UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO SUL
REVISTA DA ESCOLA DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Em foco
Ensaios
Espaço Aberto
SIRC
Sport Research
Inteligence sportive
G OV E R NO FE D E RAL
MINIST ÉRIO DO E SPO RT E
EDITORES
Vicente Molina Neto (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR)
Marco Paulo Stigger (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR)
COMISSÃO EDITORIAL
GOVERNO FEDERAL
MINISTÉRIO DO ESP ORTE
SIRC
Sport Research
Inteligence sportive
Vicente Molina Neto (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR)
Marco Paulo Stigger (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR)
Ivone Job (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR)
CONSELHO EDITORIAL
Alex Branco Fraga (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR), Amarílio Ferreira Neto (Universidade Federal do
Espírito Santo - BR), Ana Márcia Silva (Universidade Federal de Santa Catarina - BR), Conrado Vilanou (Universidade de
Barcelona ES), Francisco Carreiro da Costa (Universidade Técnica de Lisboa PT), Gertrud Pfister (Universidade de
Copenhague DM), Janice Zarpelon Mazzo (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BR), José Devís Devís
(Universidade de Valência ES), José Pedro Sarmento (Universidade do Porto PT), Jusamara Vieira Souza (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - BR), Luis Henrique Toledo (Universidade Federal de São Carlos BR), Marcus Aurélio Taborda
de Oliveira (Universidade Federal do Paraná - BR), Paulo Evaldo Fensterseifer (Universidade Comunitária de Ijuí BR), Reiner
Hidebrandt-Stramann (Universidade Baunschwig DE), Silvana Vilodre Goellner (Universidade Federal do Rio Grande do
Sul - BR), Yara Maria de Carvalho (Universidade de São Paulo - BR)
PARECERISTAS
Alex Branco Fraga (UFRGS), Alexandre Palma (Universidade Gama Filho), Alexandre Vaz (UFSC), Amarilio Ferreira Neto
(UFES), Amauri Bassoli de Oliveira (Universidade Estadual de Maringá), Ana Márcia Silva ( UFSC), Antônio Jorge Soares
(Universidade Gama Filho), Carlos Adelar Abaíde Balbinotti (UFRGS), Carmen Lúcia Soares (UNICAMP), Celi Nelza Zulke
Taffarel (UFBA), Christianne Luce Gomes (UFMG), Conrado Vilanou (Universidade de Barcelona), Dagmar Elisabeth
Estermann Meyer (UFRGS), Edison Manoel (USP), Edson Gastaldo (UNISINOS), Elenor Kunz (UFSC), Fabiano Pries Devide
(Universidade Salgado de Oliveira), Fernanda Simone Lopes de Paiva (UFES), Fernando Mascarenhas (UFG), Gertrud
Pfister (Universidade de Copenhague), Giovani Pires de Lorenzi (UFSC), Helder Camara Resende (UGF), Hugo Lovisolo
(UERJ), Ingrid Marianne Baecker (UFSM), Janice Zarpelon Mazo (UFRGS), Kátia Rubio (USP), José Devís Devís
(Universidade de Valência), Lino Castellani Filho (UNICAMP), Luiz Carlos Rigo (UFPEL), Manuela Hasse (Universidade
Técnica de Lisboa), Marco Paulo Stigger (UFRGS), Marcus Aurélio Taborda de Oliveira (UFPR), Maurício Roberto da Silva
(UFSC), Nádia Cristina Valentini (UFRGS), Nelson Carvalho Marcelino (UNIMEP), Paulo Evaldo Fensterseifer (UNIJUI),
Pedro Sarmento (Universidade do Porto), Reiner Hildebrandt Stramann (Universidade de Baunschweig), Ricardo Lucena
(UFPE), Rosane Maria Kreusburg Molina (UNISINOS), Silvana Vilodre Goellner (UFRGS), Tarcísio Mauro Vago
(UFMG),Teresinha Petrúcia da Nóbrega (UFRN), Valter Bracht (UFES), Vicente Molina Neto (UFRGS), Victor Andrade de
Melo (UFRJ), Yara Maria de Carvalho (USP), Zenólia Cristina Campos Figueiredo (UFES)
ASSESSORIA ADMINISTRATIVA: Heloisa Perlott Carmona (UFRGS)
Todos os direitos reservados. Qualquer parte desta publicação poderá ser reproduzida para fins acadêmicos
desde que citada a fonte. Este periódico encontra-se indexado na Base de Dados SportDiscus
(http://www.sirc.ca/products/sportdiscus.cfm) e LAPTOC (http://lanic.utexas.edu/larrp/laptoc.html).
P
A/Z
Movimento/Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Escola de Educação Física - Vol. 1, n. 1 (set. 1994-)
Porto Alegre, 1994-.
Vol 12, n. 2; maio/agosto 2006.
A partir do V. 8, a periodicidade passa a ser quadrimestral, com numeração
de fascículos
1 a 3.
Quadrimestral.
ISSN 0104-754X
CDU: 796:301
Ficha catalográfica elaborada por Cíntia Cibele Ramos Fonseca, CRB-10/1313
FOTO: CAGIGAL, José Maria.
p. 49
. Madrid: Prensa Española, 1975.
SUMÁRIO
Contents
EDITORIAL
Editorial
EM FOCO
On focus
Artigos Originais
Articles
Pesquisar exige interrogar-se: a narrativa como estratégia de
pesquisa e de formação do(a) pesquisador(a)
9
Elisandro Schultz Wittizorecki, Fabiano Bossle, Lisandra Oliveira e Silva, Lusana
Raquel de Oliveira, Maria Cecília Camargo Günther, Marzo Vargas dos Santos,
Mônica Urroz Sanchotene, Rosane Kreusburg Molina, Vera Regina Oliveira Diehl,
Vicente Molina Neto
Corpo a corpo com as jovens: grupos focais e análise de
discurso na pesquisa em educação física
35
José Damico
Envelhecimento saudável: uma revisão das pesquisas em língua
inglesa
69
Paula J. Gardner
ENSAIOS
Ensaios
“Imagens em ação”: uma pesquisa-ação sobre o uso de matérias
televisivas em programas de educação física do ensino fundamental
e médio
95
Mauro Betti
A dialética materialista e a prática social
121
Augusto Silva Triviños
O modo de produção: categoria do materialismo histórico
143
Magda Maria Colao
ESPAÇO ABERTO
Other Issues
Bullying nas aulas de educação física
173
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
O conteúdo da intervenção profissional em educação física: o ponto
de vista de docentes de um curso de formação profissional 199
Paula Evelise Favaro, Glauce Yara do Nascimento, Jeane Barcelos Soriano
Estatuto de defesa do torcedor: um diálogo com o futebol
pelotense
223
Luis Carlos Rigo, Alan Goulart Knuth, Luciano Jahnecka, Ricardo Prestes Tavares
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
241
Fernando Renato Cavichiolli, Fernando Marinho Mezzadri, Fernando Augusto Starepravo
Nota do Editor
273
NORMAS
Rules for publication
Normas para publicação
277
Editorial
A presente edição focaliza as relações emergentes entre a
Pesquisa Qualitativa, as Ciências Humanas, a Educação Física e
o Esporte. Essa proposição tem sentido, na medida em que trata de
dar visibilidade na área de conhecimento Educação Física, ao que
Norman Denzin identificou de movimento epistemológico
paradigmático nas ciências humanas e sociais, em outras palavras,
o movimento qualitativo.
Entre os méritos dos movimentos renovadores da Educação
Física das últimas décadas do século XX, está o fato de incluir no
debate dessa área de conhecimento, novas perspectivas
epistemológicas sobre os tradicionais objetos de conhecimento da
cultura corporal do movimento humano, por exemplo, a educação
física, o esporte e o lazer. Também foram alvos desse
questionamento, as decisões metodológicas das investigações científicas nessa área, gerando, em certos casos, alguma aversão à
questão do método e dando vazão, ao que podemos chamar, grosso modo, de "qualitativismo". Assim, se é bem verdade que a
pesquisa qualitativa está bem entranhada no contexto da produção
de conhecimento da área de conhecimento Educação Física, havendo pluralidade de desenhos metodológicos, também é bem
verdade que assistimos inúmeros descuidos no que tange ao rigor
científico e a profundidade da discussão sobre esse paradigma
metodológico.
A revista Movimento, consciente de sua responsabilidade
com o desenvolvimento do conhecimento da área e dos pesquisadores que se dedicam a pensar e pesquisar a cultura corporal do
movimento humano apresenta um conjunto de artigos onde aparecem novos e diferentes desafios para a pesquisa qualitativa, bem
como desenhos contemporâneos desse modo de pesquisar. São
perspectivas já utilizadas com sucesso no âmbito da pedagogia,
da antropologia e da sociologia que, recentemente, têm obtido a
atenção dos pesquisadores militantes na Educação Física.
Na seção Em Foco aparecem as contribuições de:
Na seção Espaço Aberto, estão as contribuições de: nome
dos autores e foco do artigo.
A Revista Movimento tem se esmerado para que os leitores
tenham informação atualizada e oferecidas através de um projeto
editorial de qualidade. Nesse sentido, esperamos que a presente
edição agrade ao conjunto de seus leitores.
Boa Leitura.
Os Editores
Mulheres no Esporte: Corporalidades e Subjetividades
Em foco
Artigos Originais
, Porto Alegre, v.12, n. 01, p. 11-29, janeiro/abril de 2006.
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Em foco
Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
Pesquisar exige...
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Pesquisar exige interrogar-se:
A narrativa como estratégia de pesquisa e de
formação do(a) pesquisador(a)
Elisandro Schultz Wittizorecki1; Fabiano Bossle2; Lisandra Oliveira e Silva3
Lusana Raquel de Oliveira4; Maria Cecília Camargo Günther5
Marzo Vargas dos Santos6; Mônica Urroz Sanchotene7
Rosane Kreusburg Molina8; Vera Regina Oliveira Diehl9
Vicente Molina Neto10*
Resumo: Este artigo registra a recente experiência dos(as)
autores(as) num exercício de formação através da construção narrativa. Os objetivos, nesse exercício, foram o de
aprender e o de interrogar-se sobre até que ponto os estudos que utilizam a perspectiva narrativa podem ser,
concomitantemente, processos de formação e processos de
investigação. A oportunidade de fazer essa aprendizagem,
construída no interior do grupo, exigiu aprender a trabalhar
nos limites do tensionamento da relação dialética entre o
individual e o coletivo. Apresentamos, aqui, aprendizagens
efetuadas com o exercício narrativo, suas possibilidades
para o campo de estudos da formação de professores(as)
e as limitações teórico-metodológicas encontradas.
Palavras-chave: Narrativas. Docente. Pesquisa qualitativa. Educação física. Pesquisadores.
1
Mestre em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Professor do Curso de Educação
Física da ULBRA/Canoas.
2
Mestre em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Professor dos Cursos de Educação Física na UNIVATES e FACOS.
3
Mestranda em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Apoio: CAPES.
4
Licenciada em Educação Física (UFRGS).
5
Doutoranda em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
6
Mestrando em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Professor da Rede Municipal
de Ensino de Porto Alegre.
7
Mestranda em Ciências do Movimento Humano (UFRGS). Professora da Rede Municipal
de Ensino de Porto Alegre.
8
Doutora em Ciências da Educação (Universidad de Barcelona). Professora na UNISINOS.
9
Mestranda em Ciências do Movimento Humano (UFRGS).
10
Doutor em Ciências da Educação (Universidad de Barcelona). Professor de Graduação
e Pós-Graduação na EsEF-UFRGS. Apoio: CNPq.
* Os autores são integrantes do Grupo de Pesquisa Formação de Professores e Prática
Pedagógica em Educação Física e Ciências do Esporte (F3P-EFICE), vinculado à Escola
de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e registrado no CNPq.
Site: http://www.ufrgs.br/esef/f3p-efice.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
1 Introdução
Examinar as histórias de vida, as memórias, as narrativas dos
sujeitos como possibilidade de produção do conhecimento não é
exatamente novidade no campo do fazer científico, especialmente
quando se trata de estudar os(as) docentes e seu trabalho. Nóvoa
(2000, p.18) afirma que a utilização de "abordagens (auto) biográficas é fruto da insatisfação das ciências sociais em relação ao
tipo de saber produzido e da necessidade de uma renovação dos
modos de conhecimento científico". A própria Nova História emerge dessa insatisfação e dessa necessidade, trazendo à tona procedimentos metodológicos que vislumbram a história - ou a história
- vista a partir de diversos olhares e de diversas fontes. As narrativas de professores (as) - procedimento metodológico que ora
exploramos e procuramos aprender - representam, portanto, uma
possibilidade dessa perspectiva de produzir outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do cotidiano
desses (as) professores (as).
"Não há experiência humana que não possa ser expressa na
forma de uma narrativa" (BAUER; JOVCHELOVITCH, 2002).
De alguma forma narramos. Narramos fatos, feitos, fenômenos.
Narramos experiências, sentimentos, outras pessoas e nos narramos. Vale dizer que os textos científicos também se constituem, de
forma elaborada, coesa e parametrizada, em narrativas: narram
descobertas, compreensões, interpretações, recomendações. Portanto, narrar é dimensão fundamental de comunicação humana e
de atribuição de significado ao mundo.
No entanto, as narrativas são infinitas em sua variedade, e
nós as encontramos em todo o lugar. Bauer e Jovchelovitch (2002)
afirmam que comunidades, grupos e culturas localizadas contam
histórias, palavras e sentidos que são específicos à sua experiência e ao seu modo de vida, fazendo uso do "léxico do grupo social", o que constitui sua perspectiva de mundo. Dessa forma, pen, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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sar sobre as modalidades de narrativas1 , no âmbito da reflexão
sobre o trabalho e a formação de professores(as), significa ter
contato com algumas categorias, concepções, descrições e formas
de narrar e não com outras. Ou seja, professores(as) narrando suas
trajetórias, sua construção, suas decisões revelam, provavelmente, conteúdos e discursos pautados pelas marcas e pela influência
da cultura docente - muito diferente da narrativa de vinicultores,
enfermeiros ou metalúrgicos.
Goodson (2000) destaca que há algum tempo está convencido que os estudos das histórias de vida dos (as) professores (as)
são muito importantes na análise do currículo e da escolaridade,
sobretudo porque "[....] podem ajudar-nos a ver o indivíduo em
relação com a história do seu tempo, permitindo-nos encarar a
intersecção da história de vida com a história da sociedade".
(GOODSON, 2000, p.75). Ou seja, as narrativas podem ser um
dos instrumentos que melhor viabilizam a coleta de informações,
na perspectiva de mostrar ao investigador situações e explicações
de que, parafraseando a obra de Hargreaves (1996), "cambiando
os tempos, cambiam os professores" e suas ações.
Nosso grupo de pesquisa "Formação de Professores e Prática Pedagógica em Educação Física e Ciências do Esporte" (F3PEFICE) tem construído a maior parte de suas investigações
(MOLINA NETO, 1996; GÜNTHER, 2000; SCHERER, 2000;
BONONE, 2000; FAGGION, 2000; WITTIZORECKI; MOLINA
NETO, 2005; BOSSLE, 2005; PEREIRA, 2004) tendo a etnografia
como opção metodológica (MOLINA NETO, 1999). A partir de
descrições densas (GEERTZ, 1989) temos buscado a compreensão dos significados atribuídos por professores (as) de Educação
Física a seus modos de vida, crenças, valores, perspectivas, motivações e, como diz Woods (1995), as suas representações e rela1
Utilizamos essa expressão para dar conta das diferentes possibilidades de estudo e
ferramentas que visam, em última instância, trazer à tona memórias, episódios, biografias,
enfim reconstruir a história dos sujeitos.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
ções construídas e sustentadas no cotidiano escolar.
Aproximamo-nos da perspectiva narrativa nos primeiros meses
de 2005 e iniciamos nossa trajetória pela leitura de "A Vida nas
Escolas", de Peter McLaren (1997). Nesse livro, o autor faz referência à sua própria trajetória de professor, narrando, refletindo e
se posicionando criticamente ante os acontecimentos vividos no
cotidiano escolar. No decorrer da leitura e estudo desse texto surgiu a necessidade de discutirmos especificamente alguns
questionamentos formulados pelo autor. Empreendemos, então, a
tarefa de responder uma das questões2 proposta por McLaren (1997),
com a intenção de refletir nossa ação na qualidade de professores(as)
iniciantes, centrando o relato na experiência profissional, nas dificuldades encontradas e como construímos nossas soluções. Com o
objetivo de qualificar nosso propósito de formação investigadores(as) - nos propusemos a elaborar uma narrativa escrita sobre a experiência de como nos tornamos professores(as).
Concomitantemente, o grupo identificou a necessidade de
realizar uma revisão bibliográfica que sustentasse e qualificasse
as reflexões sobre a perspectiva narrativa e sua utilização no campo da Educação Física. A revisão evidenciou indicativos interessantes sobre as possibilidades que tanto as histórias de vida quanto as narrativas autobiográficas oferecem aos processos de pesquisa e de formação de professores(as). Por exemplo, para Nóvoa
(2000) o estudo a partir das experiências de vida dos
professores(as) assume importância desde o final dos anos de 1970.
Esse autor afirma que a sua aproximação com a perspectiva narrativa permitiu-lhe produzir e analisar sua própria história de vida,
sua própria maneira de pensar e agir, tanto no campo da formação
docente quanto da investigação. Por sua vez, Souza (2004) destaca o crescente número e a diversidade de pesquisas realizadas na
2
“Como você avaliaria meu papel como um professor iniciante? O que você teria feito
diferente se você estivesse no meu lugar, e por quê?” (McLAREN, 1997, p. 226).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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perspectiva (auto)biográfica, tanto no cenário internacional quanto no Brasil. A seguir, apresentamos nossas reflexões sobre alguns
textos acadêmicos que tratam das narrativas e de seu uso no campo da Educação Física.
2 A análise sobre o que lemos
Uma busca nos arquivos de periódicos3 brasileiros específicos da Educação Física revelou, de imediato, a baixa ocorrência
de artigos que adotam histórias de vida ou narrativas autobiográficas de professores(as) como referencial teórico-metodológico.
A revisão totalizou cinco artigos publicados entre 1997 e 2005,
assim distribuídos: três artigos em periódicos publicados em 1997,
um em 2000 e igualmente um em 2005.
Após leituras cuidadosas desse acervo, procuramos
caracterizá-las isoladamente e, num segundo momento, buscamos
possíveis pontos de aproximação entre eles. A análise evidenciou
um conjunto de abordagens bastante diverso, inclusive na forma
de compreensão e no tratamento das histórias de vida e das narrativas autobiográficas.
No estudo de Betti e Mizukami (1997), elaborado a partir
de uma entrevista semi-estruturada de caráter autobiográfico, histórias de vida aparecem como referencial teórico e a investigação
é caracterizada como um estudo de caso, de natureza descritiva e
analítica. As autoras tiveram como foco o resgate do processo de
construção dos saberes docentes de uma professora de Educação
Física aposentada4 , interpretando os significados por ela atribuídos a esses saberes. A investigação centra-se no conhecimento
3
Foram analisados os seguintes periódicos: Revista Brasileira de Ciências do Esporte
(incluindo anais de Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte), Motriz, Movimento, Licere,
Pensar a prática, Conexões, Motus Corporis e Motrivivência.
4
Esse artigo integra uma pesquisa mais ampla que investigou trajetórias pessoais e profissionais de professores aposentados de diferentes disciplinas.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
como uma categoria importante no processo de formação docente
e os diversos artigos que integram a obra "Vida de Professores",
de António Nóvoa5 (2000) aparecem como principal referência.
No mesmo ano, foi publicado o artigo de Souza (1997) que
discute as representações sociais da cultura negra através da dança e seus atores. Neste caso, história de vida aparece como técnica de entrevista, posteriormente submetida à análise de conteúdos
de Bardin (1977). Segundo Bardin (1977), as categorias são elaboradas à luz da teoria das representações sociais no enfoque
sociofilosófico marxista. Souza (1997, p. 29-30) destaca, ainda,
que busca, através da metodologia escolhida, os "significados da
fala do cidadão comum, do homem que está esquecido pela cultura dominante, a partir dos aviltamentos socioculturais que a população vive na sociedade moderna."
É interessante observar que, ao contrário de Betti e
Mizukami (1997), nesse caso os colaboradores não são professores, mas atores. No entanto, o clássico de Nóvoa (2000) é novamente citado, e a aproximação pode ser justificada através da
impossibilidade de isolar as experiências pessoais das profissionais. Nos dois textos, embora utilizados de forma diferente, a
centralidade das experiências pessoais na constituição dos saberes necessários à vida profissional está fortemente evidenciada.
Para Betti e Mizukami (1997), a história de vida de uma
professora, relatada em uma entrevista de caráter autobiográfica
oferece indicativos para reflexões mais amplas em torno da formação de professores (as). Vale lembrar que, para essas autoras,
história de vida é classificada como fonte ou como referencial
teórico. Já, para Souza (1997), a história de vida é considerada
uma técnica metodológica que possibilita uma "[...] apropriação
da realidade dos sujeitos ao relatarem a sua experiência", à medi-
5
A primeira edição desta obra data de 1992, ano que é referenciado no artigo consultado.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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da que, a partir das próprias narrativas, esses sujeitos representam
seu referencial de vida. Souza também pondera que ao narrarem
suas histórias os sujeitos têm, também, a possibilidade de re-elaborar a própria cultura corporal.
O texto de Capraro (2000), talvez, seja o que mais destoe em
relação aos demais artigos revisados no nosso estudo. Para esse
autor, a expressão história de vida não está vinculada à noção de
referencial metodológico ou teórico. O autor discorre sobre o estilo da obra de Norbert Elias (1995), na qual a vida do famoso
músico é narrada de forma que une literatura e análise sociológica. Trata-se, portanto, de uma análise crítica ao trabalho desenvolvido por Elias, destacando os méritos literários de sua obra aliados às concepções metodológicas próprias de outras obras também suas. Desse modo, a obra de Elias, segundo Capraro, utiliza
com fluidez modelos macro e microssociológicos e chama a atenção para a forma pela qual o autor insiste na necessidade de que o
leitor compreenda o individual através da influência da sociedade.
Recentemente, Ayoub (2005) apresentou sua investigação no
XIV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, em formato de
comunicação oral, realizada entre os anos de 2002 e 2005. A autora reúne 290 cartas escritas por professoras integrantes da graduação, pós-graduação e cursos de extensão da Faculdade de
Educação do Estado de São Paulo. As cartas, escritas ao longo do
período citado, tratam das memórias da Educação Física escolar
dessas professoras. Segundo a autora, as diferentes visões, expressas pelas colaboradoras, possibilitam a identificação de diferentes papéis que a Educação Física tem assumido ao longo dos
anos. Destacamos, aqui, a forma como esse estudo foi desenvolvido. As narrativas foram escritas em formato de cartas, pois, segundo a autora, esse formato, "[. . . ] surgiu como uma possibilidade de deixar que as idéias fluíssem de forma mais solta, mais
pessoal, atenuando as dificuldades da escrita que encontramos
freqüentemente nos cursos de formação de professora" (AYOUB,
2005, p. 3). A pesquisadora, estrategicamente, lançou mão de um
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Em foco
Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
recurso que facilitou a desenvoltura de suas colaboradoras para a
obtenção de relatos mais completos. A proposta foi feita de modo
que as professoras imaginassem um(a) interlocutor(a) para quem
iriam narrar suas lembranças.
Em relação à dinâmica da investigação, depois de escritas, as
cartas foram trocadas para que fossem lidas por outras integrantes
da turma. Seguiu-se à leitura uma discussão em pequenos grupos,
em que as memórias foram tematizadas, de modo a buscar relações entre os diferentes papéis que a área tem assumido na escola.
Nesse momento, os grupos deveriam ter o cuidado de registrar os
pontos mais importantes dessas discussões. Na etapa seguinte,
essas sínteses foram apresentadas para serem discutidas em grande grupo. A diferença de faixa etária entre as professoras possibilitou uma amplitude nos relatos que abrangeu um intervalo entre
cinco e cinqüenta anos atrás, conferindo grande diversidade e fazendo desse material um acervo importante para a pesquisa sobre
os papéis da Educação Física escolar ao longo desse período. A
análise do material possibilitou a elaboração de categorias a partir
dos significados expressos pelas colaboradoras. O grupo das colaboradoras constitui-se de professoras ou estudantes de Pedagogia que exercem a docência em séries iniciais do Ensino Fundamental.
Revisamos, também, as dissertações apresentadas no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano
(PPGCMH) da Escola de Educação Física (EsEF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo que, das 147
pesquisas concluídas6 , nenhuma foi construída sob a perspectiva
teórico-metodológica da narrativa.
Essa breve revisão sobre as pesquisas realizadas em um Programa de Pós-Graduação de referência na área e sobre os recentes
6
Esse número expressa o total de dissertações defendidas até 13 de junho de 2005 no
referido Programa.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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periódicos nos permite constatar, nas pesquisas da área de conhecimento da Educação Física e Ciências do Esporte, um predomínio de outros enfoques em detrimento de estudos de orientação
fenomenológica-hermenêutica. As pesquisas que utilizam
metodologias no paradigma das ciências sociais - as narrativas,
mais particularmente - ainda são recentes na Educação Física, em
que há uma tradição que privilegia determinados temas e
metodologias identificadas com os estudos empírico-analíticos.
Enquanto que na Educação Física as narrativas constituemse em possibilidade metodológica de reduzida utilização, nas áreas de Letras, História e Pedagogia há uma série de estudos realizados nessa perspectiva há mais tempo. Fato que, de um lado, confere sentido à nossa discussão e, de outro, evidencia a situação de
insipiência metodológica em que se encontra a Educação Física
em comparação com essas áreas de conhecimento.
Nossa intenção não é a de protagonizar uma inovação
metodológica, mas, sobretudo, a de experimentar a perspectiva
narrativa como instrumento de produção de conhecimento e de
formação docente no âmbito da Educação Física.
Nossa primeira leitura específica sobre narrativa foi "Experiências de Vida e Formação", de Marie-Christine Josso (2004).
Para essa autora, a perspectiva que favorece a construção de uma
narrativa emerge do embate paradoxal entre o passado e o futuro
em favor do questionamento presente. A construção da narrativa
na formação emprega o recurso de recordações-referências para
compreender como nos formamos por meio de um conjunto de
experiências ao longo da vida, ou seja, propõe a "narração de si
mesmo" a partir de questionamentos sobre o que é minha formação e como me formei. Para Josso (2004), uma experiência
vivenciada torna-se formadora quando considera as aprendizagens
passadas que simbolizam as atitudes, os pensamentos, o saberfazer e os sentimentos do presente, sob a ótica de um processo de
"caminhar para si":
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Elisandro Schultz Wittizorecki, et al.
O processo de caminhar para si apresenta-se,
assim, como um projeto a ser construído no
decorrer de uma vida, cuja atualização consciente passa, em primeiro lugar, pelo projeto
de conhecimento daquilo que somos, pensamos,
fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural (JOSSO, 2004, p.59).
Larrosa (2004), em "A Aventura (Auto) Biográfica: teoria e
empiria", afirma que a consciência de si no presente é sempre
consciência de quem somos neste preciso momento de nossas vidas, destacando a temporalidade da narração em atividades de uso
da memória:
Recordar é algo que nós fazemos e para isso
necessitamos da oportunidade, o encontro da
imaginação e a habilidade da composição. Por
isso, a memória tem a forma de uma narração
desde um ponto passado até o presente em função de um ponto de vista que se faz significativo (LARROSA, 2004, p. 16).
Esse caráter temporal da experiência humana é destacado
por Abrahão (2004) quando afirma que a memória é elementochave do trabalho com pesquisas biográficas. Para essa autora,
o(a) pesquisador(a) trabalha para poder reconstruir elementos
rememorados que permitam a compreensão de seu objeto de estudo - o sujeito, com isso, articula memória e conhecimento buscando edificar uma "arqueologia da memória". Nesse processo de
narração, destaca Souza (2004), há a necessidade de compreensão
de que cada sujeito representa o fato vivido através de escolhas à
luz de uma memória seletiva, e o reconstrói de forma peculiar, de
maneira intencional ou não:
A verdade passa a incorporar um vínculo direto com a subjetividade/profundidade do indivíduo, exprimindo-se na categoria sinceridade e ganhando, ela mesma, uma dimensão fragmentada e impossível de sofrer controles absolutos. A verdade, não mais unitária, mas sem
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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prejuízo de solidez, passa a ser pensada em
sentido plural, como são plurais as vidas individuais, como é plural e diferenciada a memória que registra os acontecimentos da vida (GOMES, 2004, p.14).
A idéia de verdade na perspectiva da "escrita de si" está no
assumir a subjetividade de seu autor como dimensão integrante da
linguagem, construindo a "sua" verdade na narrativa (GOMES,
2004). Para essa autora não compete ao pesquisador dizer "o que
houve ou não" (o que realmente aconteceu), mas compreender o
que autor diz que viu e experimentou em relação ao real e ao
vivido, ou, como afirma Ben-Peretz (2000), de que modo o ser
humano "sente" o mundo.
Becker (1999), ao apresentar o método (auto)biográfico, diz
que há uma "versão selecionada" do que cada sujeito quer narrar
ou do que prefere mostrar aos outros. Como essa abordagem de
pesquisa está centrada no sujeito e nas suas experiências pode
haver riscos na utilização da memória como fonte de análise. Nesse sentido, o autor defende a utilização de outras fontes que possam ser articuladas com a abordagem (auto)biográfica, constituindo um "mosaico" em que cada peça contribui para a compreensão
do quadro como um todo. Essa proposição metodológica se aproxima da perspectiva de Abrahão (2004), de Gómez; Flores e Jiménez
(1996), de Taylor e Bogdan (1996), entre outros autores, que sugerem a adoção do procedimento da triangulação das fontes.
O procedimento de triangular informações é adotado por nosso
grupo de pesquisa. Realizamos muitas de nossas investigações na
perspectiva etnográfica, utilizando instrumentos de coleta das informações como a observação participante, a entrevista, os registros em diário de campo e a análise de documentos. A triangulação
das informações é um procedimento adotado no processo analítico a que essas informações são submetidas.
Dessa forma, entendemos que a narrativa, como instrumento
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de produção de conhecimento, é uma interessante opção na construção dos "mosaicos" de informações que objetivam compreender os
significados que os(as) professores(as) de Educação Física atribuem ao seu fazer cotidiano, à sua formação e às micropolíticas presentes no universo das escolas, porque narrar é considerar percursos de vida e entrar em contato com lembranças (distantes ou próximas), sentimentos e subjetividades, ou seja, é "caminhar para si".
3 O processo narrativo que experienciamos
Primeiramente comecei a pensar sobre minhas
experiências, não de forma cronológica, mas
buscando 'voltar no tempo' e entender por que
elas aconteceram desse jeito e não de outro.
Quais escolhas tive que fazer? O que priorizei
quando comecei a dar aula? Começo a perceber, que na vida, ou ao menos na vida de uma
professora iniciante, não temos tempo ou não
damos a devida importância para entender as
coisas que fazemos. Vamos estudando, ao mesmo tempo em que trabalhamos, realizamos estágios, vamos vivendo da forma que nos é possível7 (Ana, maio de 2005).
Iniciamos a construção desse trabalho com a elaboração de
narrativas escritas individuais sobre a experiência docente de cada
um(a). O ponto de partida consensual foi a questão proposta por
McLaren (1997), que indaga sobre o que faríamos no lugar dele,
referindo-se às situações vividas no início da sua carreira docente.
Vale ressaltar que esse exercício de narrar a experiência docente
foi o primeiro contato que muitos de nós tivemos com a narrativa
escrita. O nosso grupo reúne participantes de diferentes graus de
experiência docente e de diferentes níveis de formação, desde
estudantes de graduação em Educação Física até professores(as)
e doutores(as) com experiência em pesquisa.
7
Fragmento de uma das narrativas construídas por uma integrante de nosso grupo de
pesquisa. Seu nome verdadeiro foi preservado.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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As discussões iniciais tiveram o objetivo de orientar as decisões metodológicas em torno do processo de organização e de
análise dos textos produzidos. Os textos escritos individualmente
sobre as experiências foram socializados com o grupo, para que
cada participante conhecesse as experiências dos colegas, através
das respectivas narrativas. Na continuação do processo optamos
pela ampliação das narrativas a partir das reflexões advindas desse diálogo coletivo.
Ao mesmo tempo em que avançávamos na análise das experiências narradas, identificamos a necessidade de aprofundar nossa compreensão conceitual sobre a perspectiva narrativa como
instrumento de formação e de produção de conhecimento. Nossa
intenção de utilizar narrativas no projeto coletivo de pesquisa8
nos auto-impunha essa exigência.
Posteriormente à etapa inicial de leituras e aprofundamento
teórico sobre o tema 9 , relemos as narrativas e elaboramos
questionamentos ao conjunto delas. Essa atividade teve como
objetivo provocar a explicitação da vivência de cada um(a) neste
processo e nossas diferentes percepções sobre essa experiência.
As discussões que se seguiram foram pautadas por debates
conceituais sobre a concepção de biografia, autobiografia e narrativa. Esse processo centrou-se em articular e apreender conexões
e distinções entre esses termos. Portanto, considerando a necessidade de melhor compreender esses conceitos e outros que surgiram, o grupo realizou um novo levantamento bibliográfico sobre
narrativas que foi socializado e discutido entre seus integrantes.
A seguir, cada participante escreveu um texto pretendendo
8
Pesquisa financiada pelo CNPq, através de Bolsa de Produtividade de Pesquisa e coordenado pelo Prof. Dr. Vicente Molina Neto: “A Formação Profissional e a Prática Pedagógica dos Professores de Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre:
relações emergentes e efeitos gerados pelas transformações sociais e profissionais no
trabalho e na vida dos docentes”.
9
Revisão bibliográfica registrada nesse artigo sob o título: A análise sobre o que lemos.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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responder o seguinte questionamento: o que aprendi sobre investigação narrativa? Os textos produzidos contemplaram a seguinte
abordagem: a) as diferentes visões a respeito do tema na literatura;
b) a importância da narrativa na investigação; c) as aprendizagens
identificadas no processo.
A partir das produções individuais e das partilhas coletivas,
nos empenhamos na produção dessa publicação cujo objetivo é
discutir e disponibilizar subsídios para pensar a narrativa como
opção metodológica nos processos de formação de professores(as)
em Educação Física.
Ao compartilhar nossa experiência, através dessa publicação,
com um universo mais amplo de "outros", reafirmamos o que diz
Warschauer apud Josso (2004): "a experiência narrada transformase, assim, na experiência daqueles que ouvem a história" (p. 10).
4 Reflexões acerca do que aprendemos ao narrarmo-nos
Para mim, o que tem acontecido é um processo
de aprofundamento que me faz lembrar Peter
Woods (1995) que sugere que o trabalho de campo nos leva a 'descobrir camadas' que vão se
revelando e nos permite mergulhar na realidade investigada. Experimento um sentimento
parecido com esse, mas mergulhando em direção a camadas mais profundas da minha/nossa própria história (João, maio de 2005).10
Nosso objetivo ao narrarmo-nos foi o de perceber, no
tensionamento da relação dialética entre o individual e o coletivo,
quanto os estudos que usam a perspectiva narrativa podem ser, ao
mesmo tempo, formação e investigação. Assim, ao reconstruirmos
nossa experiência de maneira reflexiva, fomos desvelando os significados que atribuímos aos fatos que vivemos, realizando uma
10
Fragmento de uma das narrativas construídas por um integrante do nosso grupo de
pesquisa. Seu nome verdadeiro foi preservado.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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espécie de auto-análise que possibilitou compreender melhor as
escolhas que fizemos. A capacidade de narrar a si mesmo, além de
envolver a capacidade de refletir sobre a experiência vivida, pode
ajudar a entender e a organizar a realidade social e, dessa forma,
oferecer melhores condições para que os sujeitos possam transformar a própria realidade.
As lembranças de alguns acontecimentos da experiência
profissional se tornam significativas no sentido de perceber que
lembrar não emerge no vazio. A narrativa vai além de lembrar os
acontecimentos vividos no cotidiano, pois tem a influência tanto
da dimensão coletiva quanto da individual. Escrever a respeito
de si, além de envolver a reflexão da experiência vivida no processo coletivo pode nos levar a conhecer a multiplicidade da
realidade social e nossa relação com essa realidade. Nesse sentido, as experiências individuais são as expressões de uma realidade social que o sujeito organizou e das quais se apropriou.
Segundo Bueno (2002 p.19), "o indivíduo é sujeito ativo no processo de apropriação do mundo social, traduzido em práticas
que manifestam a sua subjetividade." Sendo assim, a experiência individual não está isolada da experiência social, é o conjunto de características próprias e variadas de experiências singulares que a realidade social manifesta.
A questão da singularidade de um indivíduo versus o contexto social e histórico em que está inserido (GOLDENBERG, 2002)
também merece atenção. Josso (2004) argumenta em prol do individual e do coletivo em forma de polaridade: de um lado, a nossa
interpretação - "auto-interpretação" - e, de outro, o diálogo com os
outros, uma "co-interpretação". Ainda segundo a autora, "é neste
movimento dialético que nos formamos como humano" (JOSSO,
2004, p.54). Desse modo, é no espaço da relação dialética entre o
individual e o coletivo que podemos perceber que os estudos que
usam como instrumento a narrativa e as histórias de vida são, ao
mesmo tempo, investigação e formação.
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Segundo Bourdieu (1996), o fato de as narrativas estarem
circunscritas ao universo metodológico das biografias, poderíamos pensar a "vida como história". Avançando na compreensão
metodológica sobre a história de vida, Gómez; Flores e Jiménez
(1996) propõem a delimitação conceitual entre relatos de vida e
história de vida, em que os primeiros seriam a história de uma vida
tal como uma pessoa viveu e contou e, na segunda, a perspectiva
de um estudo de caso sobre uma pessoa, quando, então, se busca
a compreensão de seu relato de vida na interação com outras informações ou documentos (pessoais ou oficiais) que possibilitem a
reconstrução da trajetória de um ou mais aspectos de sua vida, por
exemplo, a formação.
Nesse sentido, a partir do texto de Paul Ricoeur (1999) Historia y Narratividad - é possível estabelecer distinção entre
narrativa como relato e a narrativa como perspectiva investigativa.
No primeiro caso, estamos falando de, pelo menos, três eixos distintos: história de vida, biografia e autobiografia. No segundo caso,
estamos falando de uma nova perspectiva (como uma qualificação da pesquisa qualitativa) da investigação qualitativa. Ou seja,
estamos falando de metodologia da pesquisa qualitativa. Neste
caso, podemos encontrar ou produzir: o relato único (de um docente, de um informante); relatos paralelos (como diferentes indivíduos vivem uma mesma experiência); polifonia de relatos (analisar a polifonia das fronteiras entre diferentes relatos).
As combinações que se venha a fazer em um projeto de
pesquisa qualitativa, na busca de evidências/informações, têm
relação com o problema de investigação construído. Cabe dizer
que o relato biográfico tem sido mais freqüentemente identificado
nos exercícios narrativos, tanto os que têm objetivado a formação
(relatos reflexivos) quanto os casos de objetivar construção/produção de conhecimento (re-construção hermenêutica).
Cremos que as narrativas - a partir da experiência própria
que desenvolvemos - pelo fato de serem textos escritos, podem
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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ser mais disciplinadoras - não no sentido da censura, mas no sentido reflexivo dos discursos. Ou seja, a textualidade exige outra
qualidade e outro esforço ao sujeito-autor, preocupações geralmente não-presentes na oralidade, tanto na expressão quanto na
compreensão, na ênfase e nos limites das situações narradas. É
nesse argumento que concordamos com a afirmação de que a narrativa é ou pode vir a ser um aprofundamento, uma qualificação
ou ainda um requinte disponível para a metodologia da pesquisa
qualitativa.
Segundo Zussman:
Las narrraciones autobiográficas - los relatos
que contamos sobre nosotros mismos, no
representan simplemente el yo. Tampoco lo
expresan simplemente. Las narraciones
constituyen el yo...(Si) las narraciones autobiográficas constituyen el yo, esas narraciones son
estructuradas socialmente. Si queremos
comprender y explicar el yo...(si) queremos entender las variaciones que se producen a lo largo del tiempo y em distintos lugares, entonces
hemos de prestar tanta atención a las estructuras
sociales que producen las narraciones autobiográficas como a las propias narraciones
(ZUSSMAN apud SPARKES, 2003, p.5).
Nessa perspectiva, as narrativas não refletem de modo linear ou simples as experiências reais do sujeito que narra. As pessoas que narram vêem-se obrigadas a recorrer a modos lingüísticos
ou, em palavras de Bernard Charlot (2000), a práticas linguageiras
com as quais estão familiarizadas para narrar suas histórias. Por
isso, sem dúvida, a narrativa é também uma forma de prática social através da qual o sujeito elege/escolhe/busca/constrói, a partir
de um repertório sociocultural de relatos (coletivo), o que melhor
expressa a sua narrativa pessoal, ou seja, a sua história.
Ricoeur (1999), falando sobre a identidade narrativa, traz
valiosa contribuição para a compreensão da identidade que o su, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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jeito humano alcança mediante a função narrativa: a narrativa expõe um aspecto do conhecimento de si que supera em muito os
limites do próprio relato. Com essa afirmação, Ricoeur pretende
nos convencer de que a ação de conhecer-se a si mesmo não é ato
possível de um modo imediato. Conhecer-se a si mesmo, a partir
da narrativa, só é possível de forma indireta, ou seja, mediante um
processo analítico cuidadoso de todos os signos culturais mais
amplos presentes no próprio relato. Com esse argumento, Ricoeur
recorda-nos a óbvia compreensão de que a ação humana sempre
se encontra simbolicamente mediatizada.
Concordando com Sparkes (2003), a narrativa tem a ver
com contar histórias. Portanto, ao dizê-las, escutá-las e escrevêlas, aumentam as chances de compartilhar experiências sobre nossas vidas e as vidas de outras pessoas. O interesse dos(as)
pesquisadores(as) qualitativos pelas narrativas tem aumentado
porque, segundo o autor, é a forma lingüística que melhor se adapta à compreensão da historicidade da experiência humana como
uma ação contextualizada. As descrições narrativas mostram a
atividade humana como um compromisso com propósitos e apostas no mundo. Comenta, ainda, o autor, referindo-se a outros pensadores, que a análise de narrativas (tarefa da pesquisa qualitativa) é uma forma de abrir uma janela na mente do narrador ou, se
estivermos analisando narrativas de um determinado grupo específico - no nosso caso, como foco de interesse, professores(as) de
Educação Física - é uma forma de abrir uma janela à sua cultura
(cultura desse coletivo docente).
5 Considerações finais
A experiência que temos acumulado com pesquisas qualitativas que têm utilizado a entrevista como um de seus principais
instrumentos nos faz entender e, talvez, concordar com Goodson
(2005) quando afirma que, através da análise das entrevistas, o
que temos feito são construções de visões instrumentais do pro, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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fessorado. Ou seja, por mais que não queiramos e não desejamos, acabamos reduzindo-os à categoria de objetos que podem
ser manipulados (processos analíticos) para alcançarmos determinados fins (conhecimentos pretendidos nos nossos projetos de
pesquisa).
Através das narrativas ou da metodologia narrativa (histórias de vida), talvez possamos efetivamente evidenciar coerência
ou conferir-lhe coerência, através da produção de conhecimentos,
com o desejo dos(as) professores(as) de dar sentido a suas vidas
pessoais e profissionais.
No exercício contínuo de pensar procedimentos
metodológicos adequados aos nossos objetos de estudo e, sobre
as aprendizagens que ora estamos efetuando a partir da discussão
e reflexão de nossas narrativas quando professores(as) iniciantes,
e mesmo em outros coletivos docentes e/ou com outros propósitos, entendemos - parafraseando Josso (2004) - há necessidade de
atingir uma produção de conhecimentos que tenha sentido para os
sujeitos e que os próprios se inscrevam em um projeto de conhecimento que os institua sujeitos. O fato de constituirmos um grupo
de estudo e de investigação nos alavanca com determinada
intencionalidade e disposição ao nos narrarmos e ao refletirmos
sobre essas narrativas. Identificamos momentos de ruptura e transformação em nossas formas de fazer e de pensar; identificamos a
influência de acontecimentos pessoais e sociais em nossa opção
pela docência e seus rumos; e identificamos a construção e a
mudança de estilos de ser professor(a). Muito provavelmente, esse
mesmo exercício feito por outros coletivos possibilitará aprendizagens e reflexões diferenciadas e, talvez, até similares. De qualquer forma, o que queremos ressaltar é que esse exercício, o de
narrar-se, com vistas à formação, de acordo com a proposição de
Josso (2004), articula conhecimentos, representações, técnicas e
significados singulares a cada indivíduo ou grupo, mas, simultaneamente, representativos de uma coletividade mais ampla onde grupo
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e indivíduos se inserem.
Por outro lado, Ferrarotti apud Bueno (2002) adverte, em
relação ao uso do método biográfico:
[. . . ] apelar para a representatividade da biografia significa negar o caráter histórico do
método - uma vez que se trata da história de
uma vida - e o pressuposto da subjetividade
nele contido. Escolhidas a priori, com base em
critérios preestabelecidos, as biografias assim
utilizadas não são tomadas como fontes para
novos conhecimentos, mas sim para descrever
ou verificar aquilo que já está contido no modelo formal (FERRAROTTI apud BUENO,
2002, p.18).
Com isso, chamamos a atenção para as contestações que
essa metodologia recebe de alguns estudiosos da área. A obra de
Nóvoa (2000) corrobora esse alerta e faz emergir os modismos e
os riscos de lidar com a questão das subjetividades no campo da
formação de professores(as). É o próprio Ferrarotti que sugere a
saída para esse problema, à medida que mostra que a relação entre
história social e história individual não é linear, nem automática; e
que pensar em termos de quantidade de narrativas é um equívoco
para avalizar um estudo. Segundo o autor:
[. . . ] o nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em
cada um dos nossos sonhos, delírios, obras,
comportamentos. E a história deste sistema
está contida por inteiro na história da nossa
vida individual (FERRAROTTI apud BUENO,
2002, p. 19).
Dessa forma, vislumbrando a formação e o trabalho de
professores(as) de Educação Física nas escolas, entendemos que o
exercício do narrar-se é uma alternativa interessante de devolver ao
professor(a) o protagonismo de sua trajetória, mas, ao mesmo tempo, é possível antevê-lo como um procedimento metodológico de
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alguma dificuldade, por duas razões. A primeira, pelas questões já
sabidas e experimentadas de construção de vínculo e confiança com
os(as) colaboradores(as). A segunda consiste na dificuldade ou quase
ausência do hábito que o coletivo docente tem de registrar, sistematizar e produzir textualmente a partir do seu trabalho.
Inegavelmente, narrar a si mesmo constitui um exercício de
introspecção, e como declara Josso (2004), exige uma perspectiva
de caminhar para si. Esse caminhar para dentro de si exige tempo
e tranqüilidade para buscar lembranças, requisitá-las e selecionálas no imenso silêncio dos esquecimentos - conscientes e inconscientes. Catani e Vicentini (2003) abordam esse aspecto:
Quando os sujeitos se voltam para o passado
para produzir uma escrita autobiográfica,
eles não só sofrem a influência do
distanciamento temporal que atua em todo
processo memorialístico, apagando determinadas experiências e intensificando outras,
mas também operam uma seleção, ao escolher os fatos considerados dignos de ser divulgados e ao privilegiar determinados aspectos em detrimento de outros, em busca de
dar sentido ao relato da própria vivência.
(CATANI;VICENTINI, 2003, p. 153)
Esse movimento de lembrar/esquecer parece, de fato, uma
tentativa de dar sentido ao vivido conforme os significados que
atribuímos aos acontecimentos. Parece-nos possível, no entanto,
que esses significados não sejam definitivos. Certamente, nossas
narrativas reescritas em outro momento histórico - passado ou
vindouro - poderiam apresentar outras ênfases e outras omissões.
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To Research Require Question Yourself: The
Narrative as Research Strategy and Training
Researcher.
Abstract: This article registers the recent author's
experience in a formation exercise through the
construction narrative. The group's objectives, in
this exercise, were to learn and to interrogate itself
on until point the studies which use the perspective
narrative can be, at the same time, processes of
formation and processes of inquiry. The chance to
make this learning, constructed in the interior of the
proper group demanded us all the time, learn to
work in the tension's limits of the dialectic relation
between individual and the collective one. In this
article we disclose the joined learnings that we effect
with the narrative exercise, its possibilities for the
formation teachers studies field and the theorist
methodological limitations found.
Keywords: Narration. Faculty. Qualitative
research. Physical Education. Research personal.
Pesquisar exige cuestionarse: la narrativa
como estrategia de pesquisa y de formación
del pesquisador.
Resumen: Este artículo registra la reciente
experiencia de los(as) autores(as) en un ejercicio
de formación por medio de la construcción narrativa. Los objetivos del grupo, en el ejercicio, fueron
el de aprender y de preguntarse sobre hasta que
punto los estudios que utilizan la perspectiva narrativa, pueden ser, al mismo tiempo, procesos de
formación y procesos de investigación. La
oportunidad de hacer ese aprendizaje, construido
en el interior del grupo, nos ha exigido aprender a
trabajar en los límites de la tensión de la relación
dialéctica entre el individual y el colectivo. En este
artículo presentamos los aprendizajes que
efectuamos con el ejercicio narrativo, sus
posibilidades para el campo de estudios de la
formación de profesores(as) y las limitaciones teórico-metodológicas encontradas.
Palabras-clave: Narración. Docente. Investigación
cualitativa. Educación Física. Investigadores.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
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Recebido em: 30/03/2006
Aprovado em: 01/08/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 09-33, maio/agosto de 2006.
34
Em foco
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
José Damico
Corpo a corpo com as jovens...
35
Corpo a corpo com as jovens: Grupos focais e
análise de discurso na pesquisa em educação física
José Damico*
Resumo: Este artigo tem o objetivo de apontar algumas
das potencialidades analíticas de pesquisas com grupos
focais que se ancoram em referenciais pós-estruturalistas
e analisam as informações por meio de análise de discurso. O texto é baseado em uma dissertação de mestrado
que discutiu alguns dos modos pelos quais jovens mulheres
significam,
apre(e)ndem
e
vivenciam,
contemporaneamente, o cuidado com o corpo.
Palavras-chave: Análise de Discurso. Grupo Focal. Identidade de gênero. Adolescente.
1 Introdução
A finalidade deste artigo é apontar algumas das
potencialidades metodológicas de pesquisas pós-estruturalistas que
utilizam a técnica de grupos focais como estratégia de coleta de
informações, analisadas através de análise de discurso, e que se
ancoram em referenciais pós-estruturalistas. Neste sentido, pensamos que podemos contribuir para a discussão de aspectos teórico-metodológicos nos procedimentos investigativos que venham
a ser utilizados no campo da educação física.
Na abordagem aqui desenvolvida utilizarei um recorte da
dissertação de mestrado (DAMICO, 2004), que teve como objeto
de pesquisa compreender quais são as práticas que as jovens privilegiam quando cuidam do corpo, que discursos se articulam para
configurar tais práticas e, como o gênero institui e atravessa as
relações de poder/saber no âmbito destas formações discursivas.
Os Estudos Culturais e os Estudos de Gênero nas vertentes
*
Professor de Educação Física, Mestre em Educação (FACED-UFRGS).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
36
Em foco
José Damico
pós-estruturalistas nos quais a referida dissertação se apóia “têm
mergulhado nos processos e artefatos culturais de seus povos, na
cotidianidade de suas práticas de significação, na
contemporaneidade de um tempo em que as fronteiras entre o global e o local se interpenetram e se modificam” (COSTA et al.,
2003, p. 48).
Para Marisa Costa “há conseqüências importantes dessa concepção para quem faz pesquisa hoje [...], o que de fato faz diferença
são as interrogações que podem ser formuladas dentro de uma ou
outra maneira de conceber as relações entre saber e poder” (COSTA, 2002, p. 16). É neste sentido, que cabe salientar que não tenho
a intenção aqui de lançar algum modelo metodológico que irá iluminar, revelar ou demonstrar determinadas verdades, mas sim apontar
a produtividade da técnica de grupos focais para tratar de temáticas
emergentes, acolher depoimentos e principalmente formular novas
questões para novos problemas de pesquisa.
2 Entre campos e conceitos teóricos ou do tipo de terreno
de jogo
A proposição de uma pesquisa na perspectiva pós-estruturalista implicou assumir algumas posições de pesquisa que são críticas e que, de certa forma, desestabilizam modelos de pesquisa
da área biomédica, que são também modelos ainda hegemônicos
na educação física brasileira.
Desse ponto de vista trata-se de afirmar que a maior parte
das investigações nessa área se inscreve na tradição da ciência e
filosofia positivista, o que, no campo das ciências biomédicas, se
traduz, fundamentalmente, em uma dada forma de conceber a objetividade e racionalidade da produção de conhecimentos, como
no caso da medicina:
A medicina, a partir da ênfase quantitativa que
vai predominar em todo campo científico, que
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
37
busca a objetividade, o certo e o indubitável
na investigação do real, passa a se dedicar ao
fenômeno da doença com uma perspectiva
ontológica e localizante, onde os mecanismos
de causa e efeito e de etiologia única tornam
determinantes e deixam fortes marcas na produção de conhecimento e na intervenção técnica de seus especialistas, até a atualidade
(SILVA, 2001, p. 18).
Ao abandonar as grandes categorias – sujeito, razão, progresso e totalidade – e passar a operar com a dispersão, a fragmentação e a fluidez, o que se coloca em jogo não é a revelação de uma
verdade última que explicaria o efeito preciso de alguma coisa,
mas o modo como determinadas verdades produzem efeitos de
saber-poder. Desta forma, saúde e doença, engordar e emagrecer
não são conceitos fixos ou fenômenos traduzíveis per se, mas são
tomados como construtos do pensamento, ou da episteme, que os
elabora. Ao discutir o discurso científico, Foucault refere-se ao
conjunto de saberes e práticas “que sistematicamente formam os
objetos de que falam” (FOUCAULT, 1987, p. 56). Posso dizer
apoiado nessa afirmação, que toda produção do conhecimento é
interessada, que a pesquisa não é neutra e se materializa em ações
bem concretas, como as escolhas teóricas e metodológicas que
realizamos.
É exatamente por Michel Foucault ter direcionado “suas
investigações em torno dos processos de subjetivação e ter usado
o fio do poder para costurar esses processos, [que] a perspectiva
foucaultiana tem uma importância ímpar para as análises das relações entre sociedade, cultura, educação e subjetividade” (VEIGANETO, 1995, p. 16).
