VÍTIMAS OU PARTÍCIPES? INDÍCIOS DA PARTICIPAÇÃO DE MULHERES E CRIANÇAS NA REVOLUÇÃO FEDERALISTA (18931895) Marcelo França de Oliveira ([email protected] – Universidade Federal do Rio Grande – FURG) Francisco das Neves Alves ([email protected] – Universidade Federal do Rio Grande – FURG) Resumo: Este artigo aborda a participação de mulheres e crianças na Revolução Federalista como participantes da ação, abarcando - mas não se detendo - sua condição de vítima do cenário de violência presente no contexto histórico em que a guerra foi travada. Baseia-se principalmente nos registros memorialísticos de Angelo Dourado, autor de "Voluntários do Martírio", em maior escala, mas também de outras fontes que nos auxiliaram a montar uma amostragem passível de reflexão sobre a forma de participação feminina e infantil no conflito revolucionário, abordagem pouco usual ainda hoje quando se estuda a revolução sulista. Palavras-chave: Revolução Federalista, mulheres na revolução, crianças na revolução, estudos de gênero. A Revolução Federalista foi um dos maiores e mais dramáticos conflitos armados ocorridos na história do Brasil, contabilizando, segundo a maioria dos historiadores e pesquisadores do tema, algo em torno de 10 a 12 mil mortos nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, entre os anos de 1893 e 1895. Sua abrangência não deve, contudo, ser reduzida apenas a este curto período temporal, uma vez que seus antecedentes remontam a antigas rivalidades arrefecidas a partir da instauração da República no Brasil (e o seguinte apeamento dos antigos mandatários Liberais do poder local), bem como não se pode considerar totalmente encerrada após o armistício de 1895. Ainda que o conflito armado seja normalmente estudado sob os enfoques político, econômico e social, é o fator violência que é majoritariamente destacado quando se trata de Revolução Federalista, e não em vão: seja pela ferocidade das batalhas, o grande número de mortos, ou a prática da degola, as proporções que alcançou a violência tornou-se a marca mais indelével desta guerra. Entre as abordagens menos comuns, os estudos de gênero envolvendo a participação de mulheres e crianças, vítimas ou partícipes desta violência são, ainda hoje, raros objetos de pesquisas. O objetivo deste artigo é abordar os indícios da participação destes atores, não apenas nos campos de batalha da guerra, mas também o envolvimento direto e indireto no contexto histórico geral da Revolução, a partir de estudos historiográficos e, principalmente, registros históricos da época, a partir do registro dos memorialistas que anotaram o conflito in loco, cujo maior exemplo é o do médico que acompanhou a coluna de Gumercindo Saraiva, Angelo Dourado, autor de “Voluntários do Martírio”. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.18 Dourado (Salvador-BA, 1856 – Rio Grande-RS, 1905) foi um médico, intelectual, político e escritor brasileiro, tendo em terras sulistas alcançado sua maior projeção política. Foi o primeiro presidente da Junta Governativa do município gaúcho de Bagé por ocasião da Proclamação da República em 1889, um dos fundadores do Partido Federalista, ao lado de figuras como Gaspar Silveira Martins e Joca Tavares, e participou da Revolução Federalista desde seu início até a deposição de armas, como coronel-médico. Sua maior contribuição, contudo, foi com o livro “Voluntários do Martírio”, publicado originalmente pela Livraria Americana em 1896, apenas um ano após o fim da guerra. Desde então, nos meios acadêmicos em especial, é relevante o número de pesquisadores que analisam, discutem ou reproduzem o texto memorialístico de Dourado como fonte para a construção historiográfica a respeito da Revolução Federalista, sobretudo pela riqueza de seus registros, que abordam muito mais do que uma narrativa puramente militar do conflito, mas aspectos do cotidiano, sociabilidades, costumes, etc, raramente encontrados em outros textos do mesmo período. 