se pode verificar uma oscilação na “diferente ênfase que é colocada através do quadro polissémico constituído a partir de uma tríade composta por três termos, Animação + Sócio + Cultural”, que nos remetem para os sentidos que lhes estão implícitos, ou seja, animar, sociedade e cultura 174 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura (Lopes, 2006, p. 142). Para além da animação, de que temos vindo a fazer referência, importa delongarmo-nos um pouco mais pausadamente em torno de outro dos conceitos e ao qual Bernet faz alusão – a cultura. O antropólogo Edward B. Tylor esboçou que a cultura é aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, leis, moral, costumes e qualquer outra capacidade e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade (cit. por Trilla, 1998, p. 14). Está, deste modo, patente uma noção de cultura agregada aos conhecimentos, aos valores, às tradições, aos costumes, aos procedimentos e às técnicas, às normas e também às formas de relacionamento que se obtêm mediante a aprendizagem, o que faz com que o mais importante neste caso seja aquilo que se recebe e produz na vida social e não propriamente aquilo que se difunde ou incrementa em termos biológicos (Trilla, 1998). Considerando esta visão de cultura, torna-se percetível que a animação sociocultural procede de um conceito mais vasto de cultura do que aquele que está associado à linguagem corrente. Não obstante, quando falamos de cultura não podemos deixar de aludir a três tipos de culturas. Reportamo-nos, deste modo, a uma cultura oficial ou dominante, a uma cultura de massas e a uma cultura popular. Enquanto a primeira é normativa, tem poder de decisão e estabelece determinados padrões a vários níveis, nomeadamente estéticos e económicos, a segunda acaba por se direcionar mais para uma produção e um consumo estandardizados. Tal como a própria designação indica, há uma padronização porque se pretende atingir números alargados, as tais massas da população. Posto isto, a animação sociocultural encontrou o seu “referente cultural” na cultura popular, uma vez que esta última se alicerça nas relações de proximidade, face a face, o que acaba por não suceder na cultura oficial ou dominante ou mesmo na de massas (Bernet, 1998, p. 16). Após uma contextualização dos conceitos de cultura no âmbito da animação sociocultural, importa fazer menção a dois termos que, por vezes, se empregam como alternativa. Falamos da animação e da difusão cultural. Conquanto, não podemos deixar de ter em conta as eventuais confusões que se possam criar. Na verdade, uma coisa é considerar os indivíduos e as comunidades como meros recetores da cultura (difusão) e outra é pretender fazer deles agentes ativos desta (animação) (Ibidem). Nesta sequência, enquanto recetores estamos no campo da difusão e, portanto, da passividade e quando passamos para um papel mais ativo de conceção estamos perante a animação. Neste sentido, leia-se o Quadro 3.4, em que procuramos fazer uma sistematização mais 175 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura abreviada de alguns itens atribuídos quer à animação quer à difusão cultural, alguns mais fortes, outros mais simplistas. Quadro 3.4 A animação e a difusão cultural Animação Difusão Participação ativa Consumo cultural A cultura em evolução Património cultural Contacto com toda a população Público composto por uma elite Progresso Manipulação Livre expressão Conservadorismo Comunicação aberta Passividade Comunicação recíproca Comunicação unidirecional Em qualquer ambiente Em templos culturais Valorização do grupo Atividade individualizada Criatividade Recetividade Fonte: Adaptado de Grosjean & Ingberg, cit. por Trilla, 1998, p. 17; Quintana Cabanas, 1992, p. 28 Na ótica de Ander-Egg, a animação sociocultural não se confina a atividades de natureza cultural e social, mas implica igualmente uma atividade que se destina a alcançar determinados fins e adquire o seu pleno significado dentro de perspetivas mais amplas, que são os parâmetros ideológico-políticos de que a animação é feita (1992, p. 177). Como tal, vejamos o Quadro 3.5, como sistematização do papel da animação e do animador na vertente da democratização cultural e da democracia cultural. Quadro 3.5 Quintessência do papel da animação e do animador Animação Animador Democratização cultural Democracia cultural O seu papel institucional tem a ver com a circulação de todo o tipo de discurso cultural, da forma mais eficaz possível. O papel institucional da animação é o de gerar processos de participação cultural da forma mais ampla possível. O animador é um mediador entre a arte e a população e a sua função passa pela transferência de bens culturais. O animador é um catalisador que ajuda a desencadear um processo de dinamização cultural. Fonte: Adaptado de Ander-Egg, 1992, p. 177. 176 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Para percebermos um pouco melhor o Quadro anteriormente apresentado, torna-se pertinente refletir acerca daquilo que são dois dos conceitos: democratização e a democracia cultural. Pela leitura do mesmo Quadro apercebemo-nos que enquanto a democratização cultural se constitui como um processo que tende a uma melhor distribuição da cultura e implica a introdução de reformas sociais, provocando alterações na ordem existente, a democracia cultural acaba por implicar transformações estruturais (Ander-Egg, 1992, p. 178). Grosjean e Ingberg consideram que a democratização cultural reside num conceito patrimonial de cultura (cit. por Bernet, 1998). As políticas de democratização cultural surgiram em França, por volta dos anos 70, e acabaram por se manter enquanto modelo até aos nossos dias. A democratização cultural pretende que o nível cultural das massas seja sublimado, tornando acessíveis os bens culturais. No fundo, pretende-se levar o património e a cultura mais erudita às massas, ou seja, facultar o acesso aos bens culturais com a disseminação da cultura a toda a comunidade e a prática da democratização cultural consiste em proporcionar conhecimentos culturais, em fazer participar a população dos benefícios da elite cultural (Ander-Egg, cit. por Miguel Badesa, 1995). Outrossim, a própria ideia de democratização assenta na difusão e não na fruição, uma vez que existe uma “ambição de tornar acessíveis as obras da humanidade ao maior número possível” de indivíduos (Caune, cit. por Lopes, 2009, p. 2). As bibliotecas, por exemplo, funcionaram durante muito tempo na ótica da democratização cultural, enquanto depósito de livros e manuseado por poucos. A democracia cultural, todavia, expõe uma perspetiva distinta daquela que a democratização cultural expressa. Lopes dá o seu contributo para a definição daquilo que se entende por democracia cultural, alvitrando como princípio basilar a formação de públicos (fala-se no plural porque existem necessidades distintas, não existe uma uniformidade e unicidade nos modos de consumo e fruição), até porque é necessário “controlar e domesticar novos públicos, de certa forma representados como selvagens” (2009, p. 8; Simões, 2006). Aliás, reitera o papel das instituições culturais, com o intuito de se criar um “regime de familiaridade”, para assim transformar práticas e obter novas formas de relação com a cultura (Patriat, cit. por Lopes, 2009, p. 10). A prática da democracia cultural pretende, assim, asseverar a cada um os instrumentos para que, com autonomia e responsabilidade possam ampliar a sua vida cultural e que, assim, cada um 177 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura possa conduzir a sua vida e a sua cultura, respeitando a identidade cultural (Ander-Egg, cit. por Miguel Badesa, 1995). Deste modo, a democracia cultural não é tão-só “um bem de consumo”, ela é igualmente “um espaço para que os cidadãos possam formar a sua própria cultura”, o que nos conduz a uma diversidade (Lopes, 2009, p. 5). A animação sociocultural constitui-se como um instrumento da democracia cultural, mais do que a simples democratização, dado que não é unicamente um meio de difusão da cultura, mas um modo para incentivar as potencialidades das comunidades (Bernet, 1998). Deste modo, almeja-se que a animação sociocultural estimule em cada indivíduo uma postura mais participativa e que não conceba tão-só meros utilizadores que podem assistir as várias ofertas culturais. Tal como Bernet, consideramos que o propósito impulsionador da animação sociocultural consiste em promover nos indivíduos e na própria comunidade uma atitude aberta e determinada, com o intuito de se envolverem nas dinâmicas e nos processos sociais e culturais que lhes digam respeito (Idem). O discurso de Lopes vem precisamente neste sentido quando aborda a questão do “empowerment por parte das populações”, constituindo-se “a partir das necessidades e aspirações das populações” (2009, p. 5). Não podemos deixar de salientar em todo este contexto a importância dos “contextos físicos” de receção e como através deles podemos ler alguns comportamentos (Lopes, 2000, p. 61). Na verdade, “um actor social oriundo das camadas populares sentir-se-á muito mais desinibido (…) num espaço que pode ser considerado como um prolongamento da casa ou da rua e onde não se exigem posturas rígidas e estilizadas” (Idem, pp. 61-62). Esta situação conduz-nos a uma reflexão preliminar em torno dos comportamentos do nosso universo de estudo e daquilo que fomos observando ao longo de todo o trabalho no terreno, em que pudemos constatar um pouco daquilo que Lopes nos diz, até porque “quanto maior for a distância em relação às normas e modos de vida quotidianos (…), maior o esforço intelectual de abstração que os públicos têm de fazer” (Idem, p. 58). Associando estes contextos de receção à leitura, não podemos descurar que o local onde lemos determinado livro durante uma viagem de comboio, na praia ou em casa é sempre diferente porque a ação decorre em contextos distintos de práticas de leitura. Em jeito de epítome, não podemos descurar que a receção cultural, “feita de leituras, interpretações e reconstruções – enfim, de (re)criações”, se molda “a partir de um tempo e de um lugar no mundo social” (Santos, 1998, p. 325; Lopes, 2000, p. 63). 178 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura 3.3.1. A animação sociocultural e a educação de adultos Quando se aborda a questão da educação de adultos, nos dias que correm, já não nos ficamos pela sua definição clássica, que associava este tipo de educação, principalmente, à alfabetização, tal como pudemos constatar pela análise do conteúdo das diferentes CONFITEA’s que se foram realizando nos últimos anos e que abordámos no capítulo inicial. Tal como pudemos constatar também, foi na conferência de Tóquio que a Educação de Adultos passou a ser reconhecida como componente da educação permanente, o que fez com que um dos seus propósitos estivesse relacionado com a promoção cultural da comunidade. Falar de animação sociocultural é remeter para uma” perspectiva tridimensional” que está associada às estratégias de intervenção e que nos remete para uma dimensão etária infantil, juvenil, adultos e terceira idade; de uma área de intervenção e de uma multiplicidade de âmbitos aliados a setores de áreas temáticas, em que podemos também aqui englobar a educação (Lopes, 2006, p. 315). Considerando o universo que nos ocupa, vamos deter-nos com mais detalhe sobre a animação sociocultural na faixa etária dos adultos. Tal como ressalva Lopes, “um programa de animação sociocultural para adultos comporta princípios que devemos ter em conta, pois associam-se a uma necessidade de elevar o ser humano e a torná-lo protagonista e portador de autonomia plena” (Idem, p. 328). Ainda que os adultos que constituem os grupos nestes cursos não sejam totalmente homogéneos e as personalidades, bem como a sua história cultural sejam díspares, há determinados elementos que lhes são comuns. Falamos de algumas características como a autonomia, o prazer na realização de atividades, a identificação, por exemplo, com aquilo que aprendem, com uma atividade e autorrealização pessoal, que passa pelo alcance de determinadas metas, nomeadamente profissionais, familiares, sociais e culturais” (García, Hérnandez Serrano & Pizarro Juárez, 2008). Não se pode negar que as atividades socioeducativas ganham maior relevo nestes cursos, uma vez que dão a estes adultos a possibilidade de colmatar as novas necessidades que vão sentindo, consoante as alterações que ocorrem na própria sociedade. A animação sociocultural abarca o reconhecimento do caráter educativo da experiência vivida em distintos contextos do universo escolar. Daí que consideremos, de acordo com a nossa experiência no terreno e mediante o contacto com estes públicos, 179 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura que nos cursos EFA mais importante do que inculcar-lhes uma imensidão de novos e mais conhecimentos teóricos é preciso estimular e desenvolver competências diversificadas a diferentes níveis. Petrus reforça esta ideia salientando que mais importante que dar conhecimentos é quiçá despertar a capacidade de observação, de atenção, de crítica (cit. por Froufe Quintas & González Sánchez, 1995, p. 34). Importa essencialmente desenvolver espaços de diálogo entre estes públicos e todos aqueles que os acompanham no seu percurso. Na verdade, não podemos descurar, tal como salientam Puigvert e Ruíz, mediante o trabalho desenvolvido com estes públicos e em particular com mulheres, há uma elevação da autoestima quando se verifica uma aposta nas suas capacidades, em particular pelos formadores, o que em alguns casos conduz a” transformações pessoais, nas relações no lar, assim como transformações sociais” (2004, p. 209). Essas transformações a vários níveis que acabam por se verificar advém dos novos significados que se introduziram nas suas vidas, principalmente quando elas se apercebem que aquilo que descobrem entre as quatro paredes de uma sala de formação tem algo a ver com elas, com as inquietações, com o seu dia a dia (Puigvert e Ruíz, 2004). Quintana considera que a Animação Sociocultural é um modo frequente e muito apropriado para fazer a Educação de Adultos (1992). Esta ideia acaba por estar também patente na 3.ª CONFITEA, em Tóquio, quando se salienta que com o intuito de permitir aos adultos participarem de forma significativa e criativa na vida cultural da própria comunidade, deve ser dada especial atenção à dimensão cultural da educação de adultos, até porque estas duas noções são interdependentes (UNESCO, 1972, p. 20). O conceito tradicional de educação sofreu uma amplificação com o decorrer do tempo e das próprias instituições, tal como frisámos no capítulo inicial. Relativamente à variável tempo, apercebemo-nos que a educação não está meramente relacionada com a infância e adolescência das pessoas. Ela acaba por se estender pelos vários períodos da vida dos indivíduos, transformando-se, desse modo, em educação permanente. Tal como podemos aferir mediante uma leitura da Figura 3.3, a escola e a família já não são os únicos elementos que contribuem para a educação dos indivíduos, uma vez que existem muitas outras instituições sociais que contribuem para a formação das pessoas mesmo na idade adulta (Quintana, 1992). 180 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Tempo Animação sociocultural Educação Permanente Adolescência Infância Escola Família Educação de adultos Instituições Fonte: Adaptado de Quintana Cabanas, 1992, p. 14. Figura 3.3 Animação sociocultural e Educação de Adultos No contexto da educação na idade adulta, Requejo Osório fala de uma pirâmide dos públicos relativamente aos recursos educativos e no acesso aos bens culturais (2004, p. 245). Deste modo, distingue quatro níveis distintos de públicos, começando pelo topo daquela que designa como pirâmide, enquadrando aí o “público real”, que corresponde a uma minoria daqueles que têm o apanágio de possuir instrumentos e infraestruturas culturais; o “público potencial”, que embora tenha dificuldade em usufruir dos bens culturais possui níveis relativamente altos de instrução; na base da pirâmide encontramos o pré-público e o não público, cujos indivíduos correspondem, segundo o autor, à maioria da população, caracterizada pelos baixos níveis de instrução ou pela exclusão do acesso a infraestruturas culturais (Ibidem). Não podemos desconsiderar, quando falamos de públicos, que o “alargamento do acesso às obras não se faz, exclusivamente (…) pela mera aprendizagem de um conjunto de regras e cânones elucidativos da maneira «correcta» de as ler, mas reivindica a “integração dessa aprendizagem numa «totalidade de sentido» ” (Lopes, 2000, p. 60; Rodrigues, cit. por Lopes, 2000, p. 61). Tendo em conta esta distribuição de públicos que Requejo Osório mencionou, não podemos deixar de estabelecer uma relação com o capital escolar de que Bourdieu nos fala, que não se converte necessariamente em capital cultural. De acordo com Bourdieu, o capital cultural pode adotar três formas distintas: um capital incorporado, sob a forma 181 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura de disposições duráveis, que Bourdieu designa de habitus; um capital objetivado sob a forma de bens culturais, ou seja, possui uma forma material (livros, dicionários) e um capital institucionalizado, cuja objetivação se faz sob a forma de títulos que as instituições atribuem (1979). Quando falamos do capital cultural, de uma forma abrangente, temos de ter consciência que muitos destes adultos acabaram por adquiri-lo no exterior dos seus contextos familiares porque, conquanto as suas habilitações escolares não sejam elevadas as dos seus pais acabam por ser francamente inferiores, e nos adultos mais jovens revela-se a importância da “convivialidade informal, associada a uma ética de diversão” (Lopes, 1998, p. 187). Importa neste caso direcionarmo-nos para o capital incorporado a que Boudieu faz menção, indo ao encontro do conceito de habitus, princípio gerador e estruturador das práticas e das representações (1982; 2007). Quando nos reportamos à cultura, e neste caso concreto a uma articulação entre a animação sociocultural e a educação de adultos, este conceito não pode ser pensado fora deste âmbito, dado que é produto de relações sociais. Através dele, os indivíduos incorporam as regras, os valores e os lugares do mundo social. Na ótica de Bourdieu, o corpo está no mundo social e o mundo social está no corpo , assim como a incorporação do social que concretiza a aprendizagem é o alicerce da presença no mundo social que assume a ação socialmente bem sucedida e a experiência habitual deste mundo (1982, p. 38). Não podemos deixar de salientar, a este propósito, os comentários de Wacquant em que afirma que o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade do senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “ a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de determinados modos (2004., p. 36). Na verdade, as pessoas movimentam-se em campos, esferas da vida social que, de modo paulatino, foram alcançando autonomia através das relações sociais estabelecidas. Neste sentido, Bourdieu considera que é necessário conhecer por um lado as condições sociais de produção dos atores principais ou, mais precisamente, as suas disposições duráveis, e por outro lado a lógica específica de cada um dos campos (1982, p.39). Campo e habitus são, deste modo, aquilo que Bourdieu designa como dois modos de existência do social (Idem, p. 38). 182 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura No início deste capítulo abordámos a questão da socialização dos indivíduos, aludindo às várias instâncias que o acompanham ao longo do ciclo vital. No contexto da animação sociocultural e da educação de adultos recuperamos essa ideia. É importante termos em conta que o adulto é, por um lado, objeto de socialização “na medida em que o mundo social exerce sobre ele uma dominação cultural, uma pressão social, um condicionamento social ou um controlo social, que levam à interiorização de elementos culturais (saberes, saber-fazer, ideias, valores, normas)”, mas é também, por outro lado, “sujeito da sua própria socialização”, de acordo com a informação que foi conquistando através da imposição social e numa influência recíproca contínua com o seu meio sociocultural (Lesne, 1977, p. 32). Todavia, Lesne considera que o adulto é também um agente de socialização, uma vez que desempenha uma determinada ação sobre as outras pessoas, até porque “todas as pessoas estão potencialmente aptas a apresentar e a transmitir novas formas de agir, de pensar, de sentir” (Idem, p. 33). Os adultos, e reportando-nos em concreto àqueles que frequentam os cursos de educação de adultos, não devem cingir-se a cumprir o papel de simples recetores. Cremos que essa posição é necessária em alguns momentos, mas ela deve ser conciliatória ao longo do seu percurso entre uma postura de agente e criador, com o intuito de contribuir para o seu crescimento enquanto pessoa e cidadão. A propósito das duas posições supramencionadas, importa reter a ideia de que, “a reprodução nunca se processa na invariância. Qualquer processo reprodutor (…) acrescenta sempre algo de novo à realidade” (Lopes, 1997, p. 70). Além disso, importa salvaguardar que “não há práticas culturais eminentemente passivas: a «natureza» da expressão cultural não é a apatia inexpressiva, pelo contrário, a passividade absoluta será a exceção” (Ibidem). Ressalve-se que, quando nos reportamos aos indivíduos que integram estes cursos de educação de adultos, a socialização primária, feita no seio da família, não é suficiente para a aprendizagem da leitura, daí que o gosto pela leitura, quando é alcançado, seja feito no exterior do círculo familiar. A complexificação dos papéis sociais e uma maior interação entre os grupos constituem, na verdade, fatores marcantes no âmbito da leitura. 183 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura 3.4. A animação da leitura e os espaços de mediação: articulação entre os cursos EFA e as bibliotecas públicas Antes de entrarmos na animação da leitura propriamente dita e do ponto de vista de diferentes autores, importa reter o conceito de animação. Ele remete-nos, de acordo com o Dicionário Priberam de Língua Portuguesa on-line, para o “acto ou efeito de animar; vivacidade no falar, no olhar, nos movimentos”. Este “acto ou efeito de animar” implica, por sua vez, “dar vida” a algo, “dar alento, força, coragem”, “”promover o desenvolvimento de” algo ou ainda “imprimir movimento”. Após esta contextualização inicial do termo, associámo-la à leitura e tentamos perceber de que modo é que elas se conjugam e constatamos se a definição inicial de animação se mantém. Na perspetiva de Martín Rogero, Domech Martínez e Delgado Almansa, animar ou incitar um jovem a ler é enveredar numa aventura em que este se converte em protagonista, a partir do momento em que se identifica com as personagens da história (1996, p. 20). Posto isto, a animação da leitura constitui-se como uma atividade em que é proposta uma aproximação e um aprofundamento em torno dos livros, de forma criativa, lúdica e atrativa (Ibidem). Por sua vez, Ameijeiras Sáiz considera que a animação da leitura implica um “aproximar o livro de forma fruitiva, para apreendê-lo, para fazê-lo próprio, para que esta interacção leitor-livro permita a formação e o crescimento pessoal” (2007, p. 166). A animação da leitura acaba por se tornar sinónimo de motivação, já que ela envolve o estímulo da curiosidade, com o intuito de levar a quem está do outro lado a tornar-se também mais participativo. Não obstante, a animação da leitura não é simplesmente dizer a alguém que nos escuta para fazer algo, mas mostrar-lhe a leitura, apresentar-lhe um livro, uma história de uma forma distinta, em abrir uma porta, uma possibilidade, através da qual se podem abrir muitas mais portas, entrando num verdadeiro labirinto intrigante e apaixonado (Cerrillo, Larrañaga & Yubero, 2002, p. 19). Considerando a realidade quotidiana, a animação da leitura é traçada como o conjunto de atividades, técnicas e estratégias que exercem a prática da leitura, ainda que tendo no horizonte a meta de formar leitores ativos, capazes de compreender mensagens diferentes e de relacionar uma história no seu contexto (Idem, p. 83). Não obstante, é necessário termos presente o facto de a aprendizagem da leitura se considerar uma competência técnica, enquanto o hábito de leitura nos remete para o comportamento e deste modo o prazer entretece-se com o 184 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura ambiente e as necessidades internas (Martín Rogero, Domech Martínez & Delgado Almansa, 1996, p. 20). Se pensarmos na definição de leitura do capítulo anterior apercebemo-nos que ela acaba por ser um ato mais individual, embora implique diálogo, que exige atenção e concentração. Contudo, se pensarmos na animação e tivermos em conta a forma como diferentes autores a encaram, constatamos que, inversamente, esta é uma atividade coletiva, que envolve várias pessoas e acaba por ter um certo caráter lúdico. Para que não haja confusões, é necessário ter em consideração que esta última por si só não vai formar leitores, muito menos leitores experientes de um dia para o outro, mas pode ajudar na aquisição de comportamentos leitores. Com o intuito de contribuir para a obtenção desses comportamentos, é necessário motivar e estimular o indivíduo, criar atividades à volta dos livros para que ele compreenda que a sua participação é essencial e deixe de ser simplesmente consumidor de bens culturais e se torne naquele sujeito ativo e crítico de que falávamos anteriormente, para que assim possa estabelecer uma interação com os livros (Martín Rogero, Domech Martínez & Delgado Almansa, 1996). A animação implica também promoção, neste caso do livro e, na perspetiva de Agudo, esta promoção da leitura significa criar hábitos, educar ou reeducar perceções e conceber ou mudar atitudes (cit. por Martín Rogero, Domech Martínez & Delgado Almansa, 1996, p. 15). Se a promoção da leitura, tal como consta do estudo realizado sobre as Práticas de Promoção da Leitura nos Países da OCDE e pudemos constatar no capítulo anterior, se relacionava com a criação “de competências de compreensão do código escrito (…), com a elevação dos níveis de leitura (…) ”, mas também “com a elevação dos níveis de compreensão do texto escrito e da sua utilização quotidiana (…) ou ainda com o enraizamento dos hábitos e do gosto pela leitura”, podemos inserir a animação neste último âmbito (Neves, Lima & Borges, 2008, p. 10). Para que se verifique um “enraizamento dos hábitos e do gosto pela leitura” é necessário que haja uma aproximação entre as pessoas e as bibliotecas neste caso concreto e que essa aproximação não seja esporádica, daí a necessidade de criação de atividades que fomentem esta relação mais contígua (Ibidem). Quando pensamos nas atividades de animação da leitura remetemo-nos principalmente para os mais novos, mas através dela, também os adultos têm a possibilidade de manter um contacto com o que os rodeia e com todos os outros mundos 185 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura que alimentam as suas quimeras. Este contacto permite ao adulto desenvolver também o seu espírito crítico, e consequentemente a sua capacidade de seleção em relação aos bens e usos culturais (Martín Rogero, Domech Martínez & Delgado Almansa, 1996). Quando falamos de animação é necessária uma dose de imaginação para recorrer a uma série de materiais que podem auxiliar nesse sentido. Assim, todos os materiais devem constituir-se como auxiliares de leituras plurais e não singulares. Não obstante, se recuarmos um pouco no tempo até ao curso em que o nosso objeto empírico foi protagonista, podemos aferir que a animação da leitura permitiu rasgar certos afastamentos que se verificaram no que à leitura diz respeito, assim como compreender de que forma se poderiam partilhar leituras através da animação. Naquela altura acabámos por estabelecer, através do módulo de LC, uma ponte entre elas, os livros e a leitura, mediante distintas estratégias adequadas ao curso e ao grupo. Mas, cogitar sobre a animação da leitura “compreende também pensar sobre os espaços institucionais em que estas actividades são a sua essência – as bibliotecas” (Ministério da Educação, 1996, p. 11). Salvaguardemos, contudo, que a animação da leitura não é exclusiva das bibliotecas públicas muito embora estas traduzam uma “heterogeneidade de papéis pela diversidade de espaços e de serviços disponíveis”, esse é apenas um de entre muitos outros espaços de mediação em que ela pode ser feita, até porque esse espaço deve ser visto a partir do uso que os indivíduos fazem dele (Lopes & Antunes, 2001, p. 22). Aliás, o que se pretende e neste caso particular da educação de adultos é que haja uma articulação de distintos espaços de mediação. A mediação cultural vai ao encontro do outro, das perspetivas diferentes do outro, da alteridade. No caso das bibliotecas públicas, o bibliotecário passa a ser também um mediador, um intermediário cultural, esta torna-se uma profissão mais híbrida e de fronteira de saberes. Tal como vimos anteriormente, as bibliotecas são portais de acesso à informação, centros de cultura, multiusos muitas vezes, e uma forma de promover também a literacia e a cidadania. Em alguns casos elas constituem o único centro cultural da localidade, onde se congrega uma multiculturalidade, enquanto somatório das diferenças. Pensando precisamente na animação e na conciliação com os espaços de mediação, é talqualmente importante que se estabeleçam “acções planeadas e minimamente enquadradas (…) para a interiorização de disposições estéticas a partir das quais a vivência da obra cultural” – neste caso em particular do livro, da história, da obra do autor – “ se torna mais rica e enriquecedora” (Lopes & Pinto, 1999, p. 14). 186 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Além disso, e pensando ainda no espaço das bibliotecas públicas, importa reter que os projetos de animação ocorrem “tentando combater a banalização dos usos do espaço, trazendo um efeito novidade que fideliza e amplia públicos” (Lopes & Antunes, 2001, p. 23). Para que se possam concretizar essas ações de animação da leitura é necessária a presença de um mediador, que se torne “a ponte ou enlace entre os livros” e os leitores que com ele contactam (Cerrillo, 2006, p. 35). Na verdade, a presença dos “agentes de mediação da leitura” compreende uma “multiplicidade de espaços e, sobretudo, de personagens sociais que filtram, reflectem, retraduzem e reconstroem um conjunto de sentidos” (Medeiros, 2006, p. 346). Aliás, os agentes de mediação podem ser múltiplos, estando entre eles a escola e a biblioteca. Pensando agora nos mais novos, o primeiro contacto que, à partida, deveriam ter com o mediador seria no seu ambiente familiar: os pais. A casa pode ser aqui encarada também como um dos primeiros espaços de mediação. Não obstante, e tal como realça Cerrillo, “muitos pais não possuem (…) uma certa preparação” e as nossas preocupações direcionam-se de imediato para o público-alvo que frequenta estes cursos (2006, p. 43). Basta pensarmos um pouco no nosso universo no início e no final daquela formação, não que se tivessem transformado em mediadoras especializadas e profissionais, mas o facto de se desenvolverem variadíssimas atividades de animação da leitura e de fomentar práticas de leitura, respeitando as suas singularidades, permitiu-lhes terem um background mais amplo acerca do que se pode fazer com uma simples história em termos de crescimento pessoal e até profissional, mas também para poderem partilhar com os filhos numa primeira instância. Numa família onde não existam estas práticas quotidianas e um contacto mais lúdico com a leitura acaba por se tornar mais árduo o caminho para que as crianças tenham ensejo de alcançar esta intimidade com o texto escrito (Salgado, 2010). Há determinados parâmetros que os pais mediadores, neste caso particular as mães mediadoras, devem ter em linha de conta, nomeadamente que ler não é um desperdício de tempo; ler é engraçado; a leitura não é uma punição e muito menos uma imposição; é importante que os pais leiam/contem histórias aos filhos e façam descobertas em conjunto, mas também que os filhos vejam que os pais leem porque isso pode fazer com que eles queiram ler mais porque isso vai ter também um certo impacto 187 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura não só nas posturas, mas também na própria motivação das crianças (Cerrillo, 2006; Salgado, 2010). 3.4.1. Abordagens distintas da mediação da leitura em bibliotecas públicas no contacto com os públicos Se no ponto anterior nos reportamos a espaços de mediação como as bibliotecas e a uma articulação entre estas e os cursos EFA, através de uma aproximação aos livros, consideramos pertinente entrar um pouco mais naquela casa que abriga não só os livros que guardam palavras e memórias, mas também as leituras que se fazem com os cinco sentidos. Neste caso particular importa perceber um pouco melhor as políticas culturais e as práticas reais, sem deixar de fazer um enquadramento desses espaços, nos concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos e que estão mais próximos daquele que é o nosso objeto empírico, até porque essa foi precisamente uma das questões levantadas no capítulo anterior. Neste sentido, pretendemos usufruir dos diálogos estabelecidos com atores institucionais dos concelhos de Vagos e de Ílhavo em particular, uma vez que estes tiveram, em diferentes momentos, contacto com este grupo. Neste patamar consideramos que mais importante do que os números daquilo que se gastou, é realmente perceber o que existe em cada um destes municípios a nível de espaços e de políticas efetivas no âmbito da leitura e também compreender de que modo é que estes espaços vão ao encontro das pessoas e das suas necessidades e concomitantemente perceber o seu papel enquanto “agentes de “democratização cultural”, papel indissociável da sua natureza multidimensional de esfera pública” (Rodrigues, 2007, p. 135). Não podemos deixar de fazer alusão ao panorama nacional, em que claramente se constata que ao longo dos últimos anos ocorreu um aumento do número de bibliotecas. Essa situação conduz a uma necessidade de maior preocupação com uma “cultura dos espaços-locais” e que essa seja acima de tudo uma “cultura do sujeito” e não do que esse espaço contém ou do que ele representa porque as bibliotecas se constituem, tal como salienta Nunes, como espaços de leitura, de encontro cultural e interação social (Azevedo, 1997, p. 145; 2007). Por isso é igualmente importante que as bibliotecas 188 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura interajam com as pessoas que a circundam e que, mediante processos criativos distintos adequados aos seus públicos, criem “uma oferta cultural local, ampla e diversa” (Azevedo, 1997, p. 181). O historial da biblioteca municipal de Aveiro é já longo, remontando a 1926. Tal facto levou a que, com o tempo, houvesse alteração dos espaços, daí que em 1993 tenha sido inaugurado o novo edifício desta biblioteca municipal, fruto de restruturação e adaptação de um edifício que manteve o seu traçado arquitetónico exterior. Esta biblioteca apresenta dois polos de leitura nas freguesias de Esgueira e Eixo (na parte mais no interior do concelho) e outro associado ao projeto Continuar Santiago-Griné. São distintos os serviços que disponibilizam ao utilizador, nomeadamente serviços de referência, periódicos, autoformação, digitalização, internet, um programa de animação e ainda os serviços da biblioteca itinerante. Este último permite uma maior aproximação entre as crianças e a leitura, assim como a biblioteca, já que esta vai ao encontro dos seus leitores. De qualquer modo, este serviço dirige-se às crianças dos jardins de infância e das escolas de 1.º e 2.º ciclo do município de Aveiro. Se o historial da biblioteca de Aveiro é já bastante extenso, não podemos dizer o mesmo da biblioteca no município de Vagos. Aliás, tal como salienta um dos presidentes de junta de freguesia daquele concelho: A biblioteca está sediada há 7/8 anos no Centro de Educação e Recreio. Agora o que está aprovado em Vagos, que já está há espera há muito tempo, está aprovada e vai entrar em obras, este ano ainda, é a nova biblioteca com equipamento do mais moderno que há, apoiada pelo IPLB, pelo Estado Português e pela Câmara Municipal (Presidente da Junta de Freguesia de Soza Vagos, 54 anos). Efetivamente, em 2010 foi apresentada uma candidatura para a construção de um novo espaço da biblioteca municipal em Vagos, iniciando-se a sua construção no decorrer de 2011. Esta não é uma construção de raiz, mas a adaptação de um edifício que outrora agregou outros serviços, em que será preservada a fachada desse mesmo edifício que foi considerado um das três obras de referência do século XX em Vagos pela Ordem dos Arquitetos. Este foi um edifício que começou por ser escola primária, em 1927, possuindo o nome de um escritor daquela localidade do século XX João Grave. Pela nossa experiência no terreno enquanto investigadores, e pelo facto de termos estado naquele lugar em particular, consideramos que o espaço atual da biblioteca, a 189 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura funcionar no Centro de Educação e Recreio, não é propriamente cativante e acolhedor para os seus utilizadores, porque este é também um fator importante para que os seus utilizadores se sintam confortáveis no espaço envolvente. Um pequeno corredor dava acesso a um hall com dois sofás do lado direito, gastos pelo tempo. Do lado esquerdo uma porta dava acesso às instalações do jornal e ao WC. Do lado direito havia também uma porta que dava acesso à biblioteca. Esta resumia-se a uma sala, não muito grande, com estantes quase até ao teto, de ambos os lados da sala. Não estavam completamente cheias. Algumas prateleiras estavam vazias. Ao fundo, de frente para a porta, duas secretárias juntas, com um computador com ecrã mais antigo e uma carpete por baixa das mesas. Havia um amontoado de livros na secretária e junto da janela. Do lado direito e esquerdo da secretária mais algumas prateleiras com documentos amarelecidos pelo tempo. Na parte da frente das secretárias estavam 3 cadeiras/sofá e 1 cadeira. Por detrás das secretárias as estantes tinham duas prateleiras de uma ponta à outra da sala, não só com livros, mas também com alguns dossiers. Umas cortinas brancas nos cantos e azuis no meio impediam o sol de entrar na sala. No centro da sala havia uma carpete e uma mesa comprida, rodeada por 8 cadeiras. Alguns livros estavam espalhados em cima da mesa. No centro da sala, de frente para a porta, estava ainda um quadro com relevo do busto de João Grave (Diário de campo da visita à Biblioteca Municipal de Vagos, 2010-07-29). Conquanto, considera o mesmo interlocutor institucional, a propósito do novo esboço da biblioteca, ainda que um pouco reticente, que O projeto é espetacular. Agora só espero que tenha a utilidade que se deseja. Não sei se sou um bocado cético a isso, acho que as pessoas dedicam muito pouco tempo à leitura e, se quer que lhe diga, apesar de ser uma obra magnífica para Vagos, tenho receio que vá ser um elefante branco (Presidente da Junta de Freguesia de Soza Vagos, 54 anos). Saliente-se que é também em 2010 que surge a formação da Rede de Bibliotecas de Vagos, vulgo RBV, que envolve a parceria de distintas instituições de índole diversa, estando no topo desta relação a Biblioteca Municipal de Vagos (BMV). A criação de um projeto desta ordem permite uma maior interligação entre as instituições e um trabalho conjunto de acordo com as necessidades dos seus utilizadores. De qualquer modo, nota-se que o foco continua direcionado para os mais jovens. Não podemos, todavia, deixar de fazer menção ao plano de atividades de 2009/2010 que nos foi apenas facultado para consulta e do qual não dispomos de qualquer cópia física. Embora surgisse em folhas soltas nele encontramos menção a algumas dinamizações direcionadas para menores de 12 anos, mas também para a população juvenil. Aí 190 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura deparamo-nos igualmente com a referência a duas dinâmicas dirigidas para a população em geral, com caráter mensal ou bi-mensal. Não obstante não havia qualquer alusão à forma de divulgação das mesmas. Salienta-se nessa planificação a realização da atividade com a presença de voluntários ou público interessado. E aqui surge mais uma vez a questão: como se cativa esse público? Apercebemo-nos igualmente que há neste concelho e em particular em algumas freguesias uma preocupação em coordenar outro género de atividades culturais para os adultos também, de modo a que as pessoas participem e interajam. Nas palavras de um dos interlocutores institucionais deste município, estão, assim, patentes preocupações com o desporto, o teatro e atividades de índole diversa: atividades promovidas pela Câmara Municipal – os Jogos sem Fronteiras, o concurso que é os Sabichões, apoiamos todas as festas da freguesia e temos bastantes festas na freguesia e o desporto também. Apoiamos também o Sozense, que é a equipa mais representativa, mas temos outras atividades desportivas nas outras associações. Há até os jogos tradicionais populares das festas, os jogos de solteiros e casados e solteiras e casadas. Há algumas atividades culturais desenvolvidas pelas próprias associações, que nós apoiamos. Houve um grupo de teatro, que neste momento está desativado. Estamos à espera que alguém se disponha a perder algum tempo da sua vida pessoal para se dedicar um bocadinho ao teatro porque é uma coisa que envolve muita gente e é necessário muito tempo para ensaios (Presidente da Junta de Freguesia de Soza Vagos, 54 anos). Em Ílhavo encontramos uma situação algo diferente. A Técnica Superior daquela biblioteca fala-nos acerca da população daquele concelho, das suas necessidades e carências, e da presença de um espaço físico como o da biblioteca municipal. Antigamente não havia biblioteca em Ílhavo, não havia aquele hábito de vir à biblioteca. Há muito a mania, acho que é mais mania, que as pessoas de Ílhavo são uns ilustres, todos são poetas, todos são artistas e não precisam da biblioteca para nada e isso faz de um determinado grupo uma elite que na realidade não é. Não são carentes, precisam é de acordar. Depois há outro grupo que tem muitas necessidades, com muitas carências. Não é que não queiram contactar com o livro, faltam-lhe os hábitos (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Na verdade, não podemos olvidar que o “volume e estrutura dos recursos de que os indivíduos dispõem, reportáveis à origem familiar, à posição actual e à trajectória biográfica, são determinantes na definição das suas condições sociais de existência, nas experiências que vivem e nas socializações que sofrem” e esta situação “resulta na 191 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura incorporação provável de formas de pensar e maneiras de agir constitutivas de sistemas de disposições estruturados” e deste modo as suas práticas culturais são fruto dessa forma de estar, de pensar e mesmo de agir (Rodrigues, 2007, p. 137). O utilizador que nos visita hoje, muitas vezes, chega aqui ao balcão da receção, quando se inscreve, pergunta quanto é que tem de pagar, quanto custa ser utilizador. Não está habituado à ideia que na biblioteca tudo é gratuito e que a biblioteca lhe permite usufruir de todos estes serviços. Esta ideia de biblioteca ainda não existe muito na mente do concelho (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Aliás, ainda é possível constatar em algumas pessoas do concelho de Ílhavo que estas não conhecem propriamente o modo de funcionamento das bibliotecas e que existe um afastamento e alguma retração ao seu uso, principalmente dos mais velhos, porque os mais novos acabam por ter algum tipo de contacto, nem que seja através da escola. Esta é uma biblioteca, inaugurada em 2005, com uma parte de arquitetónica construída de raiz e outra de recuperação do que remanesce do Solar Visconde de Almeida ou Palácio de Alqueidão, um edifício nobre dos séculos XVII/XVIII. Destes tempos e constituindo-se como uma característica peculiar deste edifício, deparamo-nos com a capela que foi restaurada e, nas palavras da sua Técnica Superior, não existe em mais biblioteca nenhuma do país. (…) Orgulhamo-nos de só nós termos uma capela, que funciona, pelo menos uma vez por ano. Pelo menos no 1º sábado de Agosto celebramos a festa da Nossa Senhora das Neves. (…) Nós servimo-nos sempre da nossa capela para depois através disso trazermos as pessoas para o espaço da biblioteca. A seguir a essa cerimónia religiosa temos sempre uma atividade cultural ou de música ou um pequeno teatro ou uma outra atividade do género. Também já tivemos algumas cerimónias que, a seguir a elas, houve um lançamento de um livro, do próprio frei que celebrou a eucaristia (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Não obstante caracteriza-se pela relação de proximidade com os seus utilizadores, enquanto espaço de interação e sociabilidade, não se centralizando unicamente no espaço físico da biblioteca pública no centro de Ílhavo. Este trabalho em torno da leitura desfragmenta-se em polos distintos, distribuídos pelo município, ainda que agregados à Biblioteca Municipal. Qualquer munícipe pode solicitar o espaço da polivalente para expor os seus trabalhos, ou seja, a biblioteca como espaço e veículo para o serviço da cultura e essa é uma das missões principais aqui da biblioteca. Falo dos 3 polos de leitura – Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação e Gafanha do Carmo – e do polo 192 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura de leitura da temática marítima, que é o polo que está no Museu Marítimo. Houve uma reformulação dos polos de leitura da Encarnação e do Carmo e eles passaram a ter dupla valência. Eles são ao mesmo tempo Fórum da Juventude e polo de leitura (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Está patente no discurso da Técnica Superior da Biblioteca de Ílhavo uma preocupação com todos os utilizadores sem exceção, disponibilizando diversos serviços, nomeadamente: consulta local com livre acesso às estantes, consulta do catálogo em formato digital, consulta na internet, empréstimo domiciliário mediante a utilização do cartão de utilizador, promoção do livro e da leitura, acesso a periódicos e serviço de referência, que envolve o processo de comunicação com o objetivo de satisfazer as necessidades dos utilizadores daquele espaço. Todo este trabalho conjunto dos técnicos é feito em torno do livro e da leitura, que vai ao encontro da “heterogeneidade dos consumos e práticas culturais” dos indivíduos (Rodrigues, 2007, p. 135). Nós entretanto fizemos uma atualização do nosso regulamento. Tínhamos muita procura dos concelhos limítrofes e então tivemos mesmo que fazer aqui uma alteração. Neste momento qualquer cidadão português pode ser nosso utilizador. Foi uma pressão muito grande que fiz na altura do curso [Ação Educativa do concelho de Vagos] e de outras que surgiram. A nossa distância em relação a Aveiro é uma coisa mínima, temos um concelho aqui ao lado que não tem biblioteca. Vagos não tem propriamente biblioteca neste momento. Tem lá um espaço, biblioteca propriamente dita não. Se nós temos uma mais-valia que podemos oferecer por que é que não haveremos de o fazer? No fundo, são dinheiros públicos que estão aqui e devem ser aproveitados. O meu balanço é mais do que positivo (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Consideramos que está patente no transcorrer destas palavras que a Biblioteca Municipal de Ílhavo se configura “como um espaço dinâmico em termos físicos e simbólicos, onde se intersectam sentidos e expectativas diversos, onde se estabelecem relações densas e negociadas, onde as sociabilidades, a cultura, a educação e o conhecimento acontecem quotidianamente” (Rodrigues, 2007, p. 150). As sinergias que emanam desta biblioteca ultrapassam os meros limites espaciais daquele concelho, procurando colmatar as necessidades e carências presentes do concelho de Vagos, mesmo ali ao lado, que os leva também a uma aposta numa abertura total a qualquer tipo de públicos: 193 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura No final de setembro [de 2010] tínhamos 5392 utilizadores inscritos e nesse mês tivemos 27 novos utilizadores. Entre 25 a 30 é a média mensal. (…) O que eu pretendo é que a biblioteca seja o elemento impulsionador e promotor do livro e da leitura no concelho. Quando eu digo do concelho, digo junto dos munícipes, junto dos leitores e dos futuros leitores, desde os mais pequeninos até aos mais idosos, à nossa maioridade. Pretendemos ser um espaço aberto a todo o público em geral, a todos aqueles que nos visitam um espaço aberto não só de leitura, mas um espaço de convívio porque as pessoas nos visitam para tomar café, para pedir uma informação, para festas de aniversário. Neste momento temos um trabalho em rede, temos constituída a rede de bibliotecas de Ílhavo (Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo, 35 anos). Em suma, todos estes contextos envolventes abarcam um “quadro de vida específico onde se desenvolve um leque finito de práticas sociais” (Lopes, 2000, p. 159). 3.5. Deambulações em torno da leitura e as distinções de género Quando falamos dos públicos e neste caso em particular dos públicos da leitura e porque o nosso universo acaba por conter uma homogeneidade de género, importa refletirmos um pouco acerca da leitura e do género, mais feminino neste caso, mas sem deixarmos de dar umas breves pinceladas no género masculino e na sua relação com a leitura, não descurando que a socialização de género (…) se traduz “em diferentes percepções do mundo e no desenvolvimento de representações e atitudes que têm um efeito concreto nas práticas sociais” (Lopes & Antunes, 2000, p 25). De acordo com os estudos desenvolvidos constatou-se que o papel da socialização de género arroga contornos perentórios na estruturação dos perfis de leitura (Lopes & Antunes, 2001). Recuperando um pouco a ideia de que a leitura implica uma construção de significados, expressa no capítulo anterior, não podemos deixar de salientar também que nas leituras que cada leitor escolhe para si acabam por estar patentes “variáveis sociais e motivacionais”, acabando este por imprimir em cada leitura as suas singularidades de acordo com as suas práticas e vivências quotidianas (Dumont & Espírito Santo, 2007, p. 29). Afinal, cada indivíduo tem a sua história de vida, as suas vivências ou não do ato de ler, enquadram-se em meios distintos e o seu património cultural e linguístico acaba por sofrer variações, uma vez que os percursos individuais dos sujeitos não são meras cópias uns dos outros. 194 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Neste âmbito, Radway é uma das autoras que contribui para asseverar a dissemelhança entre o leitor explícito e o leitor real, evidenciando a distinção existente entre a ideologia patriarcal do romance de cordel e as leituras emancipatórias realizadas pelas suas leitoras. Outrossim, ela destaca as práticas de leitura das mulheres de Smithton, desvelando como as suas leituras se constituem como formas de afirmação identitárias. Aliás, as mulheres leitoras desta localidade realçam os prazeres que o ato da leitura em si lhes concede. Na realidade, a leitura faculta-lhes uma experiência diferente daquela com que se deparam no quotidiano, proporcionando-lhes esta experiência esperança e aprazimento (Radway, 1983). Esta experiência resulta não somente com o intento relaxar perante a tensão originada pelo dia a dia e pelas responsabilidades, mas permite-lhes terem um momento e um espaço reservado apenas para elas e saírem do ambiente, das pressões e da rotina diárias, deixando de lado por momentos, as tarefas domésticas, o dever de mães ou mesmo as obrigações conjugais (Radway, 1983; 1984; 1991). Neste caso, a leitura possibilita a estas mulheres “escapar-se um pouco das malhas da rede social, para sair, discretamente, fora do tempo e do lugar onde é preciso, durante todo o dia, manter o seu lugar, manter-se no seu lugar” (Petit, cit. por Lopes & Antunes, 2000, p. 23). A propósito da leitura e um pouco neste enquadramento do tipo de leitura de que Radway nos fala nas mulheres que integram o seu estudo, Lyons considera que os “romances eram tidos como adequados para as mulheres por serem elas vistas como criaturas em que prevalecia a imaginação, como capacidade intelectual limitada, frívolas e emotivas […] era a antítese da literatura prática e instrutiva”, fazendo-se aqui uma distinção em relação a um tipo de leitura diferente entre homens e mulheres em que os romances acabam por preencher lacunas nas vidas delas (cit. por Dumont & Espírito Santo, 2007, p. 33). As mulheres que integram o estudo de Radway encaram a leitura destes romances como combativo e compensatório o que patenteia que estes textos são vivificantes para estas mulheres e acabam por se constituir como uma âncora para uma parte do seu dia a dia porque quando leem romances sentem-se felizes e contentes (Radway, 1991, p. 211; 1983, p. 62). Não obstante, num estudo realizado em Évora constatou-se que as predileções femininas se norteavam para o” romance, as artes visuais, a poesia, o teatro e a música, para lá dos livros de conselhos práticos” e a elas parecem estar associadas qualidades como a “intimidade, o recolhimento, a reflexividade” (Lopes & Antunes, 2000, p. 24; 195 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura 2001, p. 26). Já o lado masculino, encorajado para ser mais agressivo, autossuficiente e menos emotivo, atestava uma maior “apetência pelas publicações eróticas, de banda desenhada e de ficção científica, não desdenhando, igualmente a política e a história” (Lopes & Antunes, 2000, p. 24; Radway, 1983). Mediante estes estudos, torna-se visível que na “disjunção entre géneros e temáticas “femininos” e “masculinos”, ao mesmo tempo que existem significados socialmente construídos de sensibilidade de género (sexo) as dimensões de fruição estética e da procura de subjectividade parecem ancorarse no “lado feminino” (Lopes & Antunes, 2000, p. 25). Voltando à obra de Radway, há outro aspeto que convém reter e que tem a ver com o facto de estas mulheres de Smithton tentarem transmitir aos filhos a importância da leitura, considerando-se que esta é uma forma inócua de fuga (Radway, 1991). Neste sentido, recorremos a esta imagem para estabelecer uma certa comparação com o nosso grupo no decorrer daquela formação EFA, em que algumas destas mulheres começaram a estimular os filhos nesse sentido, procurando também partilhar um pouco daquilo que as leituras lhe proporcionavam. Isso foi um pouco daquilo que pudemos comprovar naquela altura, mas ficou a dúvida se essa situação se prolongou no tempo e se elas continuaram a exercer essa influência. Consideramos que naquele lapso temporal da formação elas acabaram por partilhar num “quadro de memórias tintas do mesmo tom”, o que leva a que na altura tivéssemos associado a este grupo o termo comunidade interpretativa, oriundo dos estudos literários e introduzido pelo teórico literário Stanley Fish (Brasão, 2006, p. 476; Fish, 1980). Recordemos que Fish é o expoente no mundo anglo-americano da readerresponse criticism ou, mais especificamente, da teoria da receção alemã. Fish e a reader-response criticism não consideram que o leitor detenha um papel limitado de intérprete, mas esteja mais numa posição de alguém que interpreta e que recorre à criatividade com o intuito de modificar esse sentido, o que faz com que seja precisamente um permanente construtor de sentidos. Não podemos pensar em comunidades interpretativas apenas em termos académicos, fora desse contexto também se aplica e aí poderemos perceber um pouco daquilo que as pessoas leem e daquilo que gostam ou não. Azevedo considera que as comunidades leitoras se constituem como uma espécie de “célula-base, no âmbito das quais os seus membros interagem, partilhando leituras e significados” (2007, p. 154). 