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PAULO HENRIQUE
PRESSOTTO
2013
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ISSN - 2317-1871 | VOL 02 – 2º Edição Especial – JUL – DEZ 2013
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Sumário
Entre os espelhos .......................................................................................................................................... 2
Italianinho...................................................................................................................................................... 6
O monstro.................................................................................................................................................... 12
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Entre os espelhos
Ela via uma luz fina a trilhar sobre a escrivaninha marrom. Gostava de ver as
partículas de poeira flutuando por esta fita luminosa, era como se elas estivessem subindo os
degraus para alcançar o lado de lá, outra dimensão. Realizavam uma dança calma. Ao mexer as
mantas, outros tantos pozinhos mergulhavam nas vertentes. Flutuante, ela personalizava estes
estranhos corpos em meio aos pensamentos. Além disso, ela enjoava debaixo das cobertas e
ouvia o pio dos pássaros pelos beirais. A hora marcada. A língua amarga. Era o momento de se
levantar, não queria se entristecer por ali. Esse fio de luz refletia o fio que guardava dentro do
peito. Ouvia distante sua mãe bater as claras numa tigela de vidro e isso a sensibilizava. Todas as
manhãs, a mãe batia as claras. Ruídos dos sonhos. O despertar e o viver.
O acinzentado de uma nuvem participava desse instante. Era quarta-feira. Abriu um
pouco a janela e avistou o gato deitado na manhã. A cortina marrom escurecia mais o espaço e se
movimentava ao vento da chuva que já ameaçava o juízo, o colorido do dia.
Abriu os olhos. Eram quatro horas da tarde quando resolveu sair de casa. Olhou-se no
espelho, enxugou as lágrimas, penteou os cabelos brancos com um pente dourado. Depois, com
os dedos finos, penetrou as madeixas macias, em forma de pequenas cobras, massageando um
pouco o couro cabeludo. Sacudiu a cabeleira grisalha, como se quisesse os anos passados, como
se a juventude... Em frente ao espelho, percebeu sua boca levemente torta, porém havia nela uma
força felina ao abri-la ao máximo, revelando alguns dentes tortos. Já se familiarizara com os
contornos do tempo impregnados na imagem refletida. O entusiasmo de se ver só aumentava e
evitava ficar longe do espelho. Olhava-se e media seu desgaste, suas rugas, suas cicatrizes. Dessa
forma, parecia controlar o tempo e ficar longe do mistério funesto. Com o lápis preto, realçava os
olhos azuis, escondendo um pouco a extravagância dos filetes de carne nas pálpebras inferiores.
Apesar de o batom escorrer pelos sulcos em volta de seus lábios, passou um de vermelho fraco
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que delineava sua boca grande. As faces, ela coloriu de rosa. Era uma boneca envelhecida.
Minutos depois, despiu-se diante do espelho, naturalmente feminina, e examinou a
pele alva que de tão transparente dava para ver as veias quase azuladas. Os seios branquíssimos e
caídos tinham as aréolas rosadas, grandes, simétricas.
No guarda-roupa, encontrou um vestido vermelho com rendas brancas no decote e
nas mangas, calçou um par de sapatos pretos com um detalhe em prata. Diante do espelho, foi se
sentindo bem. Um vento suave tocava-lhe as costas e cochichava talvez um segredo ao pé da
orelha. O corpo respondia com arrepios.
Com os passos firmes e decididos, ela caminhou até a sala, onde avistou o portaretrato de seu amor, um soldado de rosto retangular e de olhos pequenos. A fotografia em preto e
branco revelava um rapaz forte que levava, sobre a cabeça, uma boina com um distintivo do
exército. Seguiu cautelosa até o retrato e, docemente, com as pontas dos dedos, levou seu beijo
àquela boca de papel.
Na sala, a cortina brilhante se transformara então numa saia gigante. A feminilidade
perfumada exalava-se pelos movimentos ondulantes da seda. O vento parecia trazer-lhe algo.
Quem sabe uma carta, um segredo no bilhete esperado. Fazia-se um silêncio profundo.
Nitidamente ouvia o andamento do tempo nos ponteiros ritmados do relógio de parede.
Recordava-se da infância no sítio dos avós, onde chupava as mangas grandes,
amarelas e suculentas. Entre as folhas e as cercas, o vento gritava seu nome e ela achava que ele a
queria. Pensava às vezes que todos ouviam os gritos, mas no fundo sabia que não, pois estes eram
somente para ela. Um segredo entre ambos. Para passar o tempo e conquistar mais amigos,
imaginava histórias e as contava para os primos que ali ficavam.
Da rua vinham os ruídos da velocidade, os carros iluminados, as motos barulhentas,
as pessoas pelas calçadas, as construções metálicas. Um ritmo que vinha ao encontro de sua vida.
Já não tinha filhos, nem parentes, nem amigos tão perto. Com Arildo, teve dois filhos, Lucas e
Lúcio, e adotara Suely. Eles já não viviam com a mãe, estavam longe e ela em casa. Raramente
telefonavam para perguntar se ela estava bem, se estava tomando as vitaminas e fazendo as
caminhadas. Talvez eles já não sentissem sua falta, como ela também já não sentia.