Seguindo esta perspectiva teórica, trabalha-se com uma noção de cultura que envolve um redimensionamento do conceito
tradicionalmente presente nos estudos das ciências humanas e
sociais, nos quais se enfatiza a cultura como o conjunto de valores
e tradições que é mantido de geração em geração. Cultura, na
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
abordagem dos estudos culturais inspirados nas teorizações pósestruturalistas, é definida como um campo de lutas que envolve
processos de significação (SILVA, 2000) e,
Neste sentido, [ela] não é universal, nem está
dada de antemão, mas é ativamente produzida
e modificada, ou seja, poderíamos pensá-la
como os processos pelos quais se produz um
certo consenso acerca do mundo que permite
que os diferentes indivíduos se reconheçam
como membros de determinados grupos e não
de outros. Isso significa entender a cultura como
um processo arbitrário, uma vez que cada grupo pode atribuir um significado diferente e viver de forma diferente, um mesmo fenômeno
ou objeto (MEYER, 2003, p. 11).
É esse conceito de cultura que permite teorizá-la como
constitutiva do mundo social, localizada e, ao mesmo tempo, equiparada a diversas formas de conhecimento produzidas em diferentes locais, como a família, a escola e a mídia, por intermédio de
discursos e práticas. Essa compreensão possibilitou tratar diferentes aparatos e “locais” culturais como possíveis instâncias de
aprendizagens corporais. Não importa, nesses casos, se existe uma
intenção de informar ou simplesmente entreter, já que, de alguma
forma, assim também se produzem conhecimentos que podem dirigir as condutas das pessoas.
Nessa direção, a relação entre educação e cultura que proponho, se fundamenta na idéia de que as práticas educativas articulam um conjunto de processos nos e pelos quais os indivíduos
aprendem a tornarem-se sujeitos também de uma cultura corporal.
Na abordagem aqui desenvolvida entende-se que seriam aquelas
práticas que ensinam os indivíduos a conhecerem e a cuidarem do
corpo de um determinado modo, no contexto de processos
educativos - intencionais ou não - em que as mulheres e as mulheres jovens em especial estão envolvidas. Neste sentido, “tornar-se
sujeito de uma cultura envolve um complexo de forças e de apren, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
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dizagens” (MEYER, 2003) que incluem os conselhos familiares,
os meios de comunicação de massa, o grupo de amigas/os e a
escola, por exemplo.
No que se refere à noção de poder, os estudos de gênero
seguem as elaborações de Michel Foucault, principalmente, nos
aspectos em que o autor discorre acerca da positividade do poder.
Aqui, o poder não é somente força para submeter ou dominar, ou
seja, poder repressivo, mas funciona como uma teia produtiva,
permeando todo o tecido social ao formar discursos, produzir saberes e induzir ao prazer. Foucault afirma, ainda, que “o poder
deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca está apropriado como uma
riqueza ou um bem” (FOUCAULT, 2002, p. 183).
O gênero insere-se em um campo de poder/saber na medida
em que interroga e desconstrói a naturalização dos corpos nas
práticas sociais. Essa perspectiva do feminismo penetra nos campos de saber sobre o sexo, o corpo e o gênero, e a categorização
binária do humano passa a ser uma identidade passível de dissolução, já que constituída em práticas discursivas e históricas. Segundo Foucault, tais práticas “[...] tomam corpo em conjuntos
técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em
tipos de transmissão e de difusão, em formas pedagógicas que as
impõem e mantêm ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 1989, p. 10).
De acordo com Nikolas Rose (2001, p. 44):
Certas formas de se conter, andar, correr, firmar a cabeça e posicionar os membros não são
apenas culturalmente relativas ou adquiridas por
meio da socialização de gênero, mas constituem regimes do corpo que buscam subjetivar em
termos de uma certa verdade do gênero, inscrevendo uma relação particular consigo mesmo/a
em um regime corporal, a qual é prescrita, racionalizada e ensinada em manuais de
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
aconselhamento, etiqueta e boas maneiras e
imposta por sanções bem como por seduções.
Também pode-se entender que as questões relativas ao corpo, ao gênero e à sexualidade “envolvem disputa de valores, de
poder, de tipos de comportamento legitimados, de normas e de
verdades” e que estes podem, pois, ser entendidos e
problematizados “como um lugar de luta constante pela manutenção daquilo que cada sociedade define como estado de normalidade” (MEYER; SOARES, 2004, p. 7).
3 O procedimento dos grupos focais
Para o levantamento das informações que constituíram o
corpus de análise da dissertação referida anteriormente, fez-se a
opção pela técnica de grupo focal, uma vez que este procedimento
estimula e propicia a interação entre seus/suas participantes. Este
caráter interativo dos grupos focais facilita o desenvolvimento de
estudos que buscam entender atitudes, preferências, necessidades
e sentimentos; ou quando se investigam questões complexas relacionadas a dificuldades, necessidades ou conflitos não claros ou
pouco explicitados. No caso do estudo em questão a pesquisa
buscava que as jovens falassem de suas escolhas, sentimentos e
dúvidas ao cuidarem do corpo. Ainda, como referem Barbour e
Kitzinger, (1999, p. 4) os grupos focais:
[...]são muito apropriados para examinarmos
como o conhecimento, as idéias, os relatos, a
auto-apresentação e os intercâmbios lingüísticos
operam dentro de um determinado contexto cultural. No grupo focal, os participantes da pesquisa criam um público uns para os outros.
Inspirada em técnicas de entrevistas não-direcionadas e técnicas grupais usadas na psiquiatria, a técnica de grupo focal foi
originalmente criada para ser aplicada em pesquisas de mercado,
tendo sua aplicação ampliada, mais recentemente, para o contexto
da pesquisa em ciências humanas e sociais (OLIVEIRA, 2001).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
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Como estratégia de pesquisa o grupo focal utiliza encontros
grupais para a obtenção de dados sobre questões específicas de
interesse do pesquisador, a partir de discussões onde os/as participantes podem expressar, nos seus próprios termos, experiências,
pontos de vista, crenças, valores, atitudes e representações.
Na pesquisa aqui relatada, o caráter interativo da técnica de
grupos focais permitiu a captação de zonas de conflito, contradições e tensões nas falas das jovens, o que contribuiu para
potencializar a análise de discurso que foi empreendida com e a
partir das discussões realizadas. No entanto, cabe destacar que
foram também utilizadas para análise, uma série de falas individuais, porque entende-se que elas só foram possíveis de serem enunciadas no contexto grupal, na medida em que as jovens se sentiram como se estivessem conversando entre elas, quase esquecendo que estavam sendo registradas pelo gravador.
A formação dos grupos focais apresenta algumas características comuns, quais sejam:
a) O número de participantes pode variar entre 6 a 15 pessoas;
b) Os critérios para seleção dos participantes de uma sessão
do grupo focal (como por exemplo, idade, local de residência,
ocupação) são determinados em função dos objetivos do estudo
(amostra intencional);
c) Em geral o delineamento do estudo prevê que mais de um
grupo seja formado para obtenção dos dados;
d) O grupo focal é sempre conduzido por um moderador, que
pode ou não ser acompanhado por um observador participante. Ao
moderador cabe conduzir o grupo focal, propondo e estimulando
que os/as participantes expressem livremente seus sentimentos,
experiências e opiniões sobre as questões que são de interesse da
pesquisa. Também cabe ao moderador manter a discussão focalizada, fazendo resumos e retomando o assunto quando alguém se
desvia dele. O observador pode, entre outras incumbências, ficar
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
encarregado de captar as informações não-verbais expressas pelos/as participantes e, ao final, ajudar o moderador a analisar os
possíveis vieses ocasionados por problemas na sua forma de coordenar a sessão;
e) No final das reuniões, a gravação das atividades é transcrita e analisada a fim de que possa, ao longo dos grupos, verificar a
condução, como também se os objetivos da técnica foram atingidos. A gravação ao final dos encontros também serve para a reflexão do pesquisador sobre os encontros grupais subseqüentes, no
sentido das possíveis adequações, reformulações, adições ou necessidades de aprofundamento de questões a serem discutidas
pelo grupo, conforme os objetivos da pesquisa.
A eleição do Colégio de Aplicação (CAP) como locus da
pesquisa deveu-se a alguns fatores: um deles tem a ver com a sua
ligação histórica com a Faculdade de Educação (FACED), já que
foi criado na década de 50 do século passado com o objetivo de
qualificação de alunos da FACED, inclusive tendo compartilhado
durante vários anos o prédio onde hoje está a FACED, o que tem
contribuído para que se realizem, no CAP, uma série de estágios e
de estudos da Faculdade. Outro fator é que o CAP tem como
forma de seleção para ingresso o sorteio público, o que, neste
estudo, foi importante na medida em que seria desejável que a
composição dos grupos fosse a mais heterogênea possível no que
se refere à classe social.
Depois de pensar em algumas possibilidades, a escolha por
realizar esta investigação no lugar-escola deve-se à compreensão
de que importantes aprendizagens sobre o corpo ocorrem na escola ou nela se apresentam. Trata-se de um ambiente de vigilância
constante, que absorve e veicula saberes como os da mídia e das
academias, por exemplo, saberes que circulam no espaço escolar
através de falas, gestos, movimentos e sensações. Nessa direção:
A escola é um espaço de relações sociais e não
somente um espaço cognitivo [...] a escola [é]
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
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tanto um local de encontro entre os jovens quanto um local que tem relações com a mídia e outros espaços culturais. Um aspecto importante é
pensar que são nesses espaços educativos culturais e de lazer dos estudantes que transparece a
posição que a juventude ocupa hoje na cultura
(SOARES, 2003, p. 138).
A escola, nesse sentido, atua tanto como um centro gerador
quanto re-produtor de relações de poder-saber de uma série de discursos. Alguns desses discursos que penetram na escola são autorizados e reconhecidos como produtivos para gerar as aprendizagens
adequadas. Tais discursos provêm de fora do lugar-escola e, ao
mesmo tempo, são incorporados por ela a fim de posicionar a saúde
física como um projeto a ser construído e implementado. Podemos,
pois, “ver a escola engajada na promoção de alguns desses meios e
aprendizagens: modos ‘corretos’ de alimentar-se, de ‘postar-se’, de
exercitar-se, de vestir-se, de expressar-se, para ficar nos exemplos
mais simples” (SOARES, 2004, p. 6).
Por considerar dessa forma o espaço escolar, desde os primeiros dias em que passei a freqüentar o Colégio de Aplicação fui
fazendo observações interessantes: os corredores que levavam ao
pátio interno, às salas de aula ou ao prédio central (aliás, não
foram poucas as vezes em que me perdi); a movimentação frenética no intervalo dos períodos; as conversas de estudantes nas
mesas do bar da escola; os namoros pelos cantos às vezes nem tão
escondidos, as conversas amistosas com os colegas da educação
física – até aqui, nada que meu olhar estranhasse ou não gostasse.
A fama de escola “modelo” no meio escolar e sonho de pais e
mães ali parecia materializar-se. O idealizado espaço de liberdade
e de construção de conhecimento e, principalmente, de encontro,
tinha ali, aparentemente, um exemplo a ser seguido.
Também minha relação com as jovens escolares pode ser
descrita como um encontro, uma parceria necessária para o pensar, analisar e escrever este estudo. Elas desacomodaram-me, fizeram-me rir e surpreenderam-me. No lugar-escola, durante a re, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
alização dos encontros com as estudantes, senti-me muitas vezes
como se fizesse parte dela e de seu grupo de professores de educação física. Outras vezes, parecia-me que os grupos de pesquisa
que estava coordenando faziam parte de alguma atividade curricular
no turno inverso. A sala onde os encontros aconteciam carregava
as marcas recentes das aulas do turno da manhã no quadro negro;
um boneco de chiclete era construído no mural no fundo da sala,
como uma gravura em relevo; a sirene marcava a divisão dos períodos, acompanhando-nos e até, em muitos momentos, atrapalhando a gravação de nossas discussões no grupo.
“Vai ter aula do Zé hoje?” Uma professora me contava que as
garotas seguidamente perguntavam isso entre si ou para ela. Tal
pergunta indicava, por um lado, a tensão presente no interesse/
desinteresse das estudantes nas suas idas ou não aos encontros e,
por outro lado, o espaço do grupo percebido como um lugar de
aprendizagem que me tinha como guia e condutor. No entanto,
discutir no lugar-escola as práticas relacionadas com os hábitos
alimentares e corporais - traduzidos por mim como os “cuidados
com o corpo” - traz algumas implicações, algumas anteriores e
outras posteriores a minha presença, pelas relações de saber-poder que, mesmo não intencionalmente, introduzi ou coloquei em
movimento naquela instância. Apesar de considerar essa anterioridade difícil de ser demarcada, acredito, por exemplo, que, ao
discutir com as jovens, pude acessar como se dão suas relações
com os outros, com os objetos, com os sentimentos, enfim, configurando o modo como se relacionam na vida.
As reuniões-convite que realizei para reunir participantes para
minha pesquisa ocorriam nas aulas de educação física, as quais,
para minha surpresa, eram separadas por sexo a partir da sexta
série do ensino fundamental1. A aprovação da pesquisa seguiu os
1
A justificativa dada pelos professores da área baseava-se em explicações do campo
biomédico a partir do desenvolvimento e maturação física e das habilidades motoras, que
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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seguintes trâmites: Conselho do Colégio, Departamento de Educação Física e Serviço de Orientação Educacional (SOE). As
maiores dificuldades que encontrei estavam ligadas às preocupações do SOE sobre como a pesquisa estaria abordando as desordens alimentares com as participantes, o que fez com eu tivesse de
reformular o projeto que apresentei, além de ter que participar de
outras reuniões para dirimir dúvidas.
Ao realizar investigações que envolvem vários encontros com
muitas pessoas, é preciso elaborar uma engenharia bastante complexa. E, no meu caso, ainda sob o impacto dos problemas enfrentados no HCPA, procurei evitar ao máximo as situações que pudessem inviabilizar a realização do estudo, aceitando o curto período que eu teria para motivar as alunas e os alunos a participarem do estudo, a sala que me foi ofertada e os horários disponíveis, por exemplo.
A seleção das participantes da pesquisa foi realizada em
acordo com o Serviço de Orientação Educacional (SOE) juntamente com o Departamento de Educação Física (DEFI) através de
reuniões em momentos distintos. Decidiu-se por utilizar as aulas
de educação física, que ocorrem em turnos inversos ao restante
das disciplinas, para realizar as reuniões-convite. De acordo com
os interesses da pesquisa e influenciado ainda pela minha experiência com as jovens em tratamento no Hospital de Clínicas de
Porto Alegre (HCPA), que, na sua maioria, tinham entre 13 e 15
anos, decidimos2 convidar as turmas de oitava série do ensino
fundamental e as turmas do primeiro ano do ensino médio (na
escola, estas são chamadas de nona série).
seriam muito diferentes para os meninos e meninas a partir da sexta série. Portanto, as
atividades deveriam ser escolhidas pelos/as alunos/as dentre as oferecidas, como atletismo, dança, ginástica e futebol para as meninas, enquanto que os meninos escolheriam
entre basquete, handebol e futebol.
2
Discuti com os professores de educação física da escola quais séries e turmas poderiam
ter maior interesse em participar da pesquisa.
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Em foco
José Damico
Realizei três reuniões-convite com cada turma: a primeira
para falar sobre os motivos da minha presença, os objetivos da
pesquisa e demonstrar, através de manchetes de jornais e revistas,
a atualidade e a visibilidade da temática; a segunda para enfatizar
a importância que as participantes teriam para a realização do
trabalho e também para esclarecer dúvidas a respeito dos procedimentos de pesquisa; e a última para explicar o “Termo de consentimento livre e esclarecido”, e a necessidade de que fosse assinado pela participante da pesquisa bem como pelo/a seu responsável legal.
Das 35 jovens interessadas em participar da pesquisa nas
primeiras reuniões, restaram 18 (nove na nona série e nove na
oitava série). A desistência foi motivada pelos horários propostos para a realização dos encontros, pela dificuldade com o transporte ou pelo fato de os/as responsáveis pelas jovens não concordarem com sua participação. Contudo, como o desenho prévio da pesquisa limitava a dez os/as participantes por grupo, as
dificuldades contaram a favor para o prosseguimento do desenho
da pesquisa. Das 18 jovens que iniciaram os grupos, duas desistiram ao longo do trabalho de campo em função de outras atividades (inglês e dança) no horário dos encontros. Segundo informações dadas pelas participantes, todas estavam na faixa de 13
a 16 anos e somente duas não eram alunas da escola desde o
início do ensino fundamental.
Todos os encontros foram gravados para posterior transcrição e análise, considerando o acordo firmado no termo de consentimento livre e esclarecido3. A agenda desses encontros foi previamente planejada, compondo um roteiro de temáticas a serem exploradas que considerou os interesses de pesquisa antes de começar a coleta das informações. Esse roteiro teve de ser flexibilizado
à medida, em que as interações foram acontecendo.
3
O termo de consentimento foi assinado antes do início dos grupos.
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Cada encontro foi dividido em quatro etapas4. A primeira
etapa, chamada de “atividade integradora”, tinha como objetivo
preparar a discussão e descontrair o grupo. Na segunda etapa,
aconteciam as discussões grupais com base no roteiro prévio ou,
ainda, temáticas que haviam aparecido na etapa anterior (atividade integradora) e que deixaram de ser aprofundadas. No terceiro momento, havia o intervalo, com um lanche previamente
combinado com as participantes. Na última etapa, ocorria a retomada das idéias discutidas anteriormente, e eram feitas sugestões de assuntos a serem tratados nos próximos encontros. Antes
de finalizar o encontro, fazíamos uma pequena avaliação. Ao
elaborar a agenda dos encontros, o objetivo foi focalizar as questões de pesquisa, bem como outros temas que, articulados à
temática da investigação, pudessem responder aos objetivos deste
estudo (segue abaixo a agenda dos seis grupos focais realizados,
já consideradas as reformulações feitas ao longo do processo de
coleta das informações).
Agenda dos Encontros
I Encontro
a) apresentando o processo da pesquisa – ( em círculo/ a
participante tocará no ombro da colega ao lado, apresentando-se como se fosse a colega tocada) -Técnica de apresentação – 20 min.
b) Negociação das regras e avaliação – 20 min.
c) Intervalo c/lanche – 20 min.
d) Tópico: As adolescentes em geral cuidam do seu corpo? E
vocês cuidam? – 25 min.
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As etapas dos grupos focais foram inspiradas na forma como Dora Oliveira (2001) utilizou a técnica de grupos focais.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
II Encontro
a) Relembrando as regras – 15 min.
b) Atividade de integração – Role-playTópico: escrevendo a
nossa história – 45 min. Como vocês aprendem a cuidar do
corpo? E com quem?
c) Intervalo c/lanche – 15 min.Grupo focal – discussão sobre
o tema do encontro e geração de tópicos para os próximos
encontros – 30 min.
III Encontro
a) Atividade de Integração – 30 min. (confecção de painel –
colagem)
b) Tópico: Quais práticas corporais vocês consideram importante para cuidar do corpo?
c) Intervalo c/lanche – 15 min.
d) Grupo focal – discussão e geração de tópicos para os
próximos encontros – 45 min.
IV Encontro
a) Atividade de integração – 30 min. (elaborar um teste de
perguntas sobre o cuidado com o corpo – com pontuação)
b) Tópico: Vocês acham que essa preocupação com o corpo atinge homens e mulheres da mesma maneira?
c) Intervalo c/lanche – 15 min.
d) Grupo focal – discussão e geração de tópicos para os
próximos encontros – 45 min.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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V Encontro
a) Atividade de Integração. Articulando dieta/consumo e beleza – Escrever duas colunas para uma revista fictícia: o grupo será dividido em dois, um grupo escreve uma carta para
uma revista e o outro responde a carta – 30 min.
b) Tópico: Quais são as principais dúvidas de vocês em relação aos cuidados com o corpo e para quem vocês recorrem para resolver tais dúvidas?
c) Intervalo c/lanche – 15 min.
d) Grupo focal – avaliação, discussão e geração de tópicos
para o próximo encontro – 45min.
VI Encontro
a) Atividade de Integração – (retomar a produção dos grupos anteriores ) 25 min.Tópico: Espaço aberto para discutir
tópicos gerados nos grupos anteriores – 30 min.
b) Intervalo – 10 min.
c) Grupo focal – retomada das idéias levantadas nos encontros anteriores e a opinião das participantes e do pesquisador sobre o processo de pesquisa – 35min.
d) Confraternização – 25 min.
O sucesso da técnica de grupo focal depende, inicialmente,
da definição do tópico a ser explorado, sejam tópicos de temas
específicos em que se busca capturar diferentes visões sobre o
mesmo tema, ou situações em que os objetivos são explorar, a
partir de determinados temas, como um grupo, com certas características homogêneas (no caso mulheres jovens com a mesma faixa
etária), expressam sua visão de mundo.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Em foco
José Damico
As principais vantagens da utilização da técnica dos grupos
focais, com relação a outras formas de coleta de informações como
as entrevistas individuais, por exemplo, é de que os grupos focais
possibilitam pensar coletivamente uma temática que é comum aos
participantes do grupo.
Um desses exemplos pode ser verificado nos desdobramentos da discussão que fizemos acerca do tema das críticas foi a
forma como as jovens participantes da pesquisa lidam com os
apelidos e as brincadeiras que os colegas fazem sobre alguma
característica física, como aparece nas transcrições que seguem.
Clara – E isso daí é horrível, porque, se uma
pessoa te chama de um jeito, daí todo mundo
vai te chamar daquele jeito.
Flávia – Às vezes, tu não estás nem aí porque tu não és muito magra nem muito gorda,
mas, a partir do momento em que todo mundo começa a se arriar, te criticar e rir da
tua cara, daí tu te sentes mal e tu queres mudar o teu corpo.
Kátia – E principalmente assim com as pessoas com quem tu convives todos os dias, sabe?
Daí, se tu não mudares, se tu continuares assim, ainda mais que tu já estás meio insegura.
Na adolescência, todo mundo já é meio insegura, então, se os outros se arriam, ainda vai
piorar a situação. Tu vais te sentir: ai, e agora, eu sou uma idiota, eu sou feia.
Um outro aspecto que cabe salientar tem a ver com um pressuposto de que percepções, atitudes, opiniões e representações
são social e culturalmente construídas. Este pressuposto, não por
coincidência, é central de pesquisas pós-estruralistas e investigações que se aportam nas teorizações de gênero como é o caso
deste estudo. Utilizarei a discussão que fiz dos depoimentos acima para demonstrar alguns aspectos que ficaram manifestos desse
pressuposto na minha investigação.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
51
Nos fragmentos acima, as críticas ou julgamentos que levam
as jovens a se colocarem como alvo dos olhares do grupo são
constituídos a partir de critérios pessoais e, concomitantemente,
de uma certa racionalidade, ao utilizarem-se atributos mais ou
menos padronizados (peso, forma de partes do corpo) como se
todas/os as/os que estivessem perto delas e, inclusive, elas próprias, pudessem ocupar o lugar de quem expressa o olhar, ao mesmo
tempo em que não são observadas diretamente. Uma outra conseqüência é a possibilidade de um efeito contagiante, como se o
apelido ou a crítica funcionassem como uma caricatura que ressaltasse algo que ninguém percebe num primeiro momento e que
depois se torna um sinal identitário, lembrado por todos.
O modo como tais críticas são recebidas como verdades em
si parece receberem sentido naquilo que é explicitado como uma
característica naturalizada na adolescência, um período da vida
que seria marcado pela insegurança, dúvidas e rebeldia. Essa naturalização de uma dada adolescência problemática é possível
numa ordem discursiva que se apóia nos enunciados formulados
em distintos campos de saber, que se articulam para afirmar, através da psicologia, da pedagogia ou da medicina, que esse período
da vida traz inseguranças e sofrimentos, dadas as mudanças orgânicas ou a transição emocional que a passagem entre a infância e
a vida adulta produz. No entanto, mesmo entre os adultos, que
dificilmente permitem tal nível de criticismo, pelo menos abertamente, situações como as descritas acima causariam tristeza, frustração e constrangimento.
Assim sendo, outras potencialidades dos grupos focais advém
desse pensar coletivamente, como facilitar a expressão verbal das
participantes através de um processo de interação que favorecesse a expressão de emoções, ao mesmo tempo, que pudéssemos
observar as controvérsias e conflitos ao longo dos debates. Perguntei às jovens como elas estavam lidando com esse momento
em suas vidas, e algumas delas disseram:
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
52
Em foco
José Damico
Camila5 – A nossa personalidade está se desenvolvendo... Então, é uma fase meio difícil.
Eu acho que... aí, depois, tem os colegas com
esse negócio de apelido, e aí tem esse negócio
de beleza... Tem um monte de coisa que influencia: “ah, não usa droga!”, “não transa sem
camisinha!” É muita coisa, tu acabas ficando
meio perdida na parada, sabes?
Denise – O meu pai, ele quer nos reservar, nos
conservar, digamos assim. Como se a gente fosse para ele, sabe. A minha mãe diz: “a gente
cria para o mundo”. Mas ela sabe que não é
assim, ela é toda cuidadosa comigo. Ela é toda
preocupada, assim, com o que eu vou comer
ou com o que eu vou fazer. Se eu vou a uma
festa, ela quer saber com quem eu vou, com
quem eu vou voltar, que horas eu vou voltar...
se preocupa com quem eu vou estar, com as
minhas amizades.
Clara – eu não sei se é com todo mundo, mas
comigo é assim ... aquela coisa de querer ser
dona do próprio nariz sabe!? Ser independente como meu pai diz. Aí tem uma festa e eu
quero ir, pô, eu já tenho 15 anos porque eu
não posso ir na festa, eu não sô mais uma
criança. Aí tu tem aquela consciência – acha
pelo menos que tem – que a gente sabe de
tudo já, que não precisa mais a mãe ficar falando o que acontece no mundo, que para tudo
tem tempo e mais um monte de coisas, porque
a gente vê isso todo dia, daí tu já fica sem
saber o que fazer.
Na fala de Camila, o que está em jogo parece ser a dificuldade em estabelecer os critérios para as experiências consigo
5
Os nomes de todas as jovens são fictícios para preservar a identidade das participantes.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
53
mesmo. Jorge Larrosa (1984, p. 78) argumenta que “a necessidade
de julgar-se a si próprio em função da própria transformação é
desencadeante dos mecanismos discursivos de auto-observação e
de auto-reflexão sobre a prática”. Ao assumir sua fragilidade e
falar de seus medos, de suas inseguranças, de desconfianças, de
experimentações perigosas e de interdições promovidas pelos pais,
a jovem Camila anuncia como vivem os rituais de passagem para
a vida adulta.
A jovem, ao indicar seus principais conflitos assume um
tom resignado ao dizer que “fica meio perdida”. Aqui a expressão
“meio” pode oferecer pistas interessantes, na medida em que uma
das acepções dicionarizadas do termo define este como “o centro
de um espaço; lugar que dista igualmente de todos os pontos a seu
redor” (HOUAISS, 2003). Essa posição que a jovem diz ocupar
ao “estar meio perdida” é o que se espera de uma adolescência
normal, em função da naturalização de determinados sentimentos
e comportamentos atribuídos a essa faixa etária. Se a jovem afirmasse estar completamente segura de si, não seria estranho que se
pudesse dizer que ela estaria sendo adulta cedo demais, o que em
muitos casos, carrega sentidos de positividade; ou se ela, ou alguém por ela, assumisse que está “completamente” perdida provavelmente seria encaminhada a algum tipo de tratamento que
pudesse reverter essa falha no seu desenvolvimento. Trago a contribuição de Guacira Louro, pois a autora esclarece o modo como
determinadas posições que as jovens ocupam estão sintonizadas
com as regras de normalidade. Na perspectiva dessa autora:
A posição central é considerada a posição não
problemática; todas as outras posições-de-sujeito estão de algum modo ligadas – e subordinadas – a ela. Tudo ganha sentido no interior
desta lógica que estabelece o centro e o excêntrico; ou, se quisermos dizer de outro modo, o
centro e suas margens. Ao conceito de centro
vinculam-se, freqüentemente, noções de universalidade, unidade e de estabilidade. Os sujei, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
54
Em foco
José Damico
tos e as práticas culturais que não ocupam este
lugar recebem as marcas da particularidade,
da diversidade e da instabilidade (LOURO,
2003, p. 44).
Muitos discursos têm afirmado a existência de dado período da vida que é recheado de turbulências, inseguranças e medos.
O livro6 organizado por Cybelle Weinberg que é dirigido, segundo
ela, prioritariamente a professores/as, orientadores/as e outros/as
profissionais que trabalham com jovens, e escrito por médicos/as,
psicanalistas e psicopedagogos/as, traz, em sua introdução a seguinte questão: “O que tenho ouvido na clínica e fora dela são
queixas de adolescentes que se sentem perdidos, apáticos ou ansiosos quanto ao seu futuro. Os pais parecem ainda mais perdidos
do que eles. O que significa adolescer no mundo atual?”
(WEINBERG, 2001, p. 7).
Por mais paradoxal que possa parecer, há um sentido de
normalidade definido no âmbito dos discursos “psi” que opera
com a noção de que um certo grau de estranhamento que a jovem
tem em relação a si mesma faz parte da ordem das coisas (FRAGA, 2000). A pergunta da autora acima indica uma tentativa de
fixar os sentidos, pois o que estaríamos vivendo na
contemporaneidade seria uma espécie de incerteza generalizada.
No livro clássico da psicologia Adolescência Normal, as autoras
comentam:
Penso que a estabilização da personalidade não
se consegue sem passar por um certo grau de
conduta patológica que, conforme o meu critério, devemos considerar inerente à evolução
normal desta etapa da vida [...]. Toda a comoção deste período da vida deve ser considerada como normal, assinalando também que seria anormal a presença de um equilíbrio está-
6
Geração Delivery: Adolescer no mundo atual (2001).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
55
vel durante o processo adolescente
(ABERASTURY; KNOBEL, 1981, p. 27).
É nessa direção que as jovens, ao mesmo tempo em que são
atingidas pelos discursos, assumem para si os mesmos discursos.
Sob esta ótica é que posso afirmar que a diferença se produz nas
relações de poder. Para poderem permanecer no centro, as jovens
devem se preocupar, se entristecer e, principalmente, se experimentar. Digo “principalmente” na medida em que as inúmeras
experimentações - sejam elas as experiências com sua sexualidade, com as drogas ou com o seu corpo – são tidas como normais
desde que dosadas, quer dizer, que as tentativas e os “erros” decorrentes possam servir como possibilidades de aprendizagem para
a vida adulta e que possam rapidamente ser corrigidos.
A técnica de grupo focal oportuniza também um
aprofundamento de determinadas questões em um prazo curto, no
entanto, a técnica tem alguns limites que vamos explicitar agora. O
pesquisador tem menor controle sobre a sessão (desvio no foco,
falta de preparo do moderador). Abaixo segue uma intervenção da
observadora, que percebeu que eu (moderador) não estava conseguindo manter a organização e o foco. “Rose7 – gurias, gurias ...
vocês não tão ouvindo a Bruna, todas falam ao mesmo tempo e daí
depois na hora da transcrição o Damico fica louco!”
Uma outra limitação está na amostra, por ela ser pequena e
intencional acaba por pressionar o investigador a se preocupar
com a presença/ausência nos encontros, ou que algum desentendimento que por ventura surja no grupo possa ter seus efeitos
minimizados a ponto de não causar desistências. Nesse caso, uma
das participantes no terceiro encontro pediu que uma colega/amiga pudesse participar, o contrato inicial não permitia tal possibili-
7
Fui auxiliado por Rose Meyer (Mestre em Psicologia Social e Institucional - UFRGS) nos
encontros, que me ajudou com o gravador e que, em alguns momentos, interveio nas
discussões no grupo.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
56
Em foco
José Damico
dade, mesmo assim sugeri que as participantes avaliassem essa
possibilidade de flexibilização das regras, o que não foi aceito por
elas, a jovem não gostando da posição do grupo comunicou que
não participaria mais.
É importante observar que a investigação não deveria ocasionar ônus financeiro para as participantes em termos de despesas
com deslocamento para o local dos encontros; caso essa situação
ocorresse, eu subsidiaria tais gastos. Além disso, foi considerado
oportuno que, durante os encontros, se realizasse um intervalo
com lanches para as participantes, como um espaço de pausa entre
a primeira parte das atividades e a segunda e também como forma
de descontrair o grupo.
E por último, cabe lembrar a necessidade de devolução
(triangulação) dos dados para validação e, além, da grande quantidade de dados e a dificuldade na própria organização e análise
dos mesmos. No que se refere a devolução dos depoimentos obtidos eu e a observadora realizamos cerca de 6 meses depois da
coleta uma reunião onde apresentamos as principais análises e os
depoimentos correspondentes.
Ao final do processo de levantamento e transcrição das informações produzidas no trabalho de campo, passei, então, a tentar
conferir alguns sentidos a esse conjunto de informações. As tentativas de organização exigiram uma série de exercícios de minha
parte, uma vez que a quantidade de informações geradas (cerca de
180 páginas transcritas) tinha sido significativa. Por fim, decidi
organizar as informações a partir de três unidades. Essas unidades
foram definidas com base nos interesses do estudo: explorar as
compreensões das jovens participantes sobre os cuidados com o
corpo que elas e outras mulheres do seu convívio desenvolvem
em relação a si mesmas; explorar como esses cuidados são aprendidos e colocados em operação; e problematizar tais aspectos a
partir das discussões de gênero.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
57
4 Analisando o discurso
No período do trabalho de campo, muitas questões instigaram-me e chamaram-me a atenção. Eu ouvia as fitas com as gravações, lia as transcrições e perguntava-me o que estava ali e eu não
conseguia ver. Naquele contexto em que circulavam diferentes
forças, em que significados iam sendo construídos e negociações
e práticas sociais iam sendo enunciadas, busquei estabelecer uma
leitura que produzisse um movimento analítico que transitasse por
diferentes lugares, como o lugar-escola e o lugar-corpo, e por diferentes processos, como a correta gestão do corpo e o prazer de
ser olhada e desejada, a resistência para não submeter às normas;
a preguiça culpabilizada e a celebração da força de vontade; as
dietas em momentos específicos e os vômitos e desmaios experimentados nas semanas de festas consideradas importantes. Como
sugere Carlos Skliar:
Existe um olhar que parte da mesmidade. Outro que se inicia no outro, na expressividade
de seu rosto. Talvez esta distinção seja uma
forma para poder olhar entre aquelas representações, aquelas imagens que tomam como
ponto de partida e como ponto de chegada o
eu mesmo, o mesmo – o sumidouro, o refúgio
do próprio corpo e do mesmo olhar –, e aquelas que começam no outro e se submetem a seu
mistério, seu distanciamento, sua rebeldia, sua
expressividade, sua irredutibilidade. Uma imagem do mesmo que tudo alcança, captura, nomeia e torna próprio; outra imagem que retorna
e nos interroga, nos comove, nos desnuda, nos
deixa sem nomes (SKLIAR, 2003, p. 67-68).
Mesmidade e alteridade, pontos de vista para diferentes olhares que nos permitiram experimentar que o “como se vê” e “o
que se vê” são determinados pelas relações de poder que carregam em si também a possibilidade de subversão. A análise das
diferentes falas que as jovens produziram no lugar-escola e no
, Porto Alegre, v.12, n. 01, p. 59-80, janeiro/abril de 2006.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
58
Em foco
José Damico
espaço de discussão, criado nos grupos focais, possibilitou delinear discursos e estratégias conflitantes, e, deste modo, não se
pode dizer que os discursos da boa forma sejam uniformemente
coercitivos.
Por fim, as informações foram organizadas a partir de três
unidades temáticas. Essas unidades foram definidas com base nos
interesses do estudo e ficaram assim definidas: explorar as compreensões das jovens participantes sobre os cuidados com o corpo
que elas e outras mulheres do seu convívio desenvolvem em relação a si mesmas; explorar como esses cuidados são aprendidos e
colocados em operação; e problematizar tais aspectos a partir das
discussões de gênero.
A análise propriamente dita deu-se numa articulação entre os
elementos que compõem os enunciados de uma discursividade
sobre os corpos femininos jovens e a organização desses elementos em relação ao cuidado que as jovens estabelecem consigo
mesmas. Temos claro que o que nos propomos a fazer, e esperamos ter conseguido, foi organizar os enunciados de uma determinada forma e não de muitas outras possíveis, agrupando as unidades temáticas como se este agrupamento estivesse visível em um
objeto óptico, um caleidoscópio.
O caleidoscópio8 é um objeto para olhar que usa as características dos prismas para criar imagens coloridas e diferentes
que se movem. Dependendo do ângulo que os espelhos são colocados, irão se formar imagens diferentes. A palavra vem do grego,
em que kalos quer dizer beleza, eidos significa forma e skopien é
olhar, ou seja, é o objeto ótico “que nos faz ver belas formas”. Luis
8
O caleidoscópio é um artefato óptico que consiste num pequeno tubo cilíndrico no fundo
do qual há pequenos pedaços coloridos de vidro ou de outro material, cuja imagem é
refletida por espelhos dispostos ao longo do tubo, de modo que, quando se movimenta o
tubo ou esses pedaços, formam-se imagens coloridas e múltiplas. A dissertação de Luis
Henrique Sacchi dos Santos, “Um olhar caleidoscópico sobre as representações culturais
de corpo” (1998) utiliza a metáfora do caleidoscópio desde o título.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
59
Henrique Santos (1998), ao discutir o uso da metáfora do caleidoscópio afirma que:
[...] a metáfora cumpre também a função de
explicar um mundo em constante mudança,
porque cada imagem formada não é igual a
outra. Embora mude a forma, multiplique a
cena ou o objeto observado, o caleidoscópio
não os transforma em outra coisa, a alteração
retém o que foi alterado; em um exemplo: o
corpo continua corpo, mas o olhar sobre ele se
modifica (SANTOS, 1998, p. 19).
As unidades que organizei se formam em torno das questões
sobre o cuidado que se articulam ao objeto óptico ao priorizar as
multiplicidades, a produção de fluxos e os jogos de linguagem.
A primeira unidade envolveu tomar o cuidado como um artefato óptico que permite ver as práticas corporais que as jovens
privilegiaram quando cuidam de seu próprio corpo a fim de aperfeiçoarem-se e produzirem-se a si mesmas.
A segunda unidade considerou o cuidado como um artefato
óptico semelhante ao anterior e que emprega o mesmo princípio
óptico de reflexão, no qual o jogo ou a combinação de imagens se
produz por reflexos de objetos “exteriores”, ou seja, um objeto
que visibilize como as jovens se relacionam com os membros de
sua família, com os colegas da escola e com as mulheres de outras
gerações. Aqui as mulheres jovens são figuras centrais, tanto nos
aspectos de uma cultura de consumo globalizada quanto nas preocupações sociais e de saúde que constituem os sujeitos jovens,
dando sentido às falas enunciadas pelas jovens nos encontros.
A terceira unidade concebeu o cuidado como uma síntese
das outras duas, onde o objeto óptico reuniu um conjunto de cores
e formas que integram imagens em constante mutação numa sucessão vertiginosa, cambiante, de ações, sensações etc. Nessa
unidade, a análise foi organizada a fim de examinar a relação com
os diferentes saberes que produzem mudanças no corpo jovem
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
60
Em foco
José Damico
feminino. Ao utilizar fragmentos de “coisas ditas” em um encontro
e depois localizar outro fragmento, juntando-os, procurei trabalhar
na e a partir da idéia do caleidoscópio como um instrumento que
recria continuamente o que se vê. Assim, a busca foi pelo
descontínuo e pela dispersão dos enunciados, para torná-los produtivos na dissertação. As unidades que organizei tomam como
referência a “relação consigo”, aqui entendida como:
[...] a relação pela qual o sujeito constitui a si
como ‘sujeito moral’, ou seja, pela qual ele
aprende a reconhecer e a estabelecer para si
como bons e verdadeiros certos modos de agir,
isso por sua vez, exige que ele faça aprendizagens, exercite-se, aperfeiçoe-se, segundo valores, regras de conduta e interdições de seu tempo, de sua cultura e de sua condição social e
de gênero (FISCHER, 1996, p. 22).
As três unidades temáticas foram organizadas de modo a
formar um corpo discursivo que pudesse responder as questões de
pesquisa, com base em que os diferentes discursos sociais, as
posições de sujeito das falantes e, por último, as continuidades
das coisas ditas e das variedades das modalidades enunciativas
(FISCHER, 1996). Assim, ao operar metodologicamente com a
análise de discurso de ‘inspiração foucaultiana’, busquei trabalhar
as falas, decompô-las, multiplicar os sentidos que elas podem conter,
bem como localizar os rastros ou as marcas dos discursos que se
articulam para torná-las possíveis.
Para isso, apóio-me também em Céli Pinto (1999), que considera que os produtos culturais e os textos são produzidos no
interior de práticas contextualizadas histórica e socialmente. A
autora argumenta, ainda, que as marcas encontradas na superfície
textual envolvem o reconhecimento de que todo evento de comunicação é ou faz parte de um ritual social e que toda contextualização
passa sempre por mediações.
A opção por grupos focais facilitou a produção e a análise
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
61
deste tipo de evento de comunicação, na medida, que, “analisar o
discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas,
de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos discursos”
(FISCHER, 2001, p. 198). Conforme Foucault (1999, p. 56): “É
para estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes
muitas vezes, mas não autônomas, que permitem circunscrever o
“lugar” do acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de sua aparição.”
Uma outra questão refere-se ao foco de problematização, ou
seja, o exame do poder e da constituição subjetiva como elementos centrais na análise das práticas discursivas. No caso deste
estudo, coube focalizar, na análise, os jogos de poder e saber envolvidos nos processos de aprendizagem que determinadas jovens
vão empreendendo, o que implica estar atento para a
heterogeneidade, a multiplicidade e a conflitualidade de poderes
envolvidos na produção desses corpos jovens.
As condições de existência de um discurso que institui e ao
mesmo constitui o sujeito jovem, ocorrem na medida em que a
compreensão das relações de poder-saber permite que se mostre a
positividade e a materialidade dos discursos. Essa materialidade
pode aparecer quando se fazem ao corpus discursivo questões
como essas: quem pode falar o quê? Para quem e em que lugar?
Considerando a centralidade do corpo feminino jovem na
cultura contemporânea é que posso afirmar que a opção pelo grupo focal contribui para que essa materialidade fosse produzida sujeito social de uma série de discursos na medida em que diferentes instâncias procuram produzir e reproduzir um gestual, um
vocabulário e práticas cotidianas jovens nas quais práticas corporais que envolvem modos de alimentar-se, fazer exercícios e vestir-se figuram como elementos básicos - interroga-se os discursos
que delimitaram as discussões com as jovens. Dessa forma, busca-se mapear como poderes e saberes produzem sentidos e como
as jovens estudantes investigadas estabelecem as relações consi, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
62
Em foco
José Damico
go diante de um conjunto de normas, regras e cuidados necessários para um aperfeiçoamento de seu modo de vida.
De acordo com Foucault (1999, p. 59):
É sempre no âmbito da materialidade que ele
[o discurso] se efetiva, que é efeito; ele possui
seu lugar e consiste na relação, coexistência,
dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e
em uma dispersão material.
As opções metodológicas realizadas na trajetória do processo de pesquisa se notabilizam por um conjunto de escolhas nem
sempre fáceis de serem explicadas, nem, necessariamente as melhores ou mais corretas, mas aquelas que foram possíveis pelas
leituras de outros estudos e pelas reflexões que vimos fazendo
sozinhos e acompanhados. Que elementos destes estudos e reflexões influenciaram na escolha por grupos focais e análise do discurso? Enfim, trata-se de uma metodologia que tecida durante a
feitura da dissertação, às vezes imitando, às vezes mudando uma
coisa ou outra e até criando “de quando em vez”.
Dessa forma, o objetivo principal deste estudo não é revelar
algo que estaria por trás das falas das jovens, mas acessar as
instâncias de aprendizagens, os discursos e as relações de gênero
que levam essas mulheres jovens a ocupar determinadas posições
de sujeito nas culturas que habitam. Dizendo de outro modo: a
análise de discurso realizada permitiu que ao olhar os materiais e
perguntar de que maneira essas coisas são ditas, o que significa
terem se manifestado ali, naquele grupo, naquela escola e não em
outro lugar e ao analisar, não os enunciados ocultos ou subentendidos, mas o que está explícito como linguagem mesmo, interroguei a linguagem naquilo que ela produz e naquilo que a produziu.
Conforme Fischer (1996, p. 106):
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
63
As “coisas ditas” [...] para Foucault, são radicalmente amarradas às dinâmicas de poder
e saber de seu tempo. Daí que o conceito de
prática discursiva, para Foucault, não se confunde com a mera expressão de idéias, pensamentos ou formulação de frases. Exercer uma
prática significa falar segundo determinadas
regras e expor as relações que se dão dentro de
um discurso.
Portanto, interessou na análise dos enunciados9, nos discursos que tornaram possíveis as falas das jovens, ressaltar essas
formações discursivas para verificar a forma como as participantes se referiram ao seu corpo, como e com que freqüência utilizaram tal enunciado, como empregaram um determinado conceito e,
finalmente, para qual estratégia o enunciado estava sendo empregado, caracterizando a formação discursiva pela regularidade com
que determinadas práticas se apresentaram e se materializaram.
Esse tipo de análise consiste em:
[...] Reconhecer que, quando usamos a linguagem, pode ocorrer que não sejamos nós que
estamos falando, mas a linguagem que nos foi
dada através das formações sociais que ocorreram no passado. Por exemplo, um dos compromissos contemporâneos em determina das
pesquisas educacionais é falar sobre a “voz”
dos professores e estudantes como próprias,
9
Diferencio enunciado de enunciação, entendendo que a enunciação seria o que é dito
ou mostrado numa determinada cena: um homem assiste ao acidente de carro e enuncia:
“Só podia ser mulher!”. Isso pode ocorrer milhares de vezes, e as cenas individualmente
serão sempre outras, tantas quantas ocorrerem. Para descrever os enunciados de um
discurso, certamente precisamos recorrer às enunciações, analisar o que é dito, escrito
ou mostrado em diferentes materiais (textos, vídeos, programas de televisão, registros de
observação de cenas); mas o que será descrito não é uma repetição das tantas coisas
faladas ou afirmadas, e sim a “função enunciativa”, aquilo que “faz” com que essas coisas
sejam ditas. No conjunto dos discursos sobre a mulher, há a memória de enunciados
sobre a dificuldade da mulher com as máquinas, com a matemática, com a engenharia.
Há, sobretudo, o discurso machista sobre a inferioridade da mulher, em vários campos da
atividade humana. Ora, o enunciado sobre mulher incapaz ou inferior está vivo na
enunciação de cena de rua: “Só podia ser mulher” (FISCHER, 2001, p. 86).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
64
Em foco
José Damico
pessoais e autênticas. Mas quando ouvimos a
voz das pessoas falando nas escolas, damo-nos
conta de que boa parte dessa fala foi construída
anteriormente a nossa entrada em cena
(POPKEWITZ, 1994 p. 195-196).
É nesse sentido que, substituindo da citação as palavras “professores e estudantes” por “jovens estudantes”, pode-se perceber
o efeito das falas. O que está em questão é o descentramento do
sujeito, deslocando-o do lugar central e privilegiado, compreendendo como, em diferentes épocas, as pessoas são transformadas
e colocadas em determinadas posições de sujeitos.
6 Finalizando...
A escolha teórico-metodológica que realizei dependeu em
grande parte da posição de sujeito que ocupei. O que significa
dizer que a combinação de uma determinada forma de coletar informações com uma maneira específica de analisá-la implicam
uma visão de mundo, de ciência e de cultura. Essa posição
epistemológica de ver e querer conhecer o mundo é que permitiram ancorar a técnica de grupo focal e a análise de discurso em
uma noção de linguagem enquanto um sistema de constituição de
significados que é situado tanto histórico quanto socialmente. Os
textos, artigos, reportagens ou as discussões em grupos estão colados em arcabouços discursivos.
Assim problematizar e/ou historicizar é compreender que a
história não é um campo que descreve fatos e acontecimentos,
mas que produz e modifica fatos que supostamente descreve e o
modo como as coisas se tornam isto que elas são, o que se mantém
e o que se modifica, o que está em jogo nesses processos de
significação.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Corpo a corpo com as jovens...
65
Body the Body With the Young Women: Focus
Group and Discourse Analysis in the Research
of Physical Education
Abstract: This paper aims at indicating some of
the analytical potential of focus group research in
approaches with a critical approximation to the poststructuralist perspective which carry out discourse
analysis. The paper is based on a Master ’s
Dissertation which discussed some of the ways
through which young women give meaning to, learn,
grasp and experience body care in
contemporaneity.
Keywords: Discourse analysis. Focus group.
Gender identity. Adolescent.
Cuerpo a cuerpo con las jóvenes: grupos
focales y análisis del discurso en
investigaciones en la Educación Física
Resumen: El presente artículo tiene por objetivo
apuntar algunas de las potencialidades analíticas
en investigaciones con grupos focales que se
plantean en las perspectivas pos-estructuralistas,
y analizan informaciones por medio del análisis del
discurso El texto está basado en una disertación
de maestría que investiga los modos como las
jóvenes mujeres significan, aprenden e viven, en la
contemporaneidad el cuidado de su cuerpo.
Palabras-clave: Análisis del discurso. Grupo focal. Identidad de género. Adolescente.
REFERÊNCIAS
ABERASTURY, Arminda; KNOBEL, Maurício. Adolescência normal: um enfoque
psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
BARBOUR, Rosaline S.; KITZINGER, Jenny. Developing Focus Group
Research: Politics, Theory and Practice. London: Sage, 1999. 240 p.
BARTHES, Roland. O jogo do Caleidoscópio. In: ____. O grão da voz: entrevistas
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, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
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Recebido em: 31/03/2006
Aprovado em: 12/07/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 35-67, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável: uma revisão das
pesquisas em Língua Inglesa**
Paula J. Gardner*
Resumo: “Envelhecimento saudável”, como uma perspectiva particular para explorar o relacionamento entre saúde e
envelhecimento, é um paradigma teórico poderoso na cultura
e prática da gerontologia e uma força dominante nas agendas de pesquisa, organizações financiadoras e governos no
mundo de língua inglesa. Escrito a partir de uma perspectiva
norte-americana, essa resenha proporciona um resumo da
extensa documentação em literatura de língua inglesa
dedicada ao “envelhecimento saudável”, incluindo a identificação de críticas-chave e desafios da área. A seção final do
trabalho considera o quanto um foco no “ir e vir” (“going and
doing”) de idosos entre determinados lugares de envelhecimento representa uma direção nova e estimulante para as
pesquisas futuras sobre envelhecimento saudável.
Palavras-chave: Saúde do idoso. Geriatria. Envelhecimento da população.
1 Introdução
O envelhecimento populacional e as conseqüências desta
mudança demográfica estão recebendo atenção crescente em níveis local, nacional e internacional. Embora a busca pela compreensão do significado de velhice remonte às obras de filósofos como
Platão e Cícero (CÍCERO, 106 a.C.), em grande parte do mundo
de língua inglesa o interesse pelo envelhecimento começou a florescer nos anos 90 em função de vários fatores inter-relacionados.
Esses fatores incluem o ambiente político-econômico de países
ocidentais de alta renda per capita, a identificação do acentuado e
crescente envelhecimento populacional nesses países e o efeito
(real e potencial) dessa mudança demográfica nas estruturas sociM.A. (PhD Candidate) Department of Public Health Sciences and Collaborative Program
Aging and the Life Course. University of Toronto.
*
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
70
Em foco
Paula J. Gardner
ais, incluindo famílias, comunidades, economia, planejamento,
desenvolvimento, religião, ambiente, política, cultura e cuidados
de saúde. Na América do Norte, bem como muitos outros países
de língua inglesa, incluindo a Grã-Bretanha, a atenção tem se voltado para o “envelhecimento saudável” – um movimento contemporâneo que está predominantemente preocupado com a correlação saúde-envelhecimento e, de modo mais específico, com os
determinantes de uma “boa velhice”.
Uma revisão da literatura internacional anglo-saxã revela
que “envelhecimento saudável” é um poderoso paradigma teórico
na cultura e prática da gerontologia atual e uma força dominante
nas agendas de pesquisa, nas organizações financiadoras e governos (MINKLER, 2002; SCHEIDT, HUMPHERYS; YORGASON,
1999; MOODY, 2001). Enquanto movimento teórico, o envelhecimento saudável sustenta-se no pressuposto de que os processos
de envelhecimento são, até certo ponto, modificáveis, o que leva
pesquisadores da área a adotarem uma abordagem multidimensional
e micro (individual) para compreenderem a relação entre envelhecimento e saúde em seus aspectos biológicos, físicos e sociais. O
envelhecimento saudável é definido através de uma série de critérios (tais como satisfação de vida e disposição de espírito) e medidas objetivas (tais como morbidez e mortalidade) e a definição
mais proeminente o descreve como sendo a habilidade de manter
três características chave: baixo risco de doença e deficiências
relacionadas à doença, alta atividade mental e física e envolvimento
ativo na vida cotidiana (ROWE; KAHN, 1998, p. 38).
A crescente atenção à população envelhecente é um fenômeno internacional. Estamos no limiar de uma grande transição
demográfica que está estimulando discussão e debates a respeito
da velhice nos mais destacados meios culturais, econômicos, políticos e acadêmicos (MOODY, 2001, p.175). Esse limiar no qual
nos encontramos proporciona uma extraordinária oportunidade para
debates ideológicos, aprofundamento da compreensão, desenvolvimento de teorias, defesa de mudanças e promoção de práticas
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
71
enquanto forjamos novos caminhos para a compreensão da relação entre saúde e envelhecimento. Neste contexto, essa resenha
trata, resumidamente, da produção em língua inglesa dedicada ao
“envelhecimento saudável”, e inclui a identificação de críticas chave
e desafios enfrentados pelo campo. A seção final da resenha considera o quanto um foco no movimento de idosos entre lugares de
envelhecimento representa uma direção nova e estimulante para
as futuras pesquisas de envelhecimento saudável.
