Reflexões sobre a prática docente (II)
por Antonio Ozaí da Silva*
Nota aos leitores: os textos aqui reunidos foram publicados em meu blog e, portanto, corresponde aos
objetivos e estilo do mesmo (ver Por que um blog? e Sobre o blog). São escritos de reflexão, sem pretensão
acadêmica e científica e limitados a no máximo 3.100 caracteres. Exprimem reflexõ es inspiradas em leituras,
observações do cotidiano, angústias e interrogações sobre a práxis educativa, a política, em suma, a vida.
Enquanto tal, não mantém necessariamente uma continuidade, mas mantém de alguma forma vínculos entre si.
São reproduzidos aqui seguindo a ordem cronológica em que foram publicados no blog (identificados pelos
subtítulos e data). Parece-me que a publicação neste espaço se justifica pela atualidade, extensão e diversidade
do público leitor. Comentários, críticas e sugestões são bem-vindos e podem ser postados diretamente no blog
e/ou enviados pelo email pessoal: [email protected].
A rua e a sala de aula 1
É tarde, faz muito calor. Caminho em direção ao “templo do saber” e vejo na rua uma mulher
que aparenta idade acima da que realmente tem. Seu corpo mostra as marcas de uma vida
sofrida e laboriosa. Desço a avenida e ela, no sentido oposto, puxa um carrinho cheio de lixo
reciclável. É o seu trabalho, o ganha-pão. Isso me faz pensar sobre as contradições da
sociedade. Começo a enumerar as respostas em minha mente, mas a materialidade é
incomensurável diante das minhas idéias sobre o presente e o futuro. Penso em abordá- la.
Mas, o que dizer? Concluo que apenas a perturbaria e faria perder precioso tempo. Sinto- me
até mesmo culpado por não ajudá- la a puxar o “veículo” ladeira acima. Como ela reagiria
diante de inusitada atitude? Porém, ainda que aceitasse minha ajuda, não mudaria a realidade
do seu cotidiano. Se nada posso fazer para aliviar o seu esforço diário, que direito tenho em
admoestá- la? Sigo o meu caminho, mas não a esqueço.
É noite, caminho sob o brilho da lua de beleza ímpar. Ando absorto em pensame ntos que me
consomem. Uma visão me trás de volta à realidade: um homem negro sentado à frente de um
prédio assistindo TV num desses aparelhos portáteis. Ele não está ali por acaso, mas sim
porque é o vigia do estacionamento de um imóvel de poucos andares que aparenta ser uma
república de estudantes da classe média. Não ouso atrapalhar o seu entretenimento, mas quase
paro para conversar. Gostaria de perguntar porque seu local de trabalho é uma cadeira na rua.
Ele deve ficar ali até o nascer do sol, a cuidar dos automóveis de gente que é bem-cuidada.
Protege a propriedade dos que lhe pagam o salário do mês. Parece justo. Quanto receberá por
seu trabalho? O prédio fica num vale, à margem de um córrego. O frio, portanto, é mais
intenso. Por que os condôminos não constroem uma guarita que o proteja das intempéries?
Talvez considerem que custa caro garantir uma condição de trabalho humana; quem sabe se
sintam mais protegidos se o homem estiver ao relento. Até porque é mais difícil cochilar e
dormir. E muito provave lmente todos, inclusive o trabalhador, achem a situação como normal
e natural.
Estou na sala de aula e observo os estudantes durante uma atividade. Uns se envolvem com o
que fazem, outros fazem de conta; uns tomam a sério a tarefa de pensar sobre as palavras do
texto; outros se recusam a pensar, seus corpos estão presentes, mas as mentes estão distantes.
*
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo
(USP) e Pós-graduado em His tória das Religiões (DHI/UEM)
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Publicado em 29 de setembro de 2007.
Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/084/84ozai.pdf
Não se retiram, talvez por respeito. Analiso tudo pacientemente e tento compreendê- los. Não
conheço suas histórias de vida, os laços que nos unem são tênues. Sei que não são
simplesmente a abstração genérica “alunos”, mas indivíduos com personalidades e histórias
de vida específicas.
