JEAN-PAUL SARTRE E O TERCEIRO MUNDO Rodrigo Davi Almeida1 RESUMO O artigo divulga as posições políticas de Jean-Paul Sartre relacionadas ao Terceiro Mundo entre 1947 e 1979. Além disso, e a partir delas, enseja reflexões e/ou debates sobre o papel do intelectual na sociedade à luz do conhecimento histórico. As posições políticas de Sartre sobre o Terceiro Mundo constituem, portanto, o objeto deste trabalho cujo problema é a liberdade. Sob o “impacto da História”, isto é, no curso dos acontecimentos do Terceiro Mundo – da Guerra da Argélia (1954-1962), da Revolução Cubana (1959-1961) e da Guerra do Vietnã (1946-1976) – Sartre elabora uma nova concepção de liberdade que contradiz sua concepção existencialista anterior. Se a liberdade na concepção existencialista tem uma base teóricofilosófica, situada no plano da ontologia, ou seja, abstrata e individual, sua nova concepção de liberdade tem uma base político-econômica, situada no plano da história, logo, concreta e coletiva. Em outras palavras, Sartre redefine a sua concepção de liberdade à luz de determinados problemas colocados pela emergência do Terceiro Mundo no cenário político mundial. Sob a ótica do marxismo e do método dialético, Sartre procura defini-la em seus aspectos econômico (como independência), social (como justiça e igualdade), político (como soberania) e cultural (como humanização, em oposição ao racismo e à tortura). Para Sartre, o “problema humano” – a liberdade – somente pode ser resolvido em termos de produção e de relações sociais de produção socialistas. Enfim, o referencial teórico-metodológico do artigo provém do marxismo, particularmente, suas contribuições acerca das relações entre indivíduo, sociedade e história. PALAVRAS-CHAVE: Jean-Paul Sartre. Liberdade. Revolução. Terceiro Mundo. Socialismo. 1. Introdução O artigo divulga as posições políticas de Jean-Paul Sartre (1905-1980) relacionadas ao Terceiro Mundo entre 1947 e 1979 e, a partir delas, enseja reflexões e/ou debates sobre o papel do intelectual na sociedade à luz do conhecimento histórico. As posições políticas de Sartre sobre o Terceiro Mundo constituem o objeto deste trabalho que tem como problema a liberdade, um dos temas-chave da obra de Sartre. A tese central defendida é que a nova concepção de liberdade de Sartre, elaborada no curso dos acontecimentos do Terceiro Mundo, contradiz sua concepção existencialista anterior, cuja expressão máxima se dá com a publicação de O ser e o nada, em 1943. Se a liberdade na concepção existencialista tem uma base teórico-filosófica, 1 Professor de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso/ Campus de Cuiabá. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista/Campus de Assis. Autor do livro “Sartre no Brasil: expectativas e repercussões” (Editora UNESP, 2009) e Líder do Grupo de Pesquisa “História Política Contemporânea” (CNPq/UFMT). E-mail: [email protected] 1 situada no plano da ontologia, portanto, abstrata e individual, a sua nova concepção de liberdade, elaborada no curso dos acontecimentos do Terceiro Mundo, tem uma base políticoeconômica, situada no plano da história, logo, concreta e coletiva. Em outras palavras, Sartre redefine sua concepção de liberdade à luz dos problemas colocados pela emergência do Terceiro Mundo no cenário político mundial: a revolução, o papel da juventude e da ideologia na práxis revolucionária, o socialismo, a política considerada sob os ângulos da eficácia e da moralidade, o engajamento e a função política do intelectual2 face à sua “hora histórica”. O referencial teórico-metodológico adotado provém do marxismo, particularmente, as contribuições acerca das relações entre indivíduo, sociedade e história. Os principais textos utilizados são os de Michael Löwy, Lucien Goldmann, Jean Chesneaux, Josep i Fontana, István Mészáros, Eric Hobsbawm, Gérard Chaliand e Perry Anderson. Esse referencial nos permite pensar a trajetória de Sartre como uma “unidade contraditória”3 e suas posições políticas sobre o Terceiro Mundo tendo em vista o seu fundamento histórico-social. Assim, evitamos reducionismos e simplificações excessivas. Por um lado, as posições políticas de Sartre a respeito do Terceiro Mundo devem ser vistas como um momento particular e, por outro, inseridas no quadro mais amplo de sua trajetória. Ainda que esta seja uma exigência que se impõe à adequada consideração do “objeto”, não demanda, contudo, um estudo ou uma interpretação original, exclusiva. Para tanto, é suficiente lançar mão da literatura a respeito (as biografias sobre Sartre, as suas entrevistas, os diversos estudos marxistas e não marxistas sobre sua obra) para destacar tanto o modo como o seu engajamento político se relaciona à sua trajetória, quanto para demarcar o espaço efetivo que suas preocupações e posições políticas sobre o Terceiro Mundo efetivamente ocupam nela. Essencialmente, a literatura – marxista – parte do princípio da unidade contraditória na trajetória de Sartre, dada pela sua concepção (e busca) da liberdade. Porém, sua concepção (e busca) da liberdade sofre mutações significativas ao longo da sua trajetória, a ponto de contradizer sua concepção (e busca) inicial da liberdade. A análise filosófica que Sartre sustenta sobre a resistência à tortura, à época da Guerra da Argélia, é tipicamente existencialista. Para Sartre, a delação ou não do supliciado, mediante os castigos corporais impostos pelo carrasco, depende da livre escolha (relacionada ao projeto original) feita pelo indivíduo. No entanto, as definições e as posições políticas de Sartre sobre o colonialismo, 2 3 SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994. MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Ensaio, 1991. 