196 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura Radway operacionaliza no seu estudo com as mulheres de Smithton o conceito de comunidade interpretativa, “a partir de questões como os usos sociais da leitura e a partilha de códigos de apropriação do texto” (Brasão, 2006, p. 458). Há um aspeto relevante que é frisado por Radway e que tem a ver com o facto de os escritores recorrerem a códigos linguísticos que as leitoras reconhecem, o que acaba por se constituir como um elemento que contribui para o seu processo de interpretação. Não se pretende, de todo, dizer com isto que as vivências ou o contexto social dos autores são os mesmos destas leitoras, simplesmente há uma aproximação entre elas que se faz através das opções de escrita. Isto não acontece apenas com estas mulheres, uma vez que no decorrer daquela formação também nos apercebemos que elas iam ao encontro de autores que pareciam falar com elas, numa linguagem mais próxima. Recordamonos, a título de exemplo, que Paulo Coelho ou Nicholas Sparks eram considerados autores com uma leitura agradável, enquanto José Saramago, num dos casos, acabou arrumado na prateleira. Após o terminus da formação questionamo-nos se teria permanecido esse encontro com os mesmos autores ou se teria surgido a vontade de explorar outros com linguagens distintas daquelas. No âmbito das leituras que possam ou não fazer em termos individuais é importante destacar que o mais importante não é questionar acerca daquilo que leem, mas sobre as suas maneiras de ler e a este fator acaba por estar associada uma certa instrumentalização da leitura que nos remete para a escola e da qual procuramos ausentar-nos no decorrer daquela formação (Bourdieu & Chartier, 2003). Contudo, não deixa de estar patente a dúvida em torno deste processo de socialização de leitura no feminino, daí tentarmos perceber se a ausência deste acompanhamento que mantivemos ao longo de um ano provocou algum retrocesso ou se, pelo contrário, permitiu que continuassem a crescer. Ainda na sequência das comunidades interpretativas, se encararmos o “sector do livro como um conjunto de espaços intermédios nos quais todos os agentes sociais podem ser concebidos simultaneamente enquanto autores e leitores, isto é, comunidades de interpretação, que manifestam práticas discursivas particulares, tradutoras dessas leituras”, pode então dizer-se que estas mulheres, se se mantém a prática da leitura, fazem parte dessa comunidade de interpretação que transcorre o livro (Medeiros, 2006, p. 346). Mas claro que, para que tal suceda, devem existir da parte delas “práticas de leitura e de escrita”, uma vez que as comunidades de que temos vindo a falar “só 197 Contextualização entre a educação de adultos e a leitura: os públicos da leitura existem em função delas” (Curto, 2009, p. 8). Claro que após a dissolução do grupo deixou de haver aquela partilha comum de experiências naquele grupo. Resta-nos agora perceber se essa partilha se manteve entre alguns dos elementos e que tentamos perceber a partir de algumas das dimensões de análise traçadas. De certa forma, a partilha que possa ser feita com os filhos, independentemente da forma como é feita, pode assumir esse cariz. 198 C apítulo 4 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Todos os sociólogos sonharam um dia ou outro que os seus trabalhos tivessem um efeito social. Todo o sociólogo teve o desejo de ver as suas pesquisas modificar a sociedade. Por detrás de todo o sociólogo dormita a ideia de mudança social. (Hess, 1983, p. 11) 4.1. A metodologia e o ecletismo das técnicas envoltas no percurso da investigação A investigação sociológica erige-se através de determinados parâmetros teóricos que acabam por ser eles mesmos uma leitura daquilo que é o real social, díspar da leitura do senso comum. Não obstante, estes parâmetros teóricos fazem sentido quando imbuídos por uma determinada metodologia. Nesta sequência, Creswell salienta que um dos fatores que pode alicerçar a opção por uma determinada estratégia de investigação e por um paradigma é o conjunto de motivações pessoais e de atributos de ordem psicológica do investigador, não negligenciando as de ordem epistemológica e metodológica (1994). Considera-se pertinente, no âmbito desta investigação, o recurso a um desenho metodológico eclético e multidimensional, estruturado num dos pilares básicos da teoria microssociológica – o paradigma construtivista. Não obstante, esta é apenas uma das designações que lhe é atribuída, assumida por Creswell (1994). Outros autores denominam-na ainda de interpretativa, naturalista ou mesmo de perspetiva pósmoderna. De acordo com Creswell, este paradigma aborda valores individuais, centrados na pessoa e no indivíduo e capta os sentidos e os significados dos atores com 199 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa quem vai trabalhar. No âmbito deste paradigma é percetível que o investigador estuda os contextos reais desses mesmos atores (2003). Importa salientar que esta abordagem construtivista nos remete para um contexto de estratégia qualitativa que corresponde ao tipo de abordagem que pretendemos realizar ao longo da investigação sobre a qual nos debruçamos em torno da literacia da leitura em adultos. Portanto, a análise de caráter qualitativo ou intensivo focalizou-se, no decorrer desta investigação, num grupo social concreto de mulheres que entre si têm em comum o facto de, entre 2007/2008, terem frequentado um curso de Educação e Formação de Adultos na área da Ação Educativa, que lhes deu equivalência ao 9.º ano de escolaridade e que decorreu no concelho de Vagos. Nessa altura trabalhámos com o grupo enquanto formadores de Linguagem e Comunicação, não tendo a constituição deste grupo passado sequer por nós na fase inicial, com todo um trabalho mais aprofundado à volta da leitura e da escrita, tendo sido esse percurso ao longo de um ano objeto de análise noutro contexto (Brito, 2008). O relacionamento com o grupo não se confinou a uma dimensão temporal concreta de um ano apenas na posição de formadores. Na verdade, desde 2007 temos acompanhado o percurso de cada uma destas mulheres, umas mais de perto que outras, com maior ou menor regularidade. Mas, efetivamente, não houve uma cisão radical após o terminus do curso. Importa salvaguardar que das treze mulheres, com quem fizemos esta caminhada ao longo daquele tempo de formação, nos vamos centrar, a partir de 2008, tão-só em 12 delas. Embora abordemos esta questão mais adiante, ressalvamos, desde já, que em relação a uma destas mulheres apenas nos é possível trabalhar o seu discurso na primeira pessoa no que diz respeito à dimensão temporal até 2008. Estas mulheres constituem, portanto, o nosso universo, mas dele também fazem parte alguns atores institucionais da área das políticas públicas de promoção da leitura e da Educação de Adultos e que, com maior ou menor proximidade, tiveram contacto com este grupo de mulheres. Daí que estes atores institucionais nos permitam aprofundar e contextualizar a importância da ação institucional. Uma investigação acaba por ser o resultado das perplexidades do investigador, não sendo esta exceção, e começa com algo que desperta a nossa atenção, aquilo que se pode designar como um óbice. Essa situação vai fazer com que o investigador procure compreender esse obstáculo através da seleção de um determinado objeto empírico, tal como aconteceu no nosso caso particular. Na realidade, após o terminus do curso EFA 200 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa em causa, em 2008, surgiram várias questões que nos despertaram curiosidade e que ambicionamos compreender, granjeando respostas ao longo desta investigação. Refletindo um pouco em torno daquilo que nos conduziu à opção por este tipo de metodologias, e tendo em atenção o que diferentes autores têm mencionado e que tentamos sistematizar, consideramos que a investigação qualitativa, tal como o próprio nome indica, está relacionada com experiências vivenciadas e a compreensão das mesmas, comportamentos, emoções, sentimentos, assim como os respetivos contextos em que ocorrem e a forma como se evidenciam e concretizam. Deste modo, é crítica e reflexiva. Aliás, a base deste tipo de investigação é, substancialmente, interpretativa. Starks menciona, a propósito deste tipo de investigação, que os métodos de pesquisa qualitativa permitem aprofundar o significado, deslindar as práticas e os processos institucionais e sociais, identificar barreiras e facilitadores para modificar, mas também descobrir as razões para o sucesso ou fracasso das intervenções (2007, p. 1372). Neste tipo de investigação privilegia-se “o contexto de descoberta como terreno de partida de uma investigação” (Guerra, 2010, p. 23). Este tipo de investigação de caráter qualitativo é relevante para o estudo das relações sociais, tendo em conta a multiplicidade de universos de vida com que somos confrontados (Flick, 2005). Nesta sequência, Afonso considera que a investigação qualitativa se centra em contextos particulares e na ótica dos atores individuais (2005). Na realidade, neste tipo de investigação há uma preocupação com “a recolha de informação fiável e sistemática sobre aspetos específicos da realidade social usando procedimentos empíricos com o intuito de gerar e inter-relacionar conceitos que permitam interpretar essa realidade” (Idem, p. 14). Em termos ontológicos, Creswell considera que numa pesquisa qualitativa a realidade é construída pelos indivíduos envolvidos na situação de pesquisa (1994). Aliás, a metodologia de caráter qualitativo foca a sua atenção para a “lógica de actuação dos actores, individuais ou colectivos, as suas imagens mútuas, os seus conflitos e meios de acção. Estamos perante conceitos como identidades (socais, locais, regionais); projectos (…); conflitos/consensos” (Guerra, 2007, p. 49). Claro que isto nos leva a uma necessidade de entendimento dos “contextos e dos sentidos da acção” (Ibidem). Neste caso, os objetos são circunscritos a meras variáveis, mas estudados na sua complexidade e no seu todo, introduzidos no seu contexto diário (Flick, 2005). Este é precisamente o laboratório do investigador que envereda por esta metodologia, pleno de interações e práticas do quotidiano com diferentes sujeitos. 201 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa No seio da metodologia qualitativa, Ortí refere que a eficácia e a adequação deste tipo de metodologia dependem de três circunstâncias iniciais que caracterizam o tipo de objeto que é abordado de acordo com esta perspetiva (cit. por Nogueira & Nogueira 2001). Deste modo menciona a maior especificidade do objeto de estudo. Acrescenta que quando se usa este tipo de metodologia em campos de investigação demasiado vastos se acaba por perder o potencial analítico e interpretativo. Um outro aspeto frisado por este autor é a maior densidade simbólica e significativa do objeto de estudo (Idem). Acentua neste sentido que qualquer fenómeno social é passível de ser abordado de forma qualitativa, embora aqueles que por natureza possuem uma maior carga de significados, conteúdos psicossociais e culturais sejam preferenciais. Por último, refere a maior precisão dos objetivos e a maior validade dos resultados (Idem). Neste seguimento de ideias, Bogdan e Biklen atribuem à investigação qualitativa cinco características (1994). Todavia, frisam que estas podem não encontrar-se na globalidade de todas as investigações que se denominam de qualitativas. De acordo com estes autores tal situação está, na verdade, relacionada com uma questão de grau (Idem). Consideram, assim, que a investigação qualitativa tem como fonte direta dos dados o ambiente natural, considerando-se o investigador como o principal instrumento. Portanto, toda a informação é obtida através de um contacto direto com os sujeitos sociais da sua investigação. Toda a informação que recolhe é posteriormente analisada e interpretada, o que vai constituir o instrumento-chave da sua análise. Não se pode olvidar que existe uma preocupação com o contexto em que ocorrem as ações, uma vez que é este que nos ajuda a compreender a evolução ou a estagnação que possa ocorrer dos sujeitos sociais. Não falamos meramente do contexto físico que envolve o grupo. É extremamente importante manter a relação entre a linguagem verbal e a linguagem não verbal para entender o contexto social e os comportamentos. Bogdan e Biklen, assim como Merriam, mencionam outrossim que a investigação qualitativa é descritiva (1994; Merriam, cit. por Creswell, 1994). Nesta investigação há apenas lugar para as palavras e para as imagens. Estas são compreensíveis no seio de um determinado contexto e no processo de investigação. A descrição que é feita dos fenómenos deve ser rigorosa, enquanto resultado dos dados recolhidos. Uma terceira característica deste tipo de abordagem é o facto de existir um maior interesse, por parte dos investigadores, pelo processo do que propriamente pelo resultado ou pelo produto final, mencionada mais uma vez por Bogdan e Biklen e Merriam (Idem; Idem). Na 202 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa realidade, e detendo-nos mais propriamente sobre o nosso trabalho, importa mais a forma como se vão ou não alcançando os resultados do que estes na sua forma final. Qual o interesse de ter o produto final se não sabemos como é que se chegou lá? A riqueza reside precisamente na análise e na interpretação que são feitas em torno dos sujeitos sociais. A quarta característica apontada por estes autores está relacionada com a análise indutiva dos dados que é feita pelo investigador (1994; Merriam, cit. por Creswell, 1994). De uma forma genérica, uma análise indutiva implica que se parta de um raciocínio particular para um raciocínio genérico. Há, no fundo, um caminhar do particular para o geral. Na verdade, as hipóteses vão-se construindo à medida que os dados vão surgindo. Aliás, neste tipo de análise mais indutiva existe uma identificação dos conceitos que nos permitem dar conta de uma interpretação de cada excerto, bem como a identificação do modo como esses conceitos se aglutinam para produzir uma visão progressiva de conjunto. A este propósito, Mirriam reitera que o investigador constrói abstrações, conceitos, hipóteses e teorias a partir dos detalhes (cit. por Creswell, 1994). Guerra salvaguarda que “recorrendo às análises indutivas, as metodologias compreensivas criticam o apriorismo dos quadros hipotético-dedutivos e recorrem ao conceito de indução para fundamentar o processo de análise e a relação entre teoria e empiria” (2010, p. 23). Além disso, é necessário acentuar que as metodologias intensivas, qualitativas funcionam de forma orbicular entre a teoria e a empiria, ocorrendo os ajustamentos necessários. Tal como refere Lionel-Henri Groulx, a pesquisa qualitativa “apresenta um carácter iterativo e retroactivo: aí se encontra a simultaneidade da colheita de dados, da análise (…) e da elaboração da questão da pesquisa” (cit. por Guerra, 2010, p. 38). Além disso, e tal como frisámos a priori, a “interacção entre teoria e empiria é horizontal e não vertical”, dado que a ocorrência do âmago da pesquisa de define de forma gradual – “o investigador vai focalizando a sua atenção no objecto e definindo os contornos da questão por meio de uma clarificação do objecto produzida à medida que a colheita de dados e da análise se realizam” (Ibidem). Por fim, Bogdan e Biklen, tal como Merriam, salvaguardam que na investigação qualitativa o significado é fundamental, dado que permite ao investigador compreender como os distintos sujeitos sociais encaram e interpretam as suas vivências (cit. por Creswell, 1994). 203 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Com efeito, a nossa opção por uma abordagem mais intensiva e qualitativa prende-se, naturalmente, com o nosso objeto de estudo. Consideramos profícuo o recurso a este tipo de abordagem para compreender o que existe de diferente no dia a dia com a leitura do nosso objeto empírico, quais as especificidades deste em relação à leitura. Pretendemos compreender outrossim o que é que alterou qualitativamente nestas mulheres, neste caso reportamo-nos às doze com quem mantivemos o contacto mais linear. Além disso, é importante retermos que qualquer investigador deve fazer as suas opções, quer teóricas, quer metodológicas, permanecendo sempre o risco de existirem outras talqualmente exequíveis. Não obstante, essas opções estão também associadas aos próprios interesses numa determinada área de investigação. O olhar do investigador acaba por seu conduzido pelas suas visões do mundo. Na verdade, julgamos que uma abordagem mais intensiva permite a construção de um modelo teórico de interpretação, de uma conexão entre os adultos e os hábitos adquiridos ou não através dos cursos EFA. Nesta sequência, intentamos, mais do que proceder a qualquer tipo de análise extensiva somente de avaliação de impactos, tipificação de práticas e relação de variáveis, estatística e hierárquica, realizar uma investigação através da qual possamos compreender de que forma as experiências socializadoras adquiridas ao longo do curso influenciaram este grupo. Tal como refere Mateo Pérez a partir de uma perspetiva quantitativa procuramos os factos, a medição, enquanto de acordo com a ótica qualitativa procuramos as questões subjetivas (2002, p. 70). Aliás, consideramos que a opção que cada investigador possa fazer em torno de uma metodologia qualitativa, quantitativa ou mesmo triangulada deve ter em conta os objetivos delineados e a natureza da informação que pretende obter. Consideramos que esta abordagem permite a construção de um modelo teórico de interpretação de uma conexão entre os adultos e as diferentes formas através das quais os podemos apoiar na promoção da leitura. Tal como temos vindo a salientar, não podemos pensar exclusivamente nas crianças. É importante que aqueles que possuem parcos níveis de escolaridade possam ter acesso a tudo isto. Neste seguimento, procuramos, mais do que proceder a qualquer tipo de avaliação estatística, realizar uma investigação que explorasse as relações que se estabelecem entre estes adultos e a leitura e os papéis sociais que daí advém. Naturalmente, almejamos compreender de que forma tudo isso interfere e/ou modifica o seu quotidiano e as suas aprendizagens ou experiências anteriores. 204 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Acima de tudo, procuramos optar por uma metodologia que articulasse teoria e empiria para abordar um objeto, fazendo com que houvesse uma coexistência entre a linguagem da experiência, de “estar e pensar no trabalho de campo”, ao longo do nosso dia a dia com a linguagem da teoria (Caria, 2002, p. 10). Afinal é esta que nos permite objetivar e racionalizar a relação entre o grupo e a leitura. Crendo nessa conciliação, consideramos que existe uma clara ubiquidade da teoria ao longo da pesquisa, até porque é ela que agrega os ensejos de investigação, obstando fragmentações factícias entre criação e realização, estando patente quer “nos modelos de análise, quer no próprio trabalho de campo, o qual, ao requerer uma presença muito activa do investigador, faz redobrar a necessidade de uma atenta vigilância epistemológica, impossível de adequar sem quadros teóricos adequados” (Lopes, 2000, p. 191). Optamos assim ao longo desta investigação por uma triangulação metodológica, que procuramos operacionalizar a partir do recurso à técnica da entrevista e das histórias de vida, de uma observação direta e participante com registos em diário de campo, de um grupo focal, a análise de fontes documentais e ainda uma análise de conteúdo. Consideramos que esta triangulação metodológica permite a obtenção de uma maior riqueza de dados de natureza qualitativa, dado o número de elementos que compõe o nosso objeto empírico. Uma pesquisa sociológica não implica que tenha de haver forçosamente e sempre dados generalizáveis. Com este estudo não pretendemos captar toda uma diversidade social em torno da literacia, pretendemos perceber este grupo particular de mulheres mediante uma análise na diacronia dos seus percursos porque foi com este grupo que se estabeleceu todo um trabalho conjunto em torno das questões da leitura e da literacia. Antes de entrarmos propriamente naquilo que retivemos de mais importante de cada uma das técnicas que abraçamos ao longo desta investigação, importa salientar que os registos de observação e a forma de apresentação de todos os elementos que complementam este texto e que fomos concretizando durante o nosso percurso são feitos de acordo com a proposta de Azevedo (2007). Esta situação decorre do simples facto de nos identificarmos com uma forma de trabalho que neste caso surge como uma fonte de inspiração. 205 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa 4.2. Momentos de reflexão e análise de fontes No que diz respeito à análise documental de fontes estatísticas não podemos deixar de mencionar que ela é feita com base na recolha de uma vasta gama de indicadores que nos permitem construir uma imagem do contexto territorial em que se insere esta investigação. Neste sentido, tentamos colher dados estatísticos de natureza demográfica, económica, social e cultural, de modo a que pudéssemos compreender as diversas dinâmicas que envolvem os concelhos em que residem os elementos que constituem este grupo, neste caso os concelhos de Aveiro, de Ílhavo e de Vagos. Esta recolha permite-nos analisar uma série de aspetos que nos ajuda, a posteriori, a compreender também os resultados obtidos no terreno. A análise de fontes documentais é, na verdade, um instrumento importante ao longo desta pesquisa, embora tenhamos sentido em alguns momentos alguma inconsistência e ausência de informação, nomeadamente no que ao concelho de Vagos diz respeito. Contudo, procurámos contornar a situação através de pesquisas mais alargadas. Naturalmente, estes dados são fruto de uma recolha em alguns documentos que analisámos, aquando de uma visita à Biblioteca Municipal do concelho de Vagos, da pesquisa no site da Câmara Municipal do mesmo concelho e de uma série de publicações do Instituto Nacional de Estatística, vulgo INE, na Internet e do site PORDATA, procurando conciliar os dados estatísticos com o que nos fomos deparando nestes documentos. Com os restantes concelhos Ílhavo e Aveiro , socorremo-nos dos dados constantes nos censos, das páginas na Internet das respetivas câmaras municipais e bibliotecas públicas, sendo essa informação, no concelho de Ílhavo, coadjuvada pela entrevista concretizada com a Técnica Superior da sua biblioteca. Além deste levantamento que nos permitiu esboçar um retrato dos concelhos, houve também uma necessidade de recolha da legislação relativa à educação de adultos, à leitura e a outras temáticas de contextualização do nosso objeto, publicadas em Diário da República, e de outra documentação nacional e internacional que nos facultasse a informação de acordo com as necessidades que fomos sentindo em termos mais teóricos. 206 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa 4.3. Os atores e o investigador no terreno em momentos de diálogo – a entrevista e as histórias de vida No âmbito da abordagem qualitativa há sempre um pressuposto que não podemos olvidar – o papel do investigador nos processos de recolha. Aliás, não podemos negligenciar o facto de que no decorrer da investigação a competência do investigador é essencial. Há determinados pressupostos éticos básicos que não podem ser descurados, nomeadamente o respeito pela autonomia dos indivíduos, a autenticidade, a privacidade, a confidencialidade, a fidelidade e a imparcialidade. Enquanto investigadores no terreno adotámos uma posição visível e assumimos todo o processo de diálogo com os diferentes atores desde logo na primeira pessoa. Esta não foi de todo uma experiência inicial no âmbito da investigação. Conquanto, não deixou de ser uma experiência que acarretou algumas aprendizagens a vários níveis, até porque, apesar de não ser a primeira experiência no âmbito da investigação, foi uma experiência de “aprendiz da sociologia” (Azevedo, 2007, p. 80). Guerra frisa que persevera uma unanimidade de opiniões de distintos autores que sustentam que “numa metodologia indutiva, a verbalização franca por parte do entrevistado (…) é fundamental e, quanto menor for a intervenção do entrevistador, maior será a riqueza do material recolhido, dado que a lógica e a racionalidade do informante imergirá mais intacta e menos influenciada pelas perguntas” (2010, p. 51). Aliás, a mesma autora salienta ainda que o “pressuposto epistemológico deste tipo de pesquisa é o de que o informador é um actor racional capaz de dar sentido às suas acções e que o objecto da entrevista é apreender o sentido subjacente à vida social” (Ibidem). Não podemos descurar que existe uma descoincidência entre aquilo que denominamos de “práticas efectivas” e aquilo que são as “práticas declaradas”, o que nos vai conduzir a uma utilização crítica das verbalizações das entrevistadas, neste caso em particular no que diz respeito à expressão dos gostos e aos usos da cultura, em que a paralinguagem e a linguagem cinética ocupam um lugar de relevo (Lopes, 2000, p. 195). As entrevistas individuais, de forma particular as semiestruturadas, requerem do investigador a preparação de um guião de temas e subtemas de acordo com uma determinada ordem, que pode ser alterada se assim se justificar. Pretende-se, assim, 207 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa construir um roteiro temático mentor, a partir do qual as entrevistadas se orientem nos seus discursos e estruturem o seu pensamento em torno do objeto em análise. Além disso, não se pode descurar que é através da intensidade, da diversidade e da globalidade de que esta técnica está imbuída que nos permite obter, centralizando-nos nos discursos dos atores com quem trabalhámos e na própria subjetividade dos seus quadros de referência, informação relevante para a compreensão da problemática em análise. Todos estes aspetos acabam por diferenciar este tipo de entrevista de acordo com o grau de diretividade, daquelas que denominamos de diretivas e não diretivas, que acabam por estar em polos opostos. Além do guião da entrevista não se pode descurar a necessidade da presença do guião da situação da entrevista, dado que esta é uma situação social artificialmente construída. A entrevista semiestruturada utilizada na recolha de informação junto dos atores institucionais, nomeadamente formadores, coordenadoras e mediadora dos cursos EFA (Anexo 4B), interlocutores locais (Anexos 4D e 4F) e de um sociólogo (Anexo 4H), para uma abordagem em torno da leitura e da literacia, foi pensada de forma distinta. Consideramos que seria fulcral concretizar entrevistas exploratórias em alguns casos para descortinar aspetos com menor diretividade, mormente captar discursos políticos e compreender a realidade do concelho de Vagos e em particular as preocupações da freguesia onde decorreu o curso relativamente àquelas temáticas, bem como compreender a missão institucional em relação às políticas públicas de promoção da leitura no concelho de Ílhavo, com o qual contactámos mais de perto, ou mesmo vertentes analíticas da investigação sociológica no que diz respeito à literacia e à leitura. Ressalve-se, no que aos discursos políticos diz respeito, que inicialmente o contacto com estes discursos (Anexo 4J) estava previsto ser concretizado com a vereação da Câmara Municipal de Vagos. Não obstante, após várias tentativas de contacto infrutíferas, acabámos por reformular as nossas opções e assim, pela especificidade de funções, pela proximidade à própria instituição e ainda pelo contacto com o grupo, optámos por direcionar essa abordagem para um representante do poder local, na pessoa do Presidente de Junta de Freguesia de Soza. Ultrapassando os contratempos que acabam sempre por surgir nestas situações, conciliámos um grupo de atores institucionais que nos permitiu abordar distintos aspetos em torno do nosso objeto (Anexo 4K; Anexo 4N; Anexo 4R). 208 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa A entrevista com os interlocutores associados aos cursos EFA foi delineada com níveis de estruturação mais aprofundados e com um certo caráter avaliativo. Neste caso era importante explorar o caso concreto da formação EFA e relacionar essa experiência com as trajetórias de aprendizagem da leitura do grupo. Foi necessário, então, estabelecer contactos prévios e a concretização das entrevistas foi alvo de deambulações diversas entre ofícios, e-mails (Anexo 4A) e alguns telefonemas posteriores para que fosse possível conciliar agendas. Naturalmente, existia uma certa familiaridade com uma parte dos nossos interlocutores, nomeadamente formadores, coordenadores e os atores que constituíram o nosso objeto empírico. Não podemos descurar os papéis que assumimos anteriormente no trabalho desenvolvido com todos estes elementos em diversos cursos EFA e que nos permitiram um maior conhecimento e uma maior proximidade, que encetaram por motivos profissionais. Conquanto não deixámos, dado o teor do contacto, de estabelecer estes contactos com uma certa formalidade, embora não excessiva, em que expusemos os objetivos e as fundamentos desta solicitação. Todas as entrevistas institucionais decorreram em 2010 e em todas elas houve a necessidade de nos deslocarmos quer ao local de trabalho (em cinco dos casos), quer à habitação dos nossos interlocutores (quatro casos). Considerando os atores institucionais supramencionados, apresentamos agora um Quadro sistematizador com a sua caracterização sociodemográfica, com remissão dos dados para a data de cada uma das entrevistas (Anexo 4J). Se atentarmos no Quadro 4.1 apercebemo-nos que este grupo de atores é constituído por sete elementos do sexo feminino e dois do sexo masculino. Na área da formação e das bibliotecas há uma clara presença das mulheres, enquanto numa vertente política e de investigação sociológica nos cruzamos com homens. Observando os elementos que compõe a formação de adultos reparamos que estes se situam na idade média dos 36 anos, portanto uma equipa jovem. Importa salvaguardar que a designação atribuída a cada um destes atores neste Quadro e sempre que fazemos menção a cada um deles (excluindo o sociólogo) corresponde à função que desempenharam ao longo de 2007/2008, no percurso com estas mulheres. Deste modo é percetível uma manutenção da atividade profissional, ressalvando algumas alterações como se pode ler no Quadro. 209 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Quadro 4.1 Caracterização sociodemográfica dos atores institucionais, à data das entrevistas Interlocutor Género Idade Atividade profissional em exercício F 40 anos Consultora de formação e formadora Coordenadora técnica F 36 anos Técnica Superior de Serviço Social Mediadora F 36 anos Profissional de RVCC no programa NO Formadora TIC F 37 anos Formadora Formadora Inglês F 32 anos Formadora institucional Coordenadora pedagógica Formadora da Formadora componente tecnológica F 36 anos Sociólogo M 60 anos Professor Auxiliar, investigador e vicereitor Técnica Superior de Bibliotecas de Ílhavo Técnica Superior de Bibliotecas e F 35 anos Documentação de Ílhavo Presidente da Junta de Freguesia de Presidente da Junta de M 54 anos Freguesia de Soza Soza (Vagos), estando agregado também à Divisão do Desporto da Câmara Municipal de Aveiro A materialização das entrevistas semidiretivas com estes interlocutores constituise como uma pré-condição para o trabalho empírico subsequente, uma vez que esta análise nos permitiu delinear de forma mais particular e focalizada o guião para as entrevistas de história de vida com o nosso objeto empírico. Nos anexos 4M, 4P, 4Q e 4T deparamo-nos com as grelhas de registo destas diversas entrevistas, permitindo-nos, assim, contactar com os alguns trechos dos discursos destes interlocutores. As histórias de vida ou os retratos sociológicos são, de certa forma, um modo de reorganizar a história de um ou mais sujeitos sociais, tentando estabelecer correlações entre os diferentes momentos ou acontecimentos ao longo da sua vida e que o moldam. A construção destes retratos permite-nos também compreender as facetas do comportamento de cada um destes sujeitos. “Se todo o indivíduo é a reapropriação 210 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual” (Ferraroti, 1979, p. 27). Na verdade, a partir do recurso às histórias de vida pretende-se encontrar uma congruência na relação que cada sujeito estabelece perante as múltiplas experiências, os acasos, as dinâmicas e até mesmo os contextos que pautam a vida de cada um. Não podemos esquecer que em cada história de vida é possível encontrar os valores individuais que distinguem cada pessoa, mas também valores sociais e culturais. Por isso mesmo, o conhecimento integral do homem torna-se no conhecimento integral do outro. O coletivo social e o universal singular iluminam-se reciprocamente (Ferrarotti, 1990, p. 59). Com efeito, nestes retratos sociológicos é pedido a cada “indivíduo que se conte, que descreva a sua história pessoal”. São, assim, uma forma de revelar um “certo vivido social” (Poirier, Clapier- Valladon & Raybaut, 1999, p. 249). A partir das histórias de vida, os diferentes sujeitos têm, deste modo, uma atitude reflexiva e crítica que lhes permite fazer a seleção de memórias e recordações e ao mesmo tempo atribuir-lhes um significado. Essa atitude pode conduzi-los a novos comportamentos. Existe, de certo modo, nesta reflexão uma articulação entre o passado, o presente e o futuro, na medida em que se conjugam memórias, experiências atuais e iniciativas futuras. Não se pode confundir história de vida com passado. A própria expressão história mobiliza a dimensão de temporalidade que se constitui de passado, presente e futuro. Por sua vez, a vida remete-nos para múltiplos acontecimentos, decisões, acasos, ações que tecem uma trama, numa pluralidade de espaços. É assim que história de vida pode ser considerada uma construção de sentido de factos temporais (Couceiro, 2002, p. 42). Considerando em concreto as entrevistas de histórias de vida, mas socorrendo-se de fundamentos talqualmente válidos para qualquer outro tipo de entrevista, Ferrarotti relembra que cada entrevista biográfica é uma interação social complexa, um sistema de papéis, de expectativas, de injunções, de normas e de valores implícitos, com frequência também de sanções, que oculta tensões, conflitos e hierarquias de poder, que apela ao carisma e ao poder social das instituições científicas sobre as classe subalternas e evoca as reações espontâneas da defesa (1990). Não podemos olvidar-nos que, ainda segundo Ferrarotti, cada indivíduo não totaliza diretamente uma sociedade global; totaliza-a sim através da mediação do seu 211 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa contexto social imediato, os pequenos grupos que ele integra, uma vez que estes grupos são por sua vez agentes sociais ativos que totalizam o seu contexto (Idem, p. 61). Porém, importa salientar igualmente, tal como referem Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut que a história de vida cria “um “acto” de pesquisa, implicando não somente a pessoa do locutor, não somente a sua envolvência social, mas também a pessoa do investigador, que realiza a entrevista, e o seu próprio meio sociocultural” (1999, p. 26). Isto remete-nos para o facto de se encarar a entrevista biográfica como uma “interacção social completa, um sistema de papéis, de expectativas, de injunções, de normas e de valores implícitos” (Ferraroti, 1979, p. 27). Para abordarmos as histórias de vida deste grupo de mulheres a que temos vindo a fazer referência, importa retermos, desde já, alguma informação que as contextualize e nos transmita o seu enquadramento sociodemográfico. Assim, através do Quadro 4.2. podemos observar uma sintética caracterização sociodemográfica. Nele abrangemos as treze mulheres que constituem o nosso objeto empírico, embora façamos uma ténue separação, uma vez que relativamente a uma das mulheres não podemos contemplar o percurso na sua totalidade. Quadro 4.2 Caracterização sociodemográfica do grupo 30 de setembro de 2011 Nomes Idade Estado Área de Nível de civil residência escolaridade Situação face ao emprego (concelho) Ana 36 Casada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Andreia 37 Casada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Beatriz 35 Casada Ílhavo 12.º ano Empregada por conta de outrem Catarina 35 Casada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Carolina 29 Casada Aveiro 12.º ano Empregada por conta de outrem Daniela 35 Solteira Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Joana 36 Divorciada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Lara 34 Divorciada Vagos 9.º ano Desempregada de curta duração Lúcia 54 Casada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Manuela 37 Casada Vagos 12.º ano Desempregada de curta duração Sofia 35 Viúva Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Susana 34 Casada Vagos 9.º ano Empregada por conta de outrem Constança 28 Divorciada Luxemburgo 12.º ano -------------------------------------- 212 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Saliente-se que todos os dados se reportam à mesma data (de fecho da pesquisa) – 30 de setembro de 2011 -, para haver, assim, uma maior congruência. Mediante a análise do Quadro, verifica-se que o grupo é constituído unicamente por mulheres, entre os 28 e os 54 anos, em que oito dos elementos são casados, uma é solteira, três são divorciadas e uma é viúva. Residem na sua maioria no concelho de Vagos, sendo que uma reside no concelho de Ílhavo e outra no de Aveiro. Tal como já frisámos, há ainda um elemento ausente no estrangeiro. Constatamos talqualmente relativamente ao nível de escolaridade que quatro dos elementos revelam ter completado o 12.º ano, enquanto os restantes elementos possuem o 9.º ano. Se atentarmos na sua situação face ao emprego vemos que dez destas mulheres estão empregadas, todas elas por conta de outrem. Há dois elementos que se encontram desempregados, sendo que essa situação é de curta duração porque em ambos os casos se verifica há menos de um ano. No caso daquela que se encontra no estrangeiro não dispomos de qualquer informação àquela altura. Para se construírem as histórias de vida, destas mulheres em particular, foi necessário a priori passar por uma fase de entrevistas semidiretivas. Isso permitiu-nos que os discursos de cada uma das entrevistadas fossem amplos e com a profundidade adequada, sem deixar de conduzi-las, nos momentos em que se pareciam perder um pouco, para temas que tínhamos delineado e que eram pertinentes para o entendimento da sua história. Assim, optamos por enveredar pelo recurso aos retratos sociológicos, através da análise das suas histórias de vida em diferentes dimensões – familiar, escolar, profissional e práticas de leitura. Os retratos sociológicos são um modo de reorganizar a história de um ou mais sujeitos sociais, tentando estabelecer correlações entre os diferentes momentos ou acontecimentos ao longo da sua vida e que o moldam através de princípios socializadores muitas vezes concorrentes e contraditórios (Lahire, 2003). A construção destes retratos permite-nos também compreender as facetas plurais do comportamento de cada sujeito. Não podemos olvidar que em cada história de vida é possível cruzar as singularidades que distinguem cada pessoa, mas também as regularidades mais vastas, traduzidas e refletidas num corpo socializado. Aqui reside a possibilidade de acompanharmos na diacronia as trajetórias e histórias de vida os efeitos socializadores, ressocializadores e dessocializadores dos contextos sociais e culturais na aquisição de hábitos de leitura. Também a profundidade 213 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa e a densidade da análise ganham contornos assinaláveis, aproveitando a nossa anterior experiência de trabalho enquanto investigadores com o grupo alvo. O contacto com o nosso objeto empírico para a concretização destas entrevistas efetuou-se em distintos momentos mais informais de diálogo. Claro que não nos limitámos a estes momentos presenciais, mas também a outros através do recurso às diferentes tecnologias e meios de comunicação. Aliás, desde o terminus do curso em que este grupo de mulheres esteve integrado não deixámos de manter contacto, embora mais frequente com alguns elementos do que com outros, através de mensagens ou mesmo pela Internet (Facebook, MSN). Portanto, desde o contacto inicial com estas mulheres em 2007 fomos fazendo um acompanhamento na diacronia dos seus percursos, não tendo ocorrido uma cisão radical após 2008. Fomo-nos apercebendo paulatinamente ao longo deste tempo que elas nos contavam, recorrendo a diferentes meios, algumas das suas pequenas vitórias do dia a dia, mas que também nos interpelavam quando precisavam de ajuda. Estabeleceu-se entre nós e estas mulheres um relacionamento agradável. Consideramos que a nossa forma de estar enquanto formadores foi um contributo importante para a construção desta relação posterior que se gerou. Pensando no trabalho que o investigador de uma forma geral desenvolve no terreno, não se pode descurar que a presença visível do observador pode acarretar alguns inconvenientes, podendo causar algum embaraço nas pessoas que estão a ser observadas. Esta situação pode afetar a qualidade dos dados, uma vez que a presença do investigador pode comprometer a espontaneidade do comportamento dos observados. Contudo, consideramos que no nosso caso particular este constrangimento não terá sido evidente, mesmo filmando as entrevistas individuais, dada a relação construída previamente com o grupo e o facto de existir de ambas as partes um maior à-vontade mesmo perante as câmaras. Tais fatores ajudaram também a atenuar a ansiedade ou a preocupação que pudessem estar implícitas em situações deste género. Apesar da existência de um à-vontade com os atores, nas várias entrevistas mencionámos os motivos da utilização da gravação em vídeo e de como essa recolha de dados seria efetuada. Foi ainda salvaguardada, por uma questão de ética, a confidencialidade das imagens e o próprio sigilo de nomes, no sentido de salvaguardar as identidades e a privacidade de todas as pessoas implicadas nestes retratos sociológicos, sendo por isso os seus nomes fictícios. Esta é a forma mais adequada para não causar qualquer 214 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa transtorno ou prejuízo a todos aqueles que direta ou indiretamente estão envolvidos nestes retratos que analisamos. O registo visual supracitado – filmagem das entrevistas – surge como um instrumento coadjuvante e de interação com as restantes técnicas e “permite o registo pormenorizado de factos e oferece uma visão mais compreensiva e holística dos estilos e condições de vida” (Flick, 2005, p. 151). Do nosso ponto de vista este instrumento permitiu-nos analisar de forma mais completa não só o conteúdo das entrevistas, mas também pormenores assentes nas atitudes, nos atores, nos espaços, que acabaram por não ser captados com toda a densidade no momento da entrevista ou como forma de aprofundamento de outros que não foi possível analisar de modo tão desenvolvido no momento. Além disso, há uma outra vantagem nesta opção e que tem a ver com a permanência, ou seja, é possível rever a gravação as vezes que forem necessárias e da forma que mais se adequa àquilo que pretendemos analisar (Bottorff, 2007). Pensando nestes momentos agora a uma certa distância, consideramos que a nós enquanto investigadores não nos causou qualquer tipo de embaraço o recurso à máquina de filmar, até porque estamos bastante familiarizados com a utilização destes recursos. Houve sempre a preocupação inicial com a posição, com a escolha do melhor local para receção da imagem e preocupações para que a gravação não tivesse interrupções por falta de bateria. Refira-se que antes mesmo destas preocupações houve outras iniciais que se prenderam com uma seleção adequada destes materiais. Neste caso concreto, e no que diz respeito às entrevistas individuais, que Ferraroti denomina de materiais biográficos primários ou face to face, a câmara de filmar foi mantida fixa, num tripé, direcionada para o interlocutor em causa e suficientemente próxima para captar o som e a imagem de forma clara, mas sem que se tornasse inibidora (1988). O local de colocação da máquina era variável de acordo com o espaço envolvente. Falando de espaços, é importante ressalvar que nos preocupámos não só como facto de estas entrevistas decorrerem em condições cómodas, mas também que esse espaço fizesse parte do seu ambiente natural. Daí termos dado a possibilidade de cada uma escolher o local para concretizarmos esse diálogo. Conquanto o espaço lhes fosse mais familiar a elas do que propriamente a nós em momento algum nos sentimos descontextualizados. Aliás, procurámos em todos estes momentos fazer uma 215 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa apropriação destes lugares, encarando estes encontros nos diferentes espaços com a maior naturalidade. Há, à partida, determinados condições que devem ser cumpridas, mormente a ausência de ruído, para que o registo vídeo não seja afetado, a disponibilidade de tempo de cada uma devido à extensão das próprias entrevistas e que essa partilha se concretize sem interferências externas. Não obstante, esses requisitos não se tornaram exequíveis em todas as situações. Ressalva-se que o facto de existir em determinados momentos algum ruído ambiental (volume da televisão ou de eletrodomésticos) não afetou a qualidade do registo de som na gravação vídeo nem criou constrangimentos aquando da transcrição “Ao longo da entrevista não houve propriamente interrupções, tivemos somente o ruído casual de um motor, uma vez que ela tinha a máquina a lavar roupa. (…) O relógio da igreja, mais afastado, bateu em diferentes momentos” (Registo de observação da entrevista de Sofia, 2011-05-08) O guião da entrevista, que pode ser consultado no Anexo 4V, funcionou como elemento orientador, sem que nos tivéssemos cingido única e exclusivamente a ele. Houve sempre uma margem de liberdade, de modo a que elas pudessem desenvolver algum aspeto que não tivéssemos contemplado. Aliás, o facto de o guião ter sido concebido por nós acabou por nos dar uma margem de conhecimento e de memorização maior e essa memorização permitiu-nos, tal como Guerra refere, “seguir a o discurso do entrevistado na sua lógica própria sem preocupação com a ordem do questionamento, introduzindo perguntas de «lembrança» quando oportuno, assemelhando-se a entrevista a uma conversa informal e fluida” (2010, p. 53). É importante retermos ainda, no que diz respeito ao guião, que existe uma questão fulcral na sua construção e que implica a “clarificação dos objectivos e dimensões de análise”, uma vez que essa necessidade de “comparabilidade entre os sujeitos e o evitamento da descrição que prepara a interpretação exigem um questionamento complexo que vai muito para além do senso comum” (Ibidem). Se encararmos a aplicação na íntegra do guião, considerando que procuramos contemplar as diferentes situações que abrangiam todos os elementos, a entrevista mais breve delongou-se por 80 minutos e a mais longa acabou por se prolongar por 234 minutos, tal como se pode constatar através do Anexo 4Z. Apenas numa situação, por acaso numa das entrevistas de menor dimensão, houve necessidade de a subdividirmos em dois momentos, devido a interferências externas – ruídos e a presença de terceiros 216 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa no mesmo espaço em que nos encontrávamos. Salvaguarde-se que, nas entrevistas mais extensas, não houve qualquer evidência ou mesmo referência da parte das nossas interlocutoras à necessidade de interregno, tendo mesmo elas revelado um discurso contínuo. Todas estas entrevistas se realizaram no decorrer de 2011, entre fevereiro e junho, tal como se pode comprovar mediante o Anexo Y, à exceção de uma devido à ausência desta mulher no estrangeiro e à perda de contacto com a mesma, tal como mencionámos inicialmente. Contudo, há informações recolhidas e gravadas igualmente em vídeo, realizadas em 2008, aquando da nossa investigação anterior, que não descuramos (Anexo 4X). Portanto, há dados relativos a esta última mulher que nos permitem traçar um pouco o seu percurso até esse momento. Apesar deste distanciamento, detemos igualmente algumas informações posteriores ao terminus do curso EFA B3, embora não constem de um discurso na primeira pessoa, daí que não nos permitam fazer a relação com os restantes elementos. Para que não se verifique qualquer lapso de interpretação, importa esclarecer uma situação. Considerando, tal como referimos anteriormente, que as entrevistas decorreram ao longo de 5 meses e que foram ocorrendo algumas alterações no percurso destas mulheres desde esse encontro, os dados do Quadro 4.2., anteriormente apresentado, assentaram no limite temporal para introdução de dados da investigação sobre cada uma destas mulheres. Tudo isto se traduz no simples facto de cada narrativa poder ser encarada como uma peça de um mosaico complexo e que concorre um pouco para a nossa compreensão do quadro como um todo. Distintos fragmentos contribuem diversamente para a nossa compreensão: alguns são profícuos pela sua cor, outros exaltam contornos de um objeto (Becker, 1999). 4.4. Os silêncios e as palavras no percurso do investigador – a observação e o diário de campo Quando falamos da pesquisa que o investigador faz e da forma como efetua a recolha da informação acabamos por embocar na observação. De forma genérica, observar é um ato que todos realizamos para compreender e conhecer os outros, as coisas e as situações. 217 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Não obstante, quando nos referimos à investigação científica, não podemos ver a observação tão-somente deste modo. Neste sentido ela é encarada como uma técnica de recolha de informação em que estão implicados os sentidos da visão e da audição do investigador, orientados, treinados e focalizados para determinadas questões e procedimentos. A observação enquanto detentora do estatuto de observação científica deve estar integrada num projeto de pesquisa, relacionar-se com objetivos e questões teóricas de partida, fazer-se de modo planeado, sistemático e controlado integrar uma dimensão ética que se estabelece na relação entre observador/observado. No decorrer da observação que o investigador faz existe um critério que orienta essa mesma observação de uma dada situação social – a relevância daquilo que observamos para o nosso objeto de estudo (Mann, 1983). Pode ocorrer através do contacto direto com a realidade e a presença física do observador no local, com ou sem interação, com ou sem participação, com ou sem anonimato. Podemos encará-la como participante, individual, em grupo e não participante, dependendo do tipo de observação que se pretende fazer, podendo ser mais ou menos marcante. Contudo, ao longo desta reflexão daremos destaque à observação participante, uma vez que é aquela que nos remete para a nossa investigação. Esta exige a interferência do investigador e o seu envolvimento direto, assumido e intensivo nas atividades do grupo que observa. Becker refere-se ao facto de este tipo de observação ser utilizada quando se pretende “compreender uma organização específica ou um problema substantivo, em vez de demonstrar relações entre variáveis abstractamente definidas” (1999, p. 48). Por sua vez, Costa, quando se refere à investigação participante, alude ao facto de “o principal instrumento de pesquisa [ser] o próprio investigador e os principais procedimentos são a presença prolongada no contexto social em estudo e o contacto directo, em primeira mão, com as pessoas, as situações e os acontecimentos” (2009, p. 137). Pode considerar-se esta como uma manifesta vantagem pela possibilidade que dá para estar disponível para colher dados mais particularizados, através da observação de contextos naturais. Na observação participante o investigador “saltita desajeitadamente no meio dos que já sabem há muito tempo orientar-se e que, idealmente, querem ajudálo, explicando o seu quotidiano rotineiro ad nauseam” (Iturra, 2009, p. 155). Outrossim, é também Iturra que frisa o facto de na observação participante ser “o envolvimento que despe o investigador do seu conhecimento cultural próprio, enquanto 218 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa veste o do grupo investigado” (Idem, p. 149). Na verdade, a observação participante permite dar “os melhores resultados na observação de informações sobre comportamentos, discursos e acontecimentos observáveis mas que passam desapercebidos à consciência explícita dos actores sociais” (Costa, 2009, p. 141). Se pensarmos nas situações de entrevistas, necessitamos de usar determinadas competências, nomeadamente falar, ouvir, mas também observar. E essa observação engloba “não só a percepção visual, mas também a percepção táctil e olfactiva” (Adler & Adler, cit. por Flick, 2005, p. 138). Na observação participante o investigador é o principal instrumento de investigação social. Nesta sequência, a observação participante proporciona a recolha de dados sobre a interação social e aqui fala-se da situação em que ocorre essa interação e não de situações artificiais ou artificialmente construídas criadas pelo investigador. Efetivamente, o investigador tem a ensejo de estar disponível para reunir informações fecundas e particularizadas assentes na observação de contextos naturais (Burgess, 1997). O observador-participante não só não faz segredo da sua investigação, como divulga mesmo que a investigação é o seu centro de interesse destacado. Ele está ali para observar. (…) O observador-participante não está limitado, ele é livre de andar por onde quiser ao sabor dos interesses das pesquisas, ele pode mover-se com toda a liberdade (Roy, cit. por Burgess, 1997, pp. 88-89). Neste momento podemos questionar-nos acerca do lugar que a observação ocupa no nosso projeto. Não consideramos que seja justamente encarada como técnica de descoberta, até porque pretendemos articular esta observação com outras técnicas, tal como frisámos anteriormente. Acaba por ter, de certo modo, um caráter de verificação das dimensões analíticas do trabalho e permite o cruzamento com outras técnicas. Não podemos descurar que esta técnica ultrapassa o simples “mergulhar em dados e “ter insights”” (Becker, 1999, p. 64). Observando estamos a aplicar os nossos sentidos para obtermos informações. Este deambular no terreno permitiu-nos observar comportamentos, interações verbais, maneiras de estar, ser, fazer ou mesmo dizer, não só em termos mais formais de contextos de entrevistas, mas também em situações mais informais do quotidiano. A observação participante “põe à prova a capacidade de resistência e de integração do investigador”, nas mais diversas situações do quotidiano dos sujeitos observados 219 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa (Estanque, 2002, p. 75). Há um aspeto importante e que não devemos de todo descurar quando pensamos na observação e considerando o caso particular da nossa investigação. Ranci aponta para o facto de na observação participante não serem tão importantes as “explicações racionais fornecidas aos actores sociais pata obter a sua colaboração, quanto a profundidade e a força da relação de confiança que o pesquisador estabelece com eles” (2005, p. 55). Pensando na investigação que desenvolvemos, sentimos, nos atores que connosco cooperaram e que nos abriram as portas de casa e da sua vida, que existia precisamente essa confiança em relação a nós e que foi ela que permitiu esta abertura. É importante reter que aquilo que observamos tem muito de linguagem não verbal e essa linguagem é o complemento da linguagem verbal para que a comunicação funcione como um todo. Rego alude a sete dimensões, de forma breve e concisa, baseando-se em Knapp (2007). Não obstante, faremos apenas alusão àquelas que consideramos mais relevantes e que foram importantes no decorrer destas entrevistas. Assim, não podemos descurar a cinésica, associada à linguagem corporal e onde se englobam posturas, gestos, expressões faciais, movimentos do corpo, que nos permite perceber também o nosso interlocutor, daí a necessidade de no decorrer das entrevistas estarmos defronte destes, para que pudéssemos manter o contacto visual e assim mais facilmente podermos interpretar as suas posturas. A paralinguagem, que abarca o tom de voz, o volume, a frequência, as pausas ou os silêncios, o ritmo, ajudou-nos a perceber algumas hesitações, a dificuldade em abordar alguns temas ou mesmo como é que elas geriam algumas emoções quando abordaram certos momentos das suas vidas. Os fatores ambientais, relacionados com as influências do contexto físico, ajudaram-nos talqualmente a conhecer um pouco mais o interlocutor (Rego, 2007). Esta situação é ainda mais evidente uma vez que todas as entrevistas de história de vida ocorreram nos locais de habitação de cada uma das mulheres que fazem parte do nosso estudo. Aliás, apenas num dos casos é que tal não sucedeu, uma vez que a entrevista foi realizada em casa da mãe e que era contígua. Neste sentido, não deixamos de focar a nossa atenção para certos detalhes daquele que se pode considerar o território de cada uma destas mulheres e aqui tentamos perceber os valores simbólicos da casa, dos espaços que esta congrega e mesmo da própria forma de decoração e para que outros sentidos nos pode ela conduzir. 