2 O que significa “saudável” e “envelhecimento”? Termos e
terminologia
Como uma alternativa ao paradigma “perda e declínio”, muito
popular durante grande parte da curta história da gerontologia, o
envelhecimento bem-sucedido é descrito como uma “nova” abordagem (ESTES; BIGGS; PHILLIPSON, 2003) ou “novo” paradigma
teórico (HOLSTEIN; MINKLER, 2003; MINKLER; FADEM, 2002;
MOODY, 2001) na geriatria e gerontologia. Nesta perspectiva, vários termos foram adotados e freqüentemente vêm sendo empregados de forma alternada na literatura do campo: “envelhecimento
saudável” (BRYANT, CORBETT; KUTNER, 2001, CUSACK;
THOMPSON; ROGERS, 2003; MICHAEL; COLDITZ; COAKLEY;
KAWACHI, 1999), “envelhecimento bem-sucedido” (MOEN;
DEMPSTER-MCCLAIN; WILLIAMS, 1992; ROWE; KAHN, 1998;
RYFF, 1989; STRAWBRIDGE; COHEN; SHEMA; KAPLAN,
1996), “envelhecimento produtivo” (BUTLER; GLEASON, 1985,
RANZIJN, 2002) e “bem-estar” (CLARKE; MARSHALL; RYFF;
ROSENTHAL, 2000, RUFFING-RAHAL; BARIN; COMBS, 1998).1
1
O conceito de envelhecimento produtivo tem uma origem distinta do conceito de envelhecimento bem-sucedido, apesar de sua semelhança conceitual. Envelhecimento produtivo é visto como a manutenção de um foco específico na utilidade econômica, atividade
produtiva e contribuição social e econômica de adultos idosos (ver Butler; Gleason, 1985,
Butler; Schecheter, 1995). O envelhecimento produtivo também é regularmente confundido com o “envelhecimento bem-sucedido”, dada a semelhança entre produtividade e sucesso na cultura ocidental. Neste trabalho eles são apresentados como sinônimos.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Paula J. Gardner
O foco deste trabalho são os dois conceitos intimamente ligados
“envelhecimento saudável” e “envelhecimento bem-sucedido”.
Buscas nas bases de dados PsychInfo, Medline, AgeLine, e Web of
Science usando as palavras-chave “envelhecimento bem-sucedido”
e “envelhecimento saudável” em inglês revelam centenas de artigos
publicados para cada um desses dois termos, e produziram a maioria de fontes para esta revisão.
3 Teorias e modelos chave
Desde o começo dos anos 60, várias teorias sobre envelhecimento saudável foram propostas incluindo a da atividade, do
ócio, da continuidade e sócio-ambiental (CHAPMAN, 2005;
NUSSBAUM; PECCHIONI; ROBINSON; THOMPSON, 2000).
O Modelo de Envelhecimento Bem-sucedido (ROWE; KAHN,
1997, 1998) e o Modelo de Otimização Seletiva e Compensação
(em inglês SOC) (BALTES; BALTES, 1990) são, entretanto, os
modelos mais populares e influentes de pesquisa e prática de envelhecimento saudável.
Baseado no reconhecimento da heterogeneidade no processo de envelhecimento, o Modelo de Envelhecimento Bem-sucedido de Rowe e Kahn (1997, 1998) é uma estrutura multidimensional
composta de três componentes ordenados hierarquicamente que
definem envelhecimento saudável como “[...] a habilidade de manter
três comportamentos ou características chave: baixo risco de doença e deficiência relacionada à doença, alta atividade mental e
física e envolvimento na vida cotidiana” (KAHN, 1998, p. 38). O
Modelo de Envelhecimento Bem-sucedido centra-se no pressuposto de que características “usuais” de envelhecimento são
modificáveis ou, dito de outro modo, de que fatores externos (tais
como estilo de vida) desempenham um papel significante na determinação de risco na velhice.
O Modelo de Otimização Seletiva e Compensação (SOC) é
um modelo psicológico que consiste em três estratégias adaptativas
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
73
interrelacionadas: seleção, otimização e compensação (BALTES;
BALTES, 1990, BALTES; CARTENSEN, 1996; FREUND;
BALTES, 1998). O elemento de “seleção” se refere à perda ou
restrição de certas funções associadas ao envelhecimento e à tarefa adaptativa de se concentrar nesses domínios, que são altamente
prioritários de acordo com exigências ambientais, motivações individuais e capacidade biológica. A “Otimização” está relacionada com o aumento e enriquecimento de reservas pessoais e
maximização da duração da vida quantitativa e qualitativamente.
Por fim, “compensação” é o processo pelo qual os indivíduos
usam elementos mentais e tecnológicos para compensar perdas
funcionais derivadas do envelhecimento. Apesar de não ser tão
popular quanto o modelo de Rowe e Kahn, esse modelo traz uma
importante contribuição ao discurso de envelhecimento saudável – em vez de ver o envelhecimento bem-sucedido como um
estado, o Modelo SOC trata o envelhecimento bem-sucedido
como um processo de adaptação contínua. Essa perspectiva
enfatiza o desenvolvimento humano e apóia a pesquisa sobre a
trajetória de vida.
3 Achados chave
A maior parte da literatura em inglês sobre envelhecimento
saudável pode ser organizada em duas categorias – biomédica
(focada no estado de saúde e preocupada primeiramente com doenças, deficiências e padrões clínicos) e psicossocial (focada no
estado mental e ajustes ao processo de envelhecimento). Muito do
que se sabe a respeito de envelhecimento saudável, a partir de
uma perspectiva biomédica, é baseado em dados de grandes estudos longitudinais como o Estudo Longitudinal de Envelhecimento
de Duke (PALMORE, 1979); Estudo Longitudinal de Envelhecimento de Manitoba (ROOS; HAVENS, 1991); o Estudo de Envelhecimento de Alameda County (GURALNIK; KAPLAN, 1989,
STRAWBRIDGE; COHEN; SHELMA; KAPLAN, 1996); e o Estudo de Envelhecimento Bem-sucedido de MacArthur (SEEMAN;
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Paula J. Gardner
LUSIGNOLO; ALBERT; BERKMAN, 2001). A maior parte dessas
pesquisas foi realizada nos Estados Unidos, apesar de haver alguns
trabalhos de outros países como Canadá, China e Austrália.
Os resultados de tais estudos demonstram que vários fatores chave podem ser organizados em três grupos: demográficos,
físicos e apoio ou redes sociais. As características demográficas
significativamente associadas ao envelhecimento bem-sucedido
são idade, sexo e status socioeconômico. Declínio relacionado à
idade foi observado em quase todos os estudos (CHOU; CHI,
2002, LAMB; MYERS, 1999; GARFEIN; HERZOG, 1995,
O’ROURKE; MACLENNAN; HADJISTAVROPOULOS;
TUOKKO, 2000). O envelhecimento dos homens foi considerado
mais bem-sucedido do que o das mulheres (CHOU; CHI, 2002,
FORD et al.., 2000, LAMB; MYERS, 1999, STRAWBRIDGE et
al., 1996). O status socioeconômico, mensurado primeiramente de
acordo com escolaridade, também foi identificado como um
determinante importante (GURALNIK; KAPLAN, 1989,
O’ROURKE et al., 2000; VAILLANT; VAILLANT, 1990,
VAILLANT; WESTERN, 2001).
Os resultados ainda apontam para dois comportamentos, consumo de tabaco e atividade física, como os fatores físicos mais
importantes associados ao envelhecimento saudável. Eles claramente demonstram que indivíduos que não fumaram ou abandonaram o cigarro antes dos 50 anos tinham mais propensão a envelhecer de forma bem-sucedida (BURKE et al., 2001, FORD et al.,
2000, GURALNIK; KAPLAN, 1989; MICHAEL et al., 1999;
PALMORE, 1979, REED et al., 1998; VAILLANT; VAILLANT,
1990). A atividade física mostrou-se um determinante de envelhecimento saudável, tanto em estudos seccionais quanto longitudinais (MENEC, 2003, MICHAEL et al., 1999; STRAWBRIDGE et
al., 1996; VAILLANT;VAILLANT, 1990). Outros fatores físicos
que se mostraram importantes foram a auto-avaliação do estado
de saúde (CHOU; CHI, 2002, GARFEIN; HERZOG, 1995, ROOS;
HAVENS, 1991), não ser obeso (GURALNIK; KAPLAN, 1989,
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
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MICHAEL et al., 1999; REED, et al., 1998) e baixa pressão
sangüínea (GURALNIK; KAPLAN, 1989, REED et al., 1998,
STRAWBRIDGE et al., 1996). Pesquisas realizadas a partir de
uma perspectiva biomédica também demonstram que o suporte
social é um importante determinante de envelhecimento saudável.
Visitas freqüentes (GARFEIN; HERZOG, 1995) e sistemáticas
(VAILLANT; VAILLANT, 1990) à família, ter 5 ou mais contatos
pessoais (STRAWBRIDGE, et al., 1996), incluindo contatos por
telefone, (GARFEIN; HERZOG, 1995) e participar em atividades
de grupo (PALMORE, 1979) foram os determinantes mais salientes. Além disso, o apoio de uma rede de pessoas com as quais se
têm relacionamentos sociais foi associado à maior quantidade de
atividade física (MICHAEL et al., 1999) e cognitiva (SEEMAN et
al., 2001). Seeman e colegas (2001) especulam que as redes sociais possam operar como um fator protetor do envelhecimento
cognitivo.
A pesquisa psicossocial dedicada ao envelhecimento saudável amplia-se e diversifica-se à medida que os pesquisadores consideram em seus estudos não apenas quais fatores são associados
ao envelhecimento saudável, mas também como esses mesmos
fatores operam. O conjunto desse trabalho está menos preocupado
com a função ou ausência de doenças (os dois componentes privilegiados pela perspectiva biomédica) e mais preocupado com o
envolvimento na vida cotidiana. Uma revisão da literatura revela
vários achados importantes, sendo que o mais significativo está na
área do apoio social e das redes sociais. Estudos revelam não só
que o apoio social é um fator determinante no envelhecimento
saudável, mas que a sua ampliação ao longo do tempo e redes
sociais de apoio pré-estabelcidas estão relacionadas ao bem-estar
(GURUNG, TAYLOR;SEEMAN, 2003). Outros estudos também
revelam que apoio social tem especificidades de gênero – os homens recebem mais apoio de suas esposas, enquanto mulheres
recebem a maior parte da assistência de amigos e parentes
(GURUNG; TAYLOR; SEEMAN, 2003). Em um estudo longitu, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Paula J. Gardner
dinal sobre a saúde das mulheres, a integração social (definida
como a realização de múltiplos papéis sociais) mostrou-se promotora de envelhecimento saudável (MOEN; DEMPSTERMCCLAIN;WILLIAMS, 1992). A pesquisa de Day e Day (1993)
a respeito de mulheres idosas revelou que os níveis de bem-estar
eram maiores entre as que viviam apenas com o marido ou sozinhas, e menores entre as que viviam com parentes que não seus
maridos. Os autores atribuem essa discrepância à perda de controle pessoal.
Em outra pesquisa a respeito do controle percebido das redes sociais, Bailis e Chipperfield (2002) sugerem que “auto-estima coletiva” (a auto-avaliação do indivíduo como membro de um
grupo social) pode proteger a saúde de adultos mais velhos que
têm a percepção de pouco controle pessoal sobre a saúde. O efeito positivo de sentir-se parte de uma comunidade é demonstrado
em outra pesquisa. Leviatan (1999) descobriu que a vida nos
kibbutz, na qual os adultos mais velhos são valorizados como
membros importantes e respeitados de uma comunidade, é um
sistema social favorável que contribui para o envelhecimento saudável (alta percepção de auto-estima e baixas taxas de mortalidade). Outra pesquisa dentro de uma perspectiva psicossocial concentrou-se na psicologia individual e no efeito da personalidade
no envelhecimento saudável. Nesse trabalho se explorou da identidade de gênero, demostrando-se particularmente o relacionamento
positivo entre androginia (uma combinação de características que
por esteriótipo são consideradas exclusivamente masculinas ou
femininas) e envelhecimento saudável (RUFFINGRAHAL;BARIN;COMBS,1998, SHIMONAKA; NAKAZATO;
HOMMA, 1996). O trabalho de Shimonaka (1996) a respeito da
personalidade sugere que comportamento Tipo B, particularmente
a característica de flexibilidade, está ligado à longevidade. Em um
estudo a respeito de idosos finlandeses, Uotinen, Sutama e Ruoppila
(2003) examinaram o relacionamento entre a identificação da idade (por exemplo, percepções de envelhecimento pessoal) e enve, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
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lhecimento saudável. Descobertas indicam que aqueles que estão
envelhecendo bem mantêm uma identidade mais jovial, uma idade
ideal mais alta, maior satisfação com sua idade cronológica, definiram o começo da velhice mais tarde e manifestaram uma disposição de viver até os 100 anos.
4 Resumo e lacunas
Independentemente da perspectiva, o principal objetivo da
pesquisa de envelhecimento saudável é identificar e explorar os
determinantes de uma “boa velhice”. O extenso programa de pesquisa dedicado ao envelhecimento saudável revela a
multidimensionalidade e complexidade desse fenômeno à medida
que situa o envelhecimento muito além da saúde e longevidade. A
pesquisa de envelhecimento saudável apóia (e é apoiada por) uma
mudança na gerontologia em direção ao reconhecimento da
heterogeneidade de idosos e os aspectos positivos da velhice. Cada
linha de pesquisa (biomédica e psicossocial) fornece insights únicos e conhecimentos importantes que juntos oferecem uma contribuição significativa para o campo da gerontologia e aos discursos
ligados à saúde de idosos. Essa revisão também aponta para várias lacunas dentro da literatura. Apesar do contínuo reconhecimento da multidimensionalidade do envelhecimento saudável, a pesquisa é dominada por perspectivas biológicas e psicológicas. “Envelhecimento” e “saúde” são definidos de forma limitada: há uma
concentração na saúde física e habilidade funcional e poucos estudos se centram nos fatores sociais e ambientais associados ao
envelhecimento. Há muito poucos esboços de pesquisas qualitativas e muitas populações ausentes na pesquisa, incluindo deficientes, homossexuais, culturas diversas e aqueles menos saudáveis.
Uma das lacunas mais evidentes na literatura é a falta de pesquisa
sobre aspectos macro-estruturais no envelhecimento, já que a literatura reflete um foco dominante no indivíduo. Ironicamente, apesar desse foco individual, a voz subjetiva e experiência vivida de
idosos é quase completamente inexistente nessa literatura.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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5 Desafios e críticas
O discurso de envelhecimento saudável traz uma contribuição importante e significativa à gerontologia, especificamente ao
discutir a relação entre envelhecimento e saúde operacionalizada
em teorias e práticas de saúde. Desde o seu princípio, entretanto,
o movimento do envelhecimento saudável, e particularmente o
Modelo de Envelhecimento Bem-sucedido, têm sido criticados.
Primeiramente, alguns autores argumentam que devido ao fato dos
participantes terem que atingir todos os três critérios (evitar doenças, manter alta atividade cognitiva e física e envolvimento na
vida cotidiana), as pesquisas baseadas no modelo de Rowe e Kahn
estão voltadas para um pequeno e elitizado segmento da população (STRAWBRIDGE et al., 1996, p.135). Além disso, o componente “viver sem doença e déficit” tem sido questionado. Vários
pesquisadores argumentam que a maioria dos idosos vive com
algum grau de dependência ou de doença e, quando perguntados,
esperam uma deterioração da sua capacidade física em função da
idade cronológica (STRAWBRIDGE; WALLHAGEN;COHEN,
2002, BRYANT; CORBETT; KUTNER, 2001, VON FABER et
al., 2001). Nessa perspectiva, a obtenção do status de envelhecimento bem-sucedido parece ser inatingível e não-realista.
As críticas dirigidas especificamente ao modelo de Rowe e
Kahn também têm desafiado a pesquisa sobre envelhecimento
saudável. Primeiramente, a preocupação com os elementos físicos
e biológicos da saúde e envelhecimento tem sido criticada. Essa
revisão encontrou suporte para as reivindicações feitas por outros
autores (GARFEIN; HERZOG, 1995, p. S77) de que o envelhecimento precoce está predominantemente assentado em termos de
saúde física, apesar do seu objetivo multidimensional. Além disso, alega-se que o Modelo de Envelhecimento Bem-sucedido não
se dirige às (macro) estruturas sociais que são essenciais para pôr
em prática o envelhecimento bem-sucedido (RILEY, 1998). Outras críticas ao envelhecimento saudável se referem à sua
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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“normatividade implícita” (e, portanto, não percebida) (HOLSTEIN;
MINKLER, 2003, p. 791) deste constructo, como por exemplo, os
valores (definidos como padrões do desejável, TAYLOR;
BENGSTON, 2001, p. 125) sobre os quais os termos “envelhecimento” e “saudável” estão baseados.
Alguns autores argumentam que os valores caucasianos e
ocidentais – individualismo, sucesso e produtividade – estão
incrustados na ideologia do envelhecimento saudável e assentados em termos de responsabilidade individual, autonomia pessoal e independência (HOLSTEIN; MINKLER, 2003, MOODY,
2001, 2005, TAYLOR; BENGSTON, 2001; TORNSTAM, 1992).
Essa abordagem caracteristicamente americana (MOODY, 2005
e TORRES, 1999) põe um enorme peso na “conquista” do envelhecimento bem-sucedido e conduz a uma questão: e aqueles
que são incapazes ou até mesmo relutantes a atingir esse status?
Em outras palavras, quais as conseqüências de uma perspectiva
que é afirmada em valores de sucesso e responsabilidade em um
nível individual?
6 Preenchendo lacunas e respondendo críticas
Há muitos exemplos de pesquisas que operam fora do que
pode ser considerado “pesquisa de envelhecimento saudável tradicional”. Pesquisas a partir de “perspectivas alternativas” ajudam a preencher lacunas, responder críticas e fornecem uma nova
compreensão da relação entre envelhecimento e saúde. Atualmente, duas áreas de pesquisa oferecem proposições ímpares e apontam para o futuro dos estudos sobre envelhecimento saudável: a)
pesquisas sobre a opinião de idosos e b) pesquisas que buscam
contextualizar o envelhecimento saudável ao centrarem-se nos “lugares de envelhecimento”.
Respondendo as críticas de que a voz dos idosos tem sido
negligenciada, o fim dos anos 90 testemunhou o começo da linha
de pesquisa relacionada ao envelhecimento saudável baseada na
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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investigação das opiniões dos próprios idosos. O trabalho
investigativo que busca a interpretação dos idosos fornece uma preciosa contribuição sobre o significado subjetivo de conceitos como
envelhecimento saudável, a relevância desses conceitos para os
idosos e seu grupo etário e como a satisfação com a vida e o envelhecer com saúde são determinados (FISHER, 1992, p. 194). Há
duas descobertas significantes e inter-relacionadas nessa área de
pesquisa. Primeiramente, os dois atributos-chave do envelhecimento saudável, identificados pelos idosos, são envolvimentos com a
vida (também referido como senso de propósito, compromisso ou
atividade) e apoio social e relacionamentos (BRYANT; CORBETT;
KUTNER, 2001, FISHER; DAY; COLLIER, 1998, FISHER, 1995;
FISHER; SPECHT, 1999, KNIGHT; RICCIARDELLI, 2003,
PHELAN et al., 2004; TATE; LAH; CUDDY, 2003). O “ir e vir”
(going and doing), que freqüentemente envolve o inter-relacionamento entre esses dois atributos-chave, é particularmente relevante
em idosos (BRYANT; CORBETT; KUTNER, 2001). Em segundo
lugar, os resultados de alguns estudos ilustram que, apesar na hipótese de que muito da pesquisa sobre envelhecimento saudável se
baseia na ausência de doença e na manutenção de alta atividade
funcional, o envelhecimento saudável pode ocorrer (e ocorre) mesmo na presença de doença, deficiência ou outras privações (BOYLE;
COUNTS, 1988, FISHER; SPECHT, 1999, KNIGHT;
RICCIARDELLI, 2003; TATE; LAH; CUDDY, 2003).
Resumindo, a pesquisa que busca as opiniões de idosos destaca
que a capacidade funcional não pode ser visto como um fim em si
mesmo, e sim como um meio para um determinado fim – um fim que
está muito mais ligado à possibilidade de participação e envolvimento
na vida diária do que à habilidade funcional propriamente dita.
7 Lugares de envelhencimento
A pesquisa dedicada à investigação sobre “envelhecimento
e lugares” pode dar resposta à descontextualização e particular, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
81
mente à omissão de fatores ambientais associados ao envelhecimento saudável. Descobertas de várias disciplinas, incluindo a
gerontologia social, geografia da saúde, psicologia, antropologia
social e promoção da saúde, demonstram que o lugar onde se vive
é importante tanto para a saúde (status e comportamento) quanto
para o envelhecimento (processos e experiências). Como Moon
(1995, p. 4) descreve, “Saúde (e similarmente envelhecimento)
não existe em um vácuo social, onde processos e experiências não
estão situados no tempo ou espaço, desfocados ou deslocados”. A
importância do lugar na gerontologia é refletida em um crescimento da pesquisa no recém identificado campo interdisciplinar da
“gerontologia geográfica” (ANDREWS, et al., 2005). De acordo
com Wiles (2005, p. 100) a gerontologia geográfica preocupa-se
com “[...] as maneiras pelas quais espaço e lugar se relacionam
com a experiência e as necessidades dos idosos”, e os pesquisadores que atuam dentro dessa perspectiva buscam entender “[...]
como o envelhecimento afeta lugares e espaços específicos, e de
que modo contextos específicos influenciam em assuntos relacionados a envelhecimento e idosos”. No seu ensaio Spaces for inquiry
into the role of place for older people’s care (sem tradução para o
português), Cutchin (2005) descreve “lugar” como um amálgama
de aspectos sociais, culturais, históricos, políticos, econômicos e
físicos que compõem o contexto significativo da vida humana. Ele
argumenta que o lugar é um objeto complexo de pesquisa, vital
para o bem-estar dos idosos e oferece muitas avenidas
interdisciplinares para o trabalho dos pesquisadores.
Há um discurso diversificado e crescente dedicado aos “lugares de envelhecimento”. O corpo, o lar e o asilo são três focos
importantes de pesquisas. A geografia do corpo é um foco de
interesse emergente. Pesquisas nessa perspectiva abordam primeiramente o “corpo envelhecente” através de sua deterioração e
declínio físico-mental (KEARNS; MOON, 2002, MCHUGH, 2003,
NAIR, 2005, PARR, 2002). Desenhado dentro de uma perspectiva
antropológica com 12 meses de trabalho de campo em um lar para
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Paula J. Gardner
idosos de baixa renda, Kontos (2000, p. 269) explora a “dinâmica relação entre corpo, significado e lugar”. A sua pesquisa expõe a relação entre cultura e biologia, criticando afirmações de
experiências e significados universais de velhice. Kearns e
Andrews (2005) sugerem que, além de dar continuação à pesquisa a respeito do corpo envelhecente, os discursos sobre envelhecimento e o corpo como um lugar podem fornecer uma importante orientação para o estudo sobre a corporeidade envelhecente
em contextos positivos tais como sexualidade, estado físico e
espiritualidade.
Entretanto, a maior parte da pesquisa sobre lugares de envelhecimento centra-se em dois ambientes: o lar e os serviços de
atenção ao idoso. A pesquisa que toma os lares como foco aponta
que esse é um lugar de muita influência na saúde e bem-estar de
idosos. Kontos (2000) argumenta que o lar é um lugar importante
para a pesquisa sobre o envelhecimento, já que desempenha um
papel crítico na manutenção de um senso de identidade pessoal do
idoso. O lar, ao contrário de outros espaços de residência, não
compromete a independência do idoso. Outra pesquisa que toma
o lar como um lugar de envelhecimento procura centrar as análises
no sentimento de apego ao local. Cutchin, Owen e Chang (2003)
conduziram uma pesquisa empírica para explorar a importância do
apego, envolvimento social não-familiar, valorização e características individuais no processo de “sentir-se em casa” em locais de
assistência a pessoas dependentes. Os resultados demonstram que
o apego a um lugar na comunidade é necessário, mas não suficiente para dar conta do processo de “adaptação” (sentir-se em casa).
O envolvimento social não-familiar também desempenha um papel fundamental nesta “adaptação”, tanto o apreço pelo lugar quanto
o envolvimento social não-familiar exibem efeitos positivos no
resultado de “sentir-se em casa”. Pesquisas sobre moradias individuais e asilos estão preocupadas, sobretudo, com o que tem sido
chamado de debate “cuidado domiciliar versus cuidado comunitário” (ANDREWS; PHILLIPS, 2002).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
83
Mais recentemente, entretanto, as “lentes” da pesquisa
centraram o foco na compreensão das nuances das experiências
dos idosos, mais especificamente dos significados associados a
elas nesses locais, e suas implicações para o bem-estar. Andrews
et al (2005) refletem de que modo um foco conceitual sobre o
lugar pode informar a prática de enfermagem. A análise e discussão empregadas nesse estudo, bem como nos trabalhos de outros
pesquisadores, levam os autores a refletir sobre uma complexa
relação entre práticas humanas e ambientes físicos, “lugares”
que ganham sentido social, cultural e simbólico e que, por essa
razão, tornam-se importantes locais de apego e significação pessoal. A partir de uma perspectiva prática eles sugerem que um
foco de investigação centrado em conceitos gerontológicos fundamentais (como autonomia, qualidade de vida e cuidado) para
entender os diferentes modos de “lugar”, pode dar uma importante contribuição na melhora das instituições que oferecem cuidados de longa duração.
Os resultados dessas “abordagens alternativas” na pesquisa sobre o envelhecimento saudável revelam dois fatores importantes e inter-relacionados. Primeiramente, a pesquisa que busca a
opinião dos idosos ilustra que o “ir e vir” (going and doing) é um
importante determinante do envelhecimento saudável. Em segundo lugar, o papel significativo do lugar no processo e nas experiências relativas ao envelhecimento ganha destaque. A investigação
desenvolvida a partir desses conceitos fornece novos insights e
passa a ser tratada como uma importante contribuição à pesquisa
e prática de envelhecimento saudável de um modo geral. Sugerese aqui que a pesquisa de envelhecimento saudável preocupada
fundamentalmente com o “ir e vir” (“going and doing”) de idosos
em seus locais de convívio abre perspectivas promissoras para
futuros estudos na área.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
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8 À espera: Envelhecimento saudável e o “movimento” entre
“lugares de envelhecimento”
A pesquisa que busca a compreensão das transições e migrações entre lugares de envelhecimento, bem como o impacto desse
movimento na saúde dos idosos, representa um novo e interessante campo de estudos para a pesquisa sobre envelhecimento saudável. Apesar de limitadas, duas abordagens que exploram esse fenômeno foram identificadas. A pesquisa de gerontologia crítica
sobre comunidades de aposentados como “espaços sociais de
envelhecimento” e representa uma tentativa de refletir sobre o
movimento de idosos entre lugares de envelhecimento. Katz (2005)
e outros (LAWS, 1995, MCHUGH, 2003) examinaram comunidades de aposentados, e em particular as comunidades de “Sun City”
na Flórida, considerando-as um interessante “espaço de envelhecimento” no qual eles exploram as experiências de vida de pessoas numa cultura particular de envelhecimento transitório. A partir
de uma perspectiva pós-moderna, as suas análises ilustram uma
“espacialidade de envelhecimento” onde as relações entre idosos
e os espaços e locais em que vivem revelam atitudes societais e
valores profundamente enraizadas (MCHUGH, 2003). Autores que
trabalham a partir de uma perspectiva de gerontologia crítica destacam a relação entre lugares migratórios (comunidades de aposentados), “imagens anti-envelhecimento” e políticas de envelhecimento dirigidas ao consumidor que servem para fragmentar identidades no transcorrer da vida e nesses cenários.
Alternativamente, um recente estudo britânico Environment
and Identity in Later Life: a cross-setting study (PEACE;
HOLLAND; KELLAHER, 2005, sem título em português) revela
uma nova compreensão do significado de movimento entre lugares de envelhecimento. No seu amplo estudo, os pesquisadores
prestaram considerável atenção às “jornadas” que os participantes
da pesquisa faziam quando se deslocavam de seus locais preferidos nas suas casas. Essas “jornadas” podem ser simplesmente de
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
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um aposento para outro na casa ou podem envolver deslocar-se à
vizinhança próxima (dentro de uma distância de caminhada). Vinte
homens e trinta e quatro mulheres entre 61 e 93 anos de idade que
viviam em vários tipos de ambientes (incluindo apartamentos em
condomínios com assistência, lares de cuidado residencial, casas
e fazendas) foram entrevistados em três locais (de rurais a urbanos). Os resultados ilustram que, para os idosos que vivem em sua
própria casa (não lares assistenciais), as vizinhanças próximas (por
exemplo, dentro de uma distância de caminhada) eram muito importantes para a saúde e bem-estar (físico, psicológico e social)
dos participantes.
Não poder mais sair para a rua de forma independente é um estágio crítico na construção
da identidade porque, sem os contextos mais
amplos que existem além da residência, o lar
em si se diminui como uma fonte de construção de identidade. A capacidade contínua de
se envolver com “o outro” é representada pela
vizinhança de uma forma que uma residência
isoladamente não pode demonstrar ou provar.
[...] Resultados de estudos confirmam uma
espacialidade de envelhecimento descrita por
Laws (1995; 1997), e ilustram que o
entrosamento real em vizinhanças materiais e
sociais é essencial para o bem-estar e identidade própria (PEACE; HOLLAND;
KELLAHER, 2005, p. 202- 203).
Para finalizar, cabe retomar alguns dos pontos anteriormente mencionados. A literatura anglo-saxã internacional sobre o “envelhecimento saudável” faz uma significativa contribuição para a
saúde e bem-estar dos idosos ao revelar tendências teóricas e
descrever práticas atuais que se centram nos aspectos positivos
da velhice, propondo que se considere a promoção à saúde e prevenção de doenças para esse grupo etário. Muito da pesquisa nessa área, entretanto, é limitada em seu escopo teórico e metodológico,
pois negligencia importantes fatores sociais e ambientais associa, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
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Em foco
Paula J. Gardner
dos com a saúde e bem-estar na velhice. Particularmente, muitos
dos trabalhos sobre envelhecimento saudável falham por não
contextualizar efetivamente os processos e experiências de envelhecimento e pouco fazem para explorar a experiência subjetiva
dos idosos. Não obstante, pesquisas inovadoras se propõem a ir
além dos limites do “envelhecimento saudável tradicional” para
desenvolver maneiras alternativas de explorar a relação entre saúde e envelhecimento. Alguns dos resultados desses estudos alternativos sugerem que a pesquisa de envelhecimento saudável que
se centra no “ir e vir” (“going and doing”) de idosos nos entre
lugares de envelhecimento representa uma perspectiva nova e interessante para futuras pesquisas.
Aging Health: a review in the research´s
English language
Abstract: “Aging Health”, as a particular
perspective to explore the relationship between
health and aging, is a powerful theoretical paradigm
in the practical culture and of the gerontology and a
dominant force in research agendas, organizations
financiers and governments in the world of English
language. Writing from a North American
perspective, this summary provides a summary of
the extensive documentation in literature of
dedicated English language to the “aging health”,
including the identification of critical-key and
challenges of the area. The final section of the work
considers how much a focus in “going and coming”
(“going and doing”) of aged between determined
aging places represents a new direction and
stimulant for the future research overageing health.
Keywords: Aging health. Geriatrics. Demographic
aging.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 69-92, maio/agosto de 2006.
Envelhecimento saudável...
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Envejecimeiento saludable: una revisión de las
pesquisas en lengua inglesa.
Resumen: “Envejecimiento saludable”, con una
perspectiva particular para explorar la relación entre salud y envejeciemento, es un paradigma teórico poderoso en la cultura e práctica de la geriatria
y una fuerza dominante en las agendas de pesquisa, organizaciones financieras y gobiernos en el
mundo de la lengua inglesa. Escrito a partir de una
perspectiva norte-americana, esa reseña proporciona un resumen de la extensa documentación en
literatura en la lengua inglesa dedicada ao
“envejecimiento saludable”, incluso la identificación
de las críticas-clave e desafíos de la área. La
sección final del trabajo considera o cuanto un foco
en el “ir y venir” (“going and doing”) del ancianos
entre determinados lugares de envejecimiento representa una dirección nuova e incitante para las
pesquisas futuras sobre envejecimiento saludable.
Palabras-clave: Salud del anciano. Geriatria.
Envejecimiento de la población.
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Recebido em: 10/04/2006
Aprovado em: 20/07/2006
Tradução de Eduardo Stigger. Revisão técnica de Alex Branco Fraga (ESEF/UFRGS) e
Denise Gastaldo (University of Toronto).
**
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Envelhecimento saudável...
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Ensaios
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Mauro Betti
“Imagens em ação”...
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“Imagens em ação”: Uma pesquisa-ação sobre o uso
de materias televisivas em programas de educação
física do ensino fundamental e médio
Mauro Betti*
Resumo: O objetivo deste estudo foi experimentar e avaliar o uso de matérias televisivas como conteúdo e estratégia de ensino, em programas de Educação Física escolar.
A metodologia utilizada foi a pesquisa-ação. Os resultados
são apresentados com referência à: temas eleitos, interesse dos alunos e estratégias utilizadas. As conclusões indicam que o uso de matérias televisivas permitiu apoiar a
concretização de uma Educação Física escolar cuja finalidade é a apropriação crítica da cultura corporal de movimento, embora a ênfase se tenha dado no desenvolvimento
de conteúdos conceituais, e que houve transformações na
atuação pedagógica dos professores participantes.
Palavras-chave: Meios de comunicação. Televisão. Corpo humano. Atividade motora. Características culturais.
Educação física. Educação primária e secundária.
1 Introdução: A ação das imagens
Já se encontram bastante pautadas na literatura as questões
relativas às relações entre as mídias1 e a cultura corporal de movimento na sociedade contemporânea, e, portanto, entre as mídias e
a Educação Física escolar, se considerarmos que a finalidade desta disciplina é propiciar a apropriação crítica da cultura corporal
de movimento2. Veja-se, por exemplo, Betti (1998, 2003), Feres
Neto (2001) e Pires (2002).
Doutor em Filosofia da Educação. Professor Adjunto do Departamento de Educação
Física da Faculdade de Ciências – Unesp. Campus de Bauru.
Por “mídias” entendemos os tradicionais meios de comunicação como jornais, rádio e
televisão, assim como as “novas tecnologias de informação/comunicação”, como a internet.
2
A exercitação intencionada, e em geral sistemática, da motricidade humana (capacidade
de movimento para...) construiu/constrói as formas culturalmente codificadas (simbólicas)
que conhecemos como esporte, ginásticas, dança etc. É a este processo e produto que
*
1
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Ensaios
Mauro Betti
No âmbito da cultura corporal de movimento, as mídias informam e ditam formas, constroem novos sentidos e modalidades
de entretenimento e consumo. Embora o foco prioritário das mídias
continue a ser o esporte, outras formas da cultura corporal de
movimento (em especial as ginásticas e os “esportes radicais”)
passaram a ser objeto do processo de espetacularização mediado
pelas câmaras televisivas, temática da publicidade, pauta de matérias em jornais, revistas e sites da internet. Assim, assuntos como
regras, táticas e técnicas de modalidades esportivas, relação exercício físico-saúde, aptidão física, ginásticas, aspectos econômicos
do esporte, relações entre exercício físico-obesidade/emagrecimento, nutrição e padrões de beleza, tornaram-se presença constante nas diversas mídias. Logo se pode concluir que as mídias
colocam um problema pedagógico para a Educação Física escolar, pois se as informações e imagens provenientes das mídias são
constituintes e constituidoras da cultura corporal de movimento,
devem também ser objeto e meio de educação, visando preparar
os/as alunos/as para estabelecerem uma relação crítica e criativa
com os discursos difundidos por esses meios.
Orozco-Gómez (1997, p. 62), nessa mesma direção, aponta
que os meios de comunicação de massa (MCM), em particular a
televisão (TV), colocam importantes desafios à escola e aos professores, os quais não podem ser combatidos ou ignorados com
base em estereótipos e pré-juízos; pelo contrário, a escolas e os
professores devem preparar-se para assumir o papel de mediadores críticos do processo de recepção dos/as alunos/as, porque “ou
fazemos dos meios aliados ou os MCM seguirão sendo nossos
inimigos e competindo conosco, deslealmente, fazendo-nos perder
relevância na educação das crianças”. Portanto, a escola deve
tornar-se, explicita e intencionalmente, mais um contexto de medi-
denominamos cultura corporal de movimento, na qual a Educação Física escolar busca
problematizações/tematizações, a partir da articulação de valores e finalidades pedagógicas. Para maiores detalhes ver Betti (2005).
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“Imagens em ação”...
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ação que se interpõe entre os/as alunos/as e as mídias.
Torna-se imperativo, então, em um primeiro momento, interpretar o discurso das mídias sobre a cultura corporal de movimento, buscando decifrar sentidos nele presentes, e refletir criticamente sobre suas repercussões na Educação Física Escolar. Nesse
sentido, a análise/interpretação de produtos das mídias, sob diversos enfoques teórico-metodológicos, tem merecido a atenção de
estudos na área (e.g. ASSIS; CORREIA; TEVES, 2005; FIGUEIRA; GOELLNER, 2005, LEITÃO; BETTI, 2005), embora nem
todos tenham se ocupado de reflexões sobre as implicações de
suas análises/interpretações para a prática pedagógica da Educação Física Escolar.
Em um segundo momento caberia pesquisar e propor
metodologias adequadas para a efetiva incorporação, de modo
crítico e criativo, das produções das mídias ao ensino da Educação Física. Por exemplo, Batista e Betti (2005) utilizaram, em uma
turma de 3a série do ensino fundamental, um desenho animado
cujo enredo se desenrolava em torno de uma fraude ocorrida em
uma competição, com o objetivo de tematizar atitudes e valores.
Já Oliveira e Pires (2005), com base em uma reflexão sobre a
inserção de meios técnicos na produção de imagens no âmbito
escolar, viabilizaram produções videográficas por parte de alunos/as de 7a e 8a séries do ensino fundamental, buscando elementos que pudessem se transformar em conhecimentos sobre as manifestações da cultura de movimento.
Nesses estudos, o uso de uma produção televisiva e a produção de imagens por parte dos alunos não apareceram como
fins em si mesmos, mas subordinados a um projeto3 de Educação
Física escolar. É no contexto dessa tarefa engajada que esta in-
3
“Projeto” é a intenção de fazer ou realizar algo no futuro; provém etimologicamente do
latim: pro (a favor de), jectus (lançar para a frente), segundo Houaiss (2001). Implica,
portanto, em lançar-se a favor de algo, tomar posição.
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Ensaios
Mauro Betti
vestigação se insere.
2 E agora, o que fazer?: O problema e o objetivo
Para Ferrés (1996) a escola deve educar no meio, quer dizer,
educar na linguagem audiovisual característica da TV, ensinar os
mecanismos técnicos e econômicos de funcionamento do meio,
oferecer orientação e recursos para a análise crítica dos programas, e educar com o meio, ou seja, incorporar a linguagem
audiovisual da TV à sala de aula para otimizar o processo de
ensino e aprendizagem. Como as imagens televisivas atingem as
nossas faculdades humanas inicialmente pela emoção que causam, um método que objetive a educação no meio e com o meio
deve possibilitar a integração da experiência que as mídias provocam, e “chegar à reflexão por meio da emoção” (FERRÉS, 1996,
p. 99). Para tal, propõe uma metodologia compreensiva, que se
inicia com a expressão espontânea das reações geradas pelas imagens. O professor questiona a turma com frases do tipo “Qual
sensação vocês tiveram?” ou “O que vocês acharam?”. Em uma
segunda etapa, começa a tomada de distância em relação às próprias emoções, com o professor introduzindo perguntas de caráter
mais racional. Ferrés denomina a primeira fase de comunicação
espontânea, e a segunda de distanciamento progressivo (ou do
confronto/diálogo). Finalmente, temos a conclusão do processo
com a análise e reflexão.
Já Babin e Kouloumdjian (1989) sugerem um trabalho com
“mixagem”, num primeiro momento, e depois, em “estéreo”. Trabalhar com mixagem é associar as produções da mídia às aulas
“tradicionais”, fazendo referências às imagens e eventos esportivos transmitidos pela TV, utilizando matérias e programas previamente gravados da TV aberta e por assinatura, vídeos produzidos
para finalidades educacionais, matérias sobre a cultura corporal
de movimento publicadas em jornais e revistas. Trabalhar em
estéreo consiste em apreender a linguagem específica da TV, e
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“Imagens em ação”...
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aprender a interpretar criticamente o discurso desta mídia sobre a
cultura corporal, em busca de sentidos mais profundos.
Nessa perspectiva, estudo de Betti (2003) objetivou selecionar e interpretar, programas e matérias televisivos de diversos
gêneros (noticiários, seriados, desenhos animados, documentários)4,
que potencialmente pudessem alimentar programas de Educação
Física na educação básica, sob a ótica de uma abordagem baseada
no conceito de “cultura corporal de movimento”. Após o estudo
de textos que tratavam dos temas e metodologias envolvidos, tais
matérias televisivas foram submetidas à análise e discussão junto
a professores/as de Educação Física do ensino fundamental e médio,
buscando aumentar o nível de conhecimento do pesquisador e dos
professores/as envolvidos sobre a adequação de conteúdos e
metodologias que permitissem incorporar o discurso televisivo ao
ensino da Educação Física. A interpretação das matérias televisivas
foi realizada com base na hermenêutica de Ricoeur (1987,1988),
conjugada à “metodologia compreensiva” de Ferrés (1996); e a
dinâmica metodológica se deu por intermédio de uma pesquisaação. Os principais resultados indicaram que os/as professores/as
perceberam o grande impacto que a TV exercia sobre os/as alunos/as, reconheceram o potencial das matérias televisivas para
desenvolver conteúdos conceituais e atitudinais, associados a
conteúdos procedimentais5, no programa de Educação Física, pois
a linguagem audiovisual da TV é atrativa, consegue dar destaque
e importância para as informações e sintetizam muito conteúdo em
pouco tempo.
Doravante designados apenas como “matérias televisivas”.
Tal é a taxionomia adotada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998): os
conteúdos conceituais caracterizam-se por uma abordagem dos conceitos, fatos e informações de um determinado assunto; os conteúdos atitudinais incluem valores e atitudes
que permeiam todo o conhecimento escolar, as quais, segundo Coll et al. (2000), devem
ser conteúdos de ensino e, em sua dimensão geral, dizem respeito à formação do cidadão
crítico e criativo, que tenha participação em uma sociedade democrática; já os conteúdos
procedimentais são um conjunto de ações orientadas para se alcançar uma determinada
meta e são fundamentais para ordenar de maneira eficaz as ações.
4
5
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Mauro Betti
No mesmo estudo de Betti (2003) entendeu-se ainda que,
como pré-requisito, o/a professor/a deveria conhecer o processo
de construção da linguagem televisiva, e que desenvolvesse ele/
ela próprio à capacidade de interpretação crítica das mensagens
televisivas. Ou seja, a educação com a TV (utilizar suas produções para desenvolver conteúdos, ilustrá-los ou motivar os/as alunos/as) não poderia dissociar-se da educação na TV (conhecer os
mecanismos e a linguagem do meio). Recomendou-se também que
os temas/conteúdos das matérias televisivas estivessem, sempre
que possível, associados às práticas corporais vivenciadas nas aulas, quer dizer, contextualizados no programa de Educação Física
que se está desenvolvendo. Também se evidenciou que os/as professores/as demonstraram, ao longo do processo da referida pesquisa, progressivo domínio dos conceitos envolvidos, e capacidade de
aplicar o instrumental teórico adotado na reflexão sobre suas próprias práticas pedagógicas, bem como elaborar sugestões de uso de
matérias televisivas em aulas. Em conclusão, indicou-se a necessidade de, agora no interior das escolas, experimentar e avaliar o uso
de matérias televisivas nas aulas de Educação Física.
Tal, então é o “problema” de que se parte: como se daria, na
“prática”, o uso de matérias televisivas em aulas de Educação Física? As expectativas criadas a partir dos resultados do estudo anterior se confirmariam? Que dificuldades e facilitações surgiriam?
Seria possível identificar e descrever estratégias de ensino/conteúdos adequados, que recomendassem o uso de matérias televisivas
nas aulas? Que contribuição uma investigação com tal propósito
poderia dar para o desenvolvimento de programas de Educação
Física escolar que se identificam com perspectiva aqui adotada?
Nesses termos, o objetivo deste estudo é experimentar e
avaliar, no âmbito de escolas de ensino fundamental e médio, o
uso de matérias televisivas como conteúdo e estratégia de ensino,
no contexto de programas que compartilham o entendimento de
que a finalidade da Educação Física é proporcionar a apropriação
crítica da cultura corporal de movimento.
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3 A dinâmica metodológica: pesquisa-ação
Os objetivos e a natureza da investigação demandaram uma
metodologia descritiva e interpretativa que possibilitasse o diálogo com os fundamentos teóricos de uma Educação Física concebida como apropriação crítica da cultura corporal de movimento.
Tais exigências levaram a eleger, como caminho metodológico, a
pesquisa-ação, buscando para tal amparo nas proposições de
Thiollent (1986) e Elliott (1990, 1993).
Segundo André (1995), a pesquisa-ação surgiu com o propósito de investigar as relações sociais e conseguir mudanças em
atitudes e comportamentos dos indivíduos; muitas vezes este tipo
de pesquisa recebe o nome de “intervenção”, e possui atualmente
várias correntes, mas todas elas envolvem um plano de ação baseado em objetivos, em um processo de acompanhamento e controle
da ação planejada e no relato concomitante desse processo. Thiollent
(1986, p. 14) define a pesquisa-ação como:
[...] um tipo de pesquisa social com base
empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Tal ação, alerta Thiollent (1986), é não-trivial, quer dizer, é
uma ação problemática merecendo investigação para ser elaborada e conduzida; trata-se de pesquisa na qual as pessoas envolvidas têm participação ativa, e também os pesquisadores desempenham papel ativo na própria realidade dos fatos observados.
A pesquisa-ação que empreendemos pressupôs a explicitação
de sua intencionalidade: a tentativa de mudança de uma situação,
em conjunto com os/as participantes, a partir da identificação de
uma problemática comum. Mas não se tratou de um “programa de
treinamento”, no qual se diria aos professores/as o que fazer e
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Ensaios
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como fazer. Ao contrário, considerou-se o pressuposto de que
os/as professores/as têm algo a dizer sobre o que fazer e como
fazê-lo, implicando na necessidade de diálogo de caráter construtivo, num trabalho de parceria em que, como decorrência das
experimentações e debates, todos os interlocutores buscaram conjuntamente as “soluções”, e assim aumentaram seus conhecimentos sobre a adequação de estratégias/conteúdos no uso de
matérias televisivas em aulas de Educação Física. Essa é a exigência de conhecimento a ser produzido, conforme preconiza
Thiollent (1986).
Nesse sentido, preferimos vislumbrar a pesquisa-ação não
como uma “intervenção” na prática pedagógica, palavra que carrega conotação autoritária6, mas como interlocução, em duplo sentido: do pesquisador com os professores/as, e destes com suas
práticas.
André (1995) discorre sobre as diferentes correntes que se
valem da pesquisa-ação no campo educacional, para diferentes
propósitos. Identificamo-nos aqui com a denominada corrrente
anglo-saxônica, iniciada por L. Steinhouse e sustentada por J. Elliott.
No entendimento de Elliott (1993), no campo da educação, a
pesquisa não pode estar separada da prática; a prática mesma é a
forma de investigação, e a produção teórica deve derivar das tentativas de mudar as práticas, e estas são o meio pelo qual se elaboram e comprovam as suas próprias teorias, ou seja, as práticas
constituem-se em categorias de hipóteses a comprovar.
Nessa perspectiva, a pesquisa-ação ou investigação-ação na
educação, segundo Pereira (1998), surgiu nos anos 1960 como
uma tentativa (dos acadêmicos) de superar as lacunas existentes
entre o ensino e a pesquisa, e de resolver o problema da relação
6
“Intervir”: ingerir-se (em matéria, questão etc.), com a intenção de influir sobre o seu
desenvolvimento; interpor sua autoridade, usar de seu poder de controle (HOUAISS, 2001).
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“Imagens em ação”...
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entre teoria e prática. Com diferentes ênfases, pretende ao mesmo
tempo conhecer (pesquisa) e atuar (ensino) e, portanto superar a
diferença entre pesquisador e professor, pois o professor é visto
como produtor de conhecimentos a partir de sua prática, e o pesquisador “externo” (um professor universitário, por exemplo) atua
como facilitador e colaborador.
Elliott (1990) define a pesquisa-ação como uma atividade
empreendida por grupos humanos com o objetivo de modificar
suas circunstâncias a partir de valores compartilhados; é uma prática reflexiva, com ênfase social, bem como o processo de investigar sobre ela. Característica marcante da pesquisa-ação, segundo Pereira (1998) é a de ser um processo que se modifica continuamente em espirais de reflexão e ação, e que, ao invés de limitarse a utilizar um saber existente (o que caracterizaria a pesquisa
aplicada), busca mudanças no contexto concreto e estuda as condições e os resultados da experiência efetuada. O professor procura converter o conhecimento existente em hipóteses-ação, e estabelecer uma relação entre a teoria, a ação e o contexto particular;
assim, os problemas a serem pesquisados só surgem na prática e
o envolvimento do professor é uma necessidade indispensável. O
objetivo não é simplesmente resolver um problema prático da
melhor forma, mas, pelo delineamento do problema, compreender
e melhorar a atividade educativa; preocupa-se, portanto, com a
mudança da situação e não só com sua interpretação.
Pereira (1998) alerta para a compreensão do que significa a
“melhoria da prática”: implantar os valores que constituem seus
fins, os quais não se manifestam apenas nos resultados de uma
prática, mas também como qualidades intrínsecas dela. Nessa
perspectiva, para Elliott (1993), a pesquisa-ação constitui-se como
uma prática reflexiva que aspira melhorar a concretização dos
valores do processo, assumindo então uma dimensão ética.
Na apreensão de Pereira (1998, p. 164), estas seriam para J.
Elliott, as características mais relevantes da pesquisa-ação:
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Ensaios
Mauro Betti
- é uma estratégia associada à formação das pessoas envolvidas;
- centra-se em atuações históricas e situações sociais que
são percebidas pelos professores como problemáticas e passíveis
de mudanças;
- busca compreender o que está ocorrendo a partir da perspectiva dos implicados no processo: professores, alunos, pais etc.;
- reelabora discursivamente as contingências da situação e
estabelece as inter-relações entre elas.
Outro aspecto lembrado por Pereira (1998, p. 168) é o fato
de que a pesquisa-ação reforça a postura colaborativa dos professores que, ao refletirem suas práticas, “trabalham dialogicamente
com seus colegas e não deixam de lado a influência das estruturas
curriculares”.
Elliott (1993) destaca ainda para o fato de que a pesquisaação não pode ser interpretada como uma série de procedimentos
mecânicos e técnicos padronizados, mas como um conjunto de
idéias e procedimentos dinâmicos que estruturam, mas não determinam, a busca da compreensão do processo pedagógico, o qual
envolve muitos outros fatores, como concepções de educação,
conhecimento, aprendizagem, currículo e ensino. Por isso, do ponto de vista metodológico, a pesquisa-ação deve ser concebida de
modo amplo e flexível, quer dizer, não deve ser modelada a priori,
mas desenhar-se na relação entre os elementos nela implicados
(PEREIRA, 1998).
A concepção de pesquisa-ação tal como defendida por J.
Elliott recomendou, para o presente estudo:
- A necessidade de, sem negar as divergências, haver algum
compartilhamento de valores com relação ao entendimento de
Educação Física escolar, o que parece ter sido garantido na fase
anterior da pesquisa (BETTI, 2003).
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- Não isolar a experimentação no uso de matérias televisivas
do contexto “natural” do ensino – quer dizer, não criar uma situação artificial para a “testagem” isolada de estratégias e conteúdos
de ensino, mas sim integrá-los no conjunto de aulas que objetivam
desenvolver um determinado tema.
- O cuidado para entender que a necessidade de produzir
conhecimentos sobre o uso de matérias televisivas como estratégia e conteúdo de ensino não pode sobrepor-se ao compromisso
de produzir melhorias nas práticas pedagógicas dos/as professores/as, nos termos dos valores compartilhados.
Na Educação Física poucos estudos que se valeram da pesquisa-ação realizaram esforços consistentes para compatibilizar o
desejo de promover mudanças concretas na prática pedagógica
com o também desejável rigor teórico-metodológico que deve
caracterizar um trabalho acadêmico. Exceção nesse panorama é o
estudo empreendido por Bracht et. al. (2002), que envolveu professores que freqüentavam um curso de Especialização em Educação Física escolar, e no qual são apontados resultados profícuos, mas também dificuldades e limitações no uso de metodologia
da pesquisa-ação, quando se objetiva operar mudanças concretas
na prática pedagógica, no sentido de colocá-la na perspectiva da
transformação social.
4 Procedimentos
Participaram desta pesquisa seis professores de Educação
Física (doravante designados como interlocutores-professores –
“IP”), oriundos da fase anterior da pesquisa (BETTI, 2003). Foram desenvolvidas sete aulas com uso de matérias televisivas,
com turmas de 5a, 7a e 8a séries do Ensino Fundamental e as três
séries do Ensino Médio, em quatro escolas públicas e duas privadas. A escolha das matérias utilizadas nas aulas foi feita em
conjunto por interlocutor-pesquisador e interlocutores-professores, e levou em conta os conteúdos e objetivos de ensino do
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Ensaios
Mauro Betti
programa de Educação Física definido em cada escola. O registro da experimentação foi feito pelos próprios interlocutoresprofessores, mediante respostas (por escrito) a um “Roteiro para
descrição e avaliação das aulas”. Três aulas foram registradas
com filmadora de vídeo. Os registros foram apresentados e debatidos nas reuniões de trabalho, acompanhados de um relato
verbal mais minucioso por parte dos interlocutores-professores
responsáveis pelas aulas. Ao longo de 19 meses, foram realizadas 11 reuniões de trabalho coletivo, e ao final da pesquisa realizaram-se entrevistas individuais com os interlocutores-professores. As reuniões foram gravadas com filmadora de vídeo e
posteriormente transcritas; com base nas transcrições foram elaboradas “sínteses conclusivas” das reuniões e das entrevistas
individuais, as quais foram tomadas como base para apresentação dos resultados.
5 Imagens em ação: os resultados
O resultado mais consistente é a de que as matérias
televisivas devem estar inseridas no desenvolvimento de um tema,
que em todos os casos relatados exigiu várias aulas. É o tema que
deve determinar a escolha da matéria, e não o inverso, tal como
exemplarmente manifestou um interlocutor-professor: “daqui pra
frente vai ser parte da minha aula, eu vou ter um espaço separado
pra trabalhar com isso daí, não de forma segregada, fazendo parte
do contexto geral, todo tema que eu for trabalhar e tiver possibilidade dentro daquele tema trabalhar o vídeo junto” (IP-3). Alguns
interlocutores-professores também agregaram produtos de outras
mídias ao desenvolvimento de determinados temas, em especial
matérias jornalísticas provenientes de jornais diários e revistas
dirigidas ao grande público.
Alguns temas obtiveram consenso e foram eleitos como
“obrigatórios”, pela sua relevância social e participação na própria constituição da cultura corporal de movimento contemporâ, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
“Imagens em ação”...