2 sobre as origens (econômicas) do racismo e, inclusive, da tortura, colocam entre parênteses sua filosofia da liberdade. Em um primeiro momento, a liberdade é definida por Sartre no plano teórico-filosófico, qual seja, do ponto de vista ontológico, portanto, de modo “ahistórico”, consequentemente, abstrato e no nível estritamente individual. Sob o “impacto da História” e tendo em vista a assunção do marxismo como “filosofia insuperável”, Sartre passa a considerar a liberdade nos planos concreto e coletivo, isto é, no âmbito da luta de classes. O proletariado europeu e os colonizados do Terceiro Mundo devem, por sofrerem a exploração capitalista, reconhecer sua solidariedade de interesses e lutar juntos para a destruição da sociedade burguesa. Somente por meio da revolução seria exequível a edificação da sociedade socialista, única condição para a efetivação do “reino da liberdade”. Para Sartre, a nova condição para a realização da liberdade entre os homens se refere ao “condicionamento pelas proteínas”, como diz numa entrevista a Jacques-Alain Miller. A entrevista realizada em 1960 explicita a posição que Sartre assume e pela qual lutará até o fim de sua vida: em nome de dois princípios que vêm juntos: primeiro, ninguém pode ser livre se todo mundo não o é; segundo, eu lutarei pela melhoria do nível de vida e das condições de trabalho. A liberdade, não é metafísica, mas prática, é condicionada pelas proteínas. A vida será humana a partir do dia em que todo mundo puder comer e saciar sua fome e todo homem poderá exercer um ofício nas condições que lhe convém. Eu lutarei não somente por um nível de vida melhor, mas também pelas condições de vida democráticas para cada um, pela libertação de todos os explorados, de todos os oprimidos. 4 De acordo com Sartre “o curso dos acontecimentos muda os homens”5. Quais acontecimentos? A experiência histórica da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Ocupação nazista (1940-1944), na qual Sartre foi prisioneiro, a Resistência, da qual participara ativamente e a Libertação da França, num primeiro momento. A Guerra da Argélia (1954-1962), a Revolução Cubana (1959-1961) e a Guerra do Vietnã (1946-1976), num segundo momento. Nessa esteira, sob o “impacto da história”, ocorre o encontro de Sartre com o marxismo e os comunistas (o “diálogo necessário e impossível”6) bem como a radicalização de seu pensamento e de suas posições políticas. 4 SARTRE apud CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 353. SARTRE, Jean-Paul. El Tercer Mundo comienza el los subúrbios. In: ____. Escritos Políticos. 3. El intelectual y la revolución. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 137. 6 SARTRE, Jean-Paul. Bilan et perspectives de la lutte antifasciste: entretien avec Jean-Paul Sartre”. La Voie Communiste. Paris, n. 29, juin 1962. 5 3 2. Das questões preliminares do estudo e das hipóteses e métodos de trabalho Algumas questões preliminares animaram o estudo e determinaram o estabelecimento de seus objetivos: de que modo o conceito-chave da filosofia existencial de Sartre – a liberdade – figura ao lado do engajamento do intelectual, na sua situação histórica concreta, sobretudo, já na sua “fase marxista”? Como relacionar seu engajamento político aos problemas colocados pelo Terceiro Mundo e situá-los na sua complexa trajetória? Há uma relação efetiva entre a sua adesão ao marxismo “como filosofia insuperável” e suas posições políticas sobre o Terceiro Mundo? Qual a sua contribuição específica à crítica do colonialismo? Que tipo de interlocução trava com os intelectuais do Terceiro Mundo? É possível uma ação revolucionária fora do Partido Comunista como quer Sartre? Ele se tornou o “novo intelectual” fundido às massas? Qual o “lugar” e a importância do Terceiro Mundo na sua trajetória? E, finalmente, qual a contribuição das suas posições políticas para a luta de libertação revolucionária do Terceiro Mundo? Para a consecução dos objetivos, foi elaborada uma hipótese geral de trabalho. A hipótese consiste em afirmar a conexão tangível entre o contexto histórico – o mundo do pósguerra, as guerras de descolonização, a emergência dos países do Terceiro Mundo e o cenário político-intelectual francês – e a trajetória de Sartre. Portanto, sem a elucidação da conexão entre o contexto histórico e a sua trajetória não seria possível responder “em que momento, em que circunstâncias se faz a súbita adequação entre a atividade de um indivíduo e a corrente profunda da história? Em que momento e através de que mecanismos ela desaparece?”7 e, do mesmo modo, “por que em determinado momento de sua trajetória Sartre passa a ter um vivo interesse pelo mundo da política, especialmente no Terceiro Mundo”? 8 O possível caminho para a resposta se relaciona à compreensão e explicação do desenvolvimento das posições políticas de Sartre tendo em vista o fracasso da revolução socialista na Europa e, posteriormente, pelo horizonte revolucionário delineado pela emergência do Terceiro Mundo no cenário político mundial, como ainda veremos. A compreensão e a explicação se definem pela evidenciação de uma estrutura significativa imanente ao objeto estudado (...). A explicação é simplesmente a inserção dessa estrutura, enquanto elemento constitutivo e funcional, em uma estrutura imediatamente globalizante, que o pesquisador não explora, no entanto, de maneira detalhada, mas somente na medida em que isso é necessário para tornar inteligível a gênese da obra que ele está estudando.9 7 8 CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995, p. 156. MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Ensaio, 1991, p. 98. 9 GOLDMANN apud LÖWY, Michael e NAÏR, Sami. Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São 4 A partir da hipótese geral de trabalho, foram desenvolvidas as seguintes hipóteses específicas: a) certos acontecimentos da história do Terceiro Mundo – a Guerra da Argélia, a Revolução Cubana e a Guerra do Vietnã – radicalizam as posições políticas de Sartre. Os novos problemas engendrados pelas emergências histórica e político-ideológica do Terceiro Mundo nas (pre)ocupações de Sartre permitem-lhe desenvolver análises políticas (de uma atualidade impressionante) acerca dos problemas do colonialismo, da tortura, do racismo, da corrupção, da ideologia revolucionária, do socialismo e da definição de intelectual pela sua função política; b) as análises políticas de Sartre sobre o Terceiro Mundo são tributárias do marxismo e do método dialético. Portanto, não são e nem poderiam ser tributárias de sua filosofia da liberdade e do método fenomenológico. Eis a razão pela qual a emergência do Terceiro Mundo nas (pre)ocupações políticas de Sartre é precedida pela sua “descoberta” do marxismo, cujo método será utilizado na investigação das questões coloniais. Sob “o impacto