UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE JUSSARA
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
HÉLIA DAIANY GONÇALVES RIBEIRO
VINTE CINCO ANOS DE SENSIBILIDADES PICTÓRICAS NA CATÁSTROFE:
ANÁLISES DO SUBLIME E DO GROTESCO A PARTIR DO ACIDENTE
RADIOLÓGICO COM O CÉSIO-137 EM GOIÂNIA
JUSSARA – GO
2012
HÉLIA DAIANY GONÇALVES RIBEIRO
VINTE CINCO ANOS DE SENSIBILIDADES PICTÓRICAS NA CATÁSTROFE:
ANÁLISES DO SUBLIME E DO GROTESCO A PARTIR DO ACIDENTE
RADIOLÓGICO COM O CÉSIO-137 EM GOIÂNIA
Monografia apresentada ao Departamento de História da
Universidade Estadual de Goiás – UEG, Unidade
Universitária de Jussara – GO, em cumprimento a
exigência para obtenção de título de graduada em
História, sob orientação da Professora Mestre Raquel
Miranda Barbosa.
JUSSARA – GO
2012
HÉLIA DAIANY GONÇALVES RIBEIRO
VINTE CINCO ANOS DE SENSIBILIDADES PICTÓRICAS NA CATÁSTROFE:
ANÁLISES DO SUBLIME E DO GROTESCO A PARTIR DO ACIDENTE
RADIOLÓGICO COM O CÉSIO-137 EM GOIÂNIA
Monografia apresentada no dia 06/11/2012 à Banca Examinadora, como requisito para
obtenção do grau de licenciada em História na Universidade Estadual de Goiás, Unidade
Universitária de Jussara.
Membros da Banca Examinadora:
______________________________________________________________
Orientadora: Ms. Raquel Miranda Barbosa
UnU de Jussara e de Goiás
_______________________________________________________________
Examinador: Dr. Clóvis Britto Carvalho
UnU de Goiás
________________________________________________________________
Examinador: Ms.Leandro Rocha Resende
UnU de Jussara
JUSSARA - GO, NOVEMBRO DE 2012
Dedico este trabalho à memória da vovó, a
indescritível
senhora
Vicença
Rodrigues
Bueno, que perto ou longe sempre me
protegeu.
AGRADECIMENTOS
O momento em que temos a oportunidade de agradecer se torna extremamente
importante no término de uma pesquisa, pois é onde podemos mostrar que não trabalhamos
sozinhos, e que para chegar onde estamos precisamos da presença, das risadas, das discussões,
das conversas com os vários personagens que compõem a nossa história.
Desta maneira intero-me dos meus sinceros agradecimentos:
Á Professora Mestre Raquel Miranda por me orientar na construção deste trabalho, e
por confiar em meu potencial, sempre incentivando a pesquisa. Pelos puxões de orelha
quando era preciso, que sempre ecoaram aos meus ouvidos como incentivos. (Ps: Foi uma
graça conhecê-la ao longo desta caminhada, pois se tornou uma grande amiga).
Aos meus amados pais Marley Ribeiro e Hélio Gonçalves pelo amor, carinho e
extrema confiança que depositam em mim. Além de me ensinarem os caminhos corretos para
se conseguir o melhor, o caminho da honestidade, sinceridade e trabalho.
Á minha querida irmã Aline Gonçalves, que desde pequenas dividimos sonhos e
ambições.
Ao Professor Clóvis Britto por suas considerações que não só contribuíram para o
enriquecimento de minha pesquisa, mas como para minha experiência pessoal. E, por mais
uma vez ter disponibilizado um pouquinho de seu precioso tempo para participar da Banca
Examinadora desta pesquisa.
Ao Professor Leandro Rocha que se disponibilizou a ler meu trabalho e participar da
Banca Examinadora.
As minhas queridas afilhadas Júlia Eduarda e Norma Nycole pelo respeito e admiração
que a mim dedicam, sempre se mostrando interessadas na minha formação profissional e em
meu bem estar moral, me tratando sempre com carinho. Nunca me esquecerei do orgulho com
que as mesmas me apresentam: - Esta é minha MADRINHA!
Ao meu cunhado Thiago Fernandes por ter me dado de presente um livro maravilhoso,
que muito me serviu em minha pesquisa e por ter me ajudado quando precisei.
Ao meu amigo e Presidente da Câmara, local onde trabalho, Antônio Carlos (Toim
Pintor), pelos momentos em que me ausentei do trabalho para me dedicar aos estudos, e que
entendeu com toda hombridade os motivos de minhas ausências.
Ás minhas amigas pelos momentos que compartilhamos risadas e angústias: Edylene
Lima por seu carinho, Paula Marques por sua originalidade, Marcos Maciel pela sua simpatia
Fernanda Teixeira por sua alegria, a Aline Oliveira por seus conselhos, a Cristiene Olímpia
por sua simplicidade e a Weslaine Cruvinel por sua personalidade marcante.
Á minha irmã de coração Maristella Franco pelo seu bom caráter que nos
proporcionaram ótimas conversas e momentos inesquecíveis. Enfim, por me incentivar, e por
me tornar responsável por ser “anjo mais velho”.
E por fim, agradeço ao meu (PRINSPE), o incomparável Ismael Rodrigues, que
sempre se mostrou muito atencioso e carinhoso, além de ser extremamente singular... E que
incansavelmente me afirma com ações e reações as “coisas do coração”. Enfim, como diria
Raul Seixas: “Somos a resposta exata do que a gente perguntou”.
Mais que o século XX é uma praga de maldade e lixo, já não há
quem negue! Vivemos atolados na lameira e no mesmo lodo
todos manuseados.
Raul Seixas
A oposição à modernidade se dá dentro da modernidade.
Criticá-la é uma das funções do espírito moderno e mais ainda:
é uma maneira de realizá-lo. O tempo moderno é o tempo da
cisão e da negação de si mesmo, o tempo da crítica... Hoje
somos testemunhos de outra mudança: a arte moderna começa
a perder seus poderes de negação. Já há anos suas negações
são repetições rituais: a rebeldia transformou-se em
procedimentos, a crítica em retórica, a transgressão em
cerimônia. A negação deixou de ser criadora. Não digo que
vivemos o fim da arte: vivemos o fim da idéia de arte moderna.
Octavio Paz
RESUMO:
Ao pensar as representações artísticas dentro dos acontecimentos trágicos ocorridos na
história goiana, notamos que o artista Siron Franco agrega em algumas de suas obras a
tragédia do Césio 137 ocorrida no ano de 1987. Contudo, dentro das perspectivas pósmodernas, podemos pensar a arte por um viés dos domínios da Nova História Cultural. No
trabalho vertente, este estudo ocorre com base nas vítimas pintadas por Siron Franco na série
intitulada “Césio”. Assim, nesta pesquisa enfatizaremos “As quatro vítimas” pintadas pelo
artista, que se tornaram símbolos da tragédia, mostrando que há estreita relação entre o
grotesco e o sublime na arte catástrofe. Para tanto, a fim de perceber a historicidade do fato
pintado por Siron, discutiremos sob a ótica de Zygmunt Bauman os conceitos de modernidade
e pós-modernidade, posta a análise de que é possível em relação às vítimas do Césio 137, no
sentido de compreender o estado efêmero e frágil dos laços humanos. Ainda, nos dispusemos
a realizar exame do quadro intitulado “quinta vítima”, pintado por Siron Franco em 1997,
com o intuito de mostrar que ainda vivemos alinhavados com o Acidente do Césio-137.
PALAVRAS – CHAVE: Acidente Radiológico do Césio 137. Grotesco. Sublime.
Pós-modernidade. Vítima.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
1. Vista frontal do prédio do IGR (1987) – Fonte: CNEN (Comissão Nacional de Energia
Nuclear);
2. Demolição das casas (1987) – Fonte: CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear);
3. Leide das Neves (s/d) – Fonte: http://www.cesio137goiania.go.gov.br/
4. Imagem 01 “Série Césio”, Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
5. Imagem 02 “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
6. Imagem 03 “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
7. Imagem 04 “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
8. 1º Vítima “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
9. 2° Vítima “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
10. 3° Vítima “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
11. 4° Vítima “Série Césio” Siron Franco (1987) – Fonte: http://www.sironfranco.com/
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 18
CAPÍTULO I: Retrospecto Histórico e as Vítimas Fatais: A Gestação e Eclosão do Caos . 22
1.1 - A narrativa do evento ................................................................................................. 24
1.2 - As Vítimas ................................................................................................................... 31
CAPÍTULO II: A Modernidade e a Representação Social da Catástrofe do Césio-137:
conceitos entreabertos ............................................................................................................. 41
2.1 - Catástrofe e Grotesco: história e arte harmonizam-se na busca pelo sublime ......... 43
2.2 - Moderno, Modernidade e Pós Modernidade: celeuma ou encontros conceituais? ... 47
2.3 - História e Arte: relações da Nova História Cultural ................................................. 52
CAPÍTULO III: A Arte Catástrofe: o retrato do sofrimento coletivo por meio de cenas
individuais ................................................................................................................................ 56
3.1 - A estética pictórica/dramática de Siron Franco: performances no grotesco ........... 57
3.2 - O arranjo dos quadros: a estética contemporânea presente nas vítimas do artista .. 64
3.3 – Espólio Social do Acidente Radiológico do Césio-137 ............................................. 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 81
INTRODUÇÃO
Através dos tempos foi se trazendo a possibilidade da utilização de outros campos do
saber para a compreensão de eventos da história. Assim, o estrado visual se mostrou aliado
possante de tais relações. Para tanto, o uso da imagem como documento historiográfico deve
sempre estar alinhavado a um olhar crítico do historiador da arte, já que “É preciso saber
filtrar todas essas imagens, todos esses registros iconográficos” (PAIVA, 2006, p.18).
Todavia, estas relações imbricam-se a desafios animadores para os historiadores
contemporâneos, que a cada vez mais surgem possibilidades de pesquisas históricas.
O fato é que ao utilizar da imagem, seja ela em forma de fotografia ou pintura, o
historiador deve ser prudente, pois a iconografia está agregada com a memória, o que faz
residir um grande risco, tendo em mira que se deve, antes de utilizá-las, realizar estudo
minucioso, para que não caia em contradição e mantenha a veracidade da pesquisa histórica.