1 É justamente por esta abordagem pouco usual à época, que conseguimos encontrar na obra do médico baiano um maior número de registros sobre a participação, direta e indireta, de mulheres e crianças nesta guerra, ainda que numa proporção menor em relação aos fatos totais narrados em seu livro. Um olhar de gênero Tradicionalmente, em um contexto de guerra, aos homens é atribuído o protagonismo dos eventos, sobretudo quando se trata da narrativa das ações nos campos de batalha, ignorando ou ocultando a participação de mulheres ou crianças neste processo. O lugar da mulher, no imaginário do senso comum, é normalmente pensado e retratado em um cenário onde a ação do feminino se dá unicamente no ambiente privado, doméstico, longe dos horrores dos conflitos, ou tratando da mulher enquanto vítima dos atos e efeitos da guerra travada por homens. Trata-se, obviamente, de um estereótipo, de uma ideia não raro desmentida pela pesquisa e reflexão historiográfica. De fato, ainda é comum esta história cujos protagonistas são os homens. Uma tentativa de explicação sobre esta abordagem, que também é histórica, é dada por Lessa, citando Southgate: “Por ser escrita pelos homens, as mulheres se tornavam ausentes, invisíveis e ignoradas da história, estando o passado apresentado como determinado pelos homens e a história escrita baseada em uma linguagem patriarcal” (LESSA, 2004, p. 15). Assim, a abordagem predominantemente masculina passa a ser a tônica da história regular, convencionando-se como “normal” o lugar de destaque dos homens e da marginalidade quase invisível das mulheres como sujeitos da ação histórica. Por isto, é ainda Lessa, apoiando-se desta vez em B. Hill, é quem defende que a História: “[...] tem sido um monopólio dos homens, pois foram eles que decidiram quais áreas do passado deveriam ser registradas e investigadas. E nisto as mulheres tiveram pouca ou nenhuma participação” (LESSA, 2004, p. 15). Uma história escrita por homens, não estranha que também seja, quase exclusivamente, para homens, e deste modo as abordagens são reproduzidas sem a devida preocupação com reflexões de gênero. Desta forma, o historiador que pesquisa sobre determinado evento, muitas vezes acaba reproduzindo este modo de apresentar a 1 Para saber mais sobre os usos da historiografia nacional e internacional a partir da obra de Angelo Dourado, ver OLIVEIRA, M. Quando a memória vira história: Angelo Dourado e a historiografia sulrio-grandense. Rio Grande: 2009. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.19 História, e as pesquisas de gênero acabam sendo relegadas a estudos muito específicos. Em sentido oposto, é de se destacar que existem avanços nas tratativas da construção e consolidação dos estudos que envolvam as questões de gênero. Segundo Maria Noemi Brito (s.d., p. 23), estes estudos ganharam força a partir da década de 1970 e não pretendiam a radicalização do estabelecimento de uma “história das mulheres”, em função de limitações principalmente de caráter teórico-metodológico. No lugar disso, a autora propõe: [...] ver as mulheres na história de uma forma integrada e não segregada, através do emprego da noção de gênero que permitiria ampliar e dinamizar os estudos. Interessa modificar tanto o enfoque da historiografia tradicional que segrega, quando não ignora, as mulheres, quanto o radicalismo dos próprios trabalhos feministas que excluíam o masculino do seu quadro de referência (BRITO, s.d. p. 23). Ou seja, apresentar um estudo onde o foco está nas mulheres - e também nas crianças - não significa produzir uma história dividida, classificatória. Pretende-se, sim, mostrar as relações dos elementos justamente em suas interações, ou ainda, em seus pontos de encontro. Porém, para empreender um estudo que abarque um aspecto pouco estudado, é preciso – como de resto a todo trabalho histórico – de fontes documentais. Em virtude do que expomos, registros do momento que tragam informações da participação de crianças e mulheres na Revolução Federalista são extremamente escassos. Tanto os cronistas da época quanto os historiadores do conflito empenharam-se em retratar os aspectos militares e políticos, em grande medida, e sociais e econômicos, em menor escala. Estes são, aliás, os grandes vieses de estudo e explicação do conflito. O que temos, então, são informações esparsas, dispersas, advindas de outras abordagens, em que os elementos de gênero aparecem como ilustração, não como objeto principal. São os indícios que permitem reconstruir um pequeno aspecto da participação e envolvimento de mulheres e crianças na conjuntura revolucionária do período. A violência na Revolução Federalista Apesar de a violência não ser o elemento único a ser considerado quando se tenta explicar a Revolução Federalista, (nem, tampouco, exclusivo desta