da História”, Sartre se propõe a tarefas políticas que exigem outras questões à realidade e, consequentemente, um método adequado à interpretação e resolução dessas tarefas, portanto, no horizonte do marxismo enquanto “filosofia insuperável”.10 No entanto, em algumas questões pontuais, como na análise da resistência à tortura, suas concepções existencialistas permanecem; c) as posições políticas de Sartre sobre o Terceiro Mundo expressam a necessidade de intervenção que historicamente certos intelectuais sentem em relação aos embates concretos com os homens das sociedades em que vivem. Na França e em vários países, ao lado de operários, imigrantes africanos, comunistas, estudantes e diversos intelectuais, Sartre participa de debates, conferências, assinatura de manifestos, petições, tribunais populares, passeatas, meetings contra as guerras coloniais, o genocídio e a tortura dos colonizados. A intervenção de Sartre se dá diretamente, seja nas portas das fábricas, nos debates organizados na Mutualité, na Sorbonne, na rua, nos comitês de trabalhadores, ou na direção de jornais que “dão a palavra ao povo” (La Parole au Peuple e La Cause du Peuple). Isto é, ela não é mediada por nenhuma instituição política, o que não exclui o seu “diálogo necessário e impossível” com o Partido Comunista Francês. A exceção são as atividades por ele desenvolvidas no Tribunal Russell. O tipo de intervenção levada a cabo por Sartre tem claramente um caráter “didático”, com a exposição de ideias mais objetivas que visam instruir e convencer as massas (o proletariado e a pequena burguesia), ao contrário, por exemplo, de Paulo: Boitempo, 2008, p. 27. SARTRE, Jean-Paul. Sartre no Brasil: A Conferência de Araraquara. (Edição Bilíngue). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 10 5 seus textos filosóficos e/ou políticos sobre o marxismo. Isso não quer dizer que suas análises sejam superficiais ou levianas e nem que desconsiderem a complexidade e as contradições da realidade; d) Sartre (com Frantz Fanon, Patrice Lumumba e muitos outros) foi o divulgador do terceiro mundismo. Pelo menos dois autores fazem a mesma afirmação. Michel Contat, que resume o prefácio de Sartre ao livro de Fanon “Os condenados da terra”, escreve: Seu prefácio (...) é um dos textos mais violentos que ele escreveu. Nele se encontra a formulação mais radical e literariamente a mais eficaz de uma posição que ele tinha tomado desde 1959, a da solidariedade política e prática com os combatentes argelinos. Esta posição é aqui generalizada ao conjunto das lutas dos países subdesenvolvidos e pode-se dizer que, por sua grande repercussão, o prefácio de Sartre e o texto de Fanon contribuíram para a criação, na França, do terceiro mundismo da juventude intelectual revolucionária. 11 E o texto do filósofo Paulo Arantes onde assegura: “Sartre visitaria o Brasil, na condição de principal ideólogo das promessas de redenção pelo Terceiro Mundo.”12Por fim, pode-se dizer que Sartre foi um intelectual revolucionário, engajado na transformação da sociedade capitalista, defensor radical da revolução socialista. De acordo com Sartre, esta seria a única capaz de realizar a liberdade entre os homens. Para o desenvolvimento das hipóteses levantadas, foi desenvolvido um procedimento adequado que utiliza as seguintes categorias metodológicas: a historicidade, a totalidade e a contradição, no que se refere à análise das posições políticas de Sartre relacionadas ao Terceiro Mundo.13 De acordo com Michael Löwy, a categoria metodológica da historicidade implica a “afirmação da historicidade de todas as instituições, estruturas, leis e formas de vida social (...) uma concepção para a qual todos os produtos da vida social são historicamente limitados.” Por sua vez, a categoria metodológica da totalidade não significa o estudo da realidade toda, o que seria impossível “significa a percepção da realidade social como um todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder a sua relação com o conjunto” e, por fim, a categoria metodológica da contradição, que “sempre é uma análise das contradições internas da realidade”.14 Concretamente, deve-se considerar a história do capitalismo, no geral, e sua etapa 11 CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 361. 12 ARANTES, Paulo E. Um departamento francês do ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica uspinana (uma experiência nos anos 60). São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 29. 13 LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social. São Paulo: Cortez, 2006, p. 15-17. 14 Ibid., p. 15-17. 6 imperialista colonialista, em particular. Isto é, o imperialismo “clássico” enquanto momento transitório do capitalismo cujas origens remontam à “explosão” da Segunda Revolução Industrial (meados do século XIX) e cujos resultados são a formação de um mercado verdadeiramente mundial. Inexoravelmente, o imperialismo colonialista integra o globo terrestre à lógica da exploração capitalista industrial, ao mesmo tempo em que engendra contradições sócio-econômicas, o que multiplica a distância entre países industrializados e não industrializados assim como e a distorção da economia15 das sociedades colonizadas. 3. O processo de descolonização e a emergência dos países do Terceiro Mundo No contexto do fim da Segunda Guerra Mundial, portanto, em meio ao processo das guerras de descolonização emergem os países do Terceiro Mundo. Sartre escreve diversos artigos em que empreende uma crítica incisiva do imperialismo colonialista francês e denuncia as atrocidades da guerra e a exploração da população colonizada pelos colonizadores pieds-noirs. No seu entendimento, assume a responsabilidade enquanto intelectual face à sua situação histórica concreta. Em parte, a divulgação dos textos fica por conta da revista fundada (em 1945) e dirigida por Sartre – Les Temps Modernes – que existe até hoje e por diversos outros jornais e revistas. A seu modo, se engaja na “causa terceiro-mundista”, passa a distribuir panfletos pelas ruas de Paris, assina manifestos (um dos mais polêmicos é o famoso Manifesto dos 121), prefacia livros de intelectuais como o do martiniquense e psiquiatra Frantz Fanon “Os condenados da terra”, do tunisiano Albert Memmi “Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador” e escreve sobre o pensamento político do revolucionário congolês Patrice Lumumba.16 Sartre ainda exorta a população francesa a dizer “não” ao Referendo de De Gaulle sobre o direito à autodeterminação dos argelinos e preside o Tribunal Russell que julga os crimes de guerra norte-americanos no Vietnã. Paralelamente a essas atividades, continua a publicar críticas literárias, a dar entrevistas, a escrever ensaios políticos que abordam o problema do marxismo, do Partido Comunista Francês e do stalinismo. As origens do Terceiro Mundo e do terceiro mundismo são de ordem histórica e 15 16 CHALIAND, Gérard. Mitos revolucionários do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. Respectivamente: SARTRE, Jean-Paul. Prefácio aos “Os malditos da terra de Frantz Fanon”. In:_____. Colonialismo e neocolonialismo. (Situações V). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968a; SARTRE, JeanPaul. Prefácio ao “Retrato do colonizado, precedido pelo retrato do colonizador”. In:______. Colonialismo e neocolonialismo. (Situações V), 1968b e SARTRE, Jean-Paul. “O pensamento político de Patrício Lumumba”. In:_____.Colonialismo e neocolonialismo. (Situações V). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968c. 7 político-ideológica. Historicamente, as origens dos países do Terceiro Mundo remontam ao processo geral de descolonização a partir de 1947. Apesar das especificidades de cada país do Terceiro Mundo, eles apresentam algumas características comuns: ausência de reforma agrária sistemática; aumento da distância entre “países ricos e pobres” (daí a enorme desigualdade sócio-econômica); explosão demográfica; regimes militares; busca de desenvolvimento econômico/industrialização. Na realidade, a preocupação com a independência econômica (o desenvolvimento) faz os países do Terceiro Mundo elaborarem políticas de ajuste estrutural para obter a “ajuda econômica” dos países desenvolvidos, por meios de empréstimos em instituições financeiras como o FMI e Banco Mundial.17 No entanto, o subdesenvolvimento, a dependência econômica, a preponderância das estruturas agrícolas coloniais de produção (agro-exportação, latifúndio e monocultura) e o crescimento demográfico elevado impossibilitam a industrialização e, consequentemente, o desenvolvimento social. No nível do desenvolvimento das forças produtivas e não no da miséria, reside a diferença fundamental entre esse países. Isso explica, por exemplo, o que faz com que a Índia, muito embora tendo um nível mais elevado das forças produtivas, seja mais miserável que a Tanzânia, com menor desenvolvimento das forças produtivas em relação ao país hinduísta.18 O termo Terceiro Mundo foi elaborado em comparação aos três estados do Ancién Régime da França por Alfred Sauvy. O demógrafo e sociólogo francês utiliza o termo pela primeira vez no texto “Trois Mondes, une planète” publicado, em 14 de agosto de 1952, na revista L'Observateur politique, économique, littéraire. A origem política dos países do Terceiro Mundo remonta à Conferência de Bandung, realizada na Indonésia, em 1955. O evento conta com a participação de diversos países afro-asiáticos independentes e coloca uma série de novos problemas, tanto do ponto de vista da política internacional quanto do ponto de vista ideológico. Do ponto de vista da política internacional, o “neutralismo” e/ou o “não alinhamento” que intentam, na prática, constituir-se numa “terceira força” alternativa ao bloco capitalista (o “Primeiro Mundo”, sob a liderança dos Estados Unidos) e ao bloco socialista (o “Segundo Mundo”, sob a liderança da União Soviética); do ponto e vista ideológico, o terceiro mundismo, como expectativa e afirmação da importância da revolução social tricontinental. De modo geral, a conferência estabelece uma estratégia de intervenção no 17 18 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 395. CHALIAND, Gérard. Mitos revolucionários do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 8-9. 8 processo de descolonização ainda em curso. Sintetizada em alguns pontos fundamentais, a estratégia escolhida prevê: “respeito pela soberania e integridade territorial dos Estados; igualdade de povos e nações; não intervenção nos negócios internos dos Estados; não utilização de dispositivos de defesa que sirvam aos interesses particulares das grandes potências; promoção dos interesses comuns e da cooperação; respeito pela justiça internacional; ajuda à independência de outros países”. Na prática, os princípios eleitos pela Conferência de Bandung lançam “as bases de uma institucionalização efetiva da ideia de Terceiro Mundo”19, sobretudo, porque introduzem a política de neutralismo que comporta as ideias anti-colonialiais e anti-imperialistas. Diante do exposto, devemos entender o Terceiro Mundo como “uma categoria política ampla que engloba situações diferentes e antagônicas”,20 mas cuja ideia central se expressa na tentativa de constituição de uma “terceira-força” aos blocos capitalista e comunista. O terceiro mundismo tem origem na afirmação da importância da necessidade e na expectativa da revolução tricontinental (afro-asiática e latino-americana) contra o imperialismo. A crença de que o mundo seria emancipado pela libertação dos países periféricos do jugo dos países-núcleo toma conta das (pre)ocupações políticas de Sartre. A partir disso, convence-se de que “o pensamento concreto deve nascer da práxis e voltar-se sobre ela para iluminá-lo.”21 Na verdade, Sartre desenvolve o raciocínio desde 1960, na ocasião da Revolução Cubana, na análise da relação entre ideologia e revolução. Aliás, “nenhuma revolução poderia ter sido mais bem projetada para atrair a esquerda no hemisfério ocidental e dos países desenvolvidos, no fim de uma década de conservadorismo global”.22 Ao longo de todo esse período, uma geração de intelectuais de esquerda confia na revolução social, afinal “o Terceiro Mundo podia preservar seus ideais, ao mesmo tempo em que se constitui como pilar central de esperança e fé dos que ainda acreditavam na revolução social”.23 Expectativa iniciada em Bandung, em meio à Guerra da Argélia, reforçada pela Revolução Cubana e tornada factível com a Revolução Vietnamita. Os três processos, portanto, atualizam a ideia da revolução social tricontinental. No entanto, para Chaliand, o terceiro mundismo não passou de um mito da revolução tricontinental. Chaliand analisa o fracasso da revolução terceiro mundista tendo em vista os equívocos teóricos dos seus intelectuais, ou seja, da teoria revolucionária, bem como as insuficiências dos partidos 19 VIGEVANI, Tullo. Terceiro Mundo: conceito e história. São Paulo: Ática, 1990, p. 13. Ibid., 1990, p. 5-6 21 SARTRE, Jean-Paul. Interview – Jean-Paul Sartre et les problèmes de notre temps. In:_____. Cahiers Bernard-Lazare. Paris, n. 4, 1966, p. 23. 