220 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Fomos para a sala, dividida em dois espaços, sem que houvesse uma fragmentação rígida. Mais do lado da porta/janela virada para a rua estava a parte da sala de estar, com sofá e uma pequena mesa com o computador e a impressora no canto esquerdo. Por detrás do sofá estava uma mesa de jantar com cadeiras. Por toda a sala estavam espalhadas imensas fotografias de diferentes fases da vida das suas filhas, do seu neto e de outros momentos partilhados em família. Do lado da sala de jantar estava um quadro da Última Ceia, o que revelava, desde já, as crenças patentes nesta casa (Registo de observação da entrevista com Lúcia, 2011-03-07). A última dimensão que consideramos relevante e que contemplámos nas observações concretizadas ao longo das entrevistas é a proxémica. Esta articula-se com o espaço interpessoal e tem a ver também com a distância mais pessoal ou não mantida com o entrevistado. Ela representa a forma como nos posicionamos e como nos movimentamos uns em relação aos outros (Rego, 2007; Poirier; Clapier-Valadon & Raybaut, 1999). A propósito do que salientámos anteriormente acerca da linguagem não verbal, é proeminente ressalvarmos que a concretização das entrevistas nos permite uma determinada adaptabilidade, uma vez que a “forma como determinada resposta é dada (o tom de voz, a expressão facial, a hesitação, etc.) pode transmitir informações que uma resposta escrita nunca revelaria” (Bell, 2004, p. 137). Aliás, sublinhe-se que, no decorrer das entrevistas, cada um dos interlocutores expressou-se não só por meio de palavras, mas também por todo um misto de “intervenções expressivas, ao lado e para além das palavras” (Poirier; Clapier-Valadon & Raybaut, 1999, p. 59). Consideramos que esta é em simultâneo uma observação direta e participante porque aquilo que obtivemos não nos foi transmitido por outrem. Nós estávamos lá e embrenhámo-nos no meio delas, em ocasiões distintas. Em todos estes momentos intentámos atenuar ao ínfimo os efeitos da presença do investigador, tarefa facilitada pelo facto de o contacto inicial com este grupo ser enquanto formadores (situação que faz parte de todo este processo e que acaba por ser o elemento desencadeador deste percurso de investigação com estas mulheres) e continuar a ser uma das formas como elas nos vêm. De certo modo, a nossa postura foi de uma “”escuta” atenta aos actores sociais” e não se colocou sequer, devido também à nossa posição, a hipótese de “manter um distanciamento dos actores e das suas práticas, com o pretexto de uma pretensa objectividade” (Cavaco, 2009, p. 42). Há aqui um envolvimento quase de género, uma proximidade que esta observação direta e participante exige, mas com níveis de interferência controláveis. 221 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Não é surda aos intentos demonstrados pelos indivíduos no decorrer dos atos sociais, alberga até as palavras empregues pelos indivíduos observados com o intuito de caracterizar as pessoas, as situações e os objetos com os quais estão relacionadas. Além disso, possibilita ainda apreender os sentidos dos termos ignotos, porque os ouve proferir pelos utilizadores num determinado contexto em que aplicam às pessoas e às situações (Peretz, 2000). Mostrou-me o seu quintal e a verdura que tinha cultivado. Quando demos conta estávamos as três à volta da frondosa nespereira que estava no quintal, deleitando-nos com o fruto. Entretanto, renovou o convite para visitarmos a sua futura casa, que ainda estava em obras. Deixámos os carros estacionados e fomos, as três, a pé, saboreando a mescla de sons, fragrâncias e cores que nos envolviam. Foi uma caminhada descontraída e saudável pela localidade, tendo ela identificado alguns locais que lhe eram familiares – residência dos pais, dos sogros, dos cunhados. Notou-se um brilho no olhar quando me mostrou a casa e tudo aquilo que tinha conseguido fazer desde que estava sozinha com a filha. Naquele final de tarde havia algumas pessoas na rua, umas a conversar, outras que iam em direção a outro local, outras ainda sentadas no banco do café a passar o tempo (Registo de observação da entrevista com Sofia, 2011-05-08). Procuramos ao longo desta investigação que os momentos de concretização das entrevistas, dos diálogos informais e ocasionais e também das observações em momentos distintos fizessem parte de práticas sociais, interagindo com os nossos interlocutores, uma vez que quanto mais copiosa se torna essa interação maior é a possibilidade de termos acesso a informações que nos permitem compreender a multiplicidade, a abundância e a complexidade das práticas sociais dos atores que acompanhamos (Cavaco, 2009). Para nos auxiliar na análise desta observação no terreno, sentimos necessidade de redigir notas em diário de campo, uma que vez que este registo constitui a narrativa que fazemos sobre a observação e sobre os conteúdos, mais precisamente são comentários de ordem teórica, metodológica e a observação propriamente dita. O registo deste tipo de notas constitui-se como um complemento às restantes informações obtidas através de outras técnicas. Além disso, é importante reter que a subjetividade do investigador sobre as suas ações e observações no terreno, as suas sensações, impaciências, e outro tipo de sentimentos constituem dados de pleno direito, fazendo parte da interpretação e ficando fundamentados no diário de investigação (Flick, 2005). O registo das observações e das reflexões em torno dos acontecimentos no terreno acabou por implicar mais algumas horas de trabalho, nomeadamente de recuo no tempo 222 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa e visualização dos espaços e linguagens e de escrita. Não obstante, esses momentos foram fulcrais para a nossa análise e permitiram-nos perceber também a nossa posição enquanto investigadores e tudo o que isso envolve e o facto de transpormos para palavras as nossas observações fez com que não nos limitássemos a fazer uma mera transcrição, mas já uma interpretação de alguns momentos, espaços, acontecimentos, relações, sentimentos, expectativas. Tal como refere Estanque, o “trabalho de escrita representa, ele próprio, uma prática reflexiva que, por si mesmo, vai modelando as condições de envolvimento com o grupo por parte do cientista” e é precisamente essa escrita que ele considera como uma “tradução e uma interpretação” (2002, p. 75). Esta redação das notas de campo acaba por ser um doutrinar de um suceder concomitante das diversas memórias que se misturam na evocação dos acontecimentos (Fernandes, 2002). As filhas juntaram-se a nós. Vinham ambas com as unhas pintadas com uma cor estranha, algo semelhante a um laranja mais berrante. Beatriz ainda reclamou daquela cor, mas logo a filhota mais nova chamou a atenção para as unhas dela, com um vermelho mais escuro. A certa altura estávamos as quatro à volta da mesa a comer biscoitos de manteiga e a conversar (Registo de observação da entrevista com Beatriz, 2011-06-18). O diário de campo permite ao investigador conjugar os acontecimentos dispersos do seu dia a dia. Através do encadeamento dos diversos fragmentos que caracterizam este quotidiano é possível espelhar não apenas a descrição desses mesmos acontecimentos, mas também os conhecimentos, as emoções e os sentimentos que são fruto deste contacto com diferentes sujeitos sociais. Foi também nesse sentido que optámos por redigir essas notas na primeira pessoa do singular “eu” em que nos implicamos em cada palavra, cada reflexão, cada sentir, cada olhar expresso nessas notas e, ao mesmo tempo, nos responsabilizamos pelas afirmações e pelas ideias que expressamos. Tal como também por opção redigimos este texto de tese recorrendo a um “nós”, embora mantenhamos o mesmo nível de envolvimento. A divergência entre o “eu” e o “nós” tem meramente a ver com o tipo de texto em si e, portanto, constitui-se apenas como uma opção de escrita. A redação de notas ou de um diário de campo é “um processo de construção do sentido” (Fernandes, 2002, p. 26). Na verdade, a construção de um diário de campo ao longo desta investigação permitiu-nos uma maior reflexão acerca das distintas ocorrências à nossa volta. Paulatinamente, pudemos ir construindo o sentido de todos aqueles fragmentos. Aliás, “a nossa memória é multi-género: ao evocar visualmente 223 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa uma cena, procurávamos registar «fotograficamente» a interacção; mas logo assomavam evocações do plano emocional envolvido” (Idem, p. 27). Se nada do que ocorre nos é indiferente e se existe uma relação social com os diferentes atores, facilmente se compreende a presença deste envolvimento emocional. Não limitámos o registo de notas em diário de campo aos momentos de entrevista. Considerámos igualmente pertinente fazer esse registo noutros momentos de contacto, mais informais, com alguns dos elementos que constituem o nosso objeto empírico. Esses momentos de informalidade permitiram-nos contactar mais de perto com as rotinas e os momentos de lazer desses elementos. Portanto, acabámos por delimitar os registos que se referem a estes dois tipos de situação distintos, tal como se pode confirmar mediante os Anexos 4AA e 4AB. É necessário salvaguardar ainda que todas as entrevistas realizadas com os atores institucionais, anteriores às entrevistas de história de vida, foram objeto de registo de observação em diário de campo (Anexos 4L, 4O, 4S). Dos anexos faz ainda parte um registo – Anexo 4U – da nossa visita à Biblioteca Municipal de Vagos, com a finalidade de consultarmos alguma documentação acerca das atividades desenvolvidas pela biblioteca em torno das políticas públicas de promoção da leitura e mesmo acerca do próprio concelho. Mas nem só as entrevistas individuais, os encontros informais ou as nossas consultas e as nossas visitas foram alvo de registo. Também na situação de grupo focal sentimos necessidade de refletir acerca das nossas opções, dos comportamentos, do clima que se gerou na sala, o relacionamento e tudo o que envolveu esta situação concreta com este grupo (Anexo 4AL). Para finalizar, disse-lhes que íamos terminar aquela sessão da forma que tínhamos feito ao longo do curso, com uma história e que aquela era uma história que tinha saído há relativamente pouco tempo e tinha muitos pozinhos de perlimpimpim. Essa história tinha como título Era uma vez… Inicialmente estavam atentas, mas não tinham ainda percebido o que é que aquela história tinha para lhes contar. Mantive o contacto visual com todas ao longo da história. Ia a meio da segunda página quando Lara começou a desconfiar de qualquer coisa, pelo menos deixava transparecer isso no seu olhar. Momentos depois começaram a trocar olhares, até que a gargalhada foi geral quando se aperceberam que aquela história era sobre elas (Registo de observação do grupo focal, 2011-07-16) E no que à observação diz respeito, “ para além do seu sentido restrito, fica-nos o sentido lato de observar: aquele que configura a natureza da própria investigação 224 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa sociológica. A de um olhar científico circular nos pontos de referência das fronteiras cognitivas” (Azevedo, 2007, p. 101). 4.5. Partilha de experiências e emoções a várias vozes – grupo focal No caso do grupo focal, discussão de grupo, reunião coletiva ou grupos focalizados – denominações distintas para algo que nos remete para uma dinâmica interrelacional – é necessário ter em consideração determinados parâmetros. O grupo focal pode ser considerado como uma espécie de entrevista de grupo, mas na sua essência corresponde a uma interação entre o observador/ investigador e os sujeitos observados, sendo que o primeiro pretende observar dessa discussão, focalizada para um determinado tema, neste caso a leitura, reações, sentimentos, preferências, ideias, dificuldades, experiências, práticas num espaço de tempo relativamente curto. Não se pode descurar que o grupo focal propicia a perceção das crenças e das atitudes que estão subjacentes ao comportamento. Não se pode descurar que os dados que se obtêm das opiniões e das perceções são amplificados através da interação do grupo e que o propósito de um grupo focal não se centra na formação ou no apoio emocional, mas na recolha de experiências e de convicções individuais relacionadas com o assunto em causa (Carey, 2007). O grupo focal cria linhas de comunicação. Este não é de todo um processo passivo e cada grupo tem a sua própria dinâmica. Tal como frisa Morgan, os grupos focais não acontecem por acaso, alguém tem de querer fazê-lo e alguém também tem de fazer o trabalho (1997). Múltiplas são as definições apresentadas por diferentes autores, mas existe consenso no que diz respeito ao seu aparecimento e expansão. A história do focus group ou grupo focal subdivide-se em três períodos. Inicialmente foi usado por cientistas sociais em ambientes académicos, tendo nascido de uma necessidade. Estes cientistas começaram a investigar os valores individuais não-diretivos da entrevista como uma fonte melhorada de informação, até porque se considerava que a entrevista individual acaba por apresentar uma maior desvantagem devido aos seus questionários com respostas fechadas. Desde a II Guerra Mundial até aos anos 70 do século passado, os grupos focais passam a ser, quase exclusivamente, recorrentes nas pesquisas de 225 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa marketing. Mais recentemente passou a ser utilizado de forma comum em diversos campos, nomeadamente o da publicidade (Morgan, 1997; Krueger, 1988). Para se perceber o que nos levou a optar por uma técnica como o grupo focal é importante determo-nos um pouco em torno de algumas noções e características que o definem e envolvem. É ponto assente que grupo focal é um tipo específico de grupo no que diz respeito ao seu propósito, tamanho, composição e mesmo procedimentos. Uma das características que definem um grupo focal está associada precisamente ao seu tamanho, sendo que este deve conter entre sete a dez elementos. No fundo, ele deve ser pequeno o suficiente para que todos tenham a oportunidade de partilhar as ideias, mas também deve ser grande o suficiente de modo a haja diversidade de pensamentos. Conquanto o grupo em causa na sua totalidade ultrapassasse o limite máximo, acabámos por reunir somente sete dos elementos (mais de metade do grupo), o que permitiu uma maior partilha entre eles, sendo que, pelos mais diversos motivos, os restantes elementos não puderam estar presentes (Anexo 4AK). Não se justificou realizar um novo grupo focal, uma vez que a essência daquilo que pretende alcançar se perde com uma repetição. A seleção dos seus elementos prende-se com as características que lhes são transversais e que se relacionam com um tema concreto que se pretende analisar, o que contribui para a natureza homogénea do grupo. Esta é uma técnica através da qual se produzem dados de interesse para o investigador, mas não se pretende desenvolver consensos. Existe claramente a produção de dados qualitativos que revelam perceções sobre as atitudes, as opiniões, a forma como se comportam. Existe também um ambiente natural onde os participantes influenciam, mas também são influenciados pelos outros elementos, tal como acontece no dia a dia (Krueger, 1988). Com o grupo focal pretende-se fazer uma recolha de dados a partir de uma interação grupal. Na verdade, não é possível ao investigador obter essas informações apenas através das entrevistas individuais, uma vez que esta técnica acaba por gerar uma pluralidade de reações emocionais no contexto do grupo. Outrossim, as informações, expressas através da linguagem verbal, da cinésica, da proxémica e da paralinguagem, abordadas no item anterior, com este grupo permitem-nos enriquecer a análise da temática frisada ao longo da elocução no âmbito dos grupos focais. Os discursos não são tão-somente expositivos e narrativos, uma vez que todos os pontos de vista devem ser debatidos pelos participantes (Neto; Moreira & Sucena, 2002). Daí que as questões 226 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa que o moderador levante devam instituir e sustentar o debate que se pretende entre esses mesmos participantes. Contudo, isso não implica que tenha de existir, necessariamente, unanimidade de opiniões. Aliás, é salutar que em certos momentos haja algumas divergências para alimentar esse debate, de modo a que este não esmoreça logo depois de começar. De acordo com Veiga e Gondim, o grupo focal ou “grupo de discussão, como técnica qualitativa, apresenta-se como uma possibilidade para compreender a construção de percepções, atitudes e representações sociais no grupo humano acerca de um tema específico” (2001, p. 8). O investigador, neste caso enquanto moderador, assume a tarefa de fomentar a participação e a interação de todos os sujeitos, de modo a que não haja dispersão dos objetivos definidos ou que algum dos elementos monopolize o grupo e o tempo. Aliás, “requer mais directividade do que outros tipos de investigação, pois, além de tratar-se uma entrevista em grupo, reúne sujeitos diferentes e constitui-se em situação de excepcionalidade” (Galego & Gomes, 2005, p. 181). Consideramos ainda, após a leitura de distintos autores, que o grupo focal é uma técnica pertinente no decorrer deste estudo porque ajuda o investigador a perceber de que forma as pessoas encaram as suas experiências e faculta uma pluralidade de imagens e de reações emocionais no âmbito do grupo (Galego & Gomes, 2005). Alguns autores sustentam que, no âmbito da pesquisa social, devem ser os próprios pesquisadores a realizar as sessões dos grupos focais (Neto; Moreira & Sucena, 2002). Consideramos que o facto de ser o investigador a realizar o grupo focal lhe permite um maior conhecimento, sob diferentes perspetivas, do seu objeto de investigação e lhe possibilita um maior à-vontade com o desenrolar desta técnica. A participação do investigador enquanto moderador do grupo focal é ainda basilar para a interpretação e análise de todas as informações obtidas. No caso concreto desta investigação, cremos que se tornou essencial acumularmos esta função e essa situação foi uma mais-valia em todo o processo de investigação porque nos permite um àvontade e uma movimentação muito maior com toda a informação de que dispomos acerca destas mulheres. Para que fosse possível fazer uma planificação adequada e com base no objeto teórico que nos propúnhamos desenvolver, foi necessário concretizar previamente algumas leituras de distintos autores. A aplicação desta técnica requereu algum cuidado porque podia ser confundida com uma mera entrevista de grupo e não era isso que se 227 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa pretendia. Há sempre o risco na planificação de ela se tornar demasiado teórica e se ficar por um mero questionar ou então ir para o oposto e ser uma sucessiva sequência de dinâmicas. Inicialmente houve algumas pedras que se atravessaram no nosso caminho e, como tal, sentimos essas dificuldades que em termos teóricos são salientadas por alguns autores. Nessa altura apercebemo-nos que não era muito difícil isso acontecer. Não obstante, após alguns diálogos trocados com a nossa orientadora e alguma persistência da nossa parte para não deixarmos que isso nos desanimasse neste percurso, fomos reformulando essa planificação até ao momento que considerámos que continha uma mescla de elementos essenciais para o desenvolvimento deste grupo focal. Contudo, procurámos delinear uma planificação que estivesse imbuída destes dois parâmetros. Embora tivéssemos a noção de que o moderador deve assumir um papel de liderança, era importante que não interferíssemos em demasia na dinâmica do grupo nem que ocorresse uma relação dual entre cada um dos elementos e o moderador, até porque o moderador tem como papel fomentar a interação de todos os elementos, asseverando que não há dispersão em relação aos objetivos e que alguns elementos não se sobrepõem aos restantes (Galego & Gomes, 2005). O moderador estimula respostas, lança desafios, não aprova nem aquiesce com comentários e mantém-se numa posição de imparcialidade face aos conteúdos, quer através da linguagem verbal, quer através da não verbal. Aliás, ele deve estimular os elementos a dialogarem uns com os outros e as suas opiniões, respostas devem ser direcionadas para os restantes elementos (Carey, 2007; Galego & Gomes, 2005). No processo de condução de um grupo focal estão implícitas três fases, designadamente a sua conceção, a condução das entrevistas e a análise e relato dos dados recolhidos. A conceção é uma fase fulcral para que o grupo focal funcione realmente, tal como frisámos anteriormente. Essa planificação começa com uma reflexão em torno do propósito do estudo e da estruturação das ideias que integram o guião. Tal como se pode constatar pelo Anexo 4AG, este contempla os temas a debater, os objetivos a ter em conta, a data e hora, identificação do local e do grupo e alguns aspetos logísticos, necessários para o desenvolvimento da sessão e para o ambiente em sala. Só depois formulámos aquilo que é a planificação propriamente dita, com algumas dinâmicas que estimulassem o grupo e o levassem a interagir refletindo bastante e de forma ponderada em torno da fase inicial e da fase final (Krueger, 1988). 228 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Considerando ainda o guião, é importante fazer uma parca menção ao enquadramento espacial e temporal. No que concerne ao enquadramento espacial acabámos por selecionar um espaço físico já conhecido quer por nós quer pelo grupo, uma vez que foi o local onde decorreu o curso. Isto permitiu-lhes, à partida, estarem mais à-vontade numa zona já conhecida. Contudo, o facto desse espaço se encontrar, aquando desta sessão, totalmente despido de traços de imaginação, de criatividade, de cor, de imagem, de palavras, de emoções acabou por se tornar um espaço ao mesmo tempo estranho. Recorremos ao mobiliário da sala, reestruturando a sua disposição perante as nossas necessidades e demos-lhe alguma cor recorrendo a cobertores que foram colocados no chão, defronte da mesa de projeção (Figura 4.1) e colocámos alguns pormenores de cor associados à temática a abordar com o grupo, nomeadamente livros de histórias e fantoches, de modo a torná-lo também um pouco mais aconchegante (Figura 4.2). Figura 4.1 – A decoração do espaço Figura 4.2 – Pormenores Dadas estas eventuais ambiguidades em relação ao local físico era importante observar como é que elas produziam o seu espaço, atendendo às eventuais emoções e significados associados, para percebermos como é que elas interagiam nele e com ele. O enquadramento temporal foi definido mediante uma articulação entre as nossas disponibilidades e as disponibilidades dos diferentes elementos, de modo a aproveitarmos os dias mais longos e soalheiros, mas simultaneamente não interferindo com outros compromissos do grupo, sendo que esta fase de coordenação inicial foi traçada com os doze elementos. 229 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Pensando na sessão propriamente dita, embora os diferentes elementos não fossem estranhos entre si, optámos por realizar uma atividade inicial de quebra-gelo, para desvanecer alguns distanciamentos que se possam ter criado, fruto do dia a dia, e trazê-las para aquele espaço, não só fisicamente. Daniela foi a primeira a retirar um objeto, mas por pouco ia tirando aquele que tinha colocado. Fez nova tentativa. Nesse primeiro momento acabou por haver ali uma série de emoções que deixaram o grupo um pouco cabisbaixo. Daniela dirigiuse a Sofia, pensando que o objeto que tinha seria dela e falou acerca da morte do marido desta. Naturalmente Sofia fez um esforço para que as lágrimas não lhe caíssem do rosto, o que foi de todo impossível. Dei uma pausa antes de avançar, para que não se deixassem ir abaixo com situações daquelas. Ao longo daquele momento de quebra-gelo tentei não intervir muito, de modo a que elas pudessem ir interagindo. Não obstante, apercebi-me paulatinamente que era necessária uma posição mais interventiva, para levar o grupo a falar (Registo de observação do grupo focal, 2011-07-16). Para concretizar a planificação foi necessário preparar alguns elementos extra, considerados pertinentes para obter do grupo as tais imagens e reações emocionais de que falámos previamente. Um dos elementos que nos acompanhou ao longo da sessão foi precisamente aquele que denominámos de saco das histórias, uma vez que foi através dele que o grupo foi falando acerca das suas histórias, das suas leituras, das suas experiências, das suas emoções. Encarámos esta opção como uma forma de atribuir uma maior leveza, sem descurar a sua relevância. De acordo com Chevalier, um livro fechado conserva um segredo, aberto permite que o seu conteúdo seja tomado por alguém (1994). O mesmo acontece com o saco, daí que ele tenha ajudado a proporcionar riqueza e variedade de dados fomentando a troca de experiências e impulsionando a dinâmica e a sinergia do grupo (Figura 4.3). Figura 4.3 – O saco das histórias 230 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa Recorremos também aos meios audiovisuais através da montagem de um vídeo em torno do trabalho desenvolvido pelo grupo no âmbito do curso que tinha congregado os seus percursos, que por razões éticas de confidencialidade de identidades não consta como anexo. A par deste vídeo solicitámos o apoio de um escritor António Torrado , cujas histórias estiveram presentes ao longo do percurso do grupo, para lhes deixar uma mensagem – Anexo 4AI - e que as levou a posteriori a um momento de reflexão mais lata em torno do que o autor tinha referenciado, procurando estabelecer um paralelismo com o quotidiano e as experiências de cada uma. A conclusão do grupo focal teria de incidir sobre algo que recriasse um ambiente que elas conheciam e acabou por preencher os seus percursos. Daí que tenhamos dado vida às palavras e às imagens e paulatinamente tenha nascido em livro a história do grupo – Anexo 4AJ. É igualmente pertinente ressalvar, no que concerne ao rosto da história, que cada pormenor foi delineado manualmente e todas as opções foram concretizadas com minúcia, de modo a que os elementos constituíssem um todo coerente (Figuras 4.4 e 4.5). Figura 4.5 – A primeira página Figura 4.4 – O rosto da história Considerámos pertinente, para que pudéssemos captar toda a essência da interatividade do grupo focal, a presença de dois elementos de apoio, responsáveis pelas anotações das várias linguagens que o grupo pudesse emitir e da congruência entre elas e pela gravação vídeo. Poder-se-ia considerar dispensável a presença de um anotador, uma vez que estava presente uma máquina de filmar para captar as linguagens acima mencionadas. Todavia, julgamos que, tratando-se de uma dinâmica que envolve vários 231 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa elementos, a máquina de filmar pode não captar todos esses dados essenciais para uma análise mais fidedigna, uma vez que é necessário estar em constante movimento. Pode acontecer estar num dado momento a dar importância a um dos elementos, descurando alguma forma de expressividade não-verbal de outro elemento. Daí que a presença do anotador tenha sido encarada como um complemento à gravação, ambos fulcrais para a apreensão de pormenores relevantes do contributo de cada pessoa (Carey, 2007). Tivemos cuidado na seleção destes dois elementos, de modo a não ferir suscetibilidades e a não criar embaraços ou insegurança no grupo. Além disso, consideramos que foi essencial a construção de um guião orientador – Anexo 4AH para as anotações do grupo focal. A pessoa responsável pelas anotações poderia considerar determinados elementos importantes que para nós poderiam ser menos relevantes. Posto isto, e para salvaguardar essas situações, este guião constituiu-se como uma chamada de atenção para determinados aspetos relacionados com a moderadora, com o grupo e com o espaço, mas deixamos margem de manobra para que pudesse adicionar outras impressões e outros elementos indicadores nas suas anotações para uma posterior análise (Anexo 4AN). A motivação basilar do investigador/moderador deve estar patente no desejo de ouvir e de aprender com os participantes (Morgan, 1997). Tenha-se em consideração que este ouvir implica uma escuta ativa, dado que escutar de forma eficaz traduz-se na atenção, no ouvir, na interpretação, na avaliação e na resposta ou, neste caso, na colocação de uma nova questão (Rego, 2007). Foi precisamente essa postura que procurámos adotar ao longo do grupo focal. Escutar envolve muito mais do que ouvir uma mensagem. Ouvir é simplesmente a componente física do ato de escutar. Mas a verdadeira escuta é um processo que consiste em descodificar e interpretar ativamente as mensagens verbais. Escutar verdadeiramente requer atenção cognitiva e processamento de informação – o que não ocorre no ato de simplesmente ouvir (Kritner & Kinicki, cit. por Rego, 2007, p. 305). Sintetizando toda esta interatividade patente no grupo focal e os fatores psicológicos que lhe estão também inerentes, Carey encara os membros de um dado grupo como “fornecedores interactivos e dinâmicos de informação” e essa participação denomina-se de interactiva “no sentido de que o contributo de um membro existe num contexto social”, acrescentando ainda que esse processo de dinâmica de grupo é 232 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa “afectado pelas necessidades pessoais, química do grupo e competências do líder” (2007, p. 233). 4.6. A conjugação das várias páginas da história – análise de conteúdo Um último ponto de referência quanto às técnicas que abraçámos ao longo desta investigação é a análise de conteúdo enquanto “técnica de tratamento de informação” (Vala, 2009, p. 104). Este é um dos procedimentos clássicos de análise do material escrito e, tal como salienta Flick, uma das suas feições fundamentais é a utilização de categorias, oriundo de modo frequente de modelos teóricos, uma vez que as categorias são direcionadas para os dados empíricos (2005). Berelson descreve a análise de conteúdo como “«uma técnica de investigação que através de uma descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesta das comunicações, tem por finalidade a interpretação destas mesmas comunicações» ” (cit. por Bardin, 2004, p. 31). Bardin, por sua vez, considera que esta é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/receção (variáveis inferidas) destas mensagens (2004, p. 37). Na aceção de Rocha e Deusdará, a análise de conteúdo pretende, acima de tudo, explanar os caminhos adotados pelas “práticas linguageiras de leitura de textos no «campo das ciências» ” (2005, p. 308). Para Bardin a análise de conteúdo encerra duas funções que podem coexistir de forma complementar: uma função heurística, que tende a engrandecer a pesquisa exploratória, amplificando a disposição para a descoberta e uma função de “administração da prova”, isto é servir de prova para a averiguação de hipóteses apresentadas sob a forma de questões ou de afirmações transitórias (2004). Não podemos olvidar também, no decorrer desta análise de conteúdo, a presença de três características fundamentais: a análise que funciona como uma descrição do conteúdo das mensagens; a inferência como um processo intermédio que permite, assim, a passagem para a interpretação, ou seja, para outro patamar em que se atribui significado à descrição efetuada durante a etapa de análise (Bardin, 2004). Perante uma 233 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa abordagem qualitativa, como é o nosso caso, a inferência é, na verdade, a característica que a define. Para nós, neste contexto, tem maior relevância a presença ou não de determinadas atitudes do que propriamente a quantidade de vezes que elas surgem. Além disso, não se pode descurar o facto de que a inferência se erige “na presença do índice (tema, palavra, personagem, etc.!), e não sobre a frequência da sua aparição, em cada comunicação individual” (Idem, p. 109). Nos paradigmas de análise compreensiva e indutiva e neste caso em particular há lugar para uma grande capacidade de interpretação ou inferência, por parte do investigador, daí que os riscos e as apreciações que lhe são direcionadas sejam mais elevados do que as propostas tradicionais de análise de conteúdo que se organizam a partir de lógicas dedutivas (Guerra, 2010). Na análise de conteúdo deparamo-nos com uma “dimensão descritiva que visa dar conta do que nos foi narrado e uma dimensão interpretativa que decorre das interrogações do analista face a um objeto de estudo, com recurso a um sistema de conceitos teórico-analíticos cuja articulação permite formular as regras de inferência” (Guerra, 2010, p. 62). No seio desta análise de conteúdo importa salvaguardar que foi efetuada uma análise de todo o material recolhido ao longo da nossa investigação, tal como fomos documentando ao longo do capítulo. Esta análise aspira não só a uma narração das situações, mas também a uma explicação e interpretação do sentido daquilo que nos foi dito, tal como Guerra frisou anteriormente. Aliás, num primeiro momento foram construídas várias grelhas em torno das dimensões de análise, contemplando as várias trajetórias destas mulheres. Ressalve-se que este ensejo inicial nos permitiu alinhar uma primeira composição dos discursos destas mulheres (Anexos 4AC, 4AD, 4AE, e AF), para posteriormente, numa análise mais aprofundada, nos movermos por entre as suas palavras já com a informação mais estruturada. Assim, nas entrevistas em profundidade, e neste caso concreto nas histórias de vida, tendo em conta que são elas o nosso maior suporte de trabalho com o grupo, recorre-se a uma multiplicidade de técnicas de análise de conteúdo que fomos trabalhando em diferentes momentos e que se transformaram em patamares que fomos galgando. Após cada uma das entrevistas com os vários elementos do grupo, procurámos efetuar a respetiva transcrição. Não obstante, nem sempre foi possível conjugar estes timmings e tornar este processo imediato. A transcrição literal de cada uma das gravações vídeo acabou por se alongar porque houve necessidade de avançar e 234 A estratégia de investigação e os diversos passos na construção da história da nossa pesquisa recuar na gravação em diferentes momentos. Tivemos o cuidado, após a finalização da transcrição de cada uma das entrevistas, construída em grelha, de imprimirmos, deixando espaço para as anotações após a nossa leitura. Só depois deste trabalho consumado é que extraímos informação do texto integral com excertos daquilo que foi mencionado por cada um dos atores e associámos às diferentes categorias. De facto, este tipo de análise conduz-nos a uma reflexão em volta das atitudes, dos valores, das opiniões. Neste caso especificamente, podemos verificar que quer com as entrevistas quer com o grupo focal que foram realizados procuramos os sentidos envoltos nestas atitudes para, assim, compreendê-las de uma forma mais aprofundada. Além disso, acresce-se que as entrevistas com os atores institucionais se tornaram uma mais-valia e um complemento para a compreensão destas histórias de vida. Como alude Bardin, “a categorização tem como primeiro objectivo (…) fornecer, por condensação, uma representação simplificada dos dados brutos” (2006, pp. 112-113). No âmbito desta análise não podíamos descurar o facto de a sociologia ser sempre uma sociologia da ação uma vez que os conhecimentos proporcionados pela pesquisa, ao aumentarem a reflexividade coletiva, prosperam igualmente a capacidade de entendimento e de mudança social de todos os envolvidos (Guerra, 2010). 235 C apítulo 5 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico A condição de ser-com-os-outros-no-mundo torna a existência humana uma verdadeira coexistência. O homem partilha com os outros um espaço. (Fernandes, 2006, p. 41) 5.1. Um olhar inicial mais abrangente sobre Portugal continental Quando trabalhamos com pessoas não podemos fazê-lo de forma isolada, descurando a sua contextualização num determinado espaço e num determinado tempo. Daí considerarmos essencial a inserção de um capítulo que nos permita concretizar uma análise desses elementos, situando o universo em causa num tempo e num espaço concretos, de modo a abraçar “o espírito subjacente ao conceito de fenómeno social total” (Lopes, 2000, p. 113). Como tal, partimos de uma apresentação mais macro do contexto geral do país, neste caso apenas de Portugal continental, passando por um nível meso, para depois descermos a um nível mais micro do espaço local e também mais próximo do nosso objeto empírico, remetendo-nos aqui para uma circunscrição aos concelhos de residência. Procuramos, deste modo, estabelecer paralelismos na análise em distintas escalas – Portugal Continental (NUTS I), Região Centro (NUTS II), sub-região do Baixo Vouga (NUTS III) e 3 concelhos em particular. Tentamos igualmente perceber a existência de regularidades e singularidades em cada uma destas escalas ou de contiguidades ao longo das distintas escalas. 237 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Esta contextualização, particularmente a mais micro do espaço local, permite-nos também perceber melhor as trajetórias destas mulheres. A análise do meio social em que elas se inserem possibilita-nos talqualmente compreender opções, percursos, dificuldades e o próprio meio que as envolve. Se nas últimas quatro décadas do século transato se verificam grandes mudanças na sociedade portuguesa, na última década não tem deixado de ocorrer transformações a vários níveis (Barreto, 1995; 2000; Machado & Costa, 1998). É com base em dados publicados pelo INE, mediante indicadores fornecidos on line pelo site do mesmo na Internet e publicações, consultando também aqueles que constam no portal da PORDATA, uma vez que a informação disponibilizada neste portal provém do INE e do EUROSTAT, que procuramos fazer para já uma análise da sociedade portuguesa, ainda que não de forma demasiado exaustiva. Pretendemos tão-só para iniciar compreender alguns números em traços gerais de demografia, de educação e de emprego. Deste modo, para essa análise socorremo-nos de dados contidos em diferentes documentos, sendo que alguns deles advêm dos censos 2011, salvaguardando-se que estes constituem ainda resultados com caráter provisório e não definitivo, estando estes apenas disponíveis no 4.º trimestre de 2012. De uma forma global, as principais tendências evidenciadas por estes resultados provisórios relativamente a Portugal continental revelam-nos que o número de população aumentou em Portugal de uma forma geral, e também em particular no continente, tal como se pode constatar através do Quadro 5.1, a seguir apresentado, e através do qual podemos também fazer uma leitura da população de acordo com os censos de 2001 e os resultados provisórios dos que foram concretizados em 2011. Além disso, tal como podemos ler no mesmo Quadro, aumentou também o número da população idosa, considerando que o número de pessoas com 65 anos ou mais em 2001 passou de 1.628.596 para 1.949.557 em 2011, o que confere um aumento de 320.961 pessoas. (INE, 2001a, 2011a). Em termos percentuais, temos em 2001 nesta faixa etária 16,5% da população em Portugal continental e em 2011 esse valor eleva-se para os 19,4%. Na verdade, “os efeitos económicos e sociais de uma estrutura demográfica altamente envelhecida são diversos e dependem do grau de crescimento e decrescimento simultâneos em diferentes níveis etários” (Almeida, Capucha, Costa, Machado, Nicolau, & Reis, 1994, p. 23). 238 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.1 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente NUTS I (%) Zona Geográfica/ Idade População residente, segundo grupo etário e sexo Portugal HM 10.356.117 2001 H 5.000.141 M 5.355.976 HM 10.561.614 2011 H 5.047.387 M 5.514.227 Continente 9.869.343 4.765.444 5.103.899 10.047.083 4.799.593 5.247.490 0-14 anos 15,8 16,7 14,9 14, 8 15,8 13,8 15-24 anos 14,2 14,9 13,5 10,7 11,4 10,1 25-64 anos 53,5 534,0 53,1 55,1 55,7 54,6 65 ou mais anos 16,5 14,3 18,5 19,4 17,1 21,5 Fonte: INE, 2001a,2011a. Se em 2001 já se fala de uma redução das taxas de natalidade e de um acréscimo do fenómeno de envelhecimento, com um aumento da longevidade, podemos aferir através do Quadro acima apresentado que, no espaço de dez anos, se continua a verificar uma diminuição acentuada da população entre os 0 e os 14 anos, sendo, contudo, ainda mais acentuado o agravamento do envelhecimento, tal como vimos anteriormente. Se atentarmos nas faixas intermédias, apuramos que houve um decréscimo acentuado da população que se situa na faixa etária entre os 15 e os 24 anos (de 14,2% em 2001 para 10,7% em 2011), com um estreitamento da base da pirâmide, e um aumento da população entre os 25 e os 64 anos, alargando-se o topo da pirâmide. Considerando o cômputo de todos estes elementos é perfeitamente percetível que se fale de um fenómeno de duplo envelhecimento ao longo da última década. Afinal, a população mais jovem tem diminuído bastante e a mais idosa tem sofrido agravamentos. Este fenómeno demográfico constitui uma das grandes preocupações do século XXI na nossa sociedade, dado que acaba por acarretar um impacto não só em termos sociais, mas também com efeitos na própria economia do país. Se tivermos ainda em conta os dados mais genéricos relativamente a Portugal continental, podemos aferir através do mesmo Quadro que, relativamente a 2011, no que concerne à população mais jovem (entre os 0 e os 24 anos) o número de homens é mais elevado, enquanto a partir dos 25 anos e à medida que a idade avança esta situação se inverte, acentuando-se ainda mais o número de mulheres a partir dos 65 anos, o que 239 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico revela que entre a população idosa o número de mulheres é superior. Tal fator reflete a sua maior longevidade. De acordo com as estatísticas disponíveis assevera-se que a dissolução do casamento por morte do cônjuge atinge particularmente as mulheres devido à sobremortalidade masculina, sendo esta outra das explicações para a disparidade de números na viuvez no que concerne aos dois sexos (INE, 2012a). Considerando o caráter provisório dos últimos censos e o facto de ainda não existir uma análise de todas as categorias, socorremo-nos de outros elementos, com o intuito de, sumariamente, apresentarmos os traços mais expressivos das tendências sociodemográficas da sociedade portuguesa, mais uma vez de Portugal continental tãosó, que nos remetem para os Anuários Estatísticos, dos últimos 3 anos anteriores aos censos de 2011. Observando o Quadro 5.2 podemos percecionar, desde logo, que a relação de masculinidade definida entre 2008 e 2010 salienta a predominância das mulheres relativamente aos homens. O valor mantém-se praticamente inalterável ao longo destes três anos e constatamos que em 2010 existe uma relação de masculinidade de 93,7 homens para 100 mulheres. Na sequência do Quadro anterior, reforçamos a ideia que a proeminência da população feminina é mais intensa à medida que a idade aumenta. Quadro 5.2 Evolução da população residente em Portugal continental 2008, 2009 e 2010 (NUTS I) 2008 2009 2010 Relação de masculinidade (%) 93,8 93,8 93,7 Nados-vivos 99057 94324 96133 Óbitos 99401 99335 100837 Índice de envelhecimento 118,1 120,3 122,9 Densidade populacional (n.º/km2) 113,9 113,9 113,9 Taxa de crescimento natural (%) 0,00 - 0,05 - 0,05 Taxa de crescimento efetivo (%) 0,08 0,09 -0,01 Taxa de crescimento migratório (%) 0,09 0,14 0,03 Taxa bruta de natalidade (%) 9,8 9,3 9,5 Taxa bruta de mortalidade (%) 9,8 9,8 9,9 Fonte: INE, 2009a, 2009b, 2010a, 2011c, Indicadores demográficos 240 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico No que concerne ao índice de envelhecimento, e considerando também aqui a informação contida no Quadro 5.1, é percetível um aumento gradual do índice de envelhecimento, que reflete precisamente aquilo que dissemos a propósito do Quadro anterior (118,1 indivíduos idosos por cada 100 jovens em 2008, valor que aumenta para 120,3 em 2009 e para 122,9 em 2010), o que significa que há mais população idosa do que jovem. Segundo os dados provisórios de 2011 o valor do índice de envelhecimento situa-se nos 131,3 idosos por cada 100 jovens. Este fenómeno do envelhecimento da população e de decréscimo da natalidade é também partilhado pela Europa. Aliás, de entre os motivos que explicam essa situação deparamo-nos com o facto de existir uma conciliação entre a maternidade e a vida profissional das mulheres, o recurso à contracepção, a alteração dos padrões de vida ou mesmo o facto de as mulheres terem os filhos cada vez mais tarde. De acordo com informação disponibilizada pela PORDATA, em 2009 (dados provisórios) a Europa apresentava um índice de envelhecimento de 110,6, superior ao de 2008 com 109,4, ambos inferiores aos registados em Portugal continental (PORDATA, on-line). A tendência, de acordo com as projecções dos indicadores demográficos, é para continuar a ocorrer um aumento do índice de envelhecimento na União Europeia, tal como em Portugal. De acordo com as previsões efectuadas, o rácio da dependência da população com mais de 65 anos na Europa sofrerá até 2050 aumentos consideráveis, situando-se nessa altura nos 231,5 idosos por cada 100 jovens (INE, 2011d). Para percebermos um pouco melhor este aumento acentuado da taxa de envelhecimento ao longo dos últimos anos, basta atentarmos no número de nados-vivos e óbitos e nas taxas de natalidade e mortalidade, respetivamente. Se em 2008 existia equidade nestas duas taxas, desde aí a de mortalidade acabou por sofrer agravamentos relativamente à de natalidade, o mesmo acontecendo em relação aos óbitos e aos nadosvivos. Quanto aos nados-vivos constata-se um decréscimo mais proeminente entre 2008 e 2009, verificando-se um incremento em 2010, embora não seja suficiente para alterar o índice de envelhecimento. Posto isto, sendo, em 2010, a taxa de mortalidade superior à de natalidade a taxa de crescimento natural é, consequentemente, negativa. As taxas de crescimento efetivo sofrem ligeiras oscilações entre 2008 e 2010, sendo que em 2010 sofre um decréscimo e se situa nos -0,1%, uma taxa de crescimento efetivo negativa, o que significa que em 2010 ocorreu um decréscimo populacional. No que diz respeito à densidade populacional, comprova-se que a intensidade do povoamento se mantém constante entre 2008 e 2010, com 113,9 habitantes por Km2. 241 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Por sua vez, a taxa de crescimento migratório revela entre 2008 e 2010 valores positivos, embora vá sofrendo oscilações. Entre 2008 e 2009 verifica-se um incremento da taxa (de 0,09% para 0,14%), mas esta acaba por diminuir logo em 2010, situando-se nos 0,03%. Tal como se pode analisar através do Quadro 5.3. o número de famílias institucionais amplificou-se nos últimos 10 anos de forma clara, o que revela consequentemente um aumento de instituições direcionadas para as crescentes necessidades da sociedade. Não obstante, não foi somente o número de famílias institucionais que aumentou, também as famílias clássicas revelaram um acréscimo considerável (de 3.505.292 em 2001 passaram em 2011 para 3.869.5237). Quadro 5.3 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 em Portugal continental no que concerne às famílias clássicas e institucionais (NUTS I) 2001 2011 Famílias clássicas Famílias institucionais Famílias clássicas Famílias institucionais 3.505.292 3.661 3.869.537 4.578 Fonte: INE, 2011a. Contrariamente a estes acréscimos ao longo da última década, a dimensão das famílias tornou-se mais reduzida (Quadro 5.4). A par desta diminuição da extensão das famílias, ocorre um incremento das famílias com menor dimensão, nomeadamente com 1 e 2 pessoas, perdendo expressividade as famílias de maior dimensão, ao longo do último decénio. Pese embora o número de famílias com 3 pessoas tenha aumentado, essa situação ocorre de forma menos exponencial do que nas famílias apenas com um e dois elementos. Não se pode descurar que diferentes elementos, nomeadamente o adiamento do casamento e da maternidade, assim como a redução do número de filhos por mulher espelham as alterações que se têm verificado ao longo da última década relativamente ao nível de escolaridade, à inclusão da mulher a nível profissional e ainda à consubstanciação de novos modelos de conjugalidade e parentalidade (INE, 2012b). A conjugação destes fatores acaba por acarretar, ao longo da última década, um acentuar 242 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico de uma multitude de transformações na família e no lugar que esta desempenha na sociedade. Em 2009 a dimensão média dos agregados domésticos privados em Portugal (aqui englobando continente e ilhas) é de 2,7 indivíduos, enquanto na Europa se situa nos 2,4, o que revela que apesar de tudo a dimensão média em Portugal é superior à da Europa (PORDATA, on-line). Quadro 5.4 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas em Portugal continental, nos censos de 2001 e 2011 (NUTS I) Ano de Total de Com 1 Com 2 Com 3 Com 4 Com 5 ou referência famílias elemento elementos elementos elementos mais clássicas elementos 2001 3.505.292 611.627 1.003.882 886.204 688.030 314.649 2011 3.869.537 835.163 1.232.916 923.778 637.210 240.470 Fonte: INE, 2001a,2011a. Importa ainda ressalvar, no que diz respeito a Portugal continental, que o maior conjunto da população do país é constituído por indivíduos casados, sendo pouca a discrepância dos números entre homens e mulheres neste caso (Quadro 5.5). Quadro 5.5 Quadro comparativo do estado civil legal da população residente em Portugal continental, de acordo com os censos 2001 e 2011 (NUTS I) 2001 2011 Estado civil HM H M HM H M Solteiro 302.351 131.088 171.263 4.050.779 2.087.476 1.963.303 Casado 2.548.762 2.425.072 123.690 4.691.926 2.339.196 2.352.730 Divorciado 141.085 43.325 97.760 568.435 234.293 334.142 Viúvo 464.791 84.421 380.370 735.943 138.628 597.315 Fonte: INE, 2001a,2011a 243 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Na última década houve um crescimento bastante acentuado deste grupo da população, embora ele também já constituísse em 2001 o grosso da população. O grupo dos indivíduos solteiros assume-se como o segundo grande grupo relativamente ao estado civil da população em ambos os sexos, embora haja uma oscilação de números que fazem com que haja mais homens solteiros do que mulheres, constituindo-se esta como uma situação inversa à de 2001. Os dois restantes estados civis divorciado e viúvo acabam por ser parcelas com uma expressividade mais reduzida, pese embora se verifique um aumento dos números em ambos os casos em relação a 2001. Não descuremos que nestas duas últimas categorias o número de mulheres é consideravelmente maior quer em relação a 2001, quer relativamente aos homens em 2011. Há uma notória proeminência de mulheres divorciadas e viúvas, estas últimas com uma superioridade mais acentuada, se compararmos com os números relativos aos homens. De qualquer modo, o número de mulheres viúvas é francamente superior ao das divorciadas, nos dados apresentados por ambos os censos. A par dos aumentos que se verificam a vários níveis, tal como temos atestado, constata-se que também os níveis de escolaridade sofreram alterações, mediante uma leitura do Quadro 5.6. Quadro 5.6 Comparação dos dados dos censos 2001 e 2011 relativamente aos níveis de escolaridade em Portugal Continental NUTS I (%) Níveis de escolaridade 2001 2011 HM H M HM H M 14,2 12,1 16,2 19,0 17,2 20,7 1.º Ciclo ensino básico 35,0 34,8 35,2 25,3 25,5 25,1 2. Ciclo ensino básico 12,5 13,7 11,3 13,2 15,0 11,5 3.º Ciclo ensino básico 10,8 12,0 9,8 16,0 17,6 14,6 Ensino Secundário 15,8 16,6 15,0 13,0 13,1 12,9 Ensino Pós- secundário 0,80 0,9 0,7 1.4 1,6 1,2 Ensino Superior 10,9 9,9 11,8 12,1 10,0 14,0 Sem qualificação académica Fonte: INE, 2001a;2011a. 244 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Se atentarmos nos dados expressos no Quadro 5.6, comprovamos que há uma progressão expressiva dos níveis de escolaridade da população em Portugal continental ao longo da última década, ocorrendo, todavia, um retrocesso nos níveis mais reduzidos, designadamente no 1.º ciclo. Inversamente, há um aumento dos níveis de qualificação correspondente ao 2.º e 3.º ciclo do ensino básico. De acordo com o mesmo Quadro pode-se ainda aferir que há, de uma forma global, uma preponderância das mulheres no que diz respeito ao aumento dos níveis de escolaridade. Esta situação mantém-se no 1.º ciclo e no nível secundário, invertendo-se nos ciclos intermédios – 2.º e 3.º ciclo. É também observável no Quadro acima apresentado que as qualificações mais elevadas se situam no lado das mulheres. Não obstante, esse número também é mais elevado nas mulheres quando falamos daquelas sem qualquer nível de ensino. Ressalve-se que em 2001, de acordo com os dados apurados através dos censos, havia uma taxa de analfabetismo de 8,93% em termos de NUTS I. Considerando os valores acima indicados relativamente à educação e aos níveis de escolaridade da população em Portugal continental, importa percebermos um pouco, considerando que o nosso objeto empírico integrou a modalidade da educação e formação de adultos, os números correspondentes a estes públicos entre 2007 e 2010 de uma forma mais global. Deste modo, apercebemo-nos, através do Quadro 5.7, de algumas oscilações quer no ensino básico quer no secundário. Deste modo, no 1.º ciclo do ensino básico nota-se uma descida abrupta no número de indivíduos matriculados em cursos EFA do ano letivo 2007/2008 para o de 2008/2009, ocorrendo precisamente a situação inversa no ano seguinte 2009/2010. Falamos no 1.º caso de menos 421 indivíduos e no 2.º de um incremento de 1025 pessoas. Relativamente aos processos de RVCC de 2008/2009 para 2009/2010 há um aumento de 127 indivíduos. No 2.º ciclo ocorreu justamente a mesma situação, sendo, todavia o decréscimo inicial superior ao aumento, exíguo, no ano letivo de 2009/2010. Neste caso particular houve um incremento bastante significativo a nível de RVCC, com mais 1641 indivíduos de 2008/2009 para 2009/2010. 245 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.7 – Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, em Portugal continental, entre 2007 e 2010 Ano letivo 2007/2008 2008/2009 2009/2010 1728 __ 1307 472 2332 599 5407 __ __ 5163 8831 __ 5179 10472 84 32560 __ __ 40374 100688 __ 29702 92508 692 15831 __ __ 52017 98129 __ 41122 86527 963 Nível e ciclo de ensino 1.