Onde estão nossos mestres?1 Monica Aiub Em 1964, quando Jean-Paul Sartre recusou o prêmio Nobel de literatura, Gilles Deleuze escreveu um artigo intitulado “Ele foi meu mestre”2 que se inicia afirmando que “Gerações sem ‘mestres’ são uma tristeza” e estabelecendo distinções entre o “mestre”, o “pensador privado”, e o “professor público”. No momento em que atingimos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar as maneiras de pensar que correspondem à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como a nossos entusiasmos difusos (DELEUZE, 2006: 107). Por que Sartre foi um “mestre”? Qual a “novidade radical” com a qual “tocou” seus contemporâneos? Representando um existencialismo ateu, Sartre compreendeu o ser humano como totalmente responsável por aquilo que é. Não há uma essência previamente determinada. O ser humano existe e, de acordo com suas escolhas e ações, torna-se aquilo que faz de si mesmo. Quantas vezes pensamos não ter escolha? Vivemos como se existisse um destino traçado, determinado, sem que tenhamos mérito ou responsabilidade por aquilo que somos? Quantas vezes olhamos para nossa vida e nos sentimos insatisfeitos com o que somos, com o que fizemos de nós mesmos? Nessas horas é fácil atribuir a responsabilidade pelo que somos e fizemos às contingências, a um destino necessário, a uma forma de vida imposta por um contexto. Mas essa postura pode levar a uma espécie de conformismo, a uma aceitação resignada de nossas insatisfações, a uma inação, perpetuando um modo de ser que não corresponde a nossas necessidades. Se pensarmos que há uma essência previamente determinada, nada poderemos fazer, exceto atualizá-la, ou seja, viver o que foi traçado para nós por algo ou alguém. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer (...) O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que 1 Artigo publicado na revista Filosofia, Ciência & Vida Publicado em DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos . São Paulo: Iluminuras, 2006. 2 o que ele faz. Tal é o princípio do existencialismo (SARTRE, 1973: 12). Se não há uma essência previamente determinada, se primeiro existimos para somente depois nos tornarmos o que somos, tudo depende de nossas escolhas e ações. Isso é bem diferente do que defendem algumas pessoas ao afirmarem que podemos ser e fazer tudo o que quisermos, que basta querer profundamente, e como num passe de mágica, tudo o que desejamos acontecerá. O princípio do existencialismo atribui ao ser humano a responsabilidade e o mérito por aquilo que faz de si mesmo, mas não basta querer, desejar. São nossas escolhas e ações cotidianas que nos tornam aquilo que somos. A ação do momento presente lança para o futuro o que será vivido, assim como o que somos hoje é resultado daquilo que fizemos anteriormente, não em uma relação de prêmios e castigos, mas como o resultado de um processo contínuo de construção de si mesmo. Não se trata de uma simples relação de causa-conseqüência, mas de um complexo projeto, sempre em construção, que se faz vivendo. Essa concepção tornaria o ser humano egoísta, individualista, permitindolhe fazer o que bem entender, sem considerar o impacto de suas ações sobre o outro e sobre o mundo? O eximiria de uma responsabilidade sobre tal impacto, levando-lhe a se preocupar exclusivamente consigo mesmo? A proposta sartriana é muito diferente disso. Considera o homem responsável pela construção de si mesmo e de toda a humanidade. Trata-se de mais do que avaliar o impacto de sua ação sobre o mundo ou o outro, muito mais do que respeitar códigos ou “assumir as conseqüências” de seus atos e escolhas. Não há desculpas, todo agir implica na construção de si mesmo e da humanidade. Assim, a responsabilidade por cada ação é inevitável. Escolhemos como se toda a humanidade escolhesse conosco, como se pudéssemos servir de exemplo a todos os humanos. Tudo se passa como se, para todo homem, toda a humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz e se regulasse pelo que ele faz. E cada homem deve dizer a si próprio: terei eu seguramente o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos meus atos? E se o homem não diz isso, é porque ele disfarça a angústia (SARTRE, 1973: 14). Você já definiu suas ações da forma como propõe Sartre, considerando a profunda responsabilidade daquele que tem toda a humanidade com os olhos sobre sua ação, pautando-se por ela como uma