Lembro-me da senhora que vive do lixo e do senhor negro vigilante. Percorro a sala com
meus olhos e penso se os estudantes têm consciência da realidade social e das causas que
produzem situações como estas. Não sei o que se passa em suas cabeças, conheço-os apenas
naquele restrito espaço da sala de aula. Não tenho o direito de julgá- los, mas as atitudes
sugerem possibilidades nem sempre alentadoras. Imagino se algum deles conhece a senhora
do carro de lixo ou se moram no prédio do vigia que trabalha sob o luar e o brilho das
estrelas. Não ouso perguntar.
Termina a aula e volto para casa. Um pensamento me angustia: que tipo de ser humano
contribuo para formar? São indivíduos críticos e capazes de transformar a sociedade que
vivem? Ou será que nada mais faço do que legitimar a formação de indivíduos adaptados e
incapazes de questionar a ordem social? São, pelo menos, sensíveis e capazes de se indignar?
Não sei! Depende das opções que fazem. De qualquer forma, há os que fazem valer a pena o
ofício do educador.
Método decoreba2
Aprendi tabuada pelo método tradicional. A professora nos fazia exercitar a memorização das
operações matemática. Repetia, repetia e, na aula, devia mostrar que sabia sem recorrer ao
livrinho. O método se mostrou eficaz. Hoje, na era da internet, das máquinas de calcular
potentes, encontramos jovens que não conseguem realizar os cálculos básicos sem recorrer às
calculadoras. Na minha infância, nem sabia que elas existiam.
Éramos educados através dos ditados e provas do tipo “marque um X”, “verdadeiro ou falso”,
“complete a frase”. Insistia-se que memorizássemos datas e acontecimentos históricos, como
se isso fosse mais importante do que compreender os “porquês”, influências sobre o presente
etc. Aprender história era muito chato. Claro, havia as exceções.
Até mesmo na graduação, e fiz um curso deveria exigir reflexão e elaboração crítica, tive
professores/as que recorreram ao tradicional decoreba. As provas não eram um estímulo ao
pensar crítico, mas um exercício no qual devíamos provar que memorizamos conceitos e
teorias. Não éramos desafiados a aprender, mas a consumir textos e vomitá- los em forma de
escrita na prova. E se nos autorizavam a pensar, como se fosse preciso, era no sentido de
“pensar” de acordo com o autor preferido do/a professor/a. O objetivo não era ensinar, mas
doutrina r. Sim, havia exceções. E foram as que mais contribuíram com a minha formação e
que recordo mais vivamente. Hoje, como professor, procuro não repetir as experiências que
me frustraram como aluno. Sempre aprendemos algo com nossos professores, nem que seja,
simplesmente, não agir como eles.
Após tantos anos, ainda se recorre ao método decoreba. O aluno chega à universidade
treinado para memorizar e a expectativa de muitos/as professores/as não vai além disso. Há
quem imagine que a formação acadêmica consiste em memorizar o código penal, os conceitos
e teorias sociológicas e políticas. Não forma, deforma. Memorizar é diferente de
compreender. Memoriza-se para tirar uma boa nota, passar no exame, mas não
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Publicado em 10 de outubro de 2007.
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Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
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necessariamente aprende-se. A memorização tende a se ater ao objetivo imediato. Posso
memorizar os eventos históricos, mas isso não indica que compreendo.
A decoreba pressupõe a repetição conteudista e não a reflexão sobre o conteúdo. É como
exigir que se memorize quem é o autor de uma obra de arte, local, ano etc. Essas informações
estão disponíveis nos livros e na internet. Não é melhor educar a sensibilidade, estimular a
reflexão sobre a obra e o contexto histórico? Qualquer estudante de direito tem acesso ao
código civil e penal, leis constitucionais, trabalhistas, etc. Por que devem memorizar? Isso é
mais importante do que compreender o significado e a realidade que sustenta a lei?
Fico a pensar sobre o que se passa na mente dos docentes que aplicam provas do tipo “V ou
F” e são extremamente pacientes, para não usar outra expressão, em elaborar as questões com
sutilezas e “pegadinhas”. Testam a “esperteza”, não o conhecimento. Querem provar o que?
Para este tipo de mentalidade, se o estudante memoriza nomes, locais, datas, leis etc., “sabe”.