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC 2.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC Formações modulares 3.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC Formações modulares Ensino Secundário EFA RVCC Formações modulares Fonte: GEPE, 2011, p. 46; INE, 2011b, pp. 122-123 No que ao 3.º ciclo diz respeito, mormente aos cursos EFA, sobrevém uma situação inversa às duas anteriores, em que há inicialmente um acréscimo acentuado, com mais 7.814 pessoas matriculadas nestes cursos e no ano letivo 2009/2010 há uma diminuição repentina de números (com menos 10.672 indivíduos), tal como nos RVCC. Esta situação ocorre igualmente no ensino secundário. De acordo com dados oficiais, em 28 dos 33 países da OCDE, 60% ou mais das pessoas entre os 25 e os 64 anos concluíram pelo menos o nível secundário. Não obstante, no Brasil, no México, em Portugal e na Turquia mais de metade desse grupo que integra essa faixa etária não completou o ensino secundário (OECD, 2011). Segundo a mesma fonte, entre 1998 e 2008 existe um incremento da população portuguesa que completou o ensino secundário/ pós-secundário e ensino superior. Se em 1998 82% da população na faixa etária entre os 25 e os 64 anos não detém mais do que 246 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico o 9.º ano de escolaridade, em 2008 há uma redução de 10 pontos percentuais, aumentando, por sua vez, o número daqueles que concluíram o ensino secundário/ póssecundário, assim como o ensino superior (Idem). Na globalidade dos países da OCDE analisados, Portugal revela os números mais reduzidos no que diz respeito à população que completou o ensino secundário/ pós-secundário e no ensino superior, só mesmo a Turquia apresenta um valor inferior (OECD, 2011). No âmbito deste panorama mais genérico inicial em volta da NUTS I, importa igualmente fazermos uma leitura dos indicadores do mercado de trabalho, tal-qualmente importantes na evolução da sociedade. Como tal, baseamo-nos no Quadro 5.8 para entender os distintos indicadores nesta área. Quadro 5.8 Indicadores do mercado de trabalho, 2008-2010 NUTS I Ano População desempregada Taxa de desemprego (%) Taxa de emprego Taxa de atividade População ativa População empregada População inativa (N.º milhares) Total M Jovens (15-24) (%) (%) (N.º milhares) (N.º milhares) (N.º milhares) 2008 413,1 7,7 8,9 16,6 57,8 53,1 5.381,2 4.968,1 4.751,1 2009 510,8 9,6 10,3 20,2 56,0 52,6 5.334,0 4.823,2 4.811,4 2010 548,8 11,0 12,1 22,7 55,1 52,6 5.332,9 4.748,1 4.809,4 Fonte: INE, 2009a, 2010b, 2011 b Verificamos que os números da população desempregada aumentaram substancialmente entre 2008 e 2009, patente também nos valores das taxas de desemprego. Em 2008 estávamos perante uma taxa de 7,7%, que em 2009 passou para 9,6%, o que equivale a um aumento de 1.9 pontos percentuais face ao ano anterior. O ano de 2009 corresponde assim “à continuação da trajectória ascendente da taxa de desemprego que se verifica desde 2000, quando a taxa foi de 3,9%” (INE, 2010b, p. 171). De 2009 para 2010 continua a estar patente este aumento do número de desempregados, embora não tão acentuado como anteriormente (de 9,6% em 2009 passa para 11,0% em 2010). A taxa de desemprego nas mulheres segue a mesma tendência, embora o pior agravamento esteja patente entre 2009 e 2010, passando de 10,3% para 247 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 12,1%. A mesma taxa nos jovens continua a escalar desde 2008, transpondo de forma célere de 16,6% nessa altura para 22,7% em 2010. A diminuição da taxa de emprego, conjugada com a quebra do número da população empregada e com o aumento da população desempregada, contribui para o acréscimo da taxa de desemprego. Apercebemo-nos igualmente que entre 2008 e 2010 ocorre um decréscimo gradual da população ativa, sendo menor entre 2009 e 2010. Relativamente à população inativa, constata-se um aumento considerável entre 2008 e 2009 (com mais 93,3 milhares), mas entre 2009 e 2010 há um ligeiro recuo. Estes dados são também fruto da conjuntura económica do país. Observando igualmente a taxa de atividade (proporção entre população ativa e o total da população) da NUTS I constatamos que a taxa de 2009 em relação à de 2008 enfraqueceu, embora tenha estagnado em 2010 com os mesmos valores de 2009, situando-se nos 52,6%. Quando nos focamos na taxa de atividade de homens e mulheres, discernindo os valores que lhes estão associados, notamos que a taxa referente aos homens tem vindo a decrescer desde 2008, enquanto a das mulheres, após uma ténue diminuição em 2009, se amplificou em 2010, situando-se nos 48,5% (Figura 5.1). Um elemento elucidativo para este aumento da participação feminina no mercado de trabalho está relacionado com “o facto de terem ocorrido importantes evoluções nos níveis de escolaridade atingidos pelas mulheres em Portugal” (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres & Wall, 1998, p. 47). H 58,2 57,2 56,9 48,3 2008 M 48,5 48,2 2009 2010 Fonte: INE, 2009a, 2010b, 2011 b Figura 5.1 Taxa de atividade de homens e mulheres, entre 2008-2010, NUTS I 248 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 5.2. Descendo para um patamar meso… a região e a sub-região Se anteriormente nos detivemos, de forma mais generalizada, em torno de algumas das alterações que Portugal continental foi sofrendo ao longo da última década, e em alguns aspetos nos últimos anos, importa agora delongarmo-nos por instantes à volta da região Centro e em particular sobre a sub-região do Baixo Vouga, numa perspetiva mais meso. Afinal, consideramos que é importante percebermos a própria região, para podermos perceber os espaços mais micro que nela se inserem. Assim, é necessário entendermos os valores da região Centro no tempo, de acordo com os censos de 2001 e de 2011, e ainda no seio daqueles que expusemos anteriormente relativamente ao país. Deste modo, constatamos, mediante uma leitura do Quadro 5.9, que há um decréscimo do número total da população se compararmos com os dados de 2001, contribuindo para tal uma maior diminuição da parte dos homens. A percentagem mais elevada da população situa-se entre os 25 e os 64 anos, tal como já acontecia anteriormente e na sequência do que acontece também em Portugal continental. Não obstante, ocorre uma diminuição da população mais jovem (até aos 24 anos) e sobrevém um aumento da população idosa, mantendo-se o mesmo panorama de Portugal continental. Do mesmo modo se verifica que da população idosa se destaca, uma vez mais, a percentagem mais elevada no lado das mulheres. Salvaguarde-se que a região Centro congrega, em 2011, 23,6% da população de Portugal continental. Quadro 5.9 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente na região Centro NUTS II (%) Idade População residente, segundo o grupo etário e o sexo 2001 2011 HM H M HM H M Total 2.348.397 1.131.819 1.216.578 2.327.580 1.111.400 1.216.180 0-14 anos 15,0% 15,9% 14,2% 13,7% 14,7% 12,8% 15-24 anos 13,7% 14,5% 13,0% 10,3% 10,9% 9,7% 25-64 anos 51,8% 52,4% 51,3% 53,5% 54,4% 52,6% 65 ou mais anos 19,4% 17,2% 21,6% 22,5% 20,0% 24,9% Fonte: INE, 2001a;2011a 249 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico A sub-região do Baixo Vouga, inserida na região Centro, compreende uma área de 1.802,3 Km2, delimitada a norte pela sub-região do Grande Porto e de Entre Douro e Vouga, a leste pela sub-região de Dão-Lafões e a sul pela região do Baixo Mondego (Figura 5.2). Estando situada na zona litoral, a oeste apresenta-se o Oceano Atlântico (INE, 2011b). Fonte: INE, 2011b Figura 5.2 – Delimitação da sub-região do Baixo Vouga (NUTS III) De acordo com os dados provisórios dos censos de 2011, esta sub-região apresenta, relativamente a 2001, um acréscimo nos valores totais da população, ainda que não demasiado proeminente (Quadro 5.10). Mediante os dados provisórios do total da população desta sub-região, de 2011, aferimos que esta incorpora no seu espaço 16,8% da população da NUTS II. Constata-se pela leitura do Quadro seguinte, que existe em 2011 um aumento mais significativo do lado das mulheres do que dos homens, principalmente a partir dos 25 anos, face a 2001. Tal como acontece no país e 250 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico na região Centro, em termos globais, a parte mais significativa da população situa-se na idade adulta, entre os 25 e os 64 anos, em termos globais, continuando aqui patente uma diminuição das camadas mais jovens e um acréscimo dos idosos, mormente de mulheres, com um aumento de 3,4 pontos percentuais em relação a 2001. Nas camadas mais jovens a diferenciação em termos percentuais entre homens e mulheres é pouco significativa. Saliente-se ainda que se listarmos a tabela pela ordem percentual, é percetível que a população na faixa etária dos 15 aos 24 anos é aquela que revela as percentagens mais reduzidas, o que já acontecia também em 2001. Quadro 5.10 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente à população residente na sub-região do Baixo Vouga NUTS III (%) Zona Geográfica/ População residente, segundo o grupo etário e o sexo Idade 2001 2011 HM H M HM H M Total 385.724 186.574 199.150 390.840 187.085 203.755 0-14 anos 16,50 17,4 15,7 14,7 15,6 13,8 15-24 anos 14,40 15,1 13,8 10,9 11,4 10,3 25-64 anos 53,55 53,9 53,2 55,5 56,1 55,1 65 ou mais anos 15,55 13,6 17,4 18,9 16,9 20,8 Fonte: INE, 2001a, 2001b, 2011a, Recenseamento da População e Habitação Se refletirmos em torno destes dados e, consultando os dados constantes nos Anuários Estatísticos da Região Centro e nos Indicadores Demográficos, apercebemonos que se verifica nesta sub-região, mantendo uma linearidade entre 2008 e 2010, uma percentagem ligeiramente mais elevada da taxa bruta de mortalidade (9,1% em 2010) face à taxa bruta de natalidade (8,9%, em 2010, o que significa uma ligeira subida relativamente a 2009, com 8,6% e uma descida face a 2008 com 9,2%), daí que este aumento se deva também, em parte, à entrada de população estrangeira com estatuto de residência, embora este número também venha a decrescer desde 2008 (INE, 2011b). No que concerne à região Centro o panorama é idêntico no que diz respeito a estas taxas e aos números de óbitos e nados-vivos, tal como podemos ler no Quadro 5.11. 251 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.11 Evolução da população residente na região Centro e sub-região do Baixo Vouga 2008, 2009 e 2010 (NUTS II e III) Centro Baixo Vouga 2008 2009 2010 2008 2009 2010 93,6 93,6 93,6 94,4 94,4 94,4 Nados-vivos 20156 18934 19127 3700 3437 3559 Óbitos 27072 26725 27080 3657 3728 3668 Índice de envelhecimento 147,2 149,7 152,9 114,6 117,8 122,0 Densidade populacional (n.º/km2) 84,5 84,4 84,3 221,9 222,3 222,6 Taxa de crescimento natural (%) - 0,29 - 0,33 - 0,34 0,01 - 0,07 - 0,03 Taxa de crescimento efetivo (%) - 0,11 - 0,09 - 0,22 0,20 0,17 0,10 Taxa de crescimento migratório (%) 0,18 0,23 0,12 0,19 0,25 0,13 Taxa bruta de natalidade (%) 8,5 7,9 8,0 9,2 8,6 8,9 Taxa bruta de mortalidade (%) 11,4 11,2 11,4 9,1 9,3 9,1 Relação de masculinidade (%) Fonte: INE, 2009a, 2009b, 2010, 2011b, Indicadores demográficos Esta situação leva-nos, mais uma vez, a ter em conta o índice de envelhecimento e, tal como acontece em Portugal continental, entre 2008 e 2010 sofre agravamentos na região Centro e, consequentemente, na sub-região do Baixo Vouga. Não obstante, quando olhamos para a região apercebemo-nos que o seu índice é mais elevado do que aquele que encontramos em Portugal continental. Se em termos de NUTS I em 2010 estávamos perante um índice de 122,9, nesta região ele situa-se em 2010 nos 152,9 indivíduos idosos por cada 100 jovens. Mas esta é uma situação que não é nova, uma vez que ele já era superior em 2008 à NUTS I (147,2). Apesar de a região revelar estes valores, verificamos que na sub-região, conquanto mantenha as tendências do aumento deste índice, os valores situam-se ligeiramente abaixo dos de Portugal continental. De qualquer modo, desde 2008 verifica-se um acréscimo neste índice, uma vez que em 2008 existiam 114,6 indivíduos idosos por cada 100 jovens e em 2010 esse número amplificou-se para 122,0. A relação de masculinidade na região Centro é idêntica àquela que se afere em Portugal continental, sendo neste caso de 93,6 homens para 100 mulheres, enquanto no Baixo Vouga ela é ligeiramente superior, ou seja, 94,4 homens para 100 mulheres. Ainda relativamente ao Quadro anterior podemos perceber que a densidade populacional na região Centro é inferior àquela com que nos deparamos em Portugal 252 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico continental, registando-se uma ténue oscilação entre 2008 e 2010 (de 84,5 habitantes por Km2 em 2008 para 84,3 habitantes por Km2 em 2010). Já na sub-região do Baixo Vouga ocorre a situação inversa. Aliás, se estabelecermos um paralelismo, percebemos que a intensidade do povoamento é francamente superior nesta sub-região e desde 2008 tem vindo a crescer paulatinamente, situando-se em 2010 nos 222,6 habitantes por Km2. As taxas de crescimento efetivo na região Centro sofrem ligeiras oscilações entre 2008 e 2010, ainda que em terreno negativo, sendo que em 2010 ocorre um agravamento considerável, situando-se nos -0,22%, o que revela um diminuendo dos valores populacionais. A taxa de crescimento natural tem vindo a aumentar desde 2008, com valores negativos, considerando que as taxas de natalidade são francamente inferiores às da mortalidade. No Baixo Vouga há um decréscimo desde 2008, situando-se a taxa de crescimento efetivo em 2010 nos 0,10%, o que, apesar de tudo, patenteia um crescimento populacional ainda que não demasiado significativo. Já a taxa de crescimento natural, que em 2008 era de 0,01% passou para valores negativos em 2009 e embora ainda revelando números negativos em 2010 houve um ligeiro crescimento dos -0,07% para os -0,03%, tendo em conta que entre 2009 e 2010 sobreveio um incremento da taxa de natalidade (de 8,6% para 8,9%) e, concomitantemente, uma redução da taxa de mortalidade (de 9,3% para 9,1%). No que à taxa de crescimento migratório nas NUTS II e III diz respeito, é notório, antes de mais, o facto de estas revelarem valores mais elevados do que na NUTS I entre 2008 e 2010 sem exceção, pese embora sigam a mesma tendência desta. Entre 2008 e 2009 há um crescimento, em que na região Centro se passa de 0,18% em 2008 para 0,23% e na sub-região do Baixo Vouga de 0,19% para 0,25%. Conquanto, em 2010 em ambos os casos há uma quebra acentuada, passando na NUTS II para 0,12% e na NUTS III para 0,13%. Através da leitura do Quadro 5.12 apercebemo-nos que o número de famílias clássicas cresceu ao longo dos últimos 10 anos de forma expressiva quer falemos em termos de NUTS II ou III. Falamos na NUTS II de mais 57.481 famílias clássicas relativamente a 2001 e na NUTS III de mais 15.602 famílias. Relativamente às famílias institucionais é percetível que relativamente a 2001 há uma clara ascensão do número de instituições não só na região como também na sub-região. Na NUTS II surgiram mais 456 instituições desde 2001 e na NUTS III houve um incremento de mais 52 instituições que vêm colmatar algumas das necessidades que a sociedade patenteia. 253 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.12 Comparação dos dados das famílias clássicas e institucionais dos censos 2001 e 2011 na região Centro e sub-região do Baixo Vouga (NUTS II e III) 2001 Zona Famílias clássicas Geográfica 2011 Famílias Famílias Famílias institucionais clássicas institucionais Centro 847.265 1.021 904.746 1.477 Baixo Vouga 129.654 116 145.256 168 Fonte: INE, 2001b, 2003, 2011a Tal como acontece com Portugal continental, também na região Centro se apura uma redução da extensão das famílias clássicas (Quadro 5.13). Há claramente um aumento das famílias de menor dimensão, mais expressivo nas famílias com um e dois elementos e mais ténue com três elementos. Na verdade, “entrar e viver a relação conjugal de maneiras diferenciadas, aceitar a ruptura conjugal, viver uma longa vida em casal sem ter muitos filhos” constituem algumas das transformações que ocorreram ao longo dos últimos anos e que “têm um impacte nas formas familiares, isto é, na dimensão e no tipo de família e de agregado doméstico em que estão inseridos os indivíduos” (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres, Wall, 1998, p. 50). Quadro 5.13 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas, na NUTS II e III (2001 e 2011) Período de referência dos dados 2001 Local de residência Dimensão (família clássica) N.º de pessoas Total N.º Centro Baixo 2011 Com 1 Com 2 Com 3 N.º N.º N.º Com 4 Com 5 ou mais Total N.º N.º N.º Com 1 Com 2 Com 3 Com 4 Com 5 ou mais N.º N.º N.º N.º N.º 847265 151882 257171 201040 166495 70677 904746 195411 300976 209069 149560 49730 129654 14823 145256 10598 17924 35446 33295 28166 27218 45597 36236 25607 Vouga Fonte: INE, 2011b, 2011a 254 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Concomitantemente, essa propensão mantém-se na sub-região do Baixo Vouga, sendo, tal como na NUTS II, as famílias com dois elementos as que mais se destacam. Curiosamente, e mantendo-se a sequência da NUTS I e II, o número de famílias com três elementos é superior àquelas que tem apenas um elemento, independentemente de falarmos dos censos de 2001 ou de 2011. Se atentarmos nos números de famílias a partir do 4.º elemento confirma-se que há um diminuendo, sendo bastante significativo nas famílias com cinco ou mais pessoas quer na região quer na sub-região. Aliás, na região registam-se menos 20.947 e na sub-região menos 4225 pessoas. Mais uma vez seguindo o panorama geral, comprovamos que o maior agregado da população da região Centro se situa nos indivíduos casados (Quadro 5.14). Contrariamente ao que sucede em Portugal continental, ao longo do último decénio, ocorre um decréscimo deste número de indivíduos, tendo esse declínio sido na ordem dos 144.170 indivíduos. De qualquer modo, este grupo é o mais proeminente no que diz respeito ao estado civil nesta região. O grupo dos indivíduos solteiros assume-se aqui como o segundo grande grupo relativamente ao estado civil da população, em que se verifica um aumento de 35.702 indivíduos desde 2001. Os divorciados e os viúvos acabam por surgir em número mais reduzido. Aliás, regista-se um decréscimo bastante acentuado no grupo dos divorciados em relação a 2001, que se traduz em menos 57.262 indivíduos. Inversamente houve uma ascensão abrupta do número de viúvos que, em 2001, eram tão-só 36.950 e em 2011 passaram para 195.701, o que simboliza uma disparidade de 158.751 indivíduos. Quadro 5.14 Quadro comparativo do estado civil legal da população residente na região Centro e sub-região do Baixo Vouga, de acordo com os censos 2001 e 2011 Centro Baixo Vouga 2001 2011 2001 2011 Estado civil HM HM HM HM Solteiro 822.696 858.398 140.562 150.083 Casado 1.299.893 1.155.723 211.686 190.717 Divorciado 175.020 117.758 7.168 22.319 Viúvo 36.950 195.701 23.950 27.721 Fonte: INE, 2001b, 2011a, 2011b 255 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Se atentarmos na NUTS III reparamos que o grupo constituído pelos casados integra o conjunto de maior extensão, pese embora sobrevenha, tal como na NUTS II, uma quebra na ordem dos 20.969 indivíduos. Contrariamente ao que sucede na região Centro, mas na sequência do que sobrevém em Portugal continental, há um acentuado agravamento do número de indivíduos divorciados nesta sub-região, com mais 15.151 indivíduos que passaram pela dissolução do casamento. Curiosamente, o número de viúvos não é tão acentuado como na região ou mesmo no país. Embora se constate um claro aumento, não é tão proeminente como nos outros casos. Em relação a 2001 existem mais 3771 indivíduos nesta condição. No que concerne à escolaridade, podemos apurar que existe uma similitude entre os valores apurados na região Centro e na sub-região do Baixo Vouga e os de Portugal continental, que comprovam uma clara progressão na última década. Atentando precisamente no Quadro 5.15, verificamos que há um acréscimo dos níveis de qualificação correspondente ao 2.º e 3.º ciclo do ensino básico, já sucedendo o inverso no 1.º ciclo. A percentagem de indivíduos sem qualificação académica continua a ser mais elevada nas mulheres, independentemente de falarmos da região ou da sub-região. 256 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.15 Dados dos censos 2001 e 2011 relativamente aos níveis de escolaridade na região Centro e na sub-região do Baixo Vouga NUTS II e III (%) Centro 2001 Baixo Vouga 2011 2001 2011 Níveis de Escolaridade Sem qualificação académica 1.º Ciclo de ensino básico 2. Ciclo de ensino básico 3.º Ciclo de ensino básico Ensino Secundário Ensino póssecundário Ensino Superior HM H M HM H M HM H M HM H M 15,5 12,6 18,2 20,2 17,4 22,7 12,7 10,6 14,7 18,3 16,0 20,3 38,0 38,3 37,9 27,5 28,2 26,8 37,5 37,0 37,9 26,5 26,8 26,2 12,3 13,7 11,1 12,7 14,8 10,8 14,2 15,1 13,3 14,8 16,8 13,1 10,5 12,0 9,0 15,7 17,6 13,9 11,3 12,9 9,9 16,2 18,0 14,6 13,9 14,8 12,9 12,1 12,2 12,1 14,0 15,1 12,9 11,7 11,8 11,5 0,6 0,6 0,6 1,2 1,4 1,0 0,6 0,7 0,6 1,2 1,5 0.9 9,2 8,0 10,3 10,6 8,4 12,7 9,7 8,6 10,7 11,3 9,1 13,4 Fonte: INE, 2001b, 2011a. De acordo com o mesmo Quadro pode-se ainda aferir que, no âmbito na NUTS II e III, há uma proeminência das mulheres sem qualquer qualificação académica, mas na outra extremidade, ou seja no ensino superior, o número de mulheres é também mais elevado relativamente aos homens. As mulheres acabam, assim, por ser aquelas que se apresentam atualmente com as percentagens mais reduzidas e mais elevadas em termos de escolarização. Podemos ainda constatar uma diminuição dos valores percentuais no ensino secundário ao longo dos últimos dez anos, quer falemos da NUTS II ou da NUTS III. O ensino pós-secundário ou médio é aquele que ao longo do tempo revela os valores menos expressivos. De qualquer modo, ocorre uma ténue ascensão das percentagens referentes a este nível de ensino. Além de uma reflexão em torno dos valores que comporta cada nível de escolaridade, importa também reter que a região Centro, em 2001, detém uma taxa de analfabetismo de 10,91%, portanto mais elevada do que a que se verifica na NUTS I 257 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico (8,93%) e na NUTS III, tendo em conta que a sub-região do Baixo Vouga se situa nos 7,13%. De acordo com os dados disponíveis, neste caso referentes ao ano letivo 2009/2010, podemos notar que o número de alunos matriculados em RVCC é superior aos dos cursos EFA, à exceção do 1.º ciclo, quando nos situamos na NUTS II (Quadro 5.16). A situação mantém-se na NUTS III, estando a exceção no 1.º e 2.º ciclo, em que há um número mais elevado de pessoas a frequentar cursos EFA. No que concerne aos cursos EFA apenas, o maior número de alunos matriculados concentra-se no 3.º ciclo de ensino básico e no nível secundário, independentemente de falarmos da NUTS II ou III. Esta situação é similar no que se refere aos RVCC. Quadro 5.16 Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, na região Centro e sub-região do Baixo Vouga, no ano letivo 2009-2010 Ano letivo 2009/2010 Ano letivo Centro Baixo Vouga 529 122 328 19 2.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC 529 1838 242 168 3.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC 8186 21318 1214 3520 Ensino Secundário EFA RVCC 10935 20120 1426 2929 Nível e ciclo de ensino 1.º Ciclo de ensino básico EFA RVCC Fonte: INE, 2011b, pp. 122-123 Considerando precisamente os dados apresentados anteriormente acerca da escolaridade, ressalve-se que “o aumento continuado das taxas de frequência dos vários graus de ensino, com a consequente elevação dos níveis médios de escolaridade da 258 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico população, tem impactes directos importantes em termos de recomposição socioprofissional” (Machado & Costa, 1998, p. 27). Os indicadores do mercado de trabalho da NUTS II surgem aqui com o intuito de nos ajudar a perceber um pouco a dinâmica da região Centro neste sentido. Além disso, importa, tal como tem sucedido com outros indicadores, percebermos um pouco a relação destes com aqueles que apurámos na NUTS I. Assim, afere-se que os valores da população desempregada se amplificaram de modo substancial entre 2008 e 2009, fator igualmente visível no valor da taxa de desemprego (Quadro 5.17). Em 2008 estávamos diante de uma taxa de 5,4%, que em 2009 aumentou para 6,9% e em 2010 para 7,7%. De 2009 para 2010 é visível um acréscimo do número de desempregados, conquanto não tão proeminente como anteriormente que de 74,5 milhares em 2008 passa para 103,2 milhares em 2010, refletindo-se na taxa de desemprego. Quadro 5.17 Indicadores do mercado de trabalho, 2008-2010 NUTS II Ano População Desempregada (Milhares) Taxa de desemprego (%) Total M Taxa de Taxa de População População População atividade emprego Ativa empregada inativa Jovens (%) (%) (Milhares) (Milhares) (Milhares) (15-24) 2008 74,5 5,4 7,1 12,1 63 57,3 1.367,20 1.292,70 1.017,10 2009 2010 92,7 103,2 6,9 7,7 7,2 8,6 16 17,4 61,1 60,6 56,6 56,6 1.347,80 1.346,00 1.255,10 1.242,80 1.035,20 1.033,50 Fonte: INE, 2009a, 2010b, 2011 b A taxa de desemprego nas mulheres continua na mesma linha da NUTS I, sendo igualmente em 2009 que ocorre a maior subida comparativamente com o ano anterior. Enquanto entre 2008 e 2009 existia uma diferença ínfima de 0,1%, de 2009 para 2010 há um agravamento de 1,4 pontos percentuais. Tal como ocorre na NUTS I, também na taxa de desemprego dos jovens se verifica uma ascensão, mais galopante de 2008 para 2009, não se verificando, todavia, retrocesso ou estagnação em 2010. De qualquer modo, qualquer um destes valores está abaixo dos valores referenciados na NUTS I. Tal como sucede com a NUTS I, mais uma vez, a quebra da taxa de emprego, associada ao minguamento dos valores da população empregada e ao incremento da 259 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico população desempregada, concorre para que os números da taxa de desemprego continuem em ascendência. Mesmo assim os valores da taxa de emprego são superiores aos da NUTS I, situando-se em 2010 nos 60,6%. No que concerne à população ativa, entre 2008 e 2009 existe uma diminuição mais expressiva do que propriamente de 2009 para 2010 (de 1.347.8 milhares desce para 1.346,0 milhares). No que à população inativa diz respeito verifica-se que entre 2008 e 2009 há um aumento do número de indivíduos (de 1.017,1 milhares passa para 1.035,2 milhares), mas em 2010, contrariamente ao que sucede na NUTS I, há um leve decréscimo relativamente ao ano anterior. Se incidirmos na taxa de atividade desta região (Figura 5.3), notamos que tal como acontece na NUTS I, há um declínio da taxa de atividade dos homens entre 2008 e 2010, enquanto nas mulheres acontece precisamente o oposto. Aliás, não podemos deixar de salientar, e recuando umas décadas no tempo, o facto de “desde 1960 até agora o volume de mulheres activas [não ter] cessado de aumentar” (Almeida, Guerreiro, Lobo, Torres & Wall, 1998, p. 47). H 62,9 62,2 60,1 52,2 2008 M 53,3 52,2 2009 2010 Fonte: INE, 2009a, 2010b, 2011 b Figura 5.3 Taxa de atividade de homens e mulheres, entre 2008-2010, NUTS II A desagregação em termos geográficos a nível da NUTS III da informação acerca dos dados mencionados no Quadro e Figura precedentes e período em causa só ficará 260 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico disponível com a publicação dos resultados definitivos dos censos 2011, com data prevista para o último trimestre de 2012, daí não nos ser possível fazer uma análise mais detalhada a este nível. Deste modo, fazemos apenas uma breve menção a alguns dados indicadores, referentes à informação divulgada pelos censos 2001, sem termos possibilidade de comparação. Assim, esta sub-região apresenta em 2001 uma taxa de emprego de 55,7% e uma taxa de desemprego que se situa nos 5,2%. Também em 2001 revela uma taxa de atividade de 49,1%, sendo nas mulheres mais diminuta, com 42,6%. Há um decénio atrás havia nesta NUTS um total de 189.579 pessoas que integravam os números da população ativa. 5.3. Descobrir os concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos na conjuntura do país e da região – contextualização territorial Aveiro é a capital do distrito de Aveiro e está localizada na região Centro e na sub-região do Baixo Vouga, com base nas NUTS II e III. A cidade de Aveiro é a principal cidade do Baixo Vouga e a segunda cidade mais populosa da zona centro de Portugal, depois de Coimbra, e constitui-se como um relevante centro urbano, portuário, ferroviário, universitário e também turístico. O município está circunscrito a norte pelo município de Murtosa, a nordeste por Albergaria-a-Velha, a leste por Águeda, a sul por Oliveira do Bairro, a sueste por Vagos e por Ílhavo e com uma faixa relativamente estreita de litoral no Oceano Atlântico, a oeste, através da freguesia de São Jacinto (Figura 5.4). É um município territorialmente descontínuo, dado que compreende algumas ilhas fluviais na Ria de Aveiro, e uma porção da península costeira em que se encontra a freguesia de São Jacinto, que encerra a ria a ocidente. 261 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Fonte: Site da AEP – Associação Empresarial de Portugal Figura 5.4 – Mapa administrativo do distrito de Aveiro, com remissão para a localização geográfica dos concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos Aveiro é sede de um município com 197,6 km² de área, subdividido em 14 freguesias, tal como se pode constatar pela Figura 5.5, abaixo indicada – S. Jacinto; Vera Cruz; Cacia; Esgueira; Glória; Sta. Joana; Aradas; S. Bernardo; Eixo; Oliveirinha; Eirol; Requeixo; N. Sr.ª de Fátima e Nariz (INE, 2011a; 2011b). Fonte: Site oficial da Câmara Municipal de Aveiro Figura 5.5 – Mapa do concelho de Aveiro, reportando-se às suas freguesia 262 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Ílhavo é um dos municípios e também cidade do distrito de Aveiro e é sede de um município com 73,5 km² de área, subdividido em 4 freguesias Gafanha do Carmo, Gafanha da Encarnação, Gafanha da Nazaré e Ílhavo (São Salvador), tal como se pode apurar através do mapa indicado na Figura 5.6 (INE, 2011a; 2011b). O município é dividido em três por braços da Ria de Aveiro e é limitado a norte e nordeste pelo município de Aveiro e a sul pelo município de Vagos. Pode dizer-se que Ílhavo é uma cidade ainda relativamente jovem, uma vez que se constituiu enquanto tal em 1990, o que lhe confere um estatuto de cidade, fruto do seu desenvolvimento socioeconómico e crescimento urbano, com apenas 22 anos. Estando localizado junto à costa a economia deste concelho acaba por ter uma estreita ligação com o mar. Fonte: INE Figura 5.6 Mapa do concelho de Ílhavo, remetendo para as suas freguesias Vagos, sendo um dos municípios do distrito de Aveiro, não segue a linha das localidades anteriores porque é uma vila, embora seja também sede de um município com 164,9 km² de área, fragmentado em 11 freguesias Gafanha da Boa Hora; Vagos; Sosa; Santo António de Vagos; Santo André de Vagos; Ouca; Calvão; Ponte de Vagos; Santa Catarina; Fonte de Angeão e Covão do Lobo, como se pode ler no mapa da Figura 5.7. (INE, 2011a; 2011b). O município, que é composto por duas partes divididas pela Ria de Aveiro, abrange uma parte continental e uma porção do cordão de dunas da Costa Nova, sendo limitado a norte pelo município de Ílhavo, a nordeste por Aveiro, a leste por Oliveira do Bairro, a sueste por Cantanhede, a sudoeste por Mira e a oeste revela um litoral no oceano Atlântico. 263 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Fonte: Site oficial da Câmara Municipal de Vagos Figura 5.7 Mapa do município de Vagos, com menção às suas freguesias Constata-se em termos territoriais, que dos três municípios supramencionados, Ílhavo é o que revela não só uma área menor, mas também um número de freguesias mais reduzido. Salvaguarde-se ainda que falamos de três municípios que se encontram localizados numa posição geoestratégica na zona litoral centro de Portugal. 5.3.1. A demografia na conjuntura destes municípios Em termos demográficos procuramos fazer uma análise de cada concelho em particular, para depois tentarmos perceber o conjunto. Antes de entrarmos numa observação mais detalhada em termos dos números da população dos três municípios, importa sublinhar que estes conglutinam no seu espaço territorial, de acordo com os valores provisórios dos censos 2011, 35,8% da população da NUTS III. Começamos, desde já, por olhar para a Figura 5.8, da qual constam os dados da população do município de Aveiro, concernentes aos dados dos Censos 2001 e 2011, ainda que estes últimos possuam um caráter provisório. Pese embora entre 2001 e 2011 tenha ocorrido um aumento da população do município de Aveiro (de 73.335 pessoas para 78.450), através da Figura 5.8 torna-se percetível que há um retrocesso substancial da população mais jovem (0-14 anos e em particular dos 15-24 anos) ao longo dos últimos 10 anos neste município e que 264 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico acompanha o panorama mais macro e o meso também. Não sendo novidade, verifica-se um incremento da população adulta, entre os 25 e os 64 anos, assim como da população a partir dos 65 anos. 2001 65 ou mais anos 25-64 anos 15-24 anos 0-14 anos 2011 14,4% 17,0% 57,5% 54,9% 14,4% 10,9% 16,2% 14,6% Fonte: INE 2001b, 2011 Figura 5.8 Total da população residente no município de Aveiro, de acordo com o grupo etário, 2001-2011 (%) Quando nos direcionamos para o concelho de Ílhavo aquilo que vemos não é muito diferente do panorama encontrado nas NUTS I, II e III e no município de Aveiro. Há claramente uma redução das percentagens de população mais jovem, mais proeminente na faixa etária entre os 15 e os 24 anos, de 14,3% para 11,0%, embora se verifique também um aumento da população (Figura 5.9). Não obstante o aumento é menor do que aquele que sobreveio em Aveiro. No município de Ílhavo, os dados apontam para um incremento de 1.389 pessoas, passando de um total de 37.209 em 2001 para 38.598 em 2011. A população que se encontra na faixa etária dos 25 aos 64 anos é aquela que incorpora o grosso da população deste concelho, embora o aumento não tenha sido extraordinariamente significativo, tendo ocorrido no último decénio um aumento de 1,8 pontos percentuais. O grupo dos indivíduos na faixa etária a partir dos 65 anos sofreu um aumento de 3,5 pontos percentuais, transitando de 13,2% em 2001 para 16,7% em 2011. Se analisarmos em termos descendentes os números da população, constatamos que em primeiro está, tal como já mencionámos, o grupo daqueles que 265 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico estão entre os 25 e os 64 anos, seguido daqueles que têm 65 ou mais anos, em terceiro a população entre os 0 e os 14 anos e, por último, o conjunto de indivíduos entre os 15 e os 24 anos. 2001 65 ou mais anos 25-64 anos 15-24 anos 0-14 anos 2011 13,2% 16,7% 55,1% 56,9% 14,3% 11,0% 17,4% 15,4% Fonte: INE 2001b, 2011a Figura 5.9 Total da população residente no município de Ílhavo, de acordo com o grupo etário, 2001-2011 (%) O município de Vagos não é exceção no crescendo do número de indivíduos de uma forma global, assim como nesta linha de ordenação das faixas etárias (Figura 5.10). O aumento populacional de que falamos é mais desacelerado do que aquele que ocorre nos outros dois municípios, passando a sua população de 22.017 para 22.851 ao longo do último decénio. Também ele revela um agravamento da população idosa e da população na faixa etária dos 25 aos 64 anos e um enfraquecimento na população mais jovem. Mas, o maior aumento na última década neste município é, efetivamente, o da população a partir dos 65 anos, com um acréscimo de 3,9 pontos percentuais. 266 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 2001 65 ou mais anos 15,8% 0-14 anos 19,7% 51,8% 25-64 anos 15-24 anos 2011 53,5% 14,9% 11,9% 17,5% 14,9% Fonte: INE 2001b, 2011a Figura 5.10 Total da população residente no município de Vagos, de acordo com o grupo etário, 2001-2011 (%) Olhando para o panorama geral dos vários grupos etários nos três concelhos, através das Figuras 5.11 e 5.12, de 2001 e 2011 respetivamente, reconhecemos que na faixa etária mais jovem, ou seja dos 0 aos 14 anos, o município de Vagos é aquele que apresenta uma taxa mais elevada em 2001, com 17,5%, logo seguido de Ílhavo. Aveiro, patenteia uma diferença de 1,3 pontos percentuais face ao primeiro. Em 2011 ocorre uma ligeira alteração, sendo Ílhavo o concelho que surge com uma maior percentagem de indivíduos entre estas idades (15,4%), conquanto seja inferior à de 2001. Aveiro continua a surgir em terceiro lugar comparativamente com os outros dois municípios, embora a discrepância não seja colossal, uma vez que em Vagos nos deparamos com 14,9% dos indivíduos entre os 0 e os 14 anos e em Aveiro estes constituem 14,6% da população. Em todos eles há um claro movimento descensional do número de indivíduos nesta faixa etária. 267 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 65 ou mais anos 15,8% 13,2% 14,4% 51,8% 55,1% 54,9% 25-64 anos 15-24 anos 14,9% 14,3% 14,4% 17,5% 17,4% 16,2% 0-14 anos Vagos Ílhavo Aveiro Fonte: INE, 2001b Figura 5.11 Total da população residente, de acordo com o grupo etário, nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, segundo os dados dos censos 2001 (%) 65 ou mais anos 19,7% 16,7% 17,0% 53,5% 56,9% 57,5% 25-64 anos 15-24 anos 0-14 anos 11,9% 11,0% 10,9% 14,9% 15,4% 14,6% Vagos Ílhavo Aveiro Fonte: INE, 2011a Figura 5.12 Total da população residente, de acordo com o grupo etário, nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, de acordo com os dados dos censos 2011 (%) 268 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico No que diz respeito à população entre os 15 e os 24 anos, as percentagens em 2001 são muito semelhantes, tendo todas elas disparidades muito parcas, continuando Vagos a apresentar a percentagem mais elevada, com 14,9%. Não obstante, em 2011, a maior descida situa-se em Aveiro, com menos 3,5 pontos percentuais da população nesta faixa etária. Contrariamente a esta situação, no que se refere à população mais jovem, constatamos que a percentagem dos indivíduos que se situa entre os 25 e os 64 anos está acima dos 50%, tal como sucede nas NUTS I, II e III, independentemente de falarmos de 2001 ou 2011. Todavia, em 2001, o concelho de Vagos revela uma percentagem menor comparativamente com Aveiro e Ílhavo, que, neste caso, agrega 55,1% da população nestas idades, com uma diferença ínfima em relação a Aveiro, com 54,9%. Em 2011 sobrevém um crescimento de 2,6 pontos percentuais em Aveiro na população adulta entre os 25 e os 64 anos, constituindo-se como o concelho que revela a percentagem mais elevada, sendo que Vagos continua com o menor número de população nesta faixa etária em comparação com os outros dois concelhos (53,5%). Em 2001 Ílhavo é o concelho que tem, comparativamente com Aveiro e Vagos, a menor taxa de população a partir dos 65 anos (13,2%), contrariamente a Vagos que detém 15,8% da população. Este último município é, assim, dos três aquele que concentra o maior número de população mais jovem, mas também o que apresenta o maior número de população mais idosa. A situação prolonga-se em 2011, com o aumento dos valores de forma acentuada nos três municípios. Quando falamos da população destes três municípios não podemos deixar de remeter para o objeto empírico que nos acompanha ao longo desta investigação. Estão integradas no grupo das mulheres que se inserem na faixa etária adulta (entre os 25 e os 64 anos), o que não acontecia em 2007 aquando do início do curso EFA. Nessa altura uma destas mulheres estava no limiar entre a faixa etária jovem e a faixa etária adulta. Após uma leitura da população nos três municípios em termos globais (homens e mulheres), importa igualmente retermos como é que essa população está distribuída pelos municípios, tendo na mesma como referência os dados alcançados aquando dos censos 2001 e os resultados provisórios dos censos 2011 (Quadro 5.18). 269 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.18 A população residente no feminino e no masculino nos concelhos de Aveiro, Ílhavo e Vagos, tendo como referência os censos 2001-2011 (%) 2001 Aveiro H Idade M 2011 Ílhavo H M Vagos H M Aveiro H M Ílhavo H M Vagos H M 35219 38116 18036 19173 10696 11321 37123 41327 18409 20189 10976 11875 0-14 anos 17 15,5 18 16,7 18,6 16,4 15,5 13,7 16,5 14,5 15,9 14 15-24 anos 15,2 13,7 15,1 13,6 15,5 14,3 11,4 10,4 11,5 10,6 12,4 11,4 25-64 anos 54,8 55 55,5 54,7 52,5 51,2 57,8 57,3 57,3 56,4 54,2 52,8 65 ou mais anos 12,9 15,8 11,4 14,9 13,4 18,1 15,3 18,6 14,8 18,5 17,5 21,8 Fonte: INE, Recenseamento da População e Habitação, 2011a Afere-se que o número de mulheres é superior ao dos homens em termos globais nos três municípios e esse facto regista-se nos dois períodos temporais. Esta preponderância do número de mulheres face aos homens é já uma propensão que se verifica a nível global das NUTS. Nesse seguimento, verifica-se que em todos os concelhos elas revelam-se em maior percentagem a partir dos 65 anos, tendo ocorrido uma amplificação desses valores no decurso da última década. Embora Ílhavo e Aveiro se situem entre os 18,5% e os 18,6%, Vagos apresenta uma taxa maior da população feminina acima dos 65 anos, com 21,8%. Note-se que quer nos homens quer nas mulheres há um abatimento dos valores percentuais nas idades mais jovens, ou seja até aos 24 anos. Contrariamente a esta situação, e indo ao encontro do panorama nacional e regional, na idade adulta (dos 25 aos 64 anos) há uma acrescência de números em ambos os sexos. Podemos perceber um pouco melhor estes dados populacionais, mediante uma leitura do Quadro 5.19, em torno de alguns indicadores demográficos que melhor podem explicar estas oscilações. Deste modo, se repararmos na relação de masculinidade nestes concelhos, confirmamos que há similitudes no seu valor face àquele se afere nas diferentes NUTS, salvaguardando-se que em Aveiro é ligeiramente mais baixa do que a das NUTS. Com algumas flutuações acaba por se situar à volta dos 92,6 homens para 100 mulheres. Em Vagos e Ílhavo confirma-se um aumento ténue, 270 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico mas gradual, entre 2008 e 2010, situando-se neste último ano a taxa de masculinidade nos 97,0 e 96,7 homens para 100 mulheres, respetivamente. Quadro 5.19 Evolução da população residente nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos 2008, 2009 e 2010 Aveiro Ílhavo Vagos 2008 2009 2010 2008 2009 2010 2008 2009 2010 Relação de masculinidade (%) 92,5 92,7 92,6 96,4 96,6 96,7 96,7 96,9 97,0 Nados-vivos 761 815 799 402 380 366 227 216 191 Óbitos 638 662 697 316 328 298 198 240 193 102,0 103,5 105,8 96,9 99,6 104,5 115,9 118,8 125,3 Densidade populacional (n.º/km 370,2 369,3 367,5 561,7 567,7 572,7 146,2 147,0 147,8 Taxa de crescimento natural (%) 0,17 0,21 0,13 0,21 0,13 0,16 0,12 - 0,10 0,00 Taxa de crescimento efetivo (%) - 0,34 - 0,25 - 0,44 1,10 1,06 0,97 0,72 0,58 0,51 Taxa de crescimento migratório (%) - 0,51 - 0,46 - 0,57 0,89 0,94 0,81 0,60 0,68 0,51 Taxa bruta de natalidade (%) 10,4 11,2 11,0 9,8 9,2 8,7 9,5 8,9 7,9 Taxa bruta de mortalidade (%) 8,7 9,1 9,6 7,7 7,9 7,1 8,2 9,9 7,9 Índice de envelhecimento 2) Fonte: INE, 2009, 2010, 2011b, Indicadores Demográficos Concomitantemente com o panorama mais global já apresentado, também a nível destes 3 concelhos, e através do Quadro acima apresentado, podemos confirmar a existência de algumas oscilações no que diz respeito às taxas de natalidade e mortalidade, assim como ao número de nados-vivos e aos óbitos e, consequentemente, aos níveis de envelhecimento da população desses mesmos municípios. Assim, aferimos através de uma leitura do mesmo Quadro que, enquanto em Aveiro há um sobe e desce nos números dos nados-vivos entre 2008 e 2010, Ílhavo e Vagos confirmam no mesmo período valores em diminuendo. Na verdade, e tal como acentua Barreto, “hoje, os filhos são mais desejados e previstos do que há quatro décadas. A sexualidade e a reprodução não estão necessariamente ligadas. O planeamento familiar e a contracepção são hoje práticas correntes” (2007, p. 44). No que se refere aos óbitos, por sua vez, em Aveiro ao longo desse período há um crescimento contínuo, ao passo que nos outros dois municípios se afere uma subida entre 2008 e 2009 destes valores, seguido de um declínio em 2010. Consequentemente, 271 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico as taxas de natalidade e mortalidade são reveladoras destas variabilidades. Ressalve-se que Vagos e Ílhavo ostentam em 2010, considerando o período desde 2008, as taxas de natalidade mais baixas, mas também as de mortalidade. Enquanto em Aveiro e em Ílhavo a taxa de natalidade é superior à de mortalidade, 11,0% 9,6% e 8,7% 7,1%, respetivamente, em Vagos há uma equidade entre ambas as taxas, assentando nos 7,9%. Esta variação dos números de nados-vivos e óbitos e devidas taxas leva-nos, mais uma vez, a ter em conta o índice de envelhecimento que, tal como sobrevém em termos das NUTS I, II e III, entre 2008 e 2010, se tem caracterizado pela constante ascensão. De qualquer modo, apenas Vagos patenteia um valor superior ao das NUTS I e III, ficando abaixo do da NUTS II, em 2010, com 125,3 indivíduos idosos por cada 100 jovens. Em 2008, na globalidade dos três municípios, Ílhavo era aquele com um índice de envelhecimento mais reduzido com 96,9 de pessoas idosas por cada 100 jovens. Não obstante, no período até 2010 foi escalando gradativamente, ficando com valores aproximados aos de Aveiro, mas mesmo assim inferiores (o primeiro com 104,5 e o segundo com 105,8). Quando observamos a densidade populacional destes três concelhos confirmamos que enquanto Aveiro apresenta uma ligeira quebra entre 2008 e 2010, Ílhavo demonstra uma densidade em ascensão, tal como Vagos. Todavia, os valores da densidade nos dois primeiros são francamente mais altos do que os de Vagos. Deste modo, em 2010 em Aveiro havia uma densidade populacional de 367,5 pessoas por km 2 e em Ílhavo esta era de 572,7 indivíduos por Km2. Os valores da densidade populacional de Vagos (147,8 pessoas por Km2, em 2010) traduzem precisamente o facto de “apesar de ser um concelho muito extenso [ser] pouco populoso para a extensão que tem” (Presidente da Junta de Freguesia de Soza – Vagos, 54 anos). Paralelamente às NUTS I e II, constatamos que os valores destes municípios são, efetivamente superiores. Não acontece o mesmo em relação à NUTS III, uma vez que esta apresenta um valor mais elevado do que o concelho de Vagos. Em 2009 verifica-se uma desaceleração da componente natural do crescimento demográfico no concelho de Vagos, com sinais de uma não renovação das gerações, notória no facto de os óbitos serem mais elevados do que os nascimentos e a taxa de natalidade ter sofrido um retrocesso face ao ano anterior. Em 2010, como a taxa de natalidade e mortalidade são equitativas, há uma estagnação da taxa de crescimento natural neste município (0,00). Os concelhos de Aveiro e Ílhavo têm revelado taxas de crescimento natural oscilatórias. Contudo entre 2008 e 2009 em Aveiro sobe, ao passo 272 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico que em Ílhavo desce e em 2010 sucede justamente o inverso. Assim, em 2010, Aveiro tem uma taxa de crescimento natural de 0,13% e Ílhavo de 0,16%. Se incidirmos apenas no ano de 2010, percebemos que estes municípios apresentam valores superiores às NUTS no que concerne à taxa de crescimento natural. Tal como as taxas de crescimento natural, também as taxas de crescimento efetivo são completamente díspares entre os três municípios. Ao passo que Aveiro, apesar do seu caráter oscilatório, não deixa de manifestar valores negativos, encontrando-se em 2010 nos -0,44%, também em Ílhavo, tal como em Vagos, os valores referentes a esta taxa têm vindo a enfraquecer, mas, de qualquer modo, o primeiro tem em 2010 uma taxa de 0,97% e o segundo de 0,51%, indicador de crescimento demográfico. Pelos seus valores estes dois municípios contrariam a tendência do concelho de Aveiro, assim como das NUTS I, II e III. No que à taxa de crescimento migratório (que se refere às migrações internas e internacionais) diz respeito, mais uma vez deparamo-nos com valores negativos em Aveiro, que após um abaixamento em 2009, voltou a subir em 2010, sempre em terreno negativo. Inversamente, Ílhavo e Vagos registam um aumento em 2009, mas assinalam uma queda em 2010, com 0,81% e 0,51 respetivamente. Pese embora este decremento, as taxas de crescimento migratório destes dois municípios é claramente mais elevada do que aquela que revelam os dados sobre Portugal continental, a região Centro e a subregião do Baixo Vouga e contrariam igualmente a tendência de Aveiro. Relativamente ao concelho de Vagos, se recuarmos um pouco mais, não podemos descurar que “houve também nos últimos 20 anos muitos emigrantes que saíram e alguns deles poderão voltar, até os filhos, como já está a acontecer em alguns casos. Portanto, [aquilo que se pretende é que haja] um crescimento, embora um crescimento controlado” (Presidente da Junta de Freguesia de Soza – Vagos, 54 anos). Na sequência daquilo que já frisámos em torno do número de famílias clássicas e institucionais nas diferentes NUTS, constatamos que estes municípios não constituem de todo uma exceção. Se fizermos uma leitura do Quadro 5.20 podemos ver que nos 3 concelhos se verifica um acentuado incremento destes dois tipos de famílias. Tanto Aveiro como Ílhavo, considerando a sua população e a sua área, tiveram um aumento considerável do número de famílias institucionais. Em Vagos verificou-se, ao longo da última década, o aparecimento de uma nova família institucional. 273 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.20 Comparação do n.º das famílias clássicas e institucionais nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, considerando os censos 2001 e 2011 2001 Local de Famílias clássicas residência 2011 Famílias Famílias Famílias institucionais clássicas institucionais Aveiro 26.040 29 31.150 45 Ílhavo 12.628 5 14.597 12 Vagos 7.189 6 8.243 7 Fonte: INE, 2001b, 2003, 2011a Pensando precisamente nas famílias clássicas, tentamos perceber se a tendência de aumento daquelas que detém menos elementos se mantém em ascensão e se as de maior dimensão se encontram em diminuendo (Quadro 5.21). Efetivamente, esta é a fotografia dos três municípios de 2001 para 2011, revelando uma clara mutação familiar ao longo dos últimos 10 anos, em que as famílias de maior dimensão tendem a reduzir-se. No sentido oposto, as famílias unipessoais, muitas delas constituídas por pessoas idosas, sozinhas, tende a aumentar, situação registada nos três municípios. Verifica-se um reforço da “nuclearização da família” (Silva, 2002, p. 105). Constata-se ainda que as famílias até ao 3.º elemento sofreram um aumento na última década, inversamente às famílias mais numerosas. Em 2011, as famílias constituídas por dois elementos são as mais representativas também nos três concelhos. Em todos eles verificamos um acréscimo das famílias com três elementos, podendo ser resultado de uma família constituída pelo casal e um filho, estando este indicador associado à quebra da taxa de natalidade. Tal como salienta Barreto “as famílias reduziram-se à sua expressão mais simples, pai, mãe e pouco mais de um filho, tendo-se procedido à separação de gerações, isto é, avós ou netos deixaram de coabitar” (2007, p. 43). 274 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.21 Quadro comparativo da dimensão das famílias clássicas nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, tendo como referência os censos 2001 e 2011 (n.º) Período de referência dos dados 2001 Local de Total residência N.º 2011 Com Com 2 Com 3 Com 4 Com 5 1 pessoas pessoas pessoas pessoas pessoa ou mais N.º Total Com Com 2 Com 3 Com 4 Com 5 1 pessoas pessoas pessoas pessoas pessoa ou mais N.º N.º N.º N.º N.º N.º N.º N.º N.º N.º Aveiro 26.040 4.596 7.169 6.714 5.184 2.377 31.150 7.293 9.981 7.385 4.780 1.711 Ílhavo 12.628 1.680 3.496 3.467 2.701 1.284 14.597 2.794 4.662 3.748 2.463 930 Vagos 7.189 1.890 1.620 1.677 998 8.243 1.511 2.503 1.905 1.579 745 1.014 Fonte: INE, Recenseamento da População e Habitação, 2001b, 2011a Tendo em conta aquilo que frisámos no capítulo anterior acerca do papel da mulher ao longo dos últimos anos, importa reter que “há um facto singular, ele próprio causa e consequência de fenómenos demográficos e sociais, que deve ser realçado e que se encontra na origem imediata da alteração da natureza, funções e formato da família: o mais importante é a alteração do papel da mulher” (Barreto, 2007, p. 54). Esta mudança profunda acabou por fomentar um efetivo “terramoto na instituição familiar” (Ibidem). Outro indicador que importa reter quando abordamos questões de demografia é o estado civil da população. Há três paralelismos que se podem estabelecer entre estes municípios e as NUTS II e III a tendência para uma diminuição do número de casados, para uma subida do número de solteiros e de viúvos, ao longo da última década. A exceção reside no grupo dos divorciados. Enquanto na região Centro há um diminuendo do número de indivíduos detentores deste estado civil, estes concelhos seguem a linha da sub-região e patenteiam um incremento bastante acentuado do número de indivíduos divorciados face a 2001. Mediante estes dados, conjugados com o número de elementos das famílias na atualidade, apercebemo-nos que “a vulgarização do divórcio e de segundos casamentos modificou bastante os ciclos de vida familiar e fez aumentar a ocorrência das famílias monoparentais” (Silva, 2002, pp. 105-106). 275 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.22 Estado civil legal da população residente nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) Estado civil Local de residência 2001 2011 Solteiro Casado Viúvo Divorciado Solteiro Casado Viúvo Divorciado Aveiro 27269 39462 4226 1864 32264 35594 4976 5616 Ílhavo 13664 20253 2148 821 15364 18029 2581 2624 Vagos 8272 11883 1387 354 8778 11334 1592 1147 Fonte: INE, Recenseamento da População e Habitação, 2011a 5.3.2. O lugar da educação No concernente à escolaridade, e antes de tentarmos perceber as ocorrências nos diferentes municípios relativamente a este indicador, é importante acentuar as taxas de analfabetismo que em 2001, aquando dos censos, ainda grassam em cada um destes concelhos. Deste modo, Aveiro apresenta nessa altura uma taxa de analfabetismo de 5,01%, claramente um valor abaixo dos outros dois municípios. A disparidade relativamente a Ílhavo não é muito significativa, uma vez que este se situa nos 5,38%. O mesmo já não acontece em relação a Vagos, tendo em conta que este ostenta uma taxa mais elevada do que a das NUTS I e III, assentando nos 10,24%. Esta situação pode estar associada em parte a uma maior ruralidade do concelho de Vagos comparativamente com os municípios de Ílhavo e Aveiro, que se constituem de uma forma global como espaços mais urbanos e citadinos. Num primeiro olhar em torno da Figura 5.13, verificamos que há um crescimento de todos os níveis de qualificação da população residente no município de Aveiro, sem descurar que esse acréscimo também se comprova nos indivíduos sem qualificação académica. Mediante uma leitura mais atenta podemos perceber neste município um incremento mais proeminente dos indivíduos com o 3.º ciclo de ensino básico e dos indivíduos com o ensino superior, seguido daqueles que detém o nível secundário e o 2.º ciclo de ensino básico. O ensino pós-secundário é aquele que continua a apresentar, na 276 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico sequência do que sucedeu já há uma década atrás, os valores mais reduzidos de indivíduos. Relativamente aos restantes níveis, a evolução daqueles que possuem o 1.º ciclo de ensino básico não é tão significativa. Contudo, é neste nível que se encontra o maior número de indivíduos. 2011 HM 2001 HM Ensino Superior Ensino Pós-secundário 1063 655 Ensino Secundário 3.