Barreiras à Entrada e Defesa da Concorrência: Notas Introdutórias Jorge Fagundes João Luiz Pondé * * * I - Introdução O objetivo deste artigo é discutir o conceito de barreiras à entrada, de modo a evidenciar a sua importância para a análise antitruste, sobretudo no âmbito dos julgamentos de atos de concentração econômica. Em particular, como se verá adiante, verifica- se que a presença de um baixo nível de barreiras à entrada em um mercado relevante - ou seja, a existência de forte concorrência potencial - é suficiente para impedir o surgimento e/ou o exercício de poder de mercado por parte de empresas. Com esse propósito, o artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução. A segunda seção apresenta e discute os principais aspectos teóricos do conceito de barreiras à entrada. A terceira seção analisa o papel das barreiras à entrada no âmbito da moderna teoria dos mercados constestáveis. A quarta seção incorpora as barreiras à entrada na dimensão da análise de atos de concentração. Finalmente, a última seção resume as principais conclusões deste artigo. II - Barreiras à Entrada: Aspectos Teóricos A análise das barreiras à entrada de uma indústria, com o objetivo de identificar e avaliar os determinantes do seu desempenho, foi originalmente desenvolvida pelos trabalhos de Joe Bain e Paolo Sylos- Labini no anos cinquenta. As contribuições teóricas destes autores propiciaram a base sobre a qual foi construído o paradigma Estrutura- Conduta- Desempenho (ECD). * Professor da Universidade Cândido Mendes. ** Professor do Instituto de Economia da UFRJ. QUADRO I O PARADIGMA ESTRUTURA-CONDUTA-DESEMPENHO ESQUEMA ANALÍTICO ESTRUTURA número de produtores e compradores, diferenciação de produtos, barreiras à entrada, estruturas de custos, integração vertical, diversificação 1 CONDUTA políticas de preços, estratégias de produto e vendas, pesquisa e desenvolvimento, investimentos em capacidade produtiva 1 DESEMPENHO Alocação eficiente dos recursos, atendimento das demandas dos consumidores, progresso técnico, contribuição para a viabilização do pleno emprego dos recursos, contribuição para uma distribuição equitativa da renda, grau de restrição monopolística da produção e margens de lucro Fonte: Adaptado de Scherer e Ross (1990). Os modelos ECD buscam, sinteticamente, derivar de características da estrutura do mercado conclusões acerca do seu desempenho em termos de alguma variável escolhida, supondo para isso que as condutas das empresas são fortemente condicionadas pelos parâmetros estruturais vigentes. O quadro I apresenta o esquema analítico básico. Assim, torna- se possível identificar os fatores estruturais que condicionam as condutas de fixação de preços das empresas e, conseqüentemente, podem levar a situações de elevação abusiva de margens de lucro e prejuízos para os consumidores. Basicamente, considera- se que, em um mercado no qual as empresas têm o poder de decidir o preço a ser cobrado pelos produtos vendidos, estes e as margens de lucro serão tanto maiores quanto mais: (i) as condutas das firmas já existentes no mercado apresentem um grau elevado de coordenação, seja através de acordos tácitos, liderança de preços ou cartelização; (ii) elevada for a exposição destas empresas à concorrência potencial, ou seja, à ameaça de entrada de novos concorrentes, atraídos pelas margens de lucro praticadas no mercado. O principal fator estrutural a afetar o grau de coordenação das condutas das empresas estabelecidas, segundo Bain (1958), é o nível de concentração da produção e das vendas, visto ser razoável supor que comportamentos colusivos serão mais facilmente implementados quando um reduzido número de firmas domina o mercado. Em mercados concentrados, por conseguinte, a intensidade da concorrência potencial, inversamente proporcional à magnitude das barreiras à entrada existentes, é um elemento crucial na determinação do desempenho observado 1. Neste sentido, Possas (1985) enfatiza o consenso dos teóricos do paradigma ECD em "tomar a concentração econômica como o elemento básico da estrutura [do mercado] e a intensidade das barreiras à entrada como um indicador- chave do poder de mercado das empresas oligopolistas e codeterminante do nível de preços" (p. 95), assumindo que "é possível formular algum nível de generalização teórica sobre a relação entre preços (margens de lucro) e barreiras à entrada" (p. 109). Bain (1958) define a "condição de entrada" de uma indústria como o "estado de concorrência potencial" de possíveis novos produtores/vendedores, podendo ser avaliada pelas vantagens que as firmas estabelecidas possuem sobre os competidores potenciais, sendo que estas vantagens se refletem na capacidade de elevar persistentemente os preços acima do nível competitivo sem atrair novas firmas para a indústria