RICARDO DO NASCIMENTO SANTOS A (In)Evolução do Ensino Jurídico no Brasil Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade Católica de Brasília como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito sob a orientação do Professor M. Sc. Nilton Rodrigues da Paixão Júnior. Brasília 2007 RICARDO DO NASCIMENTO SANTOS A (In)Evolução do Ensino Jurídico no Brasil Monografia apresentada à Banca examinadora da Universidade Católica de Brasília como exigência parcial para obtenção do grau de bacharelado em Direito sob a orientação do Mestre Nilton Rodrigues da Paixão Júnior Aprovado pelos membros da banca examinadora em ____/____/____, com menção_____ (__________________________________________). Banca Examinadora: ______________________________ Integrante Universidade Católica de Brasília __________________________ Integrante Universidade Católica de Brasília ___________________________ Integrante Universidade Católica de Brasília In memoriam: Dedico o presente trabalho ao meu pai, José dos Santos que sabia a importância do conhecimento e me ensinou muito sabendo bem pouco das doutrinas e muito da vida. Agradeço ao Professor José Soares que iluminou este ‘sem luz’ nos duros caminhos da busca do entendimento da justiça social e ao Professor Paixão, que veio depois confirmar o caminho que era tateado. Ó mar salgado, quanto de teu sal São lágrimas de Portugal? Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. (Fernando Pessoa. Mar Português) Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. [...] (Fernando Pessoa. Tabacaria) “A Universidade desenvolve todas as capacidades, inclusive a estupidez”. A. P. Tchekhov (escritor Russo, 18601904). RESUMO O Ensino Jurídico no Brasil. Sua formação no contexto histórico-social em que foi criado. As tentativas de mudanças. As mudanças, inclusive histórico-sociais do Brasil em relação ao Direito e ao ensino do Direito. A evocação sobre a discussão do ensino jurídico. O que evoluiu? Involuiu? Em que ponto involuiu? Em que ponto evoluiu? O ensino jurídico no Brasil está estagnado? A ideologia como forma estampada de controle do ensino jurídico, ora como forma de perpetuação da classe dominante no poder, ora como forma de confirmação do pensamento único, sistematizado, positivado, de uma situação colocada contrária aos anseios da sociedade. Até que ponto a influência do ensino jurídico repercute na atuação do ‘operador do Direito’, que mais tarde será o formador de opinião. Será o ‘cidadão’ que dará as cartas, que deverá ser observado pela sociedade como regra absoluta a ser cumprida. O que está sendo formado, operadores do Direito ou um cidadão capaz de enxergar o mundo, conceber os seus problemas ou um simples ‘operador’ (reprodutor) de formulas prontas, que ele deve tomar como sagradas e inquestionáveis, deve obedecê-las cegamente? Palavras-chave: Ensino Jurídico no Brasil. Sociologia do Direito. Evolução do Ensino Jurídico no Brasil. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 - UM POUCO DE HISTÓRIA ..................................................... 10 1.1 “O Ensino Livre” ........................................................................... 14 1.2 A Reforma de Benjamin Constant (A descentralização) ......... 18 CAPÍTULO 2 - O ENSINO (DES)ATUALIZADO DO DIREITO ....................... 22 2.1 A Constituição de 1988 ........................................................... 25 2.2 A Constatação da Crise do Ensino Jurídico ............................ 25 CAPÍTULO 3 - DIREITO, PODER E IDEOLOGIA ........................................... 37 3.1 Direito........................................................................................... 37 3.2 Poder ........................................................................................... 39 3.3 Ideologia ...................................................................................... 41 CONCLUSÃO .................................................................................................. 48 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 51 ANEXO A – RESOLUÇÃO Nº 9, DE 29 DE SETEMBRO DE 2004. ............... 54 8 INTRODUÇÃO Pretendeu este trabalho fazer um passeio panorâmico sobre o ensino jurídico no Brasil. Do início das Arcadas, com a ajuda imprescindível de Alberto Venâncio Filho, autor do livro “Das Arcadas ao Bacharelismo”, percorreu-se várias mudanças pontuais acerca da evolução/involução do ensino jurídico. Constatou-se, durante o trabalho, que o ensino jurídico não era a principal preocupação dos criadores dos cursos jurídicos no Brasil. Antes, eles queriam gestacionar homens para formar a burocracia do Estado Brasileiro. No início, os cursos jurídicos surgiram de costas para os aspectos inerentes ao Direito, quais sejam: o sentido de justiça social, liberdade, participação etc. Verificou-se que o ensino jurídico no Brasil é reflexo da ideologia da hora, ou seja, além da não preocupação com o ensino jurídico em si, há um claro enfoque na formação de pessoas engajadas com a perpetuação da classe dominante no poder estabelecido. Num ritmo lento e gradual, surgem pessoas que caminham contra o vento, mesmo com todos os aspectos adversos que esse caminhar possa proporcionar: uma “guerra” contra o “pensamento único”. Alguns poucos tentam engendrar uma nova forma de pensamento. Mais abrangente, mais humano, mais plural em relação ao tratamento dado ao direito e seus aspectos socioeconômicos e conseqüentemente com uma percepção de que há alguma coisa errada no projeto pedagógico legado aos estudantes do Direito. Identificam nessa empreitada equivocada uma “crise” no ensino jurídico, e dão soluções ou caminhos a serem percorridos em busca da virada. Sempre na melhor companhia, Boaventura de Sousa Santos, Roberto A. R. Aguiar, Roberto Lyra Filho, Alayde Avelar Freire Sant’ana, José Geraldo de Sousa Júnior, Amilton Bueno de Carvalho e outros, “cabeças frescas”, com pensamentos refrigerados, aptos a revolucionar a abordagem equivocada do Direito, esta 9 monografia foi pensada, concebida, gerada e parida. Pessoas que vêem além de suas próprias gerações, não pertenceram ao tempo em viveram. Ultrapassaram a singeleza do pensamento mesquinho, individualista, patrimonial, bolorento, que até pouco tempo imprimiram uma única visão do Direito. O autor deste trabalho, um “sem luz”, tem a exata dimensão do alcance da tarefa a que se propôs, quase nenhuma. Mas é de uma enorme satisfação que a fez. Doloroso, às vezes, saboroso, em muitos e tantos outros instantes. Talvez a satisfação se complete pelo simples contentamento de se estar “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”1. Navega-se, aqui, em águas tormentosas de mares bravios, esbraveja-se contra o que está errado, contra a fome, a miséria, o preconceito, o ódio, a segregação, o consumismo, o capitalismo, o neoliberalismo, o individualismo, enfim contra o pensamento mesquinho, tacanho, contra o “pensamento único”. 1 VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. In: ______. Caetano Veloso. [s.l.]: Edições del Prado, 1996. 1 CD-Rom. (Os Grandes da MPB). 10 CAPÍTULO 1 - UM POUCO DE HISTÓRIA Os cursos jurídicos foram criados no Brasil com um atraso de três séculos em relação a outros países da América Latina recém descoberta. Talvez porque, ao contrário dos outros países, o Brasil só foi visto como uma nação, quando D. João VI, ‘expulso’ de Portugal por Napoleão, resolveu desembarcar nestas terras, trazendo consigo uma elite portuguesa, que, a partir de então, forjou a elite brasileira. Durante muito tempo essa elite mandou os seus rebentos para a Coroa (Metrópole) com o escopo de estudarem. Voltavam doutores e prontos para se perpetuarem no poder que se estabelecia. Assim a criação de cursos jurídicos no Brasil se deu mais para a formação de uma elite burguesa do que propriamente para formação de advogados. Nesse contexto, esclarecedor e o magistério de Raymundo Faoro2: “O descobridor, antes de ver a terra, antes de estudar as gentes, antes de sentir a presença da religião, queria saber de ouro e prata”. Como previa o Estatuto do Visconde de Cachoeira3, citado por Alberto Venâncio Filho4: Os Estatutos de Visconde de Cachoeira colocam no início como objetivo dos cursos jurídicos formar ‘homens hábeis para serem um dia sábios magistrados e peritos advogados de que tanto se carace’, e outros que possam vir a ser ‘dignos Deputados e Senadores para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado’. Da mesma forma Roberto A. R. de Aguiar: 2 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3. ed. rev. São Paulo: Globo, 2001. p. 117. José Luis de Carvalho e Melo, baiano, formado em Coimbra, Deputado e Senador, participante da elaboração da Constituição do Império. 4 VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 31. 3 11 “As escolas de Direito no Brasil não foram feitas para formar advogados. Eles não são prioridade para elas. Quando de sua abertura, os cursos jurídicos visavam a formar quadros para alta burocracia do Estado brasileiro emergente[...]”5. Arremata Alberto Venâncio Filho6: Entretanto, foi essa pequena elite, formada em Coimbra, que se tornou responsável pela criação dos cursos jurídicos, debatendo o problema na Assembléia Constituinte, e a partir de 1826, na Assembléia Legislativa. Deve-se apontar como o mais destacado dentre eles, José Feliciano Fernandes Pinheiro, futuro visconde de São Leopoldo, que logo após a instalação da Assembléia Legislativa apresenta em 14 de junho de 1823, projeto de lei criando uma Universidade na cidade de São Paulo. Os cursos jurídicos no Brasil tiveram como certidão de nascimento a Lei de 11 de agosto de 1827, sancionada por D. Pedro I, cujo conteúdo é de bom alvitre apresentar: Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e unânime aclamação dos povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os nossos súditos que a Assembléia Geral decretou e Nós queremos a lei seguinte: Art. 1º - Criar-se-ão dois Cursos de ciências jurídicas e sociais, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda, e neles, no espaço de cinco anos, e em nove cadeiras se ensinarão as matérias seguintes: 1º Ano – 1ª Cadeira. Direito natural, público, análise da Constituição do Império, direito das gentes e diplomacia. 2º Ano – 1ª Cadeira. Continuação das matérias do ano antecedente. 2ª Cadeira. Direito público eclesiástico. 3º Ano – 1ª Cadeira. Direito pátrio civil. 2ª Cadeira. Direito pátrio criminal, com a teoria do processo criminal. 4º Ano – 1ª Cadeira. Continuação do direito pátrio civil. 2ª Cadeira. Direito Mercantil Marítimo. 5º Ano – 1ª Cadeira. Economia política. 2ª Cadeira. Teoria e prática do processo adotado pelas leis do Império. Art. 2º - Para a regência destas cadeiras, o Governo nomeará nove lentes proprietários, e cinco substitutos. 5 AGUIAR, Roberto A. R. de. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1999. p. 78. 6 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 15. 12 Art. 3º - Os Lentes proprietários vencerão o ordenado que tiverem os desembargadores das relações e gozarão das mesmas honras. Poderão jubilar-se com o ordenado por inteiro, findos vinte anos de serviços. Art. 4º - Cada um dos lentes substitutos vencerá o ordenado anual de 800$000. Art. 5º - Haverá um Secretário, cujo ofício será encarregado a um dos lentes substitutos com a gratificação mensal de 20$000. Art. 6º - Haverá um porteiro com ordenado de 400$000 anuais, e para o serviço haverão (sic) os mais empregados que se julgarem necessários. Art. 7º - Os Lentes farão a escolha dos compêndios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos contanto que as doutrinas estejam de acordo com o sistema jurado pela nação. Estes compêndios, depois de aprovados pela Congregação, servirão interinamente; submetendo-se, porém, à aprovação da Assembléia Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer às escolas, competindo aos seus autores o privilégio exclusivo da obra, por dez anos. Art. 8º - Os estudantes que se quiserem matricular nos Cursos jurídicos, devem apresentar as certidões de idade, por que mostrem ter a de quinze anos completos, e de aprovação da língua francesa, gramática, latina, retórica, filosofia racional e moral, e geometria. (grifo acrescentado). Art. 9º - Os que freqüentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com a aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos estatutos, que devem formar-se e só os que obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes. Art. 10º - Os estatutos de Visconde de Cachoeira ficarão regulando por ora naquilo em que forem aplicáveis, e se não opuserem à presente lei. A Congregação dos Lentes formará, quanto antes, uns estatutos completos, que serão submetidos à deliberação da Assembléia Geral. Art. 11º - O Governo criará nas cidades de S. Paulo e Olinda as cadeiras necessárias para os estudos preparatórios declarados no art. 8º. Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nela se contém. O secretário de Estado dos Negócios do Império a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos 11 dias do mês de Agosto de 1827, 6º da Independência e do Império. Imperador com rubrica e guarda 13 7 Visconde de S. Leopoldo . Quem referendou a lei foi o Ministro José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de S. Leopoldo. Em São Paulo, a inauguração do primeiro curso jurídico realizou-se no dia 1º de março de 1828, no Convento de São Francisco. Já o de Olinda, posteriormente transferido para Recife, foi inaugurado em 1854, no Mosteiro São Bento. No mesmo ano de 1854, no dia 28 de abril, os cursos (de São Paulo e Recife) passaram a ser denominados de ‘Faculdades de Direito’. Os cursos tinham a duração de cinco anos e compreendiam em sua grade curricular os seguintes conteúdos8: No primeiro ano: - Direito Natural, Direito Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia; No segundo ano: - Direito Natural; Direito Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes, Diplomacia e Direito Público Eclesiástico; No terceiro ano: - Direito Pátrio Civil e Direito Pátrio Criminal, com Teoria do Processo Criminal; No quarto ano: - Direito Pátrio Civil, Direito Mercantil e Marítimo, e No quinto ano: - Economia Política e Teoria e Prática do Processo Adotado pelas Leis do Império. A criação dos cursos de direito nos estados de São Paulo e Pernambuco se justifica em razão deles já serem um grande pólo da oligarquia no Brasil. E, embora os cursos tenham sido instalados quase ao mesmo tempo e com as mesmas disciplinas, o de Recife se diferenciou por formar doutrinadores, enquanto em São Paulo a preocupação era com a formação de políticos e burocratas do Estado. Tal diferença impôs à academia pernambucana uma discriminação em relação à de São Paulo, ficando a primeira excluída das decisões políticas do país – até mesmo por questões geográficas – que foram assumidas pelos paulistas. Dá-se inicio à mais contundentemente equivocada abordagem do ensino jurídico no Brasil, 7 8 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 18. VENÂNCIO FILHO, 1982. 14 distanciando ainda mais de uma formação doutrinária humanista, ou seja, do pensamento jurídico crítico e da sua aplicação. Depreende-se então que a formação inicial dos bacharéis em direito no Brasil se dava em clara dicotomia separatista entre a doutrina e a realidade social, ratificando-se a idéia inicial da formação de agentes, que estariam atentos às necessidades da elite dominante e aptos para justificar a exclusão dos dominados (não brancos, não proprietários) ao acesso à justiça e/ou a acessão social. 1.1 “O Ensino Livre” Ensina Venâncio Filho9 que o contexto mundial, como a segunda guerra mundial e as novas idéias – positivismo, darwinismo, materialismo etc., influenciaram uma preocupação com a reforma do ensino jurídico no Brasil: O liberalismo clássico brasileiro, como origem nas fontes filosóficas européias, ao lado do novo liberalismo cientificista, tem como ponto teórico de partida a crença fundamental na liberdade humana: o homem é senhor de seu destino e por isso responsável por ele. Tais idéias têm sua origem em Kant e, mais do eu em Kant, no espiritualismo eclético francês, bem vivo 10 no Brasil, e no krausismo . Explica Venâncio Filho que o cientificismo pressupõe liberdade de ensino e cita Roque Spencer Maciel de Barros11: Afastam-se os entraves à criação de escolas, de cursos, de faculdades, e estas florescerão vigorosas. O princípio da seleção natural encarregar-se-á de ‘fiscalizar’ a escola, só sobrevivendo os mais aptos, os melhores. O próprio ensino oficial só terá a lucrar com isto, a concorrência das escolas particulares obrigando-o a manter um ensino elevado. [...] 9 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 76. Krausismo ideologia baseada nas teses de Krause, difundida na Europa pelas obras Heinrich Ahrens (1808-1874) e Tiberghien (1819-1901). Teve particular destaque na Península Ibérica, onde coincidiu com uma forma moderada de liberalismo. 11 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 76-77. 10 15 O ensino livre, desta forma, aparece como complemento necessário da tarefa pedagógica que está no cerne do cientificismo ilustrado. A liberdade de ensino sem qualquer limitação é por ele concebida como condição sine qua non de êxito de sua missão educadora. Dessa forma, ao lado da consciência livre, da escravidão abolida, da mulher emancipada, etc., se inscrevem no próprio cientificismo, como item valioso e necessário quando eles, a idéia de liberdade de ensino. Segundo o mesmo doutrinador, a reforma se dá por intermédio do Decreto nº 7.247, mantendo a proposta de reforma de Liberado Barroso da faculdade de direito em duas seções, a de ciências jurídicas e a de ciências sociais, colocando nesta última as cadeiras de direito natural, direito público universal, direito constitucional, direito eclesiástico, direito das gentes, diplomacia e história dos tratados, direito administrativo, ciência da administração e higiene pública, economia política, ciência das finanças e contabilidade do Estado. Previa também o mesmo decreto, que o grau de bacharel em ciências jurídicas habilitaria para a advocacia, a magistratura, e o grau em bacharel em ciências sociais, independentemente do exame, para os lugares de adidos de legação, bem como para os de praticantes e amanuenses de Secretaria de Estado e demais repartições públicas. Venâncio Filho12 adverte: O entusiasmo existente pela idéia do ensino livre só encontra explicação na baixa qualidade do ensino jurídico no Brasil. Na verdade, se os professores não eram competentes, se os alunos só compareciam às aulas por força da obrigatoriedade de freqüência, mas delas se desinteressavam sem prestar atenção às prelações, não haveria mesmo razão para se manter o regime das lições e sabatinas e para se exigir a freqüência obrigatória. Entretanto, ninguém poderia supor que, levados às suas extremas conseqüências, a implantação da lei do ensino livre tivesse tido resultados tão catastróficos e fosse objeto de tamanhas críticas. Ao mesmo tempo em que se pensava o ensino livre, em Pernambuco surgia a denominada escola ‘Escola de Recife’. Longe do conservadorismo e do marasmo e da “panacéia do ensino livre”, como diz Venâncio Filho13, a ‘Escola de Recife’ apresenta uma abertura de horizontes, trazendo novos ares, e propondo uma atualização da cultura brasileira, aproximando-se das correntes do pensamento moderno, emancipando-se dos elos da influência do exclusivismo da cultura portuguesa e francesa. 12 13 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 87-88 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 95. 16 Venâncio Filho14 ensina que a ‘Escola de Recife’ passou por três fases, uma mais romântica, iniciada em 1870, com influência do Romantismo, uma segunda fase, mais crítico-filosófica, ocorreu a partir de 1870 e se estendeu até 1881, e uma terceira fase, iniciada em 1882, propondo uma nova visão do direito, sendo classificada como “o período jurídico-filosófico”. No entanto, Venâncio Filho destaca, como uma manifestação da mais importância, no campo jurídico, o fato do exame de doutoramento de Sílvio Romero. Para ilustrar sua observação, cita Silvio Rabelo15, acerca do Itinerário de Silvio Romero: A Faculdade de Direito não ocupou um lugar ameno na memória de Silvio Romero. Nas raras vezes em que recordou o tempo acadêmico, a Faculdade, com seus professores e os seus estudantes, mereceu dele referências desdenhosas e, às vezes, um tanto cáusticas. Ainda aluno no quinto ano do curso, tratou-a como modelo de rotina: ‘A Faculdade de Direito do Recife tem o privilégio do estacionamento. Há cinqüenta anos agita-se o mundo científico por fora e ainda ali não se ouviram os ruídos de tantas pugnas. Há cinqüenta anos a sua Congregação, togada, vai recebendo, como religiosa herança, o mesmo punhado de principais virtudes das mesmas ‘fórmulas programáticas’”. Quem intentasse escrever a história daquele instituto de ciência, achar-se-ia, de pronto, diante do fato anômalo de um corpo docente, que repete as mesmas noções, repisa as mesmas idéias, declama as mesmas decrepitudes e, ao todo, ordena as mesmas dissertações no vasto período de meio século. Vale ressaltar que esse relato crítico da descrença acerca do modelo de ensino jurídico baseado em “fórmulas programáticas”, dá-se no final do século XVII, ou seja, há mais de cem anos da modernidade estéril-tecnocológica em que se vive atualmente. Para ilustrar bem o que se pretendia com a ‘Escola de Recife’, ilustrativo é o texto de Graça Aranha, grande escritor brasileiro, citado por Venâncio Filho, acerca de Tobias Barreto, um dos agudos articuladores desse movimento: Abria-se o concurso para professor substituto da Faculdade. Foi o concurso de Tobias Barreto. Eu já havia iniciado meus estudos na Academia. O que me ensinaram de Filosofia do Direito eu não entendia. Era superior ao meu preparo e professado sem clareza, sem fluido da comunicação. José Higino, o pesado mestre spenceriano, nos enojava e nós não o entendíamos. A outra matéria era o Direito Romano, mais compreensível, porém que professor calamitoso era o velho e ridículo Pinto Júnior! O concurso abriu-se como um clarão para os nossos espíritos. A eletricidade da esperança nos inflamava. Esperávamos inconscientes a coisa nova e redentora. Eu saía do marítimo da opressão para a luz, para a vida, para a alegria. Era dos 14 15 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 96. RABELO, 1944 apud VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 97. 17 primeiros a chegar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade, que separava a Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou o nosso favorito. Para estimular esta predileção, havia o apoio dos estudantes baianos ao Candido Freitas, baiano e cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato, desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se na argüição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saia uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos transformávamos. Estes debates incomparáveis eram pontuados pelas contínuas ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha nosso entusiasmo. A congregação humilhada em seu espírito reacionário, curvava-se ao ardor da mocidade impetuosa. Prosseguimos impávidos, certos de que, conduzidos por Tobias Barreto, estávamos emancipando a mentalidade brasileira, afundada na teologia, no direito natural, em todos os abismos do conservantismo. Para mim era tudo isto delírio. Era a alucinação de um estado inverossímil que eu desejava, adivinhava, mas cuja realização me parecia sobrenatural. Tobias Barreto fez a sua prova de preleção oral. O orador atingiu para minha sensibilidade ao auge da eloqüência. Quando terminou, recebeu a mais graciosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes. Foi então que, tomado de um impulso irreprimível, saltei a grade e por entre as aclamações dos estudantes e diante do assombro da Congregação, atirei-me aos braços de Tobias Barreto, que me recolheu comovido e generoso. “Já é acadêmico?”, perguntou-me, admirado de minha pouca idade. “Sim, calouro”. Abraçou-me novamente. “Pois bem, vá à minha casa esta noite”. Que deslumbramento! Não voltei aos meus colegas. Fiquei por ali mesmo, metido em algum canto da sala da Congregação, e saí acompanhando, como uma pequenina sombra, o Mestre. À noite eu estava em casa sua em Afogados. Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto. São passados mais de quarenta anos desse grande choque mental e ainda ressinto em mim as suas inefáveis vibrações. Por ele me fiz homem livre. Por ele saí de uma falsa compreensão do universo e da vida. Por ele afirmei a minha personalidade independente e soberana. A lição de Tobias Barreto foi a de pensar desassombradamente, a de pensar com audácia, e a de pensa por si mesmo, emancipado das autoridades e dos cânones. A sua principal ação foi destrutiva. Naturalmente. No Brasil há sempre muito que destruir. Mas, ao mesmo tempo em que a sua crítica destruía, novas perspectivas surgiram para a cultura, novas bases para a inteligência se formavam. Para se avaliar o que foi a ação de Tobias Barreto, basta atender o que eram os estudos de direito antes dele e depois dele. Saíamos da disciplina de Brás Florentino, de Ribas, de Justino, para a lição de tantos mestres emancipados. O Código Civil Brasileiro, construção de Clóvis Beviláqua, se filia à inspiração de Tobias. A crítica se renova por ele. Silvio Romero, Araripe e o próprio José Veríssimo são seus discípulos. A libertação do grande mestre do pensamento livre. Ainda hoje se pode dizer, como se disse de Kant, que voltar a Tobias é progredir. As grandes alavancas com que combateu a velha mentalidade brasileira foram o transformismo, o monismo, o determinismo. Todas estas forças, por maiores que sejam as modificações das interpretações que 18 recebam, estão vivas e zombam dos ataques inócuos e estafadas dos 16 teólogos . (grifos acrescentados). Para arrematar o que foi a ‘Escola de Recife’, nos dizeres de Clóvis Beviláqua, citado por Venâncio Filho17: A Escola de Recife, na sua fase jurídica, segundo já foi observado, não foi uma escola fechada. Somente um princípio a dominava como base e orientação: o Direito, forma de coexistência humana, deverá ser estudado, objetivamente, como os fenômenos do Universo. (grifo acrescentado). 1.2 A Reforma de Benjamin Constant (A descentralização) A proclamação da República, que se deu em 05 de novembro de 1889, não trouxe consigo um programa educacional definido. Nos dizeres de Fernando de Azevedo, citado por Venâncio Filho18, “do ponto de vista cultural e pedagógico a República foi uma revolução que abortou”. Tal observação se consubstancia no fato de o Marechal Deodoro da Fonseca não ter pensado na criação de um ministério da educação. Só vindo a se manifestar acerca do assunto quando Benjamim Constant então indicado para o ministério da guerra diverge deste, então Deodoro cria a pasta da Instrução Pública, Correios e Telégrafos e o acomoda. A atuação de Benjamin Constant ganha destaque com a aprovação do Decreto nº 1.232-H, de 02 de janeiro de 1891, que aprova o regulamento das instituições de ensino jurídico dependentes do Ministério da Instrução Pública. Aqui há de se observar que o Decreto nº 1.030-A, de 14 de novembro de 1890, decretava a separação entre a Igreja e o Estado19. Reproduz-se aqui como ficaram as matérias com o decreto de Benjamim Constant, in verbis: 16 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 99-100. VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 107. 18 AZEVEDO, p. 626 apud VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 179. 19 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 179. 17 19 Filosofia e História do Direito; Direito Público e Constitucional; Direito Romano; Direito Criminal, incluindo o Direito Militar; Direito Civil; Direito Comercial, incluindo o Direito Marítimo; Medicina Legal; Processo Criminal, Civil e Comercial; Prática Forense; História do Direito Nacional; Noções de Economia Política e Direito Administrativo; Filosofia e História do Direito; Direito Público; Direito Constitucional; Direito das Gentes; Diplomacia e Histórias dos Tratados; Ciência da Administração e Direito Administrativo; Economia Política: Ciência das Finanças e Contabilidade do Estado; Higiene Pública; 20 Legislação Comparada sobre o Direito Provado (noções) . A reforma de maior relevo de Benjamin Constant, apontada como a “maior novidade” por Venâncio Filho, consistiu na autorização aos estados, ou particulares, para que pudessem fundar Instituições de Ensino Superior, por intermédio do Art. 309, mas para que os graus por eles conferidos tivessem os mesmos efeitos legais que os das faculdades federais era necessário que as habilitações para matrícula e 20 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 180. 20 exames dos cursos fossem idênticos aos das faculdades federais e que ficassem sujeitos às inspeções do Conselho de Instrução Superior. O Art. 309 também previa a permissão para qualquer indivíduo ou associação de particulares fundasse cursos ou estabelecimentos, nos quais se ensinassem as matérias que constituem o programa de qualquer curso ou faculdade federal, ficando também sujeitas à inspeção do Conselho de Instrução Superior. A reforma de Benjamin Constant, nos dizeres de Clóvis Beviláqua21: Operou grandes transformações no ensino público do país. Não somente se criaram cadeiras novas nas Faculdades, como se imprimiu caráter mais consentâneo com as idéias do tempo, à concepção geral de ensino jurídico. Pela primeira vez, no mundo oficial, a compreensão da real importância da história e da legislação comparada, com o elemento elucidativo da função social do Direito. E tanto a história geral do Direito como a do Direito Nacional formaram disciplina de curso, a primeira ao lado da Filosofia e o segundo constituindo uma cadeira independente, embora limitada ao Direito Privado. A Lei nº 314, de 30 de outubro de 1.930, promulgada pelo Congresso, reorganiza o ensino nas faculdades de direito, passando o curso a ser feito em cinco anos, e de acordo com a seguinte distribuição de matérias22: 1º ano: 1ª Cadeira - Filosofia do Direito; 2ª Cadeira - Direito Romano; 3ª Cadeira - Direito Público Constitucional. 2º ano: 1ª Cadeira – Direito Civil; (1ª Cadeira) 2ª Cadeira – Direito Criminal; (1ª Cadeira); 3ª Cadeira – Direito Internacional Público e Diplomacia; 4ª Cadeira – Economia Política. 3º ano: 1ª Cadeira – Direito Civil (2ª Cadeira); 2ª Cadeira – Direito Criminal, especialmente Direito Militar e Regime Penitenciário (2ª Cadeira); 3ª Cadeira – Ciências das Finanças e Contabilidade do Estado (continuação da 4ª Cadeira do 2º ano). 4º ano: 1ª Cadeira – Direito Civil (3ª Cadeira); 2ª Cadeira – Direito Comercial (especialmente Direito Marítimo, Falência e Liquidação Judiciária); 3ª Cadeira – Teoria de Processo Civil, Comercial e Criminal; 4ª Cadeira – Medicina Pública . 5º ano: 1º Cadeira – Prática Forense (continuação da 3ª Cadeira do 4º ano); 2ª Cadeira – Ciência da Administração e Direito Administrativo; 3ª Cadeira – 21 22 BEVILÁQUA apud VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 184. VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 190-191. 21 História do Direito e especialmente do Direito Nacional; 4ª Cadeira – Legislação Comparada sobre Direito Privado. Segundo Venâncio Filho23 foram abolidos os cursos especiais de Ciências Sociais e de Notariado, continuando, porém, o de Ciências Sociais por mais dois anos e de Notariado por mais um ano. 23 VENÂNCIO FILHO, 1982. 22 CAPÍTULO 2 - O ENSINO (DES)ATUALIZADO DO DIREITO Em 1935, com a criação da Universidade do Distrito Federal, deu-se a primeira tentativa de renovar o ensino jurídico no Brasil, nos dizeres de André Luiz Lopes dos Santos24: Impregnada, em sua concepção, por novas teorias educacionais, o que fez com que ela se tornasse ‘a primeira experiência brasileira de uma universidade aberta aos novos ramos do conhecimento humano’, todavia, foi uma experiência frustrada, que envolveu pensadores e educadores progressistas, [...], que não conseguiram vencer padrões clássicos da tradicional formação universitária, vez que a universidade ‘estava sujeita a todas as influências políticas e pressões ideológicas, num dos períodos mais conturbados da história brasileira moderna’. Outra tentativa de modernização do ensino jurídico no Brasil ocorreu com a criação da Universidade de Brasília, que em sua concepção “corrigia os erros e as insuficiências da UDF (Universidade do Distrito Federal) e os vícios burocráticos das universidades brasileiras”25. Contudo, tal proposta de ‘atualização’ no que se refere ao ensino jurídico, conforme Wander Aurélio Bastos, citado por André Luiz Lopes dos Santos26, vale ressaltar: A questão da reforma das faculdades de Direito está exatamente na vocação do ensino jurídico, tradicionalmente avesso às formulações críticas, que, pela sua essência, questionam a própria ordem jurídica, objeto tradicional de ensino do professor de Direito e de aprendizado do advogado. Advogar não é criticar a ordem, mas viabilizar sua aplicação, especialmente nos países de tradição positivista. Esta máxima, que tem o seu espaço de verdade, mas também o seu limite epistemológico, faz o ensino jurídico um ensino destinado a produzir a ordem estabelecida e das faculdades de Direito meros centros de retransmissão do conhecimento codificado e dos seus instrumentos compreensivos. A UnB trazia uma nova proposta de interdisciplinaridade, aspecto esse realmente inovador e revolucionário, quando se consideram todas as outras abordagens anteriormente tomadas em relação ao ensino jurídico no Brasil. 24 SANTOS, André Luiz Lopes dos. Ensino jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas: Edicamp, 2002. p. 38-39. 25 SANTOS, 2002, p. 39. 26 BASTOS apud SANTOS, 2002, p. 39-40. 23 Nesse aspecto renovador, o aluno de Direito cursaria, de início, disciplinas como Economia Política, Ciências Sociais, Ciência Política, Filosofia Geral, Lógica e História, responsáveis por uma formação cultural mais abrangente e mais crítica. A concepção de curso jurídico, sobre a qual se lançaram as bases da UnB, teve influência direta do pensamento de San Tiago Dantas, conforme André Luiz Lopes dos Santos27: Para San Tiago Dantas, a faculdade de Direito não preparava o estudante para o trato com os conflitos sociais, o que só se poderia lograr mediante uma nova proposta didática, na qual o case method viesse a substituir as aulas meramente expositivas. Prestigia, ainda, a idéia de currículo flexível, que viabiliza especializações (cada vez mais exigidas pelo mercado de trabalho), sem a perda de uma formação geral. Continua San Tiago Dantas acerca da renovação do ensino jurídico no Brasil, desta feita citado por Ana Carla Harmatiuk Matos28: Quem percorre os programas de ensino das nossas escolas, e, sobretudo, quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbrã, vê que o objetivo atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemático das instituições e normas jurídicas. Destaca-se na nova estrutura curricular do curso de Direito, na UnB, o abandono do Direito Romano, da Filosofia do Direito (tida como fomentadora de um pensamento idealista e, por isso, preterida em favor de disciplinas de cunho sociológico), além da inclusão de disciplina de Análise Jurisprudencial. Cadê a fonte? Contudo, a partir de 1964, essas idéias de mudanças não se mantêm, passase a predominar um enfoque positivista no curso jurídico, retorna a cadeira de Direito Romano (em 1971) e a Filosofia do Direito. Tais mudanças se acentuam com o golpe militar de 1964, em que a nova elite intelectual, que se forma na UnB, fora taxada de comunista e perseguida pelo regime de exceção. Sobre isso se manifestou André Luiz Lopes dos Santos29: 27 SANTOS, 2002, p. 41. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Sete diálogos sobre a relação ensino-aprendizagem no direito. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 407. 29 SANTOS, 2002, p. 42-43. 