Parafraseando Paiva (2006):
A iconografia é tomada agora como registro histórico realizado por meio de
ícones, de imagens pintadas, desenhadas, impressas ou imaginadas [...]. São
registros com os quais os historiadores e os professores de História devem
estabelecer um diálogo contínuo. É preciso saber indagá-los e deles escutar
as respostas (PAIVA, 2006, p. 17).
O diálogo com imagens é possível pelo fato de que a Nova História Cultural não mais
as vê como um simples retrato de uma época, mas pode ser praticável por uma minuciosa
análise, pois elas possuem agora o poder de revelar os contextos em que foram produzidas.
No caso de imagens, como no caso de textos, o historiador necessita ler nas
entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos – incluindo
ausências significativas – usando-os como pistas para informações que os
produtores de imagens não sabiam que eles sabiam, ou para suposições que
eles não estavam conscientes de possuir ( BURKE, 2004, p. 236).
De acordo com Peter Burke é preciso indagar as imagens, realizar uma leitura crítica
da mesma, com o objetivo de perceber as intenções contidas. Não devemos confiar logo de
início que o estudo das imagens é extremamente necessário, pois, contrário ao que pensamos,
Burke discute que “as imagens são muitas vezes ambíguas ou polissêmicas” (2004, p. 234).
Ao pesquisar imagens, notamos que em nossa tarefa de historiador/pesquisador
transparece a extrema importância de se ater às pinturas/imagens em nossos trabalhos, sempre
nos remetendo a ideia de que “a imagem não é o retrato de uma verdade, nem a representação
fiel de eventos ou de objetos históricos, assim como teriam acontecido ou assim como teriam
sido. Isso é irreal e muito pretensioso” (PAIVA, 2006, p. 19). Cabe a nós, historiadores,
buscarmos o entendimento de símbolos e representações artísticas que nos possibilitem uma
reflexão sobre determinado evento, ou até mesmo de um pensamento social.
De acordo com a História Nova, percebe-se que:
A História Nova nasceu em grande parte de uma revolta contra a
historiografia positivista do século XIX, tal como havia sido definida por
algumas obras metodológicas por volta de 1900 [...]; ampliou-se o campo do
documento histórico; ela substitui a história de Langlóis e Seignobos,
fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma história
baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos,
documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos
orais (LE GOFF, 1993, p. 28).
A pesquisa com imagens deve possibilitar uma gama de discussões sobre o contexto
espacial, social e temporal e em que a mesma foi produzida, ou seja, deve-se ver o tempo
histórico em que foi construída de forma que seja possível perceber seus significados.
Portanto, Le Goff nos esclarece que a Nova História Cultural possibilitou aos historiadores
um acervo variado de fontes a serem utilizadas pelo historiador ao se escrever a História.
O que podemos considerar é que o historiador/pesquisador se pauta em sua erudição e
de fontes metodológicas e documentais para a construção de uma narrativa histórica e, a partir
da leitura das referidas fontes, é que surgem as pistas deixadas pelo passado. Entretanto, é a
partir daí que se erige a hipótese, possibilitando que o acontecido seja montado, a fim de que
apresente a construção histórica da imagem e da expressão de algo, dando, assim, significado
à História.
Desse modo, o trabalho do historiador que tem como objeto a arte é claramente
evidenciado no artigo de Barbosa (2011):
Portanto, embrenhar-se pelos caminhos da arte, em suas plurais
representações dialogando com a história, são algumas das opções daqueles
que elegem esse objeto como percurso científico. Desse modo, abre-nos
outras possibilidades para entender as culturas, os contextos, as influências e
as relações de poder intrínsecas às intenções e às sensibilidades humanas.
Isso porque o arcabouço de fontes subjetivas integra o rol desses paradigmas
explicativos da realidade que a Nova História Cultural propõe-se a captar,
discutir e, acima de tudo, redizer (BARBOSA, 2011, p. 03).
Assim sendo, nos domínios de discussão e até mesmo de abrangência histórica,
notamos que as interrogações que a arte nos provoca não está alheia à interpretações e
compreensões. No caso de nossa pesquisa, é como se continuasse uma conversa entre o fato e
as pinturas, que como o método hermenêutico possibilita, tem-se uma gama de perspectivas e
significados a serem transmitidos. Firmamo-nos aqui nas considerações de Gadamer (1997), o
qual teoriza que a árdua do tarefa interprete envolve a consideração da situação dialogal em
que ele está inserido, papel que vai além da reprodução e da simples interpretação.
[...] o fato de uma conversação estar sempre presente em toda parte onde
algo chega à fala, seja sobre quê e com quem for, quer se trate de outra
pessoa ou de alguma coisa, de uma palavra, ou de um sinal de fogo – é isso
que perfaz a universalidade da experiência hermenêutica. Somente na
conversação, no encontro com pessoas que pensam diferentemente, podendo
habitar em nós mesmos, podemos esperar chegar além da limitação de
nossos eventuais horizontes (GADAMER, 1997, p. 207).
“Todo entendimento acontece a partir de um horizonte incrustado, mas tal horizonte é
necessário e interconectado, de forma ubíqua, com o passado” (LAWN, 2007, p. 94). Nestas
afirmações percebemos a importância de se ater a diversas formas de conhecimentos e
narrativas sobre determinado evento. Nota-se que “estamos constantemente num presente
através do qual o passado nos fala” (LAWN, 2007, p. 94). No caso de nossos estudos, o
método hermenêutico revela o grande apego entre as vítimas e a memória coletiva da tragédia
com o Césio-137, daí a grande relevância histórica das pinturas de Siron Franco.
Ao
lidarmos
com
imagens,
observamos
que
em
nosso
trabalho
de
historiador/pesquisador prepondera a importância de relacionarmos história e arte, ressaltando
a relevância de se ater às pinturas/imagens na construção de nossas pesquisas, considerando
que “uma pintura pode ser significativa para o historiador, por testemunhar determinadas
relações culturais, importante para o estudioso iconográfico e, ao mesmo tempo, irrelevante
do ponto de vista estético” (GINZBURG, 1989, p. 57), o que, de fato, reflete uma forma de se
perceber a realidade do artista, sendo que “Acredita-se que esse é o papel do artista: permitir o
diálogo no espaço-tempo do artista, da obra, do espectador” (LELIS, p. 01).
Nesta pesquisa nos utilizamos das pinturas feitas por Gessiron Franco sobre vítimas do
Acidente do Césio-137, a fim de refletir e discutir a História a partir das sensibilidades
humanas, da dor da perda, do medo de se tornar vítima, sendo que é:
[...] a partir da experiência histórica pessoal que se resgatam emoções,
sentimentos, idéias, temores ou desejos, o que não implica abandonar a
perspectiva de que esta tradução sensível da realidade seja historicizada e
socializada para os homens de uma determinada época. Os homens
aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em razões e
sentimentos (PESAVENTO, 2005).
O drama/fato ao qual dará sustento a nossa pesquisa representou e representa até os
dias atuais uma das maiores catástrofes da história brasileira, e a maior do Estado de Goiás,
que ficou conhecido como “O evento radiológico do Césio 137” no ano de 1987. Apesar dos
vários campos aos quais esta pesquisa abre espaço, primamos neste a análise da arte grotesca
pela qual as vítimas foram representadas, com o intuito de estabelecer a importante relação
que existe entre a História e a Arte, como esta possui o poder de se transformar como
documento da primeira.
Nesse sentido, partiremos inicialmente para uma apresentação sensível deste fato
histórico que de alguma maneira representa uma “virada” nos rumos do pensar, do agir, do
ver o mundo nesta sociedade tida como pós-moderna. Em meios às leituras realizadas em
torno do Acidente do Césio 137, ocorrido no ano de 1987, vemos que todos os relatos
possuem o mesmo intuito, o de estabelecer uma relação com a falta de laços, de acreditar no
outro, ou até mesmo, por um ato de amor, ouvi-lo e, que, a partir da perspectiva artística de
Siron, foram capturados e representados artisticamente. Logo, em nosso primeiro capítulo
faremos um retrospecto histórico ao Acidente, apresentando vítimas fatais e o que suas mortes
representaram para a sociedade.
O segundo capítulo tem caráter teórico, pois nele nos remeteremos aos pressupostos
que permeiam e rodeiam nosso objeto de pesquisa. Conceituaremos e discutiremos o conceito
de Catástrofe e, pela perspectiva romântica,1 entendimentos sobre Grotesco e sublime.
Apresentaremos ainda concepções de modernidade e pós-modernidade, pois o Acidente com
o Césio-137 assinala a transição de Goiás entre estes dois períodos. Como é de feitio de nossa
pesquisa, seguiremos a linha da História Nova neste capítulo que consideramos teórico,
discutindo as relações da Nova História Cultural por meio de estudiosos que descrevem e
defendem este novo paradigma.
No terceiro capítulo, trazemos a análise da arte pictórica/nuclear de Siron Franco, no
intuito de discutir a dor presente nos olhos das vítimas, além de buscarmos discussão pelo
descaso social para com as vítimas do Acidente que aconteceu e ainda se opera, sempre
remetido às vítimas pintadas por Siron Franco. Por último, trazemos um espólio de como as
heranças do acidente foram tratadas, falando principalmente do descaso do Governo, com o
apoio às vítimas e no cuidado com o lixo radioativo.
1
Discutimos nesta linha de pesquisa (a romântica), pois é onde frequentemente a morte é relacionada ao
grotesco e consequentemente a busca do sublime, o que é belo aos olhos.
CAPÍTULO I
1.0 - Retrospecto Histórico e as Vítimas Fatais: A Gestação e Eclosão do Caos
“No princípio era a cor. E a cor era azul. Azul! Azul desejado,
reverenciado, procurado à exaustão, como metáfora da irreal e fugaz
felicidade. Azul desbotado. (...) Azul de césio-137, azul de ciência
encapsulada, azul de letal segredo violado... Azul em pó, dançando de mãos
em mãos numa perversa ciranda radioativa no quintal”.
Cida Almeida - roteiro do ensaio coreográfico Azul Esgotado
Neste primeiro capítulo pretendemos expor de forma detalhada o acidente com o
elemento do Césio-137 na cidade de Goiânia – Goiás, no ano de 1987, fertilizando nesta
narrativa alguns pressupostos conceituais que possibilitarão a compreensão da gravidade do
evento.