em questão 2. Tais vantagens constituem exatamente o que se denomina "barreiras à entrada". Por sua vez, 1 Já que as firmas existentes atuam coletivamente e não competem diretamente através de reduções de preços. uma entrada consiste no estabelecimento de uma nova empresa que constrói ou introduz uma nova capacidade produtiva em uma indústria/ mercado 3. Exclui- se do conceito de entrada: (i) a compra de uma empresa (ou planta) já atuante por outra que não atuava no mercado; (ii) a expansão da capacidade de uma empresa já existente; (iii) a entrada de uma empresa já estabelecida em outra indústria, que apenas altera a forma de utilizar sua capacidade adicionando um novo produto à sua linha de produtos. Resumidamente, o argumento exposto diz que E = (Pl - Pc)/Pc, onde E=condição de entrada; Pl=preço limite (máximo que pode ser cobrado sem atrair novos concorrentes); Pc=preço que seria cobrado em um mercado competitivo (com lucros normais). Tem- se que Pl = Pc (1+E), ou seja, quanto mais difícil a entrada de novos concorrentes em um mercado, maior o preço que um conjunto de empresas 2 Devendo- se notar que, "as such, the 'condition of entry' is then a primarily structural condition. Its reference to market conduct is primarily to potential rather than to actual conduct, since basically it describes only the circumstances in which the potentiality of competition from new firms will or will not become actual" (Bain, 1958, p.3). 3 O conceito de entrada também é importante para a definição do "mercado relevante" em análises antitruste, pois permite distinguir entre efeitos de substituição na oferta e o surgimento de um novo concorrente. Segundo Scherer e Ross (1990, p. 76), "at the risk of being somewhat arbitrary, we should probably draw the line to include as substitutes only existing capacity that can be shifted in the short run, that is, without significant new investment in equipment and work training". oligopolistas, adotando comportamentos colusivos, pode adotar sem ser ameaçado por concorrentes potenciais. As barreiras à entrada, dada a natureza dos seus determinantes que serão listados a seguir, são estruturais, estáveis e se modificam lentamente no tempo, além de não poderem ser facilmente alteradas pelas entrantes potenciais. Isto permite considerar a condição de entrada e seus determinantes como, primariamente, condicionantes estruturais do comportamento das firmas e não como um resultado deste comportamento. A literatura de organização industrial desenvolve uma análise dos fatores determinantes da existência e magnitude das barreiras à entrada que permite classificá- las em quatro tipos básicos. As barreiras à entrada assentadas na diferenciação de produto decorrem da presença de elementos que fazem com que os consumidores considerem mais vantajoso adquirir um produto de empresas já existentes do que similares oferecidos por novos concorrentes. A intensidade de tais barreiras será tanto maior quanto maiores: 4 (i) o controle do acesso à tecnologia necessária para projetar os produtos por parte das firmas existentes, através de mecanismos legais de controle da propriedade industrial, segredos industriais ou presença de conhecimentos tácitos difíceis de serem imitados 4; (ii) o montante de gastos com propaganda e vendas requeridos para garantir a fidelidade dos consumidores, impondo aos novos concorrentes despesas elevadas para tornar seu produto conhecido e aceito no mercado; A forma como este controle é garantido varia de acordo com características dos setores. Em indústrias como a farmacêutica, por exemplo, as patentes dão um mecanismo fundamental de proteção, enquanto nas indústrias mecânicas o caráter tácito dos conhecime ntos tem um peso maior. (iii) a durabilidade e complexidade dos produtos, que tornam a reputação destes decisiva da decisão de compra dos consumidores e fazem com que um novo concorrente tenha que incorrer em gastos elevados durante um período considerável de tempo para convencer o consumidor das qualidades do seu produto; (iv) a presença de práticas e canais de distribuição que limitam a utilização de determinadas formas de acesso ao consumidor para novos concorrentes, como por exemplo contratos de exclusividade com revendedores; e (v) a presença de "consumo conspícuo", que valoriza o prestígio de certos produtos e torna a marca um elemento crucial nas decisões de compra dos consumidores. É importante notar, dada a presença de um ou vários destes elementos em um dado mercado, que o nível das barreiras à entrada será menor para entrantes que já atuam em indústrias correlatas, ou seja, em movimentos de diversificação nos quais as empresas que os realizam já possuem ativos capazes de facilitar sua atuação em novas áreas 5. Além disso, deve- se lembrar que existe casos em que a diferenciação de produto pode atuar no sentido de favorecer a entrada, abrindo oportunidade para a introdução de inovações por um entrante potencial, que atrai o consumidor oferecendo um produto com novas características. 