22 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 427. 23 Ibid., p. 424. 20 9 comunistas em se infiltrar e receber apoio das massas e mesmo na conformação dos partidos comunistas à ordem vigente. No entanto, a meu ver, Chaliand minimiza, chegando a subestimar a força de outros elementos “objetivos” externos como a ingerência dos Estados Unidos da América nos assuntos do Terceiro Mundo e internos como os obstáculos políticos e militares (im)postos pelas próprias elites coloniais. Os mitos revolucionários, segundo Chaliand, se referem ao equívoco, por parte dos revolucionários, de se pensar que a burocracia pode ser evitada, de que o proletariado foi traído, de que os trabalhadores imigrados constituiriam a vanguarda revolucionária, pela superestimação do socialismo pelos líderes guerrilheiros e pela idéia compartilhada de que a revolução socialista era iminente nos três continentes. Todas essas foram as ilusões revolucionárias das quais, inclusive, Chaliand afirma ter compartilhado. Precisamente em relação a esse último ponto, devemos discordar de Chaliand. Ora, pensar que a revolução tricontinental era iminente, naquele determinado momento histórico não era uma ilusão. Ela era factível para toda uma geração de revolucionários e para todos aqueles que compartilhavam daquelas expectativas. Sartre era um deles. Só uma análise a posteriori, logo, anacrônica, é que permitiria uma afirmação do tipo, o que não invalida a maior parte das considerações de Chaliand, inclusive, as utilizadas neste artigo. 4. A emergência do “Terceiro Mundo” nas (pre)ocupações políticas de Sartre Em primeiro lugar, a emergência do Terceiro Mundo nas (pre)ocupações políticas de Sartre deve ser explicada a partir de um duplo movimento: a) pelo malogro da revolução socialista na Europa que ocorre, em parte, pela estratégia stalinista de contenção e consolidação da revolução socialista “num só país” com a subsunção dos partidos comunistas europeus a Moscou; b) pelo novo horizonte histórico revolucionário delineado pela emergência do Terceiro Mundo, com a Guerra da Argélia, a Revolução Cubana e a Guerra do Vietnã. Nessa esteira, Sartre expressa que o balanço das forças, no entanto, permanecia favorável provisoriamente ao Ocidente: donde, neste momento histórico, a revolução tornava-se impossível na Europa; nem Churchill, nem Roosevelt, nem finalmente, Stálin a teriam tolerado (...). Hoje, tudo se faz claro: a história era uma só para a terra inteira; advinha daí esta contradição, à época indecifrável, de que a luta de classes cedia lugar a conflitos entre nações – portanto, a guerras adiadas. Hoje em dia o Terceiro Mundo nos aclara; em 1945, não podíamos nem compreender a metamorfose nem tampouco admiti-la. Em resumo, estávamos cegos. 24 24 SARTRE, Jean-Paul. Merleau-Ponty vivo (I). In:_____. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n.2, 10 Em segundo lugar, a emergência do Terceiro Mundo nas (pre)ocupações políticas de Sartre deve ser compreendida levando-se em conta o seu diálogo (“necessário e impossível”) com os comunistas e pela sua adoção do método dialético na investigação dos problemas coloniais. A sua análise da Negritude já explicita essa tentativa, ainda que problemática. No entanto, a aplicação do método de análise em “O colonialismo é um sistema” (1956) obtém sucesso. A emergência do Terceiro Mundo concretiza, portanto, para Sartre a almejada “terceira-força”, tanto em relação ao socialismo soviético como ao capitalismo norteamericano. Logo, isto permite pensar seu posicionamento político de acordo com a luta de libertação do Terceiro Mundo como desdobramento e continuidade do seu conceito de engajamento elaborado no cenário político-intelectual francês no período do pós-guerra.25 Sartre pensa que a unidade do Terceiro Mundo está em curso “tanto depois como antes da independência de todos os colonizados sob o comando da classe camponesa”. 26 E não está sozinho pois encontra em Frantz Fanon o mesmo raciocínio segundo o qual os africanos, os asiáticos, e os latino-americanos devem realizar todos juntos e por toda parte o socialismo revolucionário. Do contrário, os colonizados seriam derrotados, um a um. Enfim, a radicalização das posições políticas de Sartre não é “operada da noite para o dia”, mas o resultado de um processo (lento talvez) cujas origens remontam à Segunda Guerra Mundial e se aprofundam ao longo dos anos. Assim, é preciso ponderar os termos da asserção de Sartre, segundo a qual “foi a guerra que fez explodir os quadros envelhecidos de nosso pensamento”.27 Evidentemente, a experiência histórica proporcionada pela guerra é decisiva para a evolução das posições políticas de Sartre. Contudo, os acontecimentos do Terceiro Mundo – a “segunda zona da Revolução Mundial” – contribuem de maneira indelével para esse processo de radicalização: a Guerra da Argélia, a Revolução Cubana e a Guerra do Vietnã. De acordo com Hobsbawm, a segunda “onda” inaugurou-se com o Terceiro Mundo, zona mundial de revolução (1944-1962), sendo toda a esquerda (em sentido lato, que inclui desde liberais humanitários aos social-democratas) favorável a ele. Hobsbawm afirma dezembro de 1962. 25 Cf. ALMEIDA, Rodrigo Davi. Sartre no Brasil: expectativas e repercussões. São Paulo: Editora UNESP, 2009, Capítulo 1. 26 SARTRE, Jean-Paul. Prefácio ao “Retrato do colonizado, precedido pelo retrato do colonizador”. In:______. Colonialismo e neocolonialismo. (Situações V), 1968b, p. 140. 27 SARTRE, Jean-Paul. Interview – Jean-Paul Sartre et les problèmes de notre temps. In:_____. Cahiers Bernard-Lazare. Paris, n. 4, 1966, p. 22. 