28 24 Nesse contexto, em que se instaurava o regime militar, a reforma na estrutura do ensino no país, promovida por meio da Lei nº 5.540/68, “impôs um sistema educacional completamente dissociado do contexto sócioeconômico [sic] brasileiro”, procurando “negociar a lealdade e a solidariedade política das novas gerações estudantis ao regime dito ‘revolucionário’, em troca de um diploma desmoralizado” e, com isso, “a Universidade brasileira progressivamente deixou-se transforma em simples agência cartorial transmissora de idéias pré-concebidas. Constata-se, que apesar de passados cem anos, não houve uma evolução significativa no ensino jurídico no Brasil. Quando se criam as condições para que essas mudanças sejam realmente significativas, próximo a chegar a um ponto de avanço, retrocede-se aos tempos coloniais, com um agravante, agora com ‘idéias pré-concebidas’, que se afirmam prontas para se perpetuarem no ensino a partir de então. Há de se ressaltar que houve algum ”avanço”, embora parco, mas que permaneceu até a Portaria nº 1.886/94, duas décadas depois, André Macedo de Oliveira30 informa: A Resolução nº 03, de 25 de fevereiro de 1972, tratou do currículo mínimo, do número de horas-aulas, da duração do curso e outras normas gerais pertinentes à sua estruturação. O currículo mínimo foi dividido em dois eixos: matérias básicas e matérias profissionais. As primeiras eram divididas em Introdução ao Estudo do Direito, Economia e Sociologia. As profissionais abarcavam o direito constitucional (teoria e prática – sistema constitucional brasileiro), direito civil (parte geral, obrigações, contratos, coisas, família e sucessões), direito penal, direito comercial, direito do trabalho, direito administrativo, direito processual civil, direito processual penal e duas disciplinas dentre as seguintes: direito internacional público, direito internacional privado, ciência das finanças e direito financeiro (tributário e fiscal), direito de navegação, direito romano, direito agrário, direito previdenciário e medicina legal. (grifo acrescentado). Percebe-se, desde já, e mais tarde será devidamente abordado, o uso indevido da ideologia no Direito. Há de se questionar: o que será que se estudava na cadeira ‘Direito Agrário’ nesse período de exceção no Brasil? 30 OLIVEIRA, André Macedo de. Ensino jurídico: diálogo entre teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2004. p. 43. 25 2.1 A Constituição de 1988 O grande desafio do ensino jurídico foi a promulgação da Constituição de 1988, com o novo texto abarcando valores até então (enquanto exceção) alijados da sociedade, como liberdade de expressão, voto direto, ou seja, foram restabelecidos os direitos civis, ou mais precisamente, o estado de direito. E agora como ensinar o que é função social da propriedade? Num contexto dogmático-doutrinário ainda contaminado pelo paradigma do Código de Napoleão, que repousa num sono ainda profundo de um discurso proprietário que vislumbra no domínio um direito subjetivo real absoluto, quando o espírito constitucional é contundente em exigir a releitura do direito privado em bases repersonalizantes, que indique o homem e a sua dignidade como foco das atenções dos juristas? O direito agrário não está nem nas disciplinas optativas da maioria das faculdades de direito. Dá-se então a dicotomia: ensinar o Direito ou ensinar o que é Direito? Os tempos são de turbulência hermenêutica, e, portanto, propício às reconstruções exegéticas necessárias para dar um redirecionamento à fixação dos sentidos da interpretação, para que se dê prioridade ao humano, à sua existência, ao seu contexto. 2.2 A Constatação da Crise do Ensino Jurídico Este trabalho monográfico constatou a abordagem equivocada do ensino jurídico no Brasil, e não é de se estranhar que esse equívoco resultaria em uma crise. Como advertiu San Tiago Dantas, citado por outros autores, a universidade perdeu seu poder criativo para a resolução dos problemas que lhe são apresentados, tornando-se, dessa forma, centro de transmissão de conhecimentos alheios aos aspectos sociais e culturais da sociedade. “Assim, problemas novos 26 estão sem solução e os antigos com soluções obsoletas”31. A crise também é reflexo do que foi dito no início deste trabalho, os cursos jurídicos no Brasil nasceram com a finalidade de prover o Império de bacharéis, para compor as carreiras burocráticas e de criação de leis. “Nasce um modelo de jurista diretamente ligado às funções do Estado”32. Em conseqüência desse modelo, formou-se, desde então, juristas totalmente dissociados social e culturalmente da realidade pátria, não sendo capazes de propor soluções para o deslinde dos problemas que saltam da realidade. Ressalta Rosalice Fidalgo Pinheiro que “o quadro do ensino jurídico, moldado pelo traçado de um paradigma normativista, congrega consigo, a descontextualização, o dogmatismo e a unidisciplinaridade”33. E ainda sobre o mesmo assunto, Pinheiro recebe o reforço de Orlando Gomes, por ela mesma citada34: O ensino continua a ser ministrado, por sua vez, através do árido e fatigante método formalístico e dogmático dos monólogos catedráticos de docentes imobilizados numa posição didática que os petrifica em desoladora estagnação cultural. Na monotonia desse aprendizado ‘nocionístico’, apodera-se dos estudantes da geração mais nova, - tal como observa Capelletti – difuso sentimento de dúvida, de desconfiança, de desespero ou de rebelião, no confronto com o mundo construído pela geração dos seus professores, atropelado por conflitos mortais, por ideologias e regimes de opressão, por injustiças insuportáveis, por obtusa destruição ecológica e pela materialística e suicida sociedade de consumo. Ratificando a posição de Pinheiro, Roberto A. R. de Aguiar35 relata: As escolas de Direito do Brasil não foram feitas para formar advogados. Eles não são prioridade para elas. Quando de sua abertura, os cursos jurídicos visavam a formar quadros para a alta burocracia do Estado brasileiro emergente. Hoje, o seu objetivo é propiciar uma formação generalista, de “cultura geral”, a fim de permitir uma ascensão social ou melhores salários aos freqüentadores dos cursos jurídicos. Assim a formação do advogado não é e nem nunca foi a meta ou uma das metas prioritárias dos cursos jurídicos. A solução da crise passa necessariamente pela revisão do ensino jurídico, tais mudanças se consubstanciam, não simplesmente na revisão das matérias 31 PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. A responsabilidade social do jurista e o ensino jurídico: um breve diálogo entre o direito e a pedagogia. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 506. 32 PINHEIRO, 2002, p. 507. 33 PINHEIRO, 2002, p. 598. 34 GOMES, p. 65 apud PINHEIRO, 2002, p. 509-510. 35 AGUIAR, 1999, p. 78-79. 27 estudadas, retirar ou colocar novos conteúdos curriculares, pouco interfere no objetivo final tais medidas isoladamente, o que deve ser observado é como essas disciplinas são colocadas, em que contexto elas são ensinadas. Se elas são ofertadas de uma forma dialética ou simplesmente ‘empurradas’ para o aluno. Não há como saber ‘operar’ o Direito, sem antes saber pensar o Direito. Assim se manifesta Pinheiro, in verbis36: Cabe ressaltar que o cerne da questão não está na mudança de métodos, embora tais mudanças sejam necessárias. Mister se faz a mudança do modo de pensar o Direito, isto é, a necessidade de capacitar o aluno a exercer um pensamento crítico, apto a propiciar uma releitura, ou ainda, reconstrução dos institutos herdados da civilização clássica. Eis o desafio que se apresenta ao ensino jurídico: dotar o jurista dos valores, que devem estar presentes em sua atividade na sociedade atual, tornando-o apto a atuar como um “intelectual crítico”, na defesa da pessoa e seus direitos inalienáveis. Também nesse contexto se manifestou San Tiago Dantas, citado por André Macedo de Oliveira37, defendendo a necessidade de uma revisão da Universidade, para que ela se transforme em instrumento de elaboração de cultura, bem como se torne campo propício à educação jurídica. O direito estava, em sua opinião, num processo de perda da credibilidade. Fazia-se necessário um ensino jurídico que estivesse objetivado no desenvolvimento, treinamento e no efetivo desempenho do raciocínio jurídico. Constata-se que a crise do ensino jurídico se deu justamente porque o ensino jurídico não poderia subsistir ‘de costas’ para a sociedade. Não há como formar ‘operadores do direito’ descontextualizados dos problemas sociais que eles deveriam enfrentar no exercício do seu labor. O começo da solução do problema é a sua constatação. Colabora com essa abordagem Sérgio Rodrigues Martinez38, com apoio em Paulo Freire “Pedagogia do Oprimido”, o qual, por sua vez, denomina a ’educação bancária’ como o procedimento metodológico de ensino que privilegia somente o ato de repetição e memorização do conteúdo ensinado”. Nessa caracterização, o professor depositaria na cabeça dos seus alunos conceitos a serem posteriormente cobrados com juros e correção monetária na ‘prova’, através da conhecida 36 PINHEIRO, 2002, p. 520. DANTAS apud OLIVEIRA, 2004. 38 MARTINEZ, Sérgio Rodrigo. Pedagogia jurídica: do ensino tradicional à emancipação. Curitiba: Juruá, 2002. p. 16 ss. 37 28 expressão ”eu tenho a caneta vermelha”. Certa feita, um professor fez ao autor desta monografia, um ‘sem luz’, uma clara ameaça: se não correspondesse às suas expectativas, ficaria com a sua parca “conta corrente acadêmica” no vermelho. Outra passagem que serve para realçar a crise ou o que gera a tal crise é citada também por Martinez39, desta vez citando José de Arimathéia C. (Análise crítica das vivências pedagógicas da pré-escola ao 3º grau): O Direito é bonito e fascinante. O que é ridículo é o professor que diz que o Direito é ciência exata como Matemática e que reprovou 12 em 25 alunos. Outro exigia em prova a definição ‘ipsis literes’ [sic] de um conceito, sob pena de total incorreção de respostas. É o lado mais sombrio do tecnicismo. Isso não é tão incomum como se possa imaginar. Continua Martinez40, desta feita citando Edmundo de Lima Arruda Júnior: São conservadores ao extremo, transpassando aos alunos uma visão legalista, formalista, embasada num feroz positivismo kelsiano, ou dentro de marcos de uma cultura jurídica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente. Noutra passagem de sua vida acadêmica, este monografista, um “sem luz”, ainda deslumbrado por estar num curso superior, e de Direito, ouviu de um professor de Filosofia: “O aluno chega aqui (na faculdade) com a cabeça feita. Tem que chegar com a cabeça virgem”, dizendo isso após o “sem luz” clamar por claridade. Queria discutir (“dialetizar”) sobre a abordagem filosófica que era ministrada pelo mestre, excessiva e ideologicamente liberalizante. Sem ressaltos, a resposta ao docente foi prontamente apresentada: “Professor, até concordo com Vossa Senhoria, que o aluno tem de chegar à faculdade com a cabeça virgem, contudo elas devem ser elastecidas e não estupradas”. Já no ocaso de sua busca por iluminação, numa aula de Hermenêutica Jurídica, discutindo uma decisão judicial, em que o Juiz decidiu extra legis (não 39 40 MARTINEZ, 2002, p. 18-19. MARTINEZ, 2002, p. 19. 29 baseado na lei), o monografista argumentava, citando o renomado jurista Paulo Nader41: [...] a letra em si é inexpressiva; a palavra, como conjunto de letras ou combinações de sons, só tem sentido pela idéia que exprime, pelo pensamento que encerra, pela emoção que desperta. [...] A lógica formal, aplicada com exclusividade, imobiliza o Direito, pois considera tão-somente os elementos fornecidos pela legislação, não levando em conta a evolução dos fatos sociais [...]. Qual não foi a surpresa do aprendiz, ao final da sua explanação, ao ouvir o ‘iluminado’ professor dizer: “Sim, e daí, isso para mim é blablablá”. Apelou para Kelsen. Quietou-se o ‘sem luz’ em sua escuridão. Martinez42 teoriza: Em conseqüência, na forma, “bancária”, de ensinar, a angústia passiva dos alunos, cujos questionamentos nunca são ouvidos, permanece. Tornam-se alienados e, em cinco anos, uma parte de suas vidas se esvairá em audições dotadas de excessiva teorização. Esperançosos de um futuro diferente. Podem deixar para depois da formatura a práxis que a mera verborragia didática não lhes trouxe. ‘O positivismo normativo cria um sistema jurídico alienado e alienante’. [...] Então, o ciclo de opressão social se mantém e se retroalimenta até os dias atuais, porquanto os futuros operadores de normas jurídicas são forjados, pouco a pouco pelo ensino “bancário”, a serem seguidores complacentes das ideologias de controle impostas. Nesse sentido, medidas legais injustas ou até tecnicamente incorretas, como a que legaliza a ocorrência de juros sobre juros, custas judiciais abusivas, fixação de juros acima do limite constitucional e outras invenções legais mirabolantes, contrárias aos interesses da população, são criadas e aplicadas diariamente por todo o país, e passam aos olhos de milhares de profissionais do Direito como atos, senão normais, ao menos contra os quais não há que se possa fazer ao seu alcance. Vê-se que a crise do ensino jurídico não pode ser dissociada de uma crise geral (de valores inclusive) que ocupa a sociedade. Onde deveria ser o foro apropriado para se discutir e trazer soluções para tal crise, tais preocupações 41 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 268269. 