É importante salientar que este não consiste em um capítulo que preza por
apontamentos e discussões teóricas, visto que, daremos maior ênfase à apresentação do nosso
objeto, assim como os pontos que direcionarão os demais capítulos desta pesquisa, que se
trata de algumas pontuações sobre as diferentes dimensões aos quais nos disponibilizamos
estudar, buscando o conhecimento por meio do retrospecto histórico do Evento Radiológico
do Césio-137, a fim de perceber a construção das vítimas diretas e as retratadas nas pinturas
da arte plástica goiana de Siron Franco.
No mais, faremos a apresentação de um retrospecto histórico que evidencie dentro
desta narrativa a presença de Siron Franco no que diz respeito à forma como são construídas
as vítimas na Catástrofe. Assim, trataremos o que esta representou socialmente à população
goiana, que sentiu o preconceito provocado pelo medo alheio da contaminação e radiação
pelo elemento do Césio; por parte de pessoas da sociedade do Estado de Goiás e de outros
Estados brasileiros.
Nesse sentido, ao pensarmos a tragédia que é o tema principal desta pesquisa, vemos
que surge nos anos Césio-137, inúmeras manifestações críticas, artísticas e sociais em relação
ao evento. Nessa trilha, iremos destacar as pinturas da série “Césio”, de Siron Franco, como
uma maneira de perceber uma realidade expressa nas telas, no artifício, no método do artista,
com um tom mais sensível sobre a dor da perda, da tragédia, do drama ou ainda, o medo
presente nos olhos goianos.
As especificidades destas obras são de extrema relevância para a História,
principalmente se veicularmos este evento à concepção de História Recente, já que elas nos
mostram o rompimento ideológico que a Catástrofe ocasionou nas relações cotidianas desta
comunidade, trazendo à tona situações que até então eram desconhecidas à maior parte da
sociedade goiana. Entretanto, são agregados à pintura e às próprias vítimas, sentimentos
nostálgicos e de medo, o medo do inusitado, de que não se pode evitar o inevitável (a
impotência social e humana em sua individualidade), onde a arte associa-se ao holocausto, ou
melhor, ao poder destrutivo do mesmo, mantendo a ameaça, a dor, o medo.
Todavia, cabe-nos, enquanto estudiosos da História, buscar a compreensão dos
eventos que provocam, modificam os padrões das estruturas sociais. No caso de Goiás, a
“modernização” ou avanços no modo de pensar, de preparar a própria sociedade.
Aqui, busca-se a reflexão sobre o Evento do Césio-137, que na maioria dos casos é
considerada área da biologia e da Química por se tratar de um Acidente Nuclear. Exemplos
não faltam dos quais podemos remeter a acidentes com bombas atômicas. A Segunda Guerra
Mundial nos traz mais de uma representação sobre o poder dessas armas, mostrando ao
mundo a destruição, a outra face do medo, do horror, de desumanidade, de despreparo dos
governos diante de um ataque desta envergadura. Portanto, este é para a História a
representação da gênese do medo e das imagens angustiantes que estão impregnadas no
imaginário social, frente à sensibilidade de quem as vê, as percebe, as sente, as vive.
Uma leitura mais reflexiva de Erik Hobsbawm pode nos proporcionar um pouco mais
de compreensão a que foi, ou melhor, o que representou este Acidente Nuclear para o século
XX. O autor nos revela um período marcado por conflitos e guerras, sendo que neste século
“Viveu-se e pensou-se em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e
as bombas não explodiam” (HOBSBAWM, 1995, p. 34). Escolhemos esta, por caracterizar
sensivelmente a ação do medo, pois vive-se em constante ameaça, bem como na tragédia que
selecionamos para esta pesquisa, onde a radioatividade do Césio-137 agia silenciosamente.
No entanto é neste século conturbado que surge uma nova configuração de ordem no
mundo, uma “nova” ordem que mantinha-se na base das estratégias que buscavam o poder, a
totalidade. Assim, aumentou-se os riscos a serem enfrentados por todas as sociedades, pois
priorizava-se a construção de armamentos bélicos e equipamentos atômicos, que colocavam
países em “segurança” e o planeta em risco. Podemos perceber que:
[...] gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que,
acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento, e devastar a
humanidade [...]. Não aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu
uma possibilidade diária (HOBSBAWM, 1995, p. 224).
Dessa forma, podemos pontuar que o mundo no século XX não estava à sombra da
paz, mas assombrado por fantasmas de dor e de medo constantes. Muito embora convivessem
todos os dias com a insegurança instalada em suas vidas.
Frente aos acontecimentos provocados pela ação humana, direta ou indiretamente e,
no caso do Césio, a sociedade se viu ainda mais surpresa, por pensar uma seguridade vigiada,
principalmente pelo fato de que em 1986, um ano antes do acidente do Césio 137 em Goiânia
- o segundo maior acidente nuclear no mundo até então - havia ocorrido o acidente
radiológico em Chernobyl, na Ucrânia, considerado o maior acidente deste tipo na história da
humanidade.
Privilegiaremos este segundo exemplo pelo fato de tais acontecimentos impactarem a
sociedade goiana de uma forma bastante peculiar que proporciona a nós historiadores um
objeto investigativo sobremaneira fértil, porém o viés que trataremos tal tema é o viés artístico
que se potencializa sob os domínios teóricos sedimentados no campo teórico da Nova História
Cultural.
1.1 - A narrativa do evento
Em um prédio localizado entre as avenidas Paranaíba e Tocantins, no centro da capital
goiana, que havia sido construído em um terreno emprestado pela SSVP (Sociedade São
Vicente de Paulo) desde o ano de 1972, funcionava uma clínica de radioterapia, o Instituto
Goiano de Radiologia (IGR), que teria como acordo ao empréstimo do terreno a função
realizar exames gratuitos aos pacientes da Santa Casa de Misericórdia.
No entanto, o Instituto não cumpriu o acordo. Ante tal fato, sob alegação da Santa
Casa de Misericórdia de descumprimento do acordo, veio à decisão de vender o terreno, no
ano de 1984, que foi comprado pelo IPASGO (Instituto de Previdência e Assistência do
Estado de Goiás), no ano de 1984. Frise-se que a desinstalação e mudança de todos os
equipamentos hospitalares e mobiliários do IGR não ocorreu imediatamente. Dentre os
equipamentos médicos que foram deixados, estava o aparelho que continha a cápsula de
Césio-1372.
2 O nome “césio” origina-se da palavra latina caesius que significa “céu azul”. Foi descoberto por análise
espectral na qual foram identificadas linhas azuis brilhantes no seu espectro. O césio-137 é um dos 32 isótopos
Em meio a esta situação, o IPASGO iniciou uma demolição do prédio em ruínas, a fim
de reformar o local para ocupá-lo definitivamente. Todavia, o antigo dono, inconformado com
o ato do órgão de saúde, entrou com ação judicial, fazendo com que fosse cessada a
demolição do local. Este fato fez com que o prédio ganhasse definitivamente a cara e o status
de abandonado, estando em escombros e ficando nesta situação de 1985 a 1987.
Segue abaixo uma imagem de 1987 da vista frontal do prédio do IGR, de onde foi
retirado o aparelho de Raios-X:
Fonte: CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear)
Nota-se que este prédio estava agora envolto pelo mato, com algumas paredes
demolidas, pairava então neste intervalo de três anos (1985 a 1987) o aspecto de abandono,
tornou-se um lugar isento de qualquer fiscalização.
Assim, como a ideia de vender todos aqueles aparelhos abandonados, havia a
possibilidade de ganhar um “dinheirinho” extra. No dia 13 de setembro de 1987, dois homens
que moravam num Bairro Popular próximo ao Instituto, respectivamente, Roberto Santos
de césio, entre os quais apenas o isótopo césio-133 é estável. O radioisótopo césio-137 é produzido
artificialmente a partir da fissão nuclear do urânio e é usado em radioterapia. No ano do acidente em Goiânia, o
césio estava sendo substituído por outros tipos de elementos como cobalto na fabricação de aparelhos
radioterápicos. Na cápsula encontrada no desativado Instituto Goiano de Radiologia (IGR), havia cloreto de
Césio-137 em forma de pó branco. VIEIRA, Suzane de Alencar. O Drama Azul: Narrativas sobre o sofrimento
das vítimas do evento radiológico do Césio-137. 2010. 181 f. Tese (Mestrado em Antropologia Social).
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP, p. 18.
Alves, conhecido como “Betão”, e Wagner Mota Pereira, que estavam desempregados no
momento, adentraram no suposto prédio abandonado e recolheram um aparelho de ferro e
chumbo, para vendê-lo como sucata. Com o auxilio de um carrinho e mão, levaram-no para
casa de Roberto (localizada na Rua 57, setor Central da cidade), onde iriam desmanchá-lo e
separar o chumbo do restante da peça.
Foram várias as tentativas de abrir a peça de metal, utilizaram de força e jeito, mas
para eles parecia que era impossível romper o lacre do aparelho. PINTO (1987) em seu livro
“A Menina que Comeu Césio”, ao relatar esta situação comenta que:
De nada valeram as valentes porradas no cabeçote do cilindro desferidas por
Betão empunhando o martelo há mais de duas horas, enquanto Wagner
estudava um jeito de ‘abrir’ a peça de metal. Já estava quase escuro quando
conseguiram, afinal, afrouxar o cabeçote que até então estivera preso à
cápsula oval por bonitos parafusos dourados, jamais vistos por qualquer dos
dois amigos. A fim de acalmar um pouco a curiosidade, eles enfiaram a
chave de fenda no orifício sem encontrar nada aparentemente importante,
alguma coisa sólida diferente. O que saiu foi um pozinho ‘esbranquiçado’
(PINTO, 1987, p. 25).
Ao desmontar o aparelho de Raios-X “os dois rapazes romperam o invólucro de
chumbo e perfuraram a placa de lítio que isolava as partículas radioativas do contato com
ambiente” (VIEIRA, 2010, p. 16).
Com essa atividade romperam o lacre de proteção de uma cápsula de Césio137, localizada no interior do aparelho, liberando radioatividade. Deram,
assim, inicio ao episódio que foi qualificado, por autoridades da área
nuclear, como o maior acidente radiológico do mundo ou como o maior
acidente radioativo do Ocidente (CHAVES 1998, p.10).
Roberto Santos Alves e Wagner Mota Pereira levaram a peça de chumbo ao ferrovelho de Devair Alves Ferreira (situado na Rua 26-A, no Setor Aeroporto), que comprou a
peça dos rapazes, juntamente com a cápsula de Césio-137, embora para ele não apresentasse
valor comercial.