11 que o mundo passou por três “ondas revolucionárias”, que inauguram a “era da Revolução Mundial”. A primeira grande “onda” foi deflagrada pela Revolução Russa (1917) e seu fim foi decretado pela “desintegração do movimento internacional comunista em Moscou”. Movimento este abalado em dois momentos, primeiramente, em 1956, com o massacre da Insurreição da Hungria e o segundo abalo, definitivo, em 1968, com o massacre da Insurreição da Tchecoslováquia. Ambos enterram o internacionalismo operário, de acordo com Hobsbawm. Por fim, o Movimento de Maio de 1968 dá o último suspiro da Revolução Mundial.28 5. As posições políticas de Sartre sobre a Guerra da Argélia (1954-1962), a Revolução Cubana (1959-1961) e a Guerra do Vietnã (1946-1976) As posições políticas de Sartre têm como eixo fundamental o problema da liberdade em suas mais diversas manifestações e situações econômicas, sociais, políticas e culturais. O filósofo engagé visita vários países europeus, africanos, asiáticos e americanos, dos Estados Unidos ao Brasil, da Itália à Rússia, da China ao Japão, de Israel ao Egito, com o propósito de defender a liberdade. No entanto, a partir do segundo período pós-guerra, o Terceiro Mundo se torna o centro das (pre)ocupações políticas de Sartre que se engaja na condenação das guerras da Argélia e do Vietnã e na defesa da Revolução Cubana contra os imperialismos francês e norte-americano, respectivamente. Em relação à África, Sartre afirma que a única maneira de evitar a intervenção estrangeira é a unidade dos objetivos, isto é, a luta pelo “fim dos bombardeios no Vietnã e a abertura de negociações diretas com os vietcongs no quadro dos acordos de Genebra”, ou seja, o futuro da África depende da vitória do Vietnã e da derrota dos Estados Unidos, pois, “o que está em jogo no Vietnã, não é nada menos que a dominação do mundo pelos Estados Unidos”.29 Sartre condena as guerras da Argélia e do Vietnã, do ponto de vista moral, ou seja, como “guerras sujas”, pois revelam a “crueldade inumana” que os ricos fazem aos pobres.30 Apesar de serem “guerras sujas”, Sartre afirma que suas suas origens são econômicas. De acordo com o filósofo engagé, para que tenha resultado efetivo, a condenação moral das guerras deve ser feita pelas massas (proletariado e pequena-burguesia). Daí a importância da 28 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SARTRE, Jean-Paul. Interview – Jean-Paul Sartre et les problèmes de notre temps. In:_____. Cahiers Bernard-Lazare. Paris, n. 4, 1966. 30 SARTRE, Jean-Paul. Au Proche-Orient: M. Jean-Paul Sartre fait au Caire l’éloge du président Nasser. Le Monde. Paris, 5 mars 1967 SARTRE, 1967, p. 9. 29 12 intervenção do intelectual na divulgação das atrocidades das guerras, do genocídio, da tortura e do racismo junto às massas para obter seu apoio contra a guerra. Todas essas características do engajamento do intelectual têm um objetivo político muito preciso: a transformação da sociedade capitalista pela revolução e a instauração do regime socialista que realizaria o “reino da liberdade”. Em meio à Guerra da Argélia, Sartre define o seu conceito de colonialismo e revela a sub-humanização do argelino pela violência colonial que se concretiza no racismo e na tortura. Suas posições políticas sobre o evento têm grande impacto na França. A originalidade delas não está no fato de que ele tenha sido o primeiro, ou o único, a constatar a sub-humanização do argelino, mesmo porque não o foi, mas na sua radicalidade. Sartre intervém contra a guerra, divulga suas atrocidades e propõe uma ação política conjunta e coordenada da esquerda, do operariado francês e do campesinato argelino em torno de uma mesma luta: o fim da exploração e da opressão imperialistas. A radicalidade das posições políticas de Sartre sobre os acontecimentos relacionados à Guerra da Argélia comprova-se de dois modos. Por um lado, exasperou a direita francesa, tanto os gaullistas – que nas passeatas vociferavam “fuzilem Sartre” – quanto a OAS (Organisation de l'Armée Secrét), todos contrários à independência da Argélia. A OAS desferiu, inclusive, dois ataques à bomba ao apartamento de Sartre em Paris. Por outro lado, se opôs à própria esquerda europeia, cujo movimento socialista “com Bernstein na Alemanha, Vandervelde na Bélgica e Jaurès na França era partidário de uma ‘política colonial positiva’ que não fosse mais a política colonial da burguesia”31. Sartre ainda entende que o Partido Comunista Francês transigia com a Guerra da Argélia ao aceitar “fazer o jogo” políticoparlamentar burguês.32 À época da Revolução Cubana, Sartre já está convencido do peso das circunstâncias sócio-econômicas no condicionamento das ações dos indivíduos. No entanto, e ao mesmo tempo, está convicto da irredutibilidade fundamental das ações dos indivíduos no processo histórico que ele define como liberdade. Para o filósofo engagé, esta irredutibilidade possibilitou a ação revolucionária em Cuba. Mas o “hurazcán sobre el azucar” tinha ainda um importante legado para Sartre: mostrava a possibilidade da revolução sem ideologia préestabelecida, o que excluía, portanto, a necessidade de mediação do partido político comunista. 31 FERRO, Marc. História das Colonizações, das conquistas às independências (séculos XII a XX). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 208, grifos do autor. 32 SARTRE, Jean-Paul.Un entretien avec Jean-Paul Sartre: Jeunesse et Guerre d’Algérie. Par K. S. Karol. Vérité-Liberté – Cahiers d’information sur la Guerre d’Algérie. Paris, n.3, juil-août 1960, p. 1. 