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nea, quais sejam: “Padrões de Beleza, Obesidade/Emagrecimento
e Atividade Física”, “Ética” e “Esporte Profissional”. Tais temas
foram efetivamente incorporados aos programas de Educação Física pelos interlocutores-professores, e no seu desenvolvimento
eles se esforçaram, por meio de estratégias especificamente elaboradas, em estabelecer relações com as atividades corporais
vivenciadas nas aulas, assim como com a vida cotidiana dos/as
alunos/as. Em outros termos, tal preocupação revelou o entendimento, manifestado pelos interlocutores-professores, de que o tema
abordado deveria contemplar o desenvolvimento integrado de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.
Os interlocutores-professores destacaram a necessidade das
matérias televisivas despertarem a atenção e interesse dos/as alunos/as. O “fundo” de tal preocupação parece residir no receio de
rejeição por parte dos alunos, que não estavam habituados com
aulas de Educação Física em sala de aula e com conteúdos “teóricos”: “realmente a gente ficou muito preocupado se haveria aceitação por parte dos alunos” (IP-1) De fato, essa rejeição foi detectada em maior grau pelos interlocutores-professores no ensino
médio e nas turmas que tinham apenas duas aulas semanais de
Educação Física (o que limitava o tempo disponível tanto para o
trabalho com vídeos como para as atividades na quadra), pois os
alunos tinham a expectativa de participar de aulas “práticas”: “eles
estão cansados de ficar dentro da sala de aula, eles querem ir pra
quadra [...] parece que eles querem Educação Física como uma
válvula de escape, uma compensação” (IP-5).
Estratégia utilizada por muitos interlocutores-professores para
lidar com esse problema foi “preparar o espírito” (IP-2) dos alunos
para a exibição de matérias/programas televisivos nas aulas, no
sentido de informar aos alunos, no início do ano, da utilização de
vídeos para o desenvolvimento de determinados temas, então “isso
aí ficando bem claro com os alunos, fica fácil durante o ano” (IP5). Um interlocutor-professor referiu-se à necessidade de “negoci, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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Mauro Betti
ar muito” com os alunos, pois eles “não são muito chegados a esse
tipo de coisa” (IP-2). Com o decorrer do tempo acabou havendo,
na maior parte das turmas, uma reversão dessa rejeição inicial,
quer pela experiência adquirida pelos interlocutores-professores,
que lhes conferiu maior segurança, conforme depoimento de um
interlocutor-professor, que “como todo mundo” possuía “um
pouquinho de receio” do que é novo, mas que agora “já tô assim
comandando bem, no colocar o vídeo, discutir com os alunos”;
quer porque os alunos se habituaram ao uso de vídeos em aula: “a
gente vai conversando, e houve uma aceitação do pessoal, que se
interessou demais; então, quando você punha uma fita de vídeo, é
até legal pra gente, você vê a expressão deles de interesse, do
pessoal quieto, do pessoal que anteriormente fazia brincadeiras
bestas, assistindo com atenção” (IP-5) Seria possível admitir que
se chegou a alcançar uma mudança na “cultura da Educação Física” em um meio escolar específico? Conforme um interlocutorprofessor que faz uso freqüente de vídeos, em sua escola “existe
uma cultura já no aluno, de que a Educação Física não é só ir lá e
fazer, mas é também pensar sobre isso” (IP-6).
A despeito das variadas estratégias sugeridas na literatura
estudada pelos interlocutores-professores e sugeridas por eles
próprios ao longo das reuniões de trabalho, a estratégia predominante nas aulas ministradas baseou-se na tentativa de estabelecer
um “debate” verbal após a exibição das matérias televisivas, debate
este que, em maior ou menor grau, foi monopolizado pelos
interlocutores-professores, os quais apresentaram inúmeras razões
para a escolha da estratégia referida:
- As aulas analisadas faziam parte de um conjunto de aulas,
as quais contemplaram maior participação dos/as alunos/as;
- Os/as alunos/as não estariam suficientemente preparados
para o debate e sentiam-se inseguros, e então seria necessário
prepará-los com antecedência, com conteúdos mais aprofundados.
Conforme declarou um interlocutor-professor: “havia uma crença
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
“Imagens em ação”...
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de que o vídeo já iria dar uma ligada na tomada do aluno tomada
do aluno; de repente eu acho que isso é muito pouco” (IP-3).
- Os/as alunos/as não possuíam a prática de se expressarem
verbalmente nas aulas, e suas participações dependiam dos estímulos dos interlocutores-professores: “eles falam um pouco e
logo acabou o assunto”; então o professor “vai ter que mediar,
falar” (IP-5)
- Como decorrência do item anterior, o professor precisou
atuar como “âncora”, fazendo um “fechamento” do tema, em
direção a conclusões: a gente pega tudo aquilo que os alunos
falaram e a gente acaba fazendo as conclusões, porque a gente
não pode também deixar tudo aberto; abre-se diversos pontos e
com opiniões dos alunos - a gente não pode deixar tudo aquilo
no ar” (IP-6). Contudo, dois interlocutores-professores concordaram com a crítica sobre a estratégia preferencialmente escolhida, centrada na verbalização do professor, com pouca participação dos alunos. Para um deles foi “um erro meu a gente
acabar atropelando [...] talvez se a gente fosse trabalhando, aí
vai melhorando, eu acho que a tendência é melhorar” (IP-5). O
segundo interlocutor-professor admitiu que “poderia ter tido
um outro mecanismo, criado uma outra estratégia, que a gente
participasse, fizesse as interferências devidas, mas deixasse
uma participação maior do aluno, mesmo ele sendo um pouco
mais arredio” (IP-3).
Houve unanimidade em recomendar a inserção das matérias
televisivas em aulas “duplas” (100 minutos) para permitir o pleno
desenvolvimento do tema sem excessiva pressão do tempo. Mas
tal sugestão exigiria idealmente, segundo os interlocutores-professores, a inclusão de uma terceira aula semanal nas escolas em que
há apenas duas aulas de Educação Física por semana, para possibilitar maior tempo às atividades “práticas” na quadra, demanda
proveniente dos alunos.
Não ficaram evidenciadas diferenças entre aulas desenvolvi, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
Mauro Betti
das em escolas particulares e escolas públicas. A comparação
entre turmas exclusivamente femininas ou masculinas evidenciou
algumas diferenças de interesse por temas específicos, e nas turmas mistas uma participação e atenção um pouco maior dos alunos do sexo feminino, quando o tema tratado foi “Padrões de Beleza, Obesidade/Emagrecimento e Atividade Física”. As diferenças mais evidentes apareceram na comparação de turmas com e
sem experiência prévia no uso de matérias televisivas nas aulas de
Educação Física, tendo sido relatadas pelos interlocutores-professores maiores dificuldades no desenvolvimento das aulas nas turmas sem experiência.
Houve “efeitos não-esperados” como conseqüência do pleno
envolvimento dos interlocutores-professores com a pesquisa. No
âmbito das suas escolas, três interlocutores-professores dirigiram
demandas a professores de outras disciplinas (Matemática e Português) a partir de deficiências constatadas nas atividades desenvolvidas com os alunos; também três deles, em conjunto com professores de outras disciplinas, reivindicaram e obtiveram melhorias
na infra-estrutura e funcionamento de suas escolas com relação ao
ambiente e equipamentos para exibição de vídeos. Quase todos
declararam que constituíram um acervo pessoal de matérias/programas televisivos que gravam da TV aberta, e uma das sugestões
apresentadas por três interlocutores-professores dizia respeito à
formação de uma “rede de colaboração” entre os participantes do
grupo, para “trocas” de vídeos.
6 O tema preferido
O tema “Padrões de Beleza, Obesidade/Emagrecimento e
Atividade Física”, foi o preferido dos interlocutores-professores
nas sete aulas que foram objeto de registro e análise, ao qual foi
associado o uso de uma matéria televisiva específica, que enfocava
o tema da obesidade, alimentação e regimes alimentares, bem como
o papel do exercício físico no emagrecimento e sua relação com a
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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saúde individual7. Apenas uma aula não se fez uso da referida
matéria.
No nosso entendimento, a opção pelo tema e correspondente
matéria televisiva deveu-se: (i) à maior segurança proporcionada
por experiências anteriores na sua utilização; (ii) por facilitar o
desenvolvimento de conteúdos conceituais, provavelmente a dimensão em que os interlocutores-professores sentiam-se mais à
vontade para lidar, e, particularmente, por permitir a mobilização
de conhecimentos que julgavam possuir (e de fato possuíam em
alguma medida), na área de composição corporal, nutrição e fisiologia do exercício; e (iii) por ser capaz de despertar a atenção
dos/as alunos/as, ao tratar de tema constantemente “pautado” nas
mídias, e que é preocupação constante dos/as adolescentes, permitindo portanto abordar o tema da saúde, dos padrões de beleza
e do exercício físico a partir do interesse deles/as.
A análise das aulas filmadas (sem esquecer contudo que elas
são “recortes” de um processo maior) indica que os interlocutoresprofessores prenderam-se aos conteúdos mais flagrantes da matéria, reforçando as “recomendações” nela presentes, tais como alimentar-se adequadamente e praticar exercícios para evitar a obesidade, pois esta pode trazer problemas à saúde, ou a utilizaram
para apresentar conceitos no âmbito da nutrição (“calorias”, por
exemplo). A ênfase na dimensão conceitual dos conteúdos ficou
patente quando dois interlocutores-professores, ao final do desenvolvimento da unidade denominada, no programa da Escola, “Atividade Física, Saúde e Conhecimentos sobre o Corpo”, utilizaram
como uma das estratégias de avaliação, em duas turmas de 7a e 8a
séries, uma prova escrita na qual havia duas questões sobre a
7
Trata-se de uma edição de 15 min., da reportagem “Regimes Milagrosos”, originalmente
apresentada no programa “Globo Repórter”, produzido e exibido pela Rede Globo de
Televisão. A matéria apresenta o tema da obesidade e regimes alimentares (a partir da
questão: “Como perder peso sem perder a saúde?”) e trata do papel do exercício físico
no emagrecimento.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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matéria “Regimes Milagrosos”; em uma, sugeria-se uma situação
hipotética, que exigia dos/as alunos/as o cálculo do Índice de Massa
Corpórea (IMC)8; na outra, solicitava-se o “significado” que a referida matéria possuía para cada um. Houve também a tentativa de
avaliar conteúdos atitudinais por parte destes e outros
interlocutores-professores, com critérios que denominaram “informais”. Contudo, a avaliação dos conteúdos atitudinais foi considerada problemática e desafiadora, pois só seria possível avaliar
a mudança de atitudes e valores no longo prazo (por exemplo, a
adesão e valoração da prática de atividades físicas e esportivas),
o que é inviabilizado no mais das vezes pelo fato de os professores não acompanharem os/as alunos/as por muito tempo, e raramente receberem feedback dos egressos.
7 Conclusões: avanços e desafios
Dimensões interpretativas mais profundas a respeito da matéria televisiva mais utilizada, tais como a culpabilização individual dos obesos, a desconsideração da influência do meio social,
a indistinção entre fatos e opiniões, a duvidosa vinculação entre
magreza e saúde, bem como entre saúde, beleza e exercício físico,
a exclusiva vinculação do exercício físico ao emagrecimento, e a
origem interessada dos padrões de beleza corporal apresentados
nas mídias, não foram explicitamente abordadas nas aulas, embora
tenham sido evidenciadas na fase anterior da pesquisa (BETTI,
2003), a partir de uma interpretação fundamentada no método
hermenêutico de Ricouer (1987, 1988), e na metodologia compreensiva de Ferrés (1996). Não se conseguiu superar a semântica de
superfície (a captação “ingênua” do sentido do discurso como um
todo, que é uma compreensão global que se exprime por uma
descrição) em direção à semântica de profundidade, como propõe
8
Fórmula matemática que, relacionando peso e estatura, propõe classificar os indivíduos
em faixas “ideais”- magro, normal, pesado, obeso etc. O modo de calcular o IMC se fez
presente na reportagem “Regimes Milagrosos”.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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a interpretação hermenêutica de Ricouer (1987, 1988): compreender um discurso é seguir seu movimento do sentido para a referência, daquilo que ele diz para aquilo de que fala. Então, a concepção que vê na Educação Física a finalidade de apropriação crítica
da cultura corporal de movimento apareceu nessas aulas mais como
apropriação de alguns conteúdos conceituais do que como crítica
- quer dizer, como exame dos critérios que subjazem a esses conteúdos, à luz das opções valorativas que eles implicam.
Por que os interlocutores-professores não conseguiram incorporar essa interpretação crítica às suas aulas? Teria sido necessário aprofundar teoricamente o tema “Padrões de Beleza,
Obesidade/Emagrecimento e Atividade Física”, em suas relações
com a saúde tomada como fenômeno sociocultural? Ou teria sido
necessário experimentar outras estratégias/conteúdos, em mais
aulas, quando os interlocutores-professores se sentissem mais
confiantes? Em coerência com a metodologia adotada, as respostas não podem ser fornecidas pelo pesquisador, e a questão deverá
ser endereçada aos próprios interlocutores-professores, para desencadear um novo ciclo de reflexão-ação. Por ora, com base nos
dados registrados, apenas podemos considerar a possibilidade de
que a opção pelo desenvolvimento de determinados conteúdos
conceituais, bem como pela estratégia de debate verbal centralizado no professor, ao propiciarem maior segurança aos interlocutoresprofessores, decorreu em parte do fato de que estas aulas seriam
objetos de registro formal (inclusive mediante filmagem), exposição e discussão nas reuniões de trabalho.
Vai também nessa direção a observação de que, em algumas
aulas que não foram objeto de registro formal, no período preparatório da pesquisa, vários interlocutores-professores optaram pelo
uso de outras matérias televisivas, com objetivos ligados ao desenvolvimento de conteúdos atitudinais, na maior parte das vezes
vinculados às características específicas da turma, ou a alguma
situação ocorrida nas aulas. Apareceu nesses casos uma abordagem mais crítica, porque se fez necessário a explicitação de valo, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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res, quer dizer, os interlocutores-professores tiveram que evidenciar seus projetos de Educação Física aos/as alunos/as - o princípio da inclusão, o respeito ao outro, a valorização do lúdico etc.
Por isso, é preciso atentar para a “triangulação dos dados”,
procedimento metodológico recomendado para obter maior
credibilidade ou validade interna em pesquisas de natureza “qualitativa” (ALVES-MAZZOTTI, 1998), e que foi aqui viabilizada
pela confrontação entre as respostas ao “Roteiro”, a filmagem das
aulas e o relato verbal dos interlocutores-professores, todos submetidos ao debate nas reuniões de trabalho. Embora a triangulação
tenha revelado mais coerência que discrepâncias, alguma incongruência pode ser detectada entre algumas respostas ao “Roteiro
para Descrição e Avaliação do Uso de Vídeos”, nas quais a maioria dos interlocutores-professores relatou que houve participação ativa dos alunos, mas o que se viu na filmagem das aulas não
confirmaram esta avaliação. De modo geral, pode-se dizer que os
dados do “Roteiro” foram mais pobres que o relato verbal nas
reuniões, embora não incongruentes entre si, e que a filmagem das
aulas forneceu os dados mais ricos, mas que, para serem devidamente interpretados (quer dizer, de modo não descontextualizado),
foram “cruzados” com os relatos verbais que se seguiram às aulas
e com as entrevistas individuais9. Particularmente nas entrevistas estiveram presentes avaliações mais globais e “distanciadas”
dos interlocutores-professores em relação às suas próprias aulas
e às dos colegas. Quer dizer, em pesquisas dessa natureza e
propósito, a descrição isolada de aulas não permite chegar a
conclusões consistentes.
Nas entrevistas individuais, algumas avaliações presentes nas
respostas ao “Roteiro” foram modificadas, também como conse9
Essas entrevistas individuais, não planejadas inicialmente, demonstram que em pesquisas dessa natureza não pode prever antecipadamente todos os passos; pelo contrário,
como evidenciam Bruyne, Herman e Schoutheete (1977) são as necessidades concretas
da dinâmica particular de cada pesquisa que determinam as escolhas do pesquisador.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
“Imagens em ação”...
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qüência da assistência das aulas filmadas, as suas próprias e a dos
colegas. Um interlocutor-professor, por exemplo, declarou, com
respeito à estratégia que utilizou em sua aula, que, em uma primeira assistência da sua própria aula, lhe pareceu que “a conversa
[com os alunos] tava desenrolando até num pé de igualdade”, mas
em análise posterior, “com calma”, percebeu que não “que a gente
falou demais, mas a gente teve que participar muito da aula pra
trazer o aluno, e às vezes se excedeu um pouquinho” (IP-3).
Os resultados aqui obtidos apontam que o uso de matérias
televisivas permite apoiar a concretização de uma Educação Física escolar que tenha por finalidade a apropriação crítica da cultura
corporal de movimento. Contudo, temos ainda tem um longo caminho a percorrer, o qual não mais poderá ser trilhado sem o acompanhamento da interlocução entre professores/as e pesquisadores/
as acadêmicos/as, sob pena de aumentar a distância entre teoria e
prática. As chamadas “pesquisas qualitativas”10, com suas várias
possibilidades de delineamentos (ANDRÉ, 1995), com destaque
para a pesquisa-ação, constituem-se em alternativa teóricometodológica viável para evitar o distanciamento, na Educação
Física Escolar, entre teoria e prática, pesquisa e ensino, “sujeitopesquisador” e “sujeito-pesquisado”.
A questão crucial parece continuar residindo no alerta já disparado por Betti (1994), no sentido de que a Educação Física escolar não deve tornar-se um discurso sobre a cultura corporal de movimento, mas em uma ação pedagógica com ela. A visão
multidimensional dos conteúdos (conceituais, procedimentais e
atitudinais) parece não ser suficiente para permitir maiores avanços,
pois deixa implícita a possibilidade de desenvolver essas três dimensões separadamente, quando o desafio é desenvolvê-las
10
Entretanto, é preciso atentar para a falsa oposição entre qualitativo e quantitativo induzida
pelo rótulo “qualitativo” (ALVES-MAZZOTTI, 1999), para o que também alerta André (1995),
que prefere utilizar o termo “qualitativo” para o tipo de dado coletado, e discriminar os
delineamentos de pesquisa possíveis: etnográfico, estudo de caso e pesquisa-ação.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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integradamente no desenvolvimento dos temas que compõem um
programa de Educação Física escolar possibilidade viável de evitar
o distanciamento, na Educação Física Escolar, entre teoria e prática,
pesquisa e ensino, “sujeito-pesquisador” e “sujeito-pesquisado”.
O debate e a troca de experiências propiciada no âmbito das
reuniões em grupo possibilitaram oportunidades de reflexão sobre
as práticas individuais, e gerou o amadurecimento dos
interlocutores-professores no uso de matérias televisivas em aulas, conforme exemplificam os depoimentos:
[...] às vezes surgem naquelas conversas coisas até que a gente não tava imaginando, de
enfrentar dificuldade, mas vem o colega colocando uma situação ou outra que aconteceu e
passou desapercebido […] o pessoal vai até
apontando as falhas” (IP-3) “a gente se engajou
tanto no trabalho, foi um trabalho tão produtivo, que a gente sente que se embasou teoricamente, pra tá assim com os pés no chão, pra
colocar em prática o que foi discutido, o que
foi trazido pelos colegas, o que foi produzido
em conjunto com a rapaziada; não sei se assim eu consigo exemplificar bem o que eu sinto, eu me sinto assim bastante embasado, seguro, pra tá colocando em prática esse trabalho” (IP-4). “venho trabalhando dentro daquilo que no início eu fazia meio assim intuitivamente, agora já tô trabalhando de uma maneira mais sistematizada dentro do meu próprio
planejamento (IP-5).
Para além do seu objetivo específico, a dinâmica
desencadeada por este estudo contribuiu, na avaliação de diversos interlocutores-professores, para melhorar suas atuações como
professores, conforme exemplifica o seguinte depoimento: “O próprio fato de eu ter amadurecido muito essa questão de conversar
mais um pouco com eles, sabe, eu reconheço e até gosto de estar
aprendendo sempre; muitas vezes já chegava com as bolas na mão,
mas de conversar, de trocar uma idéia de perguntar de ver no
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
“Imagens em ação”...
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começo, no final da aula, de outras coisas, de pequenos detalhes
que você vai ouvindo e incorporando” (IP-2). E para além da
especificidade de seus papéis como professores, em direção à sua
formação como cidadãos, os interlocutores-professores também
avaliaram que se tornaram telespectadores mais críticos, ao perceberem os mecanismos de funcionamento da linguagem televisiva
nos programas que assistem em seus cotidianos.
Acreditamos que a relativamente longa duração dos trabalhos e sua dinâmica específica possibilitaram as condições necessárias para promover mudanças concretas nas práticas pedagógicas dos professores-interlocutores, nos termos da conclusão de
Bracht et. al. (2002, p. 21) a partir de sua própria experiência com
a metodologia da pesquisa-ação: tais mudanças somente são possíveis quando se oferecem aos professores “condições para que
reflitam sobre suas concepções e atitudes, analisando-as criticamente em situações extensivas e dinâmicas, que possibilitem o
exame pessoal e o de outras pessoas, o confronto direto de opiniões e de alternativas de ação para superá-las”.
Por todas essas evidências, permitimo-nos concluir que os
objetivos desta pesquisa foram alcançados, e em consonância com
os cânones da metodologia que o dirigiu: uma pesquisa-ação, na
qual todos são co-autores dos eventuais sucessos e fracassos.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
“Images in Action”: an Action-Research about
Using TV Programs in Physical Education
Courses in The Primary and High-School
Abstract: The goal of this research was to
experience and to evaluate the use of TV programs
as matter and teaching strategy in physical
educations courses as a school matter. The
methodology we used was the action-research. The
results are been showed referred to: chosen themes,
pupil’s interest, strategies that were used. The
conclusions show that using television programs was
helpful to concretize a conception of physical
education based on the goal of critical appropriation
of the body movement culture, nevertheless the
emphasis was on the development of conceptual
contents, and that were transformations in the
pedagogical work of the involved teachers.
Keywords: Communications media. Television.
Human body. Cultural characteristics. Motor activity.
Physical education. Education, primary and secondary.
“Imágenes en acción”: una investigaciónacción sobre el uso de reportajes televisivas
en programas de Educación Física de la
escuela primaria y secundaria.
Resumen: El objetivo de este estudio fue experimentar y evaluar el uso de reportajes televisivos
como contenido y estrategia metodológica en la
enseñanza dentro de programas de Educación Física escolar. La metodología utilizada fue la
investigación-acción. Los resultados son
presentados con referencia a: los temas elegidos,
el interés de los alumnos, las estrategias utilizadas.
Las conclusiones indican que el uso de reportajes
televisivos permitió apoyar la concretización de una
Educación Física escolar cuya finalidad es la
apropiación crítica de la cultura corporal de
movimiento, a pesar de que el énfasis se haya dado
en el desarrollo de contenidos conceptuales, y que
hubo transformaciones en la actuación pedagógica de los profesores participantes.
Palabras-clave: Medios de comunicación.
Televisión. Cuerpo humano. Caracteristicas
culturales.Actividad
motora.
Educación
Física.Educación primaria y secundaria.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
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“Imagens em ação”...
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, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 95-120, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
Augusto Silva Triviños*
Resumo: A categoria da prática social é uma das mais
importantes do materialismo dialético. Está ao lado das
categorias da matéria, da consciência e da
contradição.Que é a categoria da prática social? É o saber acumulado pelo ser humano através de sua história.
Neste sentido, a prática social é, por um lado, ação, prática, e por outro lado, conceito dessa prática que se realizou no mundo dos fenômenos materiais e que foi elaborado pela consciência que tem a capacidade de refletir essa
realidade material.
Palavras-chave: Prática social. Materialismo dialético.
Quando colocamos o problema da prática, forçosamente surge também o problema da teoria.
A prática e a teoria são categorias filosóficas. Uma, a teoria,
se apresenta na consciência como uma imagem que representa o
fenômeno material elaborado e organizado como fenômeno espiritual. Mediante a linguagem oral ou escrita, que constituem uma
prática social, ou exclusivamente com a prática, esse fenômeno
espiritual se transforma em fenômeno material, que representa o
fenômeno material original, captado pela consciência. O reflexo
do fenômeno material pela consciência permite ao ser humano, em
geral, reconhecer esse fenômeno material como algo existente fora
de sua consciência. Porém, este reconhecimento pode ter um nível
relativo, porque o reflexo do fenômeno material na consciência
depende de diversas condições inerentes tanto à pessoa como ao
ambiente. De maneira que prática, frente a determinado fenômeno
material, pode ser limitada, porque carece de conhecimento acurado
desse fenômeno material. E, desse modo, o reflexo desse fenômeno material na consciência também tem fronteiras, que podem ser
*
Professor doutor na Faculdade de Educação da UFRGS.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
Augusto Silva Triviños
mais ou menos estreitas. Ou seja, o tipo de prática desenvolvida
frente a um determinado fenômeno material, origina o reflexo na
consciência, relativamente, semelhante no nível de complexidade,
ao da prática desenvolvida frente a determinado fenômeno material.
A práxis, ou a prática social, é unidade da teoria e da prática.
É o mundo material social elaborado e organizado pelo ser humano no desenvolvimento de sua existência como ser racional. Esse
mundo material social, ou conjunto de fenômenos materiais sociais, está em constante movimento, organizando-se e reorganizando-se perpetuamente.Na existência real o ser humano, como ser
social,realiza uma atividade prática, objetiva, que está fora de
sua consciência,e que visa a transformação da natureza, da sociedade. Este processo de mudanças fundamentais ou não, se realiza
através dos seres humanos, das classes sociais, dos grupos e dos
indivíduos.
Podemos entender a teoria como um conjunto de conceitos,
sistematicamente organizado e que reflete a realidade dos fenômenos materiais sobre a qual foi construída e que serve para descrever, interpretar, explicar e compreender o mundo objetivo. Esse
nível de conceitos é o mais alto que pode alcançar o ser humano na
explicação e compreensão da vida natural e social. Porém, no
viver cotidiano, o ser humano, em geral, para interpretar, descrever, compreender e explicar os fenômenos materiais, não precisa
buscar ou conhecer a essência dos fenômenos materiais. Basta
apoiar-se em suas percepções que são fruto de sua experiência.
Dessa maneira, por exemplo, não necessita conhecer a essência da
água, H2O, para matar a sede ou conhecer que esse objeto é um
livro e não uma caneta.
Em relação a esta definição de teoria, devemos, pelo menos,
fazer três esclarecimentos. Em primeiro lugar, toda teoria é histórica. Ou seja, tem um tempo determinado de existência válida em
forma total ou parcial. As teorias de Newton, por exemplo, tiveram mais de dois séculos de existência. Quando apareceu a teoria
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
123
da relatividade de Einstein muitas de suas idéias essenciais desapareceram, porém alguns elementos delas seguem sobrevivendo.
Entretanto, a teoria de que a terra era plana, deixou de existir
depois um longo período. Do mesmo modo ocorreu com a teoria
de que a terra era o centro do universo.
Em segundo lugar, devemos considerar que o mundo social
está em perpétua mudança e transformação, o que significa que os
fenômenos materiais, nunca seguem sendo eternamente os mesmos.
Por outro lado, o avanço as ciências naturais e da matemática,
de modo singular, desenvolvem novas tecnologias científicas que
permitem ao ser humano investigar realidades materiais, que antes
desses descobrimentos apresentavam dimensões que, de algum
modo, com os novos conhecimentos, deixaram de existir. Isso ocorreu, por exemplo, com a invenção do microscópio e o telescópio.
A prática é a atividade objetiva na realização da qual o homem emprega todos seus meios humanos, todas suas forças e também os recursos espirituais. A prática, como a teoria, é histórica.
A prática e a teoria que surgem nas sociedades de classes estão
orientadas pelos interesses das classes dominantes. Isto não quer
dizer que fiquem eliminadas totalmente as possibilidades da existência, nessas sociedades, de teorias e práticas que tenham origem
nas classes dominadas:
A prática abarca todo o processo material da
vida da humanidade e por isso desenvolve-se,
como a atividade da produção, que no decurso
de toda a história da humanidade é sempre a
forma fundamental da prática; a atividade política, ligada à existência de classes e Estados; as atividades experimentais, culturais,
pedagógicas e outras atividades sociais, diretamente apontadas para a transformação da
realidade objetiva. (BUHR, 1980, v. 1, p. 16)
A prática, se considerarmos como sujeito a humanidade, pode
ser entendida como a “transformação material do objeto pelo su, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Augusto Silva Triviños
jeito”. (WITTICH, 1980, v. 1, p. 19)
É interessante salientar que existem diferenças fundamentais, e não podem ser consideradas como idênticas, a prática social no conceito do materialismo dialético com a prática ou estágio
que realizam os estudantes de medicina, pedagogia, enfermagem
etc. A prática “refere-se sempre à totalidade do processo social de
atividade material e não as atividades individuais”. (WITTICH,
1980, v. 1, p. 20)
Entender a prática como uma experiência individual, subjetiva, de natureza sensorial, é característica do empirismo e do
positivismo. Uma das correntes do positivismo, o pragmatismo,
fez da prática individual sua dimensão mais característica.
O pensamento, as idéias, os conceitos que temos sobre a
realidade que constituem a relação teórica do sujeito com o objeto, “surge e se desenvolve a base da interação prática entre eles”.
(KOPNIN, 1978, p. 168). A prática, no sentido do materialismo
dialético, é uma forma especificamente humana de atividade e tem
caráter material. Neste processo de interação prática os resultados dele podem ser observados, direta ou indiretamente, através
da contemplação empírica, e se muda o objeto e, ao mesmo tempo,
muda o próprio sujeito. (KOPNIN, 1978, p. 168).
A prática, como atividade relacional, une o sujeito e o objeto
e dá origem às coisas que existirão independentemente de nossa
consciência. “A prática é a unidade do sujeito com o objeto, é
ativa por forma, porém, concreta sensorial por conteúdo e resultados”. (JAROSZEWSKI, 1980, v. 2, p. 19)
A prática baseia-se na concepção marxista de que as idéias
não mudam a realidade material, e que só o material, que é a
prática, é capaz de transformar a realidade objetiva.
Podemos considerar que:
O tipo fundamental da prática é a atividade de
produção material humana. Ela cria os bens
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
125
materiais, transforma também socialmente a
atividade revolucionária da massa que visa
mudar as relações de produção. A atividade
prática dos homens e sua participação sóciopolítica, nas suas Lutas de classe, em sua revolução social. (KOPNIN, 1978, p. 168)
A prática deve ser entendida como uma atividade orientada,
através da qual os homens “transformam os objetos materiais e as
estruturas econômicas e políticas, as instituições e outras formas de
articulação social. Trata-se aqui das atividades individuais e coletivas que se desenrolam no quadro da transformação histórica das
formas de interação social”. (JAROSZEWSKI, 1980, v. 2, p. 29)
A prática social humana é à base do conhecimento e, por
conseguinte, da teoria. Porém, é possível conceber, e de fato é
assim, a existência de uma teoria, e de uma prática que ainda não
existe ou está em estado embrionário. Por exemplo, a práxis cósmica. Ela, sem dúvida, é posterior à teoria e apenas começa a se
desenvolver. (VAZQUEZ, 1980, p. 29)
A teoria e a prática, entendidas como uma unidade deve preservar, porém, o reconhecimento da existência de uma certa autonomia da teoria em relação à prática. Por outro lado, se reconhecemos que a prática se manifesta fundamentalmente na produção,
na experimentação e na ação revolucionária, não devemos esquecer o que nos disse Marx em sua Tese VIII sobre Feuerbach: existe
uma prática e uma compreensão desta prática.
Isto significa que devemos conhecer as bases teóricas da
prática, ou seja, conhecer a teoria que origina essa prática, não
esquecendo que a teoria nasceu da prática, isto é, de múltiplas
tentativas realizadas pelo ser humano em seu devir, de variadas
tentativas práticas. Por exemplo, para elaborar a teoria da evolução o homem materializou muitas atividades práticas.
Porém, se o homem não conhece os elementos teóricos de
uma determinada prática, ele não compreenderá a prática. Uma
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
Augusto Silva Triviños
prática realizada na produção, por exemplo, a elaboração do sal de
cozinha será incompreensível para o leigo como o seria também
para o homem ignorante de determinada ciência os experimentos
realizados pelos científicos.
É interessante destacar que:
[...] quando falamos da prática como fundamento da teoria deve entender-se: a) que não se trata de uma relação direta e imediata, já que uma
teoria pode surgir para satisfazer direta e imediatamente exigências teóricas, para resolver
dificuldades de outra teoria; b) que, em conseqüência, apenas em última instância, como parte
de um processo histórico-social, a teoria responde a necessidades práticas, e tem a sua fonte na prática. (VAZQUEZ, 1980, v.2, p. 40)
Quando destacamos a autonomia relativa da teoria da prática, devemos reconhecer que ela não existe sem um mínimo de
ingredientes teóricos, a saber:
[...] a) Um conhecimento da realidade que é o
objeto da transformação; b) um conhecimento dos
meios, e de sua utilização, da técnica exigida
por cada prática, com a que se leva a cabo a
referida transformação; c) um conhecimento da
prática acumulada, sob a forma de teoria que
sintetiza ou generaliza a atividade prática na
esfera em questão, já que o homem apenas pode
transformar o mundo a partir de um determinado nível teórico, isto é, inserindo a sua práxis
atual na história teórico-prática correspondente; d) uma atividade finalista, ou antecipação dos
resultados objetivos que se pretendem atingir sob
a forma de fins ou resultados prévios, ideais, com
a particularidade de que estes fins para que possam cumprir a sua função prática terão de responder a necessidades e condições reais, terão
de ser assimilados pela consciência dos homens,
e contar com os meios adequados para a sua realização. (VAZQUEZ, 1980, v.2, p. 44)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
127
Um dos pensadores contemporâneos que deu mais destaque
à categoria da prática, foi Gramsci. Inclusive ele, chegou a falar da
filosofia da prática, para referir-se ao marxismo. Sem eliminar os
sentidos que o conceito de práxis tem no materialismo dialético,
Gramsci colocou em relevo a idéia de prática como atividade
político-social. E assim falou muitas vezes dando um mesmo sentido aos termos de prática e de política. Sem dúvida, Gramsci
tomava como bases para seus pontos de vista que, porém, são
originais, as palavras de Engels ao se referir às teses sobre Feuerbach
de Marx, onde este sublinhava a importância da prática revolucionária e sócio-histórica, como “a semente de um novo mundo
lançada à terra por um gênio”.(NARSKI, 1980, v. 2, p.119)
O conceito de prática como categoria filosófica é relativamente novo. Ele não existiu na filosofia pré-marxista, salvo no
pensamento de Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach, com diferentes
sentidos, como veremos em seguida. Não houve, em geral, antes
do século dezoito, uma preocupação da filosofia para discutir a
idéia de prática em relação ao desenvolvimento da sociedade e as
transformações que, pela ação do homem, sofriam a realidade tanto natural como social. O problema da prática começou a ser colocado nos primeiros quarenta anos do século dezenove pelo idealismo clássico alemão. Porém, esses filósofos estiveram longe de
dar ao conceito de práxis as dimensões que teria logo no pensamento de Marx, que a considerou como uma atividade objetiva,
material, fundamental, capaz de modificar a sociedade e a natureza, ao mesmo tempo, que era desenvolvida pelo homem, modificava a este. Com efeito, para Hegel era expressa em termos de conhecimento, como uma atividade do espírito absoluto que se
externalizava nas coisas; para Kant a prática era uma ação da
consciência moral; para Fichte a ação do espírito em geral, isto é,
as idéias que estavam na consciência dos homens, diferente do
ponto de vista de Hegel que considerava a idéia absoluta como
algo exterior ao homem; e Feuerbach considerava a prática “[...]
como o funcionamento biológico do organismo e sua relação natu, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
128
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Augusto Silva Triviños
ral com o meio ambiente” (NARSKI, 1980, v. 2, p. 111).
Mais tarde, no século vinte, Henri Bergson, denominado o
“filósofo da vida”, começou também a falar de prática, mas como
uma atividade da consciência individual dos homens. Sem dúvida
alguma, o conceito de prática que mais fortuna teve no campo
educacional, especialmente na escola nova, de cunho liberal e individualista, foi o sustentado pelos pragmatistas, encabeçados por
W. James e Dewey, que fizeram da prática a “esfera única e exclusiva de reflexão filosófica. Descreveram-na como o meio da vida
ativa do homem, mas subjetivaram-na, tratando-a como a ‘aventura’ da consciência na esfera da experiência individual” (NARSKI,
1980, v. 2, p. 111). Esta classe de prática, pragmatista, é, geralmente, a que se desenvolve em nossas escolas e nos trabalhos que
se realizam na chamada educação popular. Esses “relatos de experiências”, sem apoios teóricos conscientes, estão impregnados
da filosofia pragmatista individualista, baseada na competitividade
e no interesse subjetivo.
As relações entre teoria e prática não podem ser consideradas em forma simples, mecânica, a saber: “[...] como que qualquer teoria baseia-se [...]”:
[...] de um modo direto e imediato na prática.
É evidente que existem teorias específicas que
não tem a mesma relação com a atividade prática. Mas, não esqueçamos que estamos a falar
neste momento das relações entre teoria e prática no transcurso de um processo históricosocial que tem seu lado teórico e o seu lado
prático. Na verdade, a história da teoria (do
saber humano no seu conjunto) e da práxis (das
atividades práticas do homem) são abstrações
de uma única e verdadeira história: a história
humana. É uma prova de mecanismo dividir
abstratamente essa história em duas, e depois
tratar de encontrar uma relação direta e imediata entre um segmento teórico e um segmento prático. Esta relação não é direta, estabele, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
129
cendo-se através de um processo complexo em
que umas vezes se transita da prática para a
teoria e outras desta para a prática.
(VASQUEZ, 1980, p. 40).
No aspecto primeiro deste capítulo, tratamos de desenvolver
as relações que existem entre a teoria e a prática. Agora, neste
segundo aspecto, procuramos caracterizar a práxis dentro da concepção materialista.
Sabemos que é muito difícil separar os tópicos que dizem
relação entre a dialética materialista e a prática. Por isso, muitas
vezes, estaremos apontando, talvez mediante outros materiais, aos
mesmos conceitos que descrevemos noutro lugar. Expressamos
que aqui procuraremos descrever a concepção materialista da prática, quando talvez seja melhor dizer que trataremos ver as relações do materialismo com a prática. A diferença pode ser sutil,
mas existe e temos a esperança que ela fique clara para todos nós.
Feuerbach, materialista pré-marxista, afirma:
Anaxágoras: o homem nasceu para a contemplação do universo. O estágio da teoria é o estágio da harmonia com o mundo. Mas onde, ao
contrário, o homem se coloca no ponto de vista
prático e considera o mundo a partir deste,
transformando até mesmo o ponto de vista prático no teorético, aí está ele cindido com a natureza, aí transforma ele a natureza numa escrava submissa do seu próprio interesse, do
egoísmo prático. (FEUERBACH, 1988, p. 154)
Poderíamos dizer que este ponto de vista de Feuerbach, representa, em geral, as concepções que os materialistas anteriores
a Marx tinham sobre a prática. Nela, nessa concepção, a prática
surge como uma expressão egoísta do ser humano e não como um
elemento de desenvolvimento da natureza, da sociedade, do próprio homem. Marx, criticando esse tipo de materialismo, diz: “O
mais alto a que chega o materialismo contemplativo, isto é, o
materialismo que não compreende o mundo sensível como ativi, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
Augusto Silva Triviños
dade prática, é a visão dos indivíduos isolados e da sociedade
civil”. (MARX, 1989, p. 110)
Logo, Marx concentra seus ataques sobre Feuerbach, especificamente, referindo-se, ao mesmo tempo, ao materialismo prémarxista:
A insuficiência principal de todo o materialismo até nossos dias (o de Feuerbach incluído) é
de a coisa, a realidade, o mundo sensível, serem
tomados sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade humana sensível, práxis, não subjetivamente. [...] Feuerbach
quer objetos sensíveis, realmente distintos dos
objetos do pensamento: mas não toma a própria
atividade humana como atividade objetiva. Daí
que, na Essência do cristianismo, apenas considere a atitude teórica como a genuinamente
humana ao passo que a práxis é apenas tomada
e fixada na sua forma de manifestação sordidamente judaica. Daí que ele não compreende o
significado da atividade ‘revolucionária’, de
crítica prática. (MARX, 1984, p. 107)
Na tese 5 sobre Feuerbach, Marx diz que este filósofo, “não
contente com o pensamento abstrato, quer o conhecimento sensível; mas não toma o mundo sensível como atividade humana sensível prática”. (MARX, 1984, p. 109)
Na tese 3, Marx, definindo o materialismo que ele defendia,
e referindo-se à educação e ao educador, coloca em destaque a
importância da educação e do educador. Porém, adverte que na
transformação da sociedade o educador deve também ser educado, porque são outras as condições nas quais está vivendo a sociedade que se transformou. E diz:
A doutrina materialista da transformação das
circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias têm de ser transformadas pelos
homens e que o próprio educador tem de ser
educado. Daí que ela tenha de cindir a socie, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
131
dade em duas partes, uma das quais fica elevada acima dela. A coincidência da mudança
das circunstâncias e da atividade humana ou
transformação só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária.
(MARX, 1984, p. 108)
Na tese 11, Marx critica aos filósofos cuja única preocupação foi a de interpretar o mundo de acordo com suas concepções,
omitindo-se na tarefa que ele considera essencial: a de transformar
esse mundo através da prática humana. E expressa: “Os filósofos
têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo”. (MARX, 1984, p. 111)
O processo de auto-alienação do homem está relacionado,
fundamentalmente, com as relações que o homem tem com seus
semelhantes, mas também com a natureza e consigo mesmo.
Toda auto-alienação do homem de si mesmo e
da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza. [...] No mundo real da prática, essa
auto-alienação só pode ser expressa na relação real, prática, do homem com seus semelhantes. O meio através do qual a alienação
ocorre é, por si mesmo, um meio prático. Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o
homem não só produz sua relação com o objeto
e o processo da produção como de outros homens estranhos e hostis; também produz a relação de outros homens com a produção e produto dele, e a relação entre ele próprio e os
demais homens. (MARX, 1983, p. 8-9)
Marx afirma que é falsa a posição dos “ateístas que querem
negar a Deus para confirmar a existência do homem. O socialismo
dispensa esse método assim tão circundante; ele parte da percepção teórica e prática sensorial do homem e da natureza, como
seres essenciais”. (MARX, 1983, p. 126-127)
O materialismo, disse Marx, ao criticar aos materialistas vul, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
Augusto Silva Triviños
gares “rejeita como uma ilusão à emancipação puramente teórica
e reivindica para a liberdade real, além da vontade idealista, condições absolutamente tangíveis, absolutamente materiais”. (MARX,
1981, p. 110)
Marx afirma que as idéias, princípios, teorias que são próprios
do materialismo dialético, não foram inventados por ninguém: eles
estão aí, existem num movimento histórico “que se processa diante
de nossos olhos”. (MARK; ENGELS, 1981, v.1, p. 95). E sua aplicação prática dependerá sempre “e em toda parte das circunstâncias
históricas existentes”. (MARK; ENGELS, 1981, v.1, p. 108)
É possível pensar que a vida humana, ainda em seus começos, sempre foi racional. Uma racionalidade incipiente permitiu ao
homem organizar suas próprias atividades dentro dos grupos. Por
exemplo, a divisão do trabalho de acordo com a idade e o sexo, e,
posteriormente, a distinção entre trabalho pecuário e agrícola, caça
e pesca, revelam a posse no homem desse espírito racional. Na
concepção atual de teoria, esta não existia nos primórdios da humanidade. A produção, destinada a satisfazer necessidades básicas, cada vez foi fazendo-se mais complexa. Havia um conhecimento que os grupos tradicionalmente armazenavam. Esse conhecimento havia surgido da prática, da experiência. Por isso, a forma
fundamental da prática se expressa nas atividades produtivas. Tudo
isto permite dizer que:
[...] a faceta fundamental da prática é a atividade de produção. Ela não se limita a assegurar, em última instância, a existência da humanidade; foi pela atividade de produção que
esta se elevou acima do reino animal. Da atividade de produção dependem todas as outras
atividades práticas reagem em última análise,
sobre a atividade de produção. (WITTICH,
1980, v.1, p. 27)
No processo de produção, além de outros elementos fundamentais, estão as forças produtivas (o próprio homem, as ferramentas, a experiência, os hábitos etc). Estas forças produtivas “são o
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
133
resultado da energia prática do homem”, mas este, “não é livre árbitro das suas forças produtivas, as quais são a base de toda sua
história”, e depende esta força produtiva das circunstâncias na qual
o homem se encontra situado.” (MARX, 1981, v.1, p. 145)
A práxis do homem é consciente, em todos seus momentos,
especialmente no processo de produção. A práxis, como processo
material, como “matéria”, é diferente a outras formas ou manifestações da matéria precisamente pela sua dimensão consciente que
apresenta. Isto origina um problema que é interessante enunciar.
Se a práxis é consciente podemos dizer que existe uma “falsa
práxis” ou “uma práxis verdadeira, científica”? A resposta a este
questionamento deve ser situada no estabelecimento, com clareza,
do nível social da práxis existente.
Segundo Opitz (1980, v.2, p. 105) a prática, no total, possui
um caráter social e realiza as seguintes funções:
Produz a vida social e as suas necessidades, é
dinâmica dessa vida;
Satisfaz as necessidades da vida social e produz um mundo (realidade histórica) adequado,
correspondente às necessidades humanas;
Determina o progresso e o curso da vida social;
(ideologia, ciência, cultura)
É fundamental, para caracterizar melhor o materialismo
dialético, destacar como este estabeleceu a relação entre práxis e
conhecimento, que desenvolveremos na parte seguinte do corpo
destas notas, e diferenciá-lo, assim do materialismo anterior ao
esboçado por Marx e Engels.
Em geral, podemos dizer que o materialismo pré-marxista, e
toda a filosofia, ignoram, quando elaboram idéias sobre teoria do
conhecimento, a condição social e histórica do homem, isto é, o
isolavam em forma absoluta, reduzindo-o, ou bem a um ser individual que se ia impregnando do saber a medida de seu desenvolvimento, através da experiência, ou era a razão imanente do ser
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Ensaios
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humano ou uma razão superior que permitia a constituição do
conhecimento:
O materialismo pré-marxista não podia compreender a dependência do conhecimento em
relação à prática social, isto é, a dependência
do conhecimento em relação à produção e à
luta de classes, porque ele examinava o problema sem levar em conta a natureza social do
homem, nem seu desenvolvimento histórico.
(TUNG, 1961, p. 162)
Nesta última parte do capítulo da dialética e da práxis, intentaremos apresentar dois aspectos fundamentais da práxis. O primeiro deles refere-se à práxis como origem do conhecimento, e o
segundo, à práxis como critério de verdade.
Já temos os alicerces primordiais que nos ajudarão a apresentar com uma orientação definida nosso problema: a natureza
social do homem e sua característica primária de ser um ente que
se desenvolve historicamente.
Que entendemos por critério de verdade?
De maneira geral, podemos dizer que entendemos por critério de verdade um conjunto de parâmetros que nos permite determinar se um conhecimento é verdadeiro ou falso.
A diferença fundamental que existe entre o idealismo e o
materialismo, referente ao conhecimento, reside no fato que, ao
contrário do idealismo, o materialismo concebe a origem das idéias, a formação das idéias, a partir das formações materiais. Para o
materialismo é a práxis material a que determina as idéias, e não
estas a que definem aquela.
Ao contrário da visão idealista da história, a
concepção materialista não tem de procurar
em todos os períodos uma categoria, pois permanece constantemente com os pés assentes no
chão real da história; não explica a práxis a
partir da idéia, explica as formações de idéias
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
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a partir da práxis material, e chega, em conseqüência disto também a este resultado; todas
as formas e produtos da consciência podem ser
resolvidos não pela crítica espiritual, pela dissolução na ‘consciência de si’ ou pela transformação em ‘aparições’, ‘espectros’, ‘manias’ etc, mas apenas pela transformação prática (revolucionária) das relações sociais reais
de que derivam estas fantasias idealistas, a força
motora da história, também da religião, da filosofia e de todas as demais teorias, não é a
crítica, mas sim a revolução”.(MARX;
ENGELS,1984, p. 48)
Como a prática exerce a sua influência sobre o conhecimento? Para dar uma resposta a esta questão, é conveniente lembrar
que a prática é, ao mesmo tempo, um processo que se manifesta
socialmente e como transformação da realidade objetiva. Sendo
assim, a prática é a base do conhecimento, isto é, que através dela,
nós podemos conhecer a realidade objetiva, captar suas relações,
suas propriedades, sua essência. Mas a prática não é só a base do
conhecimento, é ponto inicial dele, algo que o movimenta que é
sua origem. Desta maneira, o conhecimento não se opõe à prática,
já que esta o origina.
Pensemos, por um momento, numa prática específica, a navegação à vela. Nos primórdios dela, existia uma prática imperfeita e havia necessidade de novos conhecimentos. E foi através
da prática, vencendo dificuldades, satisfazendo necessidades, que
o homem chegou a ter um conhecimento sobre a navegação à
vela. Mas aí começaram a nascer outras necessidades. O homem
não estava satisfeito, por exemplo, com o tempo que demorava
entre um ponto e outro da terra, através do mar. E houve tentativas de outras práticas de navegação até obter um conhecimento
que permitiu concretizar a satisfação dessas necessidades. Esse
conhecimento, já estabelecido, permitiu, a sua vez, a realização
de novas práticas.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Quando as práticas alcançam os níveis de verificação na realidade, então o conhecimento que surge dessas práticas pode ser
denominado ciência, arte. Estas são veículos para novas práticas
que podem ou não ser idênticas: isto dependerá das condições dos
sujeitos, do meio, do momento histórico. As práticas estão historicamente determinadas como estão os conhecimentos. Mas não
todo o conhecimento surge das necessidades práticas imediatas.
Quando mais avançada é a prática, tanto mais
a ciência é também influência pelas necessidades espirituais derivadas as necessidades
práticas imediatas. Estas necessidades espirituais relevantes para o progresso do conhecimento nascem, por exemplo, da própria ciência. Assim, mais recentemente, o desenvolvimento da lógica formal tem sido determinado,
essencialmente, por necessidades da ciência
matemática que não resultam diretamente da
prática. Estas necessidades apenas indiretamente práticas, estão subjacentes a teorias
como a semiótica, a tratados sobre a natureza
do processo de abstração e de generalização,
da formação de hipóteses e de teorias etc.
(WITTICH, 1980, p. 37)
O ser humano realiza práticas que constituem conhecimentos. Estes conhecimentos devem ser dominados pelas pessoas,
porque eles são, poderíamos dizer, práticas cristalizadas. O que
ignora os conhecimentos alcançados por uma época determinada,
vamos a pensar, em medicina o uso dos raios laser para realizar
operações delicadas, caminha retrasado nessas respectivas práticas médicas. E assim, o conhecimento torna-se fundamental, porque nele estão embutidas práticas essenciais para satisfazer necessidades humanas. Por isso as lutas, em algum sentido, das classes populares por escolas, porque se considera que estas produzem condições igualitárias no domínio do conhecimento. Ás vezes, porém, as escolas esquecem que esses conhecimentos nasceram de práticas. Por isso as tendências de unir a educação, que é
fundamentalmente conhecimento, com o trabalho, e, se é possível,
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
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com o trabalho produtivo.
O anterior pode levar à crença, talvez, que a prática e o conhecimento são idênticos. Estão reciprocamente relacionadas, mas
são duas coisas diferentes. A prática, repetirmos: é material; o
conhecimento, espiritual:
A teoria do conhecimento do materialismo
dialético coloca a prática em primeiro lugar,
considera que o conhecimento humano não
pode ser separado nem um pouco da prática e
repudia todas as teorias errôneas que negam a
importância da prática, ou separam o conhecimento da prática. (TUNG, 1961, p. 274)
Como se desenvolve o conhecimento para dizer que o conhecimento nasce da prática e serve, por sua vez, à prática? Para ter
uma resposta a esta questão, é necessário, sucintamente, fazer
uma revisão do processo de desenvolvimento do conhecimento.
Para o materialismo dialético a base do conhecer está no
reflexo. Esta é uma atividade subjetiva que parte da realidade
objetiva e leva uma imagem cognitiva a uma imagem ideal. E isto
origina a prática. Mas só “em última instância” (KOPNIN, 1980,
p. 129) a prática dirige a evolução do pensamento. Este, verdadeiramente, tem suas próprias leis, sua própria lógica que pode estar
vinculada à prática, mas que é relativamente autônoma.
A prática é racional, mas também pode ser não-racional.
Verdadeiramente na prática humana sempre existe o racional e o
não-racional. Não são coisas opostas. São, relativamente, estágios. O homem torna o não-racional em racional, mas imediatamente
nos estágios racionais surgem novas expressões do não-racional.
A dialética materialista não rejeita a intuição. Apenas a considera como uma forma do pensamento racional, onde verificado
um salto, uma ruptura da continuidade do pensamento racional.
O homem conhece sensorialmente e expressa esse conheci-
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
138
Ensaios
Augusto Silva Triviños
mento em forma de juízos de percepção. Por isso, o conhecimento
sensorial sempre é pensamento. Mas existem outras formas de
pensamento muito mais elevadas, mais completas, mais perfeitas.
Algumas delas surgem após do que o ser humano tem repetidas
experiências na realidade objetiva e penetra nas relações que são
essenciais dos objetos. O conceito de “mamífero” surgiu depois
de ser presenciado o fenômeno milhares de vezes e realizado por
diferentes seres. Isto é, a formação de conceitos precisa de algum
material empírico.
Na formação de conceitos tem muita importância a experimentação. As práticas se generalizam. Nasce a dedução:
No processo de surgimento e desenvolvimento
dos conceitos cabe enorme papel à dedução.
Nesta é onde melhor pode se observar o caráter mediato, criador do pensamento humano.
Grande parte do conhecimento humano tem
caráter dedutivo. O estudo da dedução, as regras e formas de extrair um juízo de outros,
constitui tarefa essencial da lógica formal. A
dialética não deve substituir a lógica formal
nessa questão. O campo da dialética é o estudo da natureza gnosiológica das deduções, sua
função no movimento do pensamento no sentido da verdade, do papel da dedução na formação e desenvolvimento das teorias científicas.
Na teoria da dedução a tarefa consiste em que,
ao analisar o processo real, vivo, concreto do
conhecimento, tomar aquelas formas de dedução que nele se verificam, esclarecer a essência, o lugar e a relação delas quer entre si,
quer com outras formas de conhecimento.