Mergulhava nas caixas antigas, nas canastras, nos álbuns amarelecidos e começava a
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sentir uma alegria de estar livre. Ela, a menina com desejos. Um de seus afazeres era o de
alimentar os gatos sem apego. Olhava-os nos olhos em busca do segredo, mas o que sentia era
um vento morno cobrir-lhe a pele e as recordações inventadas da infância, o seu namoro com
Arildo, o casamento, os partos doloridos.
Agora se sentia uma menina. Tocava a face daquele homem de um tempo num portaretratos. Um sorriso irônico lhe desenhava o rosto. Abria as janelas dos quartos de forma que a
luz quente pudesse invadir todo o espaço e tocar todos os cantos. Isso lhe fervia o sangue e lhe
dava mais coragem, mais ânimo para construir uma nova história.
Num instante, dirigiu-se até a cozinha e bebeu uma taça de vinho tinto seco. Em
seguida, olhou as flores ao sol na janela. Adorava as cores das flores e das frutas. Parecia ter cada
vez mais forte a juventude dentro de si.
Quando criança, ela fugia de casa e ia brincar com os meninos da vila pelos quintais,
pelas ruas. Tinha amizade com todos eles. Nas brincadeiras, ora fazia o papel da mulher
domesticada, ora da prostituta, assim como o do homem. Então foi se acostumando com essas
maravilhas. Nos jogos, ela e os meninos procuravam entrar em terrenos escondidos ou em
construções abandonadas. Lá permitia que eles a tocassem em lugares proibidos. O proibido era
algo muito excitante para os garotos, mas principalmente para ela. Quando adolescente,
continuava a beijá-los e a dormir com eles. Ao conhecer Arildo, moço da capital, apaixonou-se e
logo engravidou. Casados, os dois viveram juntos por um longo tempo.
Longe dos filhos e viúva, ela se sentia só e com desejos, mas tinha ainda a pele verde.
O rubor de menina projetava-se em seu semblante, dando lugar aos poucos a uma nova cor. No
momento, achava-se diferente das outras mulheres de sua idade. Sentia-se deslocada do mundo, e
as dores que sofria já tomavam outro rumo porque o que necessitava fazer não dava espaço para
elas. Os fungos das paredes e de sua pele já se diluíam na mágica da mudança e das passagens
das luzes que revoavam entre os objetos antigos, entre os odores daqueles anos lá.
Pela janela, o vento morno entrava e lhe banhava o corpo em suaves perfumes de
jasmins, tulipas e hortênsias ejaculados dos canteiros. Ele vinha ao seu encontro em forma de um
deus lindíssimo, em trotes de cavalo da mais lúcida altivez e virilidade ao expandir-se em cheiro.
Sentia-se nova, rejuvenescida. Ganhava um novo ânimo e voltava às ideias de
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menina. As luzes clarearam todos os cômodos. Sua roupa, aos poucos, delineava seu corpo. Os
cabelos recebiam um novo brilho e um tom enegrecido. Ela já não pensava no tempo perdido,
mas sim com quem ainda podia sonhar no momento. Num ritmo acelerado, buscava o espelho e
percebia-se iluminada. Sentia a pele mais firme. Seu vestido flutuava pelos recantos da alma,
enquanto ela observava os ponteiros esfarelados.
Por uma pequena abertura, via o vizinho contemplar, do outro lado da rua, um novo
dia que já irradiava. O sol amarelecido dourava seus músculos firmes. Aquele olhar clamava pelo
conhecer, e a boca estava sedenta por um beijo longo, profundo e doloroso de amor. O frescor da
manhã dava o toque ao desenho daquele jovem lindo. Necessitava entregar-se a ele como uma
noiva pronta para renascer. Abriu despudoradamente a janela e esticou os braços para a luz que
enchia a casa. Mergulhou então no caminho resplandecido e fez um sinal para aquele. Gabriel já
não reconhecia aquela, mas atendeu seu chamado. Adentrou-se pela casa como se fosse um
cavaleiro, embriagado pelo perfume das flores desabrochadas e impregnadas nas paredes.
O corpo nu do rapaz desfazia-se ao intenso carinho da moça que o engolia aos
poucos. O corpo rijo, que muito galopava, esvaziava-se como um balão. Sobrava-lhe a pele e
nada mais. Tudo era sugado por uma boca e um corpo sensualmente devoradores. A mulher
degustava prazerosamente as partes mais suculentas do homem.
Pela noite caminhou até um bar, pediu uma taça de vinho-sangue e bebeu calmamente
o líquido. Em seguida, seduziu uma jovem que se dizia chamar Aboré. Esta moça a olhava
admirada. Entre as estrelas e a relva úmida do instante, a simetria daqueles corpos girava o
momento num eterno círculo de esplendor, o dia e a noite em fusão. Embriagada pelo desejo, a
jovem sumia no sempre ao mergulhar consciente em meio às pernas alvas daquela felina, daquela
mulher de desejos em labirintos, com uma cabeleira de serpentes.