Isso me faz lembrar certos programas da TV que “testam” o saber enciclopédico dos
indivíduos. Pelo menos há o entretenimento e o objetivo bem definido de competir para
ganhar o prêmio. No caso do estudante, isto significa “tortura mental”, da qual depende o seu
diploma, o prêmio merecido por suportar tais métodos de aprendizagem. Mas este é ilusório,
pois apenas indica que conseguiu concluir o curso. Com este procedimento, os/as
professores/as estimulam estratégias de sobrevivência, incluindo a “cola”, o plágio. Aos
professores/as resta reclamar e insistir. É patético! 3
Professores apaixonados 4
Fui à escola que minha filha estuda, Colégio Estadual Santa Maria Goretti, cumprir o dever
de pai. Enquanto aguardava para receber o Boletim, observei o ambiente. Vi várias imagens
coladas na parede da sala da diretoria. Aproximei- me para ler as palavras sobre as fotos. Era
uma homenagem aos “professores apaixonados”. Não se tratava de namoro ou casamento,
mas da paixão pelo próprio trabalho; professores que amam o que fazem. Felizmente, e apesar
das dificuldades, ainda há os assumem apaixonadamente o papel de educadores.
Após a conversa de praxe sobre as notas e o desempenho escolar da minha filha, fui embora.
Antes, porém, fiz questão de comentar e elogiar a iniciativa, mesmo sabendo que os
“professores apaixonados” representam a minoria. Ser professor é uma profissão como outra
qualquer e, como em todas áreas, há os que se identificam com o que fazem, e os que apenas
cumprem a jornada. Nas condições da sociedade moderna, o trabalho, já dizia um filósofo
alemão, é alienante. Portanto, é muito difícil sentir prazer ou apaixonar-se. Ponto para os que,
mesmo nas condições de alienação do trabalho, se “apaixonam”.
Fiquei a pensar sobre o significado das palavras e imagens dos “professores apaixonados”.
Dialeticamente, como se diz no bom sociologuês, em minhas reflexões mesclam-se o
estudante e o professor; a criança, o adolescente e o adulto. Recordei, com carinho e saudade,
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Como educador e pai, a persistência do método decoreba me preocupa. Observo o sofrimento dos acadêmicos e
das minhas filhas para corresponder às exigências dos seus professores/as. Escrevi algumas reflexões sobre o
tema, publicadas na Revista Espaço Acadêmico. Os leitores interessados podem acessá-las nos links:
À mestra e ao mestre com carinho e compreensão!
O engodo do vestibular e os dilemas da classe média empobrecida
“Estudo Errado”: Qual é a capital de Kubanacan?
As dimensões da relação aprender-ensinar
Vale nota, professor?!
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Publicado em 13 de outubro de 2007
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Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/084/84ozai.pdf
da primeira professora. Lembrei que, ao completar 18 anos de idade, na época morava em São
Paulo, retornei ao nordeste para rever a cidade da minha infância e conhecer a que nasci. Fui
informado que a professora morava na periferia de São Paulo. Peguei o endereço e, ao
retornar, fui visitá-la. Não sei se ela compreendeu o gesto, mas demonstrou contentamento.
Foi o reconhecimento e gratidão a quem marcou a minha vida.
Recordei também dos que me ensinaram os primeiros conceitos e teorias; dos que me
apresentaram os rudimentos das línguas estrangeiras, em especial da minha professora de
francês, no ginasial; lembrei do professor de matemática que me estimulou a aprender o jogo
de xadrez – embora eu ainda seja péssimo xadrezista; do professor de história que me ensinou
o significado didático da polêmica; recordei, ainda, da graduação e dos que, mais do que
conteúdos, me ensinaram pelo exemplo. No mestrado, tive excelentes professores, em
especial o meu orientador Maurício Tragtenberg. O mesmo no doutorado, em que convivi
com professores experientes e tive a alegria de ser orientado pelo Nelson Piletti. Da infância
ao doutorado, há os que marcaram a minha vida, os que fizeram a diferença, os que jamais
esquecerei e a quem sou grato.
“Professoras apaixonados” são os que fazem a diferença, os que marcam a vida dos seus
alunos. Há também os que deixam marcas negativas e traumáticas. Em minha vida de
professor, desde a época que trabalhei no ensino público em Diadema (SP) e no Guacuri
(zona sul da capital paulistana), conheci estudantes que ficaram traumatizados devido à
determinadas atitudes dos seus professores. Tenho dúvidas se, neste caso, gostam da
profissão.