(KOPNIN, 1980, p. 213)
A dedução nasce da prática. O trabalho é uma forma de prática. A prática é a que torna, ou pode tornar a hipótese, em conhecimento científico. Não existe uma identidade entre a realização prática de uma idéia e a idéia. Isto ocorre especialmente quando as
idéias não estão adequadamente amadurecidas, mas também a prá, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
139
tica, às vezes, não pode realizar as idéias. (KOPNIN, 1980, p. 288)
O materialismo dialético tem como critério de verdade a prática, isto é, todo conhecimento é verdadeiro se é verificado na
prática, na produção, no experimento, na revolução social:
O ponto de vista da vida, da prática, deve ser
o ponto de vista primeiro e fundamental da teoria do conhecimento. E ele conduz inevitavelmente ao materialismo, afastando desde o
princípio as invencionices intermináveis da
escolástica professoral. Naturalmente, não se
deve esquecer que o critério da prática nunca
pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer
que seja. Este critério é também suficientemente ‘indeterminado’ para não permitir que os
conhecimentos do homem se transformem num
‘absoluto’, e, ao mesmo tempo, suficientemente ‘determinado’ para conduzir uma luta implacável contra todas as variedades de idealismo e de agnosticismo. Se aquilo que a nossa
prática confirma é a única e última verdade
objetiva, daí decorre o reconhecimento de que
o único caminho para esta verdade é o caminho da ciência assente no ponto de vista materialista. (LENIN, p. 107)
“A resolução das contradições teóricas somente é possível
através de meios práticos, somente através da energia prática do
homem”. (MARX, 1983, p. 122). “A solução de um problema
teórico é uma tarefa da prática”. (MARX, 1983, p. 133)
O critério de verdade do materialismo dialético está, especificamente, na Tese 2, sobre Feuerbach, de Marx. Por ser um fragmento clássico do marxismo, o destacamos a seguir:
A questão de saber se ao pensamento humano
pertence à verdade objetiva, não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na
práxis que o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
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Augusto Silva Triviños
terreno, do seu pensamento. A disputa sobre a
realidade ou não realidade do pensamento,
que está isolado da práxis, é uma questão puramente escolástica. (MARX; ENGELS, 1983,
p. 107-108)
Muitos filósofos contestam a possibilidade de um conhecimento do mundo em seus aspectos essenciais. O homem não estaria em condições de conhecer a “coisa em si”. A esta linha de
pensamento pertencem, por exemplo, Kant e Hume. Porém, a ciência está demonstrando que, num dado momento, o que era a “coisa
em si” se transforma em “coisa para nós”.
A mais percuciente refutação desta, como de todas as tinetas
filosóficas, é a prática, nomeadamente, a experimentação e a indústria. “(MARX; ENGELS, v.3, p. 389)
Se o marxismo reconhece como critério elevado e decisivo o
da prática, isto não quer dizer que não aceite outros critérios para
reconhecer se um conhecimento é verdadeiro ou falso. Porém estes critérios (como os de correspondência, coerência) são secundários e apóiam o critério principal da prática.
É interessante, para terminar esta breve apresentação sobre a
dialética e a prática, social, estabelecer as diferenças que existem
entre o critério da prática do materialismo dialético e o critério de
utilidade do pragmatismo. James explica o critério de utilidade assim:
Quando se revela que idéias teológicas têm
valor para a vida real, elas tornam-se verdadeiras para o pragmatismo, no sentido de que
são úteis. Observa-se que aqui não são verificados enunciados como “Há um deus”, senão
proposições como é vantajoso para um determinado grupo de homens que existe um deus
com estas ou aquelas qualidades. (WITTICH,
1980, v. 1, p. 31)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
A dialética materialista e a prática social
141
Dialetical Materialsm and the social practice.
Abstract: The social practice category is one of
de most important categories Dialectical
Materialism. It is placed in the same level as material, conscience and contradiction. In the present
study, the meaning of social practice will be
discussed. It is basically accumulated knowledge
which the human being has reached throughout his
History. In this sense, social practice is, on one hand,
action, practice and on the other hand, a concept
of this practice, which has occurred in the space
of material phenomena and has been worked out
by conscience has the capacity of reflect this material reality.
K e y w o r d s: Social Practice. Dialectical
Materialism.
Materialismo dialéctico e la práctica social.
Resumen: La categoría de la práctica social es
una de las más importantes del materialismo
dialéctico. Está al lado de las categorías de la
materia, de la consciencia y de la contradicción.
¿Que es la categoría de la práctica social? Es el
saber acumulado por el conocimiento humano a
través de su historia. En este sentido, la práctica
social es, de una parte, acción práctica, y por otra,
concepto de esa práctica que se ha realizado en el
mundo de los fenómenos materiales y que fue elaborado por la consciencia que tiene capacidad de
pensar esa realidad material.
Palabras clave: Materialismo dialéctico. Práctica
social.
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Ensaios
Augusto Silva Triviños
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Horizontes, 1980. v 1.
Recebido em: 29/03/2006
Aprovado em: 20/08/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 121-142, maio/agosto de 2006.
O Modo de Produção: Categoria do
Materialismo Histórico
Magda Maria Colao *
Um capitalismo humano, social, verdadeiramente democrático e eqüitativo é mais irreal
e utópico que o socialismo. O capitalismo é
estruturalmente antitético à democracia não
somente por razão óbvia de que nunca houve
uma sociedade capitalista em que a riqueza
não tivesse acesso privilegiado ao poder, mas
também, e principalmente, porque a condição
insuperável de existência do capitalismo é o
fato de a mais básica das condições de vida,
as exigências mais básicas da reprodução social, ter de se submeter aos ditames da acumulação de capital e as “leis”do mercado.
Isso quer dizer que o capitalismo coloca necessariamente mais e mais esferas da vida
fora do alcance da responsabilidade democrática”. ( WOOD, 2003, p. 8)
Resumo: O modo de produção é a categoria básica, fonte, do materialismo histórico. Em seu seio podemos encontrar todas as categorias próprias do materialismo histórico. Porém, as categorias dessa ciência social são as
forças produtivas (ser humano, ferramentas, máquinas,
tecnologia) e as relações de produção (entre assalariados
e empresários, entre assalariados, e entre empresários).
As relações de produção, junto às outras categorias do materialismo histórico, fundamentalmente, produzem as mudanças e transformações sociais.
Palavras-Chave: Trabalho. Capitalismo. Economia: história. Classe social.
Na obra Contribuição para a crítica da economia política,
Marx comenta sobre o modo de produção nos seguintes termos:
*
Doutora em Educação, psicóloga e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
144
Ensaios
Magda Maria Colao
O primeiro trabalho que empreendi
para esclarecer as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão “Crítica da Filosofia do
direito de Hegel”, trabalho cuja introdução
apareceu nos Anais franco-alemães, publicado em Paris em 1844. Nas minhas pesquisas
cheguei à conclusão de que as relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não
podem ser compreendidas por si mesmas, nem
pela dita evolução geral do espírito humano,
inserindo-se pelo contrário nas condições
materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século
XVIII, compreende o conjunto pela designação de “sociedade civil”; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada
na economia política. Tinha começado o estudo desta em Paris, continuando-o em Bruxelas. A conclusão geral a que cheguei e que
uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos
meus estudos, pode formular-se, resumidamente assim: “na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinada, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem
a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona
o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua
consciência. (MARX, 1983, p. 24)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
145
1 Breve nota priliminar
Creio que a categoria do modo de produção e pesquisa1 não
somente é a principal categoria, a categoria fundamental do materialismo histórico, mas também, como disse Engels, uma das criações
mais geniais de Marx. Claramente isso o destaca Wood (2003) quando
expressa que o modo de produção é o “conceito mais operacional
do materialismo histórico”. E eu acrescentaria: a mais rica, a mais
complexa das categorias do materialismo histórico.
O nascimento e a concepção geral da categoria do materialismo histórico revelam, não só o gênio de Marx, mas também seu
1
O conhecer o modo de produção, no qual está inserida sua pesquisa, é fundamental
para o pesquisador. Poderíamos dizer que se o pesquisador não conhece as características que definem determinado modo de produção, seu trabalho será cego, sem espírito
criativo. Quando mais será pura repetição ou uma soma de conceitos vazios, elaborada
no ar. E isso, infelizmente, ocorre freqüentemente em nosso meio acadêmico. Muitas pesquisas são orientadas por teorias, geralmente criadas noutro mundo, o mundo desenvolvido, que está longe de nossa realidade.
O Modo de Produção representa uma determinada formação social, o que significa que
assinala os caracteres fundamentais dessa formação social. O Modo de Produção da
formação social primitiva apresentava como característica essencial o trabalho coletivo,
através do qual, todos produziam e todos se repartiam o que produziam. A propriedade
dos meios de produção era do coletivo social.
Entretanto, no Modo de Produção Capitalista, no qual estamos submersos, os meios de
produção pertencem a uma minoria. E o que produz o ser humano, como trabalhador, não
lhe pertence. A produção se torna mercadoria, e inclusive a força de trabalho do ser
humano é mercadoria, cujo valor também varia no mercado. Como essa minoria é absolutamente dominante, é também proprietária da tecnologia. E isso tem significado, que a
tecnologia substitua o ser humano no processo produtivo. Como conseqüência disso, o
trabalho desaparece para o trabalhar manual e intelectual. E falta de trabalho para o ser
humano, aumenta a miséria no mundo.
No campo da educação, o modo de produção capitalista, estimula o triunfo individual, o
egoísmo. Desenvolve a educação privada e trata de destruir a educação pública. Os
educadores que trabalham para a educação pública recebem salários reduzidos que apenas lhes permitem sobreviver. E a formação desses educadores que servirão na educação pública também é mesquinha, porque, segundo esse modo de produção, as classes
baixas da sociedade apenas devem receber um nível de escolaridade que lhes permita
reproduzir-se.
De maneira que o Modo de Produção, na pesquisa, torna-se a chave que abrirá as portas
pelas quais ela entrará e caminhará. O pesquisador saberá o que pode encontrar nessa
realidade. Sua pesquisa deverá ressaltar os caracteres que apresenta o modo de produção, porém ela será absolutamente inútil, se não apresenta os caminhos que se podem
seguir para transformar esse modo de produção injusto.
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Ensaios
Magda Maria Colao
profundo conhecimento da história da humanidade. Conhecimento
sentido, não como uma estrutura pétrea, situado no fundo de uma
sala de museu, mas com uma dimensão heurística, capaz de abrir
o espírito a novas verdades, a novos descobrimentos intelectuais.
Por que, que é o modo de produção, se não o berço de toda
a cultura da humanidade, do ser humano como ser pensante, com
necessidades materiais, com necessidades espirituais, com esperanças, com desejos de chegar mais alto na compreensão do que é
o ser humano, a vida, o mundo? Porque no modo de produção
reside o básico da existência da mulher e do homem: a busca de
maneiras de satisfazer suas necessidades de existir, de sobreviver,
e ao mesmo de criar, de transformar a realidade que lhe dá abrigo.
No modo de produção estão as forças produtivas e as relações de produção, mas também o ser social, a consciência social,
a arte, a ciência, os valores, a cultura em geral. Ou seja, o ser
humano como ser social, político, econômico, como cidadão, como
pessoa em desenvolvimento, em criação, em processo de transformação do mundo, da vida, da sociedade.
Alguns têm falado de uma base ou de uma infra - estrutura e
de uma superestrutura para desenhar a idéia do modo de produção. Talvez possa haver um fundamento para manter semelhante
idéia. Porém, eu vejo o modo de produção como uma realidade
dialética onde todos os processos que nele se realizam estão em
perpétuo movimento, tanto os que se concretizam na especificidade
do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção como nos resultados que esse desenvolvimento origina. O
que aí existe, por um lado, são expressões de contradições antagônicas e não antagônicas que estão produzindo mudanças, e dadas
certas circunstâncias, também transformações. Por outro lado, sem
dúvida, nessas contradições, existem pólos que são dominantes e
que, em determinado momento histórico, definem o caráter, por
exemplo, de cooperação ou de opressão que terão os frutos dessa
relação dialética dos elementos envolvidos.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
147
Essa realidade dialética do modo de produção, não permite,
por exemplo, que o ser social, constituído pelas forças produtivas
e as relações de produção, e a consciência social, que é resultado
desse processo estabelecido ou entre as força produtivas e as
relações de produção, sejam idênticos para todas as pessoas que
integram determinado modo de produção. A mesma condição
dialética e a idiossincrasia que caracteriza a cada pessoa tornam
possível que o selo que estabelece o modo de produção nos membros que o integram apenas seja geral. Por isso, os modos de produção que são dominantemente opressores, sempre terão elementos singulares que estarão lutando contra esse predomínio injusto.
2 O conceito do modo de produção
Os elementos essenciais do modo de produção, como já o
expressei, são as forças produtivas e as relações de produção. Por
outro lado, Marx já mostrou que o desenvolvimento da vida social
está intimamente ligado ao modo de produção que lhe é próprio.
Essas conclusões dos estudos de Marx originaram, muito mais
tarde, uma polêmica que ainda não está, inteiramente, resolvida.
Em primeiro lugar, Marx foi acusado de evolucionista, quando descreveu que na história da sociedade tem havido uma sucessiva história de modos de produção, desde o modo de produção
primitivo até chegar ao modo de produção capitalista, passando
pelos modos escravista e feudal, e inclusive um modo de produção asiático que mostrava características diferenciadas aos outros
modos de produção existentes na história. E anunciava Marx que
o modo capitalista de produção seria substituído pelo modo socialista de produção. Mais adiante, neste breve ensaio, esclarecerei
como se está tratando de rejeitar dessa acusação de evolucionista
na essência do pensamento marxiano. Por ora, voltamos às forças
produtivas e as relações de produção.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
148
Ensaios
Magda Maria Colao
Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessidades, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais [...]. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em gera. [...]. Em certo estádio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção ou, o que é sua expressão
jurídica, com as relações de propriedade no
seio das quais se tinham movido até então. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seu entrave. (MARX, 1983, p. 24-25)
Esta afirmação de Marx desencadeou um debate entre os
marxistas que ainda não terminou. Alguns teóricos marxistas dão
primazia às formas produtivas, o que originaria um marxismo
determinista tecnológico, e outros, que “situam as relações de produção e de classe num contexto trans-histórico maior de desenvolvimento tecnológico”. (WOOD, 2003, p. 99-102)
Eu quero fazer alguns comentários frente a esta polêmica e
inclusive, tomar partido por algum tipo de decisão. Em primeiro
lugar, eu penso que no seio do modo de produção, existem as
relações de produção e as forças produtivas numa dimensão
dialética. Ao que parece Marx quando expressa que “em certo
estado de desenvolvimento entram em contradição as forças produtivas com as relações de produção”, ele está pensando em contradições antagônicas que são resolvidas somente com a destruição de uns dos pólos da contradição. Ou seja, que até esse momento, as forças produtivas e as relações de produção estavam em
contradição não antagônica. Isto pretende esclarecer o que possivelmente houvesse estado ocorrendo no modo de produção. Mas
não ajuda a resolver se no modo de produção são prioritárias as
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O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
149
relações de produção ou as forças produtivas. Eu considero que,
historicamente, as relações de produção são mais duradouras que
as forças produtivas.
O mesmo homem que é a principal força produtiva no modo
de produção tem uma existência relativamente breve. A tecnologia,
em nosso tempo, a cada momento apresenta uma nova face. Posso
dizer, dessa maneira, que as forças produtivas são efêmeras. Entretanto, as relações de produção, que tem como base, as relações
de propriedade são historicamente mais sólidas. Por outro lado, as
relações de produção estão relacionadas também com a troca e a
distribuição da produção. Na propriedade coletiva dos meios de
produção as pessoas são iguais. E a cooperação e a emulação são
fundamentais no processo de produção. Quando os meios de produção são de propriedade privada existem a competição e a submissão. Por isso eu penso, e considerando também a formação
acadêmica de Marx, essencialmente em história, filosofia, economia e direito, que Marx priorizava as relações de produção como
responsáveis das mudanças progressivas que poderiam realizar os
modos de produção.
Mas isso nos leva a referir-nos a outro problema. É a história humana a sucessão natural de modos de produção?
Wood (2003, p. 103-105) afirma que, segundo Roemer, todas
as formas de exploração estão já embutidas no feudalismo. Estas
formas de exploração dificultam o desenvolvimento das forças
produtivas e são eliminadas pela revolução burguesa. Essa idéia,
segundo Wood, representa um ponto de vista de determinismo
tecnológico; ou seja, de predomínio das forças produtivas na passagem de uma sociedade de um estado inferior a outro superior.
Porém Wood, ou mesmo Marx retifica sua afirmação que aparece
no prefácio da Contribuição à crítica da economia política, e que
citamos acima, quando expressa nos Grundrisse (WOOD, 2003,
p. 105) e em O Capital que “o que distingue as relações de produção pré-capitalistas é que elas oferecem aos produtores diretos
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
150
Ensaios
Magda Maria Colao
todos os meios de reprodução”. E acrescenta Wood (2003, p.105),
cintando Brenner, “que as comunidades de senhores e agricultores,
através dessas relações de propriedade, tornavam possível a reprodução econômica de seus membros”. Isto quer dizer que a
passagem do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista, se produziu pela “transformação das relações de propriedade existentes das regras feudais de reprodução para as novas
regras capitalistas”. (WOOD, 2003, p. 106)
Quero terminar este comentário preliminar, antes de desenvolver o conceito de modo de produção, que, é o que me preocupa
nesta parte de meu trabalho, com uma citação de Ellen Wood que
reflete claramente o que eu penso.
A premissa aqui é que o modo de produção
não existe em oposição aos “fatores sociais”,
e que a inovação radical de Marx em relação à
economia política burguesa foi precisamente
a definição do modo de produção e das próprias leis econômicas em de “fatores sociais”.
(WOOD, 2003, p. 31)
Para o Diccionario de Filosofia (ACADEMIA, 1984, p. 296),
o modo de produção “caracteriza um tipo determinado de produção dos meios necessários para a vida do ser humano (alimentos,
roupa, habitação, instrumentos de produção)”. Reconhece o mencionado Diccionario, a importância essencial dessa categoria para
o materialismo histórico, já que se refere aos aspectos fundamentais da vida social, política e espiritual que existe numa determinada sociedade. O modo de produção está ligado ao desenvolvimento de todos os fatores sociais e é elemento principal na configuração da sociedade toda. Nele existem as forças produtivas e as
relações de produção indissoluvelmente unidas e em contradição.
Para Quintanilla (1985, p. 323-324) o modo de produção resulta da combinação específica entre um nível de desenvolvimento das forças produtivas as correspondentes relações de produção. Considera o modo de produção como um “objeto abstrato–
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
151
formal”, o que significaria que o modo de produção se apresentaria como uma espécie de modelo para a analise das formações
socioeconômicas. Ou seja, que o modo de produção não teria
existência real. A formação socioeconômica, seria a instância social concreta que conteria vários modos de produção, dos quais
um deles seria dominante.
Esta idéia de Quintanilla parece não concordar com as análises que ao longo de O Capital realiza Marx, como posteriormente
destacaremos, ao falar do modo capitalista de produção. Na realidade, Quintanilla, para defender suas idéias sobre o modo de
produção e a formação socioeconômica está apoiando-se especialmente no marxismo estruturalista de Althusser, Poulantzas e
Balibar que na década de setenta do século vinte teve alguma
importância na representação do pensamento marxista. Porém, nesse
mesmo período assinalado, e inclusive um pouco antes, tiveram
Althusser e seus seguidores, críticas tão severas que, essa tendência estruturalista marxista, foi como apagada dentro do campo do
pensamento marxista.
Wood (2003) é taxativa ao criticar e rejeitar a posição
althusseriana, quando expressa:
A verdade que pode existir na sugestão de que a
distinção altusseriana entre modo produção e
formação social destinava-ser a tornar os marxistas ducados à sombra do modelo grosseiramente economístico e reducionista da base/superestrutura mais sensível á especificidade histórica e à complexidade da vida social não passa de meia verdade; pois a distinção atingiu
seu fim mediante a simples inserção de uma cunha entre estrutura e história,criando um
dualismo rígido entre determinação e contingência a que deixou as determinações estruturais mais ou menos impotentes na esfera da
explicação histórica e, na verdade, tornou-se
sem efeito o materialismo histórico como meio
de explicação do processo histórico. Foi ape, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
152
Ensaios
Magda Maria Colao
nas uma forma de evadir o desafio proposto por
Marx: com, o abranger a especificidade histórica, bem como a ação humana, enquanto se reconhece dentro delas a lógica dos modos de produção. (WOOD, 2003, p. 59)
3 Os tipos de modo de produção
Marx fala dos modos de produção em várias obras. Numa
delas, Formações econômicas pré-capitalista, como o expressa o
título escreve, de maneira especial dos modos de produção que
existiram antes da chegada do modo de produção capitalista. É
interessante destacar algumas idéias que Marx afirma, porque nos
permitem compreender o modo de produção capitalista.
Diz Marx (1986) no livro citado:
Quanto mais tradicional for o próprio modo
de produção, isto é, quanto mais o processo
real de apropriação permanecer o mesmo, tanto mais imutável serão as velhas formas de propriedade e portanto a comunidade como um
todo (Observe-se que o modo tradicional persiste por longo tempo na agricultura e, ainda
mais, na combinação oriental de agricultura e
manufatura). Quando os membros da comunidade tiverem adquirido, como proprietários
privados, existência separada de sua existência coletiva como comunidade urbana e donos
do território urbano, já surgirão condições que
permitirão ao indivíduo a perda de sua propriedade, isto é, o duplo relacionamento que o
torna um cidadão, com status igual, um membro de comunidade, quanto um proprietário.
Na forma oriental esta perda seria difícil a
menos que ocorra como resultado de influências completamente externas, pois os membros individuais da comunidade nunca estabelecem com ela relações tão independentes
que tornem possível a ruptura de suas ligações (econômicas, objetivas) com a mesma. O
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
153
indivíduo está firmemente enraizado. Este é,
também, um aspecto da união de manufatura e
agricultura, da cidade (neste caso a aldeia) e
campo. Entre os antigos, a manufatura já se
apresenta como uma corrupção (negócio adequado para libertos, clientes estrangeiros ), etc.
O trabalho produtivo é liberado como trabalho doméstico de pessoas livres, destinadas só
aos propósitos da agricultura, serviços religiosos, guerras e tarefas comunais, como a construção de casas, estradas ou templos. Este desenvolvimento, a conseqüências necessárias das
relações com estrangeiros e escravos, da ânsia
de trocar o produto excedente, etc., com ele o
homem objetivamente individual, isto é, o indivíduo determinado como um grego, um romano,
etc. A troca, o endividamento, etc., surgem o
mesmo efeito. (MARX, 1986, p. 88-89).
A primeira frase da citação de Marx colocada acima: “Quanto mais tradicional seja o modo de produção, isto é, quanto mais o
processo de produção permanecer o mesmo, tanto mais imutável
serão as velhas formas de propriedade e portanto, também a comunidade como um todo”, (MARX, 1986, p. 88), abre variadas
perspectivas de análise dessa afirmação. Está, em primeiro lugar,
reafirmando que um modo de produção baseado no campo da
agricultura manter-se-á muito mais tempo em sua forma tradicional. Devemos entender então, que o modo de produção que tenha
como fundamento o desenvolvimento industrial estará muito mais
disposto às mudanças que outros modos baseados na agricultura e
na manufatura. Isto também pode significar que o modo de produção capitalista pode ser considerado, dentre os tipos de modos de
produção, como francamente revolucionário, especialmente se o
consideramos do ponto de vista do desenvolvimento das forças
produtivas. Por outro lado, ao que parece, o desenvolvimento da
forças produtivas até limites não previsíveis, tende a assegurar a
permanência do modo de produção capitalista, especialmente quando o modo de produção capitalista tem realizado mudanças impor, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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tantes na propriedade dos meios de produção, os quais, cada vez
mais deixam de ser propriedade individual para transformar-se em
propriedade de grupos de empresários que se organizam em grandes companhias econômicas, chamadas multinacionais ou
transnacionais, as quais chegam a produzir um mundo variado de
mercadorias que em algumas ocasiões alcançam a cem mil espécies diferentes. Ou seja, o modo de produção capitalista introduz
mudanças fundamentais que não são apenas nos aspectos
tecnológicos das forças produtivas, mas também na forma de apropriação dos meios de produção. Por outro lado, este esforço do
modo de produção capitalista, não evita a guerra que se realiza no
mercado, onde as mercadorias têm, muitas vezes, que lutar para
sobreviver, o que pode significar o êxito ou a derrota de uma
determinada empresa. A tábua de salvação, nesses momentos de
crise, é a união das grandes empresas que trabalham com tipos de
mercadorias semelhantes, para evitar a concorrência que existindo, pode significar a morte da empresa. Isso, por outra parte, produz a concentração maior da riqueza mundial e, ao mesmo tempo,
de acordo com os relatórios das Nações Unidas sobre Índices de
Desenvolvimento Humano, a pobreza cresce em todas as regiões
do mundo, o que pode significar a semente para originar mudanças
radicais na realidade atual da humanidade.
4 O modo de produção da comunidade primitiva
Temos uma unidade original, entre uma forma
específica de comunidade, ou unidade tribal, e
a propriedade natural relacionada com ela, ou,
o que dá o mesmo, a relação com as condições
objetivas de produção, tal como existentes na
natureza, como o ser objetivo do indivíduo
mediado pela comunidade. Ora, esta unidade
que, em certo sentido, mostra-se como a forma
particular de propriedade, tem sua realidade
viva num modo de produção específico e este
modo mostra-se, igualmente, como o relacionamento de indivíduos uns com os outros e
como seu comportamento cotidiano, específi, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
155
co, frente à natureza inorgânica, seu modo específico de trabalho (que sempre é trabalho familiar e muitas vezes comunal). A própria comunidade apresenta-se como a primeira grande força produtiva; tipos especiais de condições de produção (ex.: criação, agricultura),
conduzem à evolução de um modo especial de
produção, bem como forças produtivas especiais tanto objetivas como subjetivas, as últimas
emergindo como qualidades do indivíduo. Neste caso, a comunidade e a propriedade que nela
se baseia podem ser reduzidas a um estágio
específico de desenvolvimento das forças produtivas dos indivíduos trabalhadores, a que
correspondem relações específicas destes indivíduos entre si e com a natureza. Até certo
ponto, reprodução. Depois disto, transformase em dissolução.(MARX, 1986, p. 89-90).
Desta descrição que faz Marx do que é o modo de produção
primitivo, pode-se ressaltar várias idéias. Uma delas, por exemplo, é a que se refere a que “[...] a própria comunidade apresentase como a primeira grande força produtiva”. Outra idéia que merece ser destacada é a do “[...] relacionamento de indivíduos uns
com os outros num comportamento cotidiano específico, frente à
natureza inorgânica”.
Quintanilla acrescenta à estas idéias de Marx, alguns conceitos que quero destacar também. Expressa Quintanilla (1985, p.
325): “O resultado da produção agrícola se distribui entre toda a
comunidade, sem que origine excedente”. Esta idéia que soma o
autor citado ao conceito de modo de produção primitivo, é importante porque, mais tarde, o modo capitalista especialmente, baseará grande parte de seu desenvolvimento e força, precisamente na
produção excedente. Argumenta Quintanilla (1985, p. 325) que
dessa maneira, produzindo exatamente para satisfazer as necessidades da comunidade, ninguém, nesta, se enriquece. Não há a
possibilidade da existência de classes socais antagônicas. “A desintegração da comunidade primitiva é o resultado da agricultura
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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sedentária, na que surge o produto excedente, e com ele a desigualdade social”.
5 O modo de produção antigo
Quintanilla (1985, p. 325-326) expressa que a dissolução da
comunidade primitiva originou, por um lado, na Ásia, o modo de
produção asiático, e na Europa, o modo de produção antigo que
são significativos em Atenas e Roma, por serem formas diferenciadas de modos de produção antigos. O estado ateniense nasce
como resultado dos antagonismos que se desenvolvem no seio da
sociedade gentilícia. Aparece a divisão do trabalho. Surge a pequena propriedade agrária. Despontam ofícios. Nascem os mercadores que se deslocam de tribo em tribo, o que cria problemas,
porque os estrangeiros não eram reconhecidos como formando
parte da tribo. Para solucionar o caso, especialmente dos mercadores, ditou-se uma constituição comum para todas as tribos. Essa
constituição determinou três classes de pessoas: os nobres, os
agricultores e os artesãos. Na constituição estabeleceu-se também que os cargos públicos, somente poderiam ser desempenhados pelos nobres.
O modo de produção antigo de Roma é considerado mais
desenvolvido que o ateniense. As pessoas são possuidoras de terras públicas e proprietário de uma parcela. O indivíduo encontrase ligado à comunidade, a qual lhe garante sua existência com a
condição de trabalhar também para o exército e participar em campanhas guerreiras. Os romanos como os gregos praticam uma espécie de democracia militar. Esta, de Roma, chegou a constituir
uma classe que se apoderou de todo o poder público, especialmente do senado. Ao mesmo tempo estava-se constituindo em
Roma uma plebe, sem nenhum direito político, salvo que, houvesse feito o serviço militar; então podia participar nas assembléias
do povo. Esta plebe constituía o núcleo do exército romano.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
157
6 O modo de produção escravista
O escravo é um instrumento de trabalho que o amo deve manter da mesma forma como se conserva um boi, um cavalo. A propriedade do solo é privada. Os proprietários são latifundiários. E o
escravo é a forma produtiva principal. A corrupção do império romano e a invasão dos bárbaros que chegou pelo norte terminaram
com este modo de produção, esclarece Quintanilla (1985, p. 326).
7 O modo de produção asiático
Quintanilla (1985, p. 325) expressa que com este modo de
produção nasce a incipiente figura do estado e, ao mesmo tempo,
se inicia a exploração de classe, porém, sem o poder da propriedade privada. Um grupo de comunidades fica sob o poder de uma
comunidade superior que representa o poder de todas as comunidades. As condições para a exploração se apresentam quando a
comunidade superior exige a cooperação de todas as comunidades para realizar grandes obras de irrigação, como ocorreu nos
vales de Egito e da Mesopotâmia, no império inca, e outros. “O
baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas exigiu o
nascimento de um poder despótico centralizado nessas regiões”.
A comunidade superior se apropria do solo, e os membros das
comunidades restantes são despojados dos direitos de propriedade. É mantida comunitária a propriedade, porém agora como propriedade da comunidade superior.
Marx disse que havia uma:
[...] necessidade de um uso econômico e comum da água que, no Ocidente, levou a empresa privada a uma associação voluntária, como
em Flandres e na Itália, obrigou, no Oriente,
onde a civilização estava demasiado pouco desenvolvida e a extensão territorial era demasiada vasta para suscitar uma associação voluntária, à interferência do poder centralizador do
governo. (MARX, 1982, v. 1, p. 5104)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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8 O modo de produção feudal
O modo de produção feudal implantou-se depois de um longo processo cuja origem se encontra nas formas germânicas de
produção. Este modo de produção combina a propriedade coletiva da terra (florestas, pastagens) com a posse de uma parcela
particular de um indivíduo. A comunidade representava os proprietários individuais. Um conselho de chefes, integrados por príncipes, resolvia ou tratava de resolver os problemas que surgiam
entre os proprietários individuais. Quando o conselho era incapaz
de superar as dificuldades que se apresentavam entre os indivíduos, então era a assembléia de proprietários individuais a que resolvia os problemas que pudessem apresentar-se. A assembléia também elegia os chefes militares. Pouco a pouco foi criando-se uma
classe que estava constituída pelas pessoas de mais influência, e
chegou a tomar o poder, e inclusive estabeleceram o direito da
herança dos cargos públicos.
Com a queda do império romano, os germanos repartiram os
territórios entre seus soldados que representavam a elite militar.
Sobre as ruínas das tribos germânicas surgiu o estado feudal, constituído essencialmente pelos senhores e os servos.
9 O modo socialista de produção
O modo socialista da produção segundo Quintanilla (1985,
p. 491), se constitui com a negação do modo capitalista de produção e da luta de classes entre a o proletariado e a burguesia. O
modo de produção socialista se caracteriza especialmente pela
existência da propriedade social de todos os meios de produção.
Cada membro da sociedade desfrutará dos bens que sejam necessários para sua existência como ser humano e cidadão. Desaparecem as classes sociais. E as grandes contradições antagônicas da
sociedade capitalista deixam de existir e a realidade da nação
socialista se mexe dentro das possibilidades que oferecem as resoluções das contradições não antagônicas.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
159
10 O modo de produção capitalista
Quero iniciar o capítulo final de meu trabalho sobre o modo
de produção, lembrando algumas idéias de Mészáros, que expressa em seu livro Para além do capital, porque o tema que ele
apresenta nessa parte de sua grande obra, está muito unido às
nossas experiências cotidianas de nossa linguagem, de nossa fala
diária e de nosso viver. Mészáros escreve sobre a globalização, e
expressa:
O termo “globalização” entrou na moda nos
últimos tempos, mas evita-se cuidadosamente
falar sobre o tipo de “globalização” viável sobre o domínio do capital. Em vez disso, é muito mais fácil pressupor que, por sua própria
natureza, a globalização não é de modo algum
problemática e é realmente uma mudança necessariamente positiva que traz resultados
elogiáveis para todos os interessados. É melhor que se deixe fora de qualquer
questionamento legítimo o fato de que o processo de globalização, como de fato o conhecemos, se afirme reforçando os centros mais
dinâmicos de dominação (e exploração) do
capital, trazendo em sua esteira uma desigualdade crescente e uma dureza extrema para a
avassaladora maioria do povo, pois as respostas de um escrutínio crítico poderiam entrar
em conflito com as políticas seguidas pelas forças capitalistas dominantes e seus colaboradores espontâneos no “Terceiro Mundo”. No
entanto, com essa globalização em andamento
que se apresenta como muito benéfica, nada se
oferece aos países “subdesenvolvidos” além da
perpetuação da taxa diferenciada de exploração. Isto está muito bem ilustrado pelos números reconhecidos pela revista The economist
de Londres, segundo a qual, nas fábricas norte-americanas recentemente estabelecidas na
região da fronteira norte do México, os traba-
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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lhadores não ganham mais de 7 por cento do
que recebe a força de trabalho norte-americana para fazer o mesmo trabalho na Califórnia.
(MÉSZÁROS, 2002, p. 63-64).
A conhecida “guerra fiscal” que se origina entre os Estados
brasileiros para ganhar alguma indústria do grande capital internacional, é um recurso que usa o capitalismo para ocupar os mercados que podem dar-lhe abundantes vantagens econômicas e que
foram conseguidas, de maneira oficial, com os apoios dos governos e da lei. Pouca diferença pode haver entre o “bem-estar” que
alcança um operário de qualquer país em relação, por exemplo, à
situação do trabalhador mexicano. Ou seja, quando determinadas
forças políticas procedem dessa maneira, na realidade, os países,
ao final, e os trabalhadores, em especial, terão poucos benefícios.
Todos sabemos que o berço do modo capitalista de produção
nasceu na Idade Média, ao redor do século XI, quando as oficinas
artesanais começaram a pagar salário aos aprendizes que nesses
locais trabalhavam. Antes desse fato, o aprendiz de uma oficina,
podemos dizer, tinha a possibilidade, depois de longo processo de
prática, chegar a ser mestre e instalar sua própria oficina e ter
aprendizes. Esse era o sistema de trabalho na Idade Média. Quando o aprendiz se torna assalariado, é possível que siga nessa condição durante toda sua vida. Parece-me, aí na oficina da Idade
Média, que esteve o germe da exploração do proletário, de acordo
com o modo de produção capitalista.
E com a fábrica nasce a burguesia e o proletário. E ambos
crescem durante séculos. Ao redor de 1800, Engels expressa:
Por esse tempo, contudo, o modo de produção
capitalista, e com ele a oposição entre burguesia e proletariado, estava ainda por desenvolver. A grande indústria acaba de aparecer na
Inglaterra, era ainda desconhecida na França. (ENGELS, 1985, v. 3, p. 132)
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
161
[...]
O novo modo de produção (capitalista) ainda
estava apenas no início do seu ramo; ainda
era o modo de produção normal, regular, o único possível naquelas circunstâncias. Mas já
nessa altura provocava um mal-estar social
gritante: era a concentração de uma população desenraizada nas piores zonas das grandes cidades, era a dissolução de todos vínculos tradicionais dos costumes, da subordinação patriarcal, da família, era o excesso de
trabalho, em especial das mulheres e crianças
em proporções assustadoras, era a desmoralização em massa da classe operária, de súbito
a tirada para condições novas, atiradas do campo para a cidade, da agricultura para a indústria, de condições de vida estáveis para condições de vida inseguras que diariamente mudavam. (ENGELS, 1985, v. 3, p. 137).
Quintanilla (1985) apresenta alguns traços que são
definidores do que é o modo de produção capitalista: é proprietário do capital e dos meios de produção, pela formação da classe
de trabalhadores livres e pela formação da figura do não trabalhador. Os trabalhadores livres, no modo de produção capitalista, o
único que possuem é sua forma de trabalho que vendem, por um
salário, ao capitalista. Desta maneira, no modo de produção capitalista tem desaparecido o ser humano como pessoa. O único que
ele tem é sua força de trabalho que é considerada como uma mercadoria, que é comprada pelo capitalista. Ou seja, o indivíduo tem
valor, entretanto pode vender sua força de trabalho. O capitalista
se apropria do resultado do trabalho do assalariado, o que constitui a mais valia. Isto permite ao capitalista ampliar seu capital. O
modo de produção capitalista passou da livre concorrência no
mercado livre de mercadorias (muitos produtores independentes
oferecendo seus produtos no mercado), a sua fase monopolista
nacional (concentração em poucas mãos, oligopólios) e em seguida, ao comércio mundial, através de empresas multinacionais e
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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transnacionais que, cada vez, são em menor número, aumentando
em grande medida a riqueza mundial e colocando-a em poder cada
vez de menos pessoas. Uma etapa importante que está vivendo o
capitalismo é a do desenvolvimento do capital financeiro, em prejuízo do capital produtivo. O caráter fundamental do modo de
produção capitalista reside no fato de ser proprietário dos meios
de produção. Essa propriedade privada dos meios de produção
contrasta com o processo de produção que é de natureza social.
Marx expressa, tratando de explicar a superprodução e a
especulação excessiva no comércio:
Se o sistema de crédito é o propulsor principal
da superprodução e da especulação excessiva
do comércio, é só porque o processo de reprodução, elástico por natureza, se distende até o
limite extremo, o que sucede em virtude de
grande parte do capital social ser aplicada
por não proprietários dele que empreendem de
maneira bem diversa do proprietário opera
considerando receoso os limites de seu capital. (MARX, 1985, v. 5, p. 510)
No antigo modo de produção, os próprios produtores vendiam grande parte de sua produção diretamente ao consumidor. Entretanto, afirma Marx (1985, v.5, p. 357) no “[...] capitalismo toda
a produção se torna produção de mercadorias e todos os produtos
se encaminham para as mãos dos agentes de circulação.”
Marx (1987, v.3, p. 29) define o modo de produção capitalista nos seguintes termos: “O modo de produção capitalista, observado em sua totalidade, é a unidade constituída por processo de
produção e processo de circulação.”
Marx disse como se determina o valor de uma mercadoria
isolada de um conjunto grande de mercadorias: “[...] no modo
capitalista de produção as condições relativas ao valor da mercadoria isolada estende-se ao valor da totalidade das mercadorias de
uma espécie; não fosse a produção capitalista por natureza produ, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
163
ção em massa.”(MARX, v.4, p. 205).
O modo de produção capitalista não ficou exclusivamente no
campo fabril. Também se interessou pela agricultura. Marx expressa da seguinte maneira essa realidade:
Supomos assim que o modo de produção capitalista domina, além da atividade fabril, a
agricultura, isto é, que esta é explorada por
capitalistas que de saída só se distinguem dos
demais capitalistas pelo setor em que aplicam
o capital e o trabalho assalariado mobilizado
por esse capital [...]. A suposição do modo capitalista de produção se ter apoderado da agricultura, implica que ele domina todas as esferas da produção burguesa. O modo de produção capitalista desapropria o trabalhador das
condições de produção e, do mesmo modo na
agricultura subtrai a propriedade ao trabalhador agrícola e subordina-o a um capitalista que
explora a agricultura para conseguir lucro.
(MARX, 1985, v.6, p. 705-706)
Segue Marx com a explicação:
O lucro, essa forma de mais valia, mesmo quando o lucro se converta em capital, não constitui a fonte de novo capital. A mais valia passa
simplesmente, de uma forma, para outra.mas
não é essa mudança de forma o que faz dela
capital. O que funciona então como capital é
a mercadoria e o valor dela. (MARX, 1985, v.
6, p. 975)
O modo de produção capitalista supõe a produção em grande
escala e, ao mesmo tempo, se crê num grande consumo. Seu fim é
produzir mercadorias para o mercado:
O modo de produção capitalista supõe produção em grande escala e necessariamente venda em grande escala, venda portanto ao comerciante e não ao consumidor isolado. Quando o consumidor é consumidor produtivo, ca, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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pitalista industrial, fornecendo o capital industrial de ramo de produção meios de produção a outro ramo, há venda direta (sob a forma
de encomenda, etc.) de um capitalista industrial a muitos outros. Como vendedor direto, o
capitalista é seu próprio comerciante, o que ele
é também quando vende a comerciante. [...] O
comércio de mercadorias como função do capital mercantil é condição do desenvolvimento
da produção capitalista e com ela se desenvolve
cada vez mais. (MARX, 1987, v.3, p. 113)
Nos povos da antiguidade, a produção de mercadorias era
considerado secundário. Ainda seus membros estavam amarrados
às tradições do modo de produção primitivo. Marx esclarece esta
idéia nos seguintes termos:
De acordo com a produção social de produção
que tem validade geral numa sociedade de produtores de mercadorias, estes tratam seus produtos como mercadorias, isto é, valores, e comparam sob a aparência material das mercadorias, seus trabalhos particulares convertidos em
trabalho humano homogêneo. (MARX, 1982,
v.1, p. 88)
Em O Capital, Marx (1982, v.2) descreve o processo de produção. Esse processo não surge espontaneamente. Devem apresentar-se certas condições para o que dinheiro, os meios de produção e a mercadorias sejam capital.
Como os meios de produção e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos não
são capital. Tem de haver antes uma transformação que só pode ocorrer em determinadas
circunstâncias. Vejamos, logo, a seguir, a que
se reduzem, em suma essas circunstâncias. Duas
espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de confrontar-se e entrar em contato de um lado, o proprietário de dinheiro, de
meios de produção e meios de subsistência, empenhados em aumentar a soma de valores que
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
165
possui, comprando a força de trabalho alheia e,
de outro, os trabalhadores livres, vendedores da
própria força de trabalho e, portanto, de trabalho. Trabalhadores livres em dois sentidos,
porque não são parte direta dos meios de produção, como escravos e servos, e porque não
são donos dos meios de produção, como o camponês autônomo, estando assim livres e desembaraçados deles. Estabelecidos estes dois pólos
do mercado, ficam dadas as duas condições
básicas do modo de produção capitalista. O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre
os trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não se
limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escada cada vez maior. O processo que
cria o sistema capitalista consiste apenas no
processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que
transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariado os produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de
produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital de produção capitalista. A estrutura econômica da sociedade
capitalista nasceu da estrutura econômica da
sociedade feudal. A decomposição desta liberou
elementos para a formação daquela. O produtor
direto, o trabalhador, só pode dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à gleba
e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Para
vender livremente sua força de trabalho, levando
sua mercadoria a qualquer mercado, tinha ainda
de livrar-se do domínio das corporações, dos regulamentos a que elas subordinam os aprendizes
e oficiais e das prescrições com que entravavam
o trabalho. (MARX, 1982, v. 2, p. 829).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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Como é importante o que expressam Marx e Engels em A
ideologia alemã, quando se referem especificamente ao modo de
produção e a sua influência sobre o desenvolvimento do indivíduo, ser humano. Nessa obra, escrita entre 1845 e 1846, quando
apenas havia terminado Crítica à filosofia do direito de Hegel
que, como já expressei, foi no estudo dessa obra que nasceu a
idéia da categoria do modo de produção. De maneira, que A ideologia Alemã, recolhe as primeiras reflexões que sobre o modo de
produção Marx e Engels estavam elaborando, e que, em seguida
Marx aprofundaria em Contribuição á crítica da economia política e, de maneira singular, em O capital, entretanto o fazia também
Engels em Do socialismo utópico ao socialismo científico publicado em 1875. Dizem Marx e Engels:
O modo como os homens produzem seus meios
de vida depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a
reproduzir. Este modo de produção não deve
ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada
da atividade destes indivíduos, de uma forma
determinada de exprimirem sua vida, de um
determinado modo de vida dos mesmos. Como
exprimem sua vida, assim os indivíduos são.
Aquilo que eles são, coincide, portanto, com
sua produção, com o que produzem e também
como produzem. Aquilo que os indivíduos são,
depende, portanto, das condições materiais da
sua produção. (MARX; ENGELS, 1984, p. 15)
Mais adiante, em A ideologia Alemã, Marx e Engels expressam:
A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge
agora imediatamente e como uma dupla relação: por um lado, como relação natural, por
outro lado, como relação social, social no sentido em que aqui se entende a cooperação de
vários indivíduos seja em que circunstâncias
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
167
for e não importa de que modo e com que fim.
Daqui resulta que determinado modo de produção, ou fase, industrial, esta sempre ligado
a um determinado modo de cooperação, ou
fase social, e este modo da cooperação é ele
próprio uma força produtiva, e que quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade, e portanto a “história da humanidade” tem de ser
sempre estudada e tratada em conexão com a
história da indústria e da troca (MARX E
ENGELS, 1984, p. 32-33).
Não podemos fugir do desejo nesta breve lembrança de A
ideologia alemã de considerar uma afirmação célebre de Marx e
Engels (1984, p. 56): “As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja, a classe que é o
poder material dominante da sociedade, é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante”.
The production way: category of the historical
materialism.
Abstract: The production way is the basic category,
source of the historical materialism. In its midst we
can find all the categories pertaining to the Historical
Materialism. However, the categories of this social
science are the productive forces (human being,
tools, machines, technology) and the production
relations (between employees and employers,
among employees and among employers). The
production relations together with the other
categories of the historical materialism,
fundamentally, create the changes and social
transformations.
Keywords: Work. Capitalism. Economics: history.
Social Class.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
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Magda Maria Colao
El modo de producción: categoría del materialismo historico.
Resumen: El modo de producción capitalista es
la categoría básica, fuente del materialismo histórico. En su interior se puede encontrar todas las
categorías propias del materialismo histórico. Sin
embargo, las categorías de esta ciencia social son
fuerzas productivas (ser humano, herramientas,
máquinas, tecnología) y las relaciones de
producción (entre asalariados y empresarios). Las
relaciones de producción, en conjunto a las otras
categorías del materialismo histórico, de modo fundamental, producen los cambios y las
transformaciones sociales.
Palabras clave: Trabajo. Capitalismo. Economia:
Historia. Clase Social.
REFERÊNCIAS
ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS. Diccionario de filosofia. Moscou:
Progresso, 1984.
ENGELS, Friedrich MARX, Karl. Obras escolhidas. Lisboa: Avante,1985. v. 3.
ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In MARX, Karl;
ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Lisboa: Avante, 1985. v. 3.
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 5. ed. Rio de Janeiro:
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O modo de produção: Categoria do materialismo histórico
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Recebido em: 23/03/2006
Aprovado em: 26/08/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 143-169, maio/agosto de 2006.
E spaço Aberto
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
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Bullying nas aulas de educação física
Flavia Fernandes de Oliveira*
Sebastião Josué Votre**
Resumo: Neste ensaio analisamos ocorrências de bullying
como um comportamento “cruel, intrínseco nas relações
interpessoais, em que os mais fortes convertem os mais frágeis em objetos de diversão e prazer, através de brincadeiras que disfarçam o propósito de maltratar e intimidar”
(FANTE 2005). Com Scott (2005), discutimos alternativas
no trato com o diferente. Relatamos e analisamos alguns
casos típicos deste fenômeno, ocorridos com meninas e meninos nas aulas de educação física da escola pública do Rio
de Janeiro. Concluímos que esse comportamento está inserido em conjunturas culturais e sociais e que as aulas de
educação física reproduzem o contexto que os favorece.
Palavras-chave: Bullying1. Identidade de gênero. Ensino.
Preconceito. Transtorno de comportamento.
1 Introdução
Este trabalho tem como intuito trazer uma discussão acerca do
fenômeno bullying nas escolas, como o mesmo se dá e se caracteriza, em sua inter-relação com a categoria gênero, nas aulas de educação física. O fenômeno bullying ainda é muito pouco estudado no
Brasil, e na educação física ainda não se encontra quase nada a
respeito do assunto. Com este estudo, queremos dar uma pequena
contribuição teórica e empírica sobre o assunto, que sempre existiu,
porém de forma ainda não suficientemente visibilizada. O bullying2
Mestranda em Educação Física no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da
Universidade Gama Filho. E-mail: [email protected]
**
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade
Gama Filho. E-mail: [email protected]
1
Palavra sem tradução em português.
2
Bully, bullied, bullying (registrado a primeira vez em inglês em 1710): to treat abusevely,
to affect by means of force or coercion, to use browbeating language or behavior, to intimidade (tratar abusivamente, afetar pela força ou coerção, usar linguagem ou comportamento amedrontador, intimidar) conforme Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary.
*
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
significa discriminação dos indivíduos por membros de seu grupo
de convívio, e se manifesta em vários graus de intensidade, podendo
causar exclusão dos mesmos. Este fenômeno, na conceituação de
Fante (2005, p. 29): “É um comportamento cruel, intrínseco nas
relações interpessoais, em que os mais fortes convertem os mais
frágeis em objetos de diversão e prazer, através de brincadeiras que
disfarçam o propósito de maltratar e intimidar”.
O conceito mapeia o universo dessa tirania de forma bastante
precisa: é um comportamento cruel, portanto marcado pela
intencionalidade em atingir objetivos eticamente condenados; é
intrínseco nas relações interpessoais, e que pode verificar-se sempre que duas ou mais pessoas interagem, convivem, compartilham
espaço de qualquer natureza: trabalho, estudo, lazer, jogo, esporte,
brincadeira; é assimétrico, perpetrado pelos mais fortes, mais velhos, detentores de mais poder, de mais controle sobre os demais;
os mais frágeis, mais novos, menos poderosos, são convertidos em
objetos de diversão e prazer, de modo a provocar o riso, a galhofa,
a ironia, o sarcasmo; o instrumento de tortura é a brincadeira verbal, o chiste, a anedota, o apelido, ou a ação aparentemente inocente e sem malícia, que disfarça, esconde, escamoteia o propósito de maltratar, desautorizar, humilhar e intimidar.
Segundo nossa percepção, é a mais primária forma de violência, que pode manifestar-se por palavras, gestos e ações, e tem na
linguagem gestual e verbal sua concretização mais comum, pois
geralmente começa pela chacota e humilhação verbal, podendo ou
não vir acompanhada de ações que discriminam e atemorizam. Representa um perigo constante na família e, mais ainda, na escola.
Enquanto em casa é mais comum os pais flagrarem os filhos em
cenas de crudelização através de apelidos ou ameaças, na escola é
quase sempre imperceptível pelos educadores, porque a violência
linguageira, as ameaças de molestação física e as próprias ações
violentas se dão longe de seus olhos e ouvidos e, o que é pior,
geralmente não deixam marcas no corpo das pessoas molestadas.
Tende a ocorrer em contextos relativamente isolados, distantes das
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Bullying nas aulas de educação física
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autoridades educacionais, em ambientes em que a vítima não está
junto das pessoas que poderiam defendê-la, não raro está sozinha, é
mais frágil e tem menos força do que seus agressores e com isso não
tem alternativas ou recursos para defender-se.
O bullying verbal baseia-se no realismo lingüístico, no sentido de que as vítimas são apelidadas, normalmente, a partir de um
traço físico, de performance, ou psicológico, que as diferencia dos
demais e que o apelido põe em destaque, de forma caricatural.
Esse traço é reanalisado, pelos autores da violência, como uma
degeneração, ou ao menos como um desvio negativo, face à norma, de modo que o uso do epíteto ou apelido atinge diretamente a
vítima, ridicularizando-a, no sentido de torná-la objeto de riso,
chacota, mal-dizer e escárnio. Os rótulos discriminadores, de base
metafórica, são criativos, provocam o riso e a diversão dos circunstantes, e se não fossem trágicos, poderiam ser considerados
manifestações da arte da linguagem na interação cotidiana3.
Bourdieu (1996, p. 61), tomando como base as pesquisas
clássicas de Austin e Searle sobre atos de linguagem, e especificamente sobre o efeito dos atos ilocutórios, insiste na “análise das
condições sociais de funcionamento dos enunciados performativos”,
que funcionam sempre que aquele que os produz tem autoridade
ou poder para fazê-lo. Ora, é exatamente o que se passa com o
bullying. Seus autores sentem-se no direito de assim proceder,
porque são os mais fortes, mais bonitos, mais espertos, detentores
de mais poder no grupo, mais influentes, mais ricos. Já as vítimas
comungam traços negativos: mais pobres, mais feias, mais afastadas do padrão de prestígio.
3
A título de ilustração do caráter criativo e imagético do bullying, citamos o caso de uma
menina, de boca acima do tamanho normal, que é chamada de vaso sanitário, de um
garoto orelhudo, chamado fusquinha de portas abertas, do garoto gordo e narigudo, que
é o tromba de elefante, do menino portador de olheira funda, que é chamado de morreu,
dos garotos com trejeitos afeminados, que são chamados de pit bitoca, das meninas com
alguns traços masculinos, que são apelidadas sapata, sapato, além dos apelidos clássicos, como Maria João.
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
2 O fenômeno bullying na escola
Em uma pesquisa realizada pela Abrapia4 em 2002, em onze
escolas situadas no município do Rio de Janeiro, duas particulares
e nove públicas, de 5ª a 8ª séries, foram ouvidos 5.800 estudantes.
Segundo a Nós da Escola (2003, p. 13)5:
Desse total, 40,5% dos estudantes admitiram
que estiveram diretamente envolvidos em atos
de bullying em 2002, sendo que 16,9% se identificaram apenas como tendo sido alvos; 12,7%,
como autores; e 10,9%, autores e alvos. Os
57,5% restantes negaram ter participado de
situações de bullying.
É notório que este fenômeno, para os alunos, não é visto
como algo alarmante, pois os autores da molestação alegam que
estão apenas brincando; e até mesmo aquelas pessoas que são
vitimas, que sofrem agressão e/ou abusos por partes dos/das colegas não os denunciam, provavelmente com medo de represálias
dos mesmos. Para Aramis Lopes, (2003, p. 13): pediatra e coordenador da pesquisa, os dados são semelhantes aos encontrados em
outros países e revelam um quadro nada animador “Essa questão
é uma preocupação mundial; mesmo porque não há como prever
nem como avaliar a gravidade das experiências de bullying, como
autor ou como alvo, na vida de cada criança ou jovem”.