guerra) ela foi, sem dúvida, um dos fatores mais destacados da cena revolucionária. Nas palavras de Elio Flores, “[...] na verdade, a violência que já era histórica na sociedade meridional, torna-se em 93, política e de classe, isto é, estatal e paraestatal, militar e paramilitar” (FLORES, E. 1993, p. 49). Se o degolamento foi a marca pela qual ainda hoje a Revolução é lembrada ou retratada,2 igualmente violentos foram os saques, estupros, assassinatos, mutilações, fuzilamentos, atos não raro descritos como barbárie pelos historiadores. Esta violência 2 Sobre a forma como a Revolução Federalista foi retratada pela historiografia sul-rio-grandense ver ALVES, F. das N. O enaltecimento da Farroupilha versus o esquecimento da Federalista: um estudo de caso historiográfico. Biblos, Rio Grande, 17: 103-120, 2005, p. 103 e ALVES, F. das N. Revolução Federalista: história e historiografia. Rio Grande: FURG, 2002 pp. 41-51. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.20 apresentou-se sob diversas formas no decorrer do conflito, a maior parte delas afetando diretamente mulheres e crianças. Mães e filhas eram comumente estupradas sem maiores motivos, crianças pequenas eram mortas sem razão, e os meninos de mais idade poderiam ser levados como braços para a frente de batalha. Mas não apenas estupros, saques e privações estavam entre as ações em que estavam sujeitas as mulheres do período do conflito. Perseguições e prisões também faziam parte daquele contexto: As notícias de estupros e assassinatos de mulheres em Passo Fundo estão documentadas. Os políticos republicanos locais, liderados pelo coronel Gervazio Luccas Annes, chegaram a contratar um grupo de mercenários correntinos que cometeu todo tipo de atrocidades no município. Esses mesmos políticos mantiveram uma “cadeia particular” encerrando os “elementos perigosos”, inclusive mulheres. Levavam os prisioneiros para os “matos dos Valinhos”, onde eram executados. Sirva de exemplo das violências cometidas contra a mulher o caso de uma dessas vítimas, já em adiantada gravidez, que identificando no líder dos “encapuzados” encarregados dos assassinatos o avô do filho, implorou pela vida da criança. O próprio bandido abriu o ventre da infeliz e reconhecendo pela cor dos cabelos, semelhanças entre a criança e pessoas de sua família, “mandou dar sepultura cristã”, ao neto... (MONTEIRO, 2008, p. 1) Este cenário onde a tônica da violência indiscriminada afeta a todos e a todas, é o que usualmente mais é descrito por relatos tanto testemunhais como pela historiografia contemporânea. Porém, apesar do enfoque nos indícios da participação de mulheres e crianças na Revolução Federalista passar necessariamente pela abordagem das relações com o fator violência, tanto afetando ou sendo afetados por ela, em um papel aparentemente de vítima, não é a única abordagem possível. No prisma testemunhal, Angelo Dourado é talvez o autor que mais fornece indícios outros da participação feminina e infantil na Revolução. Seu livro tornou-se uma das mais dramáticas e ricas descrições do conflito, qualificado por Moacyr Flores como “o mais notável livro sobre a revolução de 1893” (FLORES, M., 1993, pp. 126127) e que foi largamente utilizado por pesquisadores e historiadores que buscavam destacar aspectos sociais do conflito que opôs federalistas e legalistas. Mulheres e crianças no contexto revolucionário: uma outra visão A mulher, pouco comentada e descrita no período e contexto da Revolução Federalista, aparece em situações de protagonismo em raríssimos casos. Conforme Elio Flores, Esquecida numa guerra de homens, desprezada pela história das batalhas militares, a mulher surge de circunstâncias inusitadas: ora como amantes de homens vingativos, ora sofrendo a violência sexual destes e, tantas vezes, despedaçadas com os filhos nos braços (FLORES, E. 1996, p. 119). Aliás, as tropas, sejam legalistas ou federalistas, sempre que passavam em seus deslocamentos por alguma propriedade, costumavam servir-se a bem entender do seu Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.21 conteúdo. Saqueavam pertences, confiscavam armas, apreendiam alimentos, carregavam consigo bois, vacas, cavalos, inclusive recrutando os rapazes (FLORES, M., 1993, p. 37). Restavam apenas as crianças e mulheres que, no entanto, ficavam à mercê de pior sorte. Nas pequenas comunidades, de acordo com