13 A contribuição fundamental de Sartre enquanto “intelectual-jornalista” está na longa série de reportagens publicadas sobre o “hurazcán sobre el azucar”,33 na França, pelo jornal parisiense France Soir e, no Brasil, pelo jornal carioca Última Hora.34 Nas reportagens, descreve o esforço cotidiano dos jovens revolucionários para edificar e consolidar a sociedade sob uma lógica para além do capital, com destaque às conquistas sociais obtidas pelo povo cubano, particularmente, no tocante à reforma agrária. As análises de Sartre tanto quanto suas descrições constituem rico manancial para o estudo da obra revolucionária cubana, ainda que nos seus anos iniciais. Não por acaso, Sartre divulga as conquistas sociais cubanas ao público internacional. Com isso, pretende arregimentar apoio à revolução, constantemente ameaçada de aniquilamento pelos Estados Unidos mas também para que sirva de modelo aos países latino-americanos e, particularmente, ao Brasil.35 A Guerra do Vietnã, descrita e denunciada como “guerra suja”, portanto, condenável do ponto de vista moral e, em especial, as atividades do Tribunal Russell radicalizam as posições políticas de Sartre. Justamente, no curso da guerra, ele propõe uma nova relação entre política e moral, com base em sua crítica da política considerada exclusivamente sob o ângulo da eficácia, um dos legados stalinistas. Nessa esteira, a guerra e as atividades desenvolvidas pelo tribunal revelam a Sartre a necessidade e a importância da “inscrição da política no código da moralidade”.36 Eis aí a originalidade das posições políticas de Sartre. De acordo com ele, a partir da “inscrição da política no código da moralidade”, as “massas” poderiam avaliar e rejeitar as ações dos governos para além do critério exclusivo da eficácia. A crítica de Sartre relacionada à consideração da política sob o exclusivo critério da eficácia se dirige tanto aos países capitalistas imperialistas quanto aos países comunistas, mas com a vantagem de que estes colocam o problema sobre aqueles que nem mesmo chegam a cogitá-lo. Porém, Sartre esclarece que a tarefa só pode partir da exigência das “massas”, portadoras de uma moral “simples e revolucionária.”37 O intelectual tem papel relevante no processo de desmistificação das ideias que paralisam as “massas” para “despertá-las” do imobilismo. Somente as “massas” podem instituir um verdadeiro tribunal internacional que julgue e efetivamente sancione os crimes de guerra com base em regras éticas e jurídicas. De acordo com Sartre, papel do intelectual revolucionário, antes de ser “fundido às 33 SARTRE, Jean-Paul. Sartre visita a Cuba. Havana: Ediciones Revolución, 1961. ALMEIDA, Rodrigo Davi. Sartre no Brasil: expectativas e repercussões. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 35 ALMEIDA, Rodrigo Davi. Sartre no Brasil: expectativas e repercussões. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 36 MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Ensaio, 1991. 37 SARTRE, Jean-Paul. El Tercer Mundo comienza el los subúrbios. In: ____. Escritos Políticos. 3. El intelectual y la revolución. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p.181. 34 14 massas” e perder seu estatuto específico, traduz sua necessidade de intervenção no curso dos acontecimentos históricos. Ele denuncia ainda os crimes de guerra franceses e norteamericanos com o objetivo de informar as “massas” para que formem sua opinião e tomem posições contra as guerras imperialistas e a favor da luta de libertação do Terceiro Mundo. Não apenas a crítica, defende e propõe a unidade da esquerda ao explicitar a “solidariedade de interesses” entre as classes exploradas europeias, particularmente, o operariado e as do Terceiro Mundo, particularmente, os camponeses. Para Sartre, somente a revolução pode romper com os imperialismos colonialista e neocolonialista, assim como apenas o socialismo pode realizar o “reino da liberdade” entre os homens. Em outras palavras, o “problema humano” – isto é, a liberdade – deve resolver-se em termos de produção e de relações de produção socialistas. Em suma, a trajetória de Sartre se caracteriza pela unidade contraditória da sua concepção (e busca) da liberdade, anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial. Antes desta, ele procura definir a liberdade do ponto de vista teórico-filosófico, isto é, no plano ontológico, portanto, abstrato e individual. Depois, sua concepção de liberdade, sob o “impacto da História” – da Guerra da Argélia, da Revolução Cubana e da Guerra do Vietnã – passa a ser definida do ponto de vista políticoeconômico, isto é, no plano da História, portanto, concreto e coletivo. Durante a Segunda Guerra Mundial, Sartre começa a pensar o indivíduo humano não mais em termos ontológicos de uma “falta original”, que o condena a ser livre, mas em termos de sua responsabilidade face à sua sociedade e à história. Esse problema ético colocado à sua filosofia, à época da Ocupação, mas inconcluso, dadas as contradições de sua definição de liberdade, recoloca-se à época da Guerra da Argélia, da Revolução Cubana e da Guerra do Vietnã. Desta vez, Sartre procura defini-la sob os aspectos econômico (como independência, em oposição à dependência), social (como justiça e igualdade, em oposição à desigualdade), político (como soberania, em oposição ao domínio colonial) e cultural (como humanização, em oposição à tortura e ao racismo). As guerras de descolonização também lhe permitem criticar certos aspectos do próprio marxismo, além de superar sua concepção existencialista de liberdade. Sartre não tem dúvidas em concluir: a agressão imperialista é imoral, pois impossibilita ao homem desenvolver-se humanamente. Os colonizadores devem ser responsabilizados e sancionados pelos crimes de guerra. Nesse contexto, afirma o “homem é possível” e, por isso, contradiz sua ideia ontológica de que o “homem é uma paixão inútil”. Em outras palavras, a liberdade humana é possível, como provam as revoluções do Terceiro Mundo inscritas no socialismo. 15 6. Considerações finais No curso da Guerra do Vietnã e em meio aos acontecimentos de Maio de 1968, Sartre apresenta uma nova questão: como o intelectual pode converter-se no “povo”? De acordo com ele, os intelectuais até podem encontrar seus “paraísos”, a realização de suas filosofias e de suas expectativas políticas e sociais. No entanto, devem seguir com sua “consciência infeliz” que garante a “não alienação”, ou seja, o compromisso para com a verdade. Qualquer verdade, a verdade absoluta? Não. Para o filósofo engagé, o critério de estabelecimento da verdade histórica consiste em (re)conhecer o lado do “mais deserdado”, o portador, par excellence, do ponto de vista da universalidade38. Diante da verdade, há duas escolhas possíveis para Sartre: a resignação ou a revolução, o engajamento ou a irresponsabilidade, a defesa da ordem capitalista ou a luta pela sociedade socialista. Mas, estudar as posições políticas de Sartre não seria anacrônico se considerarmos seu engajamento e as questões por ele suscitadas ou os acontecimentos aos quais ele