Em cada esquina da cidade, moças e rapazes eram deglutidos no ardor da paixão e ela
se remoçava, tornava-se cada vez mais livre e forte. Já não se importava com o passado, pois este
não mais lhe dizia. Abandonou a casa, as poeiras e as recordações antigas. Nua partiu e nunca
mais voltou. Uma vez foi vista por ali, por lá. Agora se chamava Luz. Os anos passavam e ela se
transformava em um ser de perfumes infinitos porque tinha consigo o vento e também os desejos
pelas flores úmidas em meio às curvas lindas. O tempo lhe trazia o segredo da mágica, dos ruídos
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das asas dos jovens renovados em seu amor, da sua realidade de se fazer o mais seguro dos seres
entre os espelhos, entre os vãos das dores, entre as histórias da vida.
Italianinho
Da varanda a mãe chamava por ele. As irmãs na correria davam os últimos retoques
nos vestidos coloridos para a festa à noite. Italianinho, o Giulio, gostava de ajudar o pai na adega.
Seu Patrízio tinha uma propriedade onde cultivava uvas para a produção de vinho. Era feliz por
produzir a melhor bebida da colônia.
Giulio ouvia ao longe a mãe chamá-lo complacente. Ele estava distante, encima de
uma pedra, vendo a natureza existir. A vida ali parecia monótona para muitos, mas para ele uma
foto ampliada. Conseguia perceber os detalhes daquele espaço silvestre. Sua vida era ir à escola,
aprender o italiano, voltar à casa e auxiliar o pai no trabalho. Observar as cores do dia era algo
que o diferenciava dos demais.
No lar, era o protegido, o filho mais fofo, o mais lindo. Tinha três irmãs e mais um
irmão caçula. Ser o primeiro filho homem lhe garantia regalias: uma sobremesa pedida, um jogo
no escuro, uma história do mundo. No entanto, havia algo mais, um carinho especial que, por
vezes, lhe deixava aflito.
A casa era pequena, morna, aconchegante, e ali eles viviam grudados um no outro. As
fotografias se espalhavam pelo ambiente e elas causavam, por momentos, uma tristeza, uma
saudade do não vivido. Havia fotos dos avós maternos e paternos, dos pais, dos irmãos e
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principalmente dele.
No inverno, dormiam todos juntos, aninhados em meio aos cobertores e às mantas
que afofavam o grande leito e os protegiam do frio. No verão, tomavam banhos juntos na lagoa,
numa enorme algazarra. Giulio, às vezes, se sentia deslocado do ambiente, porque a naturalidade
da família parecia lhe incomodar na medida em que os olhares taciturnos brilhavam o não
revelado.
Eles sempre se reuniam ao redor da lareira para relembrar as histórias da família, dos
conhecidos mais antigos. Juntos à mesa comiam o colorido das frutas e os sabores das massas
preparadas pela mãe. O Sr. Patrízio cuidava da bebida como sempre. Ao fundo, uma música
italiana do tempo em que os avós e os pais viviam na Itália.
Aos domingos, os nonni apareciam e o ritmo daquela família exagerava. Se os
vizinhos ficassem em silêncio, escutavam os ruídos que eles faziam em considerável distância.
Não entendiam a língua que eles falavam, mas ficavam ali a ouvi-los, a decifrá-los. Em verdade,
apreciavam os cantos vindos de lá. Gostavam de ver Italianinho movimentando-se por ali e ouvir
deleitosamente as canções vindas de sua voz perfeita.
O ambiente era perfumado de carinho. A mãe lhe dava comida na boca, o pai lhe
dava o suco de uva doce, as irmãs penteavam os seus cabelos e cortavam as suas unhas.
Constantemente, eles lhe faziam carinhos em meios aos ternos beliscos. Os avós o observavam
com admiração ao vê-lo tão lindo, meigo e educado. O único que, às vezes, quebrava o clima de
zelo era o irmão mais novo, o ciumento.
Desde que Geminiano nasceu, foi deixado de lado por ser feio e ter os dentes
saltados, os lábios extremante finos, as pernas tortas, uma chuva de pintas sobre a pele e um mau
hálito fortíssimo, além de ser um pouco gago. Sempre levava safanões dos pais, das irmãs e dos
avós. Um dia, beliscaram-no tanto que ele precisou cobrir o corpo para esconder as imensas
manchas roxas dos amigos. Gemia baixinho para receber o carinho do irmão lindo e querido.
Com o tempo, foi se acostumando com aquela preferência dos pais e das irmãs. Logo encontrou o
seu caminho e entendeu que a beleza do Italianinho era grande e, por isso, não valia a pena se
ressentir e competir. Resolveu, então, dedicar-se ao plantio e à colheita das uvas do lugar, e
deixar o ciúme de lado. Além do mais, o irmão cantava como ninguém nas manhãs ensolaradas
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pelas árvores mais frondosas do imenso quintal, e ele desafinava até na fala.
A dedicação ao Italianinho era tamanha que, quando soltava gazes, todos da família
corriam para cheirá-los, diziam que aqueles ares tinham o aroma das flores das colinas italianas.
