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Conto
PIANO AO MODO DE ADELINA
Para Amy
A incerteza não cabia no piano.
Ela repousava.
Aliviava a vida nas teclas brancas e pretas, arredondando as mãos, acontecendo, fazendo
escalas musicais enquanto respirava com suavidade.
No princípio das minhas aulas de piano, o medo de errar fazia com que, numa fração de segundos, o polegar deslizasse para a tecla inadequada e, logo, tudo soasse estranho dentro de mim.
Aterrizando no ré, às vezes, com o pulso pesado, outras vezes, na leveza apreendida em olhar
os pássaros da chácara que pousavam nos galhos contorcidos da laranjeira. Copos-de-leite e
Mozart diluídos no café-da-manhã.
172 - DF, ano XVII, nº 40, julho de 2007
Universidade e sociedade
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Conto
A minha decisão pelo piano não era estranha.
Com o passar dos dias, eu imaginava que o meu esforço para memorizar as partituras seria
sempre em vão, eu nunca conseguiria reproduzi-las de memória. Mas um dia qualquer, quando já
esquecida que a vida continuava, eu me sentava ao piano e tudo ia pelos dedos.
Olhava meus dedos, tocava por eles, pressionava as teclas com imenso prazer, assim como
fazia com algumas certezas da vida.
Já não prendia a respiração ao tocar para professora Dona Linda, que vestida de rosa claro
analisava rigorosamente a leitura das notas e a postura de minhas mãos.
Quando finalmente aprendi a colocar meu ego no piano, era adulta, minhas mãos longas e os
anéis de prata deixados ao lado do teclado feminino me faziam lembrar minha mãe. A sensação
de maternidade viera como as notas, me engravidara de Chopin.
Desde a infância, a música que minha mãe tocava fazia com que eu imaginasse sentimentos e
fizesse do piano uma estrada concreta, carinhosa, talvez por isso, anos mais tarde, ao enfrentar
um delicado piano espanhol, ouvi dizer que eu mimava as teclas ao tocar.
Aos poucos, o cotidiano alcançava o piano, e, apenas por uma nota, eu ia vencendo o medo
de errar na vida, embora, só a música era mais perfeita depois de cada erro.
Para a música, seria necessário transformar mentalmente, fisicamente e emocionalmente cada
erro. Desprovida de erro, a música viria espontânea como se nem tivesse sido fruto de tamanha
persistência e, logo, se desmanchava cheia de alma e dedos esquecidos.
- Hoje é dia comum ou são dias raros?
- O que há entre as páginas?
A doença não demonstra o vazio, ela põe tudo à mostra, ela é o presente, preenche nossos
espaços, não nos permite viver de passados. Vinham as vírgulas nas flores: eram da razão, prelúdios, noturnos, valsas, estudos.
Estendida sobre nós se desenvolvia uma lucidez seca.
O sentido de tudo permeado pelo grotesco ainda cercado de impressıes do mundo alheio que
nada nos poupava e que nada sabia.
O piano se reproduzia fazendo das notas bem elaboradas uma palavra cômoda.
Não sei mais o tamanho da dor, sei que o filtro do tempo precisa da alegria para mover-se.
Nem mesmo o piano poderia ficar ali parado na dor impossível.
Mesmo sem causa e com destino, nunca as nossas páginas seriam de incerteza porque foram
feitas de partituras interpretadas com o caráter deslumbrante e amoroso de Adelina.
Miriam Coutinho de Faria Alves
Universidade e sociedade
DF, ano XVII, nº 40, julho de 2007 - 173
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