Há, ainda, os professores apaixonados pelo conteúdo, pelas disciplinas que trabalham. Eles
dão o exemplo do amor ao saber, mas pecam por darem mais importância às abstrações dos
conceitos e teorias do que às relações humanas que se estabelecem na atividade docente.
Conclui que sou alguém de sorte. Faço o que gosto. Sou apaixonado pelo que faço. Agradeço
aos meus professores e professoras e, também, aos discentes. Obrigado e parabéns aos
professores, apaixonados ou não, pelo nosso dia!
Deus na Escola?! 5
A Assembléia Le gislativa do estado de São Paulo aprovou a lei que prevê a formação de um
grupo de estudo cuja tarefa é elaborar o manual “Deus na Escola” a ser utilizado nas escolas.
O projeto foi vetado pelo governador do estado, José Serra.
Não deixa de ser curioso que as nobres almas que freqüentam o legislativo paulista imaginem
que o Todo Poderoso necessita dos seus préstimos para se fazer presente no ambiente escolar.
E sob a forma de um manual a ser usado por educadores, transformados em soldados do
exército de salvação do Senhor. Ironicamente, a autora do projeto afirmou que “tentar impedir
a entrada de "Deus na escola" é, no mínimo, um ato antidemocrático”. 6 Deus não é
Onipresente? Por que precisaria da ajuda da nobre deputada para adentrar às escolas? Seria
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17 de outubro de 2007
O projeto é de autoria da deputada Maria Lúcia Amary, líder do PSDB na Assembléia Legislativa do estado de
São Paulo. A defesa da autora está disponível em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=50993.
Roseli Fischmann, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e
expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia, defendeu o veto
ao projeto em artigo publicado na Folha de S. Paulo e disponível em
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=50992
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Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/084/84ozai.pdf
um caso de incredulidade na capacidade do Divino? Talvez ela se refira a si mesma e aos que
se consideram porta-vozes do Altíssimo!
Isso me fez lembrar uma historinha. A professora entra na sala de aula e se apresenta aos
adolescentes. Ela os chama de “meus filhos”. Eles estranham, afinal têm as suas genitoras e
não imaginam ter outra mãe, muito menos que fosse a professora. Ela pede que não estranhem
e explica que os ama como “filhos”. Risinhos, troca de olhares irônicos, e a “aula” continua.
A “mãe-professora”, cheia de amor, diz que precisa ter uma conversa muito séria. Os
estudantes se entreolham. Será que ela falará sobre o “diga não às drogas”? O assunto é sexo.
Em tom maternal, ela pede que mantenham a abstinência sexual, que se guardem para os seus
respectivos esposos e esposas e não usem camisinha. Ainda sobram críticas ao presidente da
república que teria defendido o uso do preservativo.
Nada contra a liberdade de opinião e o direito da professora- mãe ter posições sobre temas
controversos na sociedade. Porém, vale destacar que: 1) a aula não era de ensino religioso (e
mesmo se o fosse me parece que não se trata de determinar comportamentos, mas de
estimular o debate); 2) a professora, mesmo que com a melhor das intenções, foi motivada por
suas convicções religiosas e confundiu o seu papel de educadora laica com o de catequista,
sem atentar para as diferenças que caracterizam a sua igreja e a sala de aula; 3) desrespeita,
ainda que não tenha intenção, os que não comungam da mesma religião e usa
inadequadame nte a autoridade de professora; 4) ela confunde o papel que deve desempenhar
enquanto educadora com a função de mãe.
É admissível, e até desejável, que os educadores estimulem os alunos a discutirem temas
polêmicos, com o cuidado de prepará- los para esse debate, evitando que resvalem para o
preconceito, racismo, intolerância religiosa e etc. Mas não como sermão e de maneira
condicional. A professora, mesmo que se veja como mãe dos educandos, tem a autoridade
instituída e sua fala tem peso – ou deveria ter. Pode influir e essa influência não é
necessariamente benéfica.