Na hora do banho, as irmãs, Graziela e Lana, preparavam a banheira com as ervas colhidas ao
amanhecer. Elas despertavam com os primeiros raios da manhã para colher também as flores nos
jardins ainda sob o sereno. Na água da banheira, as diferentes pétalas de rosas e gardênias
bailavam cheirosas, iluminadas pelos olhos admirados das irmãs ao ver o irmão mergulhado em
puberdade.
Num determinado momento, Italianinho teve vergonha de mostrar o pênis crescido e
os pelos negros e brilhantes, mas depois seguiu a natureza do lar. De vez enquanto, sentia que as
irmãs o tocavam na intimidade e ele não se mostrava constrangido porque naquele instante
precisava entender os desejos.
O pai tinha orgulho de vê-lo quase homem com uma penugem que sombreava as
pernas e o peito. Via no filho os reflexos de sua adolescência nas terras distantes e dos desejos
que talvez sentisse pelos rapazes. Brindava este momento com uma taça de vinho brilhante
estendido ao sol.
Após o banho, a mãe, sempre amorosa, lhe penteava o cabelo e lhe dizia palavras
coloridas ao pé do ouvido. Tais cores lhe causavam risadas incontidas a contaminar o ambiente.
Todos então começavam a rir também e só paravam quando ele parava, e se ele recomeçasse
todos ririam novamente. Os dias seguiam-se assim.
A casa do lado de fora era azul e por dentro tinha as paredes brancas, as portas e as
janelas verdes e o teto era vermelho. Os objetos traziam recordações de uma Itália que o tempo
não conseguia fazê-los esquecer. Vez ou outra, Italianinho via os pais chorarem num canto e,
mais que triste por vê-los assim, tinha uma curiosidade em saber o motivo do choro, mas não
ousava porque talvez não entendesse a complexidade de tais instantes. Todos da família sempre
ouviam as canções italianas alegres para animar a vida e eram aparentemente felizes. Dentro de
casa, os avós e os pais se comunicavam em italiano. Desde criança, ele e os irmãos aprenderam
esta língua e o português. Quase sempre misturavam os idiomas e isso era motivo de riso entre
eles.
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Italianinho não conhecia outro mundo além daquele. O contato externo era pouco,
este ocorria somente quando ia à cidade com os pais para comercializar o vinho e fazer compras
num armazém e ir à escola. No entanto, com o tempo, a curiosidade pelos outros recantos, pelas
outras árvores, pelos outros pássaros, foi crescendo.
A propriedade onde viviam estava protegida por uma cerca alta e uma porteira de
ferro que dificultava a entrada de estranhos. Havia oito cães que faziam a guarda e mais o
Argemiro, o caseiro, que era um dos agregados daquele espaço. Este tinha a pele e os olhos
vermelhos de fogo e era considerado um homem mau. Maltratava sua mulher, a Dona Silvana.
Ela sempre apresentava manchas roxas na pele por causa dos safanões que levava dele. Um dia,
ela resolveu se vingar dos maus-tratos e, num momento de defesa e fúria, mordeu o nariz do
marido, deformando-o para sempre. Por mais que o Sr. Patrízio e Dona Florência tivessem
vontade de aconselhá-los, sobre os constantes desentendimentos, não palpitavam na história,
porque achavam que em briga de casal não se deve meter a colher e também não queriam receber
intromissões alheias em suas vidas, caso resolvessem brigar também, mas isso eles achavam que
nunca aconteceria. A regra era que cada qual cuidasse de sua vida.
Nessa manhã, as irmãs estavam numa gritaria eufórica e todos os vizinhos, próximos
à casa, ouviam os ruídos que faziam. Cantavam sem parar, porque iam à festa logo mais à noite.
Na agitação, por vezes brigavam muito e saíam machucadas de tapas e de beliscões. As duas
moças eram cúmplices em algumas coisas, mas quando se tratava de roupas, joias e de
Italianinho, tornavam-se competitivas para não dizer inimigas.
Muitos conhecidos e amigos da colônia iriam à festa no clube. Era o único lugar onde
os jovens da colônia podiam se relacionar e arrumar alguém para namorar. Os pais de Italianinho
não viam com bons olhos a ideia de deixá-lo ir, pois imaginavam o excesso de olhos gulosos
encima dele e isso poderia cansá-lo a qualquer hora. Na verdade, eles não queriam que as pessoas
aproximassem dele com interesse que não fosse o de uma simples amizade, mas isso era difícil.
Além de ser um filho muito especial, Italianinho era quase divino e não pretendiam dividi-lo com
ninguém.
As moças da vizinhança, ansiosas também pela festa, queriam vê-lo, dançar com ele,
namorá-lo. Preparavam-se muito. Para não engordar, quase não comiam. Havia uma disputa,
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entre elas, para ver com quem ele ficaria na festa. Por isso, a guerra já estava declarada e por
debaixo das saias levavam as suas armas mais secretas como um perfume erótico, um pó
excitante e um segredo de estrelas.