Segundo a Repórter Carla Lacerda em uma reconstituição do Acidente baseada na
visão de Odesson Alves Ferreira3, que é o Presidente da Associação das Vítimas do Césio-
3
Odesson Alves Ferreira (irmão de Devair) era motorista de ônibus, atualmente é presidente da Associação das
Vítimas do Césio-137, teve contato com o césio quando o mesmo fez uma visita ao irmão (Devair) que estava
fascinado pelas pedrinhas e queria fazer delas um anel para dar a Maria Gabriela, Odesson pegou uma porção de
césio e espalhou na mão esquerda e espalhou na mão mostrando a Devair que não era possível fazer um anel,
pois não tinham consistência. Hoje carrega a marca do acidente, tem enxerto na mão esquerda. Quando ficou
sabendo da contaminação ele mesmo afirma que já havia contaminado várias pessoas, “eu não sentia nada, cada
organismo reage de uma maneira à radiação. Muitas pessoas foram contaminadas por mim. O painel do veículo
137, afirma que o dono do ferro-velho, Devair, pagou a quantia de “1.600 cruzados pelo
objeto, que foi buscado na Rua 57 pelos irmãos Benevides e Eterno Almeida (também
empregados do dono do ferro-velho). O cilindro foi transportado para a Rua 26-A em um
carrinho de mão utilizado para catar papel” (LACERDA, 2007 p. 20).
Ao examinar o material comprado, Devair percebeu que havia algo de diferente na
cápsula, notando que não se tratava de um tipo de metal comum. O dono do ferro-velho que ia
sair para tomar sua “cervejinha” cotidiana pediu a sua esposa Maria Gabriela que ordenasse
aos funcionários do ferro-velho que colocassem a peça na sala de sua casa com o objetivo de
que a mesma ficaria protegida de possíveis furtos. No anoitecer, Devair Alves Ferreira
percebeu que a cápsula que havia comprado possuía um brilho fascinante, e entusiasmado
com o brilho azul distribuiu aos seus amigos e vizinhos um pouquinho do pó brilhante.
No começo da noite daquele sábado, na sala de sua casa. Devair notara,
primeiro com espanto e depois fascinado, um brilho forte que irradiava
nuances coloridas, destacando-se o azul, verde e rosa. Tudo isso jorrava pela
boca do cilindro de metal, bem no lugar onde estivera atarrachado antes o
cabeçote protetor (PINTO, 1987, p. 39).
Em uma entrevista a TV Anhanguera no dia 29 de outubro de 1987 Devair Alves
Ferreira diz que:
Durante o dia ela é uma peça que inclusive eu nem quis porque era uma peça
revestida de inox e nem tem valor tão bom, não presta. Mas à noite, como eu
tenho o costume de levantar para tomar água, eu vi aquele ‘trem’ azul, achei
bonito, inclusive até pensei em fazer pedra para um anel, tirar aquilo e fazer
uma pedra. Ela floresce e chama a gente assim, sabe como é? Ela atrai
(Entrevista dada por Devair Alves Ferreira em 29 de outubro de 1987. In:
CHAVES, 1998, p. 42).
Notamos através do relato de Devair Alves Ferreira que o brilho da pequena porção de
Césio-137 era capaz de encantar com tamanha intensidade. Neste sentido, pelo relato acima,
podemos perceber que:
[...] o Césio-137 emanava uma deslumbrante luz azul que seduzia os
moradores. Sob a forma de pedra ou pó, o Césio-137 circulava de mão em
mão como uma dádiva maravilhosa que, por vezes, era recebida como um
signo de sorte e bem-aventurança (VIEIRA, 2010, p. 16).
Ao ser retirado da cápsula de proteção, o elemento radioativo do Césio-137 passou a
circular entre os setores ao redor da Rua 26-A e 57, que compreendia principalmente o Setor
virou rejeito radioativo”. LACERDA, Carla. Sobreviventes do Césio: 20 anos depois. Editora da UCG: Goiânia,
2007, p. 25.
Aeroporto e o Setor Norte Ferroviário, além de outros Bairros adjacentes a estes4, liberando
silenciosamente a radiação do Césio-137, encantando e contaminando todos que estavam a
sua volta.
Em um trecho de sua Tese de Mestrado em Antropologia Social, intitulada “O Drama
Azul: Narrativas sobre o sofrimento das vítimas do evento radiológico do Césio-137”,
VIEIRA (2010) comenta que:
Nas mãos de Devair, a cápsula revelou um brilho azul fascinante em uma
noite de setembro. Entusiasmado com sua descoberta, Devair divulgou na
vizinhança o espetáculo da luz azul e distribuiu entre parentes, amigos e
vizinhos alguns fragmentos do pó desprendidos do interior da cápsula. O
Césio-137, libertado da cápsula, passaria a circular silenciosamente pela
vizinhança do Bairro Popular, Setor Aeroporto e Setor Norte Ferroviário,
bairros da região central de Goiânia (VIEIRA, 2010, p. 16).
A exposição ao brilho intenso da peça de Césio-137 já durava cinco dias. Pelo fato de
Devair trabalhar o dia todo fora, quem mais se sujeitava à exposição radioativa era Maria
Gabriela que, em função dos afazeres domésticos, permanecia a maior parte do tempo em
casa. Citando PINTO (1987):
Como de dia a coisa não funcionava, quem ficava a maior parte das horas
perto do cilindro ali no cômodo principal era ela (Maria Gabriela), enquanto
o marido negociava lá fora ou fazia seu plantãozinho no bar. Só no dia
anterior, terça-feira, o cilindro havia sido retirado da sala por alguns
minutos, quando Israel e Admilson resolveram explorar com ferramentas a
origem da luz colorida, cumprindo ordens de Devair, no que resultou na
descoberta da cápsula esbranquiçada (PINTO, 1987, p. 43).
Com o passar dos dias, operava-se nas pessoas que haviam tido um contato maior com
a peça de brilho azul alguns sintomas desconhecidos. Notava-se que Wagner, Roberto,
Devair, Maria Gabriela, Israel Batista e Admilson Alves estavam abatidos, com os olhos
fundos, olheiras muito aparentes, acometidos por mal-estar físico. Registramos aqui que, antes
mesmo que a tragédia viesse à tona, os danos decorrentes da exposição à radiação já
apareciam àqueles que estavam em torno do pequeno ferro-velho, mas, apesar disso, gize-se:
todos os efeitos prejudiciais à saúde foram inicialmente considerados como algum tipo de
epidemia. As diarreias, febres, vômitos e perda de pelo, consistiam, na verdade, os primeiros
sintomas da tragédia radioativa.
4
Os principais focos foram o Setor Aeroporto, o Bairro Popular e o Setor Norte-Ferroviário.
A ingenuidade, seguida pela certa ignorância daquelas pessoas, as expunha a cada dia
a uma fração mais elevada de radiação e as destroçava por dentro, sem que sequer se dessem
conta deste “mal azul”.
Ao saber dos boatos que se intensificavam nos bairros vizinhos em relação ao brilho
azul de uma peça que tinha na casa de Devair, seu irmão Ivo lhe fez uma visita. Ciente de que
a “pequena pedrinha” só brilhava durante a noite, Ivo não conseguiu esconder seu
descontentamento e, numa tentativa de encantar o irmão, Devair fechou as janelas do quarto,
raspou um pouco da pedrinha e chamou seu irmão para ver a mágica do brilho azul. Sentiu-se
irradiante de felicidade quando seu irmão, Devair Alves Ferreira, lhe deu algumas pedrinhas,
pequeninas, mais com luzes incríveis.
Ainda faltavam três meses para o Natal, mas para Ivo era como se o Papai
Noel estivesse agora ali, disfarçado no corpo atarracado de seu próprio
irmão. Pensou na sua mulher Lourdes e nos dois filhos – o menino Lucimar,
de quatorze, e a caçula Leide, de seis anos. Tinha certeza que “aquela coisa
bonita” ia fazer um sucesso fora de série em casa (PINTO, 1987, p. 61).
Ao chegar a sua residência, Ivo jogou as pedrinhas no chão e seus filhos foram brincar
com aquele brilho, chamou sua mulher para ver para ver o espetáculo, Lourdes ficou
observando a pequena Leide se encantar com o brilho azul “esfregando com os dedinhos sujos
num punhado de pozinho luminoso no chão defronte à porta do barraco” (PINTO, 1987, p.
65), mas como já estava na hora do jantar, chamou Leide e todos para dentro.
Leide atendeu prontamente o chamado. No punhado de refeição que a
menina de hábito ingeria vagarosamente, dona Lourdes colocou um ovo
cozido cascado, um dos poucos alimentos que a sua filha gostava. Em vez de
usar a colher (que manejava com grande dificuldade), Leide recolheu o ovo
com os dedinhos magros, levando-o à boca com os olhos arregalados de
prazer. Enquanto mastigava, a mãozinha suja de terra misturada com aquele
pozinho lambuzava o alimento (PINTO, 1987, 65).
Ao irem para cama, descansar após aquele dia de encantos com o Césio-137 “Ivo
levou algumas partículas para sua casa e jogou algumas delas no chão do quarto da filha
Leide e lhe disse, em tom de surpresa e fantasia, que havia uma cidade debaixo de seu berço”
(VIEIRA, 2010, p. 115).
Enquanto isso, aos cuidados de suas mães, Maria Gabriela e Devair estavam cada vez
mais abatidos, ficavam cada vez mais preocupados já que a suposta epidemia havia tingido
vários barracos do setor, mas ainda assim acreditavam que ia passar. Até mesmo o
farmacêutico frequentado pelos adoentados, acreditava se tratar de uma epidemia, mais como
ninguém se curava, estava se preocupando com a situação. Os sintomas pioravam em Maria
Gabriela e Devair, que agora estavam com queda de cabelo muito aparente, o que preocupou
o farmacêutico que os orientava nos cuidados com a melhora do mal estar. Podemos perceber
esta situação nas palavras de Pinto (1987):
Devair arrancou uns fios de cabelo da cabeça com a maior facilidade e
exibiu-os diante dos olhos arregalados de Gabriela. Que desgraça seria
aquela, meu Deus? Parecia coisa do demônio. E por isso mesmo não podia
curar uma doença assim com chá de boldo e receitas do cada vez mais
preocupado farmacêutico. Naquela manhã de segunda-feira ele arriscou um
novo diagnóstico, absolutamente desconhecido para a quase total maioria
dos aflitos pacientes hospitalizados no ferro-velho da 26-A: as erupções e
queda capilar na pele poderiam estar sendo causadas por contato direto com
Urânio, minério atômico radioativo. O palpite do boticário só fez aumentar a
angústia do casal (PINTO, 1987, p. 96).