Será que os jovens aceitaram a moral religiosa da professora? Mas se não se “controlam” e
têm relações sexuais, não seria melhor orientá- los a usar a camisa-de-vênus? Na ótica
moralista da “mãe-professora”, se as jovens engravidam ou contraem Aids e doenças
sexualmente transmissíveis, isso se deve ao pecado, ao fato de não terem dado ouvido às suas
palavras. É um castigo, uma punição.
Contudo, talvez o mais grave seja a confusão entre o laico e o religioso. Tal professora é o
exemplo de como o espaço laico da escola é tomado como extensão do templo e, portanto,
sujeito ao discurso da religião. E isso sem que exista o tal manual. Imagine esse tipo de
educadora legitimada por manuais e com a certeza de que expressa a vontade divina, como se
o Todo Poderoso falasse por sua boca. Deus nos livre!
Professor(a) seminarista 7
Não se trata da formação eclesiástica, mas do recurso usado pelos docentes, em especial no
ensino superior, de dividir as turmas em grupos, os quais ficam responsáveis por apresentar
determinados temas. Enquanto expediente didático alternativo à aula expositiva centrada no
professor, é uma idéia louvá vel e apresenta aspectos positivos. Os acadêmicos são
estimulados a pesquisar, se organizar enquanto coletivo e planejar a apresentação.
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10 de novembro de 2007.
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Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/084/84ozai.pdf
O professor Antonio Joaquim Severino, em seu livro sobre a Metodologia do Trabalho
Científico, indica as condições necessárias para que o seminário atinja o objetivo de “levar
todos os participantes a uma reflexão aprofundada de determinado problema, a partir de textos
e em equipe”. É preciso que todos tenham “um contato íntimo com o texto básico, criando
condições para uma análise rigorosa e radical do mesmo”; que o estudo leve “à compreensão
da mensagem central do texto, de seu conteúdo temático”; “à interpretação desse conteúdo, ou
seja, a uma compreensão da mensagem de uma perspectiva de situação de julgamento e de
crítica da mensagem”; e que propicie a “discussão da problemática presente explícita ou
implicitamente no texto”. “Essas etapas”, salienta o professor, “devem ser preparadas e
realizadas de acordo com as diretrizes da leitura analítica, sendo que a análise textual, pelo
menos em cursos avançados, deve ser realizada previamente por todos os participantes”. 8
Portanto, realizar o seminário não é tarefa fácil!
O problema é que a prática dos seminários nem sempre corresponde ao ideal. Embora tenha o
objetivo de estimular a participação do acadêmico, e neste sentido favorecer a sua autonomia
intelectual, esta prática tende a incorrer em vícios que comprometem o processo de ensinoaprendizagem. A responsabilidade de preparar o seminário também pressupõe o
convencimento dos acadêmicos para que efetivem as condições necessárias ao bom
desempenho e sucesso da atividade. Não é fácil! Estes, em geral, foram treinados a
passivamente ouvir o professor, anotar e fazer a prova. Para eles, a aula só é aula se centrada
no discurso professoral; tendem a medir a qualidade da aula pelo total de anotações no
caderno.
Por outro lado, o excesso de tarefas a que são submetidos leva-os a adotar estratégias de
sobrevivência. Neste caso, é comum a divisão taylorista do trabalho intelectual: cada um faz
parte da atividade, o que na maioria das vezes indica que lerá apenas o trecho sobre o qual
falará. Há os que se fazem fisicamente presente, sem qualquer participação efetiva – isso, sem
contar os que descaradamente constam do grupo apenas para “tirar a nota”, sem que
efetivamente dêem qualquer contribuição. Em suma, não há trabalho coletivo e o aprendizado
individual fica comprometido na medida em que a apreensão, se ocorre, se dá de forma
parcelada.
Os equívocos são amplificados em relação à turma. Nas condições descritas, cada grupo
preocupa-se apenas com o seu tema e em se livrar da tarefa. Torna-se difícil manter todos
concentrados e envolvidos, de forma que se produza a discussão e aprofundamento do tema. E
se as apresentações se estenderem, há o risco de que as aulas seguintes sejam esvaziadas.
Quem já apresentou, simplesmente não comparece. Os professores, é claro, podem cobrar a
presença e estabelecer critérios que obrigue os acadêmicos a participar, mas isso se revela
ineficaz. Ainda que presentes, ficam alheios à dinâmica e chegam até a adormecer. Em suma,
nestas condições o seminário tende a fracassar e apenas preenche o tempo da aula. Qual a
responsabilidade dos professores nisso?