5 Uma empresa que atua no mercado de refrigerantes, por exemplo, provavelmente se encontra em uma posição relativamente favorável para entrar no mercado de cervejas, visto que já possui uma estrutura de distribuição montada. Fenômeno semelhante se verifica por similaridades nas bases técnicas de diferentes indústrias, criando, por exemplo, oportunidades para que empresas da indústria de equipamentos de telecomunicações entrem em segmentos da indústria de informática. As barreiras à entrada decorrentes da presença de vantagens absolutas de custo para as empresas já existentes se fazem presentes quando estas têm acesso exclusivo a determinados ativos ou recursos, o que lhes permite fabricar, com a mesma escala de produção de um entrante potencial, a um custo mais baixo. Tais vantagens se originam dos seguintes fatores: (i) capacitação de recursos humanos qualificados, fazendo com que o entrante tenha dificuldades em recrutar o pessoal adequado e frequentemente se veja obrigado a pagar remunerações mais elevadas; (ii) tecnologias que estão disponíveis apenas para as firmas já estabelecidas, seja devido a mecanismos legais de proteção da propriedade intelectual, como as patentes, seja devido a dificuldades de imitação que são inerentes ao conhecimento tecnológico, por sua complexidade e presença de elementos tácitos; (iii) controle do suprimento de matérias- primas através da integração vertical, fazendo com que o entrante tenha que pagar mais caro por seus insumos ou recorrer a substitutos imperfeitos; (iv) compra de matérias primas mais baratas pelas empresas já estabelecidas, devido a contratos exclusivos ou compra em grandes volumes; (v) menor custo de obtenção de capital para as empresas estabelecidas, oriundo de imperfeições no mercado de capitais e da maior facilidade de que estas dispõem no uso de fundos próprios para financiar seus investimentos; (vi) menores elevando custos devido à integração vertical, os requerimentos e capital para um entrante eventual e criando barreiras "absolutas" à entrada. Também neste caso as barreiras à entrada podem se apresentar reduzidas no caso de entrantes oriundos de indústrias correlatas, visto que estes possuem em maior grau recursos humanos qualificados, tecnologia, acesso a fontes internas e externas de financiamento ou unidades integradas verticalmente na produção de alguns insumos. Por outro lado, em certos casos o entrante pode usufruir de vantagens por ser uma firma completamente nova, já que isso lhe permite planejar e construir uma planta utilizando soluções técnicas de última geração, situação que se mostra importante no caso de bens de capital que apresentam trajetórias tecnológicas com "safras" de modelos bem definidas . Estes fatores podem reduzir significativamente, ou mesmo eliminar, outras vantagens de custo que as firmas já estabelecidas eventualmente possuam. 6 Um terceiro tipo de barreiras à entrada resulta da presença de economias de escala, sejam estas reais - derivadas de redução de custos, cuja obtenção exije o aumento das dimensões da planta ou da firma - ou pecuniárias - derivadas do pagamento de preços menores na aquisição de insumos, incluindo aqui menores custos com transporte, propaganda e outros gastos relacionados às vendas 7. As economias de escala reais usualmente são classificadas em três categorias: (i) (ii) 6 técnicas, resultantes do uso de equipamentos mais eficientes; gerenciais, resultantes da divisão de gastos gerenciais fixos em uma produção mais elevada; Supõe- se aqui que quem está na safra antiga enfrenta custos elevados para adaptar seus equipamentos às configurações da nova safra (o que às vezes é até mesmo impossível) ou para se desfazer dos equipamentos antigos antes do final da sua depreciação. 7 A diferença portanto está em que as economias reais de escala reduzem o montante utilizado de fatores de produção ou insumos por unidade de produto, enquanto as economias pecuniárias de escala resultam do menor preço pago pelos fatores ou insumos adquiridos. (iii) decorrentes da maior especialização do trabalho. A presença destas economias de escala se dá quando, dadas as dimensões do mercado e a escala mínima que viabiliza economicamente a operação de um entrante potencial, este espera que, como resultado da sua entrada no mercado, a oferta do(s) produto(s) em questão se eleve ao ponto de eliminar os lucros extraordinários que tornariam atrativa a operação no setor. Obviamente, a existência de barreiras deste tipo exige a presença de custos irrecuperáveis vinculados à efetivação da entrada (sunk costs), sem os quais valeria