º Ciclo ensino básico 14531 6638 4913 10202 13185 3828 2. Ciclo ensino básico 5715 10089 16784 15132 1.º Ciclo ensino básico Sem qualificação académica 6429 12596 Fonte: INE 2001b, 2011a Figura 5.13 Níveis de escolaridade do município de Aveiro, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) Em traços gerais, o panorama da escolaridade no município de Ílhavo não difere praticamente daquele que vimos anteriormente em Aveiro (Figura 5.14). Não obstante, no concelho de Ílhavo o grupo que mais se destaca é aquele que detém o 3.º ciclo de ensino básico. No decurso do último decénio ocorreu um crescimento mais expressivo no que concerne a este nível de escolaridade. Logo a seguir o ensino secundário, o 2.º ciclo de ensino básico e o ensino superior constituem as habilitações que mais evoluíram ao longo deste decénio. Mais uma vez, há um incremento considerável do número de pessoas sem qualificação académica, assim como o 1.º ciclo de ensino básico é o nível de escolaridade com mais indivíduos (situação idêntica àquela que sobrevém em 2001). 277 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico 2011 HM Ensino Superior Ensino Pós- secundário 2001 HM 4995 2415 516 197 Ensino Secundário 1938 3.º Ciclo ensino básico 2027 2. Ciclo ensino básico 4582 6473 5431 3140 9952 8884 1.º Ciclo ensino básico Sem qualificação académica 6649 3629 Fonte: INE 2001b, 2011a Figura 5.14 Níveis de escolaridade do município de Ílhavo, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) No caso particular de Vagos, o aumento da população com o 2.º ciclo não foi tão expressivo, como nos outros dois municípios, embora as similitudes se mantenham nos restantes níveis (Figura 5.15). O 3.º ciclo de ensino secundário continua a ser aquele que reúne uma maior evolução face a 2001. 2011 HM Ensino Superior Ensino Pós- secundário 2001 HM 1819 656 206 54 Ensino Secundário 971 3.º Ciclo ensino básico 953 2. Ciclo ensino básico 2455 3513 2329 3546 1.º Ciclo ensino básico 5550 Sem qualificação académica 3005 6330 4982 Fonte: INE 2001b, 2011a Figura 5.15 Níveis de escolaridade do município de Vagos, de acordo com os censos 2001 e 2011 (n.º) 278 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quando falamos de níveis de escolaridade nestes concelhos, não podemos fazê-lo unicamente em termos mais genéricos. Precisamos perceber também com mais detalhe como é que homens e mulheres se distribuem entre eles. Se nos centrarmos no Quadro 5.23 podemos reparar que é comum aos 3 concelhos a elevação do número de indivíduos sem qualquer qualificação académica, ao longo dos últimos 10 anos. Não obstante, regista-se em 2011, uma percentagem de pessoas nesta situação menor em Aveiro, estando, na outra extremidade o concelho de Vagos. Em todos eles com a percentagem mais elevada estão enquadradas as mulheres, situação que decorre na sequência do panorama que encontramos nas NUTS II e III. Quadro 5.23 Níveis de escolaridade de homens e mulheres dos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, 2001-2011 (%) Aveiro Nível de escolaridade 2001 H Sem qualificação académica 9,3 M Ílhavo 2011 H M 2001 H M Vagos 2011 H 2001 M H M 2011 H M 12,1 14,6 17,4 10,3 13,1 15,7 18,6 12,5 18,6 18,7 24,6 1.º Ciclo ensino básico 30,7 33,1 21,0 21,8 35,2 38,2 25,2 26,3 40,5 39,0 29,7 25,9 2. Ciclo ensino básico 13,2 11,6 14,5 11,4 14,0 12,2 16,3 12,0 17,1 14,2 17,6 13,6 3.º Ciclo ensino básico 13,3 10,5 18,9 15,0 14,5 10,8 18,7 15,0 11,8 9,4 16,5 14,4 Ensino Secundário 17,9 15,1 13,4 12,7 15,4 12,8 12,0 11,8 12,0 11,3 10,5 11,0 Ensino Pós-secundário Ensino Superior 1,2 0,9 1,7 1,1 0,7 0,5 1,6 1,1 0,4 0,2 1,1 0,7 14,4 16,8 16,0 20,8 9,7 12,4 10,5 15,2 5,7 7,2 6,0 9,8 Fonte: INE, 2001b, 2011a Regista-se igualmente, não sendo novidade ou exceção destes concelhos, um diminuendo das pessoas com apenas o 1.º ciclo de ensino básico. Neste nível de ensino, deparamo-nos com situações distintas em cada um dos municípios, em 2011 em Aveiro os valores de homens e mulheres são assaz similares, em Ílhavo a percentagem de mulheres é mais elevada relativamente à dos homens, situação inversa regista-se em Vagos com uma diferença mais acentuada (29,7% de homens e 25,9% de mulheres). 279 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Curiosamente o 2.º ciclo caracteriza-se por um acréscimo do número de homens, ao mesmo tempo que diminui o número de mulheres, no decurso dos últimos 10 anos. Além disso, o movimento descensional do número de mulheres não é muito significativo (por exemplo em 2001 havia 12,2% de mulheres com o 2.º ciclo em Ílhavo e em 2011 constituem 12,0%), o mesmo já não se sucedendo com os homens, em que há um acréscimo mais expressivo (em Ílhavo também passam de 14,0% em 2001 para 16,3% em 2011). O 3.º ciclo de ensino básico distingue-se pelo facto de o número de homens e mulheres revelar incrementos assaz notáveis nos últimos 10 anos. Pese embora este seja um traço comum aos dois sexos e a todos os municípios em causa, destaca-se um maior crescimento da parte dos homens. Se nos focarmos nos valores percentuais, aferimos que o maior incremento de homens nesta última década ocorreu em Aveiro (com uma ascensão de 5,6 pontos percentuais), enquanto o número de mulheres registou um aumento mais considerável no município de Vagos (com mais 5 pontos percentuais). No concernente ao ensino secundário regista-se um claro diminuendo, independentemente de falarmos de homens ou mulheres, não deixando de salvaguardar que essa situação é mais proeminente em Aveiro em ambos os sexos. O oposto aconteceu no ensino pós-secundário, embora os seus valores percentuais continuem a ser diminutos. Neste caso em particular o número de homens é súpero face ao das mulheres, assinalando-se um maior incremento em ambos os casos no município de Ílhavo. Estes cursos conferem uma qualificação com base numa formação técnica especializada numa determinada área, mas não são de nível superior. Relativamente ao ensino superior, há um notório acréscimo, mais uma vez em ambos os sexos no último decénio. Não obstante, a par do panorama nacional e regional, o número de mulheres é mais proeminente comparativamente com o dos homens. A maior amplificação de números nos dois sexos verifica-se em Aveiro, detendo Vagos uma evolução mais reduzida nos indivíduos com este nível de ensino. Saliente-se que, tendo como referência 2011, Aveiro e Ílhavo patenteiam percentagens mais elevadas neste nível de ensino face às NUTS II e III. Ainda no atinente à educação, importa percebermos os números dos indivíduos inseridos em modalidades de educação/ formação de adultos nestes municípios (Quadro 5.24). Assim, podemos perceber pelo Quadro abaixo apresentado que há algumas oscilações entre os municípios relativamente aos números dos inscritos nos cursos EFA e nos RVCC. 280 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.24 Alunos matriculados em modalidades de educação/ formação de adultos, na nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, no ano letivo 2009-2010 Ano letivo 2009/2010 Ano letivo Aveiro Ílhavo Vagos EFA 93 28 0 RVCC 6 0 1 EFA 2 41 1 RVCC 34 34 9 EFA 430 40 90 RVCC 736 216 184 EFA 476 141 45 RVCC 652 164 86 Nível e ciclo de ensino 1.º Ciclo de ensino básico 2.º Ciclo de ensino básico 3.º Ciclo de ensino básico Ensino Secundário Fonte: INE, 2011b, pp. 122-123 No ano letivo 2009/2010 a maior concentração de indivíduos matriculados situase no 3.º ciclo e no ensino secundário em qualquer um dos concelhos, sendo mais elevado o número daqueles que se encontram em processo de RVCC do que os que frequentam cursos EFA. O 1.º e o 2.º ciclo mostram valores percentuais mais frouxos. Em Vagos, por exemplo, não há qualquer matrícula neste nível de ensino em cursos EFA e há um elemento matriculado em processos de RVCC. Considerando estes públicos, não podemos deixar de estabelecer uma ponte com o objeto empírico que nos ocupa ao longo desta investigação. Se em 2007, aquando do início do curso EFA que permitiu o cruzamento dos nossos caminhos elas detinham teoricamente tão-só o 6.º ano de escolaridade, requisito para a inscrição no curso B3, em 2011 (segundo dados patenteados no Quadro 4.2, apresentado no capítulo 4) elas 281 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico possuem níveis de escolaridade distintos – 9.º e 12.º ano. Estes níveis revelam um investimento da parte destas mulheres a nível pessoal e educacional. 5.3.3. O mercado de trabalho nestes municípios Tal como já focámos anteriormente em relação à sub-região, não é possível analisarmos informações mais pormenorizadas no que respeita ao mercado de trabalho, uma vez que não existe uma desfragmentação do mesmo ao nível geográfico do município. De qualquer modo, não existindo até ao momento esses dados com a atualização que pretendemos, vamos olhar apenas para os dados que existem de censos anteriores e que nos possam dar alguma informação que permita situar estes concelhos relativamente a indicadores de emprego (Quadro 5.25). Portanto, esta reflexão será apenas referente aos dados de que dispomos dos três municípios. Percebemos, então, que à data destes indicadores (2001) a população ativa masculina era superior à feminina. Aliás, é igualmente percetível que a taxa de atividade feminina é inferior à taxa de atividade de uma forma geral nos 3 concelhos. De qualquer modo, não podemos deixar de salientar as palavas de Silva, quando menciona que “cresceu a taxa de actividade das mulheres e generalizou-se o trabalho feminino fora de casa” e essa generalização conduz-nos ao objeto empírico desta investigação, uma vez que das treze, em 2011, dez estavam empregadas por conta de outrem (2002, p. 105). A taxa de emprego nos três municípios assentava, na altura, acima dos 50% em todos eles e no que à taxa de desemprego diz respeito podemos notar uma equidade de valores, sendo Vagos o concelho com a taxa mais elevada, situando-se nos 5,5%, sendo francamente inferior quer à da região Centro quer à de Portugal continental. 282 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Quadro 5.25 Indicadores de mercado de trabalho nos municípios de Aveiro, Ílhavo e Vagos, referente aos censos 2001 Período Local de População ativa de residência Taxa de Taxa de atividade atividade Taxa de global Taxa de feminina emprego desemprego referência HM H M dos dados N.º N.º N.º (%) (%) (%) (%) Aveiro 37881 20078 17803 51,6 46,7 58,2 5,3 Ílhavo 18243 10065 8178 49 42,7 56,1 5,3 Vagos 10576 5871 4705 48 41,6 55 5,5 2001 Fonte: INE, Recenseamento da população e habitação; Censos - séries históricas Não obstante a evolução em termos dos níveis de escolaridade que abordámos anteriormente, não podemos descurar, quando falamos de emprego, que “a posse de um diploma já não garante, por si mesma, uma boa colocação e uma trajectória ascendente. E muitos actores escolarizados, mas débeis em capital social e económico (ou mesmo em formas escolares de capital cultural)” apercebem-se que estes são igualmente fundamentais quando remetemos para o campo profissional (Silva, 2002, p. 111). Anteriormente salientámos o número de mulheres que se encontravam empregadas. Importa salvaguardar agora, reportando para esta questão do diploma, que (tal como consta no Quadro 4.2) há duas mulheres numa situação de desemprego de curta duração: uma com o 9.º ano de escolaridade e outra com o 12.º ano. Neste caso o diploma não lhes garante uma colocação laboral, quer se trate da área de formação em que obtiveram a qualificação ou outra qualquer. Ainda que não detenhamos os valores percentuais e numéricos mais atuais relativamente a estes indicadores, importa reter o discurso de um dos interlocutores locais do concelho de Vagos que, conquanto expresse a sua opinião em relação ao concelho que lhe diz respeito e às formas de alargar o mercado de trabalho no município e na sua freguesia, acaba por fazer alusão a algo que é certamente comum aos outros dois municípios e que grassa no país nos últimos tempos: Temos agora o grande problema que se põe em qualquer parte do país e do mundo, que é o desemprego. Por isso a nossa preocupação é tentarmos dar o salto para a industrialização daquela zona. Então foi criado há 4/3 anos o Parque Empresarial de Soza (Presidente da Junta de Freguesia de Soza Vagos, 54 anos). 283 Retrato sociodemográfico dos espaços que envolvem o objeto empírico Não podemos encerrar este capítulo de contextualização dos espaços sem frisarmos que esta caracterização nos possibilitou construir um esboço da população destes concelhos e permite-nos agora erigir uma súmula dos elementos mais significativos para a compreensão dos percursos das mulheres que constituem o objeto empírico desta investigação. Assim, e tal como já salientámos, estamos perante um grupo de mulheres na idade adulta que reside na zona centro litoral, em três concelhos em particular: Aveiro, Ílhavo e Vagos, sendo maioritariamente deste último que é também o mais rural dos três. Atentando em aspetos relativos à demografia é percetível que elas se retratam nos dados destes concelhos em relação ao estado civil (de solteiro a viúvo), constatando-se um aumento do número de pessoas divorciadas, sendo ainda as casadas em maior número. No que concerne à dimensão de cada família, estas mulheres acompanham a tendência dos últimos anos, sendo que as famílias com três elementos são as mais proeminentes. Não obstante encontramos casos com duas pessoas apenas, em situações de vida completamente díspar, mas também com quatro, cinco e mesmo sete elementos, sendo que neste último caso persiste uma tendência que se foi perdendo que é a da coabitação de gerações. Contudo, o elemento mais expressivo nestes percursos está relacionado com os reduzidos níveis de escolaridade que as caracterizavam em 2007, estando situadas no 2.º ciclo do ensino básico. No espaço que medeia este último decénio ocorreu, tal como vimos anteriormente no decorrer da análise dos Quadros apresentados ao longo do capítulo, um acréscimo do número de indivíduos com o 3.º ciclo nos três concelhos, contribuindo elas para esse aumento percentual. Quando olhamos para os valores do secundário de forma geral nestes concelhos verifica-se um enfraquecimento do número de pessoas, sendo também aí menor as mulheres deste grupo que optam pela progressão dos estudos. Este aumento de habilitações quer com o 3.º ciclo quer com o secundário está associado ao incremento de indivíduos a frequentar cursos EFA, que se constitui aqui como o elemento que congrega o percurso destas mulheres. Ainda que com uma data de referência do início desta década para análise de indicadores do mercado de trabalho nestes concelhos percebemos que a taxa de atividade feminina situa abaixo dos 50%. Esta taxa é menor em Vagos, sendo também aí mais elevada a taxa de desemprego, onde se retratam estas mulheres, estando associadas a estes valores as deficitárias habilitações. 284 C apítulo 6 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la. (García Márquez, 2003, p. 7) 6.1. Vaguear por entre algumas notas preambulares: o investigador e o grupo Ao longo desta viagem, fragmentada em vários capítulos, expressos nas páginas que foram sendo folheadas, fomos encontrando algumas referências, ainda que não demasiado extensas, àquelas que constituem o nosso objeto empírico, às mulheres cujas trajetórias de vida se cruzaram no espaço e no tempo em torno do curso EFA de Ação Educativa, entre 2007/2008. Deste modo, a perspetiva analítica que guia este capítulo propaga-se de acordo com as dimensões de análise apresentadas a priori e que nos permitem decompor com minúcia os percursos de vida de cada uma delas. Além disso, se no capítulo anterior expusemos uma diversidade de informações de vária ordem, nomeadamente num nível mais micro acerca dos concelhos em que estas mulheres habitam, neste capítulo pretendemos estabelecer uma articulação com alguns desses dados, de modo a que aqueles que foram apresentados anteriormente se tornem mais percetíveis neste contexto de análise. Para esta apresentação analítica das suas histórias de vida estabelecemos uma lógica, começando pelas suas trajetórias 285 familiares, passando pelos Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias seus percursos escolares e profissionais, tentando compreender, ao perpassar pelas diferentes trajetórias, o lugar que a leitura ocupa. Chegado a este momento da investigação, é importante salientarmos que a pesquisa no terreno se transformou numa experiência profícua e plena de informações, mas também de humanidade e de emoções à mistura. Foi preenchida por relações sociais e interações centradas na partilha de experiências e nos diálogos comutados. Retomando um pouco aquilo que explanámos no capítulo 4, consideramos que a empatia foi desde o início desta caminhada a porta de entrada no universo de cada uma destas mulheres, primeiro enquanto formadores, depois na posição de investigadores. Agora, a uma certa distância de todo o trabalho concretizado no terreno, consideramos que todas as entrevistas se revelaram uma experiência única e distinta, tal como todo o percurso com estas mulheres, que também nos fez crescer enquanto pessoas e investigadores. Antes de entrarmos propriamente nos seus percursos de vida, importa salientar que este é um grupo homogéneo que integra mulheres de classes populares. Nesta sequência consideramos que a analogia deste grupo que integrou o curso EFA B3 Ação Educativa, entre 2007/2008, em Vagos, é o reflexo de uma maior valorização da mulher (veja-se o Quadro 4.2, com uma síntese da caracterização sociodemográfica do grupo). 6.1.1. A família e as origens das mulheres que encetaram esta caminhada Contar histórias não. A minha mãe lá tinha algum tempo para nos contar histórias, coitada! Quantas vezes a gente não se adormecia lá pelo chão e lá ficávamos. Quantas vezes! Todos sujos. (Lúcia, 54 anos) É precisamente com Lúcia que principiamos a falar sobre as origens e a família destas mulheres. Começar a falar de Lúcia é partir da mais velha, é perceber também uma outra época que não aquela que é comum a todas as outras. Quando falamos de Lúcia recuámos até aos finais dos anos 50, mais particularmente a 1957, sendo ela a sétima de 10 irmãos (4 rapazes e 6 raparigas). Os pais casaram muito cedo, a mãe ainda adolescente com 15 anos e o pai com 19 anos e revelam origens humildes, associadas ao meio rural – o pai “trabalhava na 286 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias fábrica da telha e do tijolo e era forneiro. A minha mãe sempre foi doméstica. Trabalhava o dia fora nas terras de verão”. As palavras de Lúcia espelham as dificuldades que a família com uma prole numerosa passou quando conta como eram as refeições em família – “Graças a Deus era uma casa cheia. (…) Agora não era cá comer com faquinha e garfo, não. Nem era um pratinho a cada um. Era assim sentados no chão a comer da mesma travessa ou da mesma bacia” – ou mesmo como eram feitas as lides em casa – “ainda se usava o ferro das brasas” (gargalhada). Mas, apesar das condições socioeconómicas da família, retratadas em pormenores tão simples como “ver comer um pãozinho com marmelada e eu comer um bocado de broa” ou mesmo dormirem “uns para os pés e outros para a cabeceira”, considera que era “uma vida triste, mas alegre ao mesmo tempo”. Os vícios do pai, associados respetivamente ao tabaco e ao álcool, levam Lúcia a lembrar-se de “discutimentos, palavras, palavrões isso sim, mas agora bater na minha mãe eu nunca vi. Ele oferecer oferecia, mas não era capaz de lhe virar. (…) Eu tinha 10 anos e enfrentei-o”. Não obstante, manteve sempre um relacionamento sereno com o pai também porque sabia como lidar com ele – “o meu pai nunca foi capaz de me bater a mim (…). Eu fazia-o rir e ele não era capaz de me bater”. Mais tarde, pelo enquadramento temporal que Lúcia faz, durante a sua adolescência o pai emigrou para França, levado por um dos filhos. Apesar de uma infância preenchida por dificuldades de foro económico e de muito trabalho no dia a dia houve momentos em que Lúcia conseguiu ser criança também, ainda que não durante muito tempo – “até aos 8 brincávamos uns com os outros na rua. Jogávamos à macaca, saltar à corda, jogar ao ringue. (…) Era o agarra-agarra, às escondidas. (…) Na altura do milho escondíamo-nos no meio do milho e partíamos o milho todo”. Mais tarde “quando tínhamos 13/14 anos sentávamo-nos na valeta e estávamos a ver a banda passar” porque morava mesmo junto a uma estrada. Andreia, filha de Lúcia, já nasceu no início da década de 70, mais particularmente em 1974, um mês depois da revolução dos cravos, e recorda-se de ter sido praticamente criada pela avó materna, uma vez que, tal como salienta Lúcia “a minha mãe ia atrás de mim para eu lhe dar a chucha e eu criei a Andreia à chucha. Quando andava mais longe a minha mãe fazia-lhe aquelas açorditas e dava-lhe até eu chegar para lhe dar o peito”. Aos 7 anos, depois de ter estado com a avó materna em 287 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias França durante algum tempo numa das suas estadas junto do marido, Andreia foi com a mãe para a Venezuela, para se juntarem ao pai que já lá estava. Durante a sua infância revela uma grande afinidade com a avó paterna e não tanto com a materna tão-só porque a primeira “tinha vacas, tinha… andava nas terras, gostava mais de andar a arejar do que estar lá, que estava mais presa (…) gostava de beber leite das vacas”. Mas as suas brincadeiras repartiam-se com outras crianças, entre “bonecas ou pintar (…) aos pais… brincadeiras de crianças”. As suas brincadeiras durante a adolescência parecem ter cessado a dada altura de acordo palavras dela – “Deixei a brincadeira. Depois nasceu a minha irmã, era a minha brincadeira praticamente”. Nas suas palavras transparece o sentido de responsabilidade. Deixa as bonecas e as brincadeiras com os amigos para cuidar da irmã mais nova – “era como se fosse minha filha. Eu dava-lhe banho, eu é que tratava dela. É como se fosse um boneco. Eu era a irmã mais velha, eu é que praticamente a vestia…”. Manuela, tal como Andreia, nasceu no ano de 1974 e foi praticamente “criada com o (…) avô materno e com a (…) avó”. A construção civil ocupa profissionalmente o pai, enquanto a mãe se dedica à agricultura. Quando reflete sobre as condições económicas ao longo da sua infância não existe qualquer tristeza – “eu tinha uma vida boa. (…) Não posso dizer que passei fome, que tinha assim necessidades. Claro que não tinha o que queria (…). Considero boa porque podia comer iogurtes já naquela altura, podia comer bananas”. Há neste discurso uma associação entre a ideia daquilo que para ela é uma vida boa e o facto de poder ter determinados alimentos à mesa no seu dia a dia. Não obstante, acaba por sentir a ausência de tudo isso aquando do nascimento da irmã mais nova, durante a sua adolescência, já que uma diferença de 7 anos e meio as separa –“depois da minha irmã chegar é que acabou isso tudo, mas pronto. Só comia restos”. Embora a situação económica dos pais não fosse débil, estes acabaram por optar pela emigração para obter uma maior estabilidade e poderem concretizar determinados objetivos, nomeadamente a construção da casa. O Canadá foi o lugar de eleição para a construção de uma nova fase da vida. Tal como aconteceu com Andreia, também o pai de Manuela foi primeiro, mas neste caso três meses depois foi ela com a mãe, tendo Manuela ainda 9 anos nessa altura. Até à altura de sair do país para se adaptar a um espaço até então desconhecido, Manuela andava sempre com os seus avós maternos, até porque o seu avô paterno se 288 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias suicidou por aquilo que ela foi escutando porque o pai não fala sobre o tema. Parece ser um tema tabu do qual é preferível nem sequer falar. Mas, durante a sua infância, ela ajudava os avós nas tarefas do campo e brincava ao mesmo tempo porque estava inserida num espaço rural que lhe permitia uma maior liberdade. Mandavam-se ir às pinhas pr’os pinhais (…). Era ajudar a minha avó por exemplo nas terras. Ou ia com o meu avô pra vindima, quando ele ia sulfatar. (…) A gente acabava sempre por brincar. (…) Depois tirava as barbas do milho e ele (faz sinal de bater com a mão e o som dos lábios) queria-me apanhar, que era pra fazer trancinhas. A gente acabava sempre por brincar, mas era uma mistura com deveres dos avós naquela altura. Não é brincar como hoje em dia. A ida para o Canadá trouxe outro tipo de brincadeiras, de certo modo mais limitadas até no espaço físico – “era o que calhava, era ver televisão, (…) era fazer lidas de casa que a minha mãe deixava pra fazer” e as férias passadas em Portugal, ainda que limitadas no tempo e muito fugazes, acabavam por lhe trazer novamente essa liberdade de infância – “era na casa dos primos andar na bicicleta (risos) … por norma era um mês de férias. Era pouco. E por fim já vínhamos só 3 semanas” Joana, por sua vez, é a mais nova de quatro irmãos (um rapaz e três raparigas com ela) e embora tenha nascido em 1974, tal como Manuela e Andreia, contrariamente a elas, os pais já eram emigrantes em França aquando do seu nascimento. De qualquer modo continua a verificar-se aqui também a mesma situação em que ele vai primeiro e só depois é que vai a esposa – “já tinha ido pra França antes de casar. Depois casou e depois o meu pai foi mais uns tempos sozinho e a minha mãe ficou cá”. Conta ela que o “pai era pra ir pra guerra e ele não quis e então fugiu. (…) Optou por ir pra França. Tinha lá um irmão e foi pra lá” e foi por lá que acabou por fazer a sua vida durante “perto de 40 anos”, o que revela claramente que existe uma necessidade de fuga à guerra durante o cumprimento do serviço militar e isso faz com que a saída do país seja a alternativa para o início de uma nova vida. A mãe em Portugal trabalhava na agricultura e em França trabalhava nas limpezas, enquanto o marido, que em Portugal laborava numa “fábrica lá em Lisboa (…) Não sei se era do açúcar, se era do vidro”, em França começou por trabalhar na construção civil e mais tarde na fábrica de uma empresa de publicidade. Enquanto emigrantes, Joana vinha todos os anos no verão passar férias a Portugal com os pais – “mês de julho, agosto, era uma alegria”. Contudo, Joana relembra como era difícil falar a língua portuguesa porque estava acostumada ao francês. Embora 289 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias compreendesse a língua, as dificuldades surgiam quando precisava de falar. Menciona que os pais em França, em casa, falavam para ela e para os irmãos em português, mas eles retorquiam em francês. Foi a brincar que foi aprendendo algo mais sobre a língua portuguesa em casa de uma amiga, sendo que o pai desta última é que era o “professor de português”. As dificuldades com a língua acabam por limitá-la um pouco, daí a timidez que a caracteriza na infância e ser considerada a “filhinha do papá e da mamã sempre”. Ana nasceu logo no início do ano de 1975 no hospital de Aveiro. Tem um irmão mais velho do que ela 6 anos e uma “irmã de criação” de quem a mãe cuidou e que é mais velha 9 anos do que Ana. A minha mãe não tinha filhos. Esteve 11 anos casada e não tinha filhos e quando… a minha mãe estava pr’ adotar uma criança. Só que entretanto a minha tia faleceu na passagem de ano. Antigamente diz quando se adotava uma criança diz-se que era pelo padre da freguesia. (…) A minha tia tinha 31 ano quando faleceu de parto e a minha mãe … pronto, o padre perguntou se ela queria ficar com a sobrinha ou com o bebé. (…) Ela acabou por ficar lá sempre. Há claramente uma remissão para a importância da figura do padre, sendo ele que detém uma posição de mediação no âmbito do processo de adoção. O facto de não ter filhos ao longo de tantos anos leva a mãe de Ana a ponderar a adoção, o que revela uma necessidade de dar afeição, amor, de alargar a família não se preocupando com o facto de não ser ela a dar à luz. Neste caso particular acaba por ser a sobrinha, por morte da mãe, o alvo desse afeto e desde esse momento é vista como filha e como irmã mais velha – “Pra mim é como se ela fosse minha irmã. Para mim ela já lá estava quando eu nasci”. Vivendo numa zona rural de uma das freguesias do concelho de Vagos, o pai dela trabalhou numa fábrica de leite e a mãe dedicou-se à agricultura, sendo o pai aquele que trazia o sustento da casa. Quando olha para a sua infância, Ana recorda-se desde sempre de ter uma família sem problemas até porque se deram “sempre todos bem” e por isso evoca com ternura as estadas em casa do tio em Vagos e as idas à praia – “as minhas férias grandes eu vinha-as sempre passar a Vagos” – porque embora residisse no concelho não vivia propriamente no centro da vila. 290 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Contudo, a adolescência perdeu um pouco da cor da infância quando, aos 12 anos, o pai sofre um AVC – “foi fulminante. Deu-lhe na segunda e ele faleceu na quarta” – o que acaba por condicionar as suas vidas a partir desse momento – “abalou muito. Em muitas coisas. Em termos familiares também”. Catarina nasceu já em finais de 1975 e é a filha mais nova de um casal transmontano e, à semelhança de Joana, a mais nova de 3 irmãos, por isso era considerada a “menina de todos”. Outra afinidade com Joana é o facto de não ter nascido em Portugal, mas neste caso os pais de Catarina foram, ainda solteiros, com as respetivas famílias para Moçambique e foi lá que se conheceram, casaram e nasceram os seus filhos. Não obstante, quando os pais regressaram a Portugal “porque foi quando houve aquela revolução ou não sei quê em Moçambique que nem podiam trazer nada”, Catarina tinha apenas 1 ano, e foram para a Guarda. Através de um tio de Catarina que residia no concelho de Vagos, acabaram por mudar de área de residência e foram para Vagos. Catarina é muito parca nas suas palavras quando fala sobre a sua infância e mesmo adolescência e isso nota-se também quando fala acerca das suas brincadeiras – “estava por aí fechada. Brincava, mas era sozinha. A minha mãe ia trabalhar e eu ficava com a minha avó” −, em que se nota algum isolamento. Na adolescência começa a ocorrer uma ligeira ampliação da convivência – “depois quando fui pr’o ciclo e pra escola já era diferente. Mais no ciclo. Já passava mais tempo com os meus colegas”. De qualquer modo é a escola que acaba por conduzir a essa abertura, a essa proximidade entre ela e os outros. Daniela nasceu nos primeiros meses de 1976, no hospital velho em Aveiro. É a filha e a irmã mais velha, distando apenas 2 anos e pouco entre ela e o irmão. Contudo, na altura do nascimento ela tinha uma “deficiência na perna direita. (…) Chamam-lhe o pé boto porque é… é mais pequeno que o outro” e os médicos tentaram esconder a situação dos próprios pais – “os médicos embrulharam-me muito bem embrulhadinha e não queria mostrar à minha mãe porque sabiam que estava ali qualquer coisa errada”. Toda esta situação acabou por acarretar ao longo da sua infância alguns cuidados por parte dos pais que sempre estiveram muito presentes e a deficiência não a impediu de ser “como todas as raparigas”. Assim, aos 7 anos foi operada e puseram-lhe um parafuso no pé – “andei com gesso até cá acima. Depois mais tarde andei com um 291 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias aparelho, era até cá acima e tinha que apertar na cintura”. Após toda esta fase da operação e pós-operação teve também de fazer fisioterapia para ajudar na recuperação. Da infância recorda-se das bonecas de trapos que a mãe lhe fazia e com as quais brincava. Além disso acrescenta que “tinha a mania de fugir pra casa de uma tia” que mora logo acima da cada dela, para poder brincar com as primas com as coisas que iam tendo à mão – “as barbaridades que fazíamos. (…) Uma vez a minha tia veio dar com nós as duas a cozer batatas. E comíamos batatas cruas”. A situação económica da família não era demasiado abonada, mas era, nas palavras de Daniela, “razoável” embora algumas dificuldades fossem aparecendo. O pai trabalhava inicialmente como carpinteiro, mais tarde “nas obras (…) porque ganhava mais”, e era aquele que levava o sustento da família para casa porque a mãe era doméstica. Daniela afirma que, devido ao desenrolar de todos estes fatores, passou “uma infância meia pr’o torto”. Da adolescência não tem muito para contar porque começou a trabalhar muito cedo, mas não deixa de destacar a relação especial com o pai. Beatriz nasceu alguns dias depois de Daniela, no mesmo mês do ano de 1976 no hospital em Aveiro, embora a mãe residisse em Vagos. Conquanto a mãe seja solteira, tem mais três irmãos (um rapaz e duas raparigas). Quando ela nasceu a mãe “já tinha uma certa idade”, até porque a irmã mais velha já deve “estar com 53, 54” anos e as pessoas “só souberam que ela andava grávida quando veio do hospital” com Beatriz nos braços. Contrariamente a Joana ou mesmo Daniela, Beatriz não tem ao longo do se percurso a referência e a presença da figura do pai em casa – “os meus irmãos têm um pai, os três (…) esse senhor foi pra França e por lá ficou. Constituiu outra família (…). A minha mãe depois passados uns anos conheceu outro, que era meu pai, e depois teveme a mim”. A mãe de Beatriz é abandonada em dois momentos por duas pessoas distintas, acarretando ela com toda a responsabilidade dos filhos a todos os níveis. Acaba por recair sobre ela o papel de mãe e pai em simultâneo porque Beatriz não tem “memória de os ver juntos”, mas esta acaba por fazer tudo para que Beatriz não sinta falta daquela presença masculina em casa – “o que me custava mais era na escola. (…) Mas de resto ela nunca me fez sentir aquela falta da presença do pai”. Tendo em consideração toda a conjuntura familiar não viviam “no luxo nem na fartura”, mas “também fome e isso não”, até porque quando ela nasceu as irmãs mais 292 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias velhas já trabalhavam para ajudar a mãe, que era vendedora de peixe, e havia sempre alguém que de alguma forma contribuía com algo – “ claro que andávamos com roupas que nos davam e assim, mas… a nível de alimentação nunca senti… grandes dificuldades”. Beatriz considera que durante a sua infância sempre foi muito “maria-rapaz” pelas brincadeiras que tinha, pela liberdade que isso lhe permitia. Praticamente era na rua. Casa dos vizinhos…(…) Era saltar à corda. (…) Quando as mães iam pr’os tanques lavar antigamente, íamos todas também e também nos enfuávamos lá nos tanques ou lá nas ribeiras. Era assim tudo muito livre. (…)Andava sempre muito empoleirada nos muros, esmurrava-me toda, arranhavame toda. Ou íamos à fruta ao quintal dos vizinhos. Sofia fala sobre a sua infância, mas revela pela forma como o faz que não é algo que considere agradável e que lhe traga recordações preenchidas com muita cor, como é natural nesta fase. Ela nasceu já na 2.ª metade de 1976, eram os pais ainda jovens, tanto que a mãe ia já grávida dela quando casou aos 18 anos. Porém, dois meses depois de ter dado à luz, a mãe de Sofia faleceu, mas esta não sabe muito bem o motivo pelo qual tudo isto aconteceu porque o pai nunca lhe contou o que quer que seja sobre o assunto e ela vai apanhando um bocadinho daqui e dali. São os avós paternos que acabam por cuidar dela até aos 3 anos porque o pai vai para França – “o meu avô é que levou o meu pai pra França para ele não se casar com esta (…). A minha mãe-mãe é prima direita do meu pai. E esta minha mãe… emprestada, madrasta, é 2.ª prima do meu pai”. À medida que Sofia vai discorrendo, apercebemo-nos que a árvore genealógica da sua família é um pouco intrincada e com um emaranhado de relações: a mãe biológica é 1.ª prima do pai, a madrasta é 2.ª prima, os avôs materno e paterno são irmãos – “tinha 17 anos. (…) Não estava à espera de ser pai tão cedo. Aconteceu (…) como o pai da minha mãe, o pai do meu pai eram irmãos pois… (…) eles eram primos direitinhos e as coisas tiveram que acertar”. Neste caso particular a gravidez implica a obrigatoriedade do casamento, estando patente uma preocupação com a imagem que transparece para o exterior. Além disso, as próprias relações familiares não são as mais agradáveis e serenas, há todo um ambiente mais pesado e de alguma animosidade entre a família mais 293 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias próxima: pais e filhos, avós e netos. A situação económica mais débil conduz também ao afastamento dos laços familiares. Os maternos não quiseram saber. (…) Não quiseram saber. As posses, daquilo que eu percebo, também não eram muitas. Tinham muitos filhos. Mesmo dos próprios filhos que eles tinham, despachavam os filhos, como quem diz, antigamente os filhos moravam na casa de umas pessoas ricas a trabalhar pra eles. Perto dos 4 anos, o pai e a madrasta de Sofia decidiram levá-la para junto deles em França, mas verifica-se a partir daí uma total ausência de estabilidade, com constantes divagações entre os dois países sem motivo aparente. Só me lembro depois de ir pra França. Devia ter os meus 7 anos quando os meus pais me… me levaram pela 2.ª vez. Que eles vieram-me buscar aos 4. Depois viemos embora, depois tornamos a ir tinha eu 7 anos. Depois tornamos a vir. Depois tornamos a ir tinha eu 12 anos. Este vaivém porque eles nunca sabiam onde é que deviam estar. Se era cá, se era lá, se era pelo caminho. Não sei… As mudanças familiares ocorrem ao longo do tempo, mas não existe diálogo sobre elas, há temas que parecem ser tabu. Era uma pessoa estranha que ao depois vieram-me a dizer que era a minha mãe. (…) O meu pai disse que era a minha mãe. Eu como nunca tinha visto mãe era minha mãe (…).Eu só soube que a minha mãe tinha falecido tinha 9 anos. Por causa de uma briga do meu irmão na escola. O relacionamento com os avós paternos é, na verdade, mais forte do que a relação com os pais, mas esse sentimento é reciproco entre os avós e a neta – “Pra mim são mais meus pais do que o meu próprio pai. Gosto muito do meu pai, mas pra mim eles são os meus pais. Tanto que os meus avós tratam-me como se eu fosse filha, filha mesmo”. O distanciamento em relação aos pais acentua-se a partir do momento em que começam a nascer os irmãos de Sofia, situação que provoca comportamentos distintos da parte da madrasta com consequências para Sofia – “uma revolta muito grande porque eu sentia que o carinho que ela me dava já não era o mesmo que o meu irmão. E senti, comecei a sentir muitos ciúmes do miúdo”. Lara nasceu no último mês de 1976 no seio de uma família numerosa de dois rapazes e seis raparigas, sendo ela a última desta prole copiosa – “Acho que já nasci no hospital. (…). Não tenho a certeza, mas acho que… eu lembro-me da minha mãe falar que acho que fui eu a única que nasci no hospital. Nasceram todos em casa, havia as parteiras antigamente”. 294 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Os pais têm as suas raízes em Viseu e acabaram no concelho de Vagos por motivos profissionais do pai, que foi para lá trabalhar numa fábrica de madeira, tendo acabado por ficar naquele concelho. O pai desempenhou depois as funções de jardineiro e a mãe “era doméstica. Ficou em casa”. Sendo ela a mais nova, foram os irmãos que acabaram por criá-la, à semelhança do que sucedeu com Lúcia. Em termos económicos “não era muito fácil” porque somente o pai trabalhava e trazia o sustento da casa, embora os irmãos tivessem começado a trabalhar assim que tiveram idade para tal – “As possibilidades também não eram muitas (…) não vou dizer que passei fome, mas não… havia aquelas regalias”. Da infância recorda as brincadeiras “com os colegas, com os vizinhos (…) aquelas brincadeiras de andarmos com as rodas das bicicletas e com um pau… que nós chamávamos de ringues”, mas também de “jogar ao berlinde, de saltarmos à corda”. Susana nasceu já em 1977, ainda na 1.ª metade do ano e é a filha mais velha. Dela para o irmão mais novo distam 6 anos. O pai “foi sempre construtor civil” e a mãe foi tendo várias profissões – “ajudava o meu pai e tinha gado em casa. Depois (…) foi pr’as limpezas e depois pra um minimercado trabalhar. Entretanto mais tarde entrou no Centro Social”, mas não se recorda de ter sentido dificuldades económicas ou algum tipo de necessidades. Durante a sua infância viveu com os pais, o irmão e os avós maternos numa casa e já na adolescência, “tinha uns 12 anitos”, os pais mudaram para outra casa. O facto de ter mantido este contacto mais próximo com os avós ao longo da sua infância permitiulhe criar uma relação mais próxima – “gostava muito deles e também gostava de ir pra cama porque o meu avô rezava comigo”. A infância foi ocupada pelas brincadeiras, muitas na praia que era um suporte também em termos da sua saúde – “alugavam lá casa porque era mesmo… precisar pra mim. (…) Noutras alturas iam pra lá os meus avós e depois ao fim de semana eles iam também pra lá. Dos pés porque eu usei botas ortopédicas desde pequenina e era pr’os corrigir”. Na adolescência arranjou formas diferentes de ocupar os tempos livres que lhe dessem alguma liberdade também – “Ia passear com as minhas colegas (risos). O que eu gostava mais de ir era aos bailes pra dançar. E passear de bicicleta (…). Íamos pra praia”. 295 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Carolina é uma das mais novas do grupo, juntamente com Constança. Nasceu quando o ano de 1981 estava quase a findar, também no hospital de Aveiro embora os pais fossem do concelho de Ílhavo. Ela é a mais nova de três irmãs. O pai “sempre foi pescador. Foi pescador de mar. Era imediato em barcos… acho que eles eram estrangeiros (…) os barcos onde o meu pai esteve (…) já era grandita quando ele deixou o mar. E depois esteve sempre ligado ao rio”, enquanto a mãe quando ela era mais pequenina fez limpezas numa empresa, trabalhou num restaurante mais tarde, mas houve também uma altura em que esteve em casa. Deste modo, acabou por ser a irmã do meio que acabou por “fazer de mãe” e cuidar dela. Não se lembra de ter passado propriamente necessidades ao longo da infância. Considera aliás que a mãe acabou por ser um suporte basilar na gestão doméstica da casa durante a ausência do pai, o que permitiu que elas também não sentissem propriamente necessidades. Eu lembro-me que a minha mãe era muito poupada. (…) O meu pai já não. O meu pai já facilitava-nos mais a vida. (…) A minha mãe sempre foi muito poupada (…). Não esbanjava dinheiro mesmo nenhum. É assim… nós não tínhamos muito dinheiro, se calhar as minhas irmãs passaram pior do que eu porque eu já tive mais facilidades. Já tinha uma vida melhor, sem dúvida, que as minhas irmãs. O meu pai andou no mar (…) e tudo o que ele fez fora foi à conta de a minha mãe saber organizar tão bem a vida, até porque ela nunca deixou assim muito de trabalhar e assim que a minha mãe conseguiu… o meu pai é que ganhava… mas conseguiram juntar o dinheiro para fazer a casa deles e para nos dar uma qualidade de vida. Carolina, tal como Daniela, revela uma relação mais próxima com o pai do que propriamente com a mãe – “Eu sempre me identifiquei mais com o meu pai do que com a minha mãe. (…) Se calhar porque a minha mãe era a mãe e o pai da casa (…) respeitava mais o meu pai do que a minha mãe” −, havia uma sintonia entre eles. As recordações que vêm da infância parecem um pouco ofuscadas pelo tempo, mas há momentos que perduram na sua memória. Brincávamos com os meus primos, estávamos também muitas vezes com os meus tios. Juntávamo-nos muito. (…) Lembro-me de na casa que os meus pais tinham alugada antes de irmos pra nossa casa nova. Lembro-me de brincar lá fora com as minhas colegas. Brincadeiras de meninas. (…) Tenho uma amiga que era a amiga das férias. Era uma rapariga que vinha de França e ela ficava na casa da avó, que era mesmo em frente à minha casa e então a gente nas férias ficava sempre juntas. Os pais só vinham em agosto e ela vinha sempre no início... porque eles terminavam as férias primeiro que nós, então ela vinha sempre mais cedo. Então era sempre por ali. Na brincadeira com ela. Passávamos muitas tardes sentadas numa casa de um senhor que não costumava estar cá, à conversa. 296 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Constança é a mais nova deste grupo de mulheres. Ela nasceu em 1983 e as suas origens encontram-se no município de Ílhavo, onde residem os seus pais. 6.1.2. Definição dos trilhos pessoais: a construção de uma nova família entre a melodia e as contrariedades Eu não gostava de ler. Eu só comecei a ler pr’as minhas filhas as histórias. Isso comecei a ler, mas eu dantes não gostava de ler. (Susana, 34 anos) Era a ler como aquela… rapariga empastada contra a parede. Só blablabla, sons está quieto. (Manuela, 37 anos) Se a infância de Lúcia foi preenchida por algumas responsabilidades familiares, a adolescência e a juventude não aliviaram esse peso. Começou a namorar aos 14 anos, tendo conhecido o seu marido numa das fábricas onde trabalhou. Namoraram “2 anos e tal” e “com 16 anos e meio” teve a Andreia. Quando fala sobre isso não deixa de ressaltar o facto de a sua mãe ter o “primeiro filho aos 15 anos e meio”. Há aqui um certo paralelismo, parecendo querer mostrar que essa é uma situação normal para ela, ela até era um ano mais velha do que a mãe quando ocorre uma conjuntura semelhante. Desde cedo teve de cuidar dos irmãos também e essa acabou por ser uma forma de preparação. Não é como agora a maturidade de uma pessoa… eu sempre gostei muito de crianças e a mim não me afetou nada. Tanto que eu dizia sempre que se o meu marido não casasse eu não me importava, mas a filha vinha ao mundo na mesma. (…) Depois casei-me. O meu pai estava na França e atrasou os papéis. Quando eu casei já ia de 7 meses e pico. Casei em março e a Andreia nasceu em maio. A minha mãe assinou e o meu pai mandou para cá os papéis assinados e pronto, já está (gargalhada). O meu pai não veio ao meu casamento. Quando Lúcia fala acerca destes momentos algo precoces na sua vida, revela uma postura descontraída. Encara todos estes acontecimentos com muita espontaneidade. Não podemos descurar aqui a necessidade de autorização para o casamento dada pelos 297 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias pais, uma vez que ela ainda era menor de idade e nessa condição assumia em simultâneo duas responsabilidades próprias de um adulto: o casamento e a maternidade. Aliás, as responsabilidades aumentam ao dar este passo – “Senti que tinha maior responsabilidade, que tinha que trabalhar. Se trabalhava tinha que trabalhar mais para não faltar… não, nunca faltou”. No início da vida conjugal viveram em casa dos pais dela juntamente com a filha numa única divisão que além de quarto era também local para cozinhar – “era só um quarto e fazia o comer aos pés da cama”. Surgiu entretanto a oportunidade de emigração para a Venezuela e o marido aproveitou, ficando Lúcia em Portugal com a filha durante os 3 anos seguintes. Foi aí que acabou por atravessar o oceano para se juntar ao marido na Venezuela porque estava a deixar “passar o melhor bocado da nossa vida”. Aí as condições económicas eram diferentes daquelas que tiveram até então. Acabou por engravidar novamente, mas decidiu ter a filha em Portugal para que ambas tivessem a “mesma nacionalidade”. Todavia, Lúcia acaba por regressar definitivamente a Portugal depois de 7 anos na Venezuela porque começou “a ver aquilo lá muito mal”. Volvidos 7 anos do nascimento a filha mais nova de Lúcia sofreu uma encefalite no cérebro e esse foi “mau bocado, mas passou”. O marido sofre de uma depressão há já algum tempo e tem acompanhamento médico. Ela vai lidando com a situação com muita naturalidade. Em 2011 também ela foi operada a um problema nos “tendões, mas era o nervo. (…) Estava a perder a sensibilidade”, mas mesmo assim tem dificuldade em conseguir estar muito tempo parada. Nos dias de hoje teima em manter-se ocupada quando está fora do seu horário de trabalho. Dentro de casa ou fora no quintal há sempre uma forma de se ocupar, mas não dispensa as suas caminhadas também. Andreia acaba por sentir alguma rigidez da parte do pai no que aos namorados diz respeito, que para ela tinha a ver com uma certa implicância, mas para ele esta parece ser uma forma de proteção – “O meu pai só me deixava namorar aos 18 anos”. De qualquer modo não foi isso que a impediu de ter “uns namoricos”, conquanto “mesmo com o marido” tenha sido “aos 18 anos mesmo” e com quem namorou “3 anos”. Nesta fase da sua vida encontrou formas distintas de ocupar os tempos livres, de sair com os amigos – “passeávamos as colegas todas juntas. Antigamente o nosso passeio era ir aos bailes aos domingos à tarde”. 298 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Não obstante, aos 21 anos Andreia acabou por engravidar do namorado, tal como sucedera com Lúcia embora mais jovem, e a reação do pai não foi a mais positiva – “foi um bocado complicado. Não esperava. Não aceitou” e por opção de ambos decidiram casar – “casei-me com 21 ainda… casei-me em abril e fiz os 22 em maio. Tive o bebé depois em agosto. Casei-me em abril… o meu filho foi nascer 5 meses… eu nasci 2 meses depois da minha mãe casar”. Após o nascimento do filho, o pai de Andreia acabou por aceitar toda aquela situação – “como tinha duas meninas e o sonho dele era um menino…”. Por sugestão do pai de Andreia ficaram na casa antiga ao lado da de Lúcia “até arranjarem uma casa melhor ou um apartamento”, que há muito tempo precisa de obras de fundo que foram sendo adiadas, tal como a construção da casa que hoje está fazer não muito distante dali – “era pra estar feita pr’ aí há uns 8 anos”. Este atraso na construção de um espaço deles acabou por protelar também outros projetos, como o de terem mais um filho. Contudo, essa tenção continua ainda por concretizar em 2011 porque entre 2007/2008 Andreia sofre dois abortos, que a levam a fazer uma imensidão de exames para perceber o que estava a causar os abortos. Descobre então que “nas análises acusava dois tipos de sangue (…) os bebés vinham com o O, não vinham com o A. (…) Como é menino é mais compreensível do que menina, que é mais frágil”. Daí só ter descoberto tudo isso depois do 2.º aborto porque já sabia nessa altura que era uma menina. Toda esta situação acaba por acarretar alguns problemas para o filho mais velho, que implicam o recurso a uma psicóloga. Uma nova tentativa não está posta de parte, embora isso envolva um tratamento para que não haja problemas, mas assusta-a o facto de isso envolva ter de ficar de cama ou algo do género –“ Eu não gosto de planear nada (risos). Gosto de esperar pelo que o futuro me reserva porque o que nós planeamos sai tudo ao contrário. Às vezes é muito complicado”. Acabou por encontrar os seus momentos de lazer e de fuga ao dia a dia nos jogos de futebol do filho, que assiste com veemência há cerca de uns 7 anos, o que lhe permite acompanhar o filho, mas também conviver com outras pessoas, ainda que por vezes possa ser um pouco cansativo. Mas… é uma família. (…). Eu acho que á a única… a única equipa que tem uma família de pais (…).Tanto que eu comecei a ir terças, quartas e sextas… e estou eu lá. Agora também nos pediram pr’ ajudar lá no bar, também estou lá a servir no bar (risos). É, mas é bom. É uma distração, depois de um dia de trabalho … está bem que é cansativo, porque nós temos que chegar a casa e temos… ao menos temos ali aquele bocadinho, só vemos coisas uns dos outros e distrai. É cansativo, mas não me importo. 299 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Manuela começou a namorar com aquele que é hoje o seu marido por volta dos “16, mal feitos 17. Não tinha feito os 17 ainda” e casou quando ainda tinha 18 anos – “Casei-me com 18 em agosto e fiz os 19 em setembro. Já estava a fazer 19”. Embora em Portugal não morassem muito longe um do outro, foi no Canadá que se conheceram. O seu casamento acabou por se processar em dois momentos distintos: “pelo civil e aqui vim casar pela Igreja” e foi necessária a autorização dos pais – “quando casei lá pelo civil ainda não tinha feito bem os 18 porque eu casei-me em abril e só fazia os 18 em setembro (sorriso). O meu pai ainda teve que assinar para autorizar”. Não obstante, o facto de ter estar casada civilmente não fez com que Manuela vivesse maritalmente com o cônjuge debaixo do mesmo teto, estando aqui patentes questões morais e de mentalidade – “casei-me no papel, mas eu em casa do meu pai e ele (…) no apartamento dele. (…) Não ia ser da vontade dele que eu fosse morar junto porque não faz… parte da ética deles… juntar os trapinhos logo de casada do civil”. O casamento pela Igreja não foi o momento que Manuela idealizara da imagem que tinha do Canadá, as questões económicas aqui também tiveram o seu grau de relevância – “O almoço foi no pinhal aqui atrás. Financeiramente não havia… abundância de dinheiro. Fez-se uma coisa mais simples. (…) Chorei muito nesse dia, mas passou-se. (…) Aquilo foi mais um convívio do que propriamente dito um casamento”. A primeira filha nasceu no Canadá quando Manuela tinha ainda 24 anos, sensivelmente um mês antes de fazer os 25 anos, mas a mais nova já nasceu em Portugal. Regressaram a Portugal definitivamente ainda a filha era pequenina, mais por vontade do marido do que propriamente de Manuela que “não queria, mas pronto”. Todavia ainda hoje sente dificuldades em se adaptar à vida no meio em que nasceu depois de ter estado ausente noutro país e contactado com diferentes formas de estar. Acaba por ser um bocadinho de tudo porque é… as pessoas, é o ambiente, a maneira de pensar. O que eu acho normal para mim porque já estava habituada a ver ou a fazer, as outras pessoas já pensam que… olha, a Chica esperta. E eu acho uma coisa normalíssima. (…) Lá era muito mais fácil. (…) Eu senti-me mais estrangeira aqui no meu país, que eu sou portuguesa, do que quando era lá. Mesmo em termos económicos vai tendo fases mais positivas do que outras, até porque está a pagar a casa que construíram e que o marido desenhou quando ainda eram solteiros. O facto de estar a pagar um empréstimo faz com que Manuela não se sinta 300 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias muito confortável e este é um fardo pesado pela simbologia que está implícita naquela casa, naquele espaço. Pra mim, pra eu me sentir realizada, era ter a minha casa paga. (…) É uma coisa que me assusta imenso é que se eu algum dia perco a minha casa. Porque nem é a casa em si, Bete. É o que está por baixo desta casa. É a herança, não é… se eu tivesse comprado a casa era diferente porque lá a gente também compra e vende casa (…) Agora a minha casa é mesmo o terreno porque é uma herança. Estando em casa vai aproveitando o tempo com uma multiplicidade de tarefas para ocupar o seu tempo e tentar sentir-se um pouco mais útil – “ponto cruz, andar no quintal a fazer as minhas sementeiras, a escolher, a tirar ervas e ir limpando alguma coisa em casa”− porque o salário do marido é o suporte para as despesas (“graças a Deus, não bebo só água. Se seu quiser posso ir ao frigorífico, está lá… que não me falta. (…) neste momento gostava de ter mais para eu poder, um dia mais tarde (…) pr’ ajudar as minhas filhas”). Joana recorda que conheceu aquele que hoje denomina como pai do seu filho aos 19 anos, mas foi um “namoro à distância… à distância é maneira de falar, ele era camionista em Portugal. E ele então fazia viagens pra Paris, pra Holanda, pr’ Alemanha. (…). Muitas vezes parava aos fins de semana em Paris e acabámos por namorar (...). 