Flores, [...] os homens, quando podiam, fugiam para os matos. E os velhos, mulheres e crianças, nem sempre poupados, recebiam aterrorizados os bandos que se disseminavam pelos campos. Vivia-se a revolução pela sucessão de execuções, castrações, estupros e degolamentos (FLORES, M., 1993, p. 37). Esta era a situação de mulheres e crianças que ficavam à mercê da sorte entre as hostes federalistas ou legalistas. Poucas eram as chances de escapar ilesa em alguma destas abordagens, em virtude da realidade estabelecida. A banalização da violência trazia consigo consequências para toda a sociedade da época, mas principalmente para mulheres e crianças, envolvidos no contexto de guerra, mas sem maiores chances de defesa, em um momento em que mesmo homens adultos não as tinham. As crianças eram expostas aos perigos do ambiente de guerra sem maiores temores por parte dos pais, ao menos é o que se verifica a partir do depoimento do médico João Eickoff, registrado em seu livro de memórias “O doutor maragato”: Fiquei para trás, preparando o remédio e então a mulher do Polônio me fez merendar, argumentando que eu não sabia quando iria me alimentar novamente. Polônio acrescentou: ̶ Mando meu filho de dez anos acompanhá-lo. Ele o levará por um corte e o senhor em seguida alcançará os companheiros (EICKOFF, 1994, p. 72). Eickoff narra o episódio que o menino, de apenas dez anos de idade, guia-o por entre o vale até o topo, onde são perseguidos por republicanos por mais de meia légua, quando o menino entrou por um pinhal e gritou para que o médico seguisse pela estrada, a fim de encontrar seus companheiros federalistas que estariam adiante. Outro episódio, desta vez narrado por Dourado, exemplifica o cenário de quem ficava no meio do caminho entre as tropas de lado a lado: Estamos na região serrana [...] chega-se a uma casa habitada encontra-se 10 ou 12 mulheres, e muitas crianças. Pergunta-se-lhes: seu marido? Degolaram-no. Seu pai? Degolaram-no. Seu irmão? Degolaram-no. Seu filho? Degolaram-no. Estavam em armas? Não estava na roça, estava no campo, foi pego à noite... (DOURADO, 1992, p. 58). O cenário descrito era de violência generalizada. É ainda Dourado quem afirma que, pelas casas por onde passavam “[...] não víamos mais do que fisionomias de terror nas mulheres e estupor nas crianças. Lágrimas e preces em toda a parte...” (DOURADO, 1992, p. 26). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.22 Outro aspecto da violência, onde as vítimas reais ou potenciais eram mulheres e crianças, não raro eram, ao mesmo tempo mulheres e crianças, pode ser percebido no seguinte relato: As passagens pelos povoados são sempre prejudiciais. Por maior que seja a vigilância do chefe, não deixam de vender bebidas alcoólicas, d´onde a embriaguez de muitos e daí atos repugnantes. Uma ordenança do general Salgado embriagou-se e, passando por uma casa, tentou violar ou violou uma moça. O general mandou por nas estacas e ia mandar fuzilá-lo, mas antes disso fez ver a vítima para ser examinada. Essa vítima é uma criança impúbere. Examinei-a e não encontrei nada que indicasse o crime ou ao menos a tentativa dele (DOURADO, 1992, p.15). Não ficou muito claro se havia a culpa, o que pouco interfere na propensão direta de abusos por partes de soldados embriagados em um cenário de insegurança generalizada e caos social a que estavam sujeitas mulheres e crianças durante a Revolução Federalista. Indícios da participação de crianças e jovens na Revolução Se, por um lado, mulheres e crianças eram retratadas como vítimas das circunstâncias do contexto revolucionário, por outro também é notado que fizeram parte efetiva dele, seja combatendo voluntariamente nas fileiras legalistas ou federalistas, ou alistadas à força. De todo modo, em Dourado encontramos várias passagens que fornecem indícios da participação de jovens e mulheres nas linhas de combate. Em uma delas, faz menção a pai e filho, no campo de batalha: Assim foi Thimoteo Paim, no Upamaroty. Levava consigo um filho, uma criança. Vi-o cair morto a seu lado, continuou a luta até ser substituído. Retirou a sua gente, depois voltou ao lugar e tomando nos braços o cadáver do filho, levou-o sob as balas inimigas até o ponto onde com suas próprias mãos cavou-lhe a sepultura (DOURADO, 1992, p. 45). E ainda, sobre um menino de dezesseis anos também na mesma situação: Ali vai Augusto Amaral a quem