a pena para o entrante entrar e sair rapidamente do mercado (hit and run ) para auferir temporariamente lucros extraordinários 8. A análise dos efeitos das economias de escala sobre a potencial é complexa, visto que estes depende m das expectativas acerca das reações das firmas já estabelecidadas caso ocorra uma como das expectativas das firmas estabelecidas acerca comportamento das entrantes. concorrência dos entrantes entrada, bem do provável Em outras palavras, como a lucratividade esperada do entrante depende de qual será a reação da empresa já estabelecida, a intensidade da concorrência potencial passa a ser percialmente determinada pelo processo de formação de expectativas, o que levou alguns autores a analisar as condições nas quais empresas já existentes adotam condutas que desencorajem entrantes potenciais 9. Nesta linha, é possível demonstrar que, em certo número de casos, pode ser vantajoso para a firma estabelecida dominante procurar dimensionar seu estoque de capital e capacidade produtiva de maneira a influenciar as decisões de entrantes eventuais, basicamente minorando a intensidade da concorrência potencial. A idéia básica é que, ao investir em instalações produtivas que ficarão sub- utilizadas, a firma estabelecida cria uma "ameaça convincente" de que sua reação será bastante agressiva frente a uma entrada, visto que seus custos fixos se elevarão significativamente se a quantidade vendida diminuir. 8 Nos termos de Baumol, Panzar e Willig (1982), as economias de escala só dificultam a entrada em mercados que não são perfeitamente contestáveis. 9 Cf., por exemplo, Caves e Porter (1977) e Dixit (1980, 1982). O entrante, por sua vez, concluindo pela baixa probabilidade de uma "acomodação" após a entrada, esperará dificuldades em ocupar sua capacidade, de modo que será dissuadido da iniciativa de passar a operar naquele mercado. Este tipo de análise pode ser considerado como uma alteração dinâmica do paradigma Estrutura- Conduta- Desempenho, na medida em que o amplia no sentido de analisar também efeitos da conduta das firmas sobre a estrutura do mercado. Por último, a exigência de investimentos iniciais elevados para viabilizar a instalação uma nova empresa no mercado também é fonte de barreiras à entrada. Por envolver a criação de nova capacidade, qualquer investimento inicial envolve uma aplicação de recursos financeiros cujo montante depende, em grande parte, de variáveis relacionadas às tecnologias em uso (principalmente da relação capital/produto). Um entrante potencial que não possua uma base de negócios significativa em outros setores pode encontrar dificuldades em obter o capital necessário, na medida em que: (i) (ii) os bancos tendem a ser relutantes e/ou a cobrar juros mais elevados em possíveis empréstimos; e o mercado de capitais se mostra inacessível para uma firma sem reputação estabelecida. Deve- se lembrar que tais barreiras são minoradas nos casos de entradas resultantes da diversificação de grandes grupos ou conglomerados. Estes, tanto por seu porte e capacidade de mobilização de massas de lucros auferidos em outras áreas, quanto por freqüentemente possuírem empresas do setor financeiro, podem reunir o capital necessário com relativa facilidade. III - Barreiras à Entrada e Mercados Contestáveis. Nos anos 80 foi proposta a chamada teoria dos mercados contestáveis, procurando examinar as condições nas quais um mercado concentrado, oligopolístico ou até monopolístico, pode apresentar desempenho competitivo nos preços (conduta) e nos custos (eficiência) apenas sob ameaça de entrada da concorrência potencial, sem necessidade de reduzir a estrutura à condição atomística da concorrência perfeita, e visando ainda extrair daí implicações normativas (Baumol, 1982). Na teoria dos mercados contestáveis, a estrutura industrial surge como resultado endógeno da interação entre as características técnicas da produção, o tamanho do mercado e a concorrência potencial. Teoricamente, qualquer estrutura de mercado - inclusive o monopólio - pode ser, em princípio, eficiente, desde que sua constituição não resulte de arranjos extra- mercado e que seja impossível para qualquer firma participar do mercado auferindo lucro (Araújo Junior, 1984). Uma configuração de mercado - isto é, o número, distribuição do tamanho das firmas e suas pautas de produção - é eficiente quando for simultaneamente factível e sustentável . A noção de factibilidade está associada à necessidade de que existam técnicas de produção com as quais seja possível atender à demanda aos preços vigentes, sem que nenhuma firma tenha prejuízo. Formalmente, supondo que todas as firmas têm a mesma função de custo: (1) Σ Yi = Q(p) ou seja, a demanda de cada produto deve ser igual à quantidade ofertada ao preço de equilíbrio, sendo Yi o vetor de