Havia, entre essas garotas eufóricas, uma diferente que se chamava Íris. Ela era uma
menina muito ativa e conseguia se destacar perante o grupo porque se preocupava em
simplesmente fazer as coisas do seu modo. Íris, ao passear perto da casa de Italianinho, falava
com ele. E sempre que podiam, os dois caminhavam juntos até o rio onde conversavam sobre as
outras paragens, os lugares que precisavam conhecer. Íris viajava muito, ia de um lugar para o
outro, e contava as suas aventuras ao Italianinho. Ele ouvia com atenção as histórias fascinantes.
Ela lhe relatava os lugares que já tinha ido e as histórias das pessoas que conhecia, bem como as
experiências eróticas que tinha tido. Italianinho se entusiasmava com os relatos porque era
seduzido pelas palavras, pelos mares.
Íris contava ao italianinho sobre a vida de um rapaz que se chamava Romeu e que
vivia por ali. Dizia que Romeu sonhava em viajar, em conhecer outros mundos. Contou também
que ele era pobre, não tinha família e vivia pelas terras em busca de uma caça, de uma fruta e
banhava-se nos lagos, nas chuvas. Romeu era bonito e sedutor, parecia um guerreiro e que, em
suas andanças, já havia enfrentado animais selvagens e o homem. Era um rapaz bom, inteligente
e sem sorte no amor.
Nessas histórias de Íris, surgiu a Luma, uma moça rica que morava por ali. Ela não
era compreendida pela família que a tratava com desdém pelo fato de ela cantar o dia todo e
sempre ouvir músicas. Contava que Luma era uma artista e por isso buscava uma vida diferente
daquela que seus pais lhe impunham. A garota era amarrada debaixo de uma árvore e, quando
escapava, a natureza respondia, através dos cantos desta jovem, com cores vivas aos olhos dos
inimigos. A realidade doía neles.
O Sr. Patrízio e a Sra. Florência saiam muito durante o dia para ganhar dinheiro e
trazer alguns presentes para os filhos. Estes ficavam dentro de casa a esperá-los, realizando
alguma tarefa doméstica, cantando, ou passeando pelos canteiros de morangos e pelas macieiras
cheirosas. Nessas oportunidades, Giulio saía com os braços abertos em direção aos recantos
fotográficos explodidos no florir.
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Durante a fantasia da festa, Italianinho causava dores terríveis aos corações das
pessoas que o olhassem o semblante puro e o caminho de seus olhos. Inúmeros casos foram
relatados sob os telhados, sobre as copas frondosas e entre as vertentes dos peregrinos. Contavase que os homens casados tornaram-se febris e que haviam perdido o apetite; e que as mulheres
casadas viam em seus maridos um horizonte distante e os adolescentes pediam aos santos devotos
a resolução para uma paixão desmedida. Seguiu-se assim até que uma revolta foi surgindo.
Era primavera quando Giulio quis conhecer os amigos de Íris. Combinaram então,
numa tarde, de se encontrar perto do rio. Luma foi a primeira a chegar, em seguida Romeu.
Conversaram muito e a partir desse momento tornaram-se amigos coloridos. No entanto, a
relação entre eles apontava um mistério. Esse segredo era porque a nudez virginal de Giulio
provocava sentimentos conturbados em todos. Romeu, por exemplo, não conseguia levar sua vida
como antes. Dia e noite pensava no amigo. Com o tempo, seus sentimentos foram mudando e da
amizade passou a admirá-lo, desejando-o como companheiro para a vida, um anjo que queria
para si desesperadamente. Com isso, um conflito foi gerado e Romeu não sabia mais o que fazer
com aquele desejo. Não conseguia mais comer e passava os dias chorando, pois não via, nos
olhos do amigo, o mesmo amor, a mesma paixão que sentia por ele, até que um dia desencantouse e sumiu por entre as terras frescas de uma madrugada perfumada de lua.
Íris, que se fazia de forte, passou pela mesma dor. Da admiração por aquele garoto,
um amor louco brotou em seu coração e ela chorou dias e dias até que o vento encobriu sua face
de folhas. Caminhava na nudez filosófica, protegida somente pelas ramas das histórias de outras
paragens.
Em meio a uma canção de primavera, Luma descobriu que a vida não fazia sentido
sem o carinho de Giulio. Loucamente ela o queria. Chegou a cantar algumas palavras, porém
percebeu que ele não correspondia, pois a olhava com os olhos de anjo e isso lhe provocava um
choro interminável. Em suas andanças, os cânticos da mata sufocaram a sua dor e de sua boca
saíram aves cantoras das mais diversas cores até as janelas dos amantes.
Com as partidas dos jovens e a confusão entre os que o amavam, nasceu, pela
manhã, nos corações de toda a gente, a vontade de se acabar com o sofrimento galopante do
coletivo. Aquele rapaz, de beleza estonteante e divina, deveria ser morto e com o seu sangue
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irrigariam os canteiros mais belos dos jardins. A ideia criou força e Giulio foi perseguido algum
tempo na mata até que, encima de uma colina, avistou toda a gente implorando a sua morte. Já
não reconhecia mais a sua família nem as pessoas. Pairava sobre a cidade a estranheza. Aflito
pelo que poderia lhe acontecer, encarou todas elas e, num minuto mágico, enormes asas
brotaram-lhe nas costas e num salto voou até o horizonte, onde sua história começou a existir tal
qual o voo e o canto de um pássaro.