Suspeita pelo fato de a epidemia ter iniciado assim que o brilho azul chegou a ferrovelho de seu marido, Maria Gabriela sempre pedia ao marido que jogasse a peça que irradiava
brilho no lixo. Como Devair não atendia ao seu pedido, Maria Gabriela juntamente com
Geraldo Guilherme, um dos funcionários de Devair, deram um destino à cápsula de brilho
azul fascinante. Nesse sentido, por ação de Maria Gabriela, esposa de Devair, a cápsula de
Césio-137 foi levada a Vigilância Sanitária de Goiânia, onde entregou ao sanitarista Paulo
Roberto Machado.
Ao entregar a peça para o sanitarista, carregada por Geraldo Guilherme nos ombros,
Maria Gabriela com uma expressão de desespero disse-lhe: “meu povo está morrendo”. Os
funcionários da Vigilância Sanitária até tentaram descobrir do que se tratava aquela peça,
mais foram horas de tentativas vãs.
Enquanto a cápsula de Césio-137 permanecia aos cuidados da Vigilância Sanitária, a
pequena Leide piorava:
Ela precisava com urgência da visita de um bom médico. Desde aquela noite
de quinta-feira, 24, caira de cama com forte diarréia e vômitos seguidos. A
boa dona Lourdes não sabia o que fazer. Precisava ainda cuidar de seu
marido, também arriado com a dor de barriga e a vomitação. Porém, Leide
preocupava muito mais, dando a impressão de encolher a cada dia, gemendo
baixinho de um jeito que dava dó (PINTO, 1987, p. 99).
Na Vigilância Sanitária a cápsula de Césio-137 foi examinada para constatar seu nível
de radiação, o que foi detectado como de alto grau de periculosidade e, com toda certeza,
capaz de ter contaminado a população que com ela manteve contato, o que, de fato, revelou à
sociedade a catástrofe ocorrida. Um dos técnicos da Vigilância à casa de Maria Gabriela e
Devair - passaremos de agora em diante tratar os protagonistas apenas pelo primeiro nome,
devido à familiarização com os mesmos que tivemos até aqui - para informá-los do que se
havia detectado no material que haviam lhes entregado. “Somente em outubro de 1987, a
contaminação foi constatada e o episódio do rompimento da cápsula foi assimilado como
ponto inicial de uma tragédia divulgada como o ‘acidente radioativo com o Césio-137”
(VIEIRA, 2010, p. 17). Levaram o conhecimento do Acidente ao público no dia 29 de
setembro de 1987, no noticiário das 13 horas.
Quando o Acidente Radiológico foi informado, a maioria da população do Bairro
Popular e seus arredores que havia tido contato com a cápsula de Césio-137, já havia
manifestado sintomas, então se evidenciou que as náuseas, vômitos e diarréias frequentes
eram na verdade consequência da exposição da alta radiação. O fato é que:
O acidente com o Césio 137 gerou perplexidade, inquietação, medo e pânico
que se disseminou na sociedade goiana, em particular, e na sociedade
brasileira, em geral. Pelas suas peculiaridades o acidente constituiu-se em
um fenômeno singular que não pode ser compreendido e restringido às
explicações de cunho físico ou biológico (CHAVES, 1998, p.12).
Ao âmbito popular, procurou-se elaborar variadas explicações sobre a que estava
acontecendo, mas quando ouviu-se a informação de que estariam contaminados, o fascínio
pelo azul deu lugar ao medo e ao pânico.
1.2 - As Vítimas
Com a eclosão do caos instalada, a presença de irradiados e contaminados que
aumentavam a cada dia. As partículas de Césio-137 tinham se espalhado pelo ar, infetando o
solo, as plantas e até mesmo os animais; as pessoas que haviam tido contato com a cápsula de
Césio tornaram-se fontes irradiadas, transportando e contaminando os lugares onde passavam.
As casas do bairro consideradas contaminadas somaram um total de 46 (quarenta e seis),
sendo que 08 (oito) delas não puderam ser descontaminadas, o que resultou em suas
demolições.
O fato é que a radiação da cápsula revestida de inox, que continha 19 gramas de pó de
Césio-137, atingiu “uma área de 3.000 m2, infiltrando-se no solo até 50 cm de profundidade
em alguns pontos, provocando a derrubada de árvores e plantas que sofreram radiação, num
raio de 100 m das zonas afetadas” (CHAVES, 1998, p. 55).
Os bairros que tinham aparência familiar eram agora alvo de “uma barulhenta
operação orquestrada por técnicos vestidos com macacões de proteção como astronautas em
um mundo revirado e subvertido pela energia radioativa. Retroescavadeiras, empilhadeiras,
brita, areia e cimento afinados em um concerto de destruição” (VIEIRA, 2010, p. 20).
Os dejetos radioativos, que foram resultados da descontaminação, resultaram em 3.000
m3 de lixo, que foram levados para um depósito provisório. Dentre os dejetos estavam roupas,
utensílios domésticos, itens pessoais, álbuns de família, porções de terras, restos de casas, de
animais, de plantas, todos estes que foram armazenados em cerca de quatorze (14)
contêineres, mil e duzentas (1.200) caixas e dois mil e novecentos (2.900) tambores.
Dentre as casas demolidas estava a de Devair e o terreno de seu quintal foi removido
cerca de cinquenta centímetros (50 cm). Segundo VIEIRA (2010):
A demolição do ferro-velho também decretava o fim da moradia provisória
de meninos de rua e do amplo lote onde brincavam as crianças do bairro,
juntamente com as ferragens e parafernálias do ferro-velho, viravam ruínas
também o quarto, a cozinha e a sala de visitas que a cápsula iluminara nas
noites se setembro (VIEIRA, 2010, p. 23).
A imagem que segue foi retirada de uma das 08 (oito) casas que tiveram de ser
demolidas, pois não era possível sua descontaminação.
Fonte: CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear)
O começo da descontaminação se deu no mês de outubro. Com o início dos
procedimentos, os moradores dos bairros afetados foram retirados de seus lares e transferidos
para um acampamento improvisado no Estádio Olímpico, eles já se reconheciam como
vítimas da tragédia.
Todas as pessoas, que entraram em contato com a luz azul, foram
categorizadas como vítimas e submetidas a um violento processo de controle
intensivo sobre seus corpos e fluidos corporais. A substância radioativa foi
inscrita de maneira indelével em seus corpos, convertidos em fontes de
radiação. Os lugares, os objetos e os animais que estiveram em contato com
pessoas contaminadas também foram irradiados. O signo radiológico
penetrou no sistema de prestações e contraprestações entre parentes e
vizinhos através de fragmentos extraídos do interior da cápsula de Césio137, ou por meio da circulação de objetos e animais contaminados (VIEIRA,
2010, p.17).
A contaminação por radiação foi bastante intensa ao longo dos 16 (dezesseis) dias em
que a pedra de Césio esteve presente naquela comunidade. Na medida em que as pessoas iam
se encantando com o brilho azul, a difusão radioativa era mais intensa e em rotas cada vez
mais diversificadas. Seguindo as relações cotidianas de uma cidade, a radioatividade
expandiu-se contaminando parentes, amigos, vizinhos, ou seja, invadiu as casas e até mesmo
o local de trabalho, pois os funcionários de Devair também foram contaminados.
Após a decisão de descontaminação no local, as pessoas contaminadas e irradiadas
foram levadas a um alojamento improvisado, construído no Estádio Olímpico. Após passar
por exames para medir o nível de radiação presente em seus corpos, os casos considerados
mais graves foram transferidos para o Hospital Naval Marcílio de Moraes5, no Rio de Janeiro.
Diante desta apresentação dos acontecimentos que deram rumo a Catástrofe do Césio137, vê-se a necessidade de compreensão do que é ser vítima.
Na vítima, dominada pelo sistema ou excluída, a subjetividade humana
concreta, empírica, viva, se revela, aparece como ‘interpelação’ em última
instancia: é o sujeito que já não-pode-viver e grita de dor. É a interpelação
daquele que exclama ‘Tenho fome! Dêem-me de comer, por favor!’ é a
vulnerabilidade da corporalidade sofredora – que o ‘ego-alma’ não pode
captar em sua subjetividade imaterial ou imortal – feita ferida aberta última
não cicatrizável. A não resposta a esta interpelação é morte para a vítima: é
para ela deixar de ser sujeito em seu sentido radical – sem metáfora possível:
morrer. É o critério negativo e material último e primeiro da crítica enquanto
tal – da consciência ética, da razão e da pulsão críticas. Aquele que morre
5
O Hospital Naval Marcílio Dias era “o único do país que possuía uma enfermaria especializada para doentes
contaminados com radioatividade”. PINTO, Fernando Augusto. A Menina que Comeu Césio. Ideal: Goiânia,
1987, p. 125.
‘foi’ alguém: um sujeito, última referencia real, o critério de verdade
definitivo da ética. O outro é a vítima possível e causada por minha ação
funcional no sistema. Eu sou responsável (DUSSEL, 2000, p. 529).
Diante das considerações acima, percebemos que no cerne do pensar as privações das
vítimas, que a situação a qual a mesma passa não lhe permite agir com seus próprios recursos,
pois não existe conhecimento, nem ao menos poder para libertar-se a si próprio, pois os
momentos e eventos não pertencem a ela, e sim a uma sociedade. “As vítimas passaram a se
identificar em referência ao evento radiológico, numa redefinição abrupta e traumática da
pessoa e do corpo. A substância radiológica se inscreve no corpo, circunscreve a categoria
vítima e passa a intermediar e restringir suas relações” (VIEIRA, 2010, p. 80).
Na catástrofe ocorrida com o Césio-137, alvo de nossas discussões, a vítima é
caracterizada por suas marcas físicas e psicológicas. No caso, nossa pesquisa foca-se nesta
vítima, que é submetida a um tratamento, que a impossibilita momentaneamente de
desenvolver sua própria vida, e que em alguns casos, não foi possível materializar o sonho de
voltar para casa, como no caso das vítimas fatais.