produção da firma i, p o vetor preço e Q (p) o vetor de demanda pelos produtos da indústria; (2) pYi - C(Yi) ≥ 0 para todas as firmas i ,e: (3) Yi ≥ 0. As condições associadas à manutenção de uma estrutura de mercado monopolística ou não - sem barreiras institucionais à entrada são dadas pelo conceito de sustentabilidade : uma estrutura industrial, inclusive o monopólio natural, é sustentável se nenhuma entrada potencial no mercado - dada a tecnologia, a produção e o vetor de preços vigente - for lucrativa, a esses preços. Formalmente: (4) PeYe - C(Ye) ≤ 0 para qualquer Pe ≤ P e Ye ≤ Q(Pe). No caso de uma atividade mono- produto com rendimentos crescentes, é possível provar que o único equilíbrio sustentável é alcançado quando o preço correspondente à quantidade produzida por um monopolista é igual ao seu custo médio de produção. Para evitar a entrada de novas firmas, portanto, um monopolista deverá praticar um política de preços que elimine seu próprio lucro. Contudo, segundo esta teoria, uma estrutura de mercado somente será eficiente, do ponto de vista da maximização do bem- estar social, se a entrada for possível, sendo impedida apenas pela política de preços das empresas presentes no mercado. Em outras palavras, a eficiência da estrutura de mercado dependerá do nível de obstáculos à entrada e à saída na indústria, ou seja, de seu grau contestabilidade . Um mercado é dito perfeitamente contestável se os concorrentes potenciais têm acesso à tecnologia disponível e podem recuperar seus custos de entrada, caso posteriormente decidam abandonar a indústria. Assim, o conceito de perfeita contestabilidade está relacionado com liberdade absoluta de entrada e saída das firmas em um determinado mercado. Note- se que esta hipótese pressupõe, ainda que não exclusivamente: a) a ausência de custos irrecuperáveis (sunk costs), tais como os investimentos em ativos específicos; b) que a tecnologia seja um bem livre; e c) a inexistência de ações de retaliação contra os novos entrantes por parte das empresas já presentes na indústria 10. 10 Trata- se, evidentemente, de pressupostos heróicos, em um mundo onde a tecnologia é fator chave na determinação da competitividade das firmas e o processo competitivo é guiado justamente pela busca de lucro extraordinários, através da construção estratégica de barreiras à entrada. Vale observar que um mercado perfeitamente competitivo é necessariamente contestável, mas o contrário não ocorre. Em particular, um mercado perfeitamente contestável estará em equilíbrio se sua configuração for sustentável. Caso se verifique a presença de sunk costs 11 , as empresas não precisarão eliminar seus lucros econômicos, na medida em que sua situação estará protegida pela existência de barreiras à entrada de caráter não- institucional. As implicações de natureza política da teoria dos mercados contestáveis sao distintas da microeconomia ortodoxa: é perfeitamente possível a existência de estruturas concentradas sem que o interesse público seja prejudicado. A política industrial deve evitar o controle das fontes de oferta de tecnologia ( logo, devem existir instituições públicas que promovam a difusão da tecnologia e inibam a apropriabilidade privada, sem contudo retirar o estímulo à inovação) e o excesso de regulamentação no setor quanto ao número de firmas (licenças de fabricação, etc). Quanto menores as barreiras à entrada no setor, maior a sua eficiência, independentemente do produto ser ou não homogêneo, das firmas serem ou não atomísticas e das decisões serem ou não independentes. O problema desse enfoque é que as condições requeridas para a perfeita contestabilidade de um mercado - da qual a concorrência perfeita seira apenas um caso particular - são tão restritivas quanto esta última: livre entrada (sem custos e com livre acesso à tecnologia e aos insumos) e saída (ausência de sunk costs, custos irrecuperáveis) e impossibilidade de retaliação via preços em tempo hábil após a entrada. Como a presença tanto de economias de escala quanto de ativos específicos (como os tecnológicos, básicos na concorrência contemporânea) implicam sunk costs, e por conseguinte barreiras à entrada e à saída, bem como a hipótese de preços inflexíveis das firmas estabelecidas por mais tempo que o 11 Sunk costs são aqueles investimentos que podem produzir um fluxo de benefícios (receitas) ao longo de um amplo horizonte de tempo, mas que não podem ser jamais inteiramente recuperados. Note- se que custos fixos são sunk costs no curto prazo. necessário à instalação de nova capacidade produtiva é francamente irrealista , os mercados oligopolísticos do mundo real são tudo menos contestáveis, e preços acima do nível competitivo (assim como as margens de lucro correspondentes) são a situação normal e estrutural dos mesmos. As implicações normativas ficam igualmente prejudicadas pelo irrealismo de eventuais medidas destinadas a tornar contestável um oligopólio. 