42 MARTINEZ, 2002, p. 21. 30 passam longe, é de se confirmar que o ensino jurídico passa realmente por um colapso. Hodiernamente o Conselho Nacional de Educação, por intermédio da Resolução nº 9, de 29 de setembro de 2004 (ANEXO), propôs um perfil do bacharel, devendo ele ostentar uma sólida formação geral, humanística e axiológica, de forma que o graduado possa desenvolver uma capacidade valorativa dos fenômenos jurídicos e sociais, bem como uma visão crítica e reflexiva. Martinez43 aponta o caminho a ser seguido, como forma de trazer esses questionamentos para a prática do ensino jurídico, sugerindo um perfil a ser perseguido pela docência para na formação dos futuros operadores do Direito: a) capacidade de transmissão crítica e criativa dos conhecimentos, obtidos mediante constante processo de pesquisa e investigação; b) capacidade para problematizar e estimular a produção de soluções harmônicas com conteúdo social; c) capacidade para utilização diversificada de técnicas pedagógicas de ensino e aprendizagem; d) capacidade de auto-avaliação e discernimento constantes; e) capacidade de liderança e formação de grupos de estudo; f) inteligência emocional e ausência de autoritarismo; g) preparação e contínua reciclagem pedagógica; h) postura ética e de responsabilidade social; i) produção cientifica periódica decorrente das atividades em sala de aula e com o envolvimento discente. 43 MARTINEZ, 2002, p. 25-26. 31 Também enumera o perfil desejado do estudante (formando) no contexto de um ensino jurídico moderno44: (a) Permanente formação humanística, técnico-jurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais; (b) Conduta ética associada à responsabilidade social e profissional; (c) Capacidade de apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito a partir da constante pesquisa e investigação; (d) Capacidade de desenvolver formas judiciais e extrajudiciais de prevenção e solução de conflitos individuais coletivos; (e) Capacidade de atuação individual, associada e coletiva no processo comunicativo próprio ao seu exercício profissional; (f) Domínio da gênese, dos fundamentos, da evolução e do conteúdo do ordenamento jurídico vigente; e (g) Consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. Os quais devem almejar as seguintes habilidades45: 44 45 (a) leitura, compreensão e elaboração de textos e documentos; (b) interpretação e aplicação do direito; (c) pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do direito; (d) correta utilização da linguagem – com clareza, precisão e propriedade fluência verbal e escrita, com riqueza de vocabulário; (e) utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; (f) julgamento e tomada de decisões; e (g) domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do direito. MARTINEZ, 2002, p. 67 et seq. MARTINEZ, 2002, p. 67 et seq. 32 Termina Martinez apresentando um ‘Projeto Pedagógico’ 46: (a) objetivos gerais do curso, contextualizados em relação à suas inserções institucional, geográfica e social; (b) condições objetivas de oferta (perfil, titulação e nominada do corpo docente, infra-estrutura) e vocação do curso; (c) modos de desenvolvimento das habilidades de seus alunos para alcance do perfil de formando desejado; (d) currículo pleno; (e) cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do curso; (f) formas de realização da interdisciplinaridade; (g) modos de integração entre teoria e prática das atividades didáticas; (h) formas de avaliação do ensino e da aprendizagem; (i) modos de integração entre graduação e pós-graduação, quando houver; (j) modos de incentivo à pesquisa, como necessário prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a realização de iniciação científica; (k) concepção e composição das atividades do estágio de prática jurídica; (l) formas de avaliação interna permanente do curso; (m) concepção e composição do programa de extensão; (n) concepção e composição das atividades complementares; (o) regulamento da monografia final; 46 MARTINEZ, 2002, p. 67. 33 (p) sistema de acompanhamento de egressos; (q) formações diferenciadas, em áreas de concentração, quando necessárias ou recomendadas; e (r) oferta de cursos seqüenciais, quando for o caso. Outro contexto, no qual a crise do ensino jurídico no Brasil se insere, é a chamada proliferação de cursos de Direito. Segundo dados do IES – Instituto de Ensino Superior, até agosto de 2006, havia mil e duas (1.002) escolas de graduação em direito autorizadas a funcionar pelo Ministério da Educação, distribuídas da seguinte forma: 56 na região Norte, 95 no Centro-Oeste, 169 no Nordeste, 205 no Sul e 447 no Sudeste47. Muito provavelmente, até o término e defesa desta monografia, esses dados já estarão desatualizados, tamanha a proliferação de cursos, de fazer inveja à fertilidade dos roedores. Em contrapartida à desenfreada criação de cursos superiores de Direito, cada vez menos ocorre a aprovação dos egressos dessas faculdades (arapucas) nos quadros da OAB, conforme ilustra a reportagem do jornal Folha de São Paulo: Dos 27.079 candidatos que fizeram o exame 131 da OAB-SP, apenas 13,56% foram aprovados, divulgou ontem (11.04.2007) a Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB-SP. Passaram para a primeira fase 5.984 pessoas e, dessas, 3.825 foram aprovadas. Para o presidente da comissão Braz Martins Neto, o resultado mostra que as faculdades não têm “formado adequadamente os bacharéis”. O índice de aprovação ficou próximo das edições dos exames 129 (9,795); 128 (11,4%); 126 (12%) e 124 (8,57%). “Este resultado aponta para a necessidade de continuarmos lutando para a melhoria da qualidade do ensino jurídico no país”, disse o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges 48 D’Urso [Folha de São Paulo] 47 48 MOURA, Marcelo de Souza. A função social do professor de Ensino Jurídico no novo milênio: uma perspectiva weberiana. Jus Vigilantibus, Vitória, 17 fev. 2007, Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/23258>. Acesso em: 20 fev. 2007. OAB: Só 13,56% dos inscritos passam em exame. Universia, 12 abr. 2007. Disponível em:<http://www.universia.com.br/html/noticia/noticia_clipping_dgijg.html>. Acesso em: 04 maio 2007. 34 Em Brasília, notícia do Correio Braziliense, em 04 de maio de 200749: A primeira fase do Exame da Ordem Unificado da OAB teve 68,83% de reprovação no Distrito Federal. Dos 2.123 candidatos que fizeram a prova, composta por 100 perguntas de todas as áreas do Direito, apenas 666 foram aprovados. Esta foi a primeira vez que a aplicação aconteceu de forma unificada, ou seja, na mesma data e com o mesmo conteúdo em diversas cidades do País. O exame foi realizado em 17 Estados e no Distrito Federal. O campeão em reprovação foi o Amapá, onde apenas 5,71% dos candidatos foram aprovados. O estado que mais aprovou foi Sergipe, com 39,37%. [...]. De acordo com a presidente da OAB-DF, Estefânia Viveiros, o resultado de 31,37%, mesmo sendo baixo, é positivo “Antes as provas eram feitas pela própria OAB, agora é o Cespe que elabora. Mesmo assim mantivemos a média dos últimos três anos. “Na segunda fase do exame, o número de aprovados cai mais ainda. Infelizmente, isso repercute no ensino jurídico. No geral, a qualidade do ensino de direito no DF é baixo”, afirma. No DF existem 23 faculdades de Direito, mas apenas nove participam do exame da OAB. As outras são recentes e ainda não formaram a primeira turma. De acordo com Estefânia Viveiros, a Ordem procurou o MEC (Ministério da Educação) para que, sempre que o parecer da OAB for negativo, não seja autorizada a criação de um novo curso. Ou que, pelo menos, o processo seja revisado”, disse. “É preocupação do Conselho Federal melhorar a qualidade do ensino jurídico no DF”, acrescentou. Esses são exemplos que deixam claro que a crise do ensino jurídico no Brasil é generalizada. Contudo cabe, também, uma crítica à OAB-DF. Nesse contexto de crise no ensino jurídico, há de se estabelecer a responsabilidade da Ordem. Nesse vetor pensa Luiz Flávio Gomes50: Os exames ostentam, em certas ocasiões, alto índice de discussão. A elaboração das provas, muitas vezes, peca pelo excesso ou por omissões. Até mesmo erros vernaculares primários são encontrados (uma prova recente da OAB falava em “estrupro!”, duas vezes). A correção das provas segue, em muitas oportunidades, critérios exageradamente subjetivos. Corporativismo, reserva de mercado, elitismo etc. são censuras correntes contras as OABs, que criticam as faculdades, mas também não têm conseguido fazer com que seus integrantes sejam reconhecidos 49 EXAME da OAB reprova quase 70% dos candidatos no DF. CorreioWeb, 02 maio 2007. Disponível em: <http://noticias.correioweb.com.br/materias.php?id=2706092&sub=Distrito%20Federal>. Acesso em: 04 maio 2007. 50 GOMES, Luiz Flávio. Crise do ensino jurídico, exame da OAB e empregabilidade. Revista Juristas, João Pessoa, 04 dez. 2006. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/mod_revistas.asp?ic=2225>. Acesso em: 20 fev. 2007. 35 satisfatoriamente. A falta de confiança da população no advogado ainda é muito grande. Menos da metade da população (48%) confia neles (Ibope, pesquisa realizada entre 18 e 22 de agosto de 2005). Ante o que foi noticiado anteriormente, é inquestionável a atuação da OAB? Como justificar o exame da Ordem? Não estaria perdida a legitimidade da OAB para dizer quem pode ou não pode ser advogado? Veja-se o que pensa o advogado Fernando Machado da Silva Lima, em texto extraído do sitio ‘Jusnavegandi’, acerca da ‘Questão do exame da Ordem’51: Somente deve poder controlar quem se sujeita, também, aos controles, e somente deve poder criticar quem aceita, democraticamente, as críticas. Não é, infelizmente, o que acontece, hoje, com a OAB. O seu exame de ordem não é fiscalizado por quem quer que seja; nem pelo Judiciário, nem pelo Ministério Público, nem pelas Universidades. A OAB nunca responde às críticas, nem comparece aos debates agendados pelos diretórios acadêmicos. Limita-se a dizer que os cursos jurídicos formam bacharéis despreparados – o que pode ser verdade, em muitos casos -, e que a ela cabe impedir que esses bacharéis possam exercer a advocacia, o que não é verdade, absolutamente, porque cabe apenas ao Estado brasileiro, de acordo com a Constituição Federal, fiscalizar e avaliar o ensino. O bacharel em direito, tendo recebido um diploma, fornecido por uma instituição fiscalizada pelo Estado, tem o direito público subjetivo de exercer a sua profissão, para a qual obteve a necessária qualificação, de acordo com o ordenamento jurídico vigente. É um rematado absurdo que a OAB pretenda defender, intransigentemente, esse sistema, de controle "a posteriori", pelo qual se permite o funcionamento dos cursos jurídicos que não reúnem os necessários requisitos, para a formação de bons profissionais, para depois patrocinar a reprovação em massa desses bacharéis, que ficam impedidos de trabalhar, em decorrência da reprovação no exame de ordem. Apesar de se concordar com os argumentos acima expendidos, deve-se considerar o contraponto que se faz à questão, inclusive ponderado em sala de aula pelo Professor Nilton Paixão, desta UCB, segundo o qual: o art. 5º, inciso XIII, da Constituição, estabelece a liberdade de trabalho, mas permite a sua restrição, através do estabelecimento de ‘qualificações profissionais’, como possibilidade aberta ao legislador ordinário, quando for necessário restringir o acesso ao mercado de trabalho, quando envolver interesses públicos (proteção da sociedade – saúde, patrimônio, segurança etc.). Outra: a OAB tem natureza jurídica de autarquia especial, tem poder 51 LIMA, Fernando Machado da Silva. O clube da OAB. Exame de Ordem, anuidades e aplicação das receitas da OAB/PA na manutenção do Clube dos Advogados. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 923, 12 jan. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7821>. Acesso em: 04 maio 2007. 36 de polícia quanto à profissão de advogado. Penso que a opinião acima 52 transcrita carece de fundamento jurídico-constitucional. Outra questão que se coloca é a seguinte: com tantos advogados no Brasil, cerca de 532 mil registrados na Ordem, como o acesso à Justiça ainda é um luxo para a grande maioria da população deste País? Tentar-se-á buscar respostas no próximo capítulo, no qual se tratará do Direito, do Poder e da Ideologia. 52 PAIXÃO JÚNIOR, Nilton Rodrigues de. Opinião expressa em sala de aula, em resposta à uma pergunta formulada por um aluno referente aa exigência de Exame da Ordem. 37 CAPÍTULO 3 - DIREITO, PODER E IDEOLOGIA Para ratificar ou retificar o que se disse anteriormente, neste capítulo serão abordados os aspectos que envolvem o ensino no Brasil. Os cursos jurídicos no Brasil foram criados não para formar advogados, como bem disse Roberto Aguiar, e sim para adestrar uma elite, que detinha o poder e tinha que criar mecanismo de se perpetuar nesse status quo. Para conseguir tal intento, lançou mão, primeiramente, do poder pelo poder, ou seja, a força, seja ela da opressão simplesmente ou, mais tarde, com ideologias, que vinham confirmá-la, ou ainda dar razão à opressão exercida. 3.1 Direito Direito o que é isso? É de se estranhar que um estudante de Direito saia da graduação e não possa ou não saiba responder essa indagação: O que é Direito? Sem dúvida se se perguntar aos formandos do curso de Direto, a maioria não saberá responder a esse questionamento. Em que pese a existência do fabuloso livro “O que é Direito” do não menos fabuloso Roberto Lyra Filho53, a indigência intelectual discente graceja solta, impune, cada vez mais abundante. É de boa indicação lançar mão do ensinamento do filósofo Immanuel Kant54 : Que é Direito em si? Esta questão, se não for para mergulhar numa tautologia ou referir-se à legislação de determinado país ou tempo, em lugar de dar uma solução geral, é tão grave para o jurisconsulto como o é para o lógico a questão que é a verdade? Seguramente pode-se dizer que é o direito (quaid sit juris), isto 53 54 LYRA FILHO, Roberto (1926-1986) foi um dos maiores professores de Direito da sua geração. KANT, Immanuel. Doutrina do direito. Tradução Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993. (Fundamentos do Direito). 38 é que prescrevem ou prescreveram as leis de determinado lugar ou tempo. Porém a questão de se dar por si o critério geral através do qual passam a ser reconhecidos o justo e o injusto (justum et injustim) jamais poderá ser resolvido a menos que se deixe à parte esses princípios empíricos e se busque a origem desses juízos na razão somente (ainda que essas leis possam muito bem se dirigir a ela nessa investigação), para estabelecer fundamentos de uma legislação positiva possível. A ciência puramente empírica do Direito é (como cabeça das fábulas de Fedro) uma cabeça que poderá ser bela, mas possuindo um defeito – o de carecer cérebro. Alguém poderia até responder a pergunta que se propõe: o que é Direito? Contudo tal questionamento invoca outro: para quê serve o Direito? Óbvio é que respondendo uma é meio caminho andado para se ter a resposta da outra. Atente-se para o segundo questionamento. Sabendo-se o que é o Direito, nas linhas kantianas já mencionadas, deve-se indagar para saber para que serve o Direito. A academia, como já está sobejamente demonstrado, está preocupada em formar pessoas para a ascensão social, profissional etc., Um exemplo retrata o contexto, o estudante sabe que a Constituição de 1988 institui entre os seus princípios a ‘função social da propriedade’. Entretanto os alunos saem da faculdade sabendo da existência desse dispositivo. Contudo não saberiam dizer o que é a ‘função social da propriedade’, talvez sequer tenham uma vaga idéia do que seja ‘função social’, como esclarece Pinheiro55: A Constituição de 1988 assumiu francamente um posicionamento possibilitador da construção de um novo discurso proprietário, agora baseado na função social da propriedade e na supremacia dos valores existenciais diante dos valores patrimoniais. A implantação da nova sistemática proprietária, entretanto, não se faz de modo pronto com o advento da Constituição: somente a atividade constante do operador do direito permitirá que o novo modelo de propriedade, plural e solidário, prevaleça diante do ultrapassado discurso, que teima em manter-se no discurso do ensino do direito de propriedade. Em um ensino jurídico descontextualizado, dogmático e unidisciplinar – como é o ensino do direito no Brasil – o princípio proprietário e o modelo proprietário ganham longa vida, e superam suas próprias rupturas... Pode-se constatar que o texto constitucional, em seu art. 5º, inciso XXII, afirma que “é garantido o direito de propriedade”, para, logo em seguida, no inciso XXIII, asseverar que “a propriedade atenderá a sua função social”. Entender que a Constituição brasileira, ao apor que a propriedade atenderá sua função social, e 55 PINHEIRO, 2002, p. 513. 39 entender que, dessa forma, a propriedade não é meramente um direito individual, é saber um caminho para se saber o Direito. Assim pensa o magistrado do Rio Grande do Sul, Amilton Bueno de Carvalho56: [...] c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são praticamente idênticos. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quadro a dez anos, e deste é de um a seis meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, se a subtração de móvel é crime do pobre o esbulho possessório é do rico. Logo as penas são diferentes, absurdamente diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas preocupados com a segurança do país e propõem a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo virá. Saber os meandros das leis, suas construções ideológicas, é um caminho para saber o que é o Direito (ou o que ele não é ou não deveria ser). Esse enfoque é regularmente apreciado nas Faculdades de Direito? Faz parte dos projetos pedagógicos dos cursos jurídicos a discussão da dicotomia Direito/Ideologia? Claro que não. Há como separar Direito e Ideologia? Afirmar tal viabilidade somente é possível com as lentes míopes positivistas. 3.2 Poder Alguns autores confundem (misturam uma coisa a outra) poder e Estado. Sendo o Estado reflexo da “casta” dirigente, suas leis e normas vão refletir a ideologia do poder vigorante57: 56 57 CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 27. LYRA FILHO, Roberto. Direito e Lei. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. (Org.). O direito achado na rua. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1990. 40 A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios. Embora as leis apresentem contradições, que não nos permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão dos interesses daquela classe [...]. O ensino jurídico também reflete essa preocupação de perpetuação do poder. Esse o pensamento de Roberto A. R. Aguiar58: Se tomarmos a expressão bem comum, sem qualquer esforço poderemos entendê-la como bem de todos, como bem de todos os membros de uma sociedade. Mas a observação dos fatos não possibilita chegar-se a essa conclusão, pois sendo a lei a emanação normativa de um poder e, sendo esse poder instrumento de domínio de grupos sociais sobre outros, dificilmente esse grupos iriam legislar contra si mesmo, sob pena de se constituírem, pela primeira vez na História, em detentores suicidas do poder. Por isso, os grupos detentores do poder não vão permitir uma normatividade que venha ferir seus interesses, sua ideologia, seu modus vivendi. Ora, uma normatividade que favoreça a ideologia e o modo de viver de outros grupos ou classe, logo, o bem legal não pode ser comum, pois emana de grupos para incluir sobre outros grupos, o bem comum, empiricamente observável, é o bem particular dos detentores das decisões. Continua Aguiar59 acerca do poder: O direito é a expressão mais alta da tradução ideológica do poder. Ele estabelece os princípios, delimita as condutas, defende atitudes e “ofende” a outras por meio da sanção. O direito é fruto de um “regime” político, de um “governo”, que não são formados por seres abstratos e separados do mundo, mas seres que pertencem a grupos e classes sociais e que pensam em conformidade com esses grupos, em virtude deles terem se instituído a partir de posições que ocupam na produtividade material. Esse “regime” nada mais é que o poder localizado, cuja forma mais requintada, como já vimos, se mostra por intermédio do Estado. Assim, o grupo ou grupos dirigem um dado “regime político”, e este regime nada mais é do que uma explicitação situada no poder; este poder, modernamente, se apresenta por intermédio do Estado e o Estado para se manter enquanto aparelho de controle de um povo ou povos, detido pelos citados grupos, edita normas que traduzem a ideologia do poder tornandoas ativas e seletivas, por meio de um dever-ser sancionador que regula, controla e promove condutas. Essa discussão dialética não faz parte do ensino jurídico nacional. É de bom alvitre discutir o uso indevido do direito para perpetuação de um poder opressor. É 58 59 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990. p. 18. AGUIAR, 1990, p. 80-90. 41 preciso parar com a tautologia representada na máxima ‘é preciso tratar desigualmente os desiguais’, isso apenas agrava as diferenças sociais60. “O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistadas nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda[...]”61. Há uma relação de poder. Há uma poder opressor, que oprime uma massa de pessoas que estão à margem da sociedade. Não só economicamente falando, mas, tão grave quanto, à margem de acesso à educação e à justiça. 3.3 Ideologia Como não poderia deixar de ser, o ensino jurídico não está dissociado de ideologias. Ela, a ideologia, é usada também para perpetuação de um pensamento único constituído para manter o establishment no poder. Os “sem luz” não podem ficar à parte dessa discussão. O ensino jurídico precisa, necessariamente, abordar o aspecto ideológico do Direito, podendo, dessa forma, responder aos questionamentos suscitados anteriormente: o que é e para que serve o Direito? Lyra Filho62 ensina assim sobre ideologia: Ideologia significou, primeiramente, o estudo da origem e funcionamento das idéias em relação aos signos que as representam; mas, logo, passou a designar essas idéias mesmas, o conjunto de idéias duma pessoa ou grupo, a estrutura de suas opiniões, organizada em certo padrão. Todavia, o estudo das idéias e seus conjuntos padronizadores começou a destacar as deformações do raciocínio, pelos seus conteúdos e métodos, distorcidos ao sabor de vários condicionamentos, fundamentalmente sociais. Por outras palavras, descobriu-se que a imagem mental não corresponde exatamente à realidade das coisas. 60 AGUIAR, 1990, p. 47. FARIAS, Maria Eliane Menezes de. As ideologias e o direito: enfim, o que é direito? In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (Org.). O direito achado na rua. Brasília: Universidade de Brasília, 1990. p. 17. 62 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1999. p. 13-14. 61 42 Antônio Carlos Wolkmer63 destaca: [...] a ideologia se torna um elemento totalmente desprovido de dimensão crítica, para tornar-se pura e simplesmente um elemento de manutenção e legitimação de uma ordem social dada, cuja integração constitui mais propriamente o problema, do qual a ideologia aparece como parte da solução [...]. Wolkmer64 lança mão da filósofa Marilena Chauí para definir ideologia: [...] é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças socais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento de identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado. Lyra Filho65 situa a ideologia jurídica entre “direito natural e o direito positivo, correspondendo às concepções jus naturalista e positivista do Direito”. E dá atenção especial a ambas, vez que, “a maior parte dos juristas, ainda hoje, adota uma ou outra, como se fora de ambas não houvesse maneira de ver o fenômeno jurídico”. E assim os ‘sem luz’ fazem o curso divagando entre esses dois aspectos ideológicos, ou melhor, passeiam pelo jusnaturalismo e se especializam no positivismo. É só o que existe. O jusnaturalismo como ideologia do direito natural “corrente de pensamento que propugna pela existência de um direito justo por natureza, independente da disciplina social imposta pelo legislador”66 e o positivismo, no caso ora estudado, além do Auguste Comte, como ideologia do direito posto, estabelecido por regras escritas, determinadas pelo Estado. 