Segundo os psicólogos sociais, a agressão seria um comportamento anti-social, que para Rodrigues (2006), tem a intenção de causar danos, físicos ou psicológicos, em outro organismo ou objeto. “[...] a intencionalidade da ação por parte do
agente da agressão, e que só se caracteriza como agressivo o
ato que deliberadamente se propõe a infligir um dano a alguém”.
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência
Revista da Prefeitura do Rio de Janeiro – Educação MULTIRIO, que publicou o artigo
intitulado ‘Lembranças que não deixam saudades’.
4
5
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Bullying nas aulas de educação física
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Os psicólogos costumam dividir em dois tipos a agressão humana. Para Myers (2000), a agressão hostil, que para nós está
diretamente associada ao bullying, deriva da raiva e tem o objetivo de intimidar e ferir; já a agressão instrumental, que pode
relacionar-se ao fenômeno indiretamente, visa a fazer mal apenas como meio de alcançar outro fim, ou seja, para este autor a
agressão hostil é intrinsecamente ‘ruim’, enquanto a agressão
instrumental não o é necessariamente.
Portanto o bullying pode ser caracterizado pelos dois tipos
de agressão, sendo que para este caso a agressão instrumental
não é caracterizada como boa, mesmo que se efetive com intuito
de atingir um objetivo supostamente bom, como, por exemplo,
apelidar algum colega para chamar atenção dos professores, ou
apelidar um colega de ‘Nerd’, ‘CDF’, por ele ser o mais inteligente da turma. Porém o tipo de agressão que predomina no fenômeno é a hostil, que é como se inicia o fenômeno, como quando o agressor apelida alguém, para salientar algum tipo de deficiência que o mesmo apresenta, e o chama de ‘Quatro olho’ por
usar óculos; este é um caso de comum entre os alunos, que pode
redundar em grande comprometimento emocional na pessoa que
está sendo vitimizada.
É comum vermos no espaço escolar a manifestação de agressão, talvez mais acentuada hoje do que se observava há algumas
décadas, quando a escola era regida com base na ordem e disciplina, nas sanções e punições. O que se via nas escolas dessa época
era o que Foucault (2003) chamava corpos dóceis, no sentido de
que os corpos eram transformados pelas instituições, através de
um disciplinamento sistemático, o que não quer dizer que eram
todos corpos obedientes, como diz Veiga-Neto (2004), pois que
nem todos são igualmente disciplinados, embora o poder seja imposto a todos, sendo que a cada corpo e a cada saber, este poder
se manifesta de uma forma particular.
Atualmente a escola está um pouco menos atenta à questão
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
da punição e das sanções, pois o sistema educacional se tornou
mais sensível aos reclamos da cidadania dos alunos e passou a ser
vigiado, pela consciência dos direitos, mais agudos na sociedade
atual, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, onde se lê
que: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido na forma da lei qualquer atentado,
por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
O lado irônico do estatuto é que o mesmo está concentrado
nas possíveis ações dos educadores, e as maiores barbaridades se
dão entre os próprios colegas, mas essa face do problema não é
contemplada no texto legal.
Os direitos fundamentais, ora consagrados nas leis de proteção à criança e ao adolescente, à família e à sociedade, compreendem: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Com isto, a
escola que antes poderia caracterizar-se como repressora,
comportamentalista e formadora, hoje, ao menos em tese, é somente formadora.
Com esta nova vigilância no sistema educacional ficou mais
fácil aos alunos garantirem seus direitos face à instituição e, em
compensação, ficou mais difícil para o professor perceber quando
há comportamentos imorais ou antiéticos entre os alunos, pois a
lei está centrada em garantir justiça apenas no plano vertical, a
exemplo do que se lê no Capítulo IV, do artigo 53 do Estatuto já
referido: “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-selhes o direito de serem respeitados por seus educadores”.
A convivência dos alunos com situações de bullying pode
resultar em danos irreparáveis às vítimas, acarretando, segundo
Fante (2005), prejuízos em suas vidas futuras, em suas relações no
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Bullying nas aulas de educação física
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trabalho, em sua futura constituição familiar e na criação de filhos,
além de prejuízos para a sua saúde física e mental. Há estudos que
comprovam que aqueles que vivem situações de bullying podem
ter comprometimentos, como o rendimento escolar inferior, e também o desenvolvimento social, emocional e psíquico atingidos.
Em casos extremos, algumas vítimas preferem suicidar-se a
continuar agüentando tal perseguição. É o caso que vem sendo
divulgado pela mídia de suicídio de alunos nas escolas, e até mesmo
massacre em massa, como foi o caso da Escola Colombine, em
Littleton, Colorado em 1999, onde dois adolescentes mataram 12
colegas, um professor e deixaram dezenas de feridos. (FANTE,
2005, p. 80)
A escola, além de templo da educação e casa do saber, pode
desempenhar também o papel de cenário propício ao surgimento
de subcomunidades voltadas ao bullying, à tortura e ao sofrimento
de seus pares. Entre tais subcomunidades, avulta a da educação
física, esporte e lazer.
2.1 Bullying nas aulas de educação física
Em trabalho intitulado “Discriminação de Gênero nas aulas
de Educação Física”, apresentado no Congresso Brasileiro de
Ciências do Esporte (FERNANDES, 2005), verificamos manifestações deste fenômeno através de pesquisa de campo, realizada
via entrevista com grupo focal, com seis crianças, três do sexo
masculino e três do sexo feminino, alunos da 4ª série do ensino
fundamental público do município do Rio de Janeiro. A pergunta
norteadora foi: - quais são os tipos de violência e discriminação
existentes entre meninos e meninas, nas aulas mistas de educação
física? Os alunos e as alunas discutiram com interesse sobre o
que acontecia nas suas aulas no que concerne a esse tipo de abuso. A principal evidência foi da agressividade dos meninos, manifestada através de palavras e atos, a ponto de uma menina, durante
a fala, se queixar dos apelidos, das ofensas, das atitudes e ações
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
dos meninos: “[...] muitas das vezes as pessoas acabam se machucando, né, porque os meninos são um pouco mais agressivos”.
Agressividade e competitividade se associaram fortemente
aos meninos, enquanto para as meninas predominou a fragilidade. Para Myers (2000) a agressividade refere-se ao ato de ferir o
outro, física ou simbolicamente, e as pesquisas sugerem que os
homens, mais voltados às atividades tipicamente masculinas,
como caçar, lutar e guerrear, são mais propensos à agressividade
do que as mulheres. Isto não quer dizer que o comportamento
agressivo não apareça nas meninas, pois elas também o são, principalmente entre si.
No estudo aqui referido, o intuito era revelar os tipos de
violência e discriminação de gênero existentes nas aulas de educação física mista, partindo da turma de quarta série, que é caracterizada por alunos da faixa etária a partir do 10 anos. Escolhemos esta faixa e série porque, segundo Aberastury, (1992, p.
84), entre os 10 e os 11 anos tanto os meninos quanto as meninas
tendem a formar grupos: “Os meninos têm meninos à sua volta e
as meninas têm meninas, porque necessitam se conhecer e aprender as funções de cada sexo”. E é nítido também que é a partir
desta faixa etária que as crianças tendem a desenvolver mais
explicitamente os comportamentos de bullying, ou a serem molestadas pelos agressores.
Esses grupos podem ser prejudiciais ou não à formação da
criança, se nos reportarmos a Scott (2005, p. 15), que diz que
“Identidade de um grupo define indivíduos e renega a expressão
ou percepção plena de sua individualidade”. A fidelidade ao grupo pode chegar a tolher ou prejudicar o desenvolvimento pleno do
indivíduo. As identidades de grupo são formas de comportamento
e manifestação próprias do mesmo, sem que necessariamente os
indivíduos se dêem conta do que está ocorrendo. Por exemplo, se
o ato de agressão durante um jogo entre meninos e meninas se
tornar normal, eles podem, de forma não intencional, mas aciden, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
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talmente, selecionar uma vitima, para ser alvo de deboches, de
ameaças e até mesmo de agressão física; pode ser que esteja ocorrendo o fenômeno bullying, sem que o professor ou professora
perceba, e mesmo sem que cada membro do grupo, enquanto indivíduo, tome consciência do ato em que está envolvido.
Devido às diferenças de habilidades entre meninos e meninas, é comum vermos então surgirem conflitos de gênero, pois é
inconscientemente que as crianças incorporam, através do cotidiano escolar, as identidades que, para Louro (2003) são “identidades de gênero” - aqui retraduzidas como identidades de grupo quando os sujeitos se identificam, social e historicamente, como
masculinos ou femininos, fortes ou frágeis, corajosos ou medrosos. Essas identidades são manifestações comportamentais, como
os gestos, os movimentos e os efeitos de sentido que, através do
compartilhamento, imprimem, reproduzem e reforçam consciência
das diferenças e do poder a elas associado.
Quando falamos em lutar por uma sociedade igualitária, temos
em vista um contexto em que todos temos direitos iguais, sem que
homens ou mulheres sofram preconceitos por serem diferentes, quer
na força física, destreza, habilidade, flexibilidade e velocidade, quer
na pertença a determinada classe, raça, religião ou idade.
2.2 Análise de alguns relatos de bullying na educação física
Inicialmente, vamos apresentar um relato sui generis, citado
em Fante (2005, p. 35). Em suas pesquisas, exemplificando o fenômeno, a autora nos apresenta um depoimento de uma aluna da
educação física, atravessado por gênero na variante poder, em que
a menina é alvo de bullying duplo, sui generis por incluir professores, na forma de difamação, e por colegas, na forma de múltiplos
apelidos: ‘baixinha, frágil, inútil, que não serve para nada’:
Minha vida escolar não é a melhor. Gosto muito
dos professores, mas de umas semanas para cá
eles andam me difamando, por causa de um
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
trabalho escolar. Estou sendo rejeitada por algumas pessoas da minha classe. Na aula de
educação física, dizem que sou baixinha e frágil, então não sirvo para nada [...] (aluna da
6ª série, 12 anos).
O relato é sintomático, pelo nível da avaliação do quadro,
pois esta aluna denuncia, explicitamente, a falta de qualidade de
sua vida escolar: ela está sendo alvo de discriminação por parte
dos professores, que a difamam por causa de seu desempenho; a
rejeição de algumas pessoas da classe pode estar associada a
outro grupo discente, que explora a difamação; na educação física,
para completar sua desgraça, ela é objeto de bullying dos colegas,
seja por ela apresentar características físicas que destoam dos
demais colegas, quer ainda por ser baixinha e frágil; a síntese da
avaliação é patética: então não serve para nada . O sentir-se rejeitada nas aulas de educação física é facilmente explicável, pois a
disciplina, até bem pouco tempo (e ainda hoje), se pautava por um
modelo reducionista em que o corpo, a aptidão física e o desempenho eram os objetivos mais importantes. Nesse quadro, não havia
espaço para as meninas ‘baixinhas e frágeis’, sobretudo quando a
essas características somava-se a falta de habilidade; elas não
tinham vez, não jogavam e nem praticavam esportes com suas
colegas meninas e muito menos com os meninos. A prática esportiva privilegiava aquelas que tinham um bom desempenho e que
eram aptas a praticar aquelas modalidades esportivas associadas
à velocidade, força, impacto e resistência.
Estudos demonstram que na maioria dos casos de bullying
as agressões são provocadas por rapazes, porém o sexo das vitimas varia. Como recorte inicial deste estudo, iremos apresentar e
analisar relatos6 de quatro manifestações de bullying na educação
física, em diferentes escolas, duas em que as vitimas são meninas
e duas em que os meninos passam pelo ritual do sacrifício.
6
Os relatos são da co-autora deste trabalho.
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Bullying nas aulas de educação física
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O primeiro é um caso típico do fenômeno bullying, que ocorreu com Carol7 em escola pública da Zona Oeste do Município do
Rio de Janeiro:
Carol é uma aluna calma e tranqüila, que estava em uma turma de progressão; os outros alunos tinham um comportamento bastante diferente do dela, porém estavam todos na mesma
turma, pois tinham dificuldades de aprender.
Essa turma, em especial, tinha um comportamento bastante agressivo, tanto os meninos,
quanto às meninas, e nas aulas de educação
física eles eram violentos e agressivos uns com
os outros. Carol, com toda dificuldade de se
relacionar com os outros colegas, se prejudicava sempre. Quando os membros do grupo meninos e meninas - descobriram que ela era
calma e tranqüila, e principalmente frágil, começaram todos a implicar com ela. A professora não se deu conta, pois como a turma era
bastante violenta, todo o tempo os meninos e
meninas estavam brigando, na sala, nos corredores e até mesmo nos banheiros da escola. E
ela não percebeu o que estava acontecendo com
a menina. Foi quando Carol começou a faltar
às aulas, chegando a ficar semanas sem ir à
escola. Eu, como professora de educação física, notei que ela estava faltando às aulas, e
perguntei à professora o que havia com Carol,
e ela não soube me responder; a única coisa
que ela me disse foi que era assim mesmo, ninguém daquela turma queria nada, era por isso
que eles abandonavam a escola. Passadas umas
três semanas, a mãe de Carol veio à escola
para conversar com a direção, para saber o
que estava acontecendo, e por que era que nun-
7
Os nomes das vítimas de bullying dos relatos são fictícios.
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
ca tinha aula para sua filha. Carol estava chorando sem parar e a mãe, a professora e a diretora perguntavam a ela o que estava acontecendo. Foi então que, chorando, ela disse que
os colegas de turma em geral não gostavam
dela, que a tratavam por apelidos que ela tinha vergonha de falar, e que dois colegas, um
menino e uma menina da turma, estavam cobrando dela um real por dia para ela entrar na
escola; caso ela não tivesse o dinheiro, ela não
poderia entrar na escola, e se entrasse na escola, todos iriam bater nela. Com isto, todos
os dias Carol ia até a porta da escola e voltava
para casa.
Devemos salientar que este relato resume uma situação
prototípica em nossas instituições de ensino. Trata-se de um quadro de constrangimento comum nas escolas, em que as crianças,
em forma de brincadeira, discriminam, agridem e principalmente
excluem colegas. Se para muitos professores, de tão comum parece normal esta prática das crianças, vale ponderar que a maneira
cruel como elas agem é prejudicial para a formação da auto-estima de cada indivíduo, para o senso de justiça dos agressores, e
para o senso de cidadania, dos agredidos, comprometendo o projeto de uma sociedade justa, pois a violência nas escolas pode
acarretar danos irreversíveis aos futuros cidadãos8.
Enderle (1985) diz que a escola representa para a criança a
entrada em um mundo diferente da família, onde aparecem as noções explícitas de ordem, dever, disciplina e, principalmente, silêncio. Isto não quer dizer, segundo a autora, que é somente por
causa da escola que a criança apresentará problemas, pois antes
da mesma está a família.
8
O imaginário social está povoado de ditados e frases feitas que denotam a extensão
dessa prática e, o que é pior, de sua naturalização na cultura. Ilustramos com a seguinte:
“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”ou: “para os amigos, tudo; para os inimigos,
nem justiça”.
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Bullying nas aulas de educação física
185
A escola estava introduzindo Carol em novo patamar no
processo de socialização, durante o qual ela estava começando a
sentir-se confrontada por um grupo, onde não encontrava sinais de
simpatia, e sim imperavam as regras próprias do grupo.
A sociedade infantil, nessa fase, é fechada aos
adultos e por vezes tem matrizes de crueldade.
As peculiaridades físicas ou idiossincrasias das
crianças constituem objeto de ‘troça’. A crítica é pessoal e direta. Além da crítica severa,
surge, também, a capacidade de julgamento,
estabelece–se a noção de ‘justiça’ que acaba
por eliminar o traidor, ou aquele que não obedece ao código ético imposto pelo
grupo.(ENDERLE, 1985, p. 70)
Ao observarmos o que acontece com Carol, vemos que os
seus colegas de turma fazem parte de um grupo fechado, constituído
por uma minoria, que apresentam um código de ética, onde impera
um líder, que estabelece as regras, e quem não o respeitar não pode
fazer parte deste grupo. Foi exatamente o que aconteceu com Carol,
se ela tivesse aceitado pagar o real diário que eles tinham estabelecido a ela, talvez ela entrasse no grupo. Entretanto, ela poderia também ser escolhida pelo grupo para ser a ‘bola da vez’, ou seja, a
permanentemente excluída, discriminada e ‘chacoteada’.
Como diz Scott (2005), lidar com a situação de desigualdade
é confrontar-se com o paradoxo, que é uma proposição que não
pode ser resolvida pelas operações da lógica convencional, e que
é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. O caso de discriminação
contra Carol é um tipo de bullying que não tem interferência dos
educadores, no sentido de que, como a sociedade infantil, conforme disse Enderle, é fechada aos adultos, eles não se deram conta
do que estava acontecendo com ela, nem que o comportamento
hostil de colegas, centrado no preconceito, estava acarretando
agressões contínuas à menina, a ponto de expulsá-la da escola.
Estamos tomando preconceito no sentido etimológico do
termo, como um conceito previamente formado, de uma pessoa ou
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Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
grupo, contra indivíduos ou grupos.
Preconceito é um pré-julgamento negativo de
um grupo e de seus membros individuais. O
preconceito nos predispõe contra uma pessoa
com base apenas no fato de identificarmos a
pessoa a um grupo determinado. O preconceito é uma atitude, [...] uma combinação distinta de sentimentos, inclinações para agir e convicções. (MYERS, 2000, p. 182)
Para Nunan (2003), o preconceito é histórico e socialmente
construído, e o mesmo resulta na discriminação, que é o comportamento, o modo de agir do grupo social, marcado por raiva, rejeição e repulsa. No relacionamento entre os fortes e os fracos, entre
os prestigiados e os sem prestígio, entre os meninos e as meninas,
estão presentes os conflitos, as resistências e mesmo os mecanismos de exclusão, o que acaba causando atitudes negativas do
grupo social ou, até mesmo, dos indivíduos. Segundo Rodrigues
(2001), o preconceito pode ser definido como uma atitude hostil
ou negativa, com relação a um determinado grupo, não levando,
necessariamente, a atos ou comportamentos persecutórios.
Quando estamos nos referindo à esfera do comportamento (expressões verbais hostis, condutas agressivas, etc), fazemos uso do termo discriminação. Neste caso, sentimentos hostis somados a crenças estereotipadas deságuam numa
atuação que pode variar de um tratamento diferenciado a expressões verbais de desprezo e
a atos manifestos de agressividade.
(RODRIGUES, 2001 p. 162).
A discriminação contra Carol, por parte das outras crianças,
é um caso típico de ação ilocutória, via palavras, gestos e atitudes
de desprezo, porém sem agressão física, mas com ameaças da
mesma, caso ela entrasse na escola sem pagar o que eles queriam.
Durante esse período de provação ela, sem alternativas, passou a
isolar-se dos outros membros da turma, desistindo de freqüentar a
escola. Esta, que seria um espaço de socialização, tornara-se para
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
187
ela um não-lugar, um lugar de exclusão.
O segundo exemplo de bullying com meninas aconteceu com
Aline em uma turma de quarta série de uma escola pública, também situada na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro:
Aline é uma aluna tipicamente diferente das
outras alunas de sua turma, ela adora fazer
aula de educação física, sempre me ajudou na
divisão dos grupos, na disposição dos materiais, quando havia jogo era sempre a primeira
menina a ser escolhida, pelos meninos e pelas
meninas, porque é uma aluna que apresenta
uma excelente habilidade motora, especificamente é ótima jogadora de futebol. Aparentemente, tanto nas aulas de educação física, quanto nas outras disciplinas, não havia nenhum
problema com ela. Até que Aline começou a
aparecer na escola de cabelos cortados, um
corte bem masculino, e então as meninas na
sala começaram a chamá-la de Maria João,
Aline Sapato, entre outros apelidos, até mesmo
porque Aline é uma menina bem diferente das
demais da idade dela, pois não possui vaidade, não gosta de usar brincos, e muito menos
de se maquiar. Na minha aula de educação física era a mesma coisa, sendo que ela começou a aparecer na escola com uma toca na cabeça, para não aparecer o corte, foi aí então
que eu comecei a perceber que algo de errado
estava acontecendo com ela. Quando separei
os alunos para escolherem os times, para jogar, nenhum dos alunos a escolheu, e ela aos
poucos foi saindo da quadra e indo para arquibancada. Foi então quando eu a chamei
para conversar e perguntar o que estava acontecendo. Antes de começar o jogo, perguntei
aos alunos por que eles não a escolheram para
jogar, e sem me responder, um dos meninos que
estava escolhendo o time disse: - vem, Aline
Sapato, e todos riram, uns até em tom de deboche; foi aí que eu percebi que ela estava sendo
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188
Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
vitima de bullying na turma, e foi quando eu
interferi e conversei com eles a respeito. Depois todos jogaram e no final da aula retornei
a conversar com Aline, perguntando a ela se
ela estava se sentindo incomodada com o corte
de cabelo, e quem cortou o cabelo dela e ela
me respondeu que ela que quis cortar daquela
forma, foi a mãe dela quem cortou o cabelo
dela, porém ela estava se sentindo envergonhada, com os apelidos e as brincadeiras dos colegas, e era por isso que estava indo de toca
para escola. Conversando com ela e com a professora dela de sala de aula, mostrei o exemplo da própria professora dela, que usa o cabelo curto, e a professora de sala de aula, junto comigo, dissemos a ela que daquele dia em
diante ela não iria mais sofrer humilhações
por parte dos colegas.
A leitura do relato torna evidente que a menina foi vitima de
bullying, pois embora no começo ela parecesse aceita pelo grupo
a que pertencia, sempre apresentou alguns aspectos que a distinguiam das demais meninas de sua turma, a exemplo das habilidades motoras excepcionais, semelhantes ou mesmo superioras às
de alguns meninos. A impressão é que, progressivamente, Aline
foi se tornando alvo de gozação e de brincadeiras maliciosas, que
estavam levando a ser rejeitada e, por fim, excluída do grupo, com
os inevitáveis danos emocionais, esportivos e educacionais.
Este segundo exemplo configura um caso complexo e mesmo
complicado de rejeição, porque Aline já tinha um perfil pouco
feminino, em termos de habilidades, e agora, com este traço externo do corte de cabelo, a coisa piorou, mas talvez o apelido já
estivesse ativo antes, por ela ser uma menina que sempre realizava
as atividades esportivas com ótimo desempenho. Segundo Saffioti
(1987, p. 37): “Mulher despachada corre risco de ser tomada como
mulher-macho”.
Como os estereótipos sexuais são culturalmente dados, pas, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
189
sa a ser considerado normal vermos o menino jogando bola, e
meninas brincando de boneca, porém isto não quer dizer que as
meninas só vão se interessar pelas atividades que lhes são prédeterminadas pela sociedade. Existem crianças com preferência
cultural cruzada, o que se pode dar por várias causas, entre as
quais registra-se o reforço em desempenhar os papéis do sexo
oposto, as sugestões e insinuações da família:
Algumas meninas ganham caminhõezinhos e
ferramentas e jogam futebol ou aprendem carpintaria com o pai (ou mãe). Eles também podem desejar que elas fossem meninos [...] o
comportamento masculinizado na menina é
muito mais aceito e reforçado do que o comportamento feminilizado no menino. (BEE,
1985, p. 321).
Acreditamos que se percebeu a tempo o que estava acontecendo com ela, porque Aline é uma aluna dedicada e que se interessa por todas as atividades físicas, tantas as que são predeterminadas como sendo masculinas como as consideradas femininas,
porém o que a diferencia de modo singular das demais colegas é
que ela apresenta habilidade superior às outras meninas. Se Aline
continuasse a ser alvo dessa perturbação, poderia rebelar-se contra os comentários pejorativos, passar a mostrar falta de interesse
em freqüentar a escola. O seu desempenho na escola diminuiria, a
sua auto-estima seria ainda mais prejudicada, e ela poderia até
abandonar a escola, ela que foi uma aluna que nunca causou problemas às professoras.
O terceiro exemplo é de um menino, Carlos, de 11 anos, de
escola pública municipal da Zona Oeste do município do Rio de
Janeiro:
Carlos é um aluno aplicado, educado e muito
inteligente. É conhecido pelos colegas como o
CDF da turma. Durante as aulas, quando a
sua professora de sala de aula atribuía tarefas
para os alunos, ele era sempre o primeiro a
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
190
Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
começar a executá-las, e a terminar as tarefas,
com perfeição, antes dos demais; como um bom
amigo, também ajudava os que têm mais dificuldades. A única coisa que o incomodava é
que ele não gostava de jogar futebol e acabava
convivendo pouco com os garotos; com isso,
os meninos da turma passaram a caçoar dele,
porque além de não jogar futebol, ele se afastava dos meninos e andava mais com as meninas. As brincadeiras agressivas que os meninos da sua classe faziam que não lhe agradavam. Nas aulas de educação física, Carlos sempre participava, tantos nos jogos como nas brincadeiras. Mas quando o tema da aula era futebol, ele pedia para ser o arbitro do jogo, ou
então para não participar do jogo. Os colegas
de classe, na entrada ou na saída da aula, sempre se organizavam para jogar futebol, na quadra, ou no gramado, mas ele nunca participava, com o argumento de que seus colegas, durante o jogo, sempre brigavam e acabavam
agredindo-se uns aos outros, e Carlos não gosta de briga. Os meninos perceberam que ele
era diferente deles e colocaram-lhe apelidos
que o atingiam no tocante à masculinidade,
chamando-o de Pit Bitoca, Boiolinha,
Veadinho, Biba e Bicha. Um dia na aula de
educação física, em que a professora propôs
aula livre, para que eles próprios escolhessem
a atividade ou o jogo que iriam realizar, os
alunos decidiram jogar um grande queimado.
Na hora da escolha dos times, após o ‘par ou
ímpar’, os meninos começaram rir dele em vez
de o escolherem, porque era um jogo de que
ele gostava, pois sempre que tinha oportunidades, jogava com as meninas. Como os meninos não o escolheram, as meninas o chamaram, dizendo: ‘vem Pit’, e ele foi jogar com
elas e não contestou, mas como todos estavam
caçoando, e xingando muito, ele saiu do jogo
e sentou-se na arquibancada. Quando eu perguntei por que ele não estava jogando, e por
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Bullying nas aulas de educação física
191
que ele não reagia, ele disse que era assim
mesmo. Então eu parei a atividade, sentei com
a turma, e comecei a discutir, argumentando
os apelidos e a discriminação a eles associada. A turma disse: - mas ele é mesmo, não reage. Se não reage, é porque é isso mesmo. Então eu falei a eles que parassem, e que durante
as suas aulas não queria mais ouvir apelidos e
nenhum tipo de discriminação, nem com Carlos
e nem com ninguém.
A estratégia utilizada pela professora, em discutir com a turma
as questões das diferenças e tentar convencê-los através do diálogo
sobre a obrigação do respeito, da não discriminação do outro durante as aulas, ajudou a minimizar as exclusões nas aulas de educação
física, e a desconstrução dos valores dominantes na sociedade de
que homem, macho, tem que jogar futebol. A professora levou os
alunos a perceberem que era uma injustiça e um abuso de poder o
que acontecia com Carlos, e que é injusta expectativa social de que
todo menino goste de futebol, embora, desde pequeninos, os meninos sejam estimulados a ficar em vários espaços públicos, jogando
em grupo e até mesmo sozinhos, chutado a bola.
Verificamos que a intimidação e agressão ao Carlos chegou
ao extremo, pois até meninas o discriminavam; o bullying, neste
caso, está relacionado à pratica esportiva. Segundo Vaz (2005) o
futebol – no Brasil - é um jogo identificado como sendo masculino, porque as qualidades sociais atribuídas aos homens, como
virilidade, agressividade e competitividade, entre outras, são toleradas e estimuladas no jogo de futebol, que é muito praticado,
quase exclusivamente por garotos, nos espaços públicos e nas
ruas. Segundo o autor:
No caso da prática esportiva, especialmente
do futebol, não são apenas as mulheres as discriminadas, mas qualquer um, mulheres e homens, que não se desempenhem satisfatoriamente no jogo tal como é esperado pela lógica
dominante, predominantemente masculinizada
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
192
Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
no Brasil. O que quer dizer que as mulheres
que apresentam uma performance razoável para
os padrões masculinos, não serão discriminadas, ao contrario, serão recebidas e enaltecidas
pela sua participação. Ao mesmo tempo, homens que não apresentam este desempenho serão vitimas de práticas discriminatórias. Muitas vezes essas discriminações os levam ao
abandono das aulas de educação física ou ao
envolvimento com outras modalidades esportivas como voleibol e natação, entre outras, ou
mesmo a uma outra manifestação da cultura
corporal como dança, as lutas ou, ainda, as
artes cênicas. (RODRIGUES, 2005, p. 32)
Fante (2005) chama a atenção do profissional de educação,
para que fique atento a alunos agressivos ou violentos, zombadores e maldosos, porque em alguns casos o que se poderia interpretar como brincadeiras próprias da idade pode ser fonte de grande
constrangimento e sofrimento a colegas mais tímidos, calados ou
mais fracos, normalmente mais novos, com prejuízo sócio-educacional e emocional.
O quarto exemplo é relacionado à inclusão de dois meninos,
Marcos e Paulo, portadores de deficiência mental leve, numa turma ‘normal’:
Marcos começou a fazer aula normalmente em
uma turma com alunos da idade dele. Ele é da
classe especial da escola; os demais alunos da
turma, ditos normais, já o conheciam, pois ele
é irmão de uma das alunas da turma. A aula de
educação física iniciou bem, mesmo porque fiz
questão de dizer a todos que na aula daquele
dia havia dois colegas da classe especial que
iriam fazer aula junto com a turma. Aconteceu
que o Marcos não fez questão de participar
nas atividades junto com os outros da turma.
No momento em que propus um jogo para a
turma, vi que todos jogaram, menos Marcos,
que não quis jogar. Vi também que sua irmã
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
193
parou de jogar e resolveu brincar de corda com
ele e mais uma colega. Paulo, por outro lado,
interessou-se pelo jogo, do qual tentava participar ativamente. Mas a situação de normalidade no jogo durou pouco, porque assim que o
time percebeu que Paulo era diferente, e que
durante o jogo não conseguia respeitar as regras, constatou que ele é portador de deficiência mental. Os alunos começaram a rir dele e
chacoteá-lo, e como no time em que ele estava
jogando os colegas estavam perdendo e não
conseguiam jogar, começaram a provocar-me,
sem esconder a rejeição e o preconceito, dizendo: - a senhora trouxe um maluco para cá?
Põe o maluco pra fora! A aula não é para maluco. Foi então que Paulo, que tem um grau de
deficiência quase imperceptível, veio queixarse a mim, dizendo que eles, longe das professoras, só o chamavam pelos termos maluco e
doidinho.
Diante daquela situação a professora, parou a aula e convocou todos para discutir as questões de inclusão de Marcos e Paulo, portadores de deficiência. Sentou os alunos e solicitou que
conversassem sobre o que estava se passando em relação a Paulo,
que se esforçava por participar e era rejeitado. O grupo discutiu
longamente, e tirou uma decisão de tentar ajudar o garoto. Nas
aulas seguintes, diminuiu a manifestação de rejeição para com
Paulo. Podemos perguntar se a estratégia de dialogar, argumentar
e denunciar a injustiça da atitude dos colegas mudou de fato as
relações entre os alunos, se alterou o quadro para valer, ou se foi
só naquele contexto, na frente da professora, que se fez justiça. É
impossível responder a esta pergunta, mas a estratégia merece ser
testada e aperfeiçoada, dado o poder da argumentação e do debate
franco para a revisão de atitudes e práticas sociais. Habermas
(2001) prevê, em sua teoria da ação comunicativa, que os que
estão prontos e com disposição para serem convencidos tenderão
a mudar de atitude e prática após participarem de eventos
argumentativos sérios, em que são convidados a refletir sobre a
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194
Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
justiça, justeza e ética de seus comportamentos.
Os quatro casos atestam que o fenômeno bullying transita o
tempo todo nesses comportamentos de discriminação, com chacota e agressão seja ela verbal e/ou física. As vítimas da intimidação
normalmente enfrentam a molestação sozinhas. Os outros meninos
e meninas tendem a ficar do lado dos agressores, temendo ser os
próximos da fila, ou fingem que nada viram e permanecem quietos. O abuso pode afetar todo o ambiente da escola, e não apenas
os autores da ofensa física e psicológica e seus alvos.
2.3 Observações preliminares e proposta de intervenção
Através deste estudo percebe-se que alunas e alunos
são vitimas do fenômeno bullying, porém que nem sempre o
mesmo é percebido, pelos membros do corpo docente ou pela
direção da escola e (arriscamos a afirmar, sem provas) nem
mesmo pela família.
O gênero atravessa esta questão nas aulas de educação física, pois, no recorte deste estudo as meninas se tornam um alvo
fácil da crueldade linguageira, devido à pequena ou nula participação das mesmas, até bem pouco tempo, nas aulas de educação
física. Os meninos, por sua vez, são desqualificados se não mostrarem desempenho à altura da expectativa. A desqualificação e
rejeição se dão pelos estereótipos esperados de cada sexo,
construídos pela sociedade, segundo os quais as meninas têm que
ser graciosas e frágeis, e não devem participar de jogos de impacto
ou viris, e os meninos devem ser agressivos.
Bullying é a ponta do iceberg da discriminação, e um indício
de o quanto as pessoas estão envolvidas com os estereótipos culturais, que são produzidos conjuntamente por homens e mulheres
na sociedade familiar e, sobretudo escolar, em que as crianças e os
jovens os acabam reproduzindo. Representa um desafio único para
os educadores, que são convidados a afiar o olhar, a melhorar a
escuta, atentos aos sinais de injustiça e crueldade e, na linha do
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
Bullying nas aulas de educação física
195
que aqui se fez em cada caso relatado, a interferir pela conversa
em grupo, em que se oferecem oportunidades para a reflexão, a
tomada de posição e a superação do problema pela ampliação do
círculo do nós, pelo alargamento da consciência. Na linha de ação
educativa de Stoer e seus colegas, cabe à escola a tarefa de se
recontextualizar para favorecer o debate franco, corajoso e objetivo das questões que afligem sua comunidade.
Pensamos que, segundo a orientação de Bernstein (2001) é
dever da escola recontextualizar-se e reposicionar-se face a este
grave problema, e tirar uma linha firme de conduta moral e ética de
modo que fique explícito, no código de ética da escola, discutido
e acolhido por professores e alunos, que nenhuma criança ou adolescente pode ser desrespeitada, agredida, ameaçada ou negligenciada, nesse espaço de convívio e formação. Deve-se fazer com que
os meninos e as meninas sejam mais tolerantes, e aprendam a
compreender as diferenças, para não utilizarem a suas habilidades, dentro da aula de educação física, como meio de violência.
Bullying in Physical Education Classes
Abstract: In this essay, we analyze the phenomenon
of bullying, as a behavior which is “cruel, intrinsic
in interpersonal relationships, by which the strongest
ones convert the fragile ones in object of
entertainment and amusement, through jokes that
hide the goal of mistreat and threat (FANTE 2005)”.
Following Scott (2005), we discussed alternatives
in the deal with the different, report and analyze
some prototypical cases of the phenomenon,
verified with girls and boys in physical education
classes, in the public school of Rio de Janeiro. We
conclude that this behavior is inserted in cultural and
social contexts, and that the classes of physical
education reproduce the context favoring them.
Key words: Bullying. Gender identity. Teaching.
Prejudice. Conduct disorder.
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196
Espaço Aberto
Flavia Fernandes de Oliveira, Sebastião Josué Votre
Bullying en las clases de Educación Física
Resumen: En este ensayo analizamos el fenómeno
de bullying como un comportamiento “cruel, intrínseco en las relaciones interpersonales, en que los
más fuertes convierten a los mas frágiles en objeto
de diversión y placer, a través de bromas que
mascaran el propósito de maltratar e intimidar”
(FANTE 2005). Con Scott (2005), discutimos alternativas en el trato con el diferente. Relatamos e
analizamos algunos casos típicos de ese fenómeno,
ocurridos en clases de educación física con niñas
y niños de la escuela pública de Río de Janeiro.
Concluimos que ese comportamiento está inserido en contextos culturales y sociales, e que las
clases de educación física reproducen el encuadre
que los favorece.
Palabras-clave: Bullying. Identidad de género.
Enseñanza.
Prejuicio.
Trastorno
del
comportamiento.
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Recebido em: 07/11/2005
Aprovado em: 02/05/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 173-197, maio/agosto de 2006.
198
Espaço Aberto
Paula Evelise Favaro, et. al.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
O conteúdo da intervenção...
199
O Conteúdo da Intervenção Profissional em
Educação Física: O ponto de vista de docentes de
um curso de formação profissional
Paula Evelise Fávaro*
Glauce Yara do Nascimento**
Jeane Barcelos Soriano***
Resumo: Tivemos como objetivo desse estudo verificar o
ponto de vista dos docentes de um curso de formação profissional sobre: (a) como se caracteriza a intervenção profissional em Educação Física; (b) que elementos a compõe;
(c) e como esses elementos devem ser articulados pelos
profissionais de Educação Física durante o processo de
tomada de decisão. Para isso, utilizamos a abordagem qualitativa de pesquisa e a partir de dados obtidos em entrevistas semi-estruturadas, empregamos análise de conteúdo
com categorias estabelecidas à priori, sobre (a) mercado
de trabalho, (b) conhecimentos, habilidades, atitudes a serem desenvolvidas durante a graduação; (c) sistema de avaliação; (d) visão da graduação em Educação Física. Pôdese considerar que, apesar do grupo estudado expressar algumas preocupações importantes com relação à valorização dos conhecimentos oriundos das disciplinas-mãe, habilidades motoras e da pesquisa científica, os pontos de vista
manifestados nesse estudo não permitiram definir claramente, nem caracterizar os elementos que devem compor a intervenção profissional em Educação Física.
Palavras-chave: Capacitação Profissional. Ensino. Conhecimento. Educação Física.
1 Introdução
Atualmente as mudanças na legislação, economia e no mercado de trabalho apontam para uma série de competências que são
cada vez mais exigidas dos profissionais. Muitas vezes, no intuito
Grupo de Estudos sobre a Intervenção do Profissional de Educação Física
(GEIPEF).Centro de Educação Física e Desportos. Universidade Estadual de Londrina,
PR. E-mail: [email protected] e/ou [email protected]
**
E-mail: [email protected]
***
E-mail: [email protected] e/ou [email protected]
*
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
200
Espaço Aberto
Paula Evelise Favaro, et. al.
de acompanhar essas mudanças, várias Instituições de Ensino
Superior vêm atualizando seus currículos de Educação Física,
sempre apontando para o atendimento necessário às novas perspectivas de ampliação mercado de trabalho, anteriormente restrito
ao ambiente escolar. No entanto, o que se tem constatado são mudanças curriculares superficiais, com a inserção de umas poucas
disciplinas com nomes de locais de atuação, ou conservadoras, com
ênfase em modalidades esportivas e/ou aumento de carga horária de
áreas de conhecimento mais tradicionais (VERENGUER, 1996).
Além disso, sabe-se que a maioria dos cursos ainda se organizava em torno do que conhecemos como Licenciatura Generalista,
ainda que desde a Resolução 03/87 (BRASIL, 1987) se vislumbrasse a formação, essencialmente, de bacharéis, as instituições
acabaram por meio dessa mesma resolução abrigando a possibilidade de formação do “licenciado” com perspectiva e possibilidades “ampliadas”, com a prerrogativa de que, assim, se estaria assegurando a possibilidade de atuação em qualquer campo de atuação. (BRASIL, 2005; VERENGUER, 1996).
A decorrência mais forte dessa interpretação é, reconhecidamente, a falta de definição quanto ao tipo e especificidade do
conjunto de conhecimentos e habilidades que deveriam compor
uma formação, que venha ao encontro de um campo profissional
diversificado e em expansão (SORIANO, 2003; VERENGUER,
2003), com várias possibilidades de interação multiprofissional
(NASCIMENTO, 2004), gerando junto às repostas profissionais
um paradoxo diante daquilo que a formação deveria proporcionar,
qual seja a ausência de elementos que deveriam estar na base dos
processos de tomar decisões nas intervenções profissionais.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que se pretendia
formar um licenciado para atuar na escola, também se tinha o
intuito de formar um profissional capaz de atender as novas oportunidades de atuação fora dela, na tentativa de não limitar as possibilidades de atuação do egresso em Educação Física. Dessa
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
O conteúdo da intervenção...
201
forma, as propostas curriculares foram insufladas de disciplinas
díspares e com pouca profundidade, originando uma “tradição” na
área de se defender os aspectos imediatistas de mercado de trabalho e, também, de atrelar ingenuamente atributos “didático-pedagógicos” à intervenções em espaços não escolares (REIS, 2002).
Portanto, uma das implicações mais sérias seria que:
[...] sem o reconhecimento das diferenças entre o mercado de trabalho na escola e fora dela,
torna-se mais difícil à tentativa de avaliar as
particularidades e conseqüências da intervenção, quando nem ao menos se tem o domínio
dos conhecimentos que devem ser utilizados em
cada um deles (NASCIMENTO, 2004, p. 13).
No entanto, a partir da publicação das Resoluções CNE/CP
01 e 02/2002, consolida-se a necessidade de uma re-leitura do
entendimento de Licenciatura de maneira geral, e na Educação
Física particularmente. Como decorrência da implementação das
resoluções, fez-se clara a necessidade de repensar não apenas a
mudança de nome, mas também de objetivos e perfis
profissiográficos (Resolução no.07/ 2004). Tudo isso guarda em
si uma séria implicação na conformação dos conhecimentos e
habilidades profissionais que fazem parte de um curso. Além da
perspectiva que o próprio docente tem quando da seleção de
conteúdo e organização metodológica de sua disciplina numa
estrutura curricular.
Assim, nota-se que docentes do ensino superior ainda possuem pouca clareza acerca de elementos essenciais e diferenciadores
entre preparação pautada para intervenção no ensino dentro da escola e no ensino fora da escola. Um dos motivos para tal confusão
talvez esteja no fato de encararem de modo romântico o mercado de
trabalho em Educação Física, transmitindo como honrosa à atuação
dentro da escola e como desafiadora a atuação fora dela.
Diante disso, acreditamos que devemos nos preocupar com
os futuros profissionais que se formam nas escolas de Educação
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Física, porque a formação profissional interfere e influencia no
decorrer do desenvolvimento do profissional, bem como, imprimem no modo de ser, valores, costumes, justificativas de como
vêem sua intervenção.
Considerando que a maioria dos cursos de Licenciatura sempre valorizaram a execução de movimentos com um fim em si
mesmo, desse modo Bok (1988) acrescenta que os docentes não
podem se contentar em ensinar aos estudantes a se lembrar de
um corpo fixo de conhecimentos; em vez disso, devem ajudá-los
a dominar técnicas de resolver problemas e hábitos de aprendizado contínuo.
Sendo assim, para Tani (1996) a implementação de uma grade curricular com ou sem vivências práticas depende de uma definição nítida do perfil profissional do graduando que se quer formar, e este perfil deve estar ligado às necessidades sociais e as
características mutáveis do mercado de trabalho. O modelo ideal
para o qual a maioria das profissões aspira, pode ser descrito, mas
raramente aplicado e está ele mesmo em constante mudança. Para
nós compreendermos algumas tendências, temos que analisar mais
de perto o mercado de trabalho dos profissionais e a natureza
inconstante do cliente ou dos sistemas de clientes (SCHEIN,
KOMMERS, 1972; BOK, 1988).
Para Bok (1988) o progresso do ensino profissional ocorre
devido às pressões da sociedade, dos estudantes, da comunidade
acadêmica com seus hábitos e atitudes enraizadas dentro da Universidade, e da própria profissão que os lembra a todo instante de
preparar pessoas competentes para o exercício profissional. O autor
ainda argumenta que para um ambiente de melhor aprendizado as
Universidades devem evitar apenas concentrar esforços para adicionar novos cursos e reorganizar programas, porque assim acabase enfatizando mais o que os professores ensinam e ignorando
como os alunos aprendem. Portanto, é preciso: (a) incentivar a
pesquisa, já que as Universidades existem por causa dela, (b) in, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
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centivar a avaliação sistemática e minuciosa de cursos que ajudarão os docentes a descobrirem áreas nas quais o ensino e as matérias precisam de aperfeiçoamento, (c) proporcionar a esses docentes que desejam melhorar suas aulas, novos métodos de instrução
(multimeios), (d) dar assistência a jovens docentes e a estudantes
graduados para aprimorarem suas técnicas de ensino. Dessa forma, os docentes se sentirão motivados a melhorar a qualidade do
ensino, porém, precisam trabalhar em colaboração.
Kourganoff (1990) revela que os docentes devem tomar cuidado com a incessante valorização da pesquisa científica em detrimento a desvalorização do ensino. O autor aponta a existência
de dois tipos de basicamente dois tipos de carreiras acadêmicas,
ou seja, de atividades profissionais que caracterizam os professores universitários: o professor pesquisador que possui interesse e
dedicação para a pesquisa e, o professor “de ensino”, ou seja, o
professor propriamente dito. É importante ressaltar que ambos
profissionais tem seu valor, o problema é quando dentro de um
sistema educacional não existe incentivo que permite a dedicação
a pesquisa, nem a valorização daqueles profissionais comprometidos com o ensino.
Hoje o que as Universidades mais precisam é de um esforço
determinado para avaliar novas iniciativas e integrar as bem sucedidas no corpo principal do currículo onde elas podem ter maior
permanência e atingir maior número de estudantes. No entanto, os
que oferecem maiores resistências para que as mudanças necessárias ocorram são os próprios membros do corpo docente, onde
para eles se alguma parte tiver que ceder que seja o ensino, pois
consideram a pesquisa mais importante (BOK, 1988). Até mesmo
porque são julgados e promovidos apenas em função de sua atividade de pesquisa, ficando os estudantes em segundo plano
(KOURGANOFF, 1990).
O objetivo desse estudo foi verificar o ponto de vista dos
docentes de preparação profissional em Educação Física do CEFD,, Porto
Porto Alegre,
Alegre, v.12,
v.12, n.
n. 01,
02, p.
p. 153-171,
199-221,janeiro/abril
maio/agostode
de2006.
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UEL levando-se em conta os seguintes aspectos: (a) como se caracteriza a intervenção profissional em Educação Física; (b) que
elementos a compõe; (c) e como esses elementos devem ser articulados pelos profissionais de Educação Física durante o processo de tomada de decisão. Para assim poder ter uma maior compreensão sobre as ocorrências, procedimentos e referências adotadas
no processo educativo da preparação profissional na área.
Dessa maneira, é nossa pretensão apresentar os resultados
de nossa reflexão, após um trabalho de campo, na direção de apontar melhores encaminhamentos para formação profissional em Educação Física, bem como mapear a maneira como os docentes vêem
as ações profissionais, buscando assim propiciar uma transição significativa para a formação profissional dos futuros egressos.
2 Encaminhamento metodológico
Neste estudo utilizamos a abordagem qualitativa, seguindo
as diretrizes do estudo de caso de acordo com Triviños (1987),
Laville e Dionne (1999), Richardson (1999), para levantar dados,
preservando o caráter unitário do “objeto” a ser estudado, e tentar
abranger as características mais importantes do tema que se está
perseguindo. O tipo de estudo se caracterizou como exploratório,
por não haver manipulação de variáveis (TRIVIÑOS, 1987).
A fim de atingir os objetivos propostos nesse estudo, recorreu-se à elaboração de um roteiro de questões, na tentativa de
responder às inquietações surgidas do envolvimento com estudos
relacionados aos elementos que devem compor a ação profissional dos professores universitários de Educação Física, e como
esses elementos são caracterizados. Nessa pesquisa, optou-se pela
utilização da entrevista semi-estruturada junto aos docentes do
CEFD-UEL. Salientamos que esse tipo de entrevista é utilizado
para estudar os processos e produtos nos quais o investigador está
mais diretamente interessado (TRIVIÑOS, 1987).
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Baseando-se na literatura e seguindo as orientações de
Trylinski (1974) elaboramos um roteiro de entrevista, que
corresponde à entrevista semi-estruturada de forma individual, para
que pudéssemos averiguar que elementos devem compor a ação
profissional de Educação Física e como esses elementos se caracterizam, segundo o ponto de vista dos docentes do curso de preparação profissional.
Utilizamos para registrar os depoimentos dos docentes gravações em fita K-7, as quais foram transcritas na íntegra, totalizando
108 páginas para análise.
Foi realizado um convite a todos os docentes do CEFD-UEL
por meio de uma carta. Aceitaram participar do estudo 15 docentes. No entanto, apenas 13 depoimentos foram aproveitados devido aos problemas com os recursos de coleta de dados, como a má
qualidade do material utilizado e do baixo volume, impossibilitando a audição daquilo que foi registrado.
As respostas dos docentes foram analisadas pela aplicação
da técnica de análise de conteúdo, descrita por Bardin (1979).
As categorias de análise foram estabelecidas a priori, ou seja,
procuramos formular as perguntas da entrevista e a análise baseando-nos em temas estabelecidos de acordo com o referencial
teórico. Uma das limitações das categorias à priori é passar
desapercebidos pontos, pontuações, observações significantes
obtidas da fala do entrevistado, dentro dessa limitação abre-se
espaço para colocar impressões a partir do olhar da totalidade
das falas dos participantes.
As categorias estabelecidas neste estudo foram os seguintes:
(1) Mercado de trabalho; (2) Conhecimentos, habilidades, atitudes
a serem desenvolvidas durante a graduação; (3) Sistema de avaliação; (4) Visão da graduação em Educação Física.
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3 Análise e discussão
3.1 Categoria 1: Mercado de trabalho
As possibilidades de atuação mencionadas pelos docentes,
referente ao mercado de trabalho, são as seguintes: onze dos docentes citaram a academia, oito entrevistados citaram os clubes e
sete profissionais citaram personal trainer. Apenas um docente
considerou como possibilidade de atuação a assessoria de imprensa, a publicação de livros, a construção de equipamentos, a
ginástica laboral, atuação em instâncias térmicas, organizações
assistencialistas, asilos e prefeitura. E ainda três docentes citaram
hospitais, hotéis e esporte e outros dois citaram o treinamento
esportivo e a saúde.
Quanto aos conteúdos de cada disciplina, relacionado com o
mercado de trabalho, cinco docentes incluem em seus conteúdos a
técnica do esporte, ou seja, saber a técnica correta relacionada às
modalidades esportivas: “[...] o conteúdo é fundamentado na questão técnica do desporto[...]”, “[...] possibilitar a atuação no mercado de trabalho voltado principalmente à formação, iniciação da
formação do atleta e também para o treinamento[...]”
As respostas dos entrevistados apontam que de certa forma
acompanham com pouca clareza as mudanças do mercado de trabalho, sem visualizar as novas definições do papel profissional e
sua responsabilidade com os usuários, ou seja, o que a sociedade
necessita do profissional de Educação Física (SCHEIN;
KOMMERS, 1972). Conseqüentemente, não enxergam com nitidez quais as possibilidades de atuação do profissional de Educação Física, dessa forma, os conteúdos de suas disciplinas se restringem às técnicas atreladas ao esporte, transmitidos através de
seqüências pedagógicas, resumindo-se à simples transmissão do
conhecimento acumulado pelo docente durante anos, apoiada em
experiência, intuição e senso comum (TANI, 1996). Essa circunstância faz com que os graduandos tenham uma vaga idéia de como
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O conteúdo da intervenção...
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suas instruções influenciarão de fato na sociedade (SCHEIN;
KOMMERS, 1972).
Isso contribui para a visão da qual professor de Educação
Física seja reconhecido como um eterno repetidor de procedimentos de duvidosa fundamentação teórica, sem conhecer sua real
função dentro do processo educacional, e seu potencial de contribuição para o desenvolvimento de seus alunos, como mencionado
por Teixeira (1993).
As principais situações-problema que os profissionais enfrentam no mercado de trabalho, de acordo com cinco dos docentes, são problemas referentes à especificidade da Educação Física, decorrente de confusões conceituais, forma de tratamento da
área e a diversificação de métodos de investigação: “[...] nós
mesmos não temos clareza em relação ao objeto de estudo.”
O não conhecimento da especificidade da Educação Física,
de acordo com os entrevistados, acarretam outras situações como
a falta de credibilidade do profissional de Educação Física, levando ao não reconhecimento do profissional pela sociedade, como
foi relatado por cinco dos entrevistados. Além disso, existem outras situações apontadas como a carência de definição do que o
profissional de Educação Física faria no mercado de trabalho, assim
como a remuneração sobre os serviços prestados: “[...] aí a questão salarial reflete em muitos outros fatores: você não tem condições de se reciclar, adquirir revistas, fazer cursos.”
Os docentes também apontaram outros fatores relacionados
à identidade e ao status profissional, como a ausência de crédito
pessoal do profissional de Educação Física, individualismo e falta
de profissionalismo. Podemos dizer que essa situação é decorrente da ausência de um objeto de estudo definido, e que acaba deixando os profissionais dependentes de outras áreas, especialmente no trabalho em equipes multiprofissionais, bem como habituados a conceitos tradicionais (GHILARDI, 1998). “Nós somos os
primeiros a não acreditar em nós mesmos”. “[...] A sociedade
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ainda não aprendeu a dar o valor devido aos nossos profissionais.”
Os entrevistados relataram a distância entre o conteúdo ensinado à realidade profissional, bem como questões acerca da falta
de visibilidade do profissional quanto ao mercado de trabalho,
como a carência de inovação nos serviços prestados e a falta de
visão de marketing. “Hoje infelizmente com o currículo que nós
temos, com o tipo de conteúdo que nós passamos o profissional
não consegue aplicar na prática o que aprendeu.”
Com relação as principais estratégias adotadas para o ensino,
concernentes às situações-problema enfrentadas no mercado de trabalho, nove docentes se referiram às discussões e debates: (a) de
textos ou artigos relacionados ou não com a disciplina ministrada;
(b) recorte de jornais e revistas; (c) multi-meios (filmes, slides, transparências) (d) relato de experiências proporcionado por profissionais convidados. Dois docentes defenderam os estágios como formas de aprendizado e formação do profissional. Outros dois docentes lançam mão da estratégia de transmitir o conhecimento generalizado, deixando para o aluno a responsabilidade de síntese, correlação e utilização desses conhecimentos: “Dentro da disciplina conhecimentos generalizado [...] os alunos que vão ter que pensar
naquilo que puderem relacionar com a modalidade.” - “Não posso
ficar vendo aquilo que cada um quer dentro de uma aula”.
Quanto aos procedimentos adotados para aumentar a eficácia do processo ensino-aprendizagem no ensino superior, quatro
docentes consideraram que deveriam ser feitos através de debates
sobre textos e quatro docentes por meio de estágios: (a) trazer o
que está acontecendo no mercado de trabalho para serem discutidos na sala de aula; (b) problematização; (c) aplicar o que foi
ensinado a uma situação real logo após a aula teórica e, (d) participação em projetos de extensão.
