editorial 20 anos de Mercosul: hora de administrar conflitos e avançar nas questões estruturais No último dia 26 de março completaram-se 20 anos da assinatura do Tratado de Assunção, que criou o Mercado Comum do Sul (Mercosul), composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O tratado foi incorporado à legislação brasileira pelo Decreto no 350, de 21 de novembro de 1991, e entrou em pleno vigor em 31 de dezembro de 1994. Para o Brasil, o tratado revestiu-se de um significado especial, tendo em vista que, apenas um ano antes, o país havia iniciado um processo de liberalização comercial ampla, após cerca de 60 anos de práticas altamente protecionistas. Quando avaliado apenas do ponto de vista comercial, o Mercosul é um inegável sucesso. Nos primeiros anos, as exportações intrabloco cresceram à taxa média anual de 25,4%, cerca de 3,5 vezes mais do que o crescimento das exportações para os demais países. Após uma retração entre 1999 e 2002, em virtude das crises cambiais que atingiram os países no período, o comércio intrabloco voltou a crescer mais rapidamente: cerca de 21% a.a. até 2010, contra alta de 15% das vendas para o resto do mundo. Como seria de se esperar, a importância do bloco é tanto maior quanto menor o tamanho dos países. Na Argentina, cerca de ¼ das exportações e mais de 1/3 das importações são realizadas com os parceiros do bloco. No Paraguai, esses percentuais são de 48% e 41%; e no Uruguai, 28% e 45%. Já no caso do Brasil, cerca de 11% das exportações destinam-se aos três parceiros, e apenas 9,1% das importações originam-se deles. 2 RBCE - 107 Esses números não significam que o Mercosul tem pouca relevância para o Brasil, por dois motivos. Primeiro, o Mercosul é um mercado extremamente importante para os manufaturados brasileiros: 91% das exportações para os parceiros referem-se a esses produtos, e o bloco assimilou 25,8% das exportações brasileiras desses produtos em 2010. Mais importante do que isso é o fato de que quase 70% do crescimento das vendas de manufaturados brasileiros entre 2005 e 2010 deveram-se às compras provenientes do Mercosul. Na ausência do bloco, o recente processo de primarização da pauta brasileira teria sido ainda mais intenso. O segundo motivo diz respeito à composição do saldo comercial do país. Com efeito, o superávit comercial obtido com os parceiros do Mercosul em 2010, de US$ 6 bilhões, foi o maior entre todos os principais blocos econômicos do mundo, superando inclusive o saldo obtido com regiões para as quais o Brasil é um grande exportador de commodities, como União Europeia, Oriente Médio e Ásia. Esses fatos não devem, contudo, ofuscar a escassez de avanços na organização institucional do bloco e o surgimento de tensões que parecem afastá-lo cada vez mais de seus quatro grandes objetivos originais, conforme explicitados no artigo 1 do Tratado de Assunção: (i) promover a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países; (ii) estabelecer uma tarifa externa comum e uma política comercial comum; (iii) promover a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados partes para assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados partes; e (iv) harmonizar as legislações dos países membros nas áreas pertinentes ao processo de integração. Com frequência, o debate público sobre os rumos do Mercosul está focado nos dois primeiros pontos citados acima. A permanência de diversos tipos de restrições ao comércio e a tendência crescente de aplicação de medidas unilaterais restritivas, notadamente (mas não apenas) por parte da Argentina, são normalmente considerados os grandes problemas que limitam as possibilidades de aprofundamento da integração. Adicionalmente, a execução de uma política comercial comum em relação a terceiros países também tem se mostrado difícil, e a impossibilidade de os países membros negociarem acordos com terceiros países é considerado um ônus pesado, restringindo a capacidade de acesso a terceiros mercados. Entretanto, os problemas mais graves para o processo de integração residem nos pontos (iii) e (iv). Desde o início, reconheceu-se que havia uma assimetria importante entre os países, seja em termos de tamanho das economias, seja em termos de competitividade e diversificação de suas estruturas industriais, seja ainda em termos de diferenças nos arcabouços legais e regulatórios. A experiência de integração econômica em outras regiões do mundo, notadamente o caso da União Europeia, demonstra claramente a importância de desenvolver e aplicar mecanismos destinados a reduzir essas assimetrias. O fato é que muito pouco foi feito nesse sentido no âmbito do Mercosul. Nos primeiro anos, os países pareceram satisfeitos com os bons resultados comerciais obtidos e empurraram as discussões para baixo do tapete. A crise enfrentada pelo bloco no período 1999 e 2003 e o quadro que surgiu em seguida acabaram por aprofundar ainda mais as assimetrias, especialmente em vista dos ganhos competitivos alcançados pela economia brasileira, alimentando um clima de certa desilusão com os reais benefícios que o Mercosul seria capaz de gerar, principalmente para os países menores. Somaram-se a isso uma mudança de postura do governo argentino, que assumiu um viés mais protecionista, e a incapacidade de o Brasil liderar efetivamente o trabalho de consolidação do bloco. agressividade comercial dos chineses. Portanto, não há como evitar novos conflitos internos, especialmente em um quadro no qual o Brasil continua sendo altamente superavitário com os sócios e no qual esse superávit é de extrema importância para as contas externas do país. O avanço institucional do Mercosul exige que se façam concessões e que se corram alguns riscos, algo que está absolutamente fora das prioridades dos países do bloco. Por outro lado, as dificuldades conjunturais não devem servir como pretexto para a adoção de medidas mais drásticas que possam comprometer o futuro do bloco. Mais do que nunca, é hora de aprofundar o diálogo, tanto em nível geral quanto setorial, para administrar os conflitos de curto prazo e evitar retrocessos permanentes. Não se pode perder de vista os benefícios já alcançados e os ganhos potenciais que a integração sub-regional pode trazer aos países. De uma forma ou de outra, o Mercosul acumulou um considerável patrimônio econômico e político ao longo destes 20 anos, o que significa que eventuais rupturas representariam perdas expressivas para os países, muito maiores do que os prejuízos gerados pelos atritos comerciais. Tal patrimônio deve, sim, ser usado para alavancar consensos e estimular debates que conduzam à solução dos problemas de ordem estrutural que permitam a apropriação, por parte de todos os Estados membros, dos reais benefícios da integração. Fernando Ribeiro Economista-chefe da Funcex O cenário internacional atual não é, certamente, o mais adequado para promover acordos comerciais, visto o comportamento nitidamente defensivo dos principais países e as preocupações com o ritmo de recuperação da economia mundial, a valorização do dólar e a RBCE - 107 3