lei? Você consegue imaginar como seria a vida, a sociedade, caso todas as pessoas escolhessem e agissem como você? E como seria se considerassem a responsabilidade de suas escolhas e ações como propõe Sartre? O que seria viver livre das exigências das instituições, conduzindo seu viver por um senso de responsabilidade que é garantia e, ao mesmo tempo, condenação à liberdade radical? Dostoiévski escreveu: ‘ Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo, com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio, e no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão (SARTRE, 1973: 15). Atribuímos, muitas vezes, o resultado de nossas ações a desígnios divinos, a provocações externas, a nossas paixões. Quantas vezes você agiu movido pela raiva? Pelo ciúme? Pelo desespero? E se, diante das emoções, das afetações, pesquisássemos o quanto somos responsáveis por elas? Quando você sente raiva de alguém, costuma se perguntar o que, em você, faz com que sinta essa raiva? Ou costuma atribuir a responsabilidade pela raiva que você sente a uma provocação externa, a um outro que lhe afetou? Você já experimentou fazer um exame de suas paixões, avaliando o grau de sua responsabilidade na existência delas? Diante de um exame de tal gênero é possível constatar que, muitas vezes, somos afetados exatamente em nossas fragilidades. Se nos fortificássemos, seríamos atingidos da mesma maneira? Não é o caso de negarmos a existência de um mundo externo capaz de nos afetar, mas de pesquisar as maneiras pelas quais somos afetados, em que isso implica e quais as possibilidades de evitar, amenizar, suportar, aceitar ou amar tais afetações. Diz Sartre: “Na realidade, as coisas serão tais como o homem tiver decidido que elas sejam” (1973:19). E isso não implica na inexistência de um contexto, de circunstâncias adversas, de dificuldades existenciais. Não decidimos acerca do que os contextos sócio-econômicos fazem conosco, muito menos sobre situações geradas por fenômenos naturais; não escolhemos a situação social em que nascemos, nem a educação que recebemos. Nossa escolha diz respeito a como isso nos afeta e ao que faremos com isso. O que diz o existencialista é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; há sempre uma possibilidade para o covarde de já não ser covarde, como para o herói de deixar de ser. O que conta é o compromisso total, e não é um caso particular, uma ação particular que vos liga totalmente (Sartre, 1973:21). Como conciliar cada instante e a necessidade de um compromisso total? Como viver a existência na singularidade e na universalidade simultaneamente? Como construir a si mesmo e a humanidade ao mesmo tempo? E como viver o tempo presente-passado-futuro sendo o que não se era, e se tornando continuamente? Sartre propõe uma universalidade humana que não é dada, não é determinada, mas construída a cada escolha, a cada ato. Não se é herói por um único ato. É-se herói a cada ato, em cada instante. Por conseqüência, quando, num plano de autenticidade total, reconheci que o homem é um ser no qual a essência é precedida pela existência, que é um ser livre, que não pode, em quaisquer circunstâncias, senão querer a sua liberdade, reconheci ao mesmo tempo que não posso querer senão a liberdade dos outros. Assim, em nome desta vontade de liberdade, implicada pela própria liberdade, posso formar juízos sobre aqueles que procuram ocultar-se a total gratuidade da sua existência e a sua total liberdade. Aos que a si próprios esconderem por espírito de seriedade ou com desculpas deterministas, a sua liberdade total, apelidá-los-ei de covardes; aos outros, que tentarem demonstrar que a sua existência era necessária quando ela é a própria contingência do aparecimento do homem na terra, chamá-los-ei de safados (SARTRE, 1973:25-26). Pensadores privados: onde estão nossos mestres? No artigo em homenagem a Sartre, Deleuze destaca duas características do “mestre”: “uma espécie de solidão que permanece como propriamente sua em qualquer circunstância; mas também uma certa agitação, uma certa desordem do mundo, na qual eles surgem e falam. Além do mais, só falam em seu próprio nome, sem ‘representar’ nada; e solicitam presenças brutas no mundo, potências nuas que de modo algum são ‘representáveis’” (2006:108). É preciso coragem e ousadia para falar em próprio nome, e mais ousadia ainda para falar sobre as questões que nos afetam na