12 IV - Barreiras à Entrada e Análise Antitruste. Do ponto de vista da política antitruste, é essencial avaliar a extensão e a rapidez com que as medidas de intervenção no mercado conseguiriam prevenir os indesejáveis efeitos anti- competitivos de um ato de concentração mais eficazmente do que o mercado seria capaz de fazer por si mesmo. Isto requer invariavelmente uma análise cuidadosa das condições de entrada no mercado, em princípio independentemente do grau de concentração vigente, uma vez que é a entrada “a resposta natural do mercado a lucros excessivos”, e sua eficácia reduziria a necessidade de ação antitruste em cada caso específico (Geroski, 1988, p. 182). A análise do nível das barreiras à entrada no mercado relevante é, portanto, crucial para a determinação dos potenciais efeitos anticompetitivos derivados de um ato de concentração: “ Entry conditions are a central feature of analysis, because potencial entry represents a market force that undermines incumbents’ toward unilateral or joint (collusive) exercise power” (Bonner e Krueger, 1991, p. 5). antitruste significant tendency of market Segundo a teoria microeconômica moderna, sobretudo na área de organização industrial, nenhum ato de concentração realizado em mercados relevantes onde as barreiras à entrada são baixas deve gerar maiores preocupações das autoridades antitruste. A explicação para essa afirmativa é simples: a ausência de significativos impedimentos à entrada de novos concorrentes em um determinado mercado relevante implica a virtual inexistência de poder de mercado por parte de uma empresa que nele detenha 12 Ver a respeito Lyons (1988), pp. 53-55 e Shepherd (1984). elevado market share, posto que em princípio qualquer conduta potencialmente prejudicial ao bem- estar do consumidor poderia atrair a entrada de novos concorrentes em seu mercado de atuação. Em outras palavras, se a entrada em um certo mercado é fácil, mesmo a presença de um elevado market share não é suficiente para caracterizar poder de mercado 13 por parte de uma empresa: assim que esta elevasse seu preço para níveis de monopólio, novos competidores apareceriam, de modo que sua participação de mercado se reduziria, forçando- a a diminuir seu preço de volta ao nível competitivo (Hovenkamp, 1994, p. 246). Logo, em situações em que as barreiras são inexistentes ou suficientemente baixas, essas condições estruturais do mercado não permitirão o surgimento de preços de monopólio, mesmo que tal mercado seja ocupado por uma única firma ou esteja cartelizado. A importância da análise das barreiras à entrada não somente é reconhecida pela teoria econômica aplicada à área antitruste, mas também na jurisprudência dos órgãos de defesa da concorrência nos países desenvolvidos. Sua relevância aparece explicitamente, por exemplo, no Horizontal Merger Guidelines, documento publicado em conjunto pelo Departamento de Justiça (DOJ) e pela Federal Trade Commission (FTC) dos E.U.A.. Nesse documento, cujo objetivo é o de dar transparência ao processo de análise e decisão no julgamento de atos de concentração, as autoridades norteamericanas responsáveis pela defesa da concorrência afirmam que “uma fusão provavelmente não criará ou aumentará o poder de mercado ou facilitará seu exercício, caso a entrada no mercado seja suficientemente fácil para impedir, após a fusão, que os participantes do mercado possam, coletiva ou uniteralmente, manter, lucrativamente, preços acima dos níveis verificados antes da fusão”. 14 Nessas situações, a entrada potencial será suficiente para 13 Entende- se por poder de mercado a capacidade de uma empresa aumentar seus preços sem experimentar perdas significativas de suas vendas, devido, fundame ntalme nte, à ausência de produtos alternativos para os consumidores. 14 “A merger is not likely to create or enhance market power or to facilitate its exercise, if entry into market is so easy that market participants, after the merger, either collectively or unilaterally could not profitably maintain a price increase above premerger levels”. Horizontal Mergers Guidelines, 1992, p. 25. impedir o surgimento de eventuais efeitos anticompetitivos resultantes da fusão. Os Guidelines classificam as empresas entrantes potenciais em dois tipos básicos: uncommitted e committed entrants . As primeiras são aquelas cuja nova oferta tenha, em resposta a um “pequeno, mas significativo e nãotransitório” aumento de preços, a probabilidade de ocorrer em um período de 1 (um) ano, sem que devam incorrer, para ofertar os seus produtos, em custos de entrada e saída significativos (sunk costs)15 . Além dos uncom mitted entrants, os Guidelines apontam para a