O tratamento das vítimas que ficaram em Goiânia, que foram considerados casos
menos graves, dava-se a base de seguidos banhos com muita água e sabão, que serviam para
retirar o pó e os resíduos de Césio-137 do corpo. Em um trecho de “A menina que comeu
césio”, Pinto (1987) relata os detalhes desta descontaminação, por banhos.
Várias vezes fora introduzido em baixo do chuveiro de água morna,
cumprindo a ordem do homem que lhe repetia: ‘esfrega, esfrega, esfrega
bastante!’ Ensaboava o corpo com sabão neutro, com o maior cuidado para
não machucar as feridas, a ducha removendo a espuma. Reiniciava o
esfrega-esfrega, o jato de água tirando o sabão, sob o comando da voz
masculina, até que ouvisse: ‘tudo bem’. Aí enxugava a pele com toalha
grossa,macia. Corpo seco, passava uma esponja embebida num líquido de
odor ácido, de cor meio azulada (PINTO, 1987, p. 124-125).
O líquido a que se refere à citação acima é um medicamento chamado de “Azul da
Prússia6”, muito eficiente para a eliminação da radiação do corpo, “um santo remédio
inventado recentemente para ‘chupar’ césio-137 do organismo humano” (PINTO, 1987, p.
125). Como ele não pode ser aplicado diretamente sobre a pele, foi feito dele cremes para que
6
O “Azul da Prússia” é uma solução composta de Cloreto de Ferro com Ferrocianeto de Potássio. Em forma de
medicamento contra contaminação por radiação, é o composto mais eficaz nestes casos, ao ser ingerido, ele
permite que o paciente elimine a radiação por meio da urina e das fezes. “seria o antídoto capaz de combater os
efeitos da luz azul no organismo humano. Entre Césio e cianetos havia uma conversão sutil de substâncias que
permeava as fronteiras entre veneno e remédio. Por coincidência ou não, os ácidos e tintas usadas para identificar
os rastros da contaminação, durante o trabalho de descontaminação dos técnicos da CNEN, também eram azuis”
VIEIRA, Suzane de Alencar. Op. cit., p. 19.
ajudasse na descontaminação externa de alguns pacientes. Alguns pacientes tiveram de ingerir
este medicamento, para casos de contaminação interna, como no caso dos que foram levados,
como casos mais graves ao Hospital Naval Marcílio Dias.
Ao todo, em Goiânia, foram monitoradas cerca de 112.800 pessoas, sendo que destas
249 foram identificadas com um nível de radiação acima do normal no corpo e 20 delas foram
hospitalizadas, uma teve o braço amputado e quatro (04) faleceram, tornando-se as vítimas
fatais do Acidente.
Foram considerados casos mais graves Maria Gabriela, Devair, Ivo, Leide das Neves,
Israel Batista, Admilson Alves, Ernesto Fabiano, Roberto (Betão), Luiza Odete, Kardec,
Wagner, entre outros, transferidos do Hospital de Doenças Tropicais de Goiânia para o
Hospital Naval Marcílio Dias no Rio de Janeiro para um tratamento intensivo. No início do
tratamento, certificaram-se de que a taxa de glóbulos brancos no corpo dos pacientes era
baixíssima, o que representava um problema muito grande.
Com exceção do paciente Ernesto Fabiano, os outros apresentavam uma taxa
baixíssima de glóbulos brancos no sangue. A taxa média de uma pessoa
normal varia entre seis a sete mil. A média dos cinco oscilava entre dois a
três mil. Três deles estavam praticamente indefesos a qualquer ataque
bacteriano ou virótico, podendo morrer até com uma simples gripe: Devair
chegou a trezentos glóbulos. Maria Gabriela de Abreu, a cem. E Leide, a
cinqüenta (PINTO, 1987, p. 125-126).
Notava-se que não havia melhoras em alguns casos, mais Ernesto Fabiano, seguido de
Devair e Wagner, tinham uma recuperação significativa. Roberto (Betão) teve de amputar um
de seus braços. É certo que a equipe de médicos e enfermeiros do Hospital “fazia o possível e
o impossível para salvar os dez pacientes ‘irradiados” (PINTO, 1987, p. 135) que estavam em
estado mais grave. A cada dia seus cabelos caíam mais, suas feridas intensificavam. Era um
sofrimento agudo, vindo de algo tão inesperado, aparentemente tão limpa e ao mesmo tempo
tão especial. Mas a morte, nada sensível, nada desejada, nada querida, já rondava os
corredores do Hospital.
Com a utilização de uma substância sintética7 conhecida como GM-CSF, que
possibilitava a recuperação da medula óssea, a maioria dos pacientes teve uma recuperação
significativa, os casos que mais preocupavam eram o de Maria Gabriela e a menina Leide das
7
GM-CSF: Substância sintética capaz de regenerar a medula óssea. GM-CSF é um estimulador de colônias das
células progenitoras da medula óssea, os quais fazem parte da família de citocinas reguladoras da proliferação,
diferenciação e ativação funcional das células hematopoéticas mielóides e ativam funções fagocíticas e
citotóxica
de
neutrófilos
maduros.
Disponível
em:
http://pesquisasaude.saude.gov.br/bdgdecit/projeto.php?codigo=262 Acesso em: 29 jul. 2012.
Neves, pois ainda estavam com uma taxa muito preocupante de glóbulos brancos, e não
reagiam muito bem com o GM-CSF, estando ainda muito debilitadas.
Para desespero de todos, a tragédia daquele evento na manhã de 23 de outubro de
1987, “Maria Gabriela das Graças Ferreira acaba de dar o último suspiro para a vida. Fora ela
a uma pessoa importante para descobrir a realidade e o valor daquele brilho azul. O Césio137, depois de um cerco implacável de vinte e três dias, inaugura o seu ciclo macabro no
Hospital Naval Marcilio Dias” (PINTO, 1987, p. 141).
A desolação chegava a todos os pacientes como algo implacável, o semblante de uma
mulher “caladona, compreensiva, bonita e valente” (PINTO, 1987, p. 142) ia se
desmanchando no tempo. Ao detalhar os sentimentos sentidos com a morte de Maria
Gabriela, PINTO (1987), diz que:
A desolação atingia forte a moral dos pacientes, variando a reação conforme
o estado de saúde de cada um. Maria Gabriela de Abreu resistia à perda da
filha na base de tranquilizantes. Ivo acumulava na expressão de tristeza a
morte da cunhada e a preocupação cada vez maior por sua filhinha Leide, há
dias inconsciente no leito ao lado de suas bonecas, as ‘filhas’ que ganhara de
presente no hospital. Betão continuava mergulhado em profunda depressão.
Wagner enxugava as lágrimas de longe. Israel e Admilson dormiam sob o
efeito de injeções. Kardec e sua mulher Luíza Odete, os únicos capazes de
levar um abraço de consolo a Devair, preferiam deixar o amigo sozinho. Às
vezes um gesto ou palavra mal colocada só serve para soprar a brasa do
sofrimento (PINTO, 1987, p. 143).
Aos olhos saltavam a percepção da tristeza e do desespero que a morte de Maria
Gabriela havia causado. Destacamos a figura de pai, Ivo, ficava cada vez mais desesperado ao
ver sua filhinha, tão frágil e inocente ali, cada vez pior. Na tarde daquele mesmo dia, “quatro
horas depois da morte de sua tia Maria Gabriela” (PINTO, 1987, p. 145), e também a pequena
Leide das Neves, não suportou a contaminação interna aguda que havia sofrido ao ingerir um
ovo com as mãos sujas de Césio-137.
O episódio recrudesceu o medo na população goianiense revelando-lhe o
caráter fatal da contaminação radiológica. Maria Gabriela e a criança Leide
das Neves não suportaram a excessiva dose de radiação a que foram
expostas e morreram no Hospital Naval Marcílio Dias, na cidade do Rio de
Janeiro. Maria Gabriela Ferreira havia abrigado a cápsula em sua sala de
visitas durante os dias em que seu marido Devair Alves Ferreira exibia o
espetáculo da luz azul à vizinhança. A menina Leide das Neves de seis anos
havia recebido do pai Ivo Alves Ferreira, irmão de Devair, algumas
pedrinhas azuis de Césio-137 para brincar. A criança foi contaminada ao
comer ovo cozido com as mãos sujas do pó radioativo durante o jantar. E
morreria com o diagnóstico de contaminação interna aguda (VIEIRA, 2010,
p. 18)
A imagem de Leide das Neves tornou-se símbolo da Catástrofe, justamente por
representar a inocência com que os goianos receberam a cápsula de Césio-137. Não como nos
outros casos em que houve exposições de indivíduos à radiação, o caso goiano, para esta
menina, bem como para os outros que morreram em decorrência à exposição à pedra do
Césio-137 veio como um sonho reluzente, um brilho da cor do céu. Sua morte nos remete a
pensar em algo grotesco, algo irreal, imparcial demais para alguém que nada tinha haver com
o abandono público do local hospitalar do IGR, até mesmo no sentido mais simples da
palavra, grotesco, incabível socialmente.
Fonte: http://www.cesio137goiania.go.gov.br/
A fotografia8 acima de Leide foi recuperada em sua casa antes da demolição, sempre
ao falar do Acidente com o Césio-137, é a imagem que imortalizou-se na memória social
sobre este ícone. Diante desta imagem, a garota ficou conhecida por meio dos diversos
veículos de comunicação que noticiaram o fato na época.
8
Atualmente esta fotografia encontra-se emoldurada pendurada na parede principal da Suleide.
O fato de estarem na mesma situação em que as duas primeiras vítimas não
consolavam em nada os que permaneciam internados, só aumentavam a dor. Ressaltava-se
nos envolvidos a questão de serem todos muito próximos suas relações cotidianas.
Neste emaranhado ressoava-se na catástrofe sentimentos coletivos pela tomada de
noção social desta violência silenciosa, por negligencia do poder público, que se abateu sobre
a integridade familiar, a ideia de lar, que por sua vez, “a própria família foi esfacelada,
quando não pela perda afetiva de um de seus membros, pelo menos pela perda do lar e/ou dos
objetos e utensílios que compartilhavam em comum” (HELOU, 1995, p. 83). Sem chances de
ao menos saber com o que estavam lidando realmente, desintegrou-se não apenas aquela
família, no seio do lar, mas feriu drasticamente a integridade da família social, a moral e
constituição de uma sociedade por completa tendo o poder público drástica interferência nesta
questão privada.