existência cotidiana, em abordagem radicalmente nova, abandonando a segurança dos sistemas estabelecidos, das instituições socialmente reconhecidas, aceitas e consagradas. Posicionar-se sem a validação institucional, na absoluta solidão de um “pensador livre”, afirmar algo sobre a vida, dirigido a um público também livre, capaz de viver, sentir e pensar sem as amarras que prendem às “verdades” e exigências institucionais, foi o que fez de Sartre um “mestre”. Sartre, em Que é a literatura?, define o escritor como aquele que tem “liberdade de dizer tudo”, mas a um público que tenha “liberdade de mudar tudo”. Em nome de sua liberdade, Sartre recusou o prêmio Nobel, como quem recusa a institucionalização, como quem recusa abrir mão de sua liberdade em nome de um reconhecimento, de uma “representação”. O que é a solidão do “mestre”, do “pensador privado”? É a solidão daquele que fala por si mesmo, que, diferentemente do “professor”, não representa nem é validado por uma instituição. Mas pode ser também a solidão daquele que se dirige a um público que pensa não ter liberdade de modificar algo, que pensa ser determinado pelas instituições consolidadas, como se estas fossem necessárias, eternas e detivessem verdades absolutas. O pensador privado precisa de um mundo que comporte um mínimo de desordem, mesmo que seja apenas uma esperança revolucionária, um grão de revolução permanente. (...) Porém, maior ainda que a solidão do pensador privado, há a solidão dos que buscam um mestre, dos que gostariam de um mestre e que só poderiam encontrá-lo num mundo agitado. A ordem moral, a ordem ‘representativa’ fechou-se sobre nós (DELEUZE, 2006:108-109). Se sem o público livre o mestre sobrevive, sobreviveria um público livre sem o mestre? “A solidão dos que buscam um mestre” e a tristeza das “gerações sem mestres” derivam-se da ausência da ousadia em falar por si mesmo, em trazer à tona uma novidade radical, em construir uma humanidade com referenciais mais adequados às necessidades contemporâneas, em ter liberdade suficiente para apontar para caminhos não trilhados, para possibilidades ainda não institucionalizadas. Manter-se em movimento, acompanhar o fluxo da existência construindo a si mesmo e ao mundo, não se prender ao estabelecido com medo do movimento, não se abrigar do caos, mas enfrentá-lo em busca de elementos para a construção de si mesmo. Não se prender sequer às próprias idéias, colocá-las em movimento. Não se permitir reprodução, suscitar reflexão... são algumas características da agitação que um mestre provoca. Não há gênio sem paródia de si mesmo. Mas qual é a melhor paródia? Tornar-se um velho adaptado, uma autoridade espiritual coquete? Ou então querer ser o abobado da Libertação? Ver-se acadêmico ou sonhar em ser combatente venezuelano? Quem não vê a diferença de qualidade, a diferença de gênio, a diferença vital entre essas duas escolhas ou essas duas paródias? Ao que Sartre é fiel? Sempre ao amigo Pierre-que-nunca-está-presente. É o destino desse autor trazer ar puro quando ele fala, mesmo que seja difícil respirar o ar puro, o ar das ausências (Deleuze, 2006:110). Onde estão nossos mestres? Quem são os “pensadores privados” de nosso tempo? Quem fala por si mesmo e provoca agitação? Quem toca o público de modo radicalmente diferente? Como afirma Deleuze, “até a Sorbonne precisa de uma anti-Sorbonne, e os estudantes só escutam bem seus professores quando têm também outros mestres”. Nossas instituições de ensino, formadoras de formadores, permitem a existência de um “grão de revolução permanente”? Onde os estudantes encontrarão os mestres que lhes permitirão escutar seus professores? É possível formar um público livre, capaz de transformar sua realidade, sem os novos ares propiciados pelos mestres? Como encontrar mestres em instituições que exigem subordinação intelectual em nome da ética? Se os mestres são, como diz Deleuze, “pensadores privados”, talvez nossos mestres estejam buscando outros lugares para exercitar seu livre pensar, para respirar e suscitar novos ares, pois num contexto de instituições que exigem subordinação, que não permitem o falar por si mesmo ou um tanto de agitação, não há espaço para mestres, nem para provocar o surgimento de um público livre. E depois não compreendem por que os estudantes não escutam seus professores?! Referências Bibliográficas: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.