importância, do ponto de vista da presença de concorrência potencial e de limites ao exercício de poder de mercado derivado da existência de elevados índices de concentração econômica, dos chamados committed entrants , empresas que apresentam condições de superar, sem grandes dificuldades, as eventuais barreiras à entrada em um determinado mercado relevante. Este tipo de entrada é definida como aquela situação em que os novos entrantes devem incorrer em sunk costs significativos. Neste caso, a possibilidade de entrada no mercado relevante por committed entrants poderá impedir os potenciais efeitos anticompetitivos oriundos de um ato de concentração desde que satisfaça as seguintes condições 16 : (i) o novo entrante possa gerar uma nova oferta significativa, do ponto de vista de seu impacto sobre a oferta geral no mercado relevante, dentro de um período de tempo razoável (“timeliness test ”); 15 Ibid ., p. 11. Segundo o entendimento da FTC e do Departame nto de Justiça dos E.U.A., custos de entrada e saída significativos (significant sunk costs) são aqueles que “would not be recouped within one year of the commence me nt of the supply response, assuming a ‘small but significant and non- transitory’ price increase in the relevant market.” É preciso diferenciar sunk cost do conceito de custos fixos: estes últimos podem ser recuperáveis quando da eventual saída da empresa do mercado, sendo terrenos um bom exemplo. 16 Cf. Horizontal Merger Guidelines, pp. 25 a 30. (ii) a nova empresa possa atuar, no longo prazo, obtendo lucros, segundo os preços vigentes no mercado antes da efetivação do ato de concentração (“likelihood test”); e (iii) a nova estrutura de mercado, após a nova entrada, seja capaz de reduzir os preços de mercado para seus níveis anteriores à realização do ato de concentração (“sufficiency test ”). Caso esses testes sejam satisfeitos, o ato de concentração - fusão ou aquisição - não deverá ser motivo de preocupação por parte das autoridades antitruste, dispensando análises mais aprofundadas 17. Tal consideração fundase sobre o fato de que a ameaça associada à presença de concorrentes potenciais e novas entradas no mercado relevante constituem um obstáculo real ao exercício de poder de mercado por parte de empresas que detenham market shares elevados no mercado relevante previamente definido . Note- se que a definição do período de tempo associado à entrada de um novo concorrente potencial é fundamental para a análise das autoridades responsáveis pela defesa da concorrência. A variável tempo é uma das chaves para a definição do nível de barreiras à entrada: quanto maior o tempo necessário à efetivação da entrada - ceteris paribus - maior o nível das barreiras em um certo mercado relevante. Por outro lado, se o tempo de entrada de novos competidores em decorrência do aumento da rentabilidade em um certo mercado é virtualmente nulo, devido à existência de capacidade produtiva já instalada , surge a questão central da delimitação entre os conceitos de mercado relevante e barreiras à entrada. Com efeito, na tradição antitruste norte- americana de conceituação de mercado relevante , os competidores cuja capacidade instalada pode ser rapidamente redirecionada para a fabricação de novas linhas de produtos são incluídos no mercado relevante, sendo suas ofertas potenciais coerentemente 17 “In markets where entry is easy (i.e., where entry passes these tests of timeliness, likelihood and sufficiency), the merger raises no antitrust concern and ordinarily requires no further analysis”. Cf. Horizontal Merger Guidelines, p. 26. computadas para o cálculo dos market shares das empresas (Bonner e Krueger, 1991, p. 12 e Hovenkamp, 1994, p. 107). Ou seja, esses competidores são considerados efetivos e não potenciais ou externos ao mercado. Na Europa, a presença desses mesmos competidores potenciais seria em geral indicativa da existência de baixo nível de barreiras à entrada num mercado relevante previamente definido, sem levar em consideração a eventual flexibilidade dos processos produtivos de concorrentes que, embora não fabricando produtos bons substitutos pelo lado da demanda, possam rapidamente produzi- los. Neste caso, o mercado relevante é delimitado de modo mais desagregado, mas apresentando baixas barreiras à entrada. IV - Conclusões A tradição em organização industrial e na economia antitruste acabou por entronizar - inclusive na legislação - a noção de concentração industrial e suas medidas como variável- síntese das condições estruturais no mercado, com o intuito de inferir daí padrões de conduta anti- competitiva. No entanto, são questionáveis tanto a base teórica quanto empírica desta focalização na concentração industrial. No plano teórico, é discutível o significado da própria noção de concentração, quanto a seu conteúdo, e mais ainda quanto à sua medida . Concentração é, a rigor, somente um indicador sintético de diferentes dimensões estruturais do mercado procurando captar particularmente, em simultâneo, o pequeno número de concorrentes e a desigualdade de tamanho entre eles. No plano empírico os numerosos testes estatísticos de regressão entre concentração e outras variáveis - especialmente de desempenho, como a lucratividade - resultam inconclusivos, permanecendo substanciais ambigüidades inclusive quanto à direção da causalidade . 