se reporta como já datados, portanto, superados? Ora, sua filosofia também não seria datada? Não seria própria de uma época que colocava suas próprias questões e que, hoje, também estariam superadas? Não seria anacrônico tomar suas posições políticas como norte para a reflexão sobre situações que exigiriam a formulação de outros questionamentos e outras respostas, atualmente? Por certo, o ofício do historiador não pode deixar de considerar a historicidade do engajamento de Sartre. Mas igualmente, no mesmo ofício, deve perceber que algumas situações postas ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, no contexto das lutas de descolonização e da emergência do Terceiro Mundo, ainda repercutem com graves e sérias consequências ao mundo europeu mas sobretudo aos ex-colonizados. Aprovada pelo Parlamento Europeu, em junho de 2008, e em vigor desde 2010, a Lei de Imigração criminaliza a imigração ilegal, impondo-lhe severas penalidades, a despeito da crítica que engendrou tanto por parte de grupos de defesa dos Direitos Humanos como pelo Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Não obstante, a nova medida (que intenta solucionar o problema) parece confirmar que imperialismo colonialista europeu em seus resultados ou desdobramentos mais perniciosos insiste em nos interpelar. 38 Para uma melhor e mais aprofundada discussão do tema, vide o livro de Michael Löwy: As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. (São Paulo: Cortez, 2009), em particular, a Conclusão (p. 229-255). 16 Desse modo, podemos evitar o anacronismo ou a “ressurreição dos mortos”. Nessa esteira, a conferência de Sartre, em 1970, sobre a publicação do livro “Os trabalhadores africanos na França”39 é de uma impressionante atualidade. Um dos aspectos do livro destacado por Sartre reside na precariedade da situação do trabalhador imigrante africano que não é reconhecido legalmente pelo governo francês. No entanto, este mesmo governo sabe da existência desses imigrantes – daí o mito da clandestinidade – que contribuem para a economia francesa. Como os imigrantes ilegais são, em sua grande maioria, homens adultos, o Estado não arcou com as despesas de sua infância e não arcará com as despesas de sua velhice, quando não mais forem “produtivos”. São eles também que realizam os piores trabalhos manuais, desprezados pelos franceses. Sem a possibilidade de reconhecimento legal e de integração restam à margem da sociedade, sofrem com a xenofobia, com o racismo, mesmo com a língua francesa. Os franceses preferem que não a aprendam efetivamente para que não se comuniquem com seus “camaradas” e para que não se forme uma “elite”, “porque ‘se não há elite, não há problemas’, como diziam no Congo Belga”.40 Em 2008, em Paris, nas comemorações do Primeiro de Maio, o dia do trabalhador é marcado, justamente, pela manifestação dos imigrantes africanos, sobretudo, dos negros que reivindicam a sua “regularização” e sua integração efetiva à sociedade francesa. Será que algo mudou na sua condição, a não ser pelo enrijecimento da política de imigração aos ilegais, passadas quatro décadas daquela situação denunciada por Sartre? No Brasil, porém, no mesmo Primeiro de Maio, as comemorações se dão de uma forma um tanto distinta das comemorações francesas. Nada de protestos por parte dos trabalhadores, como se vivêssemos “no melhor dos mundos possíveis”, como ironiza Voltaire em Cândido ou o otimista. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical organizaram grande festa de música sertaneja onde foram sorteados carros e casas aos participantes! Entre os anos de 2011 e 2014 surgiram diversas manifestações sociais e políticas (com destaque à participação dos jovens) no mundo todo. Da “Primavera Árabe” aos “Indignados” na Espanha, do “Occupy Wall Street” ao “Movimento Passe Livre e Black Blocs” no Brasil, esses movimentos expressaram, dentre outras coisas, o autoritarismo de diversos governos, a crise de representatividade política da democracia liberal, os elevados 39 SARTRE, Jean-Paul. El Tercer Mundo comienza el los subúrbios. In:____. Escritos Políticos. 3. intelectual y la revolución. Madrid: Alianza Editorial, 1987. 40 SARTRE, Jean-Paul. El Tercer Mundo comienza el los subúrbios. In: ____. Escritos Políticos. 3. intelectual y la revolución. Madrid: Alianza Editorial, 1987 SARTRE, 1987, p. 35. El El 17 níveis de desemprego, a miséria, a corrupção e o desperdício da utilização de recursos públicos em setores menos essenciais da vida social. Evidenciou-se, apesar da importância e do grande número de jovens reunidos nas manifestações, a falta de coordenação política do movimento que obteve resultados concretos limitadíssimos. Do mesmo modo, ficou patente a ausência da participação efetiva das esquerdas partidárias que, inclusive, foram contestadas e “impedidas” de atuarem junto aos movimentos. Justamente, nesse sentido, determinadas críticas e posições políticas de Sartre podem lançar luz sobre certas questões da ordem do dia. A crítica mais contundente de Sartre às esquerdas partidárias europeias se referia à desunidade dos interesses políticos entre os socialistas e os comunistas acerca do problema colonial. Eis porque a sua proposta mais consistente insistia na necessidade da unidade política das esquerdas na sua luta comum contra o colonialismo. Não seria esse o problema das esquerdas partidárias brasileiras, isto é, a sua desunidade? Não seria esse o momento de refletirem sobre o seu papel junto às “massas”? Não seria esse o momento de esclarecerem seu projeto político à nação? São questões políticas fundamentais à espera de respostas... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rodrigo Davi. As posições políticas de Jean-Paul Sartre e o Terceiro Mundo (1947-1979). UNESP/Assis/SP, 2010. Tese de Doutorado. ______. Sartre no Brasil: expectativas e repercussões. São Paulo: Editora UNESP, 2009. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989. ARANTES, Paulo E. Um departamento francês do ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica uspinana (uma experiência nos anos 60). São Paulo: Paz e Terra, 1994. CHALIAND, Gérard. Mitos revolucionários do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995. 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