há poucos dias feriu um dos maiores golpes que se pode sentir. Trazia consigo um filho de 16 anos. Valente como ele, era o seu ajudante. Querendo sair numa comissão foi pedir a um amigo uma arma emprestada e este experimentando se os cartuchos se adaptavam bem, o fez tão desastradamente que a arma disparando feriu em pleno peito o amigo. Tivemos de deixá-lo sepultado ali. Pobre Augusto! Vê-lo brigar tantas vezes junto a si sem o menor ferimento e vê-lo morrer tão estupidamente! (DOURADO, 1992, p. 45). Em outra passagem, Dourado relata que, ao chegar a localidade do Piraí, nas Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.23 imediações de Bagé, tratou de alguns feridos, entre eles um menino combatente, de treze anos: Entre [os feridos] havia um menino de 13 anos que fora o primeiro ferido no Cunhatahy. A bala resvalara-lhe pelo pescoço, sem ofender vaso nenhum, nem osso. [...] Ele chorava e pedia-me para dizer se ele morria, porque então se mataria de uma vez. Na retirada, ele galopava sempre perto de mim, mas sem coragem de mover o pescoço. [...] ordenei-lhe que movesse o pescoço. [Respondeu o menino:] ̶ Não posso, está duro. ̶ Não está, pode movê-lo. [...] Eu tinha no bolso alguns biscoitos e dei-lhe: ̶ Vê se engoles. Mastigou e engoliu. Deu uma gargalhada e disse-me: Mais biscoito coronel, já estou são, e pronto para brigar com esses picaços que não podem conosco [...] (DOURADO, 1992, p. 366). O registro que trata de um jovem adulto é percebido em outro trecho, que cita o irmão de um combatente, de nome Julio de Barros: Nos 40 homens de Julio de Barros, acha-se um irmão dele, contando hoje com 15 anos, e que há dois anos tem lutado sem nunca emigrar. Tem uma perna quebrada, o que o obriga a andar de muletas, e apesar disso, apesar das minhas recomendações de não entrar em tiroteio de piquetes [...] não há ocasião em que ele não se tenha achado, se ali está seu irmão, o que é constante. Julio de Barros e sua gente tratam-no por Pequeno. A fratura da perna desse herói infantil é uma página das mais dignas de brio (DOURADO, 1992, p. 336-367). Segundo Dourado, Pequeno teria fraturado sua perna dois anos antes, quando, com apenas 13 anos, estaria guardando uma picada federalista, a mando de seu irmão, quando foi atingido por uma bala, sob ataque dos legalistas. Mesmo ferido e em inferioridade numérica, conta o autor que Pequeno teria atacado seus algozes e matado dois ou três. Na escassez de combatentes, os jovens soldados eram rapidamente promovidos ao oficialato, se a necessidade assim operasse. Um exemplo disto é quando Dourado, ao referir-se a um morto em uma investida legalista, refere-se como “major Plácido, rapaz de 20 anos” (DOURADO, 1992, p. 361). Nas figuras a seguir, é possível distinguir crianças junto aos revolucionários a partir dos registros fotográficos do período. Na imagem 1, podemos identificar um menino negro portando uma arma, na companhia da tropa de Pinheiro Machado. Na imagem 2, à direita, distinguimos mais uma criança junto dos combatentes, assim como na imagem 3 (à direita e ao fundo), também do lado legalista. Na imagem 4, a participação também pode ser notada, desta vez no lado dos revolucionários federalistas. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.24 IMAGEM 1: Tropa de Pinheiro Machado. (Acervo particular do autor). IMAGEM 2: Soldados legalistas em Passo Fundo. (Acervo particular do autor). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.25 IMAGEM 3: Tropa legalista. (Acervo particular do autor). IMAGEM 4: Exército de Gumercindo Saraiva. (Acervo particular do autor). Tais registros, escritos e iconográficos, denotam que crianças e jovens faziam parte das hostes combatentes, muitos destes não apenas retratados como vítimas passivas da guerra – ainda que em muitos dos exemplos a condição de vítima seja destacada, mas em situação diferente daquelas em que sofreram a violência fora das linhas de combate – mas sim partícipes efetivos na Revolução, seja por laços familiares que os vinculavam àquela situação, ou pela própria contingência da necessidade de braços para formar os quadros revolucionários. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.26 Registros da participação feminina na guerra Mulheres também participaram da Revolução Federalista, como podemos verificar a partir dos registros de Dourado. Algumas por acompanhantes, outras como combatentes, outras, ainda, prisioneiras, o que sugere um número suficientemente considerável de mulheres e seu direto envolvimento na guerra, tendo participação não apenas como espectadoras próximas, ou coadjuvantes, mas alcançado um relativo destaque na rígida e conservadora hierarquia militar, ainda mais se considerarmos o período retratado e o lugar onde se dava a guerra. Um dos registros mais emblemáticos é o da sargento Firmina. Ainda que as referências a esta mulher sejam escassos, Dourado registra com uma certa naturalidade e sem maiores considerações de juízo de valor sobre a personagem, o que pode sugerir que a prática era mais comum do que podemos considerar, a despeito do que julga o senso comum: Perto estava um grupo com mulheres prisioneiras, me acompanhava a sargento Firmina. As mulheres choravam; entre elas havia uma bem vestida. Perguntei-lhes se estavam com medo. Responderam-me que sim. Então fiquem com esse sargento que as há de garantir, e recomendei ao sargento que cuidasse delas. – Venham minhas filhas. Não tenham medo da minha carabina, nem de minhas calças, eu também já vesti saia, disse a Firmina (DOURADO, 1992, p. 354). Outras mulheres acompanham a marcha dos federalistas em seus deslocamentos, preferindo a marcha constante e errática do que a própria sorte em seus lugares de origem. Uma delas, segundo Dourado, era uma mulher “alta, muito loura e muito suja”, que teria perdido o marido e o irmão em Passo Fundo, e dali em diante vinha acompanhada pelos amigos deles. Outras abandonavam suas casas para desposar algum combatente, e, conseguindo ou não seu objetivo, seguiam junto aos demais na coluna, como indica o registro de “uma rapariga, italiana, [que] fugiu de casa para se casar com um oficial. Não se casou e adquiriu enfermidades cruéis. Tem viajado sempre junto de mim” (DOURADO, 1992, p. 297). Nem só viúvas ou acompanhantes encaravam a jornada nas colunas federalistas. Mulheres casadas também seguiam com os revolucionários: Perto de nós acampa também um casal; é um cadete-sargento do exército, que desertou e veio para nós. A mulher, uma senhora bonita, de alguma educação, quis acompanhá-lo e aqui vai marchando a pé em estado adiantado de prenhês sem ter o que comer. A princípio dei-lhes alguma coisa que tinha, depois nada mais tive. Uma tarde muito chuvosa armaram a barraca perto da minha. Nós, para não chorarmos, contávamos uns aos outros histórias alegres e riamos (DOURADO, 1992, p. 297). A jornada das mulheres que acompanhavam os federalistas, era normalmente de completas privações, sendo a fome uma constante em suas jornadas, sobretudo as que iam como acompanhantes sem maiores ligações com algum soldado ou oficial. Um exemplo é da rapariga que teria ficado no meio do caminho que, de acordo com Dourado, já não podia mais caminhar devido à fome. Ao saber disso, o médico baiano Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.27 diz ordenado aos seus irem buscá-la com seu cavalo e dar-lhe comida (DOURADO, 1992, p. 305). Porém, destaca Dourado, em momentos de perigo ou quando se preparavam para um ataque dos legalistas, as mulheres e os bagageiros ficavam em áreas protegidas. (DOURADO, 1992, p. 250). Isto não é prova de que mulheres não participavam efetivamente das batalhas, mas sugere que aquelas que estavam na condição de acompanhantes, esposas ou andarilhas, eram, de certa forma, protegidas à exposição nos combates e perigos propriamente ditos. Além da participação direta nas colunas revolucionárias, pode-se perceber, a partir dos registros de Dourado, outras formas de ação das mulheres daquele fim de século. Enquanto muitas perdiam filhos e maridos, convocados ou mortos pelas forças que passavam por suas propriedades, restavam a estas a administração e o cuidado daquilo que restava de suas posses, suas casas, suas terras. Uma, em específico, disse o médico baiano que “não havia restado nem mesmo uma única rês vacum”, que teriam sido expropriadas em nome da “legalidade”, ou seja, dos seus adversários (DOURADO, 1992, p. 265). Sua própria esposa é o exemplo daquelas que perdem seus maridos para a guerra. No seu caso, devido ao temor de que sofresse algum tipo de perigo ou perseguição, emigrou para o Uruguai antes de começado o conflito e por lá ficou até seu término, cuidando de sua casa, administrando suas finanças e propriedades, e zelando por suas filhas e