18 19 A implicação para a política antitruste é que a antiga noção de que a estrutura de mercado é uma indicação segura para a conduta dos competidores e, por extensão, para balizar e justificar a intervenção estrutural, 18 19 Por exemplo, Possas (1985), pp. 138 ss. Veja-se a resenha de Geroski (1988), pp. 176 ss. não mais se sustenta. O que não impede, entretanto, que algum índice de concentração adequadamente escolhido seja válido como um primeiro sinal, ainda que insuficiente como elemento previsor, apontando para a possibilidade de condutas anti- competitivas. Em poucas palavras, a concentração industrial é uma condição necessária para a acumulação assimétrica de poder de mercado (no sentido amplo aqui adotado, e não só em preços), e por conseqüência para a possibilidade de seu exercício de forma anti- competitiva; mas de modo algum é condição suficiente. A análise das forças da concorrência atuantes num dado mercado não pode prescindir, nesse sentido, de uma análise específica das barreiras à entrada e de seus determinantes, os quais são considerados como essencialmente estruturais, isto é, relacionados a condições tecnológicas, às formas de concorrência típicas do mercado em questão e ao acesso aos mercados supridores, de insumos ou de crédito, a custos mais vantajosos. Em que pesem as peculiaridades de cada tipo de metodologia no que se refere ao conceito de entrada , importa salientar que os princípios e os resultados são basicamente os mesmos. Verificando- se a existência de baixas barreiras à entrada e/ou concorrentes capazes de redirecionar suas capacidades produtivas já instaladas para a fabricação de produtos do mercado relevante, as autoridades antitruste têm fortes indícios de que o ato de concentração não deve gerar grandes efeitos em termos de criação e/ou aumento de poder econômico: em ambos os casos, a elasticidade da oferta é elevada, implicando que as empresas envolvidas no ato de concentração não detêm poder de mercado significativo (Hovenkamp, 1994, p. 107) . 20 20 No entanto, uma importante, ainda que não necessária, diferença deve ser apontada. Trata- se da - provável - distinta duração dos processos de análise de atos de concentração em países onde existe uma notificação prévia e/ou um julgamento preliminar voltado para a eliminação sumária dos casos mais simples. Nessas situações, os market shares dos participantes no mercado relevante, quando nele se incluem os concorrentes potenciais, tendem a diminuir imediatamente, não gerando elevadas participações que engendrem análises antitruste mais profundas. Já quando somente o critério de barreiras à entrada é empregado, ainda que o resultado final da análise seja o mesmo, num primeiro momento as participações tendem a ser mais elevadas, podendo dar origem a processos mais demorados. Evidentemente, a escolha dos métodos deve seguir não somente a tradição de defesa da concorrência de cada país, mas também certos requisitos técnicos. Por exemplo, naqueles casos em que os entrantes potenciais ainda não existem e/ou não podem ser identificados, torna- se imprescindível a definição do mercado relevante sem levá- los em consideração; atribuindo- se, no entanto, baixas barreiras à entrada no mercado. A necessidade de tal método funda- se na impossibilidade de se calcular o denominador - ou seja, a produção total no mercado - da fração do market share de cada participante. Ao contrário, se a base tecnológica de um certo fabricante permite que sua produção possa ser redirecionada para outras linhas de produtos de um mercado, é importante que sua produção potencial desses produtos seja levada em consideração para efeito das participações de mercado das empresas envolvidas na fusão ou aquisição. Vale notar que empiricamente é mais fácil demonstrar o caso de flexibilidade no processo produtivo do que aquele associado a baixas barreiras à entrada, em que as firmas entrantes eventualmente ainda nem existem ou requereriam substanciais mudanças em seus processos produtivos de modo a oferecerem novos produtos no mercado relevante. Bibliografia BAIN, J. (1956). Barriers to New Competition . Cambridge (Mass): Harvard University Press. BAUMOL, W. J.; PANZER, J. e WILLIG, R. (1982). 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