3 anitos”. Os pais não encararam da melhor forma o namoro deles até porque “ele sempre foi uma pessoa muito desconfiada”. Por volta dos 21/ 22 anos tirou a carta de condução porque simplesmente “não queria ser dependente” dos outros e considera que este é “um bem essencial”. Após os 3 anos de namoro, tinha Joana 22 anos na altura, casaram e com o casamento regressou a Portugal. Porém, o dia do casamento não foi de todo aquilo que Joana imaginara para si, mas acabou por ceder ao facto de achar que não podia voltar atrás e por alguma pressão da sua mãe. Tendo em conta a relação que tinha com o pai desde a infância também ele sofreu pela filha. Na véspera do casamento já nem sabia se havia de casar ou não porque tivemos uma discussão muito grande. Um dia ou dois antes do casamento (…). Tanto que eu chorei muito naquela noite, que eu nem sabia o que é que havia de fazer. (…) No fundo já não me queria casar, mas acabei por me casar porque já tinha os convidados, já estava tudo pronto, tudo falado, já estava… (…) Casei e no… no restaurante, no dia do casamento, chorei. Porquê? Eu acho que um casamento tem que ser um dia feliz e pra mim… pra já não foi feliz ao sair daqui porque o meu pai… desprezou-me, desprezou no sentido… levou-me à igreja, mas levou-me na igreja a chorar. Ele chorou todo o dia. (…) Arrependimento. Se eu soubesse naquele… naquela hora que eu pudesse desfazer o casamento eu desfazia o casa301 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias mento. Com convidados ou sem convidados. Mas já estava. Tinha a aliança no dedo. Não podia fazer nada. E depois fomos estando. Fui-me conformando. Simplesmente conformando. Sempre com a esperança que ele mudasse. Contudo, Joana acabou por ser vítima de violência doméstica por parte do marido, situação que principiou pouco tempo depois do casamento do início de uma vida em comum, que se foi repetindo com mais frequência. Joana acabou por deixar que se prolongasse, pensando sempre que o marido podia mudar – “chegou-me a bater, eu grávida também. Saí de casa. Voltei pra ele muito mais tarde, mas voltei pra ele com uma condição é que ele fosse a um psiquiatra. Ele foi (…). Toda a conversa (…), tudo trauma da infância”. Considerando toda esta conjuntura de vida a dois, Joana não encarou inicialmente da melhor forma a gravidez – “eu chorei muito quando soube que estava grávida. (…) Eu não queria ter filhos com ele (…) porque sabia que não ia dar nada” –, mas o filho acabou por se tornar na “maior alegria” que os dois construíram em conjunto. Porém, não foi suficiente para reforçar laços e Joana acabou por apresentar queixa na GNR por violência doméstica contra o marido, um processo lento até à separação definitiva com o divórcio, que lhe deu a guarda total do filho. O pai de Joana faleceu aos 64 anos, antes de ela pôr um fim à situação de violência de que era vítima e se divorciar, por isso ela afirma “o meu pai era muito revoltado. O meu pai sofreu muito. O meu pai sofreu muito comigo porquê. Porque eu sempre fui a filha querida dele. Sempre fui a pequenita dele. E ele via que eu sofria ”. Paulatinamente acabou por construir uma nova relação com alguém com quem já namorara no passado – “Já vamos a caminho de 7 anos, já que estamos juntos embora com algumas dificuldades que também passei com ele. Eu, no fundo gosto dele. Ele sabe que gosto dele (risos)”. Porém, vários fatores levaram-no a emigrar e para Joana a distância é difícil de contornar – “E agora está longe… com a distância também… também não tá a ser fácil, mas…(…) falta a presença um do outro. Tanto fisicamente como psicologicamente”. Este afastamento provoca a rutura da relação na 2.ª metade de 2011. Ela continua a viver com a mãe desde que esta adoeceu. Entretanto, em 2009 Joana sofre um acidente de viação que lhe acarreta um longo tempo de recuperação e sequelas que ainda hoje sente. 302 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Afetou-me fisicamente, pessoalmente, a questão de casal também e questão material também. Fiquei sem o meu carro. (…) Parti o metatarso em três sítios e dizem que tenho aqui uma artrose, que nem sabia que tinha artrose. Os meus ossos não ficaram bem no sítio porque eles falavam que eu tinha que ser operada. Não fui operada. Os meus ossos ficaram posicionados uns em cima dos outros. Não ficaram alinhados. E perdi a mobilidade de pôr o meu pé de lado. Catarina quando fala sobre a sua juventude conta que “ainda nem tinha 18 anos” quando começou a tirar a carta de condução e acabou por fazer o “exame com 18”, com alguma pressão dos irmãos sobre os pais, para que lhe dessem a ela o que não lhes deram a eles. Olhando para trás faz a distinção entre o verbo namorar e namoriscar, este segundo um pouco desvalorizado: “namorar, namorar foi com o meu marido. Namoriscar aos 16, 17. Com o meu marido foi aos 20. Casei aos 21. Namorei 6 meses mais ou menos. Pronto, 1 ano”. Após o casamento foram viver com os pais dela e com uma irmã da mãe, com quem dividem a casa até hoje porque, como ela conta, “casarmos e não termos assim dinheiro pra… construirmos o nosso espaço”. Conquanto, “tinha 26 ou 27” quando engravidou da filha mais velha, depois de já ter “abortado de gémeos”. Em 2010 nasceu a sua 2.ª filha, mas desta vez a notícia da gravidez fê-la sentir-se “muito mal. Foi por sopapo, por me dizerem aquilo assim. Eu não estava à espera que me dissessem”. Ana não é muito efusiva quando fala sobre si e sobre o seu percurso, por vezes parca nas palavras, mas olha para a sua juventude e conta que “só sabia andar de motoreta, na scooter e eu queria ter um carro. A minha mãe dizia-me sempre que me comparava um carro (sorriso). Então eu fui tirar a carta e ela depois deu-me um carro (risos)”, por isso começou antes de ter os 18 anos completos. Foi também por volta dessa idade que apareceu o 1.º namorado, que correspondeu também às primeiras saídas porque ela era “muito caseira”. Acabou por conhecer mais tarde aquele que é hoje o seu marido com quem namorou durante muito tempo e que conheceu “quando ele veio da América, que ele trabalhava… trabalhava num bar” – “Namorei quase 10 anos com ele”. Tinha já 27 anos quando casaram, mas decidiram ficar em casa da mãe dela até construírem o espaço deles e só em 2010 é que mudaram para a casa que construíram. Ana tinha 29 anos quando nasceu o seu filho, momento que ela considera ter sido “muito bom”. 303 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Se Daniela discorre sobre a sua infância com um sorriso e fala abertamente da relação com o pai, quando chega à juventude o seu olhar fica mais triste e menciona que “sempre fomos unidos uns com os outros cá em casa (sorriso). Sempre, só que depois quando mataram o nosso pai é que mudou totalmente” quando ela “ia fazer …21 ou 22 anos”. Conta que andava com o pai e com o irmão na Fanfarra. A perda do pai “custa muito ao fim destes anos todos ainda. (…) Foi um choque muito grande”. Seis meses após a morte do pai foi internada durante três semanas na psiquiatria em Aveiro. Diz que começou a namorar com 18 ou 19 anos, mas que era “muito turbulenta” porque “mandava-os todos embora”. Com o seu primeiro companheiro começou a “levar pancada dele” e por isso acabou por sofrer dois abortos – “começou-me a bater, mandou-me um murro em cheio na barriga. A partir daí comecei a sangrar. E o segundo foi a mesma coisa. Mas o segundo foi mais tipo um pontapé, mas de raspão ”. Tudo isto conduziu ao fim do relacionamento e começou uma fase em que “não queria mais homem nenhum” e a sua “perdição era a discoteca em Vagos”. Acabou por conhecer aquele que foi o seu companheiro durante alguns anos e que é hoje apenas o pai do seu filho, que nasceu em 2011. O filho acabou por ser uma surpresa porque na altura em que engravidou estava a fazer um tratamento porque “estava com um mioma e estava um quisto no ovário” e não tomava qualquer método contracetivo. Agora considera que aquele bebé “é a minha perdição, principalmente, que agora eu giro em torno dele” e descarta “ter mais alguém”. Vive com a mãe e o filho na “casa de lavrador antiga” que era dos seus avós maternos e paulatinamente, à medida das possibilidades, vão fazendo algumas obras porque a sua prioridade é batizar o filho, aquele que considera como a sua “joia”. Beatriz recorda os “bailaricos de fins de semana” porque era onde passava as tardes na sua juventude e foi precisamente aí que conheceu aquele que é hoje o seu marido – “Havia de ser aos 18 anos porque eu casei-me a fazer 20. Já tinha feito 20. Nós namorámos um ano e tal. Perto dos 19 anos”. Falavam sobre o casamento, mas acabou por ser o “percalço da gravidez” que acabou por precipitar toda essa situação. Viveram em casa dos sogros durante 9 anos, o que acabou por gerar alguns conflitos entre o casal e fez mesmo com que a certa altura Beatriz saísse de casa com as filhas. A reconciliação levou-os a comprar a casa que têm no presente e onde estão há cerca de 5 anos, embora não seja aquela com que Beatriz ainda sonha – “Era um estilo mais ao antigo, mais… até no interior e tudo. Era 304 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias totalmente diferente. (…) Hoje está ali o projeto na minha gaveta (…). Passámos muitas noites ali com o arquiteto. (…). Foi muito idealizada ”. Grávida do terceiro filho, Beatriz conta que “o terceiro falávamos porque ele queria muito um menino e eu também. (…) Da segunda eu andava em tratamento pra colocar o aparelho, aconteceu. (…) Era o 2.º filho. Pronto, não houve aquele planeamento, mas era aceitável”, mas considera que quando soube desta última gravidez foi “um bocado traumatizante” e por isso a sua reação foi chorar. As reações em casa foram muito positivas, mas em vez de um menino como tanto desejavam mais uma menina passou a preencher o espaço em casa desde 2011. Beatriz relata que “estava casada e já tinha a minha filha mais velha” quando decidiu tirar a carta de condução um pouco a pensar na sua filha também e ter alguma liberdade: “Eu andava de scooter e andava com a mais velha à frente. Também não era muito seguro e é uma dependência doutros”. No presente é uma pessoa muito ocupada e não tem tempo para pensar o que é que lhe faz falta mas salienta que “era uma pessoa muito agarrada (…). Hoje em dia não. Claro que eu gostava de, se calhar, frequentar mais o Centro Cultural, participar ali mais naquelas atividades que nos proporcionam. Se calhar o meu tempo não me permite isso”, tal como gostava de se “aperfeiçoar mais” na pintura, embora este seja um momento de lazer. Mas acima de tudo diz com orgulho: “continuamos a fazer a nossa vida sem dever nada a ninguém”. Sofia reencontrou aquele que foi o seu marido aos 21 anos, uma vez que já se conheciam desde a altura da escola, tendo começado a namorar após o seu regresso definitivo a Portugal. Casaram quando ela tinha 22 anos, mas nessa altura não sentiu qualquer apoio da parte do pai, o que não a impediu de avançar. Um ano após o casamento “sube que estava de bebé”, o que ajudou a amainar o relacionamento com o pai também. No início de 2006 a vida de Sofia é abalada quando o marido é operado “a um tumor que ele tinha, não deu pra retirar todo” e a partir desse momento ela teve de acompanhá-lo às consultas e exames e “durante 3 anos tudo correu muito bem”. Porém, em finais de 2008, tiveram de recorrer ao hospital e Sofia soube que o marido estava com “uma grande inflamação do lado oposto” do cérebro a que tinha sido operado. Nesse momento “o chão saiu debaixo dos pés” de Sofia e num espaço muito curto de tempo a situação precipitou-se e o marido faleceu. 305 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Desde o falecimento do marido é a filha que tem sido o seu alicerce, a sua estrela polar, mas isso não impediu Sofia de entrar em depressão – “andei 2 anos e meio sem nada e a médica… (…). Estou há seis meses com medicação e da maneira que eu estava já devia de estar a tomar há mais tempo” e quando olha para trás recorda aquilo de bom que o seu casamento lhe trouxe − “Foram 9. Ia fazer 12 agora no dia 1 de agosto. Fizemos 9 em agosto e ele faleceu em outubro. Foi assim… mas os que a gente vivemos, vivemos bem (…) Tivemos esta piolha”. Sofia salienta que “custou muito a levantar a cabeça”, mas mora agora na casa que “é duns primos do meu marido, antes de vir pr’ aqui estive lá um mês na casa dos meus pais. Antes de eu vir pr’ aqui, que isto estava abandonado”, mas decidiu que “queria uma vida também pra minha filha, não queria que ela fosse escrava de ninguém. E decidi viver sozinha com a minha filha”. Mas não abandonou o sonho de terminar a casa que ambos começaram a construir porque esse era um sonho de ambos. “Não sei como nem onde vou buscar o dinheiro pra continuar a minha casa, mas eu acho que não devo parar com a casa” e paulatinamente é ela que também lá vai trabalhando − “Fiz o chão da minha casa todo, eu é que fiz o cimento pr’ aquela casa. Eu só num dia baldei 24 sacos de cimento (…). Sinto-me feliz por aquilo que faço. Mas a vida tem sido muito complicada”. Também Lara começou a namorar por volta dos 16, 17 anos, mas com aquele que hoje é seu marido principiou por volta dos 18 anos e casou quando tinha 20 anos porque ele “começou a ter problemas aqui em casa com a mãe e quis sair daqui e então… nós então resolvemos casar”. Após o casamento, o marido emigrou durante 7 meses na tentativa de ela se juntar a ele, mas como não conseguiram arranjar papéis para ela acabou por regressar a Portugal. Ao fim de 2 anos de casamento, nasceu a filha mais velha de Lara e 7 anos depois teve um menino. Ela conta que na altura do nascimento da filha mais velha “ainda não tínhamos casa própria. Estávamos a pagar renda, depois é que comprámos. (…) Esta casa era dos pais dele. Ele nasceu cá”. Em 2008 a vida de Lara “deu uma volta de 0.º negativos. O que é que mudou… Separei-me… passado… ora, o curso acabou em março, em outubro separei-me” por decisão dos dois e provocado por algo que ela denomina de “asneira” da sua parte. A filha mais velha não reagiu bem a esta separação, pelo que foi necessária a ajuda de uma psicóloga. Durante esse tempo de separação Lara esteve em casa da irmã, mas acabaram 306 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias por dar uma nova hipótese à relação e ao casamento, também pelos filhos, e assim acabou por engravidar novamente – “depois de estarmos juntos, passado… 11 meses engravidei dele sem querer… foi sem ser planeado e pronto… aqui está ele (…) foi uma alegria”. Desde 2010 o novo rebento “é a alegria da casa. É o miminho da casa”. Os seus momentos de lazer são restritos agora com três filhos –“os meus domingos se não foram passados a ver os jogos [de futebol em que o marido é diretortécnico], são passados a dormir ou a ver televisão. Também a passar a ferro” porque a sua vida se resume a três coisas essenciais: “é trabalho, é casa e filhos e filhos, casa, trabalho (…) agora ainda é pior porque tenho mais um. (…) Cada vez se torna mais complicado pensar em fazer mais alguma coisa”. Susana começou a namorar, como ela diz, aos “17 e tal” e namorou “ano e meio pr’ aí. Não chegou a 2 anos” porque casou aos 19. Nessa altura foram morar com os pais dela “só que aquilo é tipo… tem casa pri… tem rés do chão, 1.º e 2.º. Eu morei no 2.º, era tipo estar num apartamento só. Era dividido”, mas com a família a aumentar “era um bocado pr’o pequeno. Então foi aí que a gente optou por fazer casa”, onde estão há cerca de 4/ 5 anos, embora tenha sido feita “aos poucos”. A filha mais velha nasceu quando Susana tinha já 21 anos e na altura “era um brinquedo” como ela lhe chama. Com 24 anos teve a 2.ª filha e até ao momento continuam a ser os quatro porque como ela refere “mais filhos não quero ter, só se me calhar, não é? Mas nunca se diz que não, mas assim planeados já chega”. Tirou a carta de condução já depois de ter a filha mais nova “as meninas estavam doentes e precisava do carro e queria arranjar trabalho”, mas não foi fácil porque começou por chumbar no início – “chumbei por burrice minha, não é? Mas fui lá outra vez. (…) Então eu tinha bem, fui pôr mal”. Carolina fala agora com serenidade sobre o seu passado e sobre tudo aquilo que já viveu, afirmando que sente “uma grande diferença do que eu era e do que eu sou”. Carolina casou, pela primeira vez, aos 17 anos e essa acabou por ser “ali tipo uma tábua de salvação” porque a mãe a prendia demasiado. Todavia, considera que esse período foi “muito mal” e esses foram os “piores anos” da sua vida. Por isso, ao fim de 4 anos, tempo em que começou a “criar um mundo” seu, acabaram por se divorciar porque ela “não gostava dele. Não queria aquilo” para ela e assim acabou por ficar, como ela afirma, “ficar solteira e debaixo do domínio dos meus pais. Não financeiramente, mas digo se calhar a nível de respeito ”. Durante o tempo em 307 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias que foi construindo o seu espaço conheceu aquele que hoje é o seu marido e a certa altura apercebeu-se que era com ele que “queria passar o resto da minha vida”. Logo aos 18 anos quis tirar a carta de condução “pela independência, por o querer ir aqui, acolá e não sei quê”, mas considera que a única coisa que conseguiu fazer “do princípio ao fim foi a carta de condução porque o resto… tudo o que tentava deixava ficar a meio”, atitude que revela uma baixa autoestima, alguma insegurança e mesmo desalento naquilo que faz pela falta de objetivos. Na 1.ª metade do ano de 2007 casou pela 2.ª vez e desta vez sentiu-se “uma noiva verdadeira (…). Muito realizada, muito feliz. Mesmo muito” e já decorreram 5 anos desde que saiu da casa dos pais e descobriram “através de uma agência” a casa que partilham desde quase 1 ano antes do casamento. Embora considere que é feliz, “há sempre aquelas partes” em que não o é e que a “deixam muito triste” e esses momentos estão associados à sua saúde. Os problemas a nível respiratório − bronquiectasias− vêm já desde pequenina, conquanto se vão paulatinamente amplificando, e isso traz-lhe outras complicações – “o mais provável é não conseguir engravidar porque o meu problema nos pulmões não deixa o meu organismo funcionar da forma que funciona o de uma mulher sem problema nenhum”. Em 2011 ocorreu um agravamento da doença que conduziu a uma redução da capacidade física em relação a uma “pessoa normal “ e começou a haver nela desleixo por si mesma, um deixar de acreditar, mesmo um certo abandono –“Sinto que pioro e depois não é só… é a respiração, é o coração, é a cabeça. Fico toda desorientada”. O mais importante e que ainda lhe consegue dar algum ânimo são os sobrinhos porque além disso diz que já se habituou “de tal forma a estar em casa, a estar no meu canto, que já não sou capaz de sair do meu canto para ir mais além. (…) Como eu me sinto bem é encafuada em casa”. Mas há, como assevera, “uma grande batalha de mim para mim, que é os meus tratamentos” e que ela tem de travar. Constança casou com 19 anos e saiu de casa dos pais e do concelho onde residia em Ílhavo para morar com o marido no concelho de Vagos. Em 2008, no final do curso, afirma que “há qualquer coisa que está dentro daquilo que quero fazer… projetos (…) Gostava de alcançar mais qualquer coisa”. Porém, “ela e o marido já se andavam a desentender a algum tempo (…) e depois ela conheceu outra pessoa k lhe deu mais atenção… e foi o fim (…), mas trataram das coisas de forma amigável”, diz Carolina numa conversa informal (MSN, 01.01.2010). 308 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Após a separação foi viver novamente com os pais, mas acabou pouco tempo depois por ir passar umas férias ao Luxemburgo, uma vez que lá estava a irmã. Não obstante o tempo que era de férias acabou por se ir prolongando, ela veio desta vez de férias a Portugal e “voltou para o Luxemburgo” (discurso de Carolina através do MSN, 02.09.2011). Entretanto, Constança conheceu no Luxemburgo aquele que é o seu companheiro e de quem engravidou e é agora mãe de um menino – “Kem vai ter bebé é a Constança. (…) Tá de 2 meses, agora diz-se em semanas, 8 semanas” (Discurso de Carolina através do MSN, 09.11.2010). 6.1.3. A relação entre a escola e a família: descontinuidade do percurso escolar A minha mãe não era histórias de livro, era histórias imaginadas. Agora assim contactos com livros assim propriamente não. Muito raro. Depois de ter deixado a escola também não. (Beatriz, 35 anos) Só mesmo na escola e porque era obrigada. (…) Eu tinha muitas dificuldades na leitura. (Joana, 36 anos) Antes de entrarmos propriamente na relação de cada uma destas mulheres com a escola, importa determo-nos um pouco à volta das origens sociais dos progenitores de cada uma delas, em particular os antecedentes escolares dos seus pais, para assim compreendermos a sua relação com a escola (Quadro 6.1). Perpassando o olhar pelo Quadro 6.1 reparamos que no caso daqueles que possuem habilitações estas se dividem entre o 1.º e o 3.º ciclo do ensino básico. Do 2.º ciclo falamos apenas de um casal e um elemento de outro com o 6.º ano completo. Os restantes detêm o 1.º ciclo, embora aqui não esteja patente uma homogeneidade uma vez que variam entre o 1.º e o 4.º ano. Com o 3.º ciclo encontra-se apenas um elemento que neste caso é Lúcia, mãe de Andreia, que frequentou o mesmo curso EFA. Também o pai de Andreia e marido de Lúcia estava inscrito à altura da nossa entrevista numa formação na área da cozinha para obter o 9.º ano e segundo Lúcia “vai começar agora em julho. (…) São 3 anos”. Não obstante, verificam-se também situações em que os pais 309 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias das entrevistadas não possuem qualquer tipo de escolaridade, como no caso da mãe de Lara que “nem sabe assinar o nome dela”. Quadro 6.1 Origens sociais: a relação dos progenitores com a escola Escolaridade Entrevistada Pai Mãe Beatriz ------------------------- 4.ª classe Daniela 4.ª classe (tropa) 3.ª classe Andreia 6.º ano* 9.º ano Lúcia Assina o nome apenas 3.ª classe e a 4.ª de admissão Sofia 4.º ano ----------------------- Carolina 4.º ano 4.º ano Joana Sabia ler e escrever 4.º ano** Constança ------------------------- ------------------------ Ana 4.º ano 4.º ano Lara 4.º ano Não sabe assinar o nome sequer Catarina 4.º ano 1.º ano Susana 6.º ano 6.º ano Manuela 4.º ano 4.º ano * À data da entrevista encontrava-se inscrito num curso de formação para obter o 9.º ano (07-03-2011) **Teoricamente tem o 4.º ano, mas na realidade lê muito mal e assina o nome, mas mal também. Relativamente ao pai de Joana não há uma menção concreta à escolaridade que detinha, apena a referência ao facto de, segundo as palavras dela “o meu pai sabia ler e escrever. Mal ou bem, mas sabia. Tinha estudado coisa pouca…”. No caso da mãe a situação torna-se um pouco mais confusa porque teoricamente ela “andou 4 anos, mas disse-me que não aprendeu nada, que nem o nome sabe bem assinar. A professora dela era muito má. Escreve como uma criança de primária do 1.º ano. Nunca vi a minha mãe escrever e ler muito mal”. Há aqui uma clara discrepância entre as habilitações que detém e aquilo que na realidade consegue fazer. No caso de Lúcia a mãe possui habilitações a nível do 1.º ciclo e o pai revela ausência de quaisquer habilitações, até porque segundo ela “o meu pai sabia agora mais 310 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias tarde assinar o nome dele porque nós ensinámo-lo. (…) A minha mãe praticamente é que o ensinou quando vieram da França para cá de vez para ele assinar os cheques e essa coisa toda”. Conquanto esta situação “ele escrevia. Mal, mas escrevia o nome dele”. As habilitações dos pais refletem não só a sua origem social, como do próprio contexto da sociedade portuguesa daquela época. Os níveis de escolaridade dos progenitores são na sua maioria mais reduzidos do que aqueles que elas alcançaram, remetendo aqui para a situação delas anteriormente ao curso. Não podemos descurar associado a tudo isto a escolaridade mínima obrigatória à altura em que os pais destas mulheres frequentaram a escola, uma vez que em 1911 foi estabelecido um ensino obrigatório de 3 anos, que até 1959 sofreu algumas flutuações. Só em 1960 é que se fixou nos 4 anos de escolaridade obrigatória quer para rapazes quer para raparigas mediante o DL n.º 42 994, de 28 de maio de 1960. Porém, pouco tempo depois, através do DL n.º 45 810, de 9 de julho de 1964, essa obrigatoriedade “traduzir-se-á num acréscimo de duas classes (…) passando as classes obrigatórias de quatro a seis”, não estando ainda nessa altura asseguradas as condições para uma extensão plena da escolaridade alargada aos 6 anos a todas as pessoas (p. 876). Há, portanto, um traço que se pode considerar comum aos progenitores destas mulheres que frequentaram algum nível de ensino e que remete para o abandono da escola imediatamente a seguir à conclusão do mínimo exigido na altura, ainda que requeresse uma análise mais minuciosa sobre estes indivíduos de acordo com a idade. Contudo, não são eles os elementos mais importantes para a nossa análise. Lúcia, a formanda mais velha do grupo, com 54 anos, afirma que “não tinha bem 9 anos já andávamos no tempo de pôr as batatas no rego, em março. Agora nas férias da páscoa íamos sempre o dia para fora”. Está aqui patente o sentido de responsabilidade e de contribuir também para o apoio económico à família desde muito cedo mesmo não sendo ela das filhas mais velhas – “pagavam. Ganhava mais do que as mulheres. Trabalhava mais. E depois era aqueles 3 meses de verão a andar nas batatas. De julho a setembro. Desde os 9 anos foi sempre a trabalhar”. As dificuldades económicas, reflexo também do facto de esta ser uma família numerosa, eram visíveis na escola e que Lúcia ia sentindo no seu dia a dia – “A professora, coitada, muitas vezes pagou um pãozinho para eu comer, a mim e às minhas irmãs. E ver as outras bem calçadas e eu com uns tamancos nos pés… não é 311 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias fácil”. Por isso, Lúcia não quis continuar a estudar, tendo acabado por fazer, ainda que um pouco contrariada, o 6.º por alguma insistência da professora. Eu sempre pensei em trabalhar. Quando fiz o exame da 4ª classe eu queria… os meus pais… os meus pais não tinham possibilidades… é assim… a minha mãe quis que eu fizesse a 6ª classe, a 5ª e a 6ª porque a professora disse “olhe, você deixe-a estudar porque ela depois com o 6º ano já se emprega em qualquer lado, é diferente do que ela andar a trabalhar nas terras e mais não sei quanto e nha nha nha” e a minha mãe pronto. A minha mãe nunca ia contra aquilo que os professores dissessem ou que a gente… “eu não quero estudar, quero trabalhar”. Porque é assim… a gente também via as dificuldades em casa, não é? E ia o dia fora para quê? Para ganhar algum tostãozinho para dar a eles porque… eles estavam a pagar 40$ às mulheres e a nós davam-nos 50. (…) Era a própria necessidade porque a minha mãe precisava de dinheiro. A professora influenciou muito a minha mãe. Então eu disse “eu faço o 5º ano que sou obrigada, mas o 6º não faço”. Era a tal coisa… queria ajudar a minha mãe. (…) Depois a minha mãe disse-me “olha, é mais um ano, faz o 6º ano se é…”, nem era obrigatório. Eu disse “pronto, eu vou fazer o 6º ano, mas nunca estudo” e nunca agarrei num livro, nunca estudei. Nunca… fazia os trabalhos senão depois levava porrada. Mas o resto não estudava. (…) Eu nunca estudei e fui para o exame e fiz um bom exame. Neste caso particular, não se verifica da parte dos progenitores uma influência para que a filha abandone a escola, pelo contrário a mãe considera a opinião da professora muito valorizada e é uma das pessoas que incentiva a filha, apesar das dificuldades económicas. Em finais da década de 70 do século passado, de acordo com o DL n.º 538/79, de 31 de dezembro, criam-se as condições para a extensão dos 6 anos de escolaridade a toda a população. Neste DL salvaguarda-se que os “indivíduos nascidos a partir de 1 de janeiro de 1967 é já exigida a posse do diploma”, assim como os “indivíduos nascidos anteriormente à data fixada (…) é apenas exigida (…) a posse do antigo diploma de habilitação da 4.ª classe do ensino primário” (p. 3478- (266)). Isto leva-nos a estabelecer uma relação com o que analisámos anteriormente acerca do percurso escolar de Lúcia. Tendo ela nascido em 1957, não tinha a obrigatoriedade de ter completado o 6.º ano, tal como aconteceu. Acabou assim, para a sua época, possuir mais habilitações do que aquelas que lhe eram exigidas. Andreia, a filha mais velha de Lúcia, fez o 1.º ano do ensino básico em Portugal, mas não chegou a completar sequer o 2.º ano porque entretanto a mãe optou por se juntar ao pai que estava emigrado na Venezuela. Apesar de tudo revela uma adaptação à língua e à escola sem quaisquer problemas, tal como salienta: 312 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Depois a minha mãe lá, fomos em janeiro, arranjou uma professora em casa. A professora dava aulas em casa. (…). E eu comecei logo a aprender porque… é assim… não há grande diferença, é uma letra ou outra, mas não… lá usa-se muito o i grego. E pronto. E algumas palavras que são diferentes… mas como eu era ainda pequena… (…) Nunca chumbei apesar de andar sempre a mudar de escola Aliás, é visível no discurso de Andreia alguma nostalgia quando se refere ao tempo da escola na Venezuela. Eu gostava lá da escola… gostei muito. Eu andei em muitas… várias escolas porque nós mudámos várias vezes de sítios. Mas uma coisa que eu gostava muito de lá é que nós andávamos todos de uniforme e aqui não. (…) Todos tínhamos de ficar no pátio, à distância de um braço uns dos outros pra cantarmos o hino. Ninguém entrava dentro da sala sem cantar o hino (risos). (…) Fazíamos os trajes, dançávamos as músicas mesmo lá típicas da Venezuela. Aqueles folclores… Todavia o regresso definitivo dos pais a Portugal acabou por condicionar a sua trajetória escolar. Estava na altura a concluir o 6.º ano e “se fosse lá talvez eu continuasse. Depois vim pr’a aqui, não. Perdi a vontade”, uma vez que, segundo ela, isso tinha algumas implicações nomeadamente em termos de equivalências escolares entre os dois países – “ia andar pra trás. Mas então eu lá andava sempre pra frente e aqui ia andar pra trás? Não. Depois acabei por desistir”. Mas, na sequência do que sucedeu com Lúcia, também os pais de Andreia não queriam que ela abdicasse da escola – “eles disseram “não sejas tola… vais seguir… tirar uma coisa que gostes, que seja superior a nós…nós não conseguimos, tu podes conseguir” –, sendo esta encarada como algo que podia dar à filha uma vida melhor. Como na altura ambos tinham o 6.º ano há da parte deles um querer que a filha voasse mais alto, concretizasse o que eles tinham idealizado para ela, um curso superior até. Acaba por estar aqui patente a ideia que de os filhos devem alcançar sempre mais do que os pais, parecem considerar o facto de darem à filha aquilo que os pais deles não puderam de certo modo dar-lhes. De qualquer modo o discurso de Andreia revela conformismo com aquilo que vigorava até porque ela àquela altura detinha mais habilitações do que as colegas – “as minhas colegas da minha idade todas só tinham completado a 4.ª classe, 5.º porque antigamente era assim… só chegavam aquele…” – e isso era considerado suficiente até para arranjar emprego – “nunca me pediam o… que escolaridade é que eu tinha”, o que não invalida que mais tarde se tornem insuficientes. 313 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Também Manuela, nascida no mesmo ano que Andreia, deixou a escola em Portugal para ir com os pais que decidiram emigrar para o Canadá, embora já fosse mais velha – “fui pra escola lá pr’o 5.º ano, pois… já andava aqui no 5.º, mas por acaso quando fui pra lá não fui pra trás, fiquei no mesmo ano que já ia daqui ”. Apesar de estar num país novo e de contactar com uma nova língua o seu percurso na escola foi regular – “Até ao 8.º ano eu tinha Inglês, mas Inglês como 2.º língua. (…) Só depois no 9.º é que dava Inglês a par com os outros, como nós, por exemplo, estudámos aqui Português”. Estava a meio do 11.º ano quando decidiu abandonar a escola – “Foi na altura de me casar. Financeiramente não tinha posses. Era contra a vontade dele” – e só 15 dias depois de o ter feito é que contou ao namorado, que não gostou da sua decisão, mas não havia já nada que a demolisse porque o seu objetivo era “ter dinheiro” para se casar. Os pais acabaram por ficar um pouco indiferentes porque como ela diz “já estavam naquela fase que a vida é tua, faz o que quiseres e pronto”. O percurso escolar de Joana foi um pouco diferente, simplesmente porque tendo nascido em França fez lá toda a sua escolaridade. Quando lança o olhar sobre o seu trajeto refere que sempre teve “dificuldades de aprendizagem” e são precisamente estes obstáculos que acabam por conduzi-la a um afastamento da escola. Abandonou a escola no 6.º ano com “15 ou 16, quer dizer 16”. Nessa altura fez uma formação profissional, mas não conseguiu concluí-la porque, como ela afirma, “tive a prática, mas não tinha a teoria, que foi sempre o meu problema”. Depois de ter deixado a escola e ao longo do tempo acabou por se sentir um “bocado atrasada comparada com as outras pessoas”, mas não colocou em momento algum a hipótese voltar a estudar simplesmente porque “trabalhava e de momento que eu tinha o meu ordenado ao final do mês, era o dia a dia e nunca me passou tal coisa pela cabeça”. A morte do pai de Ana quando ela tinha ainda 12 anos fez que tivesse de abandonar a escola, após ter concluído o 6.º ano. Desse tempo conta que era em português que tinha mais dificuldades – “era as redações. Era isso das pontuações (risos)… Tá a ver? Você sabe (risos). Era o meu maior problema”. Houve da parte dela uma tentativa de regresso aos estudos, mas outros fatores acabaram por condicionar esse desejo e pôr de lado a ideia porque, tal como ela salienta “depois era pra ir estudar à noite, mas (…) era medroso e (…) estava fora de questão ir sozinha pra lá de noite”. No caso particular de Ana havia essa aspiração, essa vontade 314 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias de concretizar um sonho e a vida parece ter-lhe pregado uma partida porque as dificuldades económicas com a morte do pai falaram mais alto – “Eu gostava de ter estudado, pronto, mas… infelizmente não pude, mas eu gostava muito de ser enfermeira. Era um sonho. (…) Se calhar por isso é que até sei lidar bem com os idosos”. Catarina, por sua vez, fez até ao 7.º ano, mas acabou por ficar a meio do percurso, “devia ter 15/16”. Manifesta que não gostava da disciplina de matemática porque “não gostava de fazer contas”, mas é muito parca nas palavras quando fala sobre a sua relação com a escola. Quando abandonou a escola nada a demoveu nem o argumento que os professores apresentaram pelo facto de ser ainda “muito nova”. Os pais simplesmente “não disseram nada” e ela “queria ir trabalhar para ter dinheiro (risos). Via as outras com dinheiro, também queria”. Esta situação revela da parte dos pais também alguma abnegação e desvalorização da escola. Houve da parte de Catarina uma tentativa, mais tarde, para concluir o 9.º ano por “unidades capitalizadas”, só que o nascimento da filha mais velha acabou por fazê-la abdicar desse projeto – “entretanto fui a ter e desisti”. Quando Daniela abandonou a escola tinha 13 anos e nas suas palavras “fiz o 6.º ano e sei que aos 14 comecei a trabalhar. Comecei a trabalhar, prontos, porque via as outras tinham tudo e eu não tinha as coisas que gostava de ter”, um pouco à semelhança de Catarina. O pai considerava que apesar das poucas posses ela devia continuar a estudar e conquanto a tenha tentado demover, a tentativa foi completamente gorada porque Daniela pensava unicamente em trabalhar “principalmente pr’ ajudar em casa”. Recorda que “até tinha boas notas” e que havia uma professora a quem tinha “uma raiva que não a podia ver. Era a Francês. Não gostava da língua, mas tinha sempre boas notas. Passei essa língua”. Beatriz devia ter os seus 11/ 12 anos quando terminou o 6.º ano e decidiu abandonar a escola, sem que desse qualquer hipótese à mãe para fazê-la mudar de ideias – “a minha mãe matriculou-me em Vagos, mas eu não… bati o pé e bati e bati e não fui. (…) A minha mãe podia-me obrigar, mas se calhar achou que era em vão”. Foi Beatriz que começou a desvalorizar o papel da escola na sua vida em plena adolescência – “Já estava naquela fase que achava que já sabia tudo e que pra mim nada já 315 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias interessava. Já queria era o namorico e os bailaricos e coisas do género. E pronto, trabalhar também pra ter o meu, o meu dinheirito”. Porém, há outro fator que pode ter precipitado a decisão de Beatriz, tal como ela salienta ao longo do seu discurso. Quando fui pr’o 5.º ano eu comecei a trabalhar. Ou seja, como era escola de… através de televisão, nós não tínhamos o dia todo. Eu tinha manhãs livres e ia à tarde. Eu tinha uma vizinha que tinha um minimercado e eu ia trabalhar de manhã. E se calhar talvez isso influenciou muito a minha decisão de eu não continuar a estudar. Porquê? Porque apanhei gosto pelo meu dinheirinho. Houve da parte de Beatriz, mais tarde, já depois de casada, uma tentativa de regresso aos estudos, contudo “à noite. Com o transporte não dava, era impossível. (…) Não valia a pena”. Sofia quando pensa no seu percurso escolar e nas dificuldades que ainda hoje sente afirma convictamente que “não tive escola nenhuma em condições e por isso as minhas dificuldades também vieram muito daí. Eu talvez por mim própria também não tenha grande cabeça pra estudar”, afinal ela iniciou em França “o que chamam o infantário aqui. Fui quase com 4. Entrei lá. Depois cheguei aqui e ia entrar nos 7”. O seu percurso é marcado por um constante vaivém muito atribulado que choca com a necessidade de estabilidade que ela sente e por isso acha a sua história “sem pés nem cabeça”. Depois entrei na escola primária e fiz 1.º e 2.º. Depois fui-me embora. Chegar e não chegar, aprender e não aprender, já estava de volta a Portugal. Pois… aí está. Chegar e não chegar pr’ aprender português… coitada da professora (risos). Sei que vim pra cá com 10 anos, ia fazer os 10 anos e fui-me embora outra vez a última vez pra França tinha 12 anos. E estive lá até aos 20. Acho que foi a época mais comprida que eu lá estive. Mas quando cheguei lá com 12 anos o meu francês chapéu. Não havia francês nenhum. Quer dizer, tive de aprender a ler, andar um ano perdida, perdida entre aspas, ali numa escola só pr’ aprender a ler, escrever e falar, mal e porcamente que era mesmo assim. E… e a minha escola foi esta. Foi cá… nem cá nem lá nem pelo caminho (risos). Fez até ao 6.º ano, mas considera que perdeu “muito entre aprender a falar e a escrever e isso conta”, até porque ela terminou o 6.º ano com 19 anos, depois de ter feito “o 5.º e o 6.º (…) era escola e curso de costura”. Acabou por desistir, estando aqui patente um claro desânimo face à escola e às aprendizagens, porque regressaram 316 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias definitivamente a Portugal e “depois não era cá que ia começar outra vez a escola com 20 anos”. Lara olha para trás e parece-lhe que tudo aconteceu há já muito tempo, mas lembra-se de ter estudado até ao 6.º ano, altura em que reprovou – “só reprovei depois no 6.º ano. No 6.º ano mais por… baldar-me um bocadinho às aulas (risos) … já andava um bocadinho cansada também. E depois também talvez as companhias…”. A opção de abandonar a escola foi unicamente dela por saturação e ao mesmo tempo vontade de trabalhar, tal como sucedera com os irmãos mais velhos, um pouco contra a vontade do pai que gostava que ela continuasse. Fui eu mesmo que também quis sair. Fui, que o meu pai nem queria. As possibilidades também não eram muitas (…) Mas também foi mais por eu querer porque… andava também já saturada e depois também queria ir trabalhar. A minha mãe não se importou muito porque a minha mãe o que queria era que a gente a ajudasse no trabalho de casa. O meu pai é que ficou um bocadinho… triste porque como eu fui das únicas, a bem dizer, que… mais esperta assim pra… pra escola, teve pena de eu não ter seguido. Queria que continuasse. Susana fez o seu percurso escolar até ao “8.º. Eu tinha o 9º reprovado. É que saí. Tenho o 8.º. Tinha o 8.º concluído, andei no 9.º ano. Desisti no 9.º, reprovei e nunca mais fui”, tinha na altura 16/ 17 anos. Todavia, o seu percurso foi marcado por uma certa aversão à escola, também com algumas dificuldades pelo caminho entre o português e o inglês – “eu nunca gostei de estudar. Eu sempre pedi à minha mãe pra ir trabalhar”. Essas dificuldades foram sentidas por ela desde cedo, depois com alguma revolta à mistura, embora da parte dos pais, principalmente da mãe tivessem ocorrido incentivos para que ela progredisse e obtivesse uma escolaridade mais elevada. Reprovei 3 anos (risos). No 2.º, no 4.º e depois no 6.º. E depois no 9.º chumbei e nunca mais fui. Não quis ir. Acabou. Já tinha acabado no 6.º ano. Eu chumbei… nesse ano até chumbei porque… alguém me chumbou. Mas eu não queria ir mais. Mas… a minha mãe disse que sem o 6.º ano não valia nada e… e vai… faz ao menos o 6.º e fiz o 6.º e continuei. Tentou voltar a estudar mais tarde, através de RVCC – “andei a fazer por módulos. (…) Ainda cheguei a fazer daí alguns módulos”−, mas acabou por abandonar. Carolina decidiu aos 17 anos abandonar a escola, na altura a fazer “o 9.º ano pra ir trabalhar”. Recorda que entrou com 5 anos para a escola e estudou até ao 7.º ano, onde acabou por surgir algum desinteresse. Nessa altura, “devia ter pr’ aí uns 12 anos, 317 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias 13”, teve uma interrupção porque os pais decidiram tirá-la da escola, mas considera que “depois ali quebrou uma rotina que havia. Foram pr’ aí 2 anos”. Nesse lapso temporal acabou por ficar “um bocadinho mais rebelde. Não levava nada a sério”. Quis voltar à escola e para isso teve “de lutar um bocadinho com a (…) mãe, nada de coisas físicas”, mas teve de “batalhar” para que a mãe a deixasse voltar. Esteve 2 anos no 8.º ano, tendo conhecido Constança nessa altura, mas ao chegar ao 9.º decidiu pôr um termo, considerando no presente que perdeu “as coisas assim sem mais nem menos”, mas na altura “era mais pela vontade de trabalhar”. Tentou voltar a estudar à noite, mas não esteve “muito tempo”. Na altura ainda estava na fase do 1.º casamento e de um querer “as coisas, mas depois desistia delas”, até porque foi sentindo paulatinamente uma insatisfação e mesmo vergonha das suas habilitações – “Não estava satisfeita de todo com a minha situação, mas deixava-me andar”. Constança quando fala sobre o seu percurso escolar refere que tem apenas o 8.º ano completo, deixou a escola e começou a trabalhar. Como o seu percurso se cruza com o de Carolina a dado momento, esta última explica que “andava no 8.º, a Constança andava no 7.º. A Constança passou pr’o 8.º e eu reprovei. Depois a Constança reprovou no 8.º e eu passei pr’o 9.º. Depois eu saí no 9.º, a Constança passou pr’o 9.º e saiu também”. Tentou completar o 9.º ano à noite, já depois de casada e estava “muito certa daquilo que queria e estava mesmo com vontade” e até chegou a fazer bastantes unidades. Porém, para o final deixou de ir e acabou por desistir. Esta situação acabou por lhe acarretar uma “frustração muito grande”, assim como “uma mágoa muito grande (…) porque podia ter aproveitado a oportunidade” que lhe deram e não o fez. Como tal “sentia-se envergonhada. Evitava falar do assunto porque era qualquer coisa que não sentia à-vontade pra falar”. 6.1.4. A entrada do curso EFA B3 em cada um destes trajetos e as suas repercussões Aquela atividade da Chocoleitura e musicoterapia. Adorei esse dia. Pra mim foi… Marcou-me muito foi a parte de estar a contar histórias e estar tantos miúdos a olhar. (Carolina, 29 anos) 318 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Por ter brincado mais um bocadinho, (…) ter feito coisas que nunca pensei vir a fazer. Acho que foi positivo. Aprendi a ler as histórias melhor aos meus filhos, coisa que não fazia. (Lara, 34 anos) Estas treze mulheres partilharam até 2007 e à entrada para o curso EFA a vacuidade de um mesmo bem basilar, que reside no facto de não possuírem o diploma do 9.º ano. Desde que abandonaram a escola uma parte delas não equacionou a hipótese de continuar. Outras fizeram algumas tentativas, ainda que frustradas e não concretizadas na totalidade. É visível nelas, aquando da entrada neste curso EFA, um confronto com a “necessidade de obter um diploma escolar de nível mais elevado, sobretudo devido a exigências, alheias à sua vontade, relacionadas com a vida profissional” (Ávila, 2008, p. 347). Até à entrada no curso EFA B3 em 2007, não tinha sequer passado “pela cabeça” de Lúcia voltar a estudar, mas achou “graça de ser mãe e filha”, pelo facto de Andreia também ter sido selecionada para o mesmo curso. Contudo, olhando agora para trás apercebe-se dos contributos do curso na sua vida – “andei lá, aprendi coisas que não sabia. (…) Estagiei na parte das crianças, estagiei na parte dos idosos. Deram-me equivalência … e foi isso que me safou pr’o meu trabalho, senão hoje também ainda estava desempregada”. Considera que teve um percurso regular, mas afirma que “aquilo tudo foi novo” e “tudo muito diferente” dos tempos de escola, com mais dificuldades nuns módulos do que noutros porque afinal “não estava habituada a fazer isso, a minha mão era a enxada, não era fazer estas coisitas… era a fábrica”, mas “com as coisas todas que nos dava, aí a gente começou a abrir mais os olhos”. Deparou-se no módulo de LC, em consonância com os restantes módulos, com um maior incidência sobre a leitura, com a concretização de uma panóplia de atividades – “eu lia conforme estava no livro, não é? (…) Estava ali pr’ aprender. Por isso mesmo ajudou (…) Pra mim foi bom porque nunca tive quem me lesse uma história em garota, não é?”. A escrita, em particular de histórias “foi a pior parte porque não estava habituada, nem sabia o que era”, porque considera que estão habituadas a escrever tal como falam, ou seja “tudo a eito” e menciona que o seu problema não estava 319 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias propriamente no facto de escrever, “era onde devia fazer a pausa… uma vírgula ou um ponto…”. Encara a concretização desta panóplia de atividades à volta da leitura com um misto de sentimentos – “A gente fazia e ríamos ao mesmo tempo. Divertia-me. (…) Momentos de fazer teatro, de ouvir histórias. Aquilo era maravilhoso. (…) Foi um bocadito complicado, mas isso passou. Isso a primeira vez é como tudo” porque em grupo “conseguíamos ultrapassar tudo, passávamos tudo por cima e interessava era a atividade”. Além disso, as formadoras que via “como minhas filhas (…) foram sempre excelentes. Sempre incentivaram o grupo”. O contacto com as bibliotecas municipais levam-na a fazer distinções e a realçar a sua preferência – “a de Ílhavo como era aqui mais perto e era onde a gente representava foi a que marcou mais. (…) Ali nós convivemos. Tivemos atividades ali. Foi muito diferente do que nas outras. (…) Passámos ali tão bons momentos”. A formação prática em contexto de trabalho no final do curso permitiu-lhe conhecer distintos espaços da instituição onde esteve a desempenhar diferentes funções que lhe permitiram aplicar conhecimentos, mas também lhe alargaram os horizontes. Brincava com as crianças, saltava à corda, jogava ao ringue, jogava à bola (…). Eu contava-lhe histórias a brincar, rebolávamos pela relva, era uma garota autêntica mais elas. (…) Sentava-se e começava a ler uma história, a imaginar histórias (…). Não tive dificuldades nenhumas em integrar nem na parte dos idosos. (…) Mas a minha parte ali foi mais nas limpezas e mais a parte de lavandaria. Foi limpeza na igreja, foi limpeza no salão onde elas estão no centro de dia e… era a fazer limpeza nos quartos. Continuar a estudar a partir de agora está fora de questão para Lúcia porque “não compensava” e considera que deve dar a oportunidade a outras – “já estou daqui a mais a ir pra reforma e eu acho que é melhor dar chance a raparigas novas porque pra mim já não vai valer nada. (…) A minha vida está feita, agora eu ganho pr’ o dia a dia”. Mas tem feito pequenas formações relacionadas com o seu trabalho – “já fiz a formação de bombeiros, já fiz a formação de cuidados básicos de saúde, já fiz a formação das higienes dos idosos”. A notícia da abertura do curso EFA apareceu em 2007 quando Andreia se viu desempregada, por isso decidiu arriscar e “tentar fazer ao menos o 9.º ano” e para isso procurou saber, desde logo, se tinha equivalência à escolaridade que fizera na Venezuela. 320 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias O ambiente da formação e o contacto inicial com o grupo “ao início foi assim um bocadinho esquisito porque eram todas diferentes umas das outras”, até porque considera que sempre foi insegura, mas esforçou-se para alcançar o objetivo “que era tirar o 9.º ano e tirar o curso” e sempre se sentiu incentivada pelos formadores. No início do curso “era uma dificuldade porque não sabíamos por onde começar, mas depois quando íamos, encarreirávamos e era tudo sempre a andar”, mas considera que apesar das suas dificuldades na escrita melhorou “um bocadito a escrita e a leitura” – “No início (…) não sabíamos o que é que estávamos pr’ali a fazer. Nem sei. Líamos tudo corrido, nem parávamos, mas depois quando fomos entrando mais no curso (…) começámos todas a entrar nas histórias. (…) Acho que evoluí”. Nessa altura apercebeu-se da forma como contava as histórias ao filho e achou que tinha de fazer algumas alterações porque “Ele não se entusiasmava. (…) Depois quando começou o curso, eu comecei a dizer… afinal as histórias não se leem assim. Temos que fazer assim e assado. Aí era mais saber quais eram as personagens, o que é que faziam”. Além da leitura de histórias, fez também em casa outro tipo de leituras, mais individuais – “começaram a falar que o livro era interessante e começámos todas a querer ler o livro. (…) Foi mesmo a curiosidade de saber mesmo onde é que o livro acabava, do que é que o livro estava a falar realmente”. Até esse momento nunca entrara numa biblioteca, mas também nunca teve a curiosidade de conhecer, embora imaginasse “um espaço novo, cheio de livros (…) a biblioteca era só livros e já estava”. Descobriu, porém, algo diferente em todos os locais que visitou – “cada uma é diferente da outra. (…) A de Ílhavo é diferente da do Porto. (…) Gostei da hora do conto. (…) Comecei a ver, nas bibliotecas também há contos, também vem pr’ aqui ver filmes, vem ver televisão”. Naquele espaço e durante a hora do conto voltou a sentir-se criança “porque…em criança nunca tinha visto”. Durante a formação prática em contexto de trabalho considera que não aplicou muito os conhecimentos que adquiriu porque as atividades já estavam programadas – “eu dançava ou cantávamos ou sentávamos todas em roda…”−, e devido aos seus problemas de gravidez teve de ter certos cuidados. No final do curso ainda pensou avançar para o 12.º ano, mas esse pensamento acabou por não se concretizar – “estive naquela pra ir, mas foi na altura também que eu 321 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias estava de baixa. Do curso ainda andei à noite a fazer uma formação de informática (…) meio ano. Eu e o meu marido. (…) Entretanto (…) virei-me pr’o trabalho”. Embora no Canadá Manuela tivesse concluído o 10.º ano, não tinha qualquer documento que o comprovasse e “não quis incomodar as pessoas, perder tempo do trabalho deles pra ir buscar”. Como tal inscreveu-se no curso EFA “na fase que tinha saído do negócio” e fê-lo porque “tinha ouvido falar que andavam a tirar o 9.º ano e (…) mal dos males “ ficava com “o 9.º ano daqui” já que estava em casa, mas fazia-lhe imensa confusão como é que em tão pouco tempo tinha o 9.º ano. O marido gostou da ideia porque sempre quis que ela concluísse o 12.º ano. No início sentiu-se “outsider” pelo facto de vir “de fora, por não saber muito bem com quem é que estava a lidar”. Pela experiência que teve no Canadá a cuidar de crianças nos módulos profissionalizantes “havia muita coisa, muita coisa que até já sabia e fazia inconscientemente. (…) Também tive um pouco de formação quando foi pra tomar conta dos meninos”. Durante a formação houve sempre uma preocupação que se prendia com o “medo do comentário” dos outros, medo de enfrentar público quer fosse a ler, a representar ou qualquer outra atividade. Quando pensa nas atividades em torno da leitura recorda-se da Centileia, mas diz que “a ideia até gostei só que naquela altura como ainda não estava pr’ aí virada… e depois eram as coisas de casa, tinha a menina pequenina”, que faziam com que não tivesse tempo para disponibilizar para a leitura. Entrou pela primeira vez numa biblioteca em Portugal durante o curso EFA B3 e diz ter gostado da experiência. Na formação prática em contexto de trabalho aplicou alguns dos conhecimentos que adquiriu ao longo da formação em sala e contou também histórias às crianças – “brincadeiras já a gente faz, até com os nossos. Nesse ponto estava à-vontade. Agora ler, claro. Imagine se a gente não tivesse feito estas atividades como a gente fizemos e da forma que você nos tinha…“. Meses mais tarde, ainda em 2008, inscreveu-se num curso EFA NS, que lhe dava equivalência ao 12.º ano: “se eu não tivesse gostado mesmo do 9.º também não tinha ido para o 12.º, não”. Contudo, acabou por se desiludir com o curso, o grupo e a equipa formativa −“Não gostei do ambiente em si. (…) Houve uma altura que eu pensei desistir. (…) se o ambiente do 12.º fosse o do 9.º o 12.º não fazia. Isso lhe garanto que não fazia”. 322 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Joana estava a trabalhar nas obras quando soube do curso EFA B3 e hoje agradece ter-lhe surgido esta oportunidade porque “estava farta de obras até aos olhos”. Apesar disso não deixou de ser complicado no início porque não estava a ver-se novamente na escola, algo que ela nunca gostara e classifica como um “martírio”. Todavia, o filho, que aquando do início do curso entra para o 1.º ano do ensino básico, incentiva-a bastante, a ponto de Joana dizer: “eu sou pilar dele e ele é o meu pilar”. Considerando as dificuldades sentidas à partida e as aprendizagens que foi assimilando, esta formação foi uma mais-valia, até mesmo uma vitória no seu percurso. Aquele curso foi uma das melhores coisas que me apareceu no percurso de vida porque ajudou-me bastante. (…) Autoconfiança. (…) Preencher um papel estou mais à-vontade. Antigamente preencher um cheque por exemplo… (…) autoestima. (…) Tenho certas dificuldades. Não, é mais a maneira de exprimir-me. Cheguei onde queria chegar, que é o 9.º ano que era o que eu queria também. E consegui bastantes coisas com o 9.º ano. (…). Já sei mexer no computador, que eu não sabia (risos). Inglês pouquinho, (…) A língua portuguesa não se fala então, a questão da escrita, da leitura. Devido a uma influência acentuada da língua francesa, Joana sentiu entraves nas atividades que envolviam a leitura, em particular a leitura em voz alta porque se assarapantava “um bocadinho com medo de gaguejar”, situação que procurou superar paulatinamente, com persistência (“tive de treinar, li muito em voz alta. Parecia uma tola lá em casa a ler”), e o apoio incondicional do filho em casa – “ele obrigava-me a ler as histórias. Eu tinha que ler as histórias em voz alta, que era uma grande dificuldade pra mim. Ele muitas vezes dizia-me assim «(…) Lê devagar que tu queres ler tudo e comes as letras todas»”. Além disso, inicialmente “lia tudo seguido e muitas vezes lia, mas não conseguia perceber o que eu lia por causa de não fazer as pausas e estas coisas”. Quando decidiu começar a ler para além dos livros de histórias “era uma obrigação (…) porque tinha que ler pra encher a Centileia”, que era a “mascote dos livros” delas. Não obstante, essa obrigatoriedade foi-se dissipando: “Depois os dois livros (…) acabei por os ler por a minha iniciativa. Aí está, eram histórias de vidas reais, por isso é que eu gostei mais. (…) Fiquei com a curiosidade da história, de ler. Gostei, gostei dos livros”. Entrar numa biblioteca para Joana era, de certo modo, uma novidade, pelo menos em Portugal. Diz ter gostado da experiência e faz um paralelismo com aquilo que 323 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias conhecia e lembra em França, asseverando que “estas de hoje em dia são mais claras, mais arejadas, muita luz e depois outras atividades que metem no meio, outras coisas que fazem no meio. Torna-se engraçado. Cativa mais. Cativa muito mais, sem dúvida”. Na formação prática em contexto de trabalho concretizou uma multiplicidade de tarefas na instituição que a acolheu – “Contei histórias, fiz umas aranhas, com um copo de plástico (…). Dei uma ideia pra eles fazerem para o dia do Pai. (…) pintava, desenhava ou recortava ou brincava lá fora se for preciso simplesmente com eles à bola”. Gostava de fazer o 12.