Ao vê-lo livre à procura de um caminho, as pessoas se viam diante de um vazio
angustiante. O sentimento de perda era tão intenso que elas começaram a se matar pelos olhos.
Para se salvar do labirinto, cada qual iniciou então a destruição de suas próprias algemas e, dessa
forma, foi que surgiu, por entre os desejos e as histórias, um espelho de lembrança, uma
constância alegre, simplesmente.
O monstro
Uma luz suave iluminava vagarosamente o quarto. O lençol reluzia o corpo em seu
sabor. Despudoradamente, abriu os olhos e respirou fundo. Espreguiçou as pernas e os braços em
simetria. O relógio despertou. Seis horas da manhã. Do lado de fora da janela, uns pássaros
saltitavam e olhavam para ele. Caminhou até a janela para abri-la como numa cena de filme. O
vento da manhã tocava nos gerânios, em sua pele e movimentava silenciosamente a cortina de
seda. Sobre o centro de uma pequena mesa redonda, próxima à janela, um buquê de lírios lhe
trazia uma lembrança feliz da noite de ontem. Além das flores, havia uma agenda e um caderno
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de anotações para a construção de uma nova história.
Tinha sorte de morar num lugar fantástico. O rio à vista cumprimentava a alma. Ele
flertava com a paisagem respingada de tintas vivas. A imagem lhe aguçava a percepção e as
lembranças. Num momento de alegria, sentiu saudades de voltar à casa dos pais que moravam
numa outra cidade. Talvez, com a viagem, recolheria novos temas para o próximo livro.
Tranquilamente desceu a escada, caminhou até a cozinha e preparou o café. Escolheu
as frutas que gostava de comer pela manhã: uma fatia de melancia e outra de papaia, morangos e
metade de uma banana picada ao leite morno com mel. Sentia prazer com o cheiro de café que se
espalhava pelos cômodos e isso lhe trazia recordações de um tempo e de um lugar já distantes.
Ele se lembrava das ruas, das árvores, dos recantos daquela casa labiríntica, numa cidadezinha
pequena e charmosa. Nos goles de café, as histórias passadas iam surgindo e se amontoando, e
com elas os sentimentos confusos. Isso lhe causava momentos de reflexões e tristeza que faziam
com que ele prosseguisse ali na distância, construindo sua vida.
No momento em que contemplava sua história, o telefone tocou. Não costumava
receber ligações àquela hora. O som do aparelho roubava por segundos toda a uniformidade do
espaço e a serenidade de uma luz que penetrava a janela na intenção de acalentar as formas e
definir as cores nas primeiras horas de uma manhã. Ficou apreensivo e atendeu o chamado que
lhe mudou a expressão do rosto. Minutos depois, desligou o telefone. Olhou o espelho, que
ampliava o caminho da sala, e sentiu-se alegre porque ia rever os pais.
Quase não tinha tempo de sair de casa, pois a vida o transformara num homem
ocupado, numa pessoa que não conseguia se desvencilhar tão facilmente dos trabalhos. Tinha um
contrato com a editora que devia ser cumprido dentro do prazo, além disso, sempre que retornava
àquele lugar, também retornava ao passado e com ele as dores em seus matizes ganhavam vida e
o feriam.
Arrumou a mala de uma semana. Em cada peça que guardava, sentia o mundo
suspenso e a certeza de que o destino estava se encarregando de uma mudança. Já não tinha mais
força para voltar. O perfume das roupas era o elo que o ligaria ali quando estivesse longe. Isso lhe
dava certa segurança para prosseguir.
Pediu à empregada que cuidasse do gato. Alimentou os pombos que arrulhavam na
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janela. Em seguida, apanhou a agenda, o caderno de anotações, os óculos de sol, e partiu.
Na estrada, via pelo retrovisor o caminho que deixava. Em sua frente, o outro vinha
forte. A vegetação se modificava conforme o carro avançava. Havia pessoas que caminhavam
pelo acostamento, às vezes famílias inteiras. Via uma que puxava um carrinho com os únicos
pertences. Carregavam panelas, mantas coloridas e umas vasilhas de alumínio brilhantes.
Entendia que, além da sobrevivência, aquela gente lutava por uma luz cujas imagens ela própria
não sabia definir. Naquele momento, então, as famílias faziam o melhor para se manter vivas, e
ele também.
Quando adentrou pela cidade, ele sentiu um frio pelo corpo. Uma alegria parecia lhe
acenar através das casas antigas, das hortas verdes, das ruas estreitas de paralelepípedos, das
calçadas forradas pelas flores dos ipês e das quitandas de frutas coloridas expostas para a venda.
Algo havia mudado nesses anos todos.
Dirigiu muito e estava cansado, precisava encontrar a rua da casa dos pais. Seguiu por
algumas quadras até perceber que estava perdido naquela cidade minúscula. Não entendia como
um lugar podia ficar tão diferente. Mas ele também ficou, mudou muito desde que saiu dali. Os
personagens que caminhavam pelas calçadas e ruas eram outros, nada parecidos com aqueles do
passado.
