ENTREVISTA LEO HELLER
ÁGUA: DIREITO
HUMANO
A falta d’água em estados do Sudeste brasileiro trouxe à tona a discussão sobre o acesso a esse
serviço como direito básico dos cidadãos. Mas, para além dessa crise, o Brasil vive um significativo
déficit de saneamento: apenas 59,4% dos cidadãos recebem atendimento adequado de abastecimento
de água e menos ainda, 39,7%, têm acesso apropriado a esgotamento sanitário, segundo dados do
Plano Nacional de Saneamento Básico, de 2013.
Diante desse contexto, entrevistamos o Relator Especial da Organização das Nações Unidas
(ONU) sobre Água e Saneamento, o brasileiro Leo Heller, que assumiu o cargo em dezembro de 2014.
Engenheiro civil e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Heller explica o seu papel
como relator da ONU, as implicações, em termos de políticas públicas, de considerar a água e o
saneamento como direito humano básico e analisa o cenário brasileiro em relação aos demais países.
Idec: Primeiramente, qual é o papel do relator especial da ONU sobre
água e saneamento?
O relator cumpre diferentes atividades, como a
realização de missões a países para verificar o atendimento à resolução das Nações Unidas, que reconhece o acesso à água potável e
ao esgotamento sanitário como direito humano básico. Outra atividade importante é a preparação e a apresentação de dois relatórios temáticos anuais, um destinado à Assembleia Geral e o outro
à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Esses relatórios buscam aprofundar a discussão sobre as implicações do reconhecimento desse direito humano, as situações de violação dos direitos,
apresentar bons exemplos da gestão dos serviços etc. O relatório
que apresentarei em 2015 para o Conselho de Direitos Humanos
versa sobre a acessibilidade financeira; para a Assembleia Geral,
será sobre como diferentes níveis de serviços de água e esgoto se
relacionam com a definição dos direitos humanos.
Idec: Em abril, em sua visita a São Paulo, o senhor afirmou que via
indícios de violação de direitos humanos na crise de abastecimento que afeta o Estado. Quais situações podem
caracterizar violação de direitos humanos em relação
ao acesso à água?
Além dos princípios gerais que se aplicam
a todos os direitos humanos (como igualdade,
LH:
Ivan D’Albuquerque
LEO HELLER:
ENTREVISTA LEO HELLER
participação, transparência e acesso
à informação), no caso específico do direito à água e ao esgoto
sanitário, os chamados conteúdos
normativos devem também ser respeitados, os quais incluem disponibilidade, acessibilidade física,
acessibilidade financeira, qualidade
e segurança, aceitabilidade, privacidade e dignidade.
Durante a minha visita a São
Paulo, ouvi importantes depoimentos sobre as consequências da
escassez de água pela qual passa
parte do Estado. Muitas pessoas
afetadas, ou organizações que se
ocupam das populações mais vulneráveis, relataram a experiência
quotidiana de viver em tais condições. Observei indícios de violações, mas será necessária uma avaliação mais aprofundada antes de se
qualificar mais categoricamente as
circunstâncias em que a escassez de
água vem ocorrendo.
As estatísticas de acesso ao
abastecimento de água e de esgotamento sanitário apontam a necessidade de o país melhorar o seu
atendimento. Porém, o Brasil não
se destaca nem por ser melhor nem
pior em comparação com outros
países em desenvolvimento, como a
maioria dos da América Latina. Há
tendências similares nesses países:
o atendimento ao meio urbano é
superior ao do meio rural; o abastecimento de água é superior ao
esgotamento sanitário. Há também
certa cultura de prestação de serviços que explica, de certo modo,
essas tendências. Pautados em lógicas de recuperação de custos a
curto prazo, muitos prestadores são
naturalmente atraídos por centros
urbanos, onde se concentram muitos usuários e que asseguram maior
arrecadação financeira.
Entendo que a adoção de uma
lógica orientada pelos princípios
dos direitos humanos privilegiaria
a extensão dos serviços para os que
mais precisam, por exemplo, para
as populações de vilas e favelas e
a rural. Os custos podem ser mais
altos para atender a essas populações, que muitas vezes não possuem
condições financeiras suficientes,
LH:
direito de divulgar publicamente as
informações do caso de violação e
suas preocupações em relação a ele.
O Estado brasileiro, como membro das Nações Unidas, assinou
vários pactos internacionais que
representam compromissos de respeitar, proteger e realizar os direitos
humanos. Portanto, em caso de
ocorrência de uma ou várias violações desses direitos, o Brasil tem
a obrigação de eliminá-las e, caso
necessário, procurar assegurar reparação às vítimas.
Idec: Quais são as consequências do
ção de direitos, quais medidas a ONU
atraso brasileiro em relação ao aces-
pode tomar e como o Estado brasi-
so adequado à água e ao tratamento
leiro poderia ser responsabilizado?
de esgoto?
Existe um processo confidencial de comunicação entre o
relator especial (às vezes vários, a
depender da natureza da violação)
e o governo do país, que tem um
prazo definido para investigar as
alegações e preparar uma resposta a respeito. A urgência do caso
determina o tempo que o relator
oferece ao governo para responder,
que geralmente não ultrapassa 60
dias. Depois desse prazo, e à luz
da resposta do país, o relator tem o
Uma das principais consequências é o risco à saúde humana.
