Aos Kirchner o que é dos Kirchner, mas 'ojo!'
Por Humberto Saccomandi
É fácil subestimar o papel dos Kirchner na Argentina e pintar deles uma imagem
caricata. Certo, eles contribuíram para isso. Mentir sobre a inflação e tentar calar a
mídia não traz boa reputação a nenhum governo. Mas eles assumiram o país na sua
pior crise econômica e, contrariando previsões, fizeram-no crescer a uma média
asiática nos últimos nove anos. Agora, há motivos para esperar que Cristina, que será
reeleita neste domingo, avance em áreas onde o casal foi mal. Mas há também motivos
de preocupação com o sucesso maior dos Kirchner, a economia.
"Há uma percepção caricatural [dos Kirchner], que a eles nunca interessou muito
modificar. Em alguns meios e lugares prevalece uma visão simplificada, que é um
pouco burlesca", afirmou o economista Roberto Bouzas, diretor do departamento de
Ciências Sociais da Universidade San Andrés, de Buenos Aires.
Néstor, que morreu há um ano, tomou posse em 2003 na esteira de uma hecatombe
econômica. Entre 1998 e 2002, o PIB real argentino caiu cerca de 20%. Para
comparação, desde 2008 o PIB grego não caiu nem a metade disso. E hoje ninguém
acredita que em dois anos a Grécia estará crescendo em ritmo asiático.
Há uma percepção caricatural, simplista, do casal Kirchner
"Eles restabeleceram o crescimento elevado da economia por um período prolongado,
algo que a Argentina não tinha desde os anos 60", disse Bouzas.
Néstor levou a cabo uma dura renegociação da dívida (após o default do presidente
Eduardo Duhalde), o que até hoje deixa o país marginalizado do mercado financeiro
global. Sem acesso aos mercados, o governo manteve superávits primários; emulou a
política asiática de câmbio desvalorizado para estimular as exportações e gerar um
elevado saldo comercial; iniciou uma reindustrialização, após o parque industrial ter
sido sucateado no governo Menem (1989-99); retomou setores estratégicos.
Um feito notável foi elevar a carga tributária de 21% para 32,5% do PIB em só nove
anos, apelando principalmente a impostos de exportação, "que são fáceis de fiscalizar e
difíceis de sonegar", disse Bouzas. Isso diz muito sobre a resistência da elite rural ao
casal.
Essa receita fiscal permitiu que os Kirchner adotassem políticas sociais semelhantes às
do governo Lula. Com isso, o kirchnerismo redesenhou o mapa político do país,
ocupando a esquerda, isto é, o lado que enfatiza a igualdade, na terminologia de
Norberto Bobbio, em oposição à direita, que prioriza a liberdade. Como Lula, os
Kirchner fizeram da igualdade o discurso hegemônico na Argentina. Aliás, os protestos
atuais contra o setor financeiro indicam que esse discurso está avançando globalmente,
após 30 anos de supremacia liberal.
Esse processo desnorteou a oposição argentina, tanto de esquerda (que ficou sem
discurso) como de direita (que ficou com um discurso impopular). Isso explica parte da
enorme dianteira de Cristina neste primeiro turno.
A recuperação econômica, porém, ocorreu associada a uma postura autoritária do
casal. É difícil dizer se isso se deu por necessidade da política argentina ("uma política
de confronto", segundo Bouzas) ou por traços pessoais. Talvez pelos dois. "Kirchner
chegou à leitura de que o confronto era necessário nas condições em que assumiu. O
problema é que essa leitura continuou quando isso não era mais necessário", disse
Bouzas.
No filme argentino "O Segredo dos Seus Olhos", uma promotora envia seu amado, um
investigador de polícia, para uma província do interior, onde ele estará protegido das
perseguições que se iniciavam sob o regime militar. E ela explica: "Lá os meus primos
são senhores feudais". Pois os Kirchner eram senhores feudais na pequena província
natal de Néstor, Santa Cruz (onde Cristina está erguendo um mausoléu babilônico para
o marido). E continuaram assim.
O casal submeteu o Judiciário e o Congresso (enquanto teve maioria; depois o
ignorou); forçou a saída do presidente do Banco Central, supostamente independente,
quando precisou; interveio no Indec (o IBGE local) para maquiar o dado de inflação,
entre outros desmandos. Eles sempre desprezaram a imprensa e nunca toleraram a
crítica.
Mas esse comportamento vem se atenuando com Cristina, especialmente após a morte
de Néstor. E há motivos para crer que algumas das práticas mais contestadas poderão
ser revistas no seu segundo mandato.
A Argentina precisará em breve voltar ao mercado financeiro, o que implica resolver
pendências restantes com credores da dívida e encerrar a manipulação da inflação. O
país terá de se esforçar para atrair mais investimento estrangeiro (hoje recebe menos
IED que o Peru), melhorando, por exemplo, a segurança jurídica.
A presidente baixou no último ano o tom de confronto com o setor produtivo,
aproximou-se dos ruralistas e trouxe para o governo gente ligada à indústria, como a
ministra Débora Giorgi. Essa nova fase foi percebida pelas empresas brasileiras que
atuam na Argentina. Elas esperam agora moderação de Cristina, como relatou ontem
no Valor o correspondente Cesar Felício.
"Quando Cristina assumiu, ela anunciou um fortalecimento institucional, pois
percebeu que era uma necessidade. Espero que faça isso no segundo mandato", disse o
ex-presidente Fernando de la Rúa, que não é um aliado da presidente. "Estou otimista,
acho que ela terá forte respaldo para isso. Ela vai trabalhar para deixar uma memória
melhor. Seria um erro não reforças as instituições."
Mas o maior trunfo da era Kirchner, o sucesso da economia, deve enfrentar a sua
maior prova nos próximos anos, com o cenário interno e externo mais incerto.
"No ano que vem a Argentina não terá superávit em conta corrente. E até agora foi
possível viver sem financiamento externo pois o país tinha superávit", disse Bouzas. O
superávit primário também está minguando.
"Não se fizeram economias para uma época de crise mundial. Esse modelo prevê que
tudo continue bem, não há um colchão para um período difícil", disse De la Rúa. "O
modelo é baseado em subsídios, ao transporte, ao gás, à energia, ao desemprego, aos
mais pobres. Para atender a toda essa engrenagem de subsídios, é preciso recursos, via
superávit fiscal. Se isso se perde, será um problema manter os subsídios."
Bouzas destaca outros riscos: a inflação, na casa dos 20%, "é um tema não resolvido";
há pressão por valorização do peso e as reservas (hoje pouco abaixo de US$ 50 bilhões)
"não podem continuar caindo nesse ritmo".
Há dúvidas ainda sobre os motores externos da economia: o preço alto das
commodities e a demanda brasileira, que absorve 18% das exportações argentinas e é
importante especialmente para os setores de manufaturados.
Como dizem os argentinos para sugerir atenção: "Ojo!"
Humberto Saccomandi é editor de Internacional. Escreve mensalmente às
quintas-feiras
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