63 WOLKMER. Antônio Carlos. Ideologia, estado e direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 94. 64 WOLKMER, 1995, p. 95-96. 65 LYRA FILHO, 1999, p. 24. 66 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2000. 43 Para clarear a distinção entre ambas as ideologias, veja-se o ensinamento de Norberto Bobbio67, acerca dos critérios de distinção: a) o primeiro (direito natural) se baseia na antítese universalidade/particularidade e contrapõe o direito natural, que vale em toda parte, ao positivo, que vale apenas em alguns lugares [...]; b) o segundo (direito positivo) se baseia na antítese, imutabilidade/mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo, o positivo muda; [...] esta característica nem sempre foi reconhecida: Aristóteles, por exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe a imutabilidade no tempo, sustentando que também o direito natural pode mudar no tempo; c) o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, refere-se à fonte do direito e funda-se na antítese natura-potesta populus [...]; d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o modo pelo qual a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na antítese ratio-voluntas: o direito natural é aquele que conhecemos através de nossas razões. (Este critério liga-se a uma concepção racionalista de ética, segundo os deveres morais podem ser conhecidos racionalmente, e, de um modo geral, por uma concepção racionalista da filosofia). O direito positivo, ao contrário, é conhecido através de uma declaração de vontade alheia (promulgação); e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado) [...]; f) a última distinção refere-se ao critério de valoração das ações é enunciado por Paulo: o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo que é útil. O viés ideológico do positivismo predomina no ensino jurídico no Brasil, que confirma ou ratifica a modelo legalista impregnado no liberalismo ou neoliberalismo (mais modernamente). O ensino jurídico peca por descuido ou intenção mesmo, pela falta de tratamento a outros aspectos ideológicos, como, por exemplo, o Direito Achado na Rua e o Direito Alternativo. O primeiro partindo de dentro da UnB, uma proposta de 67 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 22-23. 44 Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior. José Geraldo68 assim se manifesta: ‘O Direito Achado na Rua’, expressão criada por Roberto Lyra Filho, título que designa um projeto de pesquisa e um programa de capacitação de operadores de Direito, sob minha direção, quer ser, exatamente, reflexão sobre a autuação jurídica dos novos sujeitos coletivos, expressão de identidade dos movimentos sociais e de suas experiências para criação de direitos, enquanto possibilidade: 1) de determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) de definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e de elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) de enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas. Alayde Avelar Freire Sant’Ana69 contribui com a elucidação do processo ideológico e pede emprestado a José Eduardo Farias & Celso Campilongo o que se poderia chamar uma definição de ‘Direito Achado na Rua’: [...] como o próprio nome indica, tem uma preocupação não tanto com o direito dos códigos, ensinado nas faculdades, mas com as diferentes formas jurídicas efetivamente praticadas nas relações sociais. Optando por uma análise ‘crítica’ do direito estatal, questionando as estratégias de neutralização e despolitização estabelecida pela dogmática jurídica e privilegiando a transformação social em detrimento da permanência das instituições jurídicas, ou seja, tratando a experiência jurídica sob um ângulo assumidamente político [...] este projeto da UnB tem por objetivo agir como transmissor de informações em favor de uma ordem normativa mais legítima desformalizada e descentralizada. O ‘Direito Alternativo’, no Brasil, tem como seu maior defensor o Magistrado Amilton Bueno de Carvalho, é certo que ainda não há um pensamento sistematizado dessa corrente, até mesmo no Prefácio do livro de Amilton Bueno, confessa a dificuldade de conceituá-la: “O Direito Alternativo, no Brasil, já tem doze anos. Até hoje, entretanto, não é fácil conceituá-lo. Uns consideram um movimento social e outros uma corrente jurídica”70. Em contrapartida o prefácio redigido por Lédio Rosa 68 69 70 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O acesso ao direito e à justiça, os direitos humanso e o pluralismo jurídico. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON LAW AND JUSTICE IN THE 21st CENTURY, 2003, Coimbra. Anais... Coimbra: Universidade de Coimbra, 2003. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/direitoXXI/comunic/JoseGeraldoJunior1.pdf>. Acesso em: 12 maio 2007. SANT’ANNA, Alayde Avelar Freite. A radicalização do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Frabris, 2004. p. 24. ANDRADE, Lédio Rosa de. Prefácio. In: CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. 45 de Andrade dá várias pistas para que se possa entender melhor o que é, ou o que propõe, o ‘Direito Alternativo’ e relata a guerra que trava em sua defesa71: Nessa guerra constante de elaboração da história, a primeira batalha ganha pelo Direito Alternativo foi destronar o discurso jurídico oficial – representante da ideologia liberal, capitalista e positivista, de sua condição de fala única, metamorfoseada em ciência neutra e apolítica. Em verdade, legítimo representante de interesse certos e determinados, o discurso jurídico oficial é utilizado, de forma latente, para consolidar concretas relações sociais de poder, as quais, por certo, destinam a poucos as benesses da produção social, e impingem a muitos condições de miséria e sofrimento, tudo em nome do Direito, da Justiça e da Ordem. Continua Andrade72, defendendo a pensamento alternativo do Direito: Desnudados publicamente, os até então donos absolutos do saber jurídico reagiram, mas não convenceram. E, hoje, só mentes recalcitrantes negam as funções ideológicas e políticas do Direito. A batalha vencida teve tamanha importância, que até mesmo a magistratura, hermética instituição, abriu-se para inúmeros valores. Atualmente, magistrados assumem publicamente suas crenças e ideologias, associando-se com objetivos comuns. São exemplos: Associação de Juízes Católicos, Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas, Associação de Juízes Maçons, Associação de Juízes para a Democracia – mais de esquerda, Instituto Paulista de Magistrado e Movimento de Ética e Participação. Mas a vitória não se restringe à abertura associativa. É muito mais ampla, pois atingiu todos os operadores do direito (advogados, promotores de justiça, professores, estudantes, delegados, procuradores etc.), fazendo-os profissionais engajados axiologicamente, o que é da essência da democracia, pois às claras, sem ocultar suas funções políticas, todos assumem suas ideologias. Além disto, em qualquer sala de aula ou congresso, o pensamento alternativo sempre está presente nas mentes e a qualquer momento é usado para combater as falsas verdades dos pretensos donos do saber. Oxalá fosse absolutamente verdadeira essa última afirmação de Andrade73: Uma segunda batalha travou-se e trava-se no cotidiano forense. Vitórias e derrotas se alternam. Mas as conquistas efetuadas foram de substancial importância para democratizar o uso do Direito no Brasil. Após as denúncias, vieram as ações concretas do Direito Alternativo. E nesta liça, muitos avanços foram conquistados no seio do Poder Judiciário. Várias jurisprudências foram consolidadas em favor das classes excluídas ou menos favorecidas economicamente e socialmente. Essas micro conquistas são tijolos na construção da democracia. Foi a partir dos juristas alternativos que a sociedade se livrou da prisão de devedores das instituições financeiras. Também foram os alternativos que construíram forte resistência à voraz prática do Direito Penal de condenar, sem respeito aos Direitos 71 ANDRADE, 2003, p. xi. ANDRADE, 2003, p. xii. 73 ANDRADE, 2003, p. xii-xiii. 72 46 Constitucionais, para, depois, abandonar à própria sorte os condenados em presídios ilegais. A obtenção de lucros astronômicos, através da agiotagem legalizada, também sofreu forte revés com a postura firme dos alternativos em defesa do cidadão consumidor. Hoje estas e outras posturas já transcendem a alternatividade e tornaram pensamento comum dos juristas brasileiros. O mesmo autor assim arremata74: Muitos outros passos foram dados na direção do respeito à liberdade sexual, racial, à igualdade econômica e social. Mas muito há de ser feito, pois na dialética social e jurídica, as conquistas estão sujeitas a retrocesso. E é compromisso do Direito Alternativo consigo mesmo e com a sociedade não esmorecer nesta luta. Viu-se que o uso ideológico do direito se dá de várias formas. Não cabe ao ensino jurídico dizer que este ou aquele é o certo ou adequado. Cabe, sim, informar sobre todas as vertentes ideológicas e preparar os ‘sem luz’ a encontrarem a sua ideológica, visto que seria muito bom se o aluno optasse por uma ideologia e por ela trabalhasse, especialmente se comprometida com a solidariedade e a fraternidade sociais. Há também o perigo da percepção indevida de uma ideologia. Na história contemporânea, os Estados Unidos da América ditam a noção de democracia para mundo. Mantêm presos, no presídio de Guatánamo, em Cuba, mulçumanos acusados de serem terrorista e atentarem contra a paz norte americana. Para justificar tal discrepância está em elaboração uma nova vertente jurídico-ideológica denominada “Direito do Inimigo” a quem se lança mão do jurista Guilherme de Sousa Nucci75, para explicá-lo, in verbis: Direito Penal do Inimigo: trata-se de um modelo de direito penal, cuja finalidade é detectar e separar, dentre os cidadãos, aqueles que devem ser considerados os inimigos (terroristas, autores de crimes sexuais violentos, criminosos organizados, dentre outros). Estes não merecem do Estado as mesmas garantias humanas fundamentais, pois, como regra, não respeitam os direitos individuais alheios. Portanto, estariam situados fora do sistema, sem merecerem, por exemplo, as garantias do contraditório e da ampla defesa, podendo ser flexibilizados, inclusive, os princípios da legalidade, da anterioridade e da taxatividade. São pessoas perigosas, em guerra constante contra o Estado, razão pela qual a eles caberia a aplicação de medidas de segurança e seus atos já seriam passíveis de punição quanto atingissem o estágio da preparação. Admite-se, ainda, que contra eles 74 75 ANDRADE, 2003, p. xii-xiii. NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual do direito penal: parte geral, parte especial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 47 sejam aplicadas sanções penais desproporcionais à gravidade do fato praticado (cf. Günther Jakobs, Derecho Penal Del Inimigo). Em suma, o mais importante é manter segregados, pelo tempo que for necessário, aqueles cujo propósito é desestabilizar o Estado e ferir, de maneira inconseqüente, pessoas inocentes. As ideologias estão e sempre estiveram aí para justificar, ora a necessidade de manter no poder a classe dominante, geradora de subemprego e impulsionadora do progresso, ora defendo a revolução contra a fome, a miséria e o descaso estatal. É moderno no ensino jurídico não ficar alijado dessa discussão, para que o aluno e futuro militante do Direito possa saber, conhecendo, porque defender esta e/ou combater aquela outra ideologia. 