Sistemas adequados de abastecimento de água, com fornecimento em
quantidade adequada e com qualidade compatível com o padrão de
potabilidade, são comprovadamente
mais seguros para a saúde. Além
disso, contribuem para a igualdade de gênero, para a redução da
pobreza e para o desenvolvimento
econômico. Raciocínio similar aplica-se ao esgotamento sanitário, que
• Agosto 2015 • REVISTA DO IDEC
Idec: Como o Brasil se insere no
cenário global de acesso à água e ao
saneamento?
Idec: Se constatado que houve viola-
LH:
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“PRIORIZAR O USO DA ÁGUA
PARA FINS ECONÔMICOS EM
DETRIMENTO DO CONSUMO
HUMANO PODE CARACTERIZAR
UMA VIOLAÇÃO DE DIREITOS.
NÃO PODE FALTAR ÁGUA NA
CASA DAS PESSOAS”
além de proteger a saúde humana,
tem importantes implicações para a
proteção ambiental. Com o padrão
de desenvolvimento almejado pelo
Brasil, a situação de saneamento
básico deveria ser mais adequada.
LH:
mas isso não deve ser desculpa para não
se prover o seu acesso aos serviços. Cabe
aos governos e aos prestadores de serviço
garantir que o acesso seja universalizado e,
em primeiro lugar, seja garantido para as
populações mais vulneráveis.
Idec: Outro problema no país são as perdas de
décadas. Mas em alguns casos, tem havido movimentação no
sentido contrário. No caso de certas cidades, ou até países, que
se veem na obrigação de implementar medidas de austeridade, como ultimamente no caso da Grécia, a tendência é que
seja transferida a prestação dos serviços para o setor privado.
Às vezes isso acontece por causa da decisão política local ou
nacional, às vezes por exigência de instituições credoras que
financiam a recuperação da cidade ou do país.
água na rede de distribuição: a média nacional é de 36,6%, mas chega a 76,5% no Amapá.
Idec: Em plena crise hídrica, a Sabesp manteve contratos que
Qual é a solução para essa questão e de quem
incentivam o consumo de água por grandes empresas e o repas-
é a responsabilidade por implementá-la?
se de lucros a acionistas. Como resolver esses conflitos entre os
A redução de perdas, realmente
muito elevadas no país, é parte do conjunto de atividades da gestão dos serviços, de
responsabilidade do prestador, que pode
ter incentivo por parte de órgãos financiadores. Pode-se apontar, uma vez mais, certa
cultura do prestador de serviço, que prefere
investir em novas obras de instalação de
infraestrutura, em detrimento da melhoria
da eficiência e efetividade dos sistemas, com
investimentos na manutenção da infraestrutura existente, o que poderia evitar a necessidade dessas obras.
interesses corporativos e o interesse público de acesso à água
LH:
Idec: É possível resolver esse gargalo sem
repassar os custos para o consumidor?
Sim. Pois a perda não é só de água, é
perda financeira também. Então, um sistema
que reduz a sua perda vai também ter o benefício de uma recuperação financeira. Portanto,
o investimento na redução de perdas irá se
amortizar naturalmente, sem a necessidade de
repassar esses custos para os usuários.
LH:
Idec: Nos últimos 15 anos, mais de 200 cida-
des ao redor do globo remunicipalizaram o
abastecimento de água — entre elas, grandes
capitais, como Paris, Berlim e Buenos Aires.
Como o senhor avalia essa tendência?
LH: Alguns estudos vêm mostrando que
essa é uma forte tendência nas últimas
quando há parceria com o setor privado?
Pela ótica dos direitos humanos, o uso prioritário da água
é para o consumo humano. Portanto, pode ser considerada uma
violação quando há uma priorização de uso de água para fins
econômicos em detrimento do uso humano. Não pode faltar
água nas casas das pessoas! Na declaração oficial da Relatora
Especial anterior [a portuguesa Catarina Albuquerque], após
sua visita ao Brasil em dezembro 2013, ela defendeu que a
distribuição de lucro das empresas de saneamento seja acompanhada da obrigação do Estado em reinvestir a sua percentagem
inteiramente na universalização do serviço e no apoio aos mais
desfavorecidos. Ela afirmou não parecer aceitável que, em um
país onde ainda não há acesso universal ao saneamento e onde
as parcelas mais pobres da população são excluídas, os lucros
obtidos no setor sejam usados para custear as despesas correntes do Estado.
LH:
Idec: O senhor defende a inclusão do direito à água e ao sanea-
mento na Constituição Federal. Quais consequências essa mudança traria, na prática, para o acesso a esses serviços no Brasil?
LH: A Constituição é a lei suprema de um Estado, com a qual
toda outra lei ou política e, em consequência, toda atividade do
Estado, deve conformar. A inclusão do direito humano à agua
e ao esgotamento sanitário na Constituição Federal amplia as
obrigações do Estado a respeitar esse direito humano e também
amplia o direito dos cidadãos a exigir que ele seja respeitado.
Essa inclusão pode provocar a adequação da legislação infraconstitucional e das políticas públicas e ensejar, por exemplo, a
adoção dos princípios desse direito na revisão de políticas que
não o consideram integralmente.
REVISTA DO IDEC •
Agosto 2015 • 11
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