O que prova a prova? 9
Os tempos de aprendizagem são diferenciados; a capacidade de aprender, diferente de
memorizar, não é igual para todos. Em vez de estimular a solidariedade, o sistema instiga a
8
Sobre as orientações para a realização de seminários, ver: SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do
Trabalho Científico. São Paulo: Cortez Editora, 2007, pp. 89-98 (23ª edição revista e atualizada).
9
Publicado em 21 de novembro de 2007.
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Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/084/84ozai.pdf
concorrência e desestimula os que não conseguem as boas e ótimas notas. Eis um dos fatores
de evasão escolar. Ao confundir memorização com aprendizado, o aluno nota DEZ vive a
ilusão de ser o melhor, o mais inteligente. Dê-lhe uma questão que exija análise e reflexão, ou
seja, simplesmente pensar, e ver-se-á as dificuldades. Já o aluno que tira nota baixa, tende a se
ver como pouco inteligente. O sistema se fundamenta no pressuposto de que há uma
inteligência padrão e que é possível medi- la. A nota é sobrevalorizada e os meios se
transformam em fins.
Como medir capacidades diferenciadas quando se homogeneíza os processos pedagógicos?
Como explicar diferenças quantitativas ínfimas? O que justifica que um aluno seja reprovado
porque não atingiu a nota 6.0, mas apenas 5.7 ou 5.8? Será culpa do aluno ou capricho do
professor? Quem garante que a subjetividade do professor não influencia? Se ele avaliasse o
aluno em outras circunstâncias a nota seria a mesma?
O pressuposto em que se fundamenta o sistema de provas é um engodo. Quantos de nós,
professores, passaríamos novamente num exame vestibular? É simples: o que memorizamos,
com o tempo esquecemos. Os pais que acompanham a vida escolar dos filhos sabem- no.
Quantas vezes não conseguimos responder suas perguntas sobre conteúdos que há muito
foram excluídos da nossa memória? Façamos um teste simples: quantos de nós não se
atrapalharia se tivesse que responder às questões colocadas aos nossos alunos por professores
de outras disciplinas? Quantos não nos tornamos dependentes do livro didático ou dos textos
adotados no ensino superior? Sabemos tudo da nossa área de conhecimento?
O sistema da prova também estimula a fraude: da simples cola à encomenda do trabalho a um
colega da própria turma, geralmente considerado c.d.f. ou mais inteligente, que aproveita para
ganhar uns trocados. O aluno que tem mais recursos pode comprar o trabalho em sites que
oferecem esse tipo de serviços ou, por seu próprio “esforço”, pesquisar na Internet, salvar,
selecionar o conteúdo, copiar, colar, editar, fazer uma bela capa. Eis um trabalho nota DEZ!
Ainda há o recurso de comprar o CD na banca de jornal (os quais oferecem trabalhos
praticamente prontos). Os alunos sem recursos financeiros podem simplesmente ir à
biblioteca e copiar do livro ou da enciclopédia. São estratégias de sobrevivência! Contudo,
talvez a conseqüência mais nefasta desse sistema seja o assassinato da curiosidade intelectual
da criança e do jovem: estuda-se apenas pela nota.
Alguns até tentam ser criativos e adotam mecanismos que disfarçam a tortura – tanto para o
aluno quanto para o professor – de ter que dar a prova e a nota. Inventam-se coisas como
simulacros de educação continuada que se resume à mera transformação da nota bimestral em
semestral. A tortura passa a ser aplicada em doses homeopáticas: tudo passa a valer pontos e a
prova bimestral é substituída por várias provinhas e atividades que somadas valem DEZ. E
isso é apresentado aos pais e alunos como avanço. Estes, em geral, nem são consultados, mas
apenas informados.
O que prova a prova afinal? Nada. Ela é um instrumento burocrático de controle que legitima
o poder da instituição e, em decorrência, dos professores. Afinal, como controlar a turma sem
a “prova”? E o pior é que parece não ter como romper com o esquema. Mesmo quem
discorda, tem que “dar a nota”. Não obstante, é preciso avaliar. Como fazê- lo de uma maneira
justa e que estimule a solidariedade e o aprendizado?
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