48 CONCLUSÃO Mais que trazer definições ou soluções tautológicas, este trabalho quis propor uma discussão acerca do ensino jurídico no Brasil. Trouxe à tona fatores culturais e ideológicos da criação e da manutenção do ensino jurídico. Percebe-se que o ensino jurídico é parte intrínseca de um movimento revolucionário de uma percepção do direito, do acesso à justiça e, conseqüentemente, da inserção de uma camada excluída da sociedade aos bens de consumo que ela mesma produz. Muito embora este trabalho não tenha a consistência cientifica desejada pelas normas cultas, até porque soaria incoerente, penso despertar a provocação necessária para que se abra a discussão (pretensão do monografista) acerca deste questionamento que se estabeleceu e muitos outros que pairam sobre o direito em si e o ensino dele. É preciso extirpar, de vez, a idéia de que o Direito é uma ciência onisciente. Que o Direito está acima das outras ciências. Que o Direito é para ‘iniciados’. É preciso que todos saibam direito o que é Direito. Sugere-se, salvo melhor juízo, que todos comecem a conhecer/saber o Direito desde a tenra infância. Que a criança, ao entrar na escola, tenha aula sobre cidadania (que é Direito). No ensino fundamental, no ensino médio, que as pessoas tenham acesso aos aspectos sociais que envolvem o Direito. O que é o justo? E a liberdade? (Quem não se lembra da máxima: “a sua liberdade termina onde começa a minha”). É preciso saber o que isto significa. Deixar de se reproduzir o equívoco institucional de se descontextualizar o Direito. É preciso e urgente saber que o Direito salva vidas. Que valores como liberdade, igualdade e fraternidade são caros e necessários para a sobrevivência humana. Que a conservação da natureza é Direito. Que a honestidade é Direito. Que a coisa pública é Direito. Que a educação é Direito. Que a cultura é Direito (“A 49 gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte...”)76 Que comer é Direito. Que fazer amor é Direito. Que dizer sim é Direito e que dizer não também é Direito. O aluno do curso de Direito, que mais tarde será um líder e formador de opinião, precisa saber que ele não é um instrumento “com a cabeça virgem para ser estuprada”77, mas sim, o instrumento para mudar (propor) o que lhe incomodar. Para questionar o que para os outros for inquestionável, para se indignar ante a miséria, a fome, o descaso, a desumanidade e a injustiça. O problema não se resume, de forma reducionista, no quantitativo de faculdades de direito existentes. Quanto mais, melhor. Todos que se propuserem a estudar direito precisariam saber: pra que serve o Direito, ou melhor, a quem serve o Direito e, ainda, o porquê tantos advogados formados semestralmente neste país, quando tão poucas pessoas têm acesso a eles e conseqüentemente à justiça. Sabendo responder a tais questionamentos estarão aptos a ser “operadores do Direito”. Tem-se consciência de que não se respondeu a todos os questionamentos aqui formulados, mas o exercício do pensar criticamente a que se propôs valeu a pena, não fazendo parte das preocupações do autor deste trabalho de conclusão de curso a obtenção da concordância da Banca Examinadora com as idéias apresentadas. E para arrematar, vale (também) voltar ao ensinamento de Alayde Avelar Freire Sant’Ana78: O Direito que se ensina errado pode entender-se, é claro, em, pelo menos, dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina. O primeiro se refere a um vício de metodologia; o segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar. 76 Fragmento da música “Comida”, do grupo Titãs. ANTUNES, Arnaldo; FROMER, Marcelo; BRITO, Sérgio. Comida. In: TITÃS Acústico. São Paulo: MTV, 1997. 1 CD-Rom. 77 Vide página 27 desta monografia, para contextualizar-se o uso da expressão “com a cabeça virgem para ser estuprada”. 78 SANT’ANNA, 2004, p. 93-94. 50 No entanto, as duas coisas permanecem vinculadas, uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos de pedagogia”. 51 REFERÊNCIAS ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. 11. ed. 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CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR Resolução nº 9, de 29 de setembro de 2004 O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, no uso de suas atribuições legais, com fundamento no art. 9º, § 2º, alínea "c", da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, com a redação dada pela Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, tendo em vista as diretrizes e os princípios fixados pelos Pareceres CES/CNE n os 776/97, 583/2001, e 100/2002, e as Diretrizes Curriculares Nacionais elaboradas pela Comissão de Especialistas de Ensino de Direito, propostas ao CNE pela SESu/MEC, considerando o que consta do Parecer CES/CNE 55/2004 de 18/2/2004, reconsiderado pelo Parecer CNE/CES 211, aprovado em 8/7/2004, homologado pelo Senhor Ministro de Estado da Educação em 23 de setembro de 2004, resolve: Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Direito, Bacharelado, a serem observadas pelas Instituições de Educação Superior em sua organização curricular. Art. 2º A organização do Curso de Graduação em Direito, observadas as Diretrizes Curriculares Nacionais se expressa através do seu projeto pedagógico, abrangendo o perfil do formando, as competências e habilidades, os conteúdos curriculares, o estágio curricular supervisionado, as atividades complementares, o sistema de avaliação, o trabalho de curso como componente curricular obrigatório do 79 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 9, de 29 de setembro de 2004. Disponível em:<http://www.anaceu.org.br/legislacao/resolucoes/reso9_2909-2004.htm>. Acesso em: 26 maio 2007. 55 curso, o regime acadêmico de oferta, a duração do curso, sem prejuízo de outros aspectos que tornem consistente o referido projeto pedagógico. § 1° O Projeto Pedagógico do curso, além da clara concepção do curso de Direito, com suas peculiaridades, seu currículo pleno e sua operacionalização, abrangerá, sem prejuízo de outros, os seguintes elementos estruturais: I - concepção e objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas inserções institucional, política, geográfica e social; II - condições objetivas de oferta e a vocação do curso; III cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do curso; IV - formas de realização da interdisciplinaridade; V - modos de integração entre teoria e prática; VI - formas de avaliação do ensino e da aprendizagem; VII - modos da integração entre graduação e pós-graduação, quando houver; VIII - incentivo à pesquisa e à extensão, como necessário prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a iniciação científica; IX - concepção e composição das atividades de estágio curricular supervisionado, suas diferentes formas e condições de realização, bem como a forma de implantação e a estrutura do Núcleo de Prática Jurídica; X - concepção e composição das atividades complementares; e, XI - inclusão obrigatória do Trabalho de Curso. § 2º Com base no princípio de educação continuada, as IES poderão incluir no Projeto Pedagógico do curso, oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, nas respectivas modalidades, de acordo com as efetivas demandas do desempenho profissional. 56 Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania. Art. 4º. O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências: I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas; II - interpretação e aplicação do Direito; III - pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito; IV - adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos; V - correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito; VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; VII - julgamento e tomada de decisões; e, VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito. Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos interligados de formação: 57 I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia. II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, do-se necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual; e III - Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais Eixos, especialmente nas atividades relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares. Art. 6º A organização curricular do curso de graduação em Direito estabelecerá expressamente as condições para a sua efetiva conclusão e integralização curricular de acordo com o regime acadêmico que as Instituições de Educação Superior adotarem: regime seriado anual; regime seriado semestral; sistema de créditos com matrícula por disciplina ou por módulos acadêmicos, com a adoção de prérequisitos, atendido o disposto nesta Resolução. Art. 7º O Estágio Supervisionado é componente curricular obrigatório, indispensável à consolidação dos desempenhos profissionais desejados, inerentes ao perfil do formando, devendo cada instituição, por seus colegiados próprios, aprovar o correspondente regulamento, com suas diferentes modalidades de operacionalização. 58 § 1º O Estágio de que trata este artigo será realizado na própria instituição, através do Núcleo de Prática Jurídica, que deverá estar estruturado e operacionalizado de acordo com regulamentação própria, aprovada pelo conselho competente, podendo, em parte, contemplar convênios com outras entidades ou instituições e escritórios de advocacia; em serviços de assistência judiciária implantados na instituição, nos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública ou ainda em departamentos jurídicos oficiais, importando, em qualquer caso, na supervisão das atividades e na elaboração de relatórios que deverão ser encaminhados à Coordenação de Estágio das IES , para a avaliação pertinente. § 2º As atividades de Estágio poderão ser reprogramadas e reorientadas de acordo com os resultados teórico-práticos gradualmente revelados pelo aluno, na forma definida na regulamentação do Núcleo de Prática Jurídica, até que se possa considerá-lo concluído, resguardando, como padrão de qualidade, os domínios indispensáveis ao exercício das diversas carreiras contempladas pela formação jurídica. Art. 8º As atividades complementares são componentes curriculares enriquecedores e complementadores do perfil do formando, possibilitam o reconhecimento, por avaliação de habilidades, conhecimento e competência do aluno, inclusive adquirida fora do ambiente acadêmico, incluindo a prática de estudos e atividades independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade, especialmente nas relações com o mercado do trabalho e com as ações de extensão junto à comunidade. Parágrafo único. A realização de atividades complementares não se confunde com a do Estágio Supervisionado ou com a do Trabalho de Curso. Art. 9º As Instituições de Educação Superior deverão adotar formas específicas e alternativas de avaliação, interna e externa, sistemáticas, envolvendo todos quantos se contenham no processo do curso, centradas em aspectos considerados fundamentais para a identificação do perfil do formando. 59 Parágrafo único. Os planos de ensino, a serem fornecidos aos alunos antes do início de cada período letivo, deverão conter, além dos conteúdos e das atividades, a metodologia do processo de ensinoaprendizagem, os critérios de avaliação a que serão submetidos e a bibliografia básica. Art. 10. O Trabalho de Curso é componente curricular obrigatório, desenvolvido individualmente, com conteúdo a ser fixado pelas Instituições de Educação Superior em função de seus Projetos Pedagógicos. Parágrafo único. As IES deverão emitir regulamentação própria aprovada por Conselho competente, contendo necessariamente, critérios, procedimentos e mecanismos de avaliação, além das diretrizes técnicas relacionadas com a sua elaboração. Art. 11. A duração e carga horária dos cursos de graduação serão estabelecidas em Resolução da Câmara de Educação Superior. Art. 12. As Diretrizes Curriculares Nacionais desta Resolução deverão ser implantadas pelas Instituições de Educação Superior, obrigatoriamente, no prazo máximo de dois anos, aos alunos ingressantes, a partir da publicação desta. Parágrafo único. As IES poderão optar pela aplicação das DCN aos demais alunos do período ou ano subseqüente à publicação desta. Art. 13. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, ficando revogada a Portaria Ministerial n° 1.886, de 30 de dezembro de 1994 e demais disposições em contrário. EDSON DE OLIVEIRA NUNES (DOU N. 190, publicado no dia 01.10.2004 – Seção 1)