O crepúsculo lentamente se definia no horizonte como se fosse uma manta de fogo.
Notava pouco a pouco o dia se indo e um ar frio chegava de encontro à sua pele. Por cerca de
uma hora, rodou a cidade já acinzentada por uma densa noite de estrelas. Tratou então de
encontrar um hotel na cidade para que pudesse descansar e passar a noite. No dia seguinte, com
mais calma, encontraria, com certeza, a casa dos pais.
No entanto, algo estranho acontecia com ele, com os lugares, com as pessoas. Apesar
de achar tudo diferente, não podia ter se enganado de cidade, pois tinha avistado a placa com o
nome dela e as sinalizações, as ruas e os becos antigos pareciam estar ali.
Perto da praça central, avistou um hotelzinho. O letreiro em néon informava “Hotel
Saudade”. Achou o nome estranho, mas resolveu pernoitar nesse lugar. Adentrou pela recepção e
um moço preencheu a sua ficha. Soube que o café era servido entre as seis e nove horas da
manhã. Não estava com fome, pois lembrava que tinha almoçado num pequeno restaurante à
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beira da estrada. Além do mais, a comida parecia pesar no estômago. Pediu então ao
recepcionista que lhe providenciasse um chá. Tomou a bebida, mas não conseguiu dormir bem.
Acordou, no dia seguinte, com o vento da manhã batendo na janela de seu quarto, causando um
ruído diferente, como se fosse um despertador de um lado misterioso.
Tomou café e logo partiu em busca da rua. Achava engraçado não ter encontrado ela
no dia anterior, mas pensava em encontrá-la agora. No entanto, não foi o que aconteceu.
Rodou um bom tempo com o carro até que resolveu parar e refletir sobre o que estava
acontecendo. Notou que as ruas estavam diferentes, com outra vida. Pouco a pouco, começou a
ouvir nitidamente os pios das andorinhas vertiginosas, o vento nas folhas do chão e as correntezas
dos rios. Ao longe, ouvia os murmúrios das pessoas escondidas em suas casas fechadas. Um
arrepio foi descendo pelas costas, pelos braços. Sentia que alguma coisa estava errada. As casas,
as cores e as pessoas já não lhe pareciam familiares. As ruas, pela qual passara no dia anterior,
hoje já não eram as mesmas.
Desceu do carro e aproximou-se de um rapaz que apoiava uma das pernas no muro.
Perguntou-lhe se conhecia a rua que procurava, e ele disse “não” com os olhos desejosos. A
camisa entreaberta revelava um peito peludo. Nos braços grossos, uma tatuagem de traços
simétricos e confusos. Percebeu certo convite, certo interesse do rapaz por um programa.
Agradeceu ao moço que tinha um rosto familiar. Talvez alguém do tempo da escola.
Mais adiante, avistou uma senhora que varria a calçada com um lenço na cabeça,
parecia sua tia. Desceu do carro e perguntou se conhecia a tal rua, e ela disse calmamente que
estava ali há muitos anos e nunca ouvira falar dela. Naquele momento, sentiu um calafrio por
entender que um mistério pairava sobre a cidade, sobre a sua vida. Parecia que estava num
labirinto, num sonho que o imobilizava. Começou então a suar frio, seu rosto ficou branco e uma
vertigem surgiu. Acabou por sentar-se na calçada. Outra senhora caminhou até ele e quis ajudá-lo
ao oferecer um copo d’água.
Minutos depois, ela já sabia quem ele era e o que viera fazer ali, porém não
acreditava, achava que ele estava com o juízo frouxo. Então começou a cuidar dele. Ela tinha o
afago de sua mãe. Sentiu-se, então, certo conforto ao lado dela. Num instante, uma angústia
surgiu, pois percebeu que aquela senhora, tão amável, queria o seu dinheiro. Os olhos dela não
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transpareciam compaixão, mas ganância. Afastou-se irritado.
Em sua caminhada, logo chegou à praça central, e avistou umas crianças brincando,
além de um velho sentado no banco de madeira. Enfim, achava seu pai. Será? Sim, era ele.
Estava um pouco longe, mas dava para vê-lo. Lembrava que seu pai tinha o hábito de ler o jornal
todas às manhãs e de preencher as colunas das palavras cruzadas. Ficou aliviado. Estacionou o
carro e foi até lá. Os canteiros da praça eram dispostos de tal forma que os caminhos tornavam-se
tortuosos. Tinha vontade de cortá-los, mas as placas proibitivas, fincadas no chão, o impediam.
Estava tão ansioso que se atrapalhou com os caminhos, e o homem sentado ficava cada vez mais
distante. Além disso, muitas crianças foram surgindo de repente, elas vestiam roupas com
desenhos coloridos. Para não tocá-las, desviava de seus pequenos corpos e isso atrasava o
encontro. Ao aproximar-se do banco, percebeu que o homem olhava em sua direção, foi então
que entendeu; ele não era o seu pai. Era apenas uma pessoa parecida, nada mais.