Com a morte de Maria Gabriela e Leide das Neves, a catástrofe mostrava-se cada vez
mais sólida. Primeiramente no âmbito familiar e nas estreitas relações entre amigos e
vizinhos. Em segundo lugar, na população, local e nacional, através das notícias nos jornais e
nas imagens chocantes apresentadas por estes. Enfim, o drama está “ancorado nas relações de
parentesco, no amor e na amizade que regiam as relações entre os personagens, na
antecipação ou premonição de um destino trágico e na ruptura que o evento crítico provoca
nas vítimas” (VIEIRA, 2010, p. 77).
No dia 23 do mês outubro do ano de 1987, Goiânia se preparava para receber os
corpos de Maria Gabriela e Leide das Neves para seu sepultamento9. Após o falecimento das
duas primeiras vítimas, foi decretado um luto oficial de três dias. Ao término do luto, Goiânia
recebia os primeiros corpos de Maria Gabriela e Leide das Neves. Na manhã de 26 de outubro
os caixões de chumbo foram transportados do Rio de Janeiro até Goiânia por um avião da
Força Aérea Brasileira. O sepultamento deveria seguir as medidas de proteção recomendadas
pela CNEM (Comissão Nacional de Energia Nuclear) contra a radioatividade dos corpos.
Estava por vir um dos dias mais aterrorizantes que o acidente provocara, o medo da
população fez com que iniciasse uma disputa judicial para decidir qual o destino dos corpos
das duas primeiras vítimas.
Os corpos foram colocados em caixões de chumbo lacrados, com cerca de
700 quilos cada, que foram erguidos por um guindaste e depositados em
covas revestidas por espessas camadas de concreto (VIEIRA, 2010, p. 123).
9
Os corpos não poderiam ser cremados, pois os corpos representavam um perigo de contaminação por radiação
muito intensa, então a possibilidade de cremação foi aventada.
As tragédias não param e em 27 de outubro de 1987:
[...] ‘o coração do biscateiro Israel Batista dos Santos, órfão de mãe e da
vida, pára de bater às 6 horas e 40 minutos. Ele era a terceira vítima fatal do
Césio-137’ (PINTO, 1987, p. 152). ‘Um dia depois do falecimento de seu
amigo de confidências, Admilson expirava ao meio dia longe do lar que
nunca teve. Pela segunda vez em menos de 24 horas, ninguém tocou em
comida na enfermaria dos ‘irradiados’ (PINTO, 2010, p. 152).
Os amigos Israel, de vinte dois anos, e Admilson, de dezoito anos de idade, que
dividiam o barraco nos fundos da casa de Devair, dono do ferro velho, tiveram contato direto
com a cápsula de Césio-137. Ao abrirem-na seguindo a ordem de seu chefe, voltaram para
casa juntos, em caixões de chumbo. O enterro de ambos foi mais calmo do que das duas
primeiras vítimas, pois a polícia havia organizado um esquema para que fosse menos
revoltante a manifestação popular.
Neste momento desta pesquisa, justifica a narrativa que ora privilegiamos, para
destacar a importância da manifestação da comoção e revolta social dada por tal infortúnio.
Os sentimentos de fragilidade da vida humana e da sensibilidade social por meio das vítimas
nos dão a sensação de liquidez dos sentidos apresentados por Baumam.
O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro
que assombram os homens e mulheres no ambiente fluído e em perpétua
transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem
qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os
separa (BAUMAN, 2003, p. 48).
As obras de Siron Franco esboçam a tentativa do artista de imprimir uma performance
pessoal interpretativa sobre o sofrimento das vítimas apresentando, sensivelmente, os
sentimentos e as necessidades humanas diante da dor e sofrimento. Este contexto histórico
veio como um pano de fundo para compreensão da inspiração do referido artista plástico,
porém apresentaremos as obras alinhavadas a uma análise teórica das mesmas nos capítulos
que se seguem.
Desde o momento em que se descobriu a existência de um acidente radioativo no seio
de Goiânia, dias “aterrorizantes” marcaram o cotidiano dos goianienses que se vêem
monitorados e visíveis mundialmente por um fato negativo, mudando drasticamente a vida
cotidiana desta sociedade de cultura rural.
A catástrofe energética apresenta-se ambivalente ao cotidiano do Estado de Goiás,
que não menos abalou o cotidiano, direta ou indiretamente dos envolvidos. Ganhou a
intensidade do medo pelos ditos do senso comum que potencializavam o sentimento de terror
por meio do preconceito10 sofrido por Goiás na época do acidente.
Uma das consequências mais palpáveis do acidente nuclear de Goiânia e,
como vimos, a discriminação que a população, o comercio e a industria
dessa cidade e do Estado de Goiás vêm sofrendo. Em termos gerais, essa
discriminação expressa o desejo de particularizar o problema,
circunscrevendo-o àquele estado, àquela cidade e, mesmo na cidade, ao nível
das relações interindividuais. A discriminação esvazia então a natureza
global da questão nuclear, reduzindo-a a um episódio particular, tanto mais
restrito quanto mais diretamente afeto à vida de determinadas pessoas ou
grupos sociais (FIGUEIREDO, 1998, p. 42).
Assim, uma onda de discriminação e preconceito propagou-se dentro do Estado, a tal
ponto que “reservas de hotéis de turistas goianos foram canceladas, nas fronteiras de Goiás,
exigia-se o atestado de não contaminação para entrar noutras unidades da Federação”
(OLIVEIRA, 2008, p.20). Percebemos a partir de então o fator generalizante e
preconceituoso, no que se refere à receptividade dos goianos, espalhou-se por outros
ambientes o que segundo Baumam (2005) pode ser entendido como a insegurança, que tornase assustadora quando frente a frente com os indivíduos.
10
Apesar de não se o foco de nossa pesquisa, não se pode deixar de destacar o preconceito que Goiás sofreu
durante os anos Césio e pós-Césio, o fato é que a discriminação não foi só com as áreas atingidas de Goiânia,
mais por todo o Estado, extrapolando até as cidades próximas a Goiás, o Acidente ganhava caráter nacional.
CAPÍTULO II
2.0 – A Modernidade e a Representação Social da Catástrofe do Césio-137: conceitos
entreabertos
“O grande medo da vida moderna é o medo da subdeterminação, da falta de
clareza, da incerteza – por outras palavras, da ambivalência”.
Zygmunt Bauman - A vida fragmentada
Os processos históricos que caracterizam a austeridade social deslocam-se entre si no
preâmbulo do mundo social, cadeias de acontecimentos que por sua vez nos remetem a
identificarmos os fatos e acontecimentos históricos dentro de um recorte, de um tempo
histórico. Contudo, tais recortes nos sujeitam a conceitos de identidades dos próprios sujeitos
enquanto agentes individuais e coletivos.
Neste espaço, lançamos ao entendimento do que é a Modernidade, ou em um mesmo
sentido, o que são as sociedades modernas e ou pós-modernas, percebendo que tal designo
desta mesma sociedade se dá pela compreensão de uma identidade de exposições, alegando a
legitimidade de um sentir-se moderno, a partir do que se define pelo caráter de mudança
social, econômica e política, arrolados a uma revolução ou pós-revolução que se encarregaria
de inserir determinada área do conhecimento histórico ao indivíduo, compelido pelas ideias
revolucionárias. Logo, os sujeitos pertencentes a este estar social seriam indivíduos inseridos
em uma complexidade dessemelhante a anterior, quebrando os paradigmas do tradicional, por
esta conjectura, tornando-se modernos.
Por conseguinte, segundo Giddens a modernidade para a História alude a movimentos
que surgiram na Europa, e que conquistaram o mundo de maneira muito rápida, sendo que
consistem em um modo de vida, de organizar os costumes e a sociedade. Portanto, em meio às
discussões que envolvem conceitos e relações da Modernidade, chegamos ao estudo dos
modos de vida que a sociedade sofre. Para refletirmos acerca dessas mudanças e relações
cometidas pelo social moderno que vem se desvencilhando do tradicional, nos pautamos nas
palavras de Anthony Giddens (1991):
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de
todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem
precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade,
as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a
maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes.
Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer formas de
interconexão social que cobrem o globo; em termos intensionais, elas vieram
a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características de nossa
existência cotidiana. Existem, obviamente, continuidades entre o tradicional
e o moderno, e nem um nem outro formam um todo à parte; é bem sabido o
quão equívoco pode ser contrastar a ambos de maneira grosseira. Mas as
mudanças ocorridas durante os últimos três ou quatro séculos — um
diminuto período de tempo histórico — foram tão dramáticas e tão
abrangentes em seu impacto que dispomos apenas de ajuda limitada de nosso
conhecimento de períodos precedentes de transição na tentativa de
interpretá-las (GIDDENS, 1991, p. 10-11).
Diretamente, sob um olhar do Acidente Radiológico do Césio-137, considerar-se-á
que:
Os sentimentos, as relações e os lugares são violentamente atingidos. As
pessoas são arrancadas de suas casas, classificadas e isoladas, os lugares são
destruídos e todo patrimônio familiar é transformado em lixo radioativo.
Trata-se de um acidente cuja história se conjuga às histórias das vítimas.
Narra-se a catástrofe como uma tragédia instaurada no âmbito da parentela.
Os membros da parentela e a comunidade de vizinhos e amigos são lançados
juntos na trama da catástrofe. A dor física da radiação alinha-se à dor das
perdas, de uma vida transtornada, interrompida e lançada no terreno incerto
do acidente radioativo (VIEIRA, 2010, p. 57).
O argumento da mudança deste rigor de pensamento moderno nos sistemas leva-nos a
refletir sobre o pensar moderno, do medo nas relações entre homens (como um todo), o que
Bauman nos propõe em sua obra “Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos”,
em que o mesmo expõe que as sociedades modernas constroem imagens que tem como
objetivo retratar um fim satisfatório, o ser preocupa-se com si mesmo, tem-se a urgência de
viver relacionamentos, que transformam-se em líquido, pois se desfazem, e o que prevalece?
Assim sendo, o que torna-se sublime em uma catástrofe são os sentimentos que
provocam as fragilidades humanas, as relações que exprimem sensibilidade, como por
exemplo o medo. O que é perceptível no pensamento de Bauman, é sua afirmação de que a
insegurança do homem é que causa os conflitos e inseguranças internas.