Um docente considerou como procedimento importante para
o processo ensino-aprendizagem, o comprometimento de professores e alunos com suas tarefas; o aluno estar em contato com as
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O conteúdo da intervenção...
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áreas de atuação (realizar visitas em escolas públicas, etc) e também despertar interesse pela de pesquisa, ou seja, aplicar estratégias que sejam mais significativas para o aluno, trazendo experiências deste para sala de aula.
Parece contraditório que alguns docentes utilizam-se de situações do mercado de trabalho como estratégia para aumentar a
eficácia no processo ensino-aprendizagem, no entanto, pouca clareza possuem sobre as subjetividades do mercado de trabalho.
Fica claro que julgam necessário chegar a um consenso sobre
qual a especificidade e forma de tratamento da área. Nota-se dessa forma, que os docentes possuem um grande desejo de reforma
e conforme Bok (1988), mudanças bem sucedidas ocorrem através de novas idéias e percepções inéditas constantemente adicionadas aos cursos tradicionais e a contínua introdução desses assuntos aos conteúdos a serem transmitidos pelos docentes. No
entanto, observa-se que os professores estão poucos suscetíveis a
perceber as mudanças que ocorrem no mercado de trabalho, aumentando a resistência a reformas curriculares.
Percebe-se que o tipo de estratégia considerada adequada
para a atuação no mercado de trabalho, como a discussão e debates de textos e a inclusão de estágios pode aumentar a eficácia
do processo ensino aprendizagem. Para Bok (1988) a discussão
de textos leva os estudantes a analisar, dar opiniões, sendo assim, pensar sobre os problemas característicos da profissão. Os
estágios oferecem uma forma de treinar estudantes habilidades
práticas, ao mesmo tempo em que proporciona importantes serviços a sociedade.
Entretanto, os docentes encontram dificuldades relacionadas
à indisponibilidade de horário e até mesmo falta de vontade dos
alunos. Por outro lado, o docente deve refletir sobre seus métodos
de ensino, ou seja, avaliar e reavaliar constantemente suas ações a
fim de dirimir esses problemas de motivação.
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3.2 Categoria 2: Conhecimentos, habilidades e atitudes a
serem desenvolvidos durante a graduação
Os conhecimentos que os profissionais deveriam possuir para
iniciar a sua atuação são conhecimentos relacionados às áreas mãe
como sociologia, filosofia, biologia, psicologia e pedagogia que foram
citados por oito dos docentes. Os demais conhecimentos citados
por apenas um docente seriam conhecimentos sobre o que a clientela necessita, conhecimento da área que vai atuar, saber planejar aula
e saber ensinar a habilidade específica do desporto.
Em relação como se caracteriza o conhecimento profissional
há um consenso de sete dos entrevistados como sendo teórico e
prático, mas, entre estes, a prática se diferencia em técnicas próprias das modalidades esportivas:
[...] o teórico fala coisas que como ele não
vivenciou na prática são absurdas, então acredito no professor que tenha a noção prática [...]
[...]deve ter fundamentação teórica e a fundamentação prática, não no que se refere à habilidade de execução e perfeição, mas, habilidade mínima de execução em determinado gesto
que futuramente talvez seja necessário[...]
Apenas para um docente o conhecimento profissional se caracteriza pela vivência da prática. Outros quatro entrevistados
indicaram que o conhecimento profissional se caracteriza no campo do movimentar-se, ou seja, motricidade humana.
Em um dos depoimentos foi apontada a relevância do conhecimento teórico e aplicação da teoria, no entanto, não conseguimos
compreender que tipo de relação estaria por traz dessa aplicação da
teoria, se refere a conhecimento ou a execução de determinado movimento. Um docente não soube caracterizar, e outro não caracterizou
por entender que primeiro é preciso reconhecer o papel do professor
de Educação Física na escola, para depois saber o que faz fora dela.
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[...] nós não temos claro o que a disciplina
Educação Física faz no segmento escolar [...]
uma área se torna forte no dia em que a
correlata dela no segmento escolarização seja
no ensino fundamental, médio ou a universidade está claramente definido.
O tipo de conhecimentos que os docentes consideram como
requisito para preparação profissional são teóricos: relacionadas
às áreas mães e práticos relacionados a habilidades motoras. Dessa forma Teixeira (1993) argumenta que se deve preocupar em
beneficiar os graduandos com habilidades essenciais ao exercício
profissional, em vez de habilidades motoras relacionadas ao esporte, logo, ensiná-los a analisar respostas de seus alunos para
adequar diversas variáveis de ensino é o que se esperaria dos
responsáveis pela formação dos profissionais na área.
Nesse caso concordamos com Ghilardi (1998) quando afirma que os cursos de licenciatura sempre valorizaram a execução
de movimentos com um fim em si mesmo. O produto que se
busca é a formação de profissionais e não de atletas e a atividade de ambos é eminentemente intelectual e não física. De forma
semelhante Tani (1996) sugere que se deva privilegiar a oportunidade para o graduando desenvolver a capacidade diagnóstica,
capacidade de observação para conhecer o que o aluno necessita
aprender.
Com relação ao processo ensino-aprendizagem, nove entrevistados consideraram importantes as situações referentes à desvalorização do profissional de Educação Física no mercado de
trabalho, da qual são decorrentes das seguintes situações: (a)falta
de responsabilidade, seriedade e comprometimento, inclusive de
graduandos que se aventuram precocemente no mercado de trabalho; (b) não sabem como lidar com os alunos e/ou clientes; (c) não
diferenciam conceitos de senso comum de conceitos científicos, e
(d) não sabem inovar em seus serviços.
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[...] muito acadêmico dando aula, primeiro ano
trabalhando como personal! [...] isso faz com
que tenha um baixo rendimento profissional que
acaba refletindo na categoria inteira.
[...] no mercado que nós temos aí existem muitos mitos, o profissional não sabe definições
mais simples de bem estar, a falta de diferenciação entre o que venha ser escola e o que venha ser lazer.
Quatro entrevistados não souberam responder a pergunta
fugindo do tema demonstrando mais uma vez que se apropriam do
tema mercado de trabalho como conteúdo para ministrar suas disciplinas, sem ao menos identificar quais são os principais problemas enfrentados. “não faço discussões porque a matéria tem carga
horária reduzida, por isso não trabalho com a prática, então não
tem como fazer discussões.”
Quanto às habilidades, oito docentes declaram que os
graduandos deveriam dominar e saber recrutar conhecimentos necessários para resolver determinada situação da área em que vai
atuar. Nesse caso, disseram que as habilidades que os egressos
deveriam apresentar são “saber executar e demonstrar” o movimento a ser ensinado. O restante das respostas representada pelos
outros docentes foram as mais variadas como: fazer diagnóstico
através de entrevista e observação das necessidades do local (sociedade) onde irá intervir. Além disso, comunicar-se com facilidade, saber passar segurança para o cliente e adequar a fala para
cada faixa etária que irá atuar.
Observa-se que a habilidade necessária à preparação profissional é o domínio de conhecimentos necessários para resolver
determinada situação da área em que vai atuar, fica evidente, que
há uma fuga por parte dos docentes de quais seriam esses conhecimentos necessários, e ainda, os graduandos deveriam relacionar
por si próprios com a área de atuação. Alguns justificam que esses
conhecimentos são adquiridos através da habilidade do graduando
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de saber acessar informações, seja ela através da internet ou em
grupos de pesquisas. Assim, uma grande parcela valoriza o acesso
a informações, estas de conteúdo científico.
Para Freidson (1998) as características de valorização do
ensino de conteúdos predominantemente científico dos cursos de
formação profissional revelam a importância atribuída a esse tipo
de conhecimento nos dias atuais e também contribuem para a criação de diferentes tipos de docentes:
Os profissionais se diferenciam por segmentos
e especialidades concretas, por circunstâncias
diferentes de prática, por seus papéis de profissional comum, professor, pesquisador e administrador, e por sua relativa proeminência
como líderes culturais, políticos e intelectuais
da profissão e no mundo do leigo exterior
(FREIDSON, 1998, p. 71).
Em relação as habilidades para a intervenção profissional
Bok (1988) julga necessário ensinar habilidades de fazer diagnósticos e comunicação com os clientes, entretanto, estas são
deixadas de lado simplesmente porque os docentes preferem não
ensiná-las e sentirem-se pressionado ao fazê-las., ou seja, porque os docentes não compreendem o bastante para poder construir generalizações, induções ou estruturas conceituais dignas
de serem ensinadas.
Com relação aos valores e atitudes necessárias para atuação
profissional as dimensões éticas são citadas por três docentes como:
(a) responsabilidade e comprometimento com o objetivo que se
pretende atingir; (b) constantemente repensar se o que está sendo
aplicado é realmente bom para os clientes; (c) o profissional não
se oferecer para trabalhar por salário inferior. E as demais atitudes
foram: honestidade, valorizar a profissão, ter consciência do que
está aplicando, pontualidade, utilizar-se de uma linguagem melhor
e ser um profissional sem pré-conceitos: [...] o profissional não
pode ter preferência ou afinidade com uma ou outra pessoa...tem
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que tratar as pessoas sempre com dedicação, igualdade, não interessa se é preto, se é branco, japonês, baixo ou alto.
Outros três entrevistados citaram a importância de manter-se
atualizado: “[...]. estudar mais, partir em primeiro lugar para a
especialização.”
Essa afirmação remete novamente a valorização da pesquisa
científica, atribuindo a ela o sentido de comprometimento com a
profissão e também sendo motivo de status entre os docentes. Bok
(1988) ressalta que a comunidade acadêmica reserva maior admiração para aqueles que demonstram excepcionais poderes de inteligência por fazerem novas descobertas, conceberem novas teorias ou contribuírem para conhecimentos de forma mais significativa. A partir dessa crença é que decorre uma tendência para valorizar mais a pesquisa do que o ensino. Mas por outro lado, o autor
nos leva a refletir, que o mais importante, é estar em contato com
os conhecimentos novos produzidos pela área.
3.3 Categoria 3: Sistema de avaliação
Como métodos de avaliação são utilizados: 30% provas teóricas, sendo objetivas e subjetivas e, provas práticas: (a) gesto
técnico, citado por três docentes, (b) saber auxiliar o executante
para realização de determinado movimento, citado por um entrevistado (c) estágio em determinada comunidade, citado por um
entrevistado. Dois docentes utilizam o estudo de caso:”[...] crio
uma situação e coloco meus alunos dentro dessa situação.”
Um entrevistado utiliza a avaliação através de festival da
disciplina onde é avaliada a convivência em grupo; domínio de
conhecimento; avaliação contínua; avaliação global. Observa-se
que a capacidade de execução de habilidades motoras é considerada como um fator indispensável, assim, os graduandos devem
ser os melhores executores, ao invés de saber selecionar, identificar as dificuldades que os clientes necessitam e partir disso saber
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O conteúdo da intervenção...
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intervir no contexto apresentado (TANI,1996).
Apenas quatro dos docentes não consideraram a avaliação
utilizada como avaliação ideal porque argumentam que deveriam
ser criados mecanismos para que o aluno fosse avaliado no seu
dia-a-dia. Essa situação demonstra que nove dos docentes não
utilizam a avaliação como mecanismo de analisar os problemas e
as dificuldades que limitam a sua própria atuação enquanto docente (GUARNIERI, 2000).
3.4 Categoria 4: Visão da graduação
As dificuldades de ministrar aulas nesta instituição apontadas pela maioria dos docentes referem-se a problemas estruturais
do currículo: (a) disciplina que não se articulam (b) disciplina não
deveria encontrar-se no currículo, por não ser escolar e (c) carga
horária reduzida para determina disciplina. As outras dificuldades
apresentadas foram a falta de comunicação com outros professores que ministram a mesma disciplina; ter que ministrar outros
conteúdos antes de iniciar o conteúdo da própria disciplina. Três
entrevistados citaram problemas relacionados aos alunos: (a) não
encontrar condições juntos aos alunos para desenvolvimento de
estágios, (b) alunos inibidos, tímidos e (c) alunos que não questionam, desinteressados. [...] se o aluno não questiona o professor
se acomoda. Então pra que eu vou me preocupar se ele não vai me
perguntar? Então o aluno deve questionar o professor pra que o
professor se atualize [...]
Quando os docentes apontam problemas referentes ao comportamento dos alunos, deve-se analisar o que pode estar por trás
deste tipo de comportamento, pois isto pode refletir a utilização de
estratégias e métodos de ensino ultrapassados ou conservadores.
A aptidão para receber um ensinamento depende ao mesmo tempo dos que aprendem e
dos que ensinam. Antes de denunciar a incapacidade da maioria dos estudantes, deve-se
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perguntar se existe, por parte dos professores,
empenho em despertar o interesse dos alunos,
e estimulá-los ao esforço e à autovalorização.
(KOURGANOFF, 1990, p.20).
Na opinião dos docentes o curso deveria ser estruturado da
seguinte forma: aumento da vivência da profissão, através de estágio e observação(três docentes); aumento de carga horária para
disciplinas voltadas para formação de professores de ensino fundamental e médio (dois docentes) e estudo de caso (dois depoimentos). Dois entrevistados acreditam que devem ser incluídas no
currículo disciplinas das áreas mãe como filosofia, sociologia,
psicologia, pedagogia, antropologia, etiologia, biologia. E um docente acredita que todas as disciplinas deveriam ser interligadas.
Outros dois não têm idéia de como o curso deveria ser estruturado.
A visão geral apresentada pelos docentes sobre a graduação
em Educação Física é de que reformas precisam ocorrer para
melhorar problemas estruturais do currículo. Dessa forma Bok
(1988) alerta que é preciso dar prioridade a melhoria do ensino
antes de incluir novos cursos, e para melhorar o ensino, há a necessidade da cooperação efetiva do corpo docente. E ainda argumenta que muitos resistirão a reformas, se estiverem piamente convencidos de que elas contribuirão para o avanço intelectual do aluno.
Então não é somente discutir quais disciplinas deveriam compor ou não a grade curricular de um curso de formação profissional. Mais do que isso, optar por conteúdos e disciplinas específicas que contribuam para a formação do profissional para atuar na
licenciatura ou no bacharelado. É justamente isso que as Resoluções CNE/CP 01 e 02/2002 e 07/2004 defendem e que agora as
Universidades que oferecem cursos de formação em Educação
Física terão que respeitar, a partir da modificação ou extinção dos
cursos de formação generalista.
Percebe-se, também, a necessidade de um aumento da vivência
da profissão, isso pode representar um grande avanço para a for, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
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mação profissional, mudando a ênfase dada a realização de habilidades motoras, para o objetivo de treinar os graduandos a perceberem os problemas, analisá-los cuidadosamente e tomarem as
decisões necessárias, ou seja, pensar como um profissional de
Educação Física e não como um mero executor de tarefas e habilidades motoras (TEIXEIRA, 1993) Dessa forma, os graduandos
serão guiados para ver, analisar e dar opiniões sobre situações do
dia a dia profissional.
4 Considerações finais
Através da análise dos depoimentos dos docentes foi possível considerar que os elementos que devem compor a ação profissional em Educação Física não estão claramente definidos e caracterizados pelos docentes. Mas nota-se uma valorização da pesquisa científica, dos conhecimentos oriundos das áreas mães e de
habilidades motoras.
Falta, portanto, aos docentes sentir-se responsável por sua
contribuição ao progresso dos estudantes e ao tipo de profissional
que se pretende formar, ou seja, falta a eles a certeza de que tipo de
profissional se pretende colocar no mercado de trabalho. Por outro
lado, essa falta de clareza também é motivada pelos conteúdos e
disciplinas dos currículos generalistas de formação profissional.
Esta situação demonstra que ainda não possuem clareza do
perfil profissional que pretendem formar, com isso, são formados
graduandos (a) incapazes de atender os anseios da sociedade, (b)
de pensar sobre os problemas característicos da profissão, (c)
repetidores de seqüências pedagógicas e de métodos de ensino.
Ou seja, forma-se profissionais acríticos, incapazes de propor novas
sugestões a situações que ocorrem ou que possa ocorrer no mercado de trabalho.
Sendo assim, recomenda-se uma maior reflexão dos docentes
sobre (a) os procedimentos e estratégias de ensino que são utiliza, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
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das, para verificar as necessidades dos graduandos e principalmente da sociedade, (b) cooperação efetiva do corpo docente para contribuir no avanço intelectual do aluno, deixando de lado, portanto,
valores acadêmicos de preferência particulares de cada docente.
Como forma de ampliar nossos conhecimentos sugere-se a
realização de outros estudos, nos quais possam abranger docentes
de outras instituições de ensino para que haja maior
representatividade dos docentes.
Knowledge of Professional Action in Physical
Education: the Point of View of Cefd-Uel’s
Professors.
Abstract: It’s undeniable that preparation courses
are important and responsible for the exits close in
job market. In this meaning, it’s necessary to inquire some professors what they think about certain
points related to the basic knowledge to act
professionally in Physical Education. Therefore, this
study has as objective to check the point of view of
the professors of professional preparations in
Physical Education at CEFD-UEL about: a) which
elements should compose the Physical Education’s
professional act; b) how this elements are
characterized. For this, 13 CEFD-UEL’s professors
have been interviewed; it’s been used the analysis
of contain as methodological procedure, with the
proposal of the following categories previously
established: the vision concerning the work market;
acting according to work market; knowledge
abilities and attitudes that will be developed during
the graduation, which are important for professional
intervention; evaluation system; point of view about
Physical Education graduation. Although the studied
group expresses some important concerns related
to the valuation of knowledge that came from main
disciplines, motive abilities and scientific research,
it could be considered that manifested opinions in
this study didn’t allow us to define clearly neither
characterize the elements that should compose the
professional act in Physical Education.
Keywords: Professional Training. Teaching.
Knowledge. Physical Education.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
O conteúdo da intervenção...
219
El contenido de la intervención profesional en
educación física: el punto de vista de los docentes de uno curso de formación profesional
Resumen: El objetivo de ese estudio fue verificar
el punto de vista de los docentes de uno curso de
formación profesional sobre: (a) ¿ Como se
catacteriza la intervención professional en
Educación Física?; (b) ¿ Que elementos devem
compone-los? (c) ¿ y como esos elementos devem ser articulados por los professionais de
Educación Física? Para eso, utilizamos la abordagem qualitativa y a partir de los dados obtenidos
en la entrevista semi-estructurada, empleamos la
análisis de contenido con las categorías préestablecidas á priori sobre (a) mercado de trabajo,
(b) conocimientos, habilidades, actitudes a ser
desarrolladas durante la graduación (c) sistema de
avaliación, (d) visión de la graduación en Educación
Física. Se pudo considerar que, a pesar del grupo
estudiado expresar algunas preocupaciones importantes con relación à valoración de los
conocimientos venidos de las asignaturas-madre,
habilidades motoras y de investigación científica,
los puntos de vista manifestados en este estudio
en no permitieron definir claramente, ni caracterizar los elementos que deben componer la acción
profesional en Educación Física.
Palabras-clave: Capacitación Profesional.
Enseñanza. Conocimiento. Educación física.
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Recebido em: 04/04/2005
Aprovado em: 20/04/2005
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 199-221, maio/agosto de 2006.
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Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
223
Estatuto de Defesa do Torcedor: um diálogo com o
futebol pelotense
Luis Carlos Rigo*
Alan Goulart Knuth**
Luciano Jahnecka***
Ricardo Prestes Tavares****
Resumo: Este estudo objetiva analisar a situação dos estádios de futebol profissional de Pelotas, tendo como referência o Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT), com atenção especial para as condições de higiene, segurança, ingressos e transporte. Como metodologia, além da análise
documental do EDT realizamos visitas aos estádios em três
momentos com registros fotográficos e entrevistamos um
dirigente de cada clube: Grêmio Esportivo Brasil, Esporte
Clube Pelotas e Grêmio Atlético Farroupilha. Constatamos
que a atenção dedicada pela mídia e pelos órgãos
fiscalizadores à implementação do EDT está sendo menor
do que ocorreu no momento da sua publicação.
Palavras-chave: Futebol. Estatuto. Torcedor.
1 Introdução
Um dos argumentos mais utilizados pelas autoridades para
justificar a importância da elaboração e implementação do Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT) foi o de que ele seria uma peça
fundamental para aperfeiçoar as práticas de sociabilidade que ocorrem nos espaços públicos e privados os quais aglutinam o público
assistente (torcedores) das diferentes práticas esportivas. Na opinião dos autores o EDT, além de garantir melhores condições de
higiene e segurança aos torcedores, constitui-se em uma medida,
uma política pública, que poderia se contrapor à crescente onda de
Professor de graduação e pós-graduação na ESEF da UFPel. Doutor em Educação.
Bolsista PET/ESEF/UFPEL.
Bolsista Pibic, CNPq.
****
Acadêmico da ESEF/UFPEL.
*
**
***
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
224
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
violência que vem atingindo, desde o início dos anos 90, os estádios brasileiros de futebol. Apesar de não se restringir ao futebol,
foi para ele que a maioria das considerações a respeito do EDT se
voltaram. O EDT estaria adequado à realidade brasileira? Ele
estaria em condições de ser posto em prática pela grande maioria
dos clubes de futebol da primeira e segunda divisão? Ele está
sendo capaz de inibir a onda de violência a qual vem atormentando
os estádios brasileiros? A quem cabe a responsabilidade de fiscalizar a sua implementação? Essas são algumas interrogações colocadas desde o momento que o EDT foi promulgado.
Situado nesse contexto, posterior à publicação do EDT, o
objetivo principal da realização desse estudo foi o de investigar como os clubes profissionais de futebol da cidade de Pelotas
(Grêmio Esportivo Brasil, Esporte Clube Pelotas e Grêmio Atlético Farroupilha) estão implementando as diretrizes do EDT e
até que ponto elas estão trazendo mudanças significativas principalmente no que tange à higiene, à segurança e ao conforto
dos torcedores.
Mais do que verificar quais os artigos estão ou não sendo
cumprindo por este ou aquele clube nosso estudo visa contribuir
para melhorar as condições dos torcedores nos estádios de futebol, principalmente porque não nos conformamos com a idéia de
que um esporte que, segundo declaração do Ministro do Esporte
Agnelo Queiroz (Ministério do Esporte 2004), a cada final de
semana entre jornalistas, atletas, dirigentes, árbitros e torcedores
atinge aproximadamente 31 milhões de pessoas, é muito eficiente dentro de campo e movimenta anualmente milhões de dólares,
deixe tanto a desejar quando se trata das condições que oferece
para os torcedores.
A metodologia da pesquisa constitui-se de uma análise documental do EDT e da sua implementação junto aos clubes de futebol de
Pelotas, realizamos duas visitas a cada um dos clubes, uma em março
de 2004 e outra em outubro do mesmo ano, ocasião em que foram feitos
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
225
registros fotográficos1 sobre as condições dos banheiros, arquibancadas, corredores e gramado dos estádios e, por último, uma entrevista
semi-estruturada nos moldes em que propõe Augusto Nibaldo Triviños
(1987), com um dirigente de cada um dos clubes pesquisados.
2 A tradição do futebol pelotense
Figura 1: Vista geral do estádio Bento Freitas (G. E. Brasil). Foto: Ricardo Tavares.
Atualmente, existem em Pelotas três clubes profissionais de
futebol: Grêmio Esportivo Brasil, fundado em 7 de setembro de 1911,
cujo estádio é denominado de Bento Freitas e possui uma capacidade
estimada em 18.000 pessoas; Esporte Clube Pelotas, fundado em 11
de outubro de 1908, proprietário do estádio Boca do Lobo que possui
uma capacidade estimada em 15.000 pessoas, (em 2005 o estádio
1
O uso da fotografia com uma técnica capaz de auxiliar na coleta de dados para pesquisa
é uma estratégia que vem ganhando a cada dia uma maior aceitabilidade tanto no campo
das Ciências Humanas, nas Ciências Biológicas e também nas Ciências Exatas. Maiores
considerações sobre a sua utilização especificamente nas Ciências Humanas consultar:
FELDMAN-BIANCO, Bele; LEITE, Mirian Moreira (1998) e SAMAIN, Etienne (1998).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
226
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
está recebendo obras para ampliação dessa dimensão) e o Grêmio
Atlético Farroupilha (o Fantasma2), fundado em 21 de abril de 1926
com o estádio General Nicolau Fico onde pode receber cerca de
6.000 pessoas. As três equipes da cidade de Pelotas ao longo dos
anos consolidaram sua tradição no futebol em âmbito estadual e nacional. G. E. Brasil, E. C. Pelotas e G. A. Farroupilha ostentam em suas
galerias uma série de troféus de inúmeros torneios e campeonatos
dentre os quais se destaca o título de campeão estadual, conquistado
pelos três clubes em 1919, 1930 e 1935, respectivamente.
Figura 2: Pavilhão dos sócios no estádio General Nicolau Fico. (G. A. Farroupilha). Foto:
Ricardo Tavares.
Os torcedores rubro-negros regozijam-se até hoje pelo fato
do G. E. Brasil ter figurado entre os grandes clubes da primeira
2
Fantasma ou fantasminha é o apelido pelo qual o Grêmio Atlético Farroupilha também é
conhecido, este apelido deve-se ao fato do clube ter sua sede e estádio situado no bairro
Fragata, próximo ao cemitério São Francisco de Paula, e também pela tradição de antigamente dar sustos na dupla Gre-Nal.
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Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
227
divisão, tendo alcançado a terceira colocação no Campeonato
Brasileiro de 1985, quando perdeu as semifinais para o Bangu do
Rio de Janeiro. No ano de 2004 o clube foi campeão da cidade e
recuperou sua hegemonia, sagrando-se campeão da segunda divisão do campeonato gaúcho, voltando assim, a partir de 2005, a
pertencer novamente à elite do futebol gaúcho (primeira divisão).
Entre as virtudes do E. C. Pelotas destaca-se a constância da
sua torcida no Estádio da Boca do Lobo. Durante três anos consecutivos (2003, 2002, 2001) o clube apresentou a maior média de público pagante no campeonato gaúcho, dentre os clubes do interior do
estado3. Recentemente o clube disputou competições de âmbito
nacional, como a Copa Sul-Minas (2002) e a Copa do Brasil (2003).
Apesar da fidelidade da torcida e de possuir uma boa infra-estrutura, em 2004 o clube foi rebaixado para segunda divisão do campeonato gaúcho e ainda não conseguiu retornar à primeira.
Figura 3: Estádio Boca do Lobo (E. C. Pelotas). Foto: Ricardo Tavares.
3
Dados retirados do site do E. C. Pelotas, disponível em: www.ecpelotas.com.br.
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228
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
O G. A. Farroupilha atravessa uma situação inversa à do E. C.
Pelotas, após figurar durante anos na terceira divisão (hoje instinta) do
campeonato gaúcho conseguiu ascender para a segunda divisão e em
2004 tornou-se novamente um dos clubes que faz parte da primeira
divisão do campeonato gaúcho, onde se mantém atualmente.
Esses três clubes profissionais não são os únicos clubes de
futebol da cidade, espalhados pelos diferentes pontos da cidade.
Existe uma quantidade enorme de clubes amadores, alguns mais
tradicionais, remanescentes dos anos 20, 30 e 40 e outros mais
recentes, dos anos 70, 80, 90 formando aquilo que podemos chamar de uma cultura futebolística da cidade4.
Essa cultura futebolística, resultante de um século de futebol,
que caracteriza a cidade de Pelotas constitui, nos pelotenses, uma
subjetividade futebolística bastante singular. No meio futebolístico
circulam informações apontando Pelotas como a única cidade do
Estado em que a dupla Gre-Nal (Grêmio e Internacional) não aparece em primeiro lugar quanto ao número de torcedores.
A tradição do futebol somado com a forte rivalidade existente entre G. E. Brasil, E. C. Pelotas e G. A. Farroupilha introjetam
nos amantes do futebol um sentimento clubista citadino que é repassado de geração para geração e mantém-se mesmo quando os
clubes não estão em suas melhores fases5.
3 Estatuto de defesa do torcedor
O Estatuto de Defesa do Torcedor é dispositivo legal, lei nº
10671, de 15 de maio de 2003, dividido em 12 capítulos e 45 artigos
4
Em outro estudo que realizamos especificamente sobre os clubes amadores na cidade
encontramos o Sport Club Campônes que é remanescente de 1910 e ainda está em atividade. Ver: RIGO. L. C. et al. Memórias de Corpos Esportivizados, mimeo, 2004.
5
Sobre a história do futebol em Pelotas, sua constituição, os principais clubes, jogadores
que ficaram conhecidos e o destaque que ele ocupa dentro da historiografia do futebol
gaúcho e brasileiro consultar: RIGO, Luiz Carlos. Memórias de um futebol de fronteira,
2004 e ALVES, Eliseu Mello, 1984.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
229
que foi elaborado sob a coordenação do Ministro do Esporte Agnelo
Santos Queiroz com a participação direta de Márcio Fontes de
Almeida, Marcio Thomaz Bastos, Álvaro Augusto Ribeiro Costa e
foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva6.
Apesar das suas disposições não se restringirem ao futebol
entre as atribuições conferidas ao EDT, destaca-se o combate e a
prevenção à violência nos estádios, a garantia de alguns direitos
do consumidor (torcedor)7 e a tentativa de assegurar uma maior
transparência aos aspectos administrativos do futebol brasileiro.
Partindo da classificação feita por Luis Henrique de Toledo
(2002) o qual divide os personagens do futebol em “profissionais,
especialistas e torcedores”, o EDT afeta de forma mais direta os
torcedores, porém, como o próprio autor assinala, é importante a
observação de que esta distinção de grupos envolvidos com o
futebol é relativa, e há entre eles uma inter-relação permanente.
Durante a entrevista que realizamos com um dos dirigentes do G.
A. Farroupilha foram destacados aspectos dessa inter-relação:
O torcedor é a chave de uma agremiação esportiva [...] aqui se trata com máximo de respeito e consideração todos que vêm ao nosso
estádio, os senhores adentraram nele agora e
viram a grande preocupação que está nos movendo, nos tocando, para que nós possamos
receber esse público carinhosa e respeitosamente (entrevista com E. P. 2005).
O primeiro ponto analisado em nosso estudo se refere ao
cumprimento ou não do artigo sétimo do EDT que trata da divulgação, durante o jogo, por intermédio do serviço de som e imagem
dos estádios, da renda, arrecadação obtida pela venda dos ingres-
Nomes que assinam o estatuto.
Neste caso, o torcedor que freqüenta os estádios, é tratado por muitos, como apenas um
mero consumidor, o que pode se comprovar na leitura de diversos artigos publicados na
internet a respeito das repercussões do estatuto na sociedade, como por exemplo, em
NERY (2005).
6
7
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
230
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
sos, e do número de torcedores presentes em cada partida, (pagantes
e não pagantes). Nos três estádios que visitamos constatamos que
este artigo costuma não ser cumprido em nenhum deles, mesmo
porque os clubes analisados não possuem serviço de som e nem
placar eletrônico em seus estádios. Outro item relacionado à infraestrutura dos estádios observados é o que está disposto no artigo
22 do EDT e trata da numeração dos ingressos e a sua correspondência nas arquibancadas, nesse ponto também verificamos
que os clubes da cidade não conseguiram ou não se preocuparam
em se adequar a essa exigência do EDT. Nos estádios Boca do
Lobo e Nicolau Fico, por exemplo, somente os lugares destinados aos sócios são numerados, já no estádio Bento Freitas não há
sinais de numeração, nas arquibancadas e nem nos lugares destinados aos sócios.
Avaliando o capítulo VI do estatuto que trata do acesso e
transporte do torcedor, percebemos que em Pelotas o transporte
até o estádio deixa muito a desejar, em jogos com maiores públicos geralmente os ônibus encontram-se superlotados e os seus
horários não são divulgados. Também é necessário ressaltar que
nenhum dos estádios possui estacionamento exclusivo e compatível com o público, portanto aquele que utilizar como meio de
transporte um veículo privado, estará sujeito a arranhões, arrombamentos e depredações.
Quanto às normas de higiene e qualidade das instalações
sanitárias exigidas no estatuto, verificamos que em sua maior parte não estão cumpridas. O artigo 29 do estatuto cita que é direito
do torcedor que os estádios possuam sanitários em número compatível com sua capacidade de público, em plenas condições de
limpeza e funcionamento. Em nossa abordagem feita respectivamente em março e outubro de 2004, e fevereiro de 2005 constatamos que havia ineficiência nos três estádios, que apresentavam-se
com dependências inacabadas, sem sanitários, com as paredes
pichadas, áreas sem ventilação adequada, escuras e com odor
extremamente desagradável. Na segunda visita que realizamos
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
231
verificamos apenas no estádio Bento Freitas alguma melhoria dos
sanitários. Segundo o depoimento do dirigente do clube ela foi
possível em função de parcerias estabelecidas com empresários
locais. “Devemos a reforma dos nossos banheiros à iniciativa privada, sem ela não poderíamos ter feito isso, porque, infelizmente, a
despesa é grande, e temos outras prioridades” (Entrevista N. M., 2005).
No estádio da Boca do Lobo, na área destinada aos nãosócios, alguns sanitários parecem receber limpeza periódica. Mesmo assim, em outras dependências desse estádio observamos condições precárias e há necessidade de melhorias. Já no que se refere às condições dos sócios a realidade difere: nos três estádios o
ambiente é limpo e bem iluminado, mantendo condições adequadas de higiene e conforto.
Figura 4: comparação do banheiro dos torcedores do estádio Bento Freitas, à esquerda a
situação do banheiro em março de 2004 e à direita em outubro do mesmo ano. Foto:
Ricardo Tavares.
Outra reclamação constante entre os torcedores, que costumamos ouvir nas ruas em dias de jogos, diz respeito aos preços
dos ingressos, principalmente nas competições oficiais. Em Pelotas,
assim como podemos perceber em outros locais de nosso país, os
clubes vêm procurando executar promoções para atrair os torcedores, de forma que eles possam adquirir os ingressos para uma
seqüência de jogos. Sobre as condições dos torcedores brasileiros, Mack (1980) destaca ser o poder aquisitivo pequeno e toda
semana haver rodada pelos campeonatos, não levando em conta o
Brasil ser um país em desenvolvimento.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
232
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
Segundo o dirigente do E. C. Pelotas, muitas vezes o clube
reduz o preço do ingresso a valores mais acessíveis do que os
parâmetros estipulados para o campeonato, ressarcindo a Federação. No caso do G. E. Brasil, a direção oferece promoções de
pacotes de vendas de ingresso, como foi, por exemplo, a promoção denominada de Sócio-Patrocinador8. No G. A. Farroupilha, E.
P. (2005) informou-nos de que o clube trabalha com duas categorias diferentes para a arrecadação de renda contínua: os associados que pagam a metade do ingresso e têm acesso à arquibancada;
e a modalidade da venda de cadeiras, pela qual o torcedor compra
aquele espaço e está apto a freqüentar todos os jogos no Nicolau
Fico, isento do valor do ingresso.
Quanto à distribuição dos locais de vendas de ingresso, a
orientação do estatuto é de existir no mínimo cinco postos de vendas em diferentes partes da cidade, tendo em vista facilitar a aquisição dos mesmos. Em Pelotas é sabido que isto não ocorre, geralmente os clubes concentram a venda de ingressos em no máximo
dois locais. A importância ou não de seguir esta orientação do
estatuto deve ser analisada levaodo em conta que o seu não cumprimento prejudica os torcedores mais afastados do centro da cidade, os quais, quase sempre, são os de menor poder aquisitivo.
Sobre as insatisfações dos torcedores e sua relação com o
clube, G. G. (2005) nos informou que o E. C. Pelotas disponibiliza
de um processo de ouvidoria do torcedor. Já o G. A. Farroupilha,
segundo E. P. (2005), conta com o auxílio da Brigada Militar para
prestar esse serviço. Além de atender a uma das especificações do
estatuto do torcedor, a ouvidoria, serve para estabelecer um canal
de comunicação e aproximação entre clube e torcedor.
8
Promoção onde o torcedor pagava determinada quantia em dinheiro mensalmente e
estava apto a assistir todas as partidas realizadas no estádio Bento Freitas. Ainda que
não usufruísse nenhum outro benefício como alguma estrutura sócio-recreativa, a promoção foi muito divulgada e comentada por seus torcedores em 2004, seu ano de criação.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
233
Nos estádios de Pelotas há também aqueles problemas corriqueiros dos estádios brasileiros, como, por exemplo, o preço dos
lanches e das bebidas e a dificuldade para adquirí-los durante os
15 minutos de intervalo das partidas.
Por último, preocupamo-nos em analisar a segurança dos
torcedores nos estádios e a violência, tema que assola a maioria
dos estádios brasileiros e é bastante pertinente para o caso de
Pelotas9. Nos artigos 13 e 39, prevê-se punição àqueles que transgredirem a ordem, ou incitarem a violência num raio de cinco mil
metros ao redor da localidade do evento esportivo, e discorre
sobre os cuidados relativos à segurança que deve haver, antes,
durante e após a realização dos eventos esportivos. No caso da
transgressão envolver torcedores a punição prevê o afastamento
dos participantes das dependências do estádio por um período
de três meses a um ano.
Em Pelotas observamos que, principalmente em dia de clássico, a situação da segurança e da violência continua a preocupar
torcedores e clubes. Nas entrevistas realizadas tanto o dirigente
do E. C. Pelotas, como o do G. E. Brasil comentaram que, em dia
de jogos decisivos ou de clássico Bra-Pel, mesmo havendo um
aumento do contingente de oficiais da Brigada Militar, os clubes
estão aderindo a planos alternativos de segurança, como a
contratação de empresas privadas desse ramo. Esse tipo de medida visa a estabelecer um estado de tranqüilidade maior tanto para
o clube, como para os torcedores, evitando que os sentimentos de
rivalidade típicos do futebol se transformem em violência.
Sobre a importância e os riscos que advêm da rivalidade no
futebol Richard Giulianotti (2002) assinala que, se, por um lado à
9
Pelotas registra um histórico significativo de tensionamento e conflitos envolvendo os
clubes da cidade, um dos episódios mais traumatizantes dessa violência ocorreu dia 02/
10/2003. Nessa ocasião, após a final de um Bra-Pel, nas imediações do estádio Bento
Freitas um grupo de torcedores do G. E. Brasil espancou até a morte o empresário e
torcedor do E. C. Pelotas, Gilberto Bonow de 52 anos. (Jornal Diário Popular, 04/10/2003).
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
234
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
rivalidade age como um estímulo para criar uma atmosfera do
jogo, acrescentado que “quanto mais intensa a ‘atmosfera’, mais
aprazível o jogo” (p. 97), por outro lado o próprio autor adverte
que nos casos em que há um “excesso de atmosfera” (p. 97), a
balança tende para o outro lado e a disputa pode adquirir um
estado venenoso ou diabólico.
No tocante à questão da violência nos estádios é importante
observar que adentramos em um assunto que, certamente, extrapola
as constatações relativas à implementação do EDT e ingressa-se
em um outro ponto de discussão, no qual muitas perguntas estão
ainda sem resposta. Como é o caso, por exemplo, de se diagnosticar com maior rigor até que ponto a violência nos estádios brasileiros são ocasionadas pelas torcidas organizadas, ou por torcedores individuais? Luiz Henrique de Toledo (2000, 1999, 1996) concorda que parte da violência nos estádios pode estar relacionada
às chamadas torcidas organizadas, porém discorda dos discursos
que tendem a elegê-las como as únicas promotoras.
Sobre a atualidade e a complexidade envolvendo o tema da
violência e das torcidas organizadas, Carlos Alberto Máximo Pimenta questiona se o fim das torcidas organizadas irá contribuir
para a modernização do futebol e salienta que:
[...] a ritualização, a dramatização e a paixão, dentro do contexto futebolístico, afrouxam
no torcedor seus freios racionais introjetados
pelo modelo civilizador, deixando-o suscetível
a comportamentos inesperados e a violência
independe da classe social, da cor da pele ou
do poder econômico do agressor (PIMENTA,
1999, p. 143)10.
10
Maiores considerações sobre a violência nos estádios de futebol e suas possíveis relações com as torcidas organizadas no futebol consultar: BUFORD, Bill. Entre os vândalos,
1992 e TOLEDO, Luis Henrique de. Lógicas no Futebol., 2002.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
235
4 Considerações finais
Após a realização deste estudo, se por um lado parece claro
e quase redundante afirmar que a elaboração do EDT consiste em
um passo importante para o avanço do esporte brasileiro e mais
ainda quando se trata do caso do nosso futebol, por outro lado é
quase óbvio afirmar a mera promulgação do EDT não ser suficiente para trazer as melhoras que o esporte brasileiro tanto necessita.
Nesse sentido acreditamos se tornar fundamental voltarmos a colocar em pauta o EDT, analisando os avanços, mas também os
riscos e os desacertos nele contidos.
Publicado no mesmo ano em que o EDT entrou em vigor
(2003), um artigo de André Schröder (2005) já se preocupou em
fazer um balanço crítico do EDT, apontando nele algumas incongruências que, no nosso estudo, podemos averiguar de forma
empírica junto à realidade dos clubes pelotenses.
Uma das principais impertinências apontada por André
Schröder (2005), se refere a um certo eurocentrismo presente no
EDT. O autor cita como um exemplo dessa cópia dos modelos
europeus o artigo da numeração dos ingressos, colocando-o como
algo descontextualizado e sem sentido: “a cultura do torcedor brasileiro não é igual à cultura do torcedor europeu. No Brasil, os
torcedores assistem aos jogos de pé, pulando e se deslocando
pelas arquibancadas”. E, acrescenta o autor: “Essa medida irá
tirar a liberdade que os torcedores têm de se movimentar na comemoração do gol, ou então de trocar de lugar quando seu time inverte o lado do campo que joga”. Durante a nossa pesquisa observamos que nos três clubes de Pelotas este artigo vem sendo totalmente ignorado. Se isto não é de todo ruim, já que representa uma
resistência espontânea dos clubes brasileiros, questionamos até
que ponto a existência de artigos ignorados não compromete a
credibilidade e a própria legitimidade do EDT.
Outra preocupação pertinente diz respeito aos riscos que as
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
236
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
alterações e modernizações dos estádios brasileiros possam contribuir para uma maior elitização do nosso futebol. Richard
Giulianotti (2002) alerta-nos para o fato de que todo o processo de
modernização ocorrido nos estádios europeus a partir dos anos 80
e 90, com a instalação de medidas de segurança, estacionamento,
toaletes e quiosques de alimentação — medidas em muitos casos
similares às que propõe o EDT — vieram acompanhadas do aumento dos preços dos ingressos, o que alterou o perfil dos torcedores causado uma elitização do futebol. Segundo ele “a partir de
agora, cada vez mais é menos provável os maiores estádios receberem seu antigo público da classe operária para os principais
jogos” (GIULIANOTTI, 2002, p. 108)11.
Durante as entrevistas realizadas com os dirigentes dos clubes observou-se certa confusão entre as disposições do Estatuto e
o regulamento oficial da competição, no caso dos campeonatos
organizados pela Federação Gaúcha de Futebol. Esta situação, a
nosso ver, pode estar relacionada com a maneira um tanto generalista
como vem sendo feita a divulgação do EDT, dificultando uma
clareza maior sobre os mecanismos de fiscalização e
implementação. Pelo menos no âmbito dos clubes de Pelotas foi o
que encontramos. Segundo o projeto de lei aprovado, o EDT entraria em vigor em sua totalidade seis meses após sua data de
publicação, ocorrida em 15 de maio de 2003.
Sabemos que a maioria dos episódios ocorridos nos estádios
é mais um reflexo da sociedade do que simplesmente a falta de
responsabilidade exclusiva dos clubes. Porém sabemos também
que em muitos casos algumas medidas preventivas por parte dos
responsáveis pela organização do espetáculo podem evitar trágicos acidentes e muitas cenas de violência. Nesse sentido consideramos que mais do que ocorreu durante a sua elaboração é imporBill Buford (1992) em seu clássico livro “Entre os vândalos: a multidão e a sedução da
violência” é outro autor que analisa as transformações que ocorreram no futebol inglês
em decorrência das mudanças dos estádios.
11
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
237
tante que a implementação do EDT aconteça conectada a realidade do mundo futebolístico brasileiro, respeitando as peculiaridades dos clubes, dos jogadores e dos torcedores. Realidade constituída por inúmeros defeitos, mas também por qualidades que são
reconhecidas e invejadas pelo resto do mundo.
Por fim, cabe aqui um elogio às diretorias do G. E. Brasil, E.
C. Pelotas e G. A. Farroupilha pelos cuidados com as condições
dos gramados e pelos esforços que os três clubes vêm tentando
fazer para melhorar as condições dos estádios. Cabe também agradecer e destacar a recepção e a acessibilidade que tivemos dos
clubes e respectivos dirigentes, além de se mostrarem interessados no nosso estudo eles nos revelaram em seus depoimentos
estarem empenhados na tentativa de por em prática o Estatuto de
Defesa do Torcedor e esperam que a implementação do mesmo
traga significativas melhorias para o futebol local.
Spectator’s Statute of Defense: a Dialogue with
the Pelotense Soccer.
Abstract: This study has as objective analyses the
situation of the stadiums of professional soccer of
Pelotas, using as reference the Spectator’s Statute
of Defense (SSD), with special attention to the
conditions of hygiene, safety, entrances and
transport. As methodology, besides documental
analysis of the SSD we realized visits to the
stadiums in three moments where we took
photographic registrations, as well as interviews
with one manager of each club: Grêmio Esportivo
Brasil, Esporte Clube Pelotas e Grêmio Atlético
Farroupilha. We verified that the attention dedicated
for press communication and controllers organs to
implementation of SSD is being less than occurs at
the moment of your publication.
Keywords: Soccer. Statute. Spectator.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
238
Espaço Aberto
Luis Carlos Rigo, et al.
Estatuto de Defensa del Hincha: un diálogo con
el fútbol Pelotense
Resumen: Este estudo objetiva analisar la
situación de los estadios de fútbol de la ciudad de
Pelotas, tomando como referencia el Estatuto de
Defensa del Hincha (EDH), con atención especial
para las condiciones de higiene, seguridad, ingreso
y transporte. Como metodología, además del
analisis documental del EDH realisamos visitas a
los estadios en tres momentos con registros
fotográticos y entrevistamos un dirigente de cada
club: Gremio Desportivo Brasil, Esporte Club
Pelotas y Gremio Atlético Farroupilha. Constatamos
que la atención dedicada en la media y por los
organos fiscalizadores a la implementación del
EDH es menor de la que ocurrió en el momento de
la publicación.
Palabras-clave: Fútbol. Estatuto. Hincha.
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Estatuto de defesa do torcedor: Um diálogo com o futebol pelotense
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Recebido em: 30/08/2005
Aprovado em: 26/09/2005
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 223-239, maio/agosto de 2006.
240
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
241
Consumo e Formação dos Hábitos de
Esporte e Lazer
Fernando Renato Cavichiolli*
Fernando Marinho Mezzadri**
Fernando Augusto Starepravo***
Resumo: O objetivo do texto é iniciar uma análise dos
hábitos de esporte e lazer da população da cidade de
Curitiba. Os dados foram coletados durante o projeto “Viva
o Verão” do Governo do Estado do Paraná. O procedimento adotado para a obtenção dos dados foi a pesquisa
exploratória, com o objetivo de proporcionar uma visão
geral sobre o tema. Os dados coletados por meio da pesquisa exploratória constituem a primeira etapa de uma investigação mais ampla. Neste texto vamos nos restringir à
faixa etária de 18 a 30, que corresponde a um momento
de transição entre a juventude e a vida adulta. A partir dos
dados obtidos, analisamos as seguintes categorias: faixa
etária, renda familiar, grau de escolaridade e como os indivíduos utilizam seu tempo livre. Consideramos também
o estado civil, a paternidade, o grau de maturidade da família (se os filhos moram juntos ou separados dos pais) e
o significado dos consumos de esporte e lazer. Para orientar a discussão de hábitos, tempo livre e consumo, utilizamos os seguintes referenciais teóricos: Veblen e os conceitos de consumo conspícuo, a escola de Frankfurt e o
conceito de indústria cultural e, por último, Featherstone,
que utiliza os conceitos configuracionistas e o consumo.
Acreditamos que esse estudo poderá trazer subsídios para
professores/pesquisadores e gestores públicos, pois possibilitará a compreensão mais aprofundada de algumas
formas de comportamento do cidadão.
Palavras-chave: Atividades de lazer. Esportes. Política
social.
Doutor em Educação, professor da Universidade Federal do Paraná, Departamento de
Educação Física, Centro de Pesquisa em Esporte Lazer e Sociedade (CEPELS).
**
Doutor em Educação Física, professor da Universidade Federal do Paraná, Departamento de Educação Física, Centro de Pesquisa em Esporte Lazer e Sociedade (CEPELS).
***
Mestre em Educação Física, professor da Faculdade Guairacá, Centro de Pesquisa em
Esporte Lazer e Sociedade (CEPELS).
*
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
242
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
1 Introdução
Em janeiro de 2005, estabelecemos uma parceria entre a
Universidade Federal do Paraná e a Paraná Esporte, autarquia responsável pelo planejamento e execução das políticas públicas no
Paraná. Esta parceria propiciou o estudo exploratório sobre a aquisição dos hábitos de esporte e lazer. Posteriormente, apresentamos uma proposta de investigação, a Rede CEDES (Centro de
Desenvolvimento do Esporte Recreativo e do Lazer), muito ampla
e de longo prazo. Nos próximos anos, vamos coletar uma série de
dados no sentido de proporcionar subsídios para o poder público
no que se refere ao esporte e o lazer. A princípio a Rede CEDES
está possibilitando a pesquisa na região metropolitana de Curitiba
e na região do litoral, o que é bastante representativo em termos de
concentração populacional.
A intenção é ampliar gradativamente as faixas etárias, assim
como estender a pesquisa às diferentes regiões do Estado do Paraná.
Outras cidades com mais de 100 mil habitantes, tais como Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu, Cascavel e Ponta Grossa, serão alvos
no futuro.1
A proposta de estudo deriva de discussões sobre consumo e
aquisição de hábitos de esporte e lazer dentro do Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade (CEPELS), do Departamento
de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. Então
decidimos que a primeira pesquisa de coleta de dados deveria ser
exploratória. Assim, direcionamos a pesquisa de campo para a
faixa etária cujo poder aquisitivo começa a se esboçar com maior
força se comparada com o período anterior. É a faixa etária de 18
a 30 anos, que corresponde a um momento de transição entre a
1
A pesquisa sobre hábitos de esporte e lazer da população paranaense está em andamento graças às parcerias com a Paraná Esporte – Departamento de Lazer e com o
Governo Federal. Ministério do Esporte . Secretaria do Desenvolvimento do Esporte Amador e do Lazer.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
243
juventude e a vida adulta. A posse do dinheiro e do poder de
decisão se evidencia mais acentuadamente nessa fase, mas, em
contrapartida, o tempo livre sofre uma queda considerável, assim
como a subordinação ao mundo dos adultos. Aqui, as atividades
consideradas rotineiras ganham força.
A investigação sobre a passagem da juventude para a vida
adulta é de significativa importância para se compreender o sentido da formação de diferentes hábitos, no caso específico a formação de determinadas atitudes expressas no esporte e no lazer. É
um erro se compreender esse momento como uma realidade homogênea, baseando-se no senso comum, e isso ocorre provavelmente porque numa análise geral o tempo livre caminhe numa
perspectiva do mundo do trabalho.
Todavia, gostaríamos de verificar se nessa passagem há possibilidades de os adultos construírem suas normas próprias e modos de ser que não necessariamente estejam vinculados ao denominado mundo do trabalho, ou se as normas são constituídas com
a lógica da racionalidade do mundo do trabalho. Se comparada
com a fase anterior, na juventude os meios de controle social se
evidenciam mais claramente. Entretanto, vamos verificar se não
há resquícios de traços de subjetividades coletivas, liberdade de
escolha e exercício de inserção efetiva nas relações sociais.
Enfim, o esporte e o lazer são simplesmente um adendo do
mundo do trabalho ou podem ser considerados como espaços de
aprendizagem das relações sociais num contexto de transição? Ou
será que o tempo livre, que deveria ser entendido como sinônimo
de liberdade de escolha e liberdade de experimentação, não estaria sendo gasto em lazer, mas sendo transformado em tempo de
penúria, de falta de oportunidades e de opressão?
Teremos mais clareza sobre essas questões quando daqui a
alguns anos oportunizarmos um quadro mais amplo, envolvendo
diferentes faixas etárias. É importante destacar que os dados sobre a utilização do tempo livre por meio de atividade de esporte e
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
244
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
lazer, da população em geral, resultam num quadro de carência.
As ações políticas são desenvolvidas por meio de atitudes voluntárias, sem uma base para que possam ajudar nas afirmações sobre aquilo que as pessoas podem e desejam realizar. O conhecimento sobre essa realidade cultural pode contribuir para planos de
governos ou ações mais efetivas.
As pessoas analisadas neste texto nasceram entre 1975 e
1987, e em função do momento histórico em que passaram a existir estão fadadas a uma caminhada muito próxima se continuarem
em Curitiba, e então é de se esperar que a maioria vivencie essa
realidade em estágios semelhantes: terminarão juntos os estudos,
irão procurar empregos na mesma época, freqüentarão os mesmos
clubes, praças e movimentos culturais juntas e provavelmente terão seus filhos na mesma época.
Este texto procura abrir a discussão sobre a aquisição de
hábitos de esporte e lazer na Rede CEDES, por meio de alguns
autores clássicos das ciências sociais – Veblen e a Escola de Frankfurt (especificamente Adorno e Horkheimer), assim como
Featherstone, que utiliza os conceitos configuracionistas. Além
desses autores, vamos apresentar o resultado parcial das entrevistas feitas com curitibanos durante o Projeto “Viva o Verão”.
2 Algumas leituras sobre consumo
Com o livro intitulado A teoria da classe ociosa, Veblen
(1974) tornou-se um clássico na literatura das ciências sociais.
Nessa obra, o interesse central concentra-se nos temas ligados à
estratificação e à mobilidade sociais e ao surgimento da classe
ociosa, que se originou no interior das classes altas, marcadamente
constituída por pessoas que não exerciam as atividades industriais. O que nos interessa aqui, primeiro, é a discriminação de ocupações, traço marcante para o surgimento da classe ociosa. A ocupação dessa classe apóia-se em quatro tipos de atividades: governamentais, guerreiras, religiosas e esportivas. Segundo, que a acumu, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
245
lação de riqueza e propriedades é um fator importante de diferenciação social, todavia ela não é suficiente para alcançar prestígio.