Decepcionado e aflito, ele resolveu voltar para o hotel. Porém, avistou uma mulher
que parecia a sua professora do ginásio. Ela puxava um carrinho de feira com hortaliças e frutas.
Seguiu-a cautelosamente. Então lhe disse: “senhora, por favor.” Ela vagarosamente voltou os
olhos para ele e um “sim” firme saiu de sua boca e de seu rosto irreconhecíveis. Constatou que
não era ela. Perguntou-lhe, então, se conhecia a rua e os seus pais, e ela disse que não. Olhava-o
curiosa, ajeitando o xale sobre os ombros curvados. Disse-lhe que não podia ficar de conversa,
pois tinha que lavar as verduras, limpar a casa e fazer o almoço. Ele ficou um pouco sem graça
com a atitude daquela mulher. Foi então que ele percebeu que ela não tinha o menor interesse em
ajudá-lo.
De volta ao hotel, pediu ao recepcionista um mapa da cidade. Desesperadamente
começou a olhar para aquele plano confuso. Não conseguia encontrar as ruas, os lugares. Parecia
que um vento forte tinha embaralhado tudo de maneira que nada mais existia. No entanto, o que
mais o espantava era o olhar indiferente das pessoas, um olhar estranho, distante. Elas
apresentavam um desinteresse pelas suas perguntas e pelo que pudesse lhe acontecer. Num certo
momento, pensou que elas tramavam contra ele, que sabiam de tudo, e que, por trás daqueles
rostos frios, havia uma risada sarcástica da situação em que se encontrava. Sentia-se mal com
tudo aquilo. Por um momento, uma vertigem se definia. Resolveu então fugir dali. Não poderia
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mais encontrar qualquer rua, já não tinha mais disposição para isso.
Pagou a conta do hotel e saiu com o carro à procura da estrada, mas cada vez mais se
perdia e uma confusão de ideias tomou conta de sua mente, parecia que ia desmaiar a qualquer
momento. Parou o carro numa esquina e começou a pensar em qual direção seguir. Olhou para os
lados. Logo viu que algumas pessoas olhavam curiosas para ele, outras nem tanto. Em qualquer
direção, topava com rostos misteriosos.
Enquanto pensava, percebia as pessoas agitarem-se aflitas. Os velhos, que
tranquilamente caminhavam pelas calçadas, agora andavam ligeiros. As crianças, que corriam
pela praça, agora eram tecnológicas e se comunicavam freneticamente. Os jovens andavam pelas
ruas elevando as suas tristezas, alegrias e destrezas, com os seus novos corpos implantados. Pelo
retrovisor já não via a miséria alheia, mas via a sua própria miséria. Uma miséria que já não era
conhecida, uma miséria que parecia invadir o peito, causando-lhe angústia. Ela vinha imensa por
detrás das casas e dos muros dos quintais. Na medida em que todos seguiam em fuga, ela se
agigantava. Não podia mais ficar ali parado, tinha que correr como os outros. Saiu do carro que já
não funcionava e correu pelas ruas. Precisava encontrar uma saída. Olhou em volta e avistou, de
um lado, muitas igrejas; de outro, os inúmeros especialistas, as tecnologias; também os fast-food,
os street food e as vitrines. Sobre a cabeça, um veloz desespero.
Nisso, sentiu uma brisa fria que aos poucos gelava as ruas, a cidade. O frio era
intenso e as pessoas começavam a se afastar dali. Ele, com muito frio, tremia cada vez mais.
Pensava num cobertor e nele se enrolar, encolher-se. As ruas foram encobertas por uma camada
de gelo. Mas as árvores ainda estavam verdes e as flores com cores. Se não corresse, cairia nas
fissuras abismais que já se desenhavam atrás dele.
Precisava correr cada vez mais rápido, mas como fazer isso sem direção? Não sabia
aonde ir. E seus pais? E sua infância? Não sabia mais. O tempo havia transformado os lugares, as
histórias longas, o mundo. Corria sem direção, ao léu, só sabia que tinha que correr para
sobreviver. Já não tinha tempo de olhar os outros correndo, olhava-os de relance. Sentia o frio do
monstro em suas costas, não conseguia olhá-lo de frente, não tinha tempo, não o compreendia. As
pessoas já eram múltiplas, inclusive ele. E isso era bom.
Com tudo isso, não pensava mais no cansaço, estava anestesiado e o coração
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acelerado ainda resistia. Tinha que correr, pois atrás o solo abria-se em fissuras gigantes. O bafo
frio do monstro não o deixava mais parar... E na fantasia era uma casa com gerânios na janela,
um lago em frente a cumprimentar a alma, o perfume de café fresco flutuante, as palavras de
estrelas nas páginas, o canto dos pássaros sob a luz suave de um sol amigo. Ao despertar, pela
manhã, estava despudorado e tranquilo numa cama de lençóis macios. E havia frutas, flores e mel
no dia. Era uma vida confortável, uma vida no distante, suavizada pelo movimento assimétrico da
cortina.
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PAULO HENRIQUE PRESSOTTO