Apresentação Em que condições estamos diante de uma nova palavra e quando apenas variamos formalmente uma palavra já existente? O que nos faz considerar ‘peixe’ e ‘peixada’ itens lexicais diferentes, e ‘peixes’, modificação gramatical de ‘peixe’? Em que circunstâncias o acréscimo de um afixo amplia o vocabulário de uma língua? Que critérios podem ser utilizados para diferenciar uma palavra nova de uma mesma palavra variada em número ou em gênero? ‘Peixinho’ e ‘peixão’ devem ser verbetes independentes de um dicionário? ‘Peixinho’ e ‘peixes’ são produtos de um mesmo processo morfológico ou resultam de operações distintas? Essas e outras questões norteiam a presente obra, que tem foco numa das muitas controvérsias que caracterizam a morfologia de línguas naturais: a delimitação dos dois principais tipos de operações morfológicas – a flexão e a derivação. Como veremos no decorrer dos capítulos, as posições sobre essa dicotomia são polêmicas e vão desde as que defendem uma rígida separação (Scalise, 1988) até as que negam por completo a existência de fronteiras entre elas (Bybee, 1985). O lugar que a morfologia ocupa num modelo de gramática, sua existência como componente autônomo e as relações com outros módulos dependem, nas palavras de Villalva (2000: 21), do que se toma como modelo de gramática e do que se considera o domínio da morfologia. Por isso mesmo, ainda não é consensual a inclusão dos processos flexionais como parte integrante de um possível módulo morfológico autônomo, independe do sintático e do fonológico. Não é à toa que o lexicalismo logo se viu dividido em duas grandes vertentes: (1) a fraca, segundo a qual a derivação é processada no léxico e a flexão na sintaxe; e (2) a forte, segundo a qual flexão e derivação atuam no léxico. 6 Iniciação aos estudos morfológicos Neste livro, que constitui versão revista e ampliada de Flexão e derivação em português, escrito em 2003 e publicado em 2005 pela Editora da Faculdade de Letras da ufrj, descrevemos a flexão e a derivação a partir de suas diferenças e semelhanças, fornecendo ao leitor uma visão atualizada e corrente sobre essas duas “morfologias” (Spencer, 1993). Focalizamos, sem necessariamente nos comprometer com uma ou outra orientação teórica, os afixos do português: sua relação com a sintaxe e a fonologia e o diagnóstico a partir da inspeção de critérios empíricos. No decorrer dos capítulos, apresentamos os parâmetros que afastam e aproximam essas “morfologias” de modo crítico e problematizante, buscando verificar, com isso, se flexão e derivação constituem processos radicalmente distintos ou se, na verdade, vêm a ser polos prototípicos de uma mesma operação morfológica. Em linhas gerais, a flexão tem sido definida como processo morfológico regular, aplicável em larga escala e sem qualquer possibilidade de mudança na categorização lexical das bases. Radicalmente diferente, a derivação tem sido descrita como processo idiossincrático, caracterizado pelo potencial de mudar classes e por grandes restrições de aplicabilidade. Ao longo do livro, mostramos que essas diferenças são relativas, uma vez que à flexão também podem estar associadas arbitrariedades formais e restrições de aplicabilidade, entre outras características tradicionalmente atribuídas à derivação. Ao mapearmos os parâmetros utilizados para diferenciar ou para nivelar as duas morfologias, apresentamos, simultaneamente, os principais aspectos que definem a flexão e a derivação. Tendo a língua portuguesa como objeto central de investigação, o livro se estrutura da seguinte maneira: No primeiro capítulo, “Das diferenças entre flexão e derivação”, fazemos um exaustivo levantamento das principais diferenças entre a morfologia flexional e a derivacional, listando os critérios empíricos frequentemente usados para segregá-las. Ao analisar flexão e derivação como categorias discretas – isto é, como possuidoras de fronteiras relativamente definidas, sem qualquer possibilidade de gradação ou continuidade –, mostramos que a tarefa de categorizar determinados afixos do português se torna extremamente difícil a partir da inspeção às propriedades apontadas, pela tradição, como características de uma ou de outra morfologia. No segundo capítulo, “Das semelhanças entre flexão e derivação”, fazemos um inventário das principais semelhanças entre flexão e derivação. Ao focalizar a similaridade, discutimos as propostas de tratamento sintático para a morfologia flexional, analisando, para tanto, os aspectos da hipótese lexicalista Apresentação 7 fraca que consideramos problemáticos e/ou merecedores de reflexão. Atenção especial será dada à questão da perificidade dos afixos flexionais. No terceiro capítulo, “O continuum flexão-derivação”, mostramos que flexão e derivação podem não ser tratadas como processos distintos, mas como polos de um continuum morfológico. Ao descrever e comentar as ideias de Bybee (1985), para quem as diferenças não são discretas, procuramos (a) identificar os determinantes da expressão flexional e (b) aplicar essa proposta ao estudo das categorias gramaticais do verbo. Por fim, rediscutimos, no capítulo “O continuum aplicado ao português”, a proposta de continuum flexão-derivação em português, apresentando algumas medidas de avaliação para o posicionamento de afixos ao longo da escala idealizada por Bybee (1985). Para tanto, analisamos alguns elementos morfológicos de difícil categorização em nossa língua e contrastamos, pelo teor flexional/ derivacional, os afixos de gênero feminino, número plural e o grau dimensivo. Esperamos oferecer ao leitor um panorama atualizado sobre essas duas áreas da morfologia. De Mattoso Câmara Jr. (1970) a abordagens mais recentes, como as de Basilio (1987), Rocha (1998) e Rosa (2000), procuramos mostrar diferentes enfoques sobre flexão e derivação em português. Nesse percurso, muitas análises são resumidas, conceitos rediscutidos e novas propostas apresentadas, o que faz deste livro tanto um manual de introdução aos estudos morfológicos do português quanto um roteiro para o aprofundamento das várias perspectivas, a partir das quais flexão e derivação vêm sendo abordadas na linguística contemporânea.