º ano, se possível na área de Geriatria porque “tendo a prática com idosos, gostava também de ter a teoria”. Chegou a iniciar à noite com a duração de 3 anos a vertente profissional, mas foi interrompido e não teve continuidade. Quando Ana soube do curso EFA B3 “não pertencia ao Centro de Emprego porque trabalhava por conta própria” e encara a sua ida para o curso como “um voto de confiança” e que por isso “não podia desistir”. Deparou-se com algumas dificuldades, que procurou superar, durante o curso pelo fator novidade também – “organizar aquelas palestras (…) era mais complicado. Porque exigia (…) muita personalidade, muita etiqueta (…) Aprendi muitas coisas que não sabia. (…) Apanhei um bocado de confiança também em mim e depois também nas pessoas, nos formadores”. Afinal, “há uma primeira vez pra tudo”. O módulo de LC foi um dos que lhe “metia mais medo”, mas “ajudou a ultrapassar muitas coisas e a perder o medo”. Aliás, defende que aprendeu a ler porque antes disso era “só a história, não era viver o momento da história” e isso faz toda a diferença. Alvitra que leu apenas um livro até ao fim e que fez aumentar a Centileia, embora a tenha confrangido e acabou por deixar algumas marcas – “Eu até já me custava ler aquele livro… que chorei tanta vez (…) Aquilo era tudo tão… traumático naquele livro. Não tentei outro”. Entrou pela primeira vez numa biblioteca aquando do curso e imaginava até então aquele como “um sítio de livros, onde você possa estar a ler descansadinha, calmamente (…) não imaginava nada daquilo” e estar na hora do conto fê-la sentir-se criança e ao mesmo tempo aprender a ver o outro lado das histórias – “senti-me muito mal, então não sabia nada contar nada daquilo (risos). Ela ali cativava as crianças. Senti-me criança”. 324 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Na formação prática em contexto de trabalho esteve com as crianças “de manhã, depois ia o autocarro buscá-los pra escola e deixá-los. Depois quando vinha às vezes tinham lá uns desenhos, recortava, fazia aquelas coisitas, depois punha as mesas, limpava por lá. Depois à tarde tomava conta dos meninos do ATL”, mas também com os idosos e essa foi a parte mais complicada – “a primeira vez que eu fui lavar um idoso… custou tanto… parecia que estava pra morrer”. Inscreveu-se no 12.º ano, mas como começou logo a trabalhar desistiu. Conquanto, gostava de um dia continuar, mas “às vezes é complicado. Depois de um dia de trabalho…”. Quando surgiu o curso EFA Catarina não pensou “em nada porque estava em casa desempregada” e era algo que tinha de fazer “pra ocupar o (…) tempo”. Considera que o seu desempenho até foi “bom, apesar das dificuldades” e diz ter pensado mesmo em desistir, mas a “força de vontade de ter o curso e de acabar o 9.º ano foram mais fortes”. Quando começou a contar histórias “nem pausas fazia. Nem pontos finais nem nada” e à medida que foram saindo para o exterior, num contacto mais próximo com as crianças e alguns adultos “foi um bocadinho complicado” porque não gosta de “ler pras outras pessoas” e havia sempre a preocupação da opinião e crítica dos outros – “mas é que não era só crianças. Também tinha adultos. Se fosse só crianças… (…) as crianças não ouviam os nossos erros. (…) Tinha medo de me enganar”. Com o curso começou a ler um pouco mais, em particular os “livros de Paulo Coelho” porque “gostava das histórias” e isso permitia-lhe aumentar a Centileia – “Achava graça pôr lá as rodinhas. E então quanto mais lia, mais rodinhas lá punha, mais rodinhas podia lá pôr”. Porém, está patente no seu discurso o sentido de competição. Entrar na biblioteca municipal acabou por ser uma novidade porque desconhecia as “bibliotecas que tinham animadoras a fazer… animação. Pensava que era só livros, ir buscar, para ler lá, trazer…” e voltou a sentir-se “à escola primária. Um bocado”. Durante a formação prática em contexto de trabalho “já lia histórias, já ensinava como é que deviam fazer, já fazíamos várias coisas”. Quer fazer o 12.º ano, mas afirma que nesta altura é complicado e não foi ainda fazê-lo em horário diurno porque tem as duas filhas. 325 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Quem inscreveu Daniela no curso EFA B3 foi o pai do filho, na altura companheiro, porque sabia que ela “gostava de ter um curso que fosse lidar com crianças”. Contudo, teve um percurso atribulado e a certa altura pensou mesmo desistir – “via as outras e havia disciplinas que eu não entendia mesmo nada. E as outras entendiam tudo (…) Eu não entendia mesmo nada. Eu pra mim era chinês praticamente”. Daniela, que sempre foi “aquela pessoa negativa” paulatinamente foi-se entrosando no grupo e com a equipa formativa que revelaram “dedicação e paciência” e agora sente-se “com orgulho de ter o 9.º ano, que era o que [lhe] pediam, e compreender agora muitas coisas que eu não compreendia na altura ”, mas salvaguarda que para ter chegado lá a sua “base, suporte” sempre foi Lúcia. Assevera que do mesmo modo que sempre gostou “de ver assim aqueles filmes que dantes davam na televisão, principalmente aqueles à moda antiga” também gostou e começou “a ler aquele livro e (…) a sentir um entusiasmo tão grande” que o leu até ao final. Contar história causava-lhe uma maior insegurança e nervosismo “talvez porque tivessem passado tantos anos e começasse a gaguejar ao ler. Já não estava adaptada a nada” e isso fazia com que se sentisse “inferior aos outros”. A imagem que tinha das bibliotecas era de certo modo semelhante ao espaço de um hipermercado, tal como ela salienta: “O que eu não sabia era o que era mesmo uma biblioteca por dentro. Pensei que fosse assim um… um exemplo, assim como o Jumbo, mas diferente”, mas gostou da experiência e a primeira vez que lá entrou “parecia que estava noutro mundo”. Depois de ter concluído o 9.º ano ainda pensou “muitas vezes” em voltar a estudar, mas “agora não”. Põe mesmo em causa as suas capacidades e salienta que agora tem o filho, a sua prioridade, e que este já lhe dá muito que fazer. Foi através do Centro de Emprego que Beatriz soube do curso EFA e se inscreveu e até ter a confirmação que integrava o grupo “andava muito ansiosa”. Porém, esta ansiedade contrasta com o “pânico” posterior quando começou a ver as disciplinas e achou que apesar de querer muito não ia conseguir, o que a deixou um “bocadinho pra baixo”. Com o desenvolvimento das atividades em torno da leitura a partir de LC, refere que apanhou “logo o gosto pela leitura”, chegando mesmo a surpreender-se consigo até em casa com a filha mais nova. Começou a ler romances, um após outro, e considera 326 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias que foi “aquele bichinho que nasceu ali dentro (…) e depois despertou e houve sempre um incentivo” e “gostava tanto que ia lendo e aquilo (…) já não era nenhuma obrigação”. A leitura passou a ser para ela algo que lhe dava “prazer”. O contacto com as bibliotecas durante o curso, mormente a de Ílhavo e a hora do conto, foi uma experiência positiva que lhes abriu portas e se tornou num “exemplo” porque “a maneira como ela contou a história” fez com que elas interagissem e ela “estava numa criança autêntica” e tornou-se “uma mais-valia” e foi “enriquecedor”. Não deixa de salientar a importância da formação em sala que permitiu que a formação prática em contexto de trabalho tivesse sido “tão natural que parece que já fazia aquilo há muito tempo”. Estava na expectativa de arranjar trabalho, mas deixou “essa ideia um bocadinho de parte” quando teve a possibilidade de avançar para o 12.º ano, com o intuito de obter “melhores condições de trabalho”, conferindo-lhe “mais oportunidades de entrar nesta área”. Desiludiu-se a todos os níveis e pensou mesmo desistir, mas esforçou-se para chegar ao final com sucesso e agora sente-se orgulhosa. Sofia inscreveu-se no curso EFA “graças ao (…) marido” que achava que ela não tinha “escolaridade nenhuma. Ao menos que tirasse o 9.º ano”. Porém a sua insegurança, a baixa autoestima e os problemas do dia a dia nem sempre facilitaram o seu percurso, tendo ela até pensado em desistir, apesar dos incentivos dos formadores – “Pra mim era tudo complicado (risos) porque era uma burra. Pra mim tudo metia obstáculos (…) Ao princípio tudo correu muito bem. Pelos meios correu tudo muito mal. Tanto que eu cheguei a pontos de querer desistir”. Revelava dificuldades na leitura e na compreensão daquilo que lia – “havia certas palavras que eu lia e que pra mim diziam-me outras coisas. (…) Achava melhor a leitura das outras que a minha (ruído). A minha leitura comparada às outras era muito fraca”. Fez duas tentativas para ler um livro, mas foram infrutíferas – “ao princípio ainda começava com… vontade. Mas depois eu já não percebia nada daquilo. A história em si… não era confusa… (…) uma certa parte o livro já não me dizia nada ou também porque não gostava de ler”. Das bibliotecas que visitou durante o curso EFA B3 gostou mais da de Ílhavo porque “era tudo novo, tudo fixe, tudo giro, os livros estavam bem organizados”. Sobre a formação prática em contexto de trabalho diz: “contei a mesma história, aliás, eu não contei. Ela contou a história e eu li (risos). Eu acho que os miúdos não 327 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias gostaram muito da minha maneira”. Assevera que inicialmente sentiu “um bocado de medo”, também porque exigia mais responsabilidade, mas agora sente saudades. Não pensa sequer em voltar a estudar tendo em conta todos os acontecimentos que se foram desenrolando na sua vida e pela imagem que tem de si – “É que eu sou um bocado burra. Não tenho cabeça pra estudar. Aliás, não é talvez ter cabeça pra estudar. Tudo que eu passei… desde pequenita… e esta tragédia que houve agora não… não falo em estudar mais”. Lara surpreendeu-se quando soube que tinha sido selecionada para o curso EFA B3 porque achava que havia “lá gente assim superior” a ela. Quando olha para o seu percurso ao longo do curso salienta que “nunca imaginou que fosse isto”, idealizava algo semelhante à escola primária em que fosse “ali marrar nos livros e estudar”, mas revela que “tinha dificuldades n’ algumas coisas, noutras nem tanto. (…) Havia disciplinas que tinha, em certas matérias tinha”. Porém, realça todas as aprendizagens que adquiriu ao logo desse tempo – “Aprendemos muita coisa. Lá está, nunca pensei que fossemos tratar de assuntos como tratámos… da violência, da saúde, essas coisas. Nunca pensei que fosse… nesse sentido”. Não deixa de salvaguardar que nessa altura começou “a dar um bocadinho mais de atenção” a si e ao curso e crê que os seus problemas conjugais podem ter vindo um pouco de tudo isso. Olhando à distância para o módulo de LC, refere “depois comecei a interessar-me mais pela leitura que li aquele livro A lua de Joana, que me interessou bastante. Agarrei no livro, comecei a gostar (…) Comprei um quando fomos à biblioteca a Ílhavo”. Contudo, acabou por não dar continuidade a essa vontade, pelo menos nas leituras individuais – “Nunca mais peguei em nada. Não gostei muito porque não estava entender muito bem o livro”. Pensando nas histórias que contou ressalva que se sentia “um bocadinho com vergonha de estar a ler assim pra tanta gente e… talvez também de não se estar a ler bem… a postura, o saber ler, o saber interpretar as personagens”. Entrou pela primeira vez numa biblioteca aquando do curso e aquilo que sentiu foi “Ai, tantos livros, meu Deus! Que coisa! Mas gostei. Acho que gostei mais da do Porto, da Almeida Garrett” e aquilo que a seduziu ainda mais foi a “parte da história (…) a senhora soube contar muito bem a história e fazer a personagem (…) a maneira como ela interpretou, como ela se pôs dentro da personagem”. Houve dois momentos que a fizeram pensar em desistir: o primeiro na formação em sala quando foi obrigada a faltar devido ao facto de o filho ter adoecido e o segundo, 328 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias de forma mais proeminente, durante a formação prática em contexto de trabalho, mas reconsiderou porque depois daquele percurso estava muito perto do final. Inscreveu-se noutro curso “quando surgiu a oportunidade”, mas não foi selecionada. Entretanto o “ritmo de vida se calhar não dá” porque o elemento mais novo da família “ainda é muito pequenino e precisa de muita atenção”, mas gostava de “acabar até ao final, até ao 12.º”. Susana viu um cartaz da abertura do curso EFA na Junta de Freguesia e resolveu inscrever-se, mas nunca pensou “ser selecionada porque… de tantas pessoas algumas tinham que ficar pra trás”. Tinha naquela altura a ideia “que era uma escola como… a C+S (…). Como é que num ano e meio a gente podia dar 3 anos. Fazia-me assim um bocado de confusão (…). Pensava que ia dar o que eu aprendi no 7.º e no 8.º ano ”. Considera que aquilo que aprendeu, algumas delas que nem sequer imaginava ou sabia lidar, lhe permite agora ajudar mais as filhas e assevera também que “sem essa formação nunca entrava no trabalho que estou”. A partir de LC manteve um contacto mais próximo com a leitura e salienta que “lia mal (…) a gente lia de uma maneira que não tinha… não dava vida à história… e no fim a gente líamos a história e a história parecia que chegava ao fim num instante. O entusiasmo era muito”, salvaguardando que inicialmente “não chegava a entender e depois… estava lá, mas a cabeça não estava lá”. Além das histórias, leu a partir daí um livro que comprou porque o nome lhe chamou a atenção. Imaginava a biblioteca “diferente, mais pequeno, não tinha aquela luz da biblioteca mesmo”. Salienta que a parte mais entusiasmante na visita à biblioteca foi o momento em que lhes foi contada a história e este contacto “abriu portas porque a gente a aprender é que consegue… ser diferente”. Na formação prática em contexto de trabalho não teve quaisquer dificuldades e aproveitou também para lhes contar histórias. Chegou a inscrever-se no 12.º ano, mas desistiu porque naquela altura tornava-se complicado conciliar o tempo para as filhas e o estágio que estava a fazer. Não obstante, realça “dentro de mim acho que ainda não desisti. Vamos lá ver”. Carolina inscreveu-se no curso EFA B3 “muito pela Constança” e achou que se “tinha de arriscar tinha de arriscar tudo” naquele momento e encarou aquela como uma “grande oportunidade”. 329 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Considera que o tempo da formação foi muito positivo, embora veja o seu percurso com oscilações (“Houve alturas que me corria melhor, houve outras que me corria pior”), com o aparecimento de um “bicho de sete cabeças” que depois ultrapassava. Salvaguarda que “houve uma data de coisas que (…) trabalhámos todos muito e que sem os formadores não teria sido possível”. Quando retrocede no tempo e pensa na leitura há memórias que brotam: “Lembrome do ler a correr, lembro-me de me partir a rir da gente todas a ler a correr (sorriso rasgado), parecíamos umas tolinhas. Ia tudo apanhar o comboio. Nem parava pra respirar”, mas estas memórias contrastam com outras que ocorrem posteriormente – “lembro-me do tempo antes a preparar a história também. (…) Se calhar era o sentirmo-nos outra vez (…) outra vez crianças. O entrarmos mesmo na história, o toque com o livro, como é que o livro podia fazer tanta coisa”. Para além das histórias, recorda-se da troca de impressões com as colegas, em particular com Manuela e Beatriz, acerca de alguns livros. Foi deixando “as leituras mais de parte” quando se envolveu “nas histórias, pela ocupação”. O contacto com as bibliotecas permitiu-lhe ter uma opinião diferente de todas e fazer recair a sua preferência pela de Ílhavo pelas “cores. Tinha muitas cores”, mas contribuiu também para ela ter uma perceção diferente daquele espaço e da leitura. Depois foi quando fomos à biblioteca. Acho que isso também foi muito importante. De ver como é que elas trabalhavam, de ver como é que elas faziam. Uma biblioteca não é um caixote com livros que só estão lá arrumados em sítios que ninguém percebe. Pronto, foi o juntar de tantas peças que fez realmente pensar que não é só ter um livro e blablabla. Como a gente vê na missa, não é só assim. Mas que havia coisas que… que podia ser muito mais giro, muito mais, até aquelas histórias assim que nos dizem tão pouquinho podiam surgir coisas tão engraçadas. Na formação prática em contexto de trabalho “tentava sempre pôr em prática (…) os contos” e conseguiu “ter mais facilidade em ter ideias para trabalhar” com os miúdos. Avançou para o 12.º ano porque achou que “se tinha conseguido estava numa boa altura de continuar e concluir o 12.º também” e acabou assim num curso EFA NS de Logística, também com Constança. Batalhou e concluiu o 12.º ano em 2010, o que lhe permitiu deixar de lado o sentimento de inferioridade que a acompanhou durante alguns anos. Gostava de continuar, mas falta-lhe a “coragem para… avançar assim pra um projeto”. 330 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Constança entrou no curso EFA B3 com Carolina e com ele começou a sentir-se “mais confiante e a conseguir alcançar alguma coisa”, o que lhe permitiu sentir-se também “mais dinâmica, mais ativa” e perceber que tinha outras capacidades, surpreendendo-se com a sua evolução enquanto pessoa. A exigência consigo mesma foi, por vezes, uma barreira difícil de transpor – “foi complicado (…) a teoria eu percebi”. Reconhece que houve um envolvimento nas atividades, nas histórias, mas desligou dos hábitos de leitura que tinha quando trabalhava, sem saber porquê. Sentiu-se vaidosa com a inscrição na biblioteca de Ílhavo, cujo espaço achou “espetacular” assim como a hora do conto, e afirma que o contacto com diferentes bibliotecas e o trabalho delas permite “fazer um conjunto de coisas muito giras”. Concluiu em 2010, juntamente com Carolina, o 12.º na área de Logística, através de um curso EFA NS. 6.1.5. As baixas qualificações e o emprego Aqui em Portugal sentia dificuldades porque não sabia escrever o português e falar bem o português, caldeava uma mistura (Andreia, 36 anos) Tinha aqueles livros do Paulo Coelho e não os lia. (Catarina, 35 anos) Os 54 anos de Lúcia são preenchidos por muito tempo de trabalho, situação visível no seu discurso quando retrocede até à infância. Desde os 9 anos que trabalha, ainda que nas férias inicialmente. A partir dos 11 anos, depois de abandonar a escola, trabalhou numa fábrica de madeiras, depois numa de refrigerantes e ainda numa fábrica de estofos – “depois mudei e fui para outra e doutra fui para outra e andei a saltar. Antigamente saía de um patrão e já tinha outro com os braços abertos”. Conta ela que “quando andava a trabalhar todas tinham a 4.ª classe” só ela “tinha o 6.º ano. (…) Acabava por ter… não valia muito, mas pronto…”, mostrando uma desvalorização das habilitações que tinha porque com menos podia fazer o mesmo. 331 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Quando nasceu a filha mais velha “andava o dia fora”, mas quando esta tinha 7 meses, Lúcia começou a trabalhar numa fábrica de azulejos, onde permaneceu até ir para a Venezuela, onde o marido trabalhava já na construção. Aí, como não queria estar parada e não “gostava de ficar fechada em casa”, arranjou a “concerge”, onde esteve ao longo de 3 anos – “um edifício de 12 andares. Limpava de alto a baixo todos os dias. Tirávamos os lixos… o jardim não, o jardim tinha um jardineiro. Mas a agente tinha que regar o jardim”. Posteriormente, ela e o marido tiveram uma padaria, que acabaram por vender antes de voltar a Portugal porque “como andava mais na rua via as coisas”. Quando regressou a Portugal esteve dois meses sem trabalho, mas a partir daí esteve como operadora de caixa e repositora num supermercado, de onde acabou por sair porque “pagavam muito mal e estavam a explorar”. Nessa altura ficou desempregada e acabou por ficar como “ajudante de motorista” do marido. Voltou ainda para a fábrica de refrigerantes onde estivera de solteira, onde permaneceu durante “16 anos seguidos”. Após o fecho da fábrica viu-se numa situação de desemprego que durou apenas 2 meses até entrar no curso EFA B3. Andreia na Venezuela trabalhou ainda na padaria dos pais. Quando regressou a Portugal foi “trabalhar como ama (…) era ama nas horas vagas porque resumindo era mais ama de casa. Fazia tudo e mais alguma coisa” cerca de um ano. Apercebeu-se nessa altura que as colegas da sua idade “só tinham completado a 4.ª classe, 5.º porque antigamente era assim…só chegavam àquele…”. Além disso nunca lhe perguntaram qual a escolaridade que ela tinha. Esteve depois numa fábrica de louça, na secção do “gesso”, onde permaneceu durante 6 anos até nascer o filho, altura em que foi para casa dois anos. Após esse tempo regressou à mesma fábrica, mas por pouco tempo porque saiu por iniciativa própria e foi para uma fábrica de refrigerantes, onde esteve mais seis anos e considera que o facto de mudar de emprego lhe permitiu ir “conhecendo e aprendendo coisas novas”. Em 2007 estava desempregada após o fecho da fábrica onde trabalhava quando surgiu o curso EFA, que a levou a pensar no facto de “hoje em dia não se consegue um trabalho sem ter o 9.º ano. Agora pedem tudo com o 9.º ano, pelo menos fazer o 9.º ano”. 332 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Manuela ainda no Canadá, após o 9.º ano, na altura com 13 anos, “estudava e fazia um part-time, era a servir num lar de idosos”. Quando deixou de estudar ainda esteve três meses em casa sem conseguir encontrar trabalho. Entrou depois para uma “fábrica de peças de carros” onde a mãe trabalhava, onde laborou durante cinco anos até engravidar porque “sabia que não tinha o 12.º (…) não podia ir pra outro lado”. Aí saiu e ficou em casa com a filha por opção de ambos. Aproveitando o facto de estar em casa com a filha “tomava conta de 3 meninos. Eram 2 irmãos e um menino filipino” e “trabalhava diretamente com uma agência (…) praticamente até vir embora. 4 anos praticamente”. Depois de regressar a Portugal, começou a trabalhar três meses depois numa fábrica de cerâmica, mas acabou por vir-se embora devido a uma série de problemas. O regresso a Portugal e essas situações fizeram que ela acabasse por se deparar com uma depressão que a afeta desde então. Posteriormente esteve “5 anos praticamente” noutra empresa, sendo que 2 deles foi como caixa − “senti-me mais estrangeira no meu país, que sou portuguesa, do que quando era lá. Eu aqui… cheguei a trabalhar aqui… escondida, num curral com ratos”. Iniciou entretanto um negócio em sociedade com uma amiga numa loja de venda de roupa de crianças, que não correu bem e acabou por vender a sua parte porque “aquilo não dava. Já há meio ano que não recebia ordenado. A coisa começou-se a complicar” e nessa altura surgiu o curso EFA. O primeiro trabalho de Joana começou com um estágio que fez associado a um curso profissional que realizou na área das vendas e trabalhou “num prêt-à-porter, a vender roupa durante um ano”. Fez depois também um estágio numa padaria e acabou por ir ficando por lá. Saiu quando regressou a Portugal e nessa altura andou “um ano a acompanhar o (…) marido nos camiões internacional porque ele não queria [deixá-la] sozinha em casa”. Acabou por se fartar dessa situação e arranjou um trabalho, começando pela limpeza numa das Misericórdias dos concelhos limítrofes. Mais tarde substituiu “pessoal na creche”, esteve depois nos lares, esteve na “copa”, esteve no “apoio”, acabando por “fazer um pouco de tudo naquela casa”. Após o divórcio trocou o apoio naquela instituição pelo de outra mais próxima de casa, devido à dificuldade de deslocação. Decidiu sair devido a problemas com uma 333 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias colega e aí foi “pr’as obras. Depois das obras surgiu o tal curso”. Acrescenta: “fui pr’as obras porque não tinha donde ir. (…) Eu sofri naquelas obras, meu Deus! Acarretar aquelas caixas de azulejos…”, onde esteve 6 meses. Ana começou por ajudar a mãe nas terras em que “fazia tudo… batatas, milho, couves, sei lá… de tudo um pouco. Na altura tinha duas vacas, era a ordenha” e aos 16 anos arranjou “um trabalho num restaurante” onde começou a trabalhar e ao final do dia ainda ajudava a mãe. Quando nasceu o seu filho deixou o restaurante e ficou num café que era do seu sogro, onde permaneceu até entrar no curso EFA. Catarina começou a trabalhar aos 18 anos “numa fábrica de louça durante 2 anos”, por turnos, em que a sua função implicava estar “numa máquina de meter louça pra lavar”. Depois disso ficou desempregada ainda durante algum tempo, até ir para um hipermercado “6 meses a fazer só férias”. Posteriormente esteve noutro hipermercado 8 meses apenas, mas aí foi ela “que não quis renovar o contrato” porque os horários prolongavam-se até tarde e ela “queria ter filhos”. Depois de ter a filha mais velha esteve em casa. Tanto que em 2007 estava em casa, numa situação de desemprego e decidiu que “em vez de trabalhar estava ali”, tendo sido encaminhada pelo Centro de Emprego onde estava inscrita. Aí já se apercebera de algo que diz claramente: “comecei a trabalhar não pediam o 9.º ano, mas depois começaram a pedir”. Daniela começou a trabalhar ainda aos 14 anos numa fábrica de “tabuinhas de pôr no chão, de encaixar”, onde já a mãe dela trabalhara enquanto solteira, e que lhe deu “o primeiro mês de ordenado” que a deixou muito contente. Aí permaneceu durante vários anos e acabou por sofrer o seu “primeiro acidente de trabalho” que a deixou “sem a falange do dedo anelar” e com “uma cicatriz bem grande nas costas”. Quando saiu dessa fábrica foi para uma de porcelanas onde já assinou contrato, mas acabou por sair “mais por causa do encarregado”. Quando o pai faleceu estava a trabalhar numa fábrica de louças “de barro branco” e diz que foi onde andou mais anos, mas optou por desistir. Durante o tempo em que esteve desempregada tentou “ tudo e mais alguma coisa” mas impunham-lhe “sempre o 9.º ano” e isso fazia com que ela se sentisse “inferior”. Trabalhou ainda “nas limpezas, a fazer umas horas. Claro, não dava nem pra pagar a água nem pra pagar a luz. Nem o gás”. 334 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Beatriz começou por trabalhar num minimercado, passou também por uma fábrica de cerâmica (azulejos) e nesses locais nunca sentiu “aquela necessidade de estudos” porque as tarefas que desempenhava também não o exigiam. Surgiu entretanto a oportunidade de trabalhar numa empresa de canalizações, onde permaneceu durante três anos. Aí “tinham que fazer muitos orçamentos pr’as obras porque era uma empresa de canalizações e eletricidade e eu sentia-me ali um bocadinho insegura. (…) Fui tendo ajudas que me levaram a esquecer novamente que faziam falta e que podia ter continuado”. Conseguiu um contrato noutra fábrica, mas aí acabou por ficar com “uma depressão muito grande”. Trabalhou ainda para outra empresa, em part-time, onde fazia limpezas e atendia o telefone, “fazia (…) descontos através da fábrica” e “trabalhava na parte da tarde nas senhoras” também nas limpezas. Teve alguns momentos de desemprego pelo meio, mas os últimos acabaram por fazê-la pensar mais na sua situação –“cheguei a um ponto que via que fazia falta, (…) a mim fazia-me falta. Tanto a nível profissional como também pra mim. E com esta coisa… veio o 9.º ano que só arranjamos trabalho… as entidades empregadoras é 9.º ano”. Toda esta mescla de sentimentos em conjunto com uma observação do panorama de emprego levaram-na a redirecionar as suas prioridades – “ouvia já muito essa situação e então foi no Centro de Emprego que eu tive conhecimento do curso”. Quando retrocede no tempo, Sofia lembra-se que ainda em França “depois da escola, havia uma senhora que tinha 2 gémeos e às vezes ia pra lá, quer dizer, não era trabalhar. Ia pra lá estar, passar o tempo com ela” e ela dava-lhe algum dinheiro por isso. Contudo, diz que mesmo a trabalhar começou aos 18 anos a ajudar a mãe “no restaurante onde ela trabalhava”, mas o patrão que ela não estava ali apenas a ajudar, mas já tinha o seu “trabalhito”. Com o regresso a Portugal esteve ainda alguns meses em casa até encontrar trabalho numa fábrica de louça, onde “trabalhava nas máquinas de fabricação de louça”. Daí foi para outra fábrica do mesmo ramo. Após o casamento foi “pra uma fábrica de costura”, mas acabaram por mandá-la embora quando souberam que estava grávida. Depois do nascimento da filha ficou em casa “durante 2 anos por opção”. Após esse período voltou para a fábrica de louças onde trabalhara inicialmente. Com o início das complicações da saúde do marido e as faltas sucessivas, ainda que justificadas, ao 335 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias fim de 3 anos não lhe renovaram o contrato. Ficou desempregada e foi nessa altura “que veio então o curso”. Lara quando deixou a escola esteve “2 ou 3 anos a tomar conta de uma criança”. Só aos 15 anos é que começou a trabalhar numa fábrica de louça e foi aí que conheceu Andreia que também lá trabalhava. Esteve aí 6 anos e despediu-se quando tinha planos para emigrar e juntar-se ao marido. Como os planos não correram da melhor forma, esteve 3 meses para arranjar novamente emprego e voltou para a mesma fábrica. Porém, após meio ano despediram-na porque teve de ficar de baixa por causa de “problemas na gravidez”, gozou a licença de maternidade e quando a filha tinha 18 meses regressou à mesma fábrica onde ficou até completar 3 anos porque “ao fim de 3 anos ninguém fica (…) aos 3 anos tinha mesmo que sair”. Conta Lara que nesse momento continuou “a trabalhar sempre de seguida, não recebi os direitos e assinei por outra fábrica. (…) Depois estive lá mais 2 anos e 9 meses porque engravidei depois dele”, que é agora o filho do meio. Esteve novamente desempregada até o filho nascer e aí iniciou o curso EFA. Susana conta que quando ainda estudava trabalhou durante “umas férias num restaurante e as outras numa pastelaria/ padaria”. Depois de ter abandonado a escola, ainda durante algum tempo “ajudava a (…) mãe na loja” que esta tinha na altura. O primeiro emprego foi como “empregada de bar” onde “estava efetiva, só que as funcionárias eram efetivas, mas mudava de gerência de 3 em 3 anos porque era na Universidade ali (…) em Aveiro”. Por isso acabou por se despedir e voltou para casa e aí começou a cuidar “dos meninos” e da filha mais velha. Quando estes foram para a escola, Susana esteve “ainda a fazer ano e meio de condomínios” e sobre isso diz que “não era o que sempre quis fazer, mas gostava do trabalho”, até porque “foi complicado nos condomínios porque não estava habituada a subir e descer tantas vezes as escadas, mas depois (…) fazia-o bem”. Nessa altura apercebe-se que precisava do 9.º ano “pr’ arranjar trabalho porque em todos os lados que ia (…) o 6.º ano já não (…) valia. Tinha que ser o 9.º”. Carolina viaja no tempo até ao momento em que começa trabalhar, depois de ter abandonado a escola sem concluir o 9.º ano – “Shii… se contar ir pra costura, se conta pra trabalhar… aí não recebia. (…) Foi quando foi pra me casar”. Entrementes começou a trabalhar, depois de assinar contrato, num supermercado, onde “fazia caixa” e tinha um “horário rotativo”. Acabou por sair e foi trabalhar com o 336 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias seu marido na altura no talho deste. A rede de supermercados onde ela trabalhara antes “fez-lhe uma proposta pra ele ir pra lá” e ela voltou para o mesmo supermercado. Acabaram por estar em locais diferentes entre Ílhavo e Aveiro, mas dentro da mesma rede de supermercados. Com as complicações no casamento e o divórcio, Carolina começou “a fazer limpezas em casa de umas professoras”, esteve “um tempo ainda a fazer uns Arraiolos em casa de uma senhora” e foi depois “pr’ Aveiro pra costura”, com um contrato de 6 meses que era para renovar, mas ela decidiu “sair por causa de ir pr’o curso”. Nessa altura, “sentia que valia menos que toda a gente. (…) Naquela altura queria mudar alguma coisa, o que quer que fosse que garantisse um futuro melhor do que aquilo”. Constança diz que depois de ter deixado a escola começou a trabalhar e o seu 1.º trabalho foi “num pronto-a-vestir” em que teve de “aprender tudo sozinha”. Esteve depois numa sapataria e ainda numa loja de noivas e aí viu-se “a fazer coisas que nunca imaginara fazer, de empregada de balcão (…) a ajudante de costureira e não sabia nada de costura”. Independentemente do local onde estivesse começou a ser cada vez mais exigente consigo e sentia que “tinha de fazer bem pra ser reconhecida que estava a fazer bem (…) tinha necessidade de mostrar que conseguia fazer bem”. 6.1.6. Oportunidades profissionais e a presença de um diploma Tenho de anotar o que faço, as horas que temos, o que vamos fazendo. (…) Depois temos que escrever ao fim do dia o que é que aconteceu. (Ana, 36 anos) Hoje se eu estiver a ler qualquer coisa que não entenda já tenho (…) a perceção que não estou a entender nada do que estou a ler. (Daniela, 35 anos) Lúcia considera que o curso EFA B3 que frequentou lhe deu “de caminho vantagem pra (…) arranjar emprego” onde hoje está. Logo após o curso, em 2008, andou nas limpezas – “andava a limpar escritórios de uma empresa”. Porém, afirma que “depois cansava-me muito, inchava-me esta perna muito. (…) Tinha contrato de meio ano, mas vim-me embora aos 3 meses”. 337 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Uma semana depois foi a uma entrevista de emprego e começou a trabalhar numa instituição perto de casa, que neste momento tem apenas a valência de idosos com centro de dia também, tendo efetivado após o 1.º ano, com horários flexíveis, tendo a seu cargo “a limpeza de idosos”, mas também “danço, eu brinco, eu canto com eles”. Andreia quando terminou o curso EFA ficou no “desemprego (…) e de baixa um mês” por causa do aborto. Após esse período andou à procura de emprego e conseguiu um contrato de meio ano numa empresa de produtos de limpezas (“mais uma coisa nova que eu aprendi”). Após esse tempo esteve mais meio ano em casa desempregada, inscrita no Centro de Emprego, sendo depois chamada para fazer um POC na instituição promotora do curso EFA, cerca de nove meses e meio. Aí trabalhou na cozinha, nas limpezas, ajudava a dar de comer às crianças à hora de almoço, distribuía almoços e ajudava na higiene dos idosos, “uma experiência, mas foi muito complicado lidar com os idosos”. Não deixou de procurar emprego durante esse tempo – “Até fui com a Lara. Nós combinávamos e íamos sempre as duas inscrever-nos. Às vezes havia deles que nos fechavam a porta na cara”. Até que a chamaram de uma fábrica de louça – “é dos mesmos patrões do meu marido e donde eu trabalhei. (…) Mas é louça diferente, é de grés, ali é louça normal”. Quando começou esteve a “lavar louça, que é o acabamento” e passou depois para as “prensas”. Confessa que gosta “mais de trabalhar com homens do que com mulheres” e que esta “é uma experiência nova” em relação ao outro tipo de louça que já trabalhou. Desempregada há três meses, Manuela diz que não gosta desta situação, até porque “já começa a ser saturante” e uma mescla de sentimentos acaba por emergir: “uma pessoa já começa a inventar (…) parece que não está a contribuir, tanto financeiramente como… e depois a gente estar em casa, pronto, acaba por não estar a conviver. (…) Já pareço uma velha. Uma pessoa sente-se inútil”. Após ter concluído o 9.º ano fez “uma baixa” de uma senhora. Após o 12.º voltou a ocorrer a mesma situação durante 6 meses. Ainda andou a “entregar currículos” após o terminus do 12.º ano por Vagos e Cantanhede, mas sem sucesso. Após a conclusão do 9.º ano, Joana esteve “um mês em casa”, tempo que aproveitou para enviar currículos. Entretanto, a mediadora do curso EFA questionou-a sobre uma proposta para apoio domiciliário em Aveiro. Conquanto não quisesse muito porque achava um pouco distante “também não tinha nada e não queria ficar em casa”. 338 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Apresentou-se e uma semana depois começou a trabalhar. Assinou contrato e desde essa altura trabalha “com idosos e não só”, mas gosta daquilo que faz. Desde que concluiu o curso EFA, Ana trabalha na instituição onde fez a parte da formação profissional do curso há já três anos, mas trabalha mais diretamente com os idosos do que com as crianças porque “só mesmo na parte das refeições” é que tem contacto com elas. Com os idosos anda “sempre pra trás e pra diante”, vai com eles passear, faz animações e “cada semana tem uma atividade”. Gosta daquilo que faz e aproveita para fazer algumas formações de curta duração na área em que trabalha – “ainda fizemos uma no ano passado. Era o enfermeiro (…) dos cuidados continuados”. Logo depois da finalização do 9.º ano, Catarina esteve em casa “durante um tempo” e depois assinou um contrato com a empresa de montagem de fornos onde hoje trabalha, na secção de fabrico de portas. Aquilo que vai mudando são os seus horários porque trabalha por turnos. Não muito convencida diz que gosta do que faz, mas acrescenta que não tem “outra coisa”, afinal já em 2008 “não esperava muito porque sabia que estava mal pra auxiliar e sabia que nessa área não ia ter. Tinha que ir por outras áreas…”. Daniela ainda esteve “1 ano e qualquer coisa em casa” depois de ter terminado o 9.º ano. Nessa altura ansiava “arranjar trabalho e de caminho na área. Mas nunca consegui. Só que surgiu a oportunidade de eu ir ali pr’ aquela padaria e dali ficar. Ainda não perdi a esperança de conseguir o que quero”. Trabalha na parte do fabrico e, por vezes, também ajuda ao balcão. Enquanto muitas pessoas ainda dormem já ela trabalha porque começa de madrugada, para logo pela manhã haver pão fresquinho. Ainda não regressou ao trabalho desde que o seu filho nasceu, aproveitando ao máximo o tempo de licença de maternidade. Presentemente Beatriz está a trabalhar numa escola – “Estou a tomar conta dos miúdos nas horas dos intervalos. No bloco onde eu estou também faço trabalhos no exterior – ir ao banco, por exemplo, aos correios. (…) Faço a limpeza do local”. Inicialmente fez um 1.º contrato de quatro meses em que percorreu toda a escola e esteve “nos blocos todos”. Com o 2.º contrato já a colocaram num sítio específico “onde havia a falha”. Durante o seu horário de 4 horas matinais tem uma série de tarefas a cumprir. Quando chego faço a limpeza da secretaria e da direção. Depois vem o 1.º intervalo estou com os miúdos. Depois vou à rua, ou ao correio ou à Caixa e assim e depois venho. Entretanto já faz hora do 2.º intervalo. Só são 4 horas também. 339 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Deixo o meu local de trabalho em ordem para a próxima colega que entrar o encontrar limpo e arrumado e venho-me embora. Desde 2010 as suas tardes são ocupadas “na escolinha primária” onde estuda a sua segunda filha, momento em que as tarefas se multiplicam – “Aqui à tarde faço de tudo. Auxilio os professores das AEC’s . (…) Como eles [crianças] têm as AEC’s só estou com eles mais a partir das 5 e meia. Fazemos trabalhinhos, atividades, preparamos depois os dias festivos”. Aí não tem qualquer contrato porque foi para lá inicialmente fazer uma substituição e foi permanecendo. Beatriz é também presidente da associação de pais e como tal há tarefas que recaem sobre ela e que acabam por exigir mais dela, nomeadamente o contacto próximo com a autarquia – “Temos que mandar relatórios para a Câmara de 3 em 3 meses, temos que participar em algumas atividades propostas pela Câmara. (…) Contacto com a autarquia e tenho que dar um bocadinho mais de mim também”. Após ter concluído o 12.º ano esteve ainda em casa cerca de 4 meses e entre o final do 9.º ano e o início do 12.º chamaram-na para trabalhar na instituição onde estagiara, mas abdicou para continuar os estudos. Sofia, depois de ter concluído o 9.º ano e em particular a formação prática em contexto de trabalho “queria continuar”, tanto que chegou a inscrever-se “em todos os ATL’s, em todas as creches”, mas sem qualquer resposta. Deparou-se novamente em casa e foi “buscar o resto do fundo de desemprego. Depois aconteceu o que aconteceu”. Após muita persistência da parte dela, Sofia começou a trabalhar em abril de 2010 numa empresa de máquinas industriais de Vagos e faz a “limpeza de escritórios”, prepara os lanches de funcionários e patrões, vai “às compras, ao banco, aos correios”, durante as manhãs. Esse facto acaba por ser irrelevante porque ela diz simplesmente “eu quero um trabalho pra sair de casa. Eu quero… ocupar-me com qualquer coisa porque eu estar em casa era uma morte”. Gosta daquilo que faz e isso ajuda-a “a passar o tempo, a não ser sempre o mesmo ritmo”. Trabalhar apenas ao longo das manhãs permite-lhe ter a tarde disponível para tratar da sua vida pessoal, por todas as burocracias que tem de resolver com o falecimento do marido, da filha, da casa, do quintal e dos seus animais. No final do curso EFA B3 Lara continuou numa situação de desemprego e entretanto engravidou novamente. Terminou o subsídio de desemprego que recebia e 340 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias gozou a licença de maternidade e no último trimestre de 2010 começou novamente a trabalhar “na mesma fábrica. Sempre na mesma fábrica”, onde assinou um contrato sem termo, o que implica que a qualquer momento “se quiserem mandam-me embora”. As funções centram-se no armazém – “tanto estou a pôr etiquetas na louça, como estou a embalar, como estou a escolher, faço todo o tipo de coisas”, mas desde que entrou nesta fábrica passou pelas “asas”, foi “para o acabamento, depois (…) na vidragem, depois (…) na pintura”. Entretanto, Lara acabou mesmo por sair da fábrica e voltar a uma situação de desemprego. Quando Susana terminou o curso EFA B3 começou a trabalhar de imediato – “eu saí do curso e ao outro dia fui começar a trabalhar”. Desde essa altura até ao presente continua como “auxiliar de serviços gerais”, fazendo um pouco de tudo na instituição – “faço dormitórios, eu estou em sala, eu faço as limpezas todas, todas à creche, eu ajudo na cozinha quando é preciso, eu faço lá tudo”. Está efetiva na instituição desde 2009. Gosta daquilo que faz e considera que o facto de estar neste emprego “mudou completamente a vida. Porque a gente tem horas a cumprir. É diferente que se estivesse em casa”. Carolina “gostava muito de continuar” na área da ação educativa depois de ter concluído a formação prática e o 9.º ano. Surgiu então a oportunidade de “fazer o estágio profissional” e aí ela “quis agarrar a oportunidade”, mas sem desistir da ideia de “conseguir fazer o 12.º porque (…) se conseguisse ir mais pra frente melhor”. Esteve apenas cerca de “3 semanas a fazer voluntariado“ antes de iniciar o estágio e depois 4 meses no estágio, até ter abandonado por alguns desentendimentos com a instituição e com aquele “bichinho de tentar procurar pra fazer o 12.º”. A formação prática em contexto de trabalho após o 12.º ano foi concretizada numa “empresa de eletrodomésticos”, em que estava “na parte comercial, faturação também, de exportações e essas coisas assim”. Concluído o 12.º ano inscreveu-se no Centro de Emprego, foi a várias entrevistas, enviou currículos, tentou manter-se “ativa, à procura de trabalho”, mas mesmo assim ainda esteve em casa sensivelmente quatro meses no início de 2010. Soube através de uma pessoa conhecida que numa empresa de peças de automóveis precisavam de alguém para o armazém e arriscou. Ao fim de três meses de trabalho passou para os quadros da empresa e mudou para o escritório, onde trabalha 341 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias com “tudo o que diz respeito a créditos”. Considera que o “armazém é mais ativo. O tempo passa mais rápido e acaba por ser, pronto, uma coisa mais mexida”, mas gosta também da “responsabilidade que é este trabalho”. Não obstante apercebeu-se que “ali não dá pra crescer” e que acabou por estagnar”. Durante a 2.ª metade de 2011 acaba por ficar de baixa, por tempo indefinido, devido aos problemas de saúde que começam a agravar-se – “forcei mais do que eu conseguia dar. (…) Temos uma escadaria e eu a subir a escada tenho de parar a meio”. Constança teve oportunidade de continuar na instituição onde fez a formação prática em contexto de trabalho relativa ao EFA B3, mas acabou por apostar no 12.º ano. Quando o concluiu foi para o Luxemburgo, inicialmente de férias, ter com a irmã. 6.1.7. O lugar da leitura: o antes e o depois da descoberta de outros mundos dentro dos livros e da interação com a leitura Se calhar não era altura de pegar naquele… no Saramago [Memorial do Convento]. (Constança, 28 anos) Contar não conto. Eu leio a par com ela. Como ela tem dificuldades a ler também (…) ela agarra um livro, ela lê uma página, eu leio outra. (…) Não é eu contar pra ela nem ela pra mim, é as duas. (Sofia, 35 anos) A mãe de Lúcia nunca teve o hábito de lhes contar histórias e ela também não as contou às suas filhas – “eu nunca tive essa oportunidade na infância de ler histórias”. Mas Lúcia lembra-se da leitura que a mãe fazia na altura dos ditados – “só nos ensinava, lia quando era… é assim ditava-nos os ditados em casa. Ela lia às vezes e lianos os ditados”. Nunca tinha entrado numa biblioteca até ao momento em que o fez no curso EFA B3, por isso o que por lá se passava ou fazia era uma incógnita. Mas após a finalização do curso também não voltou a entrar, fica apenas a recordação dos momentos que remetem para esse tempo quando passa junto do edifício – “passar na biblioteca ali lembra sempre os bons bocados que a gente ali passou, os bons momentos”. Embora na instituição levem os idosos à biblioteca, ela não teve oportunidade de ir com eles porque “como vai a animadora não podemos ir nós”. 342 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Não dispensa as suas sopas de letras e o jornal e lê algumas revistas, que por vezes compra – “leio quando vou ao café ou (…) à pastelaria (…) tenho que rever nem que seja só os títulos e depois aquilo que me chamar mais a atenção é que vou ler. (…) É isso e fazer sopas de letras”. Contudo, as suas leituras são feitas fora de casa, no café ou nas pausas no local de trabalho, porque “às vezes nem temos tempo pra isso. (…) Em casa não tenho vagar” porque diz não ter tempos livres. Todavia, não dispensa as suas caminhadas e nos dias de folga divide-se entre o quintal e a casa – “Ainda ontem estive aqui a ler estes livros do Viva Melhor. Gosto de ler, mas às vezes puxa-me mais pra ir fazer isto e aquilo. Cozer roupa (…) ”. Em criança, Lúcia não contava histórias a Andreia, mas esta começou a ter uma postura diferente com o filho, também como suporte para as dificuldades deste na escola – “lia quando era assim os livros do meu filho, da escola ou que pediam pra comprar histórias. À noite íamos pra cama e líamos. (…) Lia eu uma parte e ele lia outra ”. Entretanto, com o terminus do curso deixou de ler histórias ao filho também porque, agora com 14 anos, “não está mais interessado”. Também ela se afastou um pouco da leitura, mormente da leitura de livros: “quando estive em casa ainda pegava nos livros (…) ainda… vejo muito os cd’s, as histórias que fizemos (…) Desliguei um bocado da leitura”. Mas não deixa de ter presente com mais ou menos frequência a leitura informativa: “o jornal… como de mês a mês deixam-me aí um jornal e então leio. Leio o jornal, quando vou assim às consultas ao hospital, compro uma revista pra estar lá entretida”. De uma forma muito simples, Andreia sintetiza a sua relação com a leitura no presente: “em termos profissionais não preciso, em termos pessoais não tenho tempo”. O tempo livre de que dispõe é direcionado para os jogos de futebol do filho, mas também gosta de ver alguns programas de entretenimento na televisão e recorre à internet para fazer pesquisas, ver o e-mail e o Facebook. Durante este tempo ainda foi uma vez depois de ter terminado o curso à biblioteca municipal de Ílhavo com o filho “porque ele pediu pra ir ver não sei o quê”, mas não requisitou qualquer livro e desde então não voltou. A mãe de Manuela também não lhe contou histórias durante a sua infância. Teve contacto com a leitura na escola, mas depois de ter desistido só lia “revistas cor-derosa”. Quando nasceu a filha mais velha, Manuela até lhe contava histórias, mas era “só blablabla” e a reação da filha era “mais ou menos indiferente. Não… não mostrava que 343 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias gostava nem que desgostava”. Não obstante, a partir do curso essa situação mudou – “Não tem nada a ver. Isso até o meu homem começa a fazer os barulhos, os sons e caretas”. Esta situação revela uma influência positiva sobre a família. Quando pensa nas dificuldades que sente em relação à leitura declara que “se for um texto muito mais elaborado, por exemplo, como eu costumo dizer um dicionário mais caro, (…) vejo-me da cor da abelha (…). Agora se for um texto relativamente mais simples não tenho assim dificuldades”. Mas paulatinamente a leitura de romances vai entrando no seu dia a dia, ainda que não seja uma prática diária e é feita de avanços e retrocessos, em que ela tenta perceber o livro, o título, a história que lhe diga algo mais. Foi um que eu comecei-o e não estava a achar piada nenhuma (…) Cheguei aqui e não sei por que razão… acho que houve uns dias que eu depois já não li e eu perdi o fio à meada. (…) Quando andava a trabalhar ainda pescava alguma coisa. Agora é que me dei à malandrice outra vez. Mas sabe porquê? Porque eu também comecei a fazer as fraldas pra Beatriz. (…) Este foi por causa de si. Este (aponta para o livro do topo – A Lua de Joana). Você é a culpada. Aliás, você é a culpada por eles todos (risos). (…) É assim… o que me custa é começar, mas depois de começar o gosto é outro. (…) Não voltou à biblioteca de Ílhavo, onde está inscrita, desde que terminou o 9.º ano – “Não voltei lá. (…) Passar pela biblioteca, buscar um livro pra, passados 2 ou 3 dias ou o que for, ir novamente, aí já ir de propósito pra entregar, não. Por acaso prefiro comprar”. Em França, Joana “lia porque era obrigada a ler”, embora ainda tenha lido “um livrozito ou dois”. Depois de ter deixado a escola e até 2007 “lia às vezes se calhava ver uma notícia, ou o correio lia, mas nada por aí além. (…) Tinha as minhas dificuldades com o português, lia à minha maneira e havia coisas que eu não conseguia entender. Palavras”. Além disso, “escrever era uma desgraça (risos), que não sabia escrever português ou quase nada”. Considera que lê mais depois do curso EFA B3, embora continue a preferir a leitura de histórias mais reais, pensando um pouco no seu percurso pessoal (“Não sei se foi do facto de eu ter a vida que eu tive. (…) Querer saber o que é que aconteceu com outras pessoas. Conforme aconteceu comigo podia ter acontecido com outra. Leio em qualquer lugar”). Gosta de ler o jornal, o “horóscopo também, só por curiosidade, (…) uma revista às vezes (…) Já li livros depois do curso, mas são histórias que já ouvi falar e quero ler isso que fiquei com curiosidade”. Afirma que agora é “mais rica em palavras, (…) agora é outra maneira de falar”, que a leva a sentir-se “mais à-vontade”. 344 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Além disso, salienta que tem por hábito “ir ao Facebook”, “ver os mails” e “quando surgem algumas palavras ou algumas situações de pesquisar qual o significado ou o que é aquilo”. A nível profissional recorre mais à escrita por causa do registo das observações e procedimentos no seu dia a dia e ainda aparecem alguns “erros de ortografia, por exemplo, embora mesmo assim já são muito menos. (…) Na leitura (…) às vezes certas palavras assim mais complicadas a ler às vezes a língua nem sempre rola bem ou pronto, a pronúncia”. Anteriormente a 2007 podia até contar histórias ao filho, mas “coisas pequenitas. Com muitas imagens”. Com o curso veio também uma maior cumplicidade entre ambos – “era o nosso bocadinho. Íamos pr’o nosso mundo, pr’o quarto dele. Às vezes contavame ele, às vezes contava eu, depende. Ou às vezes a gente contava uma história à nossa maneira. Senti uma cumplicidade muito grande com ele”. Agora é ele que lhe conta as histórias, afinal “ele está sempre agarrado aos livros”, é um “devorador de livros” porque os considera os seus melhores amigos. Por vezes ela até brinca com a situação e afirma: “vou-lhe esconder as histórias ao meu filho”, noutros momentos fica um pouco arreliada pela veemência com o que o filho se relaciona com a leitura – “Ele come os livros. Não pode ver um livro. Pra me contar o livro, antes de me contar já está-se a rir e aí irrita-me um bocado (risos) que ele está-se a rir e eu não sei de quê”. Durante o tempo em que esteve na escola, em França, visitou algumas bibliotecas, mas eram “mais escuras”. Após a conclusão do curso e a aproximação com a biblioteca de Ílhavo voltou lá porque achou o espaço “interessante” e “acolhedor”, mas queixa-se da distância. Diz ter voltado mais pelo filho porque este lhe pedia, mas fez ainda requisições para ambos. Ana recorda da sua infância as histórias que a mãe contava “sem nexo, mas pra nós… eram boas, eu não sabia mais nenhuma”, mas a “irmã também. Ela inventava lá qualquer coisa e a gente conta outra vez e ela já não sabia contar nada igual”. As histórias da Heidi e do Pedro, que depois “passaram para Banda Desenhada” eram histórias que a fazia encantar. Diz sempre ter gostado de ler “qualquer coisa… se não tiver mais nada… as etiquetas que vêm… o folheto que vem até dentro do medicamento ou… até o jornal”. Depois da experiência de uma leitura algo traumática durante o curso, Ana voltou a tentar uma nova leitura que não parece tê-la convencido o suficiente para ir até ao fim: 345 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias “Agora tenho lá… até tenho um dentro do meu cacifo. Mas é dali de um senhor de Soza, que é do jornal. Era mesmo… morreu a mãe, morreu não sei quê… e eu… (sorriso) parei”, mas assevera que não tem “assim vagar”. Ao filho conta-lhe histórias tal como o fazia anteriormente ao curso, mas assumiu uma postura diferente e consegue obter dele reações: “Agora já faço… ele já se ri, já… Antes não, eu não sabia contar nada daquilo (risos) ” e embora não tenha voltado à biblioteca sente a falta de uma no concelho porque não há “nada aqui em Vagos que a gente possa ir com uma criança”. No dia a dia recorre à escrita no trabalho para todos os registos dos procedimentos e recados e em casa ajuda sempre o filho nos trabalhos de casa. Catarina diz que durante a sua infância, antes de entrar para a escola, não teve contacto com a leitura, nem sequer lhe contaram histórias. Já na escola “tinha que ler”, mas “também não gostava”. Até 2007 lia pouco, segundo ela lia alguns que até lhe interessavam, “mas lia pouco”. Com o terminus do curso diz que “lia mais mas… depois trabalhar de noite… não tinha tempo. Era complicado” e hoje a situação é ainda mais complicada por causa de ter duas filhas. Quando entrou para o curso a filha estava com três anos e nessa altura contavalhe algumas histórias. Agora conta que a filha mais velha traz histórias da biblioteca escolar e ela lê-lhas (“ela agora já escuta mais, já está quietinha. Tem aquela vontade ouvir. Naquela altura não”), mas não o faz ainda com a mais nova porque “só tem 1 ano”. Antes do curso, quando ainda andava na escola já tinha entrado numa biblioteca. Mas depois do curso cortou novamente relações com as bibliotecas porque não voltou lá e o tempo torna-se aqui o fundamento basilar – “Não tenho tempo. Pouco tempo mesmo. (…) Se com uma é complicado com duas é pior”. Quando Daniela se recorda da sua infância lembra-se que era o seu “falecido pai que contava muitas histórias, mas tinha que inventá-las” porque ela era muito exigente, mas o pai sempre tinha mais paciência do que a mãe. As dificuldades estavam presentes no seu dia a dia, até nas tarefas simples, como no facto de ter de “ler pelo menos 4 vezes pra perceber” e no presente se” estiver a ler qualquer coisa que não entenda já tenho aquela… aquela perceção que não estou a entender nada do que estou a ler. Mas na altura não”. 