filhos, um deles recém-nascido (DOURADO, 1992, p. 17-19 e 339340), em situação análoga a muitas mães e esposas da mesma classe de elite a que pertencia Dourado. Igualmente não passou despercebida as suas impressões sobre as mulheres e crianças indígenas, observadas entre seus deslocamentos. Sobre estas, disse o médico “as mulheres são que conduzem tudo que possuem [...] os homens caçam ou dormem [...] as crianças são alegres e travessas [...] as meninas são quietas, dir-se-ia melancólicas...” (DOURADO, 1992, p.235). Encontramos, nos fragmentos testemunhais de Dourado, mulheres de diferentes extratos sociais e culturais que eram afetadas direta ou indiretamente, em maior ou menor grau pela guerra que assolava o sul do país, tanto as que tomaram lugar nas tropas, à frente ou acompanhando de perto, como aquelas que sofriam a distância os desdobramentos e respingos do conflito armado em constante movimento. Considerações finais Mulheres e crianças viveram a Revolução Federalista. Estiveram intimamente ligadas ao fator violência, que norteou grande parte do trajeto desta guerra. A maioria das mulheres e crianças, é verdade, foram vítimas das circunstâncias e do momento revolucionário em que o Sul do Brasil estava envolvido, mas outras participaram de forma efetiva dos conflitos. Através do relato de Angelo Dourado temos dados para afirmar que a participação era considerada como algo normal mesmo para a época – haja vista as várias inserções em seu texto – e não uma aberração. Não notamos surpresa, ironia, crítica ou qualquer outro tipo de reação de espanto com relação a esta participação em seus escritos. Apesar disto, podemos concluir, porém, que a visão de minoria, e, até certo ponto, de ser frágil e marginal ainda prevalecia, principalmente se levarmos em conta seus papeis que em que eram representadas: acompanhantes, esposas, viúvas, protegidas “junto aos bagageiros”, quando em marcha, ou relegadas à própria sorte, abandonadas por maridos e filhos, àquelas que ficavam em suas Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.28 propriedades, e, desta forma, sujeitas a todo o tipo de perigos a que estavam expostas durante a guerra. Obviamente este artigo não dá conta de se traçar um estudo sólido sobre a real participação de mulheres e crianças na Revolução Federalista. Foi, em verdade, uma tentativa, tendo por bases uma fonte bem delimitada no espaço-tempo, de abordar um aspecto do estudo de gênero naquela guerra civil, uma pequeníssima possibilidade de abordagem que leve à inquietação e aos questionamentos que devem ser formulados de forma a surgir mais e mais estudos dispostos a preencher a lacuna neste tipo de conhecimento histórico, em específico, a Revolução Federalista, ainda tão pobre de olhares de gênero. Reconhecemos que é preciso avançar, aprofundar a busca por documentos, relatos, registros, que indiquem qual a dimensão mais exata possível das ações de mulheres e crianças na guerra de 1893. Ainda que a resposta, em virtude da escassez das fontes ou pela própria abordagem escolhida, talvez não seja nunca total ou satisfatoriamente respondida, é tarefa do historiador lançar-se ao desafio e escrever a história de uma guerra que, sabemos, não foi só de homens. Referências: ALVES, F. das N. O enaltecimento da Farroupilha versus o esquecimento da Federalista: um estudo de caso historiográfico. Biblos, Rio Grande, 17: 103-120, 2005. _____. Revolução Federalista: história e historiografia. Rio Grande: FURG, 2002. BRITO, M.N.C. O gênero, a história das Mulheres e a memória: um referencial de análise. p. 23 Disponível em «http://www.lacult.org/docc/oralidad_05_22-27-o-generoa-historia-das.pdf». Acesso em: 21 ago. 2010. DOURADO, A. Voluntários do Martírio: narrativa da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992. EICKOFF, J. O doutor maragato. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994. FLORES, E.C. No tempo das degolas – Revoluções imperfeitas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. _____. Violência no Conflito de 1893. in FLORES, Moacyr (org). 1893-95 A Revolução dos Maragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. FLORES, M. Dramas e conflitos revolucionários. In FLORES, H.A.H. Revolução Federalista. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993. LESSA, F. de S. O Feminino em Atenas. 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