Os componentes da classe superior têm que patentear, aos
olhos da sociedade, seu distanciamento com relação às atividades
produtivas. Esta manobra ocorre justamente nas atividades consideradas de lazer: ocupações não-industriais (ligadas à proeza),
política, espetáculo, guerra, domínio das boas maneiras, domínio
de línguas e outros hábitos que possam atestar que o indivíduo
dispensa tempo e dinheiro aprimorando suas habilidades em ocupações que são consideradas dignas, na medida em que resultam
em utilidade para o agente, como o aumento do conforto físico que
o consumo de bens proporciona.2
Portanto, o consumo para Veblen (1974) apresenta duas hipóteses: a) atendimento tanto das necessidades físicas do consumidor (conforto material) como das suas necessidades espirituais,
estéticas e intelectuais; b) ocorre devido à emulação. A posse da
riqueza (propriedade) confere honra. Na sociedade industrial, os
hábitos dos seres humanos convergem para a acumulação de bens,
que seria sinônimo de sucesso. Isso modifica o hábito de pensar,
ou seja, no lugar das façanhas predatórias entra o ato de acumular.
Aquilo que é consumido pode ser considerado como supérfluo,
mas depois são incorporados para dar prestígio, isto é, mudança
psicológica que passa a proporcionar bem-estar espiritual. Isso
significa que consumir determinados objetos ou ter certos hábitos
passa a obedecer a uma certa ordem moral, ou seja, há uma finalidade em consumir mais e mais.
O padrão de vida é dado pelo consumo ideal. O motivo é a
competição, pois o estímulo é a comparação individual, que nos
2
Em comparação com as atividades industriais, consideradas rotineiras: o trabalho na
indústria, o esforço para criar e transformar a matéria passiva e bruta, isto é, todo ato que
não envolva proeza é considerado indigno. Cabe ressaltar que para Veblen tal discriminação entre proeza e trabalho rotineiro é ofensiva e injusta. Entretanto, cabe a ele entender
a sociedade como ela é, e não como ele deseja que esta venha a ser.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
246
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
instiga a superar aqueles que pertencem à nossa classe. Já o padrão de decência é dado pelo hábito que vigora entre a classe logo
acima. Em última instância, a classe ociosa dita a regra do respeito, ou pelo menos o que dá respeito (é a valorização do TER em
relação ao SER, no caso da sociedade moderna). Esses padrões
são formulados de uma forma muito lenta, moldando os usos e as
atitudes das classes inferiores.
O padrão de vida é por sua natureza um hábito. O consumo
não é determinado pelo código genético. Mas os costumes mais
antigos são os mais arraigados e persistentes. Esses hábitos podem se tornar os primeiros numa escala de valores, isto é, as exigências mais baixas ou mais elementares. Um exemplo cotidiano
seria o pão e leite versus o cigarro.
Quais são as variáveis para manter ou adquirir novos hábitos? Tendências e características de temperamento valem tanto
quanto o tempo em que determinado hábito se repete. Os homens
apresentam alguns hábitos coincidentes, e estes podem causar grande influência sobre o bem-estar. Mas o desempenho recai sobre a
competição e a comparação individual. Isso equivale a dizer que,
em qualquer comunidade onde os gastos conspícuos constituam
uma parte do esquema de vida, um aumento na capacidade individual de gastar se canalizará provavelmente num sentido já consagrado do consumo conspícuo. Nas sociedades industriais isso se
exprime pela expressão de alguma forma de desperdício conspícuo. Supridas as necessidades básicas da vida, o ser humano se
rivaliza pelo acúmulo de bens. Assim como a propriedade se torna
a base convencional da estima social, isto é, nenhuma posição
honrosa na comunidade é possível sem ela. Em síntese: a posição
social se estabelece pela riqueza e um certo padrão de proeza.
Ter lazer é um sinal de riqueza. Por meio dele (consumo
conspícuo), é possível obter respeito e demonstrar força pecuniária
e força superior. Mostra que a classe ociosa pode despender tempo para tal atividade, e esta não se constituir em trabalho. Isso se
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
247
torna um hábito mental associado a honra e nobreza. O consumo
conspícuo significa que o consumo de qualquer bem serve basicamente para manter o prestígio social, o status. Dessa forma, para
Veblen (1974) as pessoas efetivamente se ocupam e se preocupam
com a exibição conspícua de lazer.
Outra forma de perceber o consumo é por meio dos trabalhos
de Adorno e Horkheimer (1986), autores da Escola de Frankfurt.
Inicialmente apresentamos sumariamente alguns conceitos desses
autores. A Escola de Frankfurt, ao tratar da categoria indústria
cultural, estabeleceu relações entre produção material e produção
simbólica, para posteriormente refletir sobre as formas como são
estabelecidas culturalmente. Para tanto, alguns termos serão brevemente discutidos, dos quais destacamos produção de bens culturais, cultura, massa, indústria cultural.
Passamos a apresentar a discussão teórica elaborada pelos
autores sobre o conceito de produção de bens culturais. Uma das
características da sociedade moderna é de ter possibilitado o contato de milhões de pessoas com o que se produz culturalmente.
Mas o acesso nesse caso significa que tipo de participação? Como
esses bens culturais são produzidos, e de que forma se inserem na
sociedade? Antes mesmo de buscar respostas a estes
questionamentos, outro se faz prioritário: a cultura que emerge é
produzida pela massa? Adorno e Horkheimer (1986, p. 114) em
Dialética do esclarecimento, nas páginas iniciais do item “A indústria cultural: o esclarecimento como mitificação das massas”,
afirmam que “sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é
idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele
começa a se delinear [...]. A verdade é que não passam de um
negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar
o lixo que propositalmente produzem.” Diante disso, os bens culturais com os quais as massas entram em contato advêm da
subsunção do valor de uso de troca das mercadorias, submetendose às regras da mercantilização e da industrialização.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
248
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
A produção e a reprodução da cultura obedecem à mesma
lógica da construção de qualquer outro tipo de mercadoria. Assim,
Adorno e Horkheimer não utilizam a expressão cultura de massas,
substituindo-a por indústria cultural. No ponto de vista dos autores, o conceito de indústria cultural está relacionado ao processo
de mercantilização da cultura na sociedade capitalista. Já a terminologia cultura de massas carrega consigo a idéia dos costumes
que surgem espontaneamente no interior das massas, falseando a
clarificação do significado utilizado atualmente do termo cultura,
que emerge pautado na racionalidade técnica, na mecanização da
produção dos bens culturais:
A construção de um ego sadio e de uma sociedade mais justa depende do estranhamento da
subjetividade em relação ao mundo fenomênico
e da sua conseqüente objetivação e
reapropriação, fornecendo as bases estruturais
da cultura. Deve-se, no entanto, estar alerta
tanto para a tendência de negação das condições sociais que determinaram sua produção,
como para a outra face da moeda que diz respeito à tentativa de compreender a cultura como
mera configuração da realidade, como mera
adaptação. Ambas as situações acabam por
convergir naquilo que Adorno chamou de
semicultura, ou seja, a difusão de uma produção
simbólica onde predomina a dimensão instrumental voltada para a adaptação e o conformismo, subjugando a dimensão emancipatória que
se encontra “travada”, porém não desaparecida (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 58).
A produção cultural é falsamente democratizada. A possibilidade de sobrevivência da cultura está na probabilidade de se
restabelecer a sua função crítica. O fato de se acreditar que a
massificação por si só garante o fim das desigualdades entre grupos sociais é um tanto perigoso, e no mínimo ingênuo.
Isso pode ser muito bem observado se retrocedermos historicamente, ao tempo em que a cultura não tinha ainda adquirido o
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
249
valor de troca. As facilidades de poder contemplar ou participar
dessas modalidades esportivas e de lazer ao final do século XX
não significa democracia, espontaneidade ou felicidade. Para Adorno, “[...] a diversão é o prolongamento do trabalho no capitalismo
tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de
trabalho mecanizado para se pôr de novo em condições de
enfrentá-lo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 61-62).
Ao mesmo tempo em que a produção cultural segue a
racionalidade da indústria (privilegiando a técnica, o ritmo de produção, a divisão de tarefas, os aspectos burocráticos, o valor de
troca dado à “mercadoria cultural”), paralelamente é capaz de se
adaptar, principalmente em virtude da flexibilidade do sistema
capitalista de produção em absorver, em sua lógica, quaisquer
tipos de valores e comportamentos, que poderiam estar em contradição com seus princípios gerais.
Como conseqüência, a produção simbólica não é apenas indústria – como seria mais fácil de se supor, seguindo o modelo da
racionalidade técnica – e nem só cultura, pois a sua produção está
em consonância com as leis do mercado, que a identificam com
características particulares.
A cultura moderna aplica a tudo uma aparência de semelhança, trazendo consigo a sensação de que cada indivíduo é um ser
autônomo, que pode fazer valer sua própria vontade. E cada vez
mais essa idéia é coesa no interior da sociedade. Quando um grande número de pessoas participa da compra de um mesmo produto
ou da possibilidade de apreciar determinados espetáculos artísticos, esses acontecimentos são enaltecidos por aqueles que defendem a indústria cultural, cuja base de explicação baseia-se na
tecnologia: “[...] o fato de que milhões de pessoas participam
dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez,
tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a
satisfação de necessidades iguais [...]. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por
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Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
que são aceitos sem resistência.” Na realidade, o que não se
explicita “[...] é que o terreno no qual a técnica conquista seu
poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais
fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é
a racionalidade da própria dominação” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1986, p. 114).
É uma questão de negócio, e os valores orçamentários da
indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, isto é,
a cultura é consolidada e reproduzida priorizando o princípio da
comercialização de seus produtos. E os homens – que agora não
são mais homens no sentido lato da palavra, mas rotulados de
consumidores, diferenciados por letras A, B, C, das tabelas estatísticas dos institutos de pesquisas – vivem da ilusão de que a
indústria cultural proporciona a livre concorrência e a possibilidade de escolha. “A necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 114). A frase dos autores expõe como a sociedade vai se tornando igual através do desaparecimento das diferenças, uniformizada pelo sistema. Portanto, ocorre a desvalorização do sujeito, pois cada vez mais o indivíduo vai desaparecendo invadido pelo social. Passa-se a valorizar o coletivo, o que significa a exploração da racionalidade através da otimização do processo técnico. Isso leva Adorno e
Horkheimer (1986, p. 119) a afirmar:
A violência da sociedade industrial instalouse nos homens uma vez por todas. Os produtos
da indústria cultural podem ter a certeza de
que até mesmo os mais distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo de
gigantesca maquinaria econômica que, desde
o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho, [grifo nosso].
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
251
No lazer as pessoas acabam se orientando pelo mesmo processo técnico que caracteriza a produção. Portanto, o tempo livre
passa a ter a conotação contrária ao seu próprio conceito, pois
nele se prolonga a submissão dos processos verificados no trabalho. Parece evidente a hipótese de que a “produção regula o consumo tanto na vida material quanto na vida espiritual, sobretudo
ali onde se aproximou tanto do material como na indústria cultural” (ADORNO, 1995, p. 80). Isso significa que, mesmo onde o
indivíduo está subjetivamente convicto de operar por vontade própria, essa aspiração é modelada. A indústria cultural proporciona
“produtos” para o tempo livre. Estes produtos não permitem ir
além do óbvio e reproduzem, através da perfeição técnica, o mundo exterior.
Conforme observa Costa (1994, p. 183):
O processo de instrumentalização do saber
para o controle da natureza se volta para a
repressão do homem e atinge todos os campos
da vida humana e encontra na indústria cultural, no lazer administrado, formas continuadas de mistificação e de alienação da realidade. A racionalidade positiva mutila a imaginação e a indústria cultural, a partir de sua
lógica de padronização, incorpora às técnicas
e formas de mensagem as regras da produção
econômica. Daí se pensar no lazer como extensão do trabalho e da lógica da mercadoria
que intermedia as relações sociais e a produção de bens artísticos e culturais.
O tempo livre como um momento propício para a reflexão,
que ofereceria condições de uma certa independência, de um certo
distanciamento da própria sociedade que o produziu, não se estabelece na sociedade subordinada ao valor de troca. O uso do tempo livre se dá através da dependência aos processos industriais.
Subordinando da mesma maneira o tempo de trabalho e o tempo
livre, restringe a produção espiritual do homem:
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Espaço Aberto
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[...] a produção capitalista os mantém tão bem
presos ao corpo e alma que eles sucumbem sem
resistência ao que lhes é oferecido. Assim como
os dominados sempre levaram mais a sério do
que os dominadores a moral que deles recebiam,
hoje em dia as massas logradas sucumbem mais
facilmente ao mito do sucesso do que os bemsucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza.
(ADORNO; HORKHEIMER; 1986, p. 125).
Portanto, de acordo com Adorno e Horkheimer, (1986) nem
em seu trabalho nem no tempo livre os indivíduos dispõem de real
liberdade. Normalmente a indústria cultural não tolera o novo. O
fato de que novas técnicas se aperfeiçoem na produção em massa
não significa necessariamente aceitar o novo fora do sistema, pois
aceitá-lo seria correr riscos. O que pode surgir de novo no tempo
livre das pessoas tem que necessariamente se adaptar ao que determina o consumo.
Além da necessidade de adaptação, o novo não deve extrapolar
a diversão. A diversão permeia toda a indústria cultural, e mantém
sob controle seus consumidores através deste princípio. A diversão é a chave para se manter a idéia de negócio, de propagar o
poder da indústria cultural, procurando se identificar com a necessidade produzida. Sobre diversão, o prolongamento do trabalho e
a necessidade do consumidor em não ter pensamento próprio,
Adorno e Horkheimer (1986, p. 128) explicam:
[...] a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação de mercadorias destinadas à diversão, que essa pessoa não pode mais perceber
outra coisa senão as cópias que reproduzem o
próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada: o
que fica gravado é a seqüência automatizada
de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só pode esca, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
253
par adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a
doença incurável de toda diversão. O prazer
acaba de congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve
mais exigir esforço e, por isso, tem que se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais.
Estamos diante de uma diversão que limita a ação reflexiva,
pois o pensamento é suprimido e/ou fragmentado. As informações
desfilam à frente de nossos olhos na sociedade numa velocidade
espantosa, absorvendo o consumidor na sua totalidade. Os momentos de reflexão são ínfimos para o consumidor que busca na
diversão do consumo massificado uma vida mais humana para os
homens. Mas não podemos esquecer que a capacidade técnica
está a serviço da ideologia voltada para o negócio. Como negócio,
não exclui qualquer possibilidade, prevalece a idéia do “tudo pode”.
Todavia, o prazer e a diversão permitida pela indústria cultural não estabelece um vínculo com a vida cotidiana, pois se constituem em promessas e ilusões que não se realizam, mas que ajudam as pessoas a dominar suas emoções na vida real. A indústria
cultural transforma a diversão numa grande mentira, “[...] cada
espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo
privá-las disso é a mesma coisa” (ADORNO, HORKHEIMER,
1986, p. 132). O que se permite é a exploração dos sentimentos, do
amor ao ódio, do riso ao choro. Divertir-se significa não ter o que
pensar, esquecer o sofrimento até onde ele é mostrado, “é na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim,
mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa
subsistir” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 135). Numa sociedade onde prevalece a relação de troca entre os indivíduos, a
possibilidade de crítica é minimizada.
Concentrando-se na teoria configuracionista e em como são
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Espaço Aberto
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definidas a maneiras como as pessoas se comportam com relação
ao consumo, optamos em utilizar os estudos de Mike Featherstone.
De acordo Featherstone (1995), a emergência de um modelo
cultural novo, a partir dos anos 50, é caracterizada pela expansão da
importância da cultura nas sociedades ocidentais contemporâneas.
O autor apresenta três vertentes teóricas sobre cultura de consumo.
A primeira vertente tem como premissa a expansão da produção
capitalista de mercadorias. Para a economia clássica, o objetivo de
toda produção é o consumo. A expansão de novos mercados e a
educação de novos consumidores por meio dos meios de comunicação de massa possibilita à produção capitalista produzir maiores
oportunidades de consumo controlado e manipulado.
A lógica do capital explica a progressiva destruição da cultura tradicional e da alta cultura, uma vez que todas as diferenças
essenciais, as tradições culturais e qualidades são transformadas
em quantidades. Seria possível argumentar que é possível o cálculo instrumental racional de todos os aspectos da vida.
Para receber os produtos, a mídia e a publicidade se encarregam de educar os consumidores. Essa é uma forma para explicar
a gradativa modificação ou então destruição da cultura tradicional
e da alta cultura, embora encontre dificuldades para explicar as
práticas e as experiências reais de consumo. De um lado, é considerado como um fenômeno que proporciona uma democratização
cultural; por outro, como um fenômeno de manipulação ideológica
e controle implícito da população.
A segunda vertente deriva de estudos sociológicos e ressalta
o uso da mercadoria como forma de criar vínculos ou estabelecer
distinções sociais. As mercadorias não carregam consigo somente
o valor de produto acabado, há também um valor agregado, o valor
simbólico, encarregado de enfatizar um estilo de vida, demarcando as relações sociais (o consumo conspícuo, marco da obra de
Veblen, por exemplo):
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Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
255
É nesse sentido que podemos designar o aspecto “duplamente” simbólico das mercadorias nas sociedades ocidentais contemporâneas:
o simbolismo não se evidencia apenas no design
e no imaginário embutido nos processos de
produção e marketing; as associações simbólicas das mercadorias podem ser utilizadas e
renegociadas para enfatizar diferenças de estilo de vida, demarcando relações sociais.
(LEISS, 1995, p. 35)
Existe uma tendência nas sociedades ocidentais contemporâneas para a oferta de mercadorias em constante renovação, o
que torna muito mais complexo o problema da leitura do status ou
da posição hierárquica do portador das mercadorias. O tempo
despedido para adquirir o conhecimento capital cultural, que capacita pessoas ou grupos de pessoas na classificação das mercadorias, torna-se essencial. Para serem consumidas as mercadorias,
necessitam obviamente de um nível de renda elevado, como também de competência para julgar os bens e serviços simbólicos.
Isso exige um investimento capital cultural e simbólico durante
toda a vida, além de tempo investido na manutenção de atividades
de consumo. Nas condições de uma oferta cada vez maior de bens
simbólicos, cresce o desejo de usufruir, popularizando e tornando
acessíveis a públicos cada vez maiores; isso faz com que ocorra
uma eterna perseguição por novos bens simbólicos, a fim de se
estabelecer uma diferenciação no estilo de vida. A cultura é
corporificada, e isso não se refere somente à identificação de quais
mercadorias estão sendo usadas, mas também de como são usadas.
A terceira vertente envolve os prazeres emocionais do consumo, os desejos e sonhos do imaginário cultural consumista, explorando a idéia de que o consumo não se relaciona somente com
a produção de mercadorias. Na sociedade contemporânea existe a
promessa de que a disciplina e o sacrifício destinado ao trabalho
apresentariam como resultado final a superação da escassez, e
conseqüentemente o atendimento das necessidades e os prazeres
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Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
do consumo. Desse ponto de vista, o consumo é um auxiliar do
trabalho e conserva os rumos da produção. Os seres humanos
estariam vivendo sobre a tensão do trabalho árduo e disciplinado
e a exploração emocional do consumo. Seria como se durante o
dia os homens mantivessem os valores pequeno-burgueses antigos ou tradicionais, e durante a noite assumissem a postura do
homem rico e ocioso, que geralmente se entrega a uma vida social intensa.
Featherstone (1995) assinala que as pesquisas dirigidas aos
deslocamentos e à transformação da noção de cultura não deveriam estar atentas à escassez, mas sim ao excesso de produtos e
mercadorias. Basicamente essa vertente convida os pesquisadores a pensar em contraposição às teorias inspiradas nas noções de
racionalização, mercantilização e modernização da cultura. No
interior desse convite, Featherstone (1995) coloca em evidência
um novo ângulo de entendimento, que está centralizado no desfrutar desse excedente, espaço tradicionalmente caracterizado pela
possibilidade de ocorrência de transgressões e protestos:
A tradição popular dos carnavais, feiras e festivais proporcionava inversões e transgressões
simbólicas da cultura “civilizada” oficial e estimulava a agitação, as emoções descontroladas
e os prazeres físicos grotescos, diretos e vulgares da comida farta, da bebida embriagante e
da promiscuidade sexual. Esses eram espaços
“liminares”, onde o mundo era posto de cabeça para baixo, os tabus e as fantasias eram
permitidos, sonhos impossíveis poderiam se
realizar (LEISS, 1995, p. 42-43).
Vários locais podem ser tomados como lugares que proporcionaram um duplo papel: lugar de expor a mercadoria e lugar de
diversão. As feiras livres, as lojas de departamento ou os parques
temáticos se constituíram em espaços de desordem ordenada, que
reelaboraram os controles emocionais frente a uma nova forma de
viver. É preciso disciplina e controle para transitar nos lugares que
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
257
expõe as mercadorias, contemplar, olhar e não agarrar, aproximar-se das pessoas sem se sentir ameaçado. As mercadorias e as
imagens podem evocar perturbações, desejos e prazeres, mas é
necessário manter o autocontrole. Assim os seres humanos aprenderam a controlar mais facilmente as oscilações entre a ordem e
a desordem, a consciência do real e a fantasia. Em suma, a forma
de se movimentar nestes locais requer um alto grau de controle
das emoções.
Para Featherstone (1995), a cultura de consumo da atualidade parece estar ampliando as situações e os contextos em que os
comportamentos são aceitáveis, pois as pessoas cada vez mais
adotam uma postura aberta às formas de expressão emocional:
A cultura de consumo da atualidade não representa nem um lapso do controle, nem a instituição de controles mais rígidos; mas, antes, a corroboração dos controles por uma estrutura gerativa subjacente flexível, capaz de
lidar ao mesmo tempo com o controle formal
e o descontrole, bem como facilitar uma troca
de marchas confortável entre ambos.
(FEATHERSTONE , 1995, p. 48)
Portanto, na sociedade contemporânea, existe menos interesse em construir um estilo coerente do que em expandir a série de
estilos já conhecidos, como alta cultura e cultura popular, e jogar
com essas possibilidades. Na tentativa de compreender a dimensão cultural cotidiana, há algo bastante complexo por sua própria
natureza: temos que investigar como se dá o relacionamento entre
a produção e circulação das teorias e a produção e circulação
mais ampla das experiências culturais cotidianas. Em suma, temos
que explicar dois aspectos: o teórico e o cotidiano, abrangendo as
mudanças na produção, no consumo e na circulação de bens e
práticas culturais.
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3 Entrevistas
O caminho percorrido para a obtenção dos dados foi a pesquisa exploratória. A utilização desse tipo de pesquisa, caracterizada por apresentar uma menor rigidez no planejamento, justificase nesse caso: a) pelo tempo restrito entre a confirmação do convênio entre a Universidade Federal do Paraná e a Paraná Esporte,
e a execução do projeto “Viva o Verão”; e b) no início do ano de
2005, tínhamos como objetivo de proporcionar uma visão geral
sobre a formulação dos hábitos de esporte e lazer, pois o tema é
bastante genérico e a delimitação dos procedimentos careciam de
um projeto que denominamos de “piloto-exploratório”. Os dados
coletados por essa pesquisa exploratória constituíram a primeira
etapa de uma investigação que se pretende mais ampla – que no
momento apresenta uma preocupação metodológica mais refinada, levando em consideração procedimentos de amostragem e técnicas quantitativas de coletas de dados – e foi de extrema valia no
caminho a ser estabelecido.
Neste texto, estamos tratando dessas entrevistas exploratórias
realizadas durante o mês de janeiro de 2005, no litoral paranaense,
por mais de 03 bolsistas estudantes de Educação Física. Todos
foram treinados para esta tarefa, com simulações feitas no Departamento de Educação Física da Universidade Federal do
Paraná, por meio professoras e professores voluntários. As entrevistas foram elaboradas de forma semi-estruturada, isto é, a
maioria das perguntas apresenta uma alternativa para a resposta,
sendo que em 6 das demais perguntas os entrevistados poderiam
se manifestar por meio de questões abertas. O número total de
questões foi de 17. Foram entrevistadas 24 pessoas, mantendo a
proporcionalidade entre os gêneros. Basicamente, as perguntas
abordaram as atividades rotineiras; as atividades semi-rotineiras, que podem abrigar atividades com certo grau de interesse
próprio; e as atividades que normalmente se distanciam das atividades ordinárias e podem provocar o riso e o choro, a alegria
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
259
e a tristeza, o medo e o prazer. Também procuramos detectar as
barreiras que impedem a participação no esporte e no lazer. Na
análise das questões utilizamos dessas três categorias (rotineiras, semi-rotineiras e recreativas) (ELIAS, 1986).3 Portanto, a
opção para a análise foi por meio de categorias pré-estabelecidas.
A análise poderia ocorrer através do campo, mas como parte de
uma pesquisa exploratória, buscamos a teoria de Elias para dar
sustentação na analise das questões.
A faixa etária abordada pelas pesquisas corresponde ao período de passagem da adolescência para a vida adulta (de 18 a 30
anos), na qual a maioria das pessoas já tem alguma preocupação
com o seu sustento. Não é uma passagem abrupta, mas
gradativamente as atividades rotineiras se tornam mais marcantes
com relação ao tempo dedicado à família, aos estudos e ao trabalho. Todavia, há indícios de que as experiências no lazer se tornem
mais ativas.
A idade cronológica não é, por si só, um componente suficiente para explicar todas as diferenças. Outros fatores, como
sexo, estado civil e filhos, são apresentados como elementos que
podem influenciar as atividades de lazer. Vamos agora à interpretação dos dados.
Os homens não têm o hábito de auxiliar nos afazeres da casa,
embora existe a propensão de realizarem essas tarefas esporadicamente. Em contraposição, as mulheres nessa faixa etária auxiliam
normalmente nos afazeres domésticos, mesmo aquelas que têm uma
rotina diária de mais de 8 horas de trabalho. Há um grupo de mulheres que apresentam uma carga horária de trabalho elevada, mas
mesmo assim dedicam parte do seu tempo livre dos fins de semana
para os afazeres domésticos. Isso independente da renda familiar.
3
No capítulo 2 os autores apresentam uma tipologia para o lazer, inserindo vários exemplos e explicando detalhadamente o que vem ser as atividades rotineiras, semi- rotineiras
e as demais voltadas para a quebra da rotina.
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260
Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
As mulheres com renda familiar reduzida, se comparadas com
as mulheres com renda superior, procuram participar das atividades religiosas (que podem apresentar uma escolha própria, mas
também podem se transformar em atividades rotineiras), com maior freqüência no transcorrer da semana. Outro dado corriqueiro
entre as mulheres é que as que apresentam maior tempo de estudo
em escolas particulares são as que mais trabalham e têm renda
salarial mais alta. Portanto, o investimento em educação normalmente garante maiores possibilidades de ganhos mensais, e com
menor quantidade de tempo livre.
Com relação aos homens e as atividades religiosas, podemos
afirmar que na maioria dos casos os mesmos não têm o hábito de
freqüentar os espaços relacionados a essas atividades. No caso de
levarmos em consideração a participação em grupos espontaneamente, notaremos que na soma dos gêneros as atividades religiosas aparecem em segundo lugar. Elas perdem para os clubes
associativos, o que demonstra que este espaço representa um
ambiente importante de sociabilidade. Não podemos esquecer que
as características dos clubes citados são de direito privado, cobram
mensalidades, embora não apresentem como objetivo o lucro.
A amostra revelou que os homens não têm hobbies e nem o
hábito de trabalhar voluntariamente. Uma parte significativa dos
entrevistados freqüenta curso de graduação, estendendo seus estudos em cursos de especialização ou cursos que possibilitem
investimentos técnicos pessoais. Outra parte dos entrevistados
trabalha mais de 44 horas semanais e justifica que no tempo livre
procuram ficar com a família, executar tarefas rotineiras no comércio local ou simplesmente se divertir.
Com relação às atividades menos rotineiras, os adultos apresentam uma forma muito variada de utilização do tempo livre. Na
maioria dos casos este tempo livre se evidencia nos fins de semana e nos feriados. Nesse espaço de tempo mais prolongado, não há
um destaque especial indicado pelas mulheres; é comum citarem
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
261
o divertimento como busca final, o namorar ou simplesmente se
reunirem em pequenos grupos, nos locais mais diversificados. Há
que se notar que com o matrimônio o espaço feminino e o círculo
de amizades se restringem. Os espaços da casa e de familiares são
os mais freqüentados. Isso permite inferir que os adultos têm mais
disponibilidade de tempo para dedicar-se aos familiares e amigos.
Entre os homens, destacam-se as atividades de cunho
associativistas, realizadas principalmente no período vespertino e
voltadas ao esporte.
Para os homens a televisão e a internet são acessadas por
mais de três horas diárias cada uma, sem uma supremacia de uma
sobre a outra. Essa atividade é a ocupação que consome a maior
parte do tempo de lazer de ambos os sexos. Entre as mulheres, a
média de tempo de acesso à internet é o dobro do tempo que estas
dispensam à televisão. Esse dado é no mínimo curioso, porque
popularmente a televisão associa as novelas ao público feminino.
Temos que considerar que a pesquisa não distingue se as horas
gastas na internet são mais relacionadas ao prazer e à diversão ou
a trabalho ou formação intelectual.
Com relação às atividades menos rotineiras, entre os homens
aparecem em maior freqüência, em ordem decrescente: restaurante, cinema, teatro, viagem nos feriados. Nas atividades consideradas esportivas, voleibol, surfe e basquetebol aparecem com certa
freqüência, mas o futebol é o mais citado. Além disso, os jogos
eletrônicos, escutar música e a caminhada são práticas comuns.
Percebe-se que há maior incidência das atividades esportivas no
início da faixa etária pesquisada, isto é, com o aumento da idade
ocorre uma menor busca pelas atividades esportivas. O menor
tempo para as atividades esportivas também ocorre com os casais
com filhos.
Como atividades menos rotineiras, as mulheres buscam mais
freqüentemente ir a restaurantes. Empatadas em segundo lugar
estão atividades como dançar, caminhar e ir ao cinema; na seqüên, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
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cia, atividades físicas (que se resumem ao esporte voleibol4, à
academia e à hidroginástica) e assistir filmes e escutar músicas em
casa. Com menor freqüência aparecem as viagens.
Há algumas alternâncias entre os gêneros com relação à ocupação do tempo livre. As atividades culturais são as mais citadas
pelas mulheres, enquanto as atividades esportivas são as mais
mencionadas pelos homens. Próximo aos 30 anos ocorre um menor interesse pelas atividades esportivas. Se considerarmos os
encontros sociais como atividades de lazer e entretenimento, não
ocorrem variações entre os gêneros.
Essa comparação entre os homens e as mulheres acaba evidenciando, no que se refere a gênero, a tradição brasileira com
relação à ocupação espacial: os homens parecem circular mais à
vontade no espaço público, enquanto as mulheres estão muito mais
próximas ao espaço da casa e têm menor possibilidade de praticar
atividades fora do âmbito doméstico.
Os locais mais citados para o convívio social são os bares, as
casas noturnas, a própria casa, as casas de amigos, os parques públicos, os clubes particulares e as praças públicas. Entre as mulheres, a falta de tempo livre é o motivo mais citado para repetição dos
hábitos mais freqüentes de lazer, isto é, elas anseiam em aprofundar
seus estudos, praticar esportes, ir com maior freqüência a programas culturais, mas lhes falta tempo para essas atividades.
Com relação aos projetos culturais elaborados por algum
órgão governamental, a grande maioria aponta que não participaram desse tipo de programa nos últimos anos. Todavia, citam que
na adolescência e na juventude participaram de muitos projetos de
esporte e lazer. Entre eles os mais citados foram os jogos escolares, os Jogos da Juventude, os Jogos Regionais e os Jogos Abertos
4
Há certa coerência com relação aos esportes, porque na adolescência o voleibol é o
mais citado por esse grupo.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
263
do Interior. Projetos culturais como visitação a museus e teatros e
ainda passeios aos parques fizeram parte do período que antecedeu a idade adulta, e normalmente ficaram a cargo das escolas.
Com a chegada da idade adulta, há um corte profundo na importância da escola na influência de programas culturais, pois não há
relatos de utilização das escolas nos fins de semana para eventos
esportivos, de lazer ou culturais.
Os entrevistados que freqüentam os cursos superiores mantêm a mesma prática de não utilizar os equipamentos dos locais de
estudo nos fins de semana. São raros os casos de adultos em cursos superiores que mantêm uma relação com o espaço acadêmico
fora do horário de aula com a finalidade da prática de esporte e
lazer. Quando este item apareceu nas respostas às entrevistas, não
estava relacionado aos esportes de forma lúdica, e sim a treinamentos esporádicos de equipes ligadas aos jogos universitários ou
a atividades como coral ou participação na política estudantil.
Dos poucos universitários que indicaram esta participação, todos
provinham de faculdades públicas.
Nesta pesquisa, que enfatiza a idade de 18 a 30 anos, notamos que há uma variedade de situações que impedem a prática
das atividades lúdicas. Tanto os homens quantos as mulheres que
nessa faixa etária são pais, enfatizam que a maioria do tempo livre
é utilizada em função dos filhos. A grande maioria dos entrevistados afirmou que não faz tudo o que realmente deseja. Os filhos
são apresentados como a terceira maior barreira para o divertimento. Nessa faixa etária, os recursos econômicos são citados
como principal empecilho para a realização daquilo que as pessoas pretendem fazer. Entre as diferentes faixas de renda, não há
grandes variações nesse índice.
O que chama a atenção são as diferenças nos níveis de escolaridade: adultos com escolaridade de curso superior alegam que
a maior barreira para a realização do que gostariam de fazer é a
falta de tempo livre e não necessariamente a falta de recursos
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Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
financeiros. Há uma grande frustração entre os adultos com relação ao tempo livre, pois há uma inversão daquilo que na fase da
juventude eles tinham: maior número de situações de tempo livre,
que concorriam com menor poder econômico e maiores restrições
familiares. Agora que apresentam maior autonomia financeira e
decisória, são restringidos pelo padrão racional da indústria, que
muitas vezes pode influenciar as atividades não rotineiras.
Há uma diversificação muito ampla sobre os desejos que gostariam de realizar, mas com pequenas variações entre homens e
mulheres. Atividades culturais, como cinema, teatro e shows musicais, formam um grande grupo; adquirir bens duráveis ligados ao
divertimento, tais como aparelhos de som, televisão, DVD e computador formam um outro grupo. As viagens estão entre os desejos
comentados, e os lugares são os mais diversificados possíveis.
Muitos apontam para diferentes atividades esportivas que gostariam de realizar e muitas vezes comentam que a vontade de tal prática
está associada à pretensão de melhorar sua qualidade de vida.5
4 Algumas reflexões
Veblen (1974) nos mostrou por meio de um estudo da economia a importância dos esportes e do lazer na sociedade moderna. O
interessante é que o autor não conviveu com os grandes espetáculos
esportivos do século XX: as olimpíadas modernas, as olimpíadas de
inverno, os campeonatos mundiais de voleibol, basquetebol, natação e, sobretudo, com as copas do mundo futebol. Também não
conhecia os grandes parques temáticos, os esportes de aventura e o
fato de o tempo livre ter sido abarcado pela indústria cultural.
Nossa hipótese é a de que Veblen,(1974) por não conhecer
todo esse desenrolar do século das mudanças, pode nos mostrar o
1
O capítulo de BRENNER; DAYRELL; CARRANO em ABRAMO (2005) há um trabalho
minucioso sobre a juventude brasileira e parte desse trabalho refere-se à ocupação do
tempo livre.
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Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
265
significado, a difusão, a formação dos hábitos de consumo e a importância do ócio. Isso sem esquecer que as críticas ao autor têm
suas limitações com relação ao tempo-espaço e à área de formação.
Veblen (1974) apresenta a idéia de que algumas mudanças
psicológicas ocorreram gradativamente durante muitos séculos. A
sociedade moderna está alicerçada no princípio da propriedade,
que por si só não confere honra. Há necessidade de demonstrar tal
riqueza perante os demais. Se em fases anteriores a proeza era o
componente que dava honra, agora temos a rivalização por meio
do consumo, completada pela própria proeza e façanha. Veblen
(1974) ressalta a falsa individualidade e indica que muito daquilo
que é constituído como hábitos de lazer é decorrente das relações
de poder construídas no interior de processos culturais.
A análise das entrevistas nos mostra em parte o pensamento
de Veblen (1974): a resistência (principalmente do sexo masculino) ao trabalho rotineiro e que, conseqüentemente, não confere
honra; o aprimoramento dos estudos, que pode significar necessidade intelectual e de sobrevivência, um modo de conferir honra; as
façanhas no esporte, que podem ser consideradas supérfluas, mas
que com o passar do tempo podem indicar prestígio.
As tarefas mais rotineiras parecem estar mais confinadas ao
gênero feminino. Portanto, os costumes mais antigos são os mais
arraigados e persistentes, confirmando a teoria Veblen (1974).
Sabemos que as mulheres na sociedade contemporânea têm assumido inúmeras tarefas, muitas até mesmo, concorrendo com o sexo
masculino. Um exemplo que pode confirmar os estudos de Veblen
(1974): nas entrevistas foi possível constatar que apenas um terço
das mulheres apresentaram um tempo mais longo destinado a educação que leve ao aprimoramento dos estudos, e conseqüentemente ganhos mensais mais elevados. Isso faz com que essa parcela
menor do gênero feminino entre em disputa com o gênero masculino no espaço do mundo do trabalho. Por outro lado, o poder de
consumo delas se torna elevado. A competição entre os gêneros se
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Espaço Aberto
Fernando Renato Cavichiolli, et al.
torna mais acirrada, pois não é só no local de trabalho, mas é a
valorização do TER em relação ao SER, isto é, a mulher pode
também patentear aos olhos da sociedade sua honra, ao demonstrar que consegue participar do consumo.
Por sua vez, Adorno e Horkheimer (1986) avançam significativamente na construção conceitual iniciada por Veblen (1974):
Ao enfocar a indústria cultural que, preliminarmente é definida como um sistema uniforme no todo e nas partes, é um sistema
universal, controlando o esporte e o lazer especialmente quando
estes são mercantilizados, e induzindo à obediência em massa de
maneira não crítica, tudo se torna cada vez mais o mesmo.
O conceito de indústria cultural é realçado aqui
no sentido de aprofundar o entendimento das
relações de poder no contexto da sociedade
capitalista, a importância dos teóricos críticos na ênfase desta problemática é indiscutível e relevante (GEBARA, 2002).
O que é discutível, inclusive gerando posições divergentes
entre os teóricos críticos, são as conclusões decorrentes dessa
formulação. O primeiro ponto a ser discutido é a afirmação de que
as atividades de esporte e lazer reproduzem fielmente as estruturas de poder da sociedade capitalista. Outro ponto é a afirmação
de que o consumo do lazer ocorre de acordo com os preceitos da
indústria. Estamos diante de situações no mínimo discutíveis. A
terceira afirmação a ser debatida seria a negação do consumo:
Não somos mais uma sociedade capitalista que
se explica apenas pela produção e circulação
de mercadorias; Veblen já no século passado
indicava a natureza desta problemática. O consumo, neste século, é central para a compreensão de inúmeros fenômenos, especialmente relativo aos espetáculos esportivos e aos estilos
de vida (GEBARA, 2002).
Para os frankfurtianos Horkheimer (1973) e Adorno (1995), a
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Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
267
lógica da mercadoria e da racionalidade instrumental ligada à produção é percebida na esfera do consumo. O esporte, o lazer e a
cultura, de uma forma geral, são filtrados pela indústria cultural,
sendo a recepção ditada pelo valor de troca, à medida que os valores e propósitos mais elevados da cultura submetem-se à lógica do
processo de produção e de mercado, o que resulta na busca mais
incessante por lazer e atividades de consumo. Entretanto, as tendências emergentes não podem ser única e exclusivamente estudadas
por meio da avaliação negativa dos prazeres do consumo.
Portanto, se por um lado a sociologia na sociedade contemporânea está associada ao pano de fundo da ascensão do
racionalismo, que compreendeu a cultura principalmente como um
reflexo do capitalismo ou da indústria, por outro lado há tentativas
de compreender a dimensão cultural cotidiana, ao investigar como
se dá o relacionamento entre a produção e a circulação das teorias
e a produção e circulação mais ampla das experiências culturais
cotidianas. Em suma, temos que explicar dois aspectos: o teórico
e o cotidiano, abrangendo as mudanças na produção, no consumo
e na circulação de bens e práticas culturais. Os dados quantitativos são reveladores com relação ao que pensamos da sociedade
ou em relação ao que gostaríamos que ela realmente se tornasse.
A sugestão é que a sociedade deveria ser compreendida em
termos de processos em curso no âmbito da dinâmica das relações
entre grupos de pessoas. Isso suscita uma pergunta: quem são os
produtores e os transmissores dos bens simbólicos da atualidade?
As entrevistas apontam para os programas de televisão e a internet
como grandes transmissores dos bens simbólicos.
Como a população paranaense adquiriu seus hábitos de
lazer? Como determinados consumos são engendrados nessa população? O objetivo é ter algumas pistas e sinais, e caminhar
para um mapeamento que poderá ajudar a formular as políticas
públicas, o que poderá possibilitar a otimização dos recursos
humanos e materiais.
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Espaço Aberto
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A pesquisa apresenta o desinteresse do gênero feminino pelos
esportes quando estão próximas dos trinta anos. Como fica a valorização do TER (esporte e lazer) em relação ao SER? (no sentido de
que as atividades lúdico-esportivas são uma necessidade vital, e
propiciam a possibilidade de sentir emoções que normalmente foram sublimadas no cotidiano). Entra aqui o questionamento para os
gestores públicos de esporte e lazer: qual parcela da população está
sendo atendida nos eventos de maior porte, tal como os Jogos Abertos do Interior? Qual a relação custo benefício ao realizar eventos
dessa natureza para a população adulta? Ou talvez uma pergunta
anterior deva ser formulada: quais devem ser as nuanças de uma
política democrática para o esporte e lazer?
Por meio dos estudos de Featherstone, a década de 50 é caracterizada pela expansão da importância da cultura nas sociedades ocidentais contemporâneas. Sendo a cultura por vezes associada ao consumo e ligada ao excesso de produtos e mercadorias.
Isso é uma característica marcante da sociedade contemporânea: o
Ter é uma necessidade vital de sobrevivência, perante as condições de sublimação imposta pelo cotidiano.
Veblen (1974) já apontava que os hábitos mais antigos e
arraigados se tornam difíceis de serem substituídos, as velhas formas de formular e operacionalizar as políticas públicas pode estar
em risco. Está mais que na hora dos gestores públicos dedicarem
parte do seu tempo em conhecer os hábitos da população e promover uma mudança no sentido da convergência da participação.
Para tanto, a contribuição da universidade pode ser no sentido de
coletar, sistematizar os dados e de interpretá-los. Esse passo está
sendo dado, no sentido que esta pesquisa exploratória nos ajudou
a formular novos procedimentos – definição pela pesquisa quantitativa, metodologia de aplicação, formulação do questionário –
para se conhecer os hábitos de esporte lazer.
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Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
Consumption and formation of the sport habits
and leisure
Abstract: Parte superior do formulário
The objective of the text is to initiate an analysis of
the sport habits and leisure of the population of the
city of Curitiba. The data had been collected during
the project “Live the Summer” of the Government of
the State of the Paraná. The procedure adopted was
the exploration research, with the objective to
provide a general vision on the subject. The data
collected by means of the exploration research
constitute the first stage of a ampler inquiry. In this
text we go in them to restrict to the etary of 18 the
30, that it corresponds to a moment of transistion
between youth and the adult life. We analyze the
following categories: etary band, familiar income,
degree of schoolarity and as the individuals use its
free time. We also consider the civil state, the
parents, the degree of maturity of the family (if the
children live together or separate of the parents) and
the meaning of the sport consumptions and leisure.
To guide the quarrel of habits, free time and
consumption, we use the following theoretical
sources: Veblen, and the concepts of conspicuous
consumption, the Frankfurt’ school and the concept
of cultural industry e, finally, Featherstone, that uses
the concepts and the consumption. We believe that
this study it will be able to bring public subsidies for
teachers and managers, therefore will more make
possible the deepened understanding of some
forms of behavior of the citizen.
Keywords: Leisure activities. Sports. Public policy.
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Fernando Renato Cavichiolli, et al.
Consumo y formación de los hábitos de deporte y ócio
Resumen: El objetivo del texto es empezar un
análisis de los hábitos de deporte y ocio de la
población de Curitiba. Los datos fueron obtenidos
en la realización del proyecto “Viva el Verano” del
gobierno del estado del Paraná. El procedimiento
para la obtención de la información fue una
investigación exploratoria, con el objetivo de ofrecer
a los lectores una visión general sobre el tema. Los
datos recorridos constituyen la primera etapa de
una investigación más amplia. Aquí vamos restringir el análisis a la franja de edad entre los 18 y 30
años, que corresponde a un momento de transición
entre la juventud y la vida adulta. A partir de los
datos obtenidos hicimos el análisis sobre la franja
de edad, renta familiar, grado de escolarización,
renta familiar, nivel de escolarización y cómo los
individuos utilizan su tiempo libre? Hemos considerado también el estado civil , la paternidad, el
grado de madurez de la familia (si los hijos viven
juntos con sus padres o no) y el significado del consumo de deporte y ocio. Para la discusión de hábitos, tiempo libre y consumo utilizamos las
siguientes referencias teóricas: Veblen y los
conceptos de consumo conspicuo, la Escuela de
Frankfurt y el concepto de industria cultural y, por
último, Featherstone, que utiliza los conceptos
figuracionistas y el consumo. Creemos que el
estudio podrá traer subsidios para los profesores/
investigadores y gestores públicos, una vez que
hará posible la comprensión más profundizada sobre las actitudes de comportamiento ciudadano.
Palabras- clave: Actividades de Ocio. Deporte.
Políticas Sociales.
REFERÊNCIAS
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ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
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Consumo e formação dos hábitos de esporte e lazer
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Civilizing Process. Oxford: Blackwell, 1986.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Tradução
de Júlio Assis Simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995. (Coleção Cidade Aberta,
Série Megalópolis)
GEBARA, Ademir. Veblen, Adorno e as bicicletas. In: CONGRESSO BRASILEIRO
DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA, LAZER E DANÇA. 8, 2002. Ponta Grossa,
PR. Coletânea.... Ponta Grossa: Universidade Estadual de ponta Grossa, 2002.
HORKHEIMER, Max. Temas básicos da sociologia. São Paulo : Cultrix, 1973.
VEBLEN, Thorstein B. A teoria da classe ociosa. In: Os pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1974.
Recebido em: 15/02/2006
Aprovado em: 26/05/2006
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 241-271, maio/agosto de 2006.
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NOTA DO EDITOR
Prezados leitores.
Na Revista Movimento, volume 12, número 1, Jan/
Abr 2006 erramos no artigo “A construção do gênero no
espaço escolar”, de autoria de Ileana Wenetz e Marco Paulo
Stigger, p. 81-103. Omitimos, indevidamente, o nome da
Profª Drª Dagmar Elizabeth Estermann Meyer que é coautora desse artigo.
O equívoco acima citado deve-se ao fato de que na
transferência eletrônica de arquivos, o nome da autora foi
apagado inadvertidamente.
Sem mais para o momento, agradecemos a
compreensão pela nossa falha involuntária.
Atenciosamente.
Vicente Molina Neto
Editor
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 273, maio/agosto de 2006.
Normas
para publicação
276
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
277
Normas para Publicação
A revista Movimento é uma publicação da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que tem
por objetivo divulgar pesquisas sobre a Educação Física e sua
interface com as Ciências Sociais e Humanas em seus aspectos
didáticos, pedagógicos, científicos e filosóficos. Compõe-se das
seguintes sessões:
EM FOCO: trabalhos dentro de uma temática que será eleita
pela Comissão Editorial, como o assunto daquela edição; a intenção é - a partir de diferentes abordagens e autores - possibilitar um
espaço para que seja focalizado, a cada número, um tema em particular. Eventualmente, esta seção será constituída, também, por
artigos obtidos dentro da perspectiva de demanda induzida, quando pesquisadores reconhecidos serão convidados a oferecerem
suas contribuições.
ESPAÇO ABERTO, cuja perspectiva será sempre de demanda espontânea e onde os nossos colaboradores poderão submeter
trabalhos sobre assuntos diversos, pois o espaço estará disponível
para a variedade de temas que a área possibilita. Cada uma destas
duas seções estará subdividida em artigos originais e ensaios: os
primeiros, voltados para os resultados de investigações concluídas, enquanto os segundos, para reflexões e discussões sobre temas relevantes.
RESENHA, resenhas de livros recentemente lançados e que
tenham relação com a política editorial da Revista.
Estrutura dos trabalhos:
Os artigos deverão ser redigidos em Times New Roman 12,
espaço 1,5, não devem exceder 20 páginas e que conste:
título que identifique o conteúdo em português, inglês e
espanhol;
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
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nome completo do(s) autor(es), seguidos de titulação,
local de atividades, e-mail e o endereço para correspondência, indicação dos financiamentos relacionados ao trabalho a ser publicado;
Resumo informativo em português, inglês e espanhol
com até 100 palavras cada;
Palavras-chave (palabras-clave, Keywords) constituídos
de até quatro termos que identifiquem o assunto do artigo em
português, inglês e espanhol separados por ponto. Sugestão: utilizar os descritores: Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) em:
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Elementos Pós-Textuais:
Referências: documentos citados no texto. Observandose a NBR 6023.
A lista de referências deve ser ordenada alfabeticamente,
alinhadas na margem esquerdas colocada ao final do artigo, citando as fontes utilizadas. Para a melhor compreensão e visualização,
a seguir são transcritos exemplos de referências de diversos tipos
de materiais.
Livros com 1 autor:
AUTOR. Título. Edição. Local: Editora, ano. Exemplo:
MARINHO, Inezil Pena. Introdução ao estudo de filosofia da
educação física e dos desportos. Brasília: Horizonte, 1984.
Livros com 2 autores: AUTORES separados por ponto e
vírgula. Título. Edição. Local: Editor, ano. ACCIOLY, Aluízio Ramos; MARINHO, Inezil Pena. História e organização da educação
física e desportos. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, 1956.
Livros com 3 autores: entrada pelos três autores, separados por ponto e vírgula. Exemplo: REZER, Ricardo; CARMENI,
Bruno; DORNELLES, Pedro Otaviano. O fenômeno esportivo:
ensaios crítico-reflexivos. 4. ed. São Paulo: Argos, 2005. 250 p.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
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Livros com mais de três autores: Entrada pelo primeiro
autor, seguido da expressão et al. Título. Local: Editora, ano. Exemplo: TANI, Go et al. Educação Física Escolar: fundamentos de
uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU, 1988.
Livros com organizadores, coordenadores:
ORGANIZADOR ou COORDENADOR, etc. (nota) Título. Local: Editora, ano. Exemplo: CRUZ, Isabel et al. (Org.). Deusas e
guerreiras dos jogos olímpicos. 4. ed. São Paulo: Porto, 2006.
123 p. (Colecção Fio de Ariana).
Partes de livros com autoria própria: AUTOR da parte
referenciada. Título da parte referenciada. Referência da publicação no todo precedida de In: Localização da parte referenciada.
Exemplo: GOELLNER, Silvana. Mulher e Esporte no Brasil: fragmentos de uma história generificada. In: SIMÕES, A. C.; KNIJIK,
Jorge D. O mundo psicossocial da mulher no esporte: comportamento, gênero, desempenho. São Paulo: Aleph, 2004. p. 359-374.
Dissertações, teses, trabalhos de conclusão de curso:
AUTOR. Título. Ano. Paginação. Tipo do documento (dissertação, tese, trabalho de conclusão de curso), grau entre parênteses
(Mestrado, Doutorado, Especialização em...) - vinculação acadêmica, o local e o ano da defesa. Exemplo: SANTOS, Fernando
Bruno. Jogos Intermunicipais do Rio Grande do Sul: uma análise do processo de mudanças ocorridas no período de 1999 a
2002. 2005. 400 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação
Física, Departamento de Educação Física, UFRGS, Porto Alegre, 2005.
Trabalhos de eventos:AUTOR. Título do trabalho de
evento. Referência da publicação no todo precedida de In: localização da parte referenciada. Paginação da parte referenciada.
Exemplo: SANTOS, Fernando Bruno. Jogos Intermunicipais do
Rio Grande do Sul: uma análise do processo de mudanças ocorridas no período de 1999 a 2002. In: CONGRESSO BRASILEIRO
DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 14., 2005, Porto Alegre. Anais...
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
280
Porto Alegre: MFPA, 2005. v. 1, p. 236 - 240.
Artigos de revistas/periódicos:AUTOR do artigo. Título do artigo. Título da revista, local, v., n., páginas, mês, ano.
Exemplo: ADELMAN, Miriam. Mulheres no Esporte:
corporalidades e subjetividades. Movimento, Porto Alegre, v. 12,
n. 01, p.11-29, jan./abr., 2006.
Artigos de jornais:AUTOR do artigo. Titulo do artigo.
Título do jornal, local, data (dia, mês e ano). Caderno, p. Exemplo:
SILVEIRA, José Maria Ferreira. Sonho e conquista: o Brasil nos
Jogos Olímpicos do século XX. Correio do Povo, Porto Alegre,
p. 25-27. 12 abr. 2003.
Leis, decretos, portarias, etc.: LOCAL (país, estado ou
cidade). Título (especificação da legislação, n.º e data). Indicação
da publicação oficial. Exemplo: BRASIL. Decreto n.º 60.450, de
14 de abril de 1972. Regula a prática de educação física em escolas de 1º grau. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, v.126, n.66, p.6056, 13 abr. 1972. Seção 1, pt. 1.
Documentos eletrônicos online:AUTOR. Título. Local, data. Disponível em: < >. Acesso em: dd mm aaaa. Exemplo:
LOPEZ RODRIGUEZ, Alejandro. Es la Educacion Física, ciencia?
Revista Digital, Buenos Aires, v.9, n. 62, jul. 2003. Disponível
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HERNANDES, Elizabeth Sousa Cagliari. Efeitos de um programa de atividades físicas e educacionais para idosos sobre o
desempenho em testes de atividades da vida diária. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, Brasília, v. 2, n. 12, p.43-50, 05
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mestradoef/RBCM/12/12%20-%202/c_12_2_7.pdf>. Acesso em:
05 jun. 2004.
, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
281
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, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
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a) Artigos Originais: São trabalhos resultantes de pesquisa
científica apresentando dados originais de descobertas com relação a aspectos experimentais ou observacionais de característica
filosófica, social cultural e pedagógica, e inclui análise descritiva
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que traz os seguintes itens: Introdução, Decisões Metodológicas,
Análise e Discussão.
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publicados em revistas científicas. Apresenta síntese e análise crítica
da literatura levantada e não deve ser confundido com artigo de
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problema ou objeto de estudo através de exemplo. Apresenta as
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, Porto Alegre, v.12, n. 02, p. 277-282, maio/agosto de 2006.
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