US40:Andes 36 12/07/11 12:52 Página 172 Conto PIANO AO MODO DE ADELINA Para Amy A incerteza não cabia no piano. Ela repousava. Aliviava a vida nas teclas brancas e pretas, arredondando as mãos, acontecendo, fazendo escalas musicais enquanto respirava com suavidade. No princípio das minhas aulas de piano, o medo de errar fazia com que, numa fração de segundos, o polegar deslizasse para a tecla inadequada e, logo, tudo soasse estranho dentro de mim. Aterrizando no ré, às vezes, com o pulso pesado, outras vezes, na leveza apreendida em olhar os pássaros da chácara que pousavam nos galhos contorcidos da laranjeira. Copos-de-leite e Mozart diluídos no café-da-manhã. 172 - DF, ano XVII, nº 40, julho de 2007 Universidade e sociedade US40:Andes 36 12/07/11 12:52 Página 173 Conto A minha decisão pelo piano não era estranha. Com o passar dos dias, eu imaginava que o meu esforço para memorizar as partituras seria sempre em vão, eu nunca conseguiria reproduzi-las de memória. Mas um dia qualquer, quando já esquecida que a vida continuava, eu me sentava ao piano e tudo ia pelos dedos. Olhava meus dedos, tocava por eles, pressionava as teclas com imenso prazer, assim como fazia com algumas certezas da vida. Já não prendia a respiração ao tocar para professora Dona Linda, que vestida de rosa claro analisava rigorosamente a leitura das notas e a postura de minhas mãos. Quando finalmente aprendi a colocar meu ego no piano, era adulta, minhas mãos longas e os anéis de prata deixados ao lado do teclado feminino me faziam lembrar minha mãe. A sensação de maternidade viera como as notas, me engravidara de Chopin. Desde a infância, a música que minha mãe tocava fazia com que eu imaginasse sentimentos e fizesse do piano uma estrada concreta, carinhosa, talvez por isso, anos mais tarde, ao enfrentar um delicado piano espanhol, ouvi dizer que eu mimava as teclas ao tocar. Aos poucos, o cotidiano alcançava o piano, e, apenas por uma nota, eu ia vencendo o medo de errar na vida, embora, só a música era mais perfeita depois de cada erro. Para a música, seria necessário transformar mentalmente, fisicamente e emocionalmente cada erro. Desprovida de erro, a música viria espontânea como se nem tivesse sido fruto de tamanha persistência e, logo, se desmanchava cheia de alma e dedos esquecidos. - Hoje é dia comum ou são dias raros? - O que há entre as páginas? A doença não demonstra o vazio, ela põe tudo à mostra, ela é o presente, preenche nossos espaços, não nos permite viver de passados. Vinham as vírgulas nas flores: eram da razão, prelúdios, noturnos, valsas, estudos. Estendida sobre nós se desenvolvia uma lucidez seca. O sentido de tudo permeado pelo grotesco ainda cercado de impressıes do mundo alheio que nada nos poupava e que nada sabia. O piano se reproduzia fazendo das notas bem elaboradas uma palavra cômoda. Não sei mais o tamanho da dor, sei que o filtro do tempo precisa da alegria para mover-se. Nem mesmo o piano poderia ficar ali parado na dor impossível. Mesmo sem causa e com destino, nunca as nossas páginas seriam de incerteza porque foram feitas de partituras interpretadas com o caráter deslumbrante e amoroso de Adelina. Miriam Coutinho de Faria Alves Universidade e sociedade DF, ano XVII, nº 40, julho de 2007 - 173