346 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Concluído o curso, em particular quando esteve na maternidade, diz ter lido vários livros “pra distrair” e afirma que “encontrar certas palavras que ainda é um bocadinho difícil, mas tenho de dar volta à situação”. Agora cria laços com o filho contando-lhe histórias e diz fazê-lo “melhor do que era antes”, mas, por vezes, adormece “primeiro que ele”. Apesar disso, reafirma essa posição perante o filho: “Agora tenho que contar histórias ao Filipe. (…) Tenho é que lhe ler muitas histórias”, “de linguagens para começar”. Até ao momento do curso, diz não ter entrado em qualquer biblioteca, mas depois de este ter terminado menciona que foi lá várias vezes, antes do nascimento do filho – “Ia só pra estar lá um bocadinho e depois vinha embora pra casa. Ia passando assim o tempo. Saía do meu trabalho e ia até lá”. O contacto de Beatriz com a leitura desde a infância foi parco e desde que deixou a escola afastou-se ainda mais. As histórias que a mãe lhe contava eram concebidas por ela. Mais tarde com as filhas “era o ler normal (…) que acaba por não captar atenção nenhuma. Adormecem logo porque a história, coitadinha, morre, não tem ali nada”. Agora mais recentemente é a filha, agora do meio, que lhe conta a histórias e ela ajuda-a e ela agora até “já faz as suas paragens” porque “inicialmente era tudo seguido”. Tentou também incentivar a filha mais velha a ler. Até 2007 a leitura tinha “muito pouca” importância no seu dia a dia porque apenas num dos locais de trabalho sentiu essa necessidade de forma mais proeminente, a ponto de considerar que era “um bicho de sete cabeças”. Agora considera que a leitura é importante “tanto a nível profissional como de lazer” e os romances são a sua predileção. Prefere os livros aos filmes que os retratam porque “não tem nada a ver uma coisa com a outra. (…) no livro nós idealizamos tudo… quando vimos o filme não se… um balde de água fria”. Não se lembra de ter entrado numa biblioteca até que teve essa oportunidade no decorrer do curso EFA B3, mas a partir do momento em que terminou o curso começou “a ir mais vezes à biblioteca, a requisitar livros”, embora já não vá “há bastante tempo. Se calhar desde as férias de Natal. (…) Tenho que começar. (…) Acho que faz falta, até mesmo pra esquecer. Uma pessoa envolve-se tanto na leitura, (…) aquele bocadinho passa a ser só nosso e ninguém interfere”. Sofia fala da leitura na sua infância apenas a partir da escola. Depois disso “às vezes certas revistas, mas só mesmo aquilo que interessava. O resto passa à frente” até 347 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias porque “misturava os pés pela cabeça”. De qualquer modo afirma que desde 2008 já consegue perceber um pouco melhor aquilo que lê “ou pelo menos tirar mais depressa a conclusão daquilo que está escrito”. Já antes de entrar no curso EFA contava histórias à filha, mas “uma página ou duas e volta-te a dormir” e expressa que atualmente lê “a par com ela. Como ela tem dificuldades a ler também” e motiva-a “mais estar a ler com ela porque (…) sozinha oh”. Com as bibliotecas não voltou a ter qualquer contacto, ficou apenas pela experiência das que visitou e conheceu durante o curso. Através da biblioteca escolar a filha vai levando alguns dos livros que as levam a trocar essa experiência em volta da leitura (“lá vai à biblioteca buscar”). No seu dia a dia precisa da escrita no trabalho porque “tem que se escrever o que se gasta, o que não se gasta, o que entra, o que não entra” e quando sente dificuldades já não as guarda apenas para si mas pergunta “se está bem escrito”. Usa como estratégia anotar as palavras “num caderninho” para não ter de pedir sempre ajuda aos outros e que lhe causa alguma vergonha. Lara não se recorda de ouvir contar histórias durante a sua infância até porque também “não havia possibilidades de andar a comprar livros”. Esse contacto veio com a escola, mas depois de ter abandonado os estudos “acabou tudo. Era só revistas e banda desenhada e mais nada”. Desde o final do curso deixou de ler ou comprar livros de banda desenhada, “revistas também é raro” e justifica esse desprendimento dizendo: “nunca mais peguei em nada, agora digo mesmo que é falta de tempo”. Há algumas dificuldades que persistem quando fala da compreensão daquilo que lê – “Há certas coisas que não entendo, não compreendo quando leio. (…) Há certas coisas que nem que leia várias vezes não consigo compreender”. À filha mais velha “muito raramente” lhe contava histórias, mas ao filho do meio começou a contar, mormente depois de ele ter ido para a pré e ter começado a levar histórias para casa em que tinham de fazer também o resumo e contar a história – “Ouve sempre a história até ao fim”. Mas só a partir do final do curso é que lhe começou a contar histórias porque “ele quando o curso começou era bebezinho (…) eu não lia pra ele” e também hoje sente-se “muito mais à-vontade a contar as histórias ao miúdo”. Agora Lara ou a filha contam-lhe histórias quando traz ou pede porque reconhece que 348 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias ser o marido a fazê-lo “é a mesma coisa que estar a ler o jornal” e por isso “não há maneira de o incentivar a ler uma história ao filho”. Não voltou a entrar numa biblioteca desde o final do curso e queixa-se da distância até à biblioteca de Ílhavo. Contudo, faz alusão à “feira do livro aqui em Vagos e dantes eu não comprava livros, agora compro”. Aproveita também as coleções que acompanham, por vezes, os jornais, para aumentar os livros em casa – “no Jornal de Notícias e depois era no Record, era às terças, quintas, sábados e domingos e eu fiz a coleção”. Porém, o aumento do número de livros em casa não é sinónimo da parte dela da efetiva leitura dos mesmos (“Ainda não li nenhum”). Susana não fala sobre a leitura ou o contar de histórias durante a infância, apenas dos momentos em que rezava com o avô. Com a escola teve de contactar com a leitura, embora não gostasse. Quando abandonou a escola deixou de ler. Com o nascimento da filha mais velha começou a ler-lhe histórias, mas “lia mal, lia à minha maneira (…) às vezes tinha dificuldade em pronunciar bem as palavras”. Agora “já leem as histórias delas, cada uma… a mais velha lê os livros e a outra lê as histórias. Agora ouço. Leio, mas é muito raro” porque elas “só querem livros (…) gostam de ler”. Desde que o curso findou deixou os livros de lado, mas conta “leio às vezes (…) Livro, livro, não leio. Mais revistas…” ou conta alguma história quando está “com as crianças” no local de trabalho e recorre à escrita a nível profissional “só pra fazer encomendas”, por vezes em casa. Conhecia apenas a biblioteca da escola, mas desconhecia a biblioteca municipal por isso tinha criado para si uma imagem de como era uma biblioteca. Embora a filha lhe peça para irem à biblioteca a Ílhavo, ela frisa que “não dá muito jeito” e reforça a distância (“se fosse por exemplo aqui em Vagos”), por isso também não voltou lá desde que o curso terminou. Carolina diz recordar-se de poucas coisas da sua infância, mas lembra-se de ter livros em casa e também se lembra da sua irmã do meio, que sempre leu muito, lhe contar histórias porque acabou por ser ela que “fez mais o papel de mãe”. Carolina é, assim, através da influência da irmã, “fruto de uma socialização familiar que favoreceu, desde cedo, a fomentação de hábitos de leitura” (Costa & Lopes, 2008, p. 1149). Depois de ter casado pela 1.ª vez lia Margarida Rebelo Pinto e começou a descobrir Nicholas Sparks, este último mais na fase em que conheceu o atual marido e 349 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias nessa fase “depois de vir de trabalhar chegava a casa, tomava um banho, enquanto (…) não vinha eu alapava-me no sofá e toca a ler” e “nessa altura lia muito”. Aliás, “quando lia o meu vocabulário até era mais extenso e não tinha tanta dificuldade. (…) Agora tenho insegurança porque deixei de ler e acho que isso influencia muito na nossa escrita e assim”. Tem alguns livros para ler, começados até, mas o seu estado de espírito e a autoestima devido à doença fazem-na pôr até as leituras de parte – “Não consigo ler. Uma Viagem espiritual já comecei. Adorei, mas ainda não… a Inutilidade do sofrimento já comecei. Já estava quase acabar, deixei…. É de psicologia, mas é um livro muito acessível. Fala de casos reais. (…) E deixei assim”. No sentido de recuperar um pouco a fé que diz ter perdido “e tudo que sempre acreditei” acaba por dizer: “até já uma Bíblia fui comprar” (MSN, 22.04.2010; MSN, 02.09.2011). Quando a irmã requisitava livros na biblioteca de Aveiro, ela ficava apenas à espera. Porém, desde que concluiu o 9.º ano “até tinha vontade de ir e usufruir dos serviços e tudo. Mas depois uma pessoa vai deixando passar o tempo, vai dando prioridade a isto, vai dando prioridade àquilo e depois nós vamos ficando sempre pra último” e por isso não voltou à biblioteca de Ílhavo. Constança revela que antes de iniciar o curso em 2007 tinha mais o hábito de ler porque o curso acabou por absorvê-la bastante. Fala de autores e de alguns livros que a marcaram, nomeadamente Sei lá, Alma de Pássaro ou Não há coincidências de Margarida Rebelo Pinto. Algumas revistas ou o jornal diário também fazem parte das suas leituras até ao momento do curso. 6.2. Deambulando em jeito de súmula por entre as histórias que se cruzaram no espaço e no tempo Deve ter sido dos únicos cursos, se é que não foi o único curso, que eu ouvia comentários acerca de livros. Eu acho que ali em algumas formandas havia verdadeiramente o gosto pela leitura. (Formadora de Inglês, 32 anos) Para elas foi o desabrochar de determinados sentimentos que há muito tempo não sentiam. (Mediadora, 36 anos) 350 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Quando olhamos para as trajetórias sob diferentes parâmetros destas mulheres, patentes nos seus discursos e memórias, deparamo-nos com singularidades que discernem cada uma delas, mas também regularidades que as aproximam e permitem que os seus caminhos se entreteçam. Um dos elementos que ressalta desde logo a nível das regularidades é a existência de uma conformidade de género, neste caso feminino, tendo em conta a distribuição percentual dos adultos nestes cursos, tal como constatámos no capítulo 3. Fomos abordando ao longo deste capítulo os retratos sociológicos de cada uma destas mulheres e neste momento não podemos deixar de remeter para o Quadro 4.2, no capítulo 4, que patenteia a caracterização sociodemográfica destas mulheres de forma sintética e que nos permite recuperar esses elementos a qualquer momento. À medida que vamos conhecendo cada uma destas mulheres, vamos percebendo que existe uma imbricação clara entre as diferentes trajetórias. Notamos ao longo das últimas páginas que a trajetória familiar de cada uma acaba por despoletar o desenrolar de determinados acontecimentos quer no percurso escolar quer no profissional, como Ana, por exemplo, em que a morte do pai leva a que deixe de estudar e tenha de começar a trabalhar. O ano de 1986 constitui-se como um ano marcante, uma vez que nos remete para o aparecimento de uma nova LBSE, mediante a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, a que já fizemos alusão, e que vem estabelecer a escolaridade obrigatória no 9.º ano. Não obstante, apercebemo-nos que os percursos destas mulheres, mormente as mais jovens, se foram desviando dessa obrigatoriedade. Um traço comum, com consequências profundas nos seus percursos de vida, remete para a decisão de abandonar a escola. Vemos que em alguns casos o nível de escolaridade que detinham no momento de abandono da escola era até o mínimo exigido naquela altura, mas mais tarde tornou-se infrutífero a vários níveis. Neste abandono está enraizada em nove dos casos uma maior preocupação com o capital económico do que propriamente com o capital escolar, que fica para segundo plano, até porque o facto de trabalharem e terem uma profissão é uma forma de construírem também a sua própria autonomia e ampliarem a sua identidade profissional e ao mesmo tempo auxiliarem a família nas suas necessidades, inclusive económicas (Moreno, 2011). Aliás, “a permanência na escola significa o adiamento do acesso a bens” (Ávila, 2008, p. 329). Nestes casos a desvalorização da escola parte delas e não tanto da família. O meio sociocultural em que estão inseridas é também propício a 351 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias todo este desfecho, revelando-se, de certo modo, “impeditivo a outro rumo”: as habilitações dos pais, também as dos irmãos e o facto de estes começarem desde cedo a trabalhar, também as pessoas que as rodeiam e com quem contactam no quotidiano revelam, por vezes, habilitações inferiores (Costa & Lopes, 2008, p. 851). Salvaguardese que nos restantes casos há outros motivos implícitos: o casamento, a morte de um dos progenitores, a desmotivação perante a escola e a idade. Não podemos deixar de acentuar que estas mulheres, considerando as suas origens sociais, de modo particular a família nuclear de origem, “dispuseram de limitadas referências positivas, nos familiares próximos, do ponto de vista escolar”, embora se verifique da parte de alguns destes elementos a formulação de expectativas face à escolaridade dos filhos, revelando o desejo que estes alcançassem um nível mais elevado do que aquele que eles tinham obtido (Idem, p. 1475). Não obstante, a relação com a escola aquando do abandono evidencia na quase totalidade destas mulheres “modos de estudo esporádicos, pouco intensos e consolidados” (Ibidem). Não obstante, verifica-se a dada altura do percurso de cada uma que surge uma maior preocupação com o capital escolar porque as habilitações se tornam insuficientes para a sua independência profissional, que conduz ao desemprego, e aí surge o curso EFA como a oportunidade para colmatar essa carência e outras que revelavam à entrada do mesmo, nomeadamente com a imagem que tinham de si −“havia um fator que era transversal a todas, que era a falta de autoestima. Tinham muito baixa autoestima” (Coordenadora técnica, 36 anos) −, os comportamentos, as atitudes –“o que se notava mais era, no fundo, as atitudes, o saber-estar em sala, o saber interagir com as próprias colegas, a sua organização a nível de trabalho, a sua autonomia a nível de estudo e também o saber gerir” (Mediadora, 36 anos). Nestes casos as competências adquiridas durante o curso são encaradas como um recurso que pode ser posto em prática se surgir uma oportunidade ou mesmo necessidade, sendo a profissional aquela que mais anseiam. Face à distância desde o terminus do curso, ou mesmo o desajuste entre as competências adquiridas e aquelas que são efetivamente usadas no seu quotidiano, incrementam algumas estratégias para mantê-las presentes. Tal situação decorre, por exemplo, do arquivamento dos materiais relativos aos diferentes módulos, e que permita, sempre que necessário, uma consulta ou um recordar para que estes não se apaguem, tal como salienta Daniela − “Ainda muitas das vezes vou acolá àquela 352 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias casa, tenho tudo guardado, tudo no meu baú das recordações (…) e principalmente na matéria da formadora (…) agora entendo tudo o que aquilo queria dizer”. Tal como salientam Costa e Lopes “as tendências não são uniformes nem estáticas” e neste caso particular a ação do curso e das entidades a ele associadas, dos formadores e dos elementos do grupo parecem ter contribuído para “ajudar a contrabalançar ou mesmo contrariar as dificuldades” (Costa & Lopes, 2008, p. 561). A imagem construída em torno do curso era semelhante à escola no momento em que a deixaram, muito centrada na teoria e no debitar de informações. Esta foi derrubada à medida que se foram desinibindo, revelando fragilidades, recolhendo experiências e ”cada etapa que elas conseguiam e concretizavam era uma vitória para elas e conseguiram descobrir competências” (Formadora da componente tecnológica, 36 anos) e isso permitiu-lhes saírem “todas dali mais ricas, não só em competências que tinham forçosamente de adquirir para terem o B3, mas saíram muito mais ricas porque houve todo um trabalho feito com elas que elas permitiram também que se fizesse” (Coordenadora pedagógica, 40 anos). Essa situação permitiu que quatro elementos tivessem continuado a fazer um investimento pessoal e concluíssem o 12.º ano (Carolina, Constança, Manuela e Beatriz). Motivos externos e alheios à vontade de Joana acabaram por criar uma barreira que não lhe permitiu dar continuidade aos estudos até ao 12.º ano. As restantes, à exceção de Sofia e Daniela, manifestam vontade, mas continua para já a ser um projeto em standby a curto prazo. Com o curso, que se tornou uma conquista pessoal, acabaram por criar expectativas, nomeadamente profissionais, que em casos como, por exemplo, de Daniela, Sofia ou Lara foram goradas. “O objetivo deveria ser a consolidação desse tipo de competências, mas eu constatei que as formandas sentiam, e eu própria observei, que não havia esse reconhecimento social nem institucional porque não eram dadas essas oportunidades” (Mediadora, 36 anos). Há, todavia, situações como a de Ana, Lúcia, Joana e Susana que revelam um lado mais positivo, uma vez que o curso foi a porta de entrada para novos empregos, no caso particular das três primeiras em instituições na valência de idosos e no de Susana em serviços gerais também de uma instituição de apoio social. Pode-se dizer que o curso foi em determinados percursos uma nova experiência, numa área distinta daquela que até então conheciam, que lhes permitiu reforçar e 353 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias consolidar competências em campos distintos, mesmo em termos familiares e pessoais, e constituiu-se como um interregno naquilo que até então tinham feito. Nos casos de Andreia e Lara apercebemo-nos que, face também a condicionantes socioeconómicas e às dificuldades do próprio panorama nacional, encontram apenas um trabalho semelhante àquele que desempenharam anteriormente ao curso, embora em secções distintas. Se olharmos para a infância de cada uma destas mulheres notamos que há deficiências quando falamos da socialização primária da leitura. Carolina é a única que fala da presença de livros em casa durante a sua infância. Algumas falam de histórias que ouviam, criadas no momento até, mas não a partir do livro. Este afastamento do livro prende-se com a escolaridade dos pais, a ausência de meios económicos para a sua aquisição, a falta de disponibilidade e a vacuidade de estruturas de apoio que levam à ausência de hábitos familiares de leitura. Conquanto, é percetível que a socialização da leitura na escola está muito direcionada para a sua vertente mais tradicional, incidindo esta sobre o papel da decifração mecanizada dos símbolos gráficos, o que faz com que elas se limitem tão-só a dar som a uma determinada sequência gráfica. Esta formação, mormente a partir do módulo de LC, acaba por quebrar essa ideia de leitura. “Ainda estou para conhecer o primeiro grupo que venha com grandes hábitos de leitura porque são pessoas que são adultas. À partida nem sequer têm tempo no seu dia a dia para isso ou acham que não tem” (Formadora de Inglês, 32 anos). Com uma equipa de formadores coesa “as coisas fluíram naturalmente” (Formadora de TIC), por isso o trabalho intensivo a partir de LC acabou por ser extensível a todos os restantes módulos. A partir de LC foi então trabalhada uma leitura feita de interações, diálogos, sentidos, odores, paladares para que elas aprendessem a viver os livros e a sentir a leitura. Quando olhamos para os seus percursos antes e depois de todo esse trabalho conjunto à volta da leitura damo-nos conta que anteriormente ao curso a leitura não era propriamente uma preocupação até porque não despertava curiosidade ou prazer nos filhos. A partir daí vemos em casos como o de Lara que há uma maior preocupação e se não é a mãe é a irmã mais velha que conta a história. Estando numa posição privilegiada pelo contacto que mantiveram com distintas atividades de promoção da leitura, pelo trabalho concretizado em torno da compreensão do texto, cremos que ficou em algumas um certo “bichinho” que leva a não deixar esmorecer este momento, contrariando até 354 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias um pouco a sua trajetória. Também se dão conta que agora recebem um feedback positivo quando o fazem, o que lhes confere mais confiança para continuarem esta interação entre elas, o livro e os filhos, como no caso de Ana: “Ele gosta. Essa do Nabo, lembro-me de lha contar e depois ele já a contava toda”, ou quando há uma história predileta que tem de ser contada mais vezes do que o normal. Verifica-se também uma maior articulação das bibliotecas escolares e das escolas, assim como das creches com o espaço da casa e a história que se leva para contar em família. Pode-se encarar esta situação como uma gradativa, “conversão das competências adquiridas” em “competências em uso” (Ávila, 2008, p. 368). Contudo, não podemos deixar de salientar duas situações distintas no que concerne à leitura e aos filhos mais novos. Se por um lado, Catarina e Lara não contam histórias aos filhos mais novos com idades à volta de 1 ano, embora esta última saliente o facto de ele apontar para imagens, por outro lado Daniela conta histórias ao filho de poucos meses. Defendemos que as crianças devem ser estimuladas desde cedo para a linguagem oral e escrita de forma melodiosa, circundando-as com o livro através das histórias que se contam e da exploração das imagens, pela cor, pelas texturas. Estes momentos criam também uma proximidade entre a mãe e o bebé e nos dois primeiros casos há uma ausência dessa simbiose, pelo que não se pode considerar a conversão anteriormente mencionada como total. Há influências que resultam do curso e que acabam por se refletir na família desde já pelo facto de lhes permitir prestar um maior apoio aos filhos em relação à escola e nas dificuldades que estes possam sentir. O contexto escolar é transposto para o espaço doméstico através dos filhos e permite-lhes colocar em prática as competências adquiridas ao longo do curso (Anexo 6A). Há exceções, como é o caso de Sofia. Contudo, consideramos que neste caso além das dificuldades que emergem de todo um percurso atribulado e com aprendizagens muito débeis está aqui patente muita insegurança. Refletindo sobre os momentos de leitura individuais que reservam para si ao longo do dia, apercebemo-nos que estes são escassos, principalmente se falarmos de leitura do livro enquanto momento de lazer são praticamente nulos. Nos discursos de Beatriz e Carolina vamos encontrando remissões para essa presença. Nas restantes há referências a práticas como ver televisão, ouvir rádio, ler o jornal ou a revista, panfletos ou mesmo aceder à Internet ou fazer sopas de letras como é o caso particular de Lúcia. 355 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias Não se pode dizer que isso significa que estas deixaram de gostar de ler, mas há um traço que pode ser considerado comum e é apresentado por elas como o responsável para esta não leitura de livros: a falta de tempo devido às tarefas do quotidiano em casa, aos filhos, ao trabalho (“se não estou a adormecer este ou porque o Santiago está com birras ou porque tenho roupa pra passar a ferro ou porque tenho roupa pra lavar ou porque tenho roupa pra estender ou porque tenho o comer pra fazer”, Lara) ou até ao desânimo devido a uma situação de desemprego (“Estava em casa, não tinha aquele incentivo pra fazer nada. Estava em casa e estava”, Lara). É importante salientar que elas são mulheres e mães (à exceção de Carolina) e trabalham também fora de casa, por isso sobre elas recai uma sobrecarga de papéis porque persiste ainda no meio em que vivem a ideia que há tarefas que são exclusivas da mulher (“Foi a primeira vez que ele ficou com eles. Ficou sozinho em casa”, Lara referindo-se ao marido no decorrer do grupo focal). Tal como salientámos no capítulo 4, esta investigação teve também um suporte mais informal com diálogos através do MSN, do Facebook ou mesmo por correio eletrónico com algumas destas mulheres. A duração ou frequência dos mesmos foi sendo variável, tal como os temas que se repartem entre a vida pessoal, profissional, alguns desabafos, livros e leituras que conduziram a algumas sugestões. Desde 6.ª feira já li um livro muito bonito e acabou por trazer muito significado para mim nestes dias, "Pegadas na areia" de Margaret Fishback Powers. É sem dúvida um livro inesquecível e muito bonito. Quando tiver oportunidade leia-o. Agora estou quase a terminar "O jogo da verdade" de Sveva Casati Modignani. Também estou adorar, tem uma história bonita. Já me tinha esquecido como era bom os meus momentos de leitura.... (Mensagem de correio eletrónico enviada por Carolina, 2010-08-27) Discorrendo sobre o grupo focal e a propósito do que mencionámos anteriormente sobre os seus momentos de leitura, consideramos que a sua concretização se tornou profícua para nos ajudar a compreender este modo de relação com a leitura que vão abordando. Apercebemo-nos que, apesar das dificuldades que ainda persistem nos elementos presentes, conseguem fazer uma leitura da história que lhes é apresentada através das imagens e da cor: No decorrer da chuva de ideias através da imagem elas debruçaram-se sobre os cartões com as ilustrações de uma história para tentarem perceber a relação entre eles, de modo a reconstruir a história. Não obstante, eram visíveis dificuldades na sua estruturação apenas pelas imagens. Apesar da dificuldade em ordená-las não deixaram de frisar que parecia ser uma história muito triste até pelas próprias 356 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias cores. Consideraram que as imagens eram confusas, tristes, sem pés nem cabeça, mas referiram que a personagem era, talvez, uma pessoa sozinha, triste, que tinha medos. (…) Conquanto tenham demorado mais tempo do que o previsto para a organização das ilustrações, notou-se uma interação entre elas, uma troca de ideias, uma partilha que se pretendia. Apesar das dificuldades na tarefa, foram transmitindo ideias que se coadunavam perfeitamente com a mensagem que o autor transmitia (Registo de observação do grupo focal, 2011-07-16). Não podemos falar da leitura nos seus percursos sem falar da presença das bibliotecas. Vejamos o Quadro 6.2, de acordo com os dados fornecidos pela Técnica Superior da Biblioteca Municipal de Ílhavo. Quadro 6.2 – Registo dos movimentos de requisições na Biblioteca Municipal de Ílhavo, referente ao grupo (2007-2010) Requisição Nome Com movimentos Sem movimentos Ana X Andreia X Beatriz X* Catarina X Carolina X Constança X Daniela X Joana X** Lara X Lúcia X Manuela X Sofia X Susana X * Continua a realizar empréstimos com regularidade em 2010, segundo informação de 29.10.2010; ** Há registo de empréstimos em 2007 e 2008. Naquela altura apercebem-se da biblioteca também enquanto espaço de lazer −“elas deixaram à porta da biblioteca os papéis que desempenhavam socialmente como mães, mulheres e como vítimas, algumas, para viverem aquilo que estavam a sentir, 357 Um olhar sobre as histórias que um dia se cruzaram no espaço e no tempo: discursos e memórias aquela alegria, aquele entusiasmo e isso foi muito positivo” (Mediadora, 36 anos). Não obstante, após esse período tiveram de voltar aos seus papéis do dia a dia e a situação é diferente. Apercebemo-nos pela análise do Quadro anterior que o contacto estabelecido com as bibliotecas foi, para onze destas mulheres, pautado somente por esses momentos no decorrer do curso. Porém, para Beatriz continua a ser uma prática frequente no eixo temporal que decorreu desde o curso e para Joana esse contacto foi mais intensivo num determinado período de tempo que já terminou. O fator distância vem aqui limitar as suas práticas e a sua relação com a biblioteca e consequentemente com a leitura, embora falemos de dois concelhos vizinhos, acentuando-se a menção a um espaço idêntico mais próximo não só para elas, mas também para os filhos. O espaço atual da biblioteca que existe em Vagos é encarado de forma literal como um depósito de livros e que não é de todo agradável, dado o espaço exíguo e amorfo, pouco convidativo, principalmente quando falamos de adultos que precisam de ser cativados. À entrada do curso não eram apenas visíveis baixos níveis de escolaridade, mas estes refletiam também aprendizagens deficitárias da leitura e da escrita, o que lhes causava dificuldades em tarefas básicas no quotidiano. Aí a leitura e a escrita eram relegadas para segundo plano. Nota-se a partir daí que a escrita está presente no seu campo profissional, com registos de índole diversa ou também por vezes em casa quando ajudam os filhos porque agora se sentem mais capazes para o fazer. Ainda que por vezes não se apercebam de que o fazem, se escrevem leem o que escrevem para terem a certeza que o discurso é compreensível aos outros. Não se pode negar que existem dificuldades que persistem em alguns destes percursos, que elas procuram galgar recorrendo a diferentes estratégias e elas têm consciência que, tal como salienta Susana, “quanto menos a gente ler mais dificuldades a gente tem em ler” e que ler ajuda a “não perder aquelas palavras mais… que a gente não pronunciava assim muito bem”. 358 C onclusões As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar (…) que maçada, ser preciso acabá-lo, é como uma fatalidade, E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais. (Saramago, 2002, p. 29) Na fase final da redação desta tese sentimos precisamente aquilo que Saramago exprime, sentimos que também em nós ocorreram mudanças enquanto atores de um processo plural, por todas as experiências, aprendizagens e partilhas feitas em torno desta investigação. No decurso deste trabalho estabelecemos uma estreita articulação entre as aprendizagens na idade adulta, em particular os cursos EFA e a literacia da leitura, assim como o papel das suas práticas. No decorrer desta investigação, de modo particular no discurso escrito, procuramos desde o início estabelecer contextualizações de modo a que as temáticas abordadas se interrelacionassem, conduzindo a uma congruência entre aquele que é o objeto teórico desta pesquisa e o objeto empírico em causa. Como tal, para melhor percebermos a procedência do nosso objeto empírico foi necessário aprofundar conceitos em torno da aprendizagem ao longo da vida, perceber a sua evolução e estabelecer paralelismos entre o que teoricamente deve ser a educação de adultos e aquilo que no terreno fomos descobrindo com este grupo de mulheres especificamente. Além disso, para se perceber o trabalho que foi desenvolvido com este grupo em concreto houve a necessidade de acentuar a existência de novos contextos educativos 359 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar que não estão propriamente situados na escola, sendo exemplo disso os cursos EFA enquanto detentores de um currículo peculiar com acesso a uma dupla certificação (escolar e profissional). Pronunciarmo-nos sobre o nosso objeto teórico é falar neste caso da literacia da leitura. Aqui houve do mesmo modo uma necessidade de aclarar de forma aprofundada a definição conceptual em torno da literacia e da alfabetização, defendida por diferentes estudos e instituições. A alfabetização não é mais do que ação de ensinar e de aprender a leitura, a escrita e o cálculo e esta não é sinónimo de escolarização. A literacia é muito mais do que essa simples ação. A literacia implica a capacidade para usar essas competências, que devem ser constantemente atualizadas. Cada vez mais na sociedade se realça a multiplicidade de competências dos indivíduos, com o intuito de estes terem competências em áreas distintas. Analisarmos mais a fundo os estudos internacionais, assim como o único estudo nacional existente (patentes nomeadamente em Kirsh, 2001; OECD, 2005; Ávila, 2011; Benavente, 1996), sobre a literacia na idade adulta levou-nos a olhar para os débeis resultados da população portuguesa. Não obstante, houve igualmente necessidade de destrinçar a noção de leitura e deixar de lado o modelo tradicional caraterizado pela sua estaticidade de simples codificação/descodificação porque essa foi também a ideia que procuramos passar no papel de formadores a este grupo de mulheres enquanto formandas. Identificamo-nos com o modelo de leitura mais recente, distintivo pela sua interação, pela troca plural de sentidos, pelo diálogo entre o texto e o leitor. Através de uma análise de inquéritos concretizados sobre a leitura e as suas práticas (destacando-se Freitas & Santos, 1992; Freitas, Casanova & Alves, 1997; Lopes & Antunes, 2000, 2001; Neves, 2011) pudemos rever o nosso objeto empírico em alguns destes dados aquando do início do curso EFA B3 em 2007. Isso levou-nos naturalmente a levantar interrogações, a questionar com mais profundidade e a estabelecer conexões inicialmente não previstas. Uma questão conduziu a outra e este leque de interpelações tornou-se mais coeso e levou-nos a uma reestruturação do esquema das dimensões de análise, à medida que fomos avançando na pesquisa através de leituras mais teóricas e também na planificação do trabalho no terreno. Em termos substantivos esta pesquisa permitiu-nos olhar para este curso EFA B3 a uma certa distância e para estas mulheres de modo particular e assim vermos o que é que perdurou da caminhada encetada ao longo do curso, das partilhas, das competências de leitura alcançadas naquela altura. Consideramos que, apesar de algumas dificuldades 360 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar e até algumas regressões pela falta de prática de determinadas competências, revelam não só maior confiança, autoestima e segurança no apoio à família, mas também uma maior capacidade de interpretação de informação em relação ao início do curso. Na globalidade do grupo este curso constituiu-se como um marco importante nas suas vidas pelas descobertas, pelas experiências, de modo peculiar em torno da leitura. Está também patente nelas que esta formação lhes permitiu marcar uma posição no seio do agregado familiar. Quando refletimos sobre as políticas públicas de leitura e pensamos em projetos erigidos a partir do Plano Nacional de Leitura (Novas Oportunidades a Ler +), remetemo-nos para no nosso dia a dia enquanto formadores e para todo o trabalho que foi necessário desenvolver para ultrapassar burocracias. O projeto criado no âmbito das Novas Oportunidades suscitou-nos dúvidas de exequibilidade, tal como aguardamos com expetativa a construção do projeto EFA a Ler +. Mas a partir daqui surgem questões que relegamos para o final deste texto porque consideramos que podem constituir, de certo modo, pistas ou propostas de ação. Após uma abordagem sobre a educação de adultos e a literacia da leitura, sentimos que faltava estabelecer um elo de ligação, salientando de forma mais concreta as características destes públicos da leitura. Ao concretizar esta análise fomo-nos apercebendo de dados percentuais que confirmam aquilo que fomos constatando no terreno no papel de formadores e que revelam um número mais acentuado de mulheres face aos homens. Considerando diferentes estudos, assim como através do nosso objeto empírico, comprovamos que as mulheres continuam a acumular papéis dentro e fora do espaço da casa. Tendo em conta esta abordagem dos públicos procuramos perceber a relação entre as bibliotecas e os cursos EFA e como se podem enriquecer, no caso deste grupo, enquanto mães e mulheres. Acabamos por deparar-nos com alguns exemplos em que conseguimos estabelecer similitudes com o nosso grupo e com as partilhas à volta da leitura. Ressaltamos a leitura do livro ao longo de todo este trajeto devido a um trabalho anterior em contexto de formação, mas não excluímos a presença de outros suportes de leitura no quotidiano de que elas se rodeiam com maior ou menor frequência (revistas, sopa de letras, jornal, panfletos, bulas dos medicamentos, redes sociais, e-mail, pesquisa de informações na internet). Estes suportes acabam por estar presentes em diferentes contextos e permitem-lhes contactar com distintos tipos de leitura, não só enquanto lazer, mas também em termos profissionais. Quanto à escrita, a sua realização surge 361 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar associada a necessidades e práticas profissionais e está também presente, embora não muito marcada, em algumas situações quotidianas do espaço familiar. No decurso deste processo plural foi necessário fazer opções e reformulações metodológicas a todo o momento, pelos obstáculos com que nos fomos deparando. A estratégia metodológica e as técnicas a aplicar ao longo da investigação mantiveram-se, mas sentimos necessidade, nomeadamente no que aos interlocutores institucionais diz respeito, de mover peças do tabuleiro e introduzir novas. Isso levou-nos também a reformular guiões pensados previamente, mas consideramos que estas alterações podem ter trazido uma maior riqueza a todo o trabalho. Cada técnica foi-nos dando um pouco de informação dispersa, que exigiu de nós a montagem de um puzzle rico em que todas as peças se conjugassem e encaixassem de forma congruente. Esta relação constante e circular entre a teoria e a empiria de que falávamos na introdução foi bastante profícua porque nos permitiu estabelecer ajustamentos não deixando de ir ao encontro das nossas perplexidades nesta investigação. Se inicialmente tínhamos algumas dúvidas acerca do grau de profundidade de uma análise sociodemográfica dos espaços que envolvem estas mulheres, paulatinamente e à medida que o discurso foi brotando, fomo-nos apercebendo da necessidade de ligar espaços mais macro, com outros meso até chegarmos aos cenários mais micro onde elas se imiscuem. Esta análise feita em três níveis distintos permitiunos estabelecer paralelismos e perceber algumas discrepâncias entre os diferentes níveis, mas também regularidades. Conhecendo de forma mais contígua estes espaços micro, dados estatísticos como índice de envelhecimento ou densidade populacional não nos surpreenderam, de modo particular no concelho de Vagos. Os dados referentes à população residente nestes concelhos seguem a linha macro e meso, com um envelhecimento da população, ocorrendo um aumento do número de mulheres a partir dos 65 anos. Embora seja informação referente a 2001 não nos surpreenderam os dados relativos ao analfabetismo nos três municípios, tendo Vagos o valor percentual mais elevado, em parte também pela conjuntura do meio mais rural que em Ílhavo e em Aveiro. As mulheres, à semelhança do que acontece a nível mais macro e meso, são aquelas que detém os mais elevados, mas também mais reduzidos níveis de qualificação. Falar das práticas e políticas culturais, de modo mais específico das bibliotecas públicas nestes concelhos, com alguns discursos de interlocutores institucionais na 362 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar primeira pessoa ajudou-nos a perceber de que modo estão aí presentes preocupações com a promoção da leitura e com a literacia. Através destes discursos, centrados apenas sobre os concelhos de Vagos e Ílhavo pelo contacto próximo desenvolvido anteriormente, notamos discrepâncias. A biblioteca de Ílhavo alarga as suas preocupações a todas as idades, estimula a leitura nos diferentes públicos e permite que qualquer cidadão português possa ser utilizador daquele espaço. A pesquisa em torno da biblioteca de Aveiro leva-nos a descortinar a presença de dinamismo, mas direcionado para públicos mais jovens. Em Vagos continua a existir uma lacuna, ainda não sanada, de um espaço adequado à realidade presente, com equipamento e instalações adequadas às necessidades atuais, que se torne dinâmico e seja capaz de ao mesmo tempo estimular a população para a leitura, mas que também saiba ir ao encontro das necessidades dessa mesma população, independentemente da idade. Pela análise que fizemos de documentação relativa às atividades desenvolvidas pelo espaço da biblioteca é notória uma centralização nos públicos mais jovens. É importante que haja uma inter-relação com as bibliotecas escolares e que estreitem esses laços, mas é preciso que se estimulem práticas de leitura na população cuja primeira socialização não as incorporou (adultos e idosos). Quando nos centrámos nas trajetórias destas mulheres e tentámos perceber como é que cada um desses percursos por si fazia sentido, mas também como é que se encaixavam entre eles ou se isso acontecia, fomos encontrando realmente singularidades, mas também regularidades. Observando estes retratos sob um olhar sociológico fomos respondendo às interrogações que nos assolaram no início de todo este percurso. As trajetórias familiares destas mulheres, ainda que singulares, condicionam as suas opções e os caminhos que trilham nos restantes percursos conduzem-nas a regularidades que as aproximam. Quando olhamos para as habilitações destas mulheres notamos que há uma discrepância face às habilitações dos seus pais, que se revelam mais reduzidas. Não encontramos nestas mulheres referência ao facto de terem sido obrigadas a abandonar a escola, muito pelo contrário. A decisão de abandono da escola parte delas e embora os progenitores tentem contrariar em alguns casos essa opção acabam por não ter qualquer poder de decisão ou de alteração sobre esse abandono precoce. Em duas das situações os pais podem ter protelado um pouco mais o contacto com a escola, mas não mais do que isso. Há dois casos que demonstram, de modos distintos, uma maior desvalorização da escola, mais acentuado num dos casos e que aí conduz a uma total desmotivação face 363 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar à instituição. Nestes contextos domésticos deparamo-nos com ambientes empobrecidos de livros e de leitura durante a sua infância, salvaguardando-se uma situação que contraria essa generalidade. Associada a este abandono está uma dimensão económica familiar que não se faz sentir no discurso delas como sendo proveniente da parte dos pais. Elas é que sentem essa responsabilidade em relação à família. Há uma exceção em que é percetível que, contrariamente às restantes, gostava de ter continuado a estudar, mas a morte de um dos progenitores leva-a a ter também preocupações económicas. A dada altura da vida destas mulheres há uma desvalorização do capital escolar, sobrepondo-se a este o económico. Observando o percurso destas mulheres apercebemo-nos que as baixas habilitações condicionam a dada altura o acesso ao emprego, que se reflete claramente em situações de desemprego ou mesmo de ausência de progressão profissional. Este acaba por ser um momento de viragem nas suas trajetórias porque o aparecimento do curso EFA B3 nos seus caminhos, em 2007, se constitui como uma lufada de ar fresco. Isso leva-as a refletir sobre a necessidade de obter mais qualificações. Neste caso particular, como era uma formação remunerada permitia-lhes colmatar necessidades económicas, obter equivalência à certificação escolar do 9.º ano e a certificação profissional ao nível da Ação Educativa. Verifica-se nos seus discursos que há uma semelhança na imagem que criam em torno dos cursos EFA, tendo como representação a escola de outros tempos, uma aprendizagem demasiado escolarizada e imbuída de conhecimentos teóricos que teriam de debitar. Com o decorrer do curso acabam por criar outras expectativas, nomeadamente profissionais, tendo em conta o próprio desenvolvimento daquela formação. Neste sentido verificam-se situações de concretização dessas expectativas e representações em cinco destas mulheres, com alteração dos seus quotidianos profissionais em famílias institucionais. Não obstante há também situações em que, embora haja consciencialização de um panorama não muito favorável, a desilusão é bastante evidente, como no caso de quatro delas. Se pensarmos na situação profissional no presente destas últimas mulheres percebemos que há alguma precariedade, e em duas delas verifica-se uma aproximação às funções e tipo de trabalho que já tinham desempenhado anteriormente ao curso. O facto de terem mais habilitações (9.º ano) não implica forçosamente que o desemprego tenha sido erradicado porque se verificam duas situações de desemprego ainda que de curta duração. 364 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar O que ressalta dos seus discursos anteriormente ao curso EFA é uma valorização do trabalho que nos remete para uma orientação materialista. Com o curso elas alcançaram uma das suas necessidades básicas, a partir do momento em que obtiveram mais habilitações que lhe conferiam acesso ao emprego. Após a concretização deste curso apercebemo-nos que o discurso se altera em algumas delas porque passa a existir uma valorização do emprego, mas com um sentido distinto e que revela que fazem aquilo de que gostam. Passa, portanto, pela sua autorrealização profissional, que nos conduz a uma vertente pós-materialista. É pertinente destacar que a pesquisa empírica que efetuámos está inserida numa conjuntura de crise económica nacional, mas também internacional, que afeta diferentes áreas, nomeadamente de emprego, daí que o acesso ao mesmo se torne infrutífera, mais penosa ou as conduza, como em alguns casos, ao exercício de funções já desempenhadas ou a empresas com quem tiveram contacto no passado. Não descuramos que após a conclusão do 9.º ano, embora revelassem o mesmo grau de escolaridade, manifestavam níveis de literacia desiguais, o que já acontecia anteriormente ao curso e este não permitiu que fosse possível estabelecer uma equidade nesse sentido devido às singularidades das suas trajetórias. Por isso, há dificuldades mesmo a nível da compreensão que ainda persistem no presente e que o dia a dia não permite banir pela ausência de práticas continuadas de leitura, em particular do livro. Embora algumas se revistam de técnicas criativas para fazer face a essas dificuldades, estas parecem não contribuir para elevar um pouco mais os seus níveis de literacia. Algumas destas dificuldades alicerçam-se na falta de bases da própria língua e numa destas mulheres é bastante notória, até porque há uma estreita relação entre essas dificuldades, o género feminino, o seu meio social de origem e a sua história de vida. Pensando não só na escrita e na leitura, mas neste caso em todos os conhecimentos e experiências que elas adquiriram e trocaram ao longo do curso e no facto de apenas dois destes elementos contactarem mais de perto com crianças no presente, podemos antever aqui uma regressão de competências. Não obstante, não podemos descurar um aspeto importante: os filhos/ sobrinhos. São, desde logo, eles que lhes permitem agora estabelecer, de forma mais imediata, uma relação entre a teoria que adquiriram ao longo do curso e a empiria que granjeiam no quotidiano e que as faz resgatar essas competências adquiridas. A pesquisa realizada permitiu-nos perceber também, através dos seus discursos, que elas desempenham o papel mais relevante nesta 365 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar relação entre a leitura e os filhos porque são elas que contam as histórias, principalmente aos mais novos. A preocupação com o capital escolar e uma maior consciencialização da necessidade de aumentar as habilitações numa sociedade em constante mudança de que falámos anteriormente acabou por se refletir em quatro dos casos quando enveredam pela conclusão do 12.º ano pouco tempo depois de terem finalizado o B3, ou seja o 9.º ano. Após a conclusão do curso EFA é notória a presença de um outro olhar perante a leitura e o contar de histórias, a confiança delas quando o fazem é maior também porque agora obtêm reações dos filhos. Duas destas mulheres ganharam autonomia para lerem as suas histórias/ livros e revelam prazer pela leitura, verificando-se momentos de maior ou menor leitura decorrentes de outros fatores externos. Ficou aqui um bichinho, quiçá ainda um pouco da Centileia, que as leva a procurar a leitura como um refúgio para os seus momentos, uma forma de encontro com outros mundos e tempos externos a todas as tensões e rotinas, que lhes traz uma certa paz interior. O contacto estabelecido com as bibliotecas públicas no decorrer do curso EFA B3 foi pautado apenas por aqueles momentos fugazes em onze destas mulheres. Há, contudo, um caso em que essa proximidade ainda se prolongou durante algum tempo, mas deixou de existir e outro ainda em que continua a ser uma prática frequente no eixo temporal que decorreu desde o curso em causa, sendo que nesta situação o local de residência se situa no concelho da biblioteca que frequenta (Ílhavo). O elemento condicionador para esta não frequência da quase totalidade do grupo é a distância. A distância em relação ao espaço da biblioteca aliada à falta de tempo limita as práticas e os modos de relação com a leitura, de modo particular a leitura do livro, de dez destas mulheres, sendo aliás salientado por elas nos seus discursos. Contudo, estes fatores de regularidade comuns entre elas não se aplicam a um destes elementos, tal como salientámos anteriormente. Outra destas mulheres, embora não tenha esta proximidade com a biblioteca, rodeia-se de livros com maior ou menor frequência. Curiosamente os dados acabaram por nos revelar que em dois casos são os filhos que pedem para estas os levarem à biblioteca, aproveitando a inscrição da mãe na Biblioteca Municipal de Ílhavo. Não obstante, elas vão deixando cair no esquecimento cada um dos pedidos pelo motivo anteriormente salientado. Esta situação permite-nos observar que o ambiente familiar não é desprovido de livros, muito pelo contrário. Isso significa 366 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar que elas também possibilitam que eles sedimentem hábitos de leitura e apercebem-se que esse é um elemento importante e que falhou nos seus percursos. Não podemos deixar de salvaguardar que, aquando do curso EFA B3, os seus filhos acabaram por ser um público mais ou menos assíduo nas atividades desenvolvidas no e para o exterior e acabaram por estar em muitos casos envolvidos com aquilo que as mães faziam: liam, contavam histórias, representavam personagens e isso ajudava também a despertar-lhes a curiosidade e estas partilhas acabaram por despertar neles algo mais, tal como constatámos anteriormente. É, portanto, notório que o ingresso das mães neste curso, assim como as competências adquiridas, contribuiu substancialmente para a consolidação das relações sociais também no espaço doméstico. Em sintonia com a informação que esta investigação nos transmitiu, consideramos relevante encerrar a experiência plural desta investigação com uma reflexão em torno de algumas estratégias de intervenção ou pistas, se assim pudermos designar, no trabalho com estes públicos não só em termos de cursos EFA, mas também nas bibliotecas. Há um elemento que consideramos fundamental, muito pela experiência no terreno enquanto profissionais também, em que observamos outros profissionais e que pode ser aplicado tanto a cursos EFA como às bibliotecas na construção de políticas públicas que é o facto de se encontrarem respostas díspares para públicos distintos. Não podemos limitar-nos a repetir a mesma coisa da mesma forma com públicos desiguais. Tendo em conta todo o trabalho desenvolvido com este grupo, temos consciência que com qualquer outro grupo teriam de ocorrer ajustamentos, pensando sempre nas pessoas, não descurando o seu meio sociocultural, afinal são elas a base de todo este trabalho. Pensando também no que se pode alcançar em termos de cursos EFA, consideramos que os profissionais que com estes grupos trabalham, de modo peculiar os formadores de LC, devem ter um papel mais ativo no contacto com estes públicos apelando à crítica construtiva para que estes se apercebam das reais dificuldades com que se deparam no quotidiano. Como tal, devem encontrar formas distintas e criativas de mostrar em termos de leitura e escrita o que é o mais correto e de que forma se pode ultrapassar determinado obstáculo, de modo intuitivo e eficaz na aquisição de conhecimentos. Isto leva a que estes adultos criem necessidades e comecem a corrigirse, a refletir sobre essas dificuldades e a procurar adquirir novas competências. Não se pretende que eles memorizem meramente regras teóricas, mas que as compreendam e se munam delas no quotidiano nas mais diversas situações. Não se trata 367 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar aqui de impor ideias ou de dizer apenas como algo se processa, deve mostrar-se como se concretiza e a utilidade para o dia a dia destes elementos. Estando perante uma população adulta é importante que se coadunem a teoria com as reais necessidades de cada grupo, apelando ao sentido prático das atividades e dos conhecimentos transmitidos. Conquanto anteriormente tenhamos destacado o papel dos formadores de LC, estes precisam dos outros módulos e dos formadores para concretizar a partilha de informação e um trabalho cooperativo, de modo a que haja uma simbiose entre o trabalho da equipa e do grupo de formandos. Porém, estamos conscientes que tudo isso implica muitas porções de disponibilidade, de empenho e de criatividade de quem contacta com estes públicos. Estas são componentes fundamentais para que se criem nestes indivíduos novas disposições duráveis que fomentem os níveis de literacia da leitura. Independentemente de onde decorram os cursos EFA consideramos que é necessário gizar laços de proximidade entre as bibliotecas públicas ou escolares e procurar caminhar no mesmo sentido. Muitas vezes as burocracias podem quebrar esses liames se os atores responsáveis não forem persistentes. A finalidade não é aumentar o número de utilizadores na biblioteca, nem pensar que quando lá vão foram passear. Pretende-se que esta aliança desperte motivação, curiosidade e conhecimento de um espaço cultural ignoto em muitos casos. Os cursos EFA têm uma duração limitada no tempo, por isso é essencial que ao longo desse período se criem laços com as bibliotecas para que estas se constituam como um sustentáculo para estes indivíduos após a finalização do curso. Sem esse apoio as disposições podem desvanecer-se e até mesmo regredir. Pensando nas bibliotecas, de modo particular em Vagos, tendo em conta que este é o concelho que congrega a quase totalidade do nosso grupo e que no presente não tem uma biblioteca propriamente dita, julgamos que esta, quando funcionar em pleno, deve avaliar as necessidades da população e a partir daí desenvolver projetos com o intuito de conduzir estes públicos adultos para o seu espaço, criar-lhes necessidades, estabelecer simbioses entre eles e os mais novos, nomeadamente os filhos. Se a biblioteca (aqui falamos da equipa que a constitui) consegue chamar até si não só os mais pequeninos, mas também os pais dá azo a que estes possam acompanhar os filhos na descoberta dos recantos, das atividades, da leitura e possam fomentar laços de formas distintas. Permite o estreitar de elos e a criação de oportunidades singulares de partilha quer para os pais 368 As últimas páginas parecem já desvanecer-se… a viagem está prestes a findar quer para os filhos. Este é um elemento bastante relevante, tendo em conta que sentimos, ao longo dos seus discursos, a ausência de estímulo para a leitura neste concelho. Após todo um trabalho desenvolvido com estes públicos torna-se uma conquista quando ocorre uma decisão interna, muitas vezes não pensada, sem um planeamento racional explícito da parte de cada um destes indivíduos, mas que atua praticamente através do corpo, encontrando o espaço, o tempo e a atitude necessária para se submergir na leitura silenciosa de um livro (Durán, 2009). Apenas uma destas decisões internas que percebemos, às vezes, através do brilho num olhar, faz com que ganhemos fôlego para continuar a querer partilhar livros e histórias que encerram sensações e aromas, palavras e cores com adultos que enquanto crianças não tiveram tempo para descobrir os labirintos que os livros escondem. 369 R eferências bibliográficas Monografias e contribuições em monografias Aboim, S. (2007). 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