Pensemos aqui o Acidente Radiológico do Césio-137, que para se verificar a
periculosidade de um elemento, precisou de uma parcela de moradores do bairro popular,
onde aconteceu a tragédia, ficarem doentes para haver a denúncia da presença do Césio. Esta
situação é clara nos pensamentos de Bauman: “A misteriosa fragilidade dos vínculos
humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados
por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos.” (BAUMAN,
2004, p. 8). Tudo isso se deve ao medo, a insegurança da sociedade moderna.
Primamos nesta análise compreender o efeito da representação do Acidente
Radiológico do Césio-137, por um viés cimentado no conceito de modernidade, pois torna-se,
uma fase em que o Estado de Goiás transitaria, a partir do acidente por meio das vítimas, do
fato e no caso desta pesquisa, por meio das telas que retratam, imortalizam “As quatro
vítimas” do Césio-137, pintadas por Siron Franco. Seguiremos neste capítulo com uma
análise teórica que fundamentará a relação arte, história a fim de embasar este tema para as
discussões historiográficas à luz da Nova História Cultural como algo possível.
2.1 - Catástrofe e Grotesco: história e arte harmonizam-se na busca pelo sublime
Na necessidade de compreensão do que tenha sido e a intensidade do Evento do Césio
no mundo das artes, chegamos à conceituação do termo Catástrofe que caracterizara o
Acidente como algo inevitável e provocador de uma imensa dor, não só familiar, como
também de relações que se expressaram de diversas formas, como preconceito, medo e
nostalgia, assim como dito no primeiro capítulo desta pesquisa. Entretanto, já sabemos que o
termo se refere a determinados acontecimentos que em seu sentido real envolvem pessoas,
espaços e efeitos vastos, que a um primeiro momento é para a sociedade envolvida um evento
inimaginável, a que são agregados fatores negativos.
Sendo assim, definir o que é catástrofe não é algo fácil, contudo, neste trabalho
primaremos pelo sentido de buscar em tal definição, o traumático, a dor física, mental social
exprimida pela sensibilidade do termo, as feridas ocasionadas pelo desgaste sob o inesperado,
o imprevisível, o trágico. “Catástrofe é o antípoda da ideologia do progresso, o avesso da
modernidade, a materialização do caos, a prova do fracasso em controlar as forças do cosmos
ou de criar instituições sociais adequadas”. (OLIVEIRA, 2008, p. 16).
A ideia de catástrofe que buscamos relacionar nessa pesquisa é justamente aquela que
se discute acerca do inesperado, do desigual no sentido histórico do fato. Nesse sentido se
olharmos sob a repercussão do Evento do Césio-137 em Goiás do ponto de vista das
fragilidades. Eliézer Oliveira de Oliveira escreve que:
[...] além da perda de vidas, dos prejuízos financeiros e materiais, da dor e do
sofrimento, produziram profundos abalos na identidade goiana. Mostraram
que a elite intelectual e política estava nua. Elas são como um espelho, um
espelho mágico, com que se podia ver a face enrugada e feia da bruxa que
parecia ser bela e sempre jovem. Elas mostraram o errado, o caótico, o
inesperado e o indesejado do processo civilizador” (OLIVEIRA, 2008, p.
16).
Diante desse ponto, percebemos que a Catástrofe entra como algo inusitado, não
planejado, nem ao menos esperado pela sociedade, e que em alguns casos é resultado da ação
humana. Para afirmar esta prerrogativa podemos nos apoiar nas expressões de Bauman
(1998), em sua obra “Holocausto e Modernidade”, onde o mesmo afirma que o holocausto11
vem a ser um acontecimento possível por causa das conseqüências da modernidade, como se
ela (a catástrofe) representasse um fenômeno inadequado que se firma na cruel noção e
afirmação do progresso.
É nesse caminho que Bauman nos revela não crer na equivalência entre a modernidade
e o progresso, pois o Holocausto revela o fracasso da conjectura do moderno, contudo, afirma
que:
O holocausto foi tanto um produto como um fracasso da civilização
moderna. Como tudo o mais que se faça à maneira moderna – racional,
planejada, cientificamente fundamentada, especializada, eficientemente
coordenada e executada – o Holocausto foi um empreendimento em todos os
aspectos superior, se medido pelos padrões que esta sociedade pregou e
institucionalizou (BAUMAN, 1998, p. 112).
A Catástrofe é então um fenômeno que tem o poder de quebrar com a rotina de
determinada sociedade, pois pode provocar ferimento, trauma, assim como afirma Silva
(2006), que considera um evento como Catástrofe pela avaliação do âmbito de sua
repercussão, pois se for pequeno cuida-se apenas um ferimento, que abala particularidades e
não a sociedade num todo. Por este motivo é que Eliezer Cardoso (2008) considera a
Catástrofe como um evento hermenêutico, pois o entendimento da mesma se deve a forçosa
necessidade de estabelecer sua situação histórica, como uma maneira de reconhecê-la como
um episódio que se torna fato por meio de sua singularidade.
Nessa perspectiva, podemos pensar a Catástrofe como momento que desestrutura
subitamente o social, tratando-se de alterações espontâneas e enérgicas, que surge sem aviso
prévio e se incorpora às relações humanas, dando-lhes a incerteza do que virá, sobre seu
próprio vir a ser.
As Ciências durante os tempos sempre procurou se atualizar, com um dos principais
intuitos evitar catástrofes tanto naturais como produzidas pelo homem. Noutro ângulo, a arte
11
Ao discutir o “Holocausto”, na maior parte de sua obra Bauman (ANO) refere-se a tragédia de Auschiwtz. No
mais, ao falar da conceituação de holocausto o autor expressa que o conhecimento do progresso não conduziu os
homens, pelo contrário, estabeleceu desavenças e perseguições, firmando o anti-semitismo e o racismo contra os
povos.
vem com uma maneira de enxergar as catástrofes, com um sentido distinto ela não nega a
beleza que uma catástrofe pode gerar. Para compreender tal prerrogativa podemos nos firmar
nas palavras de Eliézer Oliveira (2008) ao afirmar que:
A ciência não lida bem com as catástrofes, pois elas são a expressão concreta
do fracasso do projeto Iluminista de eliminar o mal do mundo. Já a arte é
muito mais antiga do que o Iluminismo e nunca foi seu objetivo livrar o mal
do mundo (OLIVEIRA, 2008, p. 26).
“Portanto as catástrofes não são inomináveis e irrepresentáveis” (Idem, ibdem, p. 26).
No âmbito das artes as Catástrofes vem sendo ao longo do tempo retratadas como uma forma
de mostrar o que até certo ponto consideramos Grotesco, já que a arte se une a história, e
juntas buscam retratar a perfeição da Catástrofe, o que tratamos aqui como o sublime.
Segundo Eliézer Oliveira (2008), quanto a retratar o catastrófico pela visão ou assistência da
arte e da história, vê-se que:
Graças a ele, o medo, o terror, o angustiante, o monumental e o assombroso,
o magnífico tornam-se arte. É um conceito que demonstra não só a maneira
de encarar a arte, mas também a sociedade e a natureza. Nesse aspecto podese afirmar que o belo clássico é um conceito mais afinado com a civilização,
com o refinamento dos costumes e com o controle dos instintos, mais
propícios para designar as construções arquitetônicas, o nascer do sol, o dia
claro e limpo, os regatos de águas límpidas [...] as relações sociais amistosas.
Já o sublime está mais próximo a natureza e às sociedades Pré-modernas. Ele
se manifesta nas ruínas, na escuridão da noite, nas tempestades, nas
enchentes, nas matas fechadas, nos animais ferozes, nos grandes incêndios,
nas chacinas. O sublime é compatível com uma sensibilidade de temor e de
dor, mantendo um tom respeitoso e solene (OLIVEIRA, 2008 , p. 22).
Na caracterização do catastrófico encontramos o medo, que pode ser assinalado
também como insegurança. Segundo Bauman este sentimento corresponde à “falta de defesa”,
percebemos então que o ser humano ainda é uma criatura indefesa. O medo enfrentado pela
sociedade moderna não depende de causa específica, ele vem de todos os lados, sendo assim
possui causa independente. Afirma que “seja dirigida aos desastres de origem natural ou
artificial, o resultado da guerra moderna aos medos humanos parecer ser sua redistribuição
social e não sua redução em volume.” (BAUMAN, 2008, p. 107).
Cabe destacar no que se diz a arte do grotesco, a pintura catástrofe que é reconhecida
pelo seu caráter “estranho”, mutável, disforme, irregular, monstruoso, ambíguo, que na
maioria das vezes pode vir a retratar a dor da perda, da morte, esta perspectiva é defendida por
Wolfgang Kayser (2009):
Nenhum elemento sublime em si, ou grotesco em si, é unido num todo ‘belo’
ou ‘dramático’, pois grotesco é justamente contraste indissolúvel, sinistro, o
que-não-devia-existir. Perceber e revelar tal simultaneidade incompatível
tem algo de diabólico, pois destrói as ordenações e abre um abismo lá onde
julgávamos caminhar com segurança (KAYSER, 2009, p. 61).
É como se a pintura se comunicasse com a mente de quem observa, movimentando
com seu interior, como “uma projeção cultural de um estado interior.” (RUSSO, 2000, p. 40).
Ainda em Kayser (2009) notamos que o conceito de grotesco analisado é o proposto
por Victor Hugo,12 onde afirma-se uma visão romântica do que viria a ser o grotesco, sendo o
mesmo considerado uma forma contrastante que possui um turbilhão de formas, que vai de
aspectos sobrenaturais e que causam medo, espanto, dor; até ao riso esquálido, detentor de
despretensões lógicas, onde chegam a expressar uma beleza encantadora, cativante. De acordo
com Bakhtin (1993) “no grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma do humor, ironia
ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador positivo do riso se reduz ao
mínimo” (BAKHTIN, 1993, p. 35). Grosso modo, podemos dizer que o grotesco mantém o
mistério do esdrúxulo, e ao mesmo tempo pode dar a ideia de irracionalidade, que
constantemente é associado ao sublime.
O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se
necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o
grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de
partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e
mais excitada (HUGO, 2002, p. 33).
E assim, na pintura catástrofe surge a busca pelo sublime, como uma forma de
perceber e de viabilizar uma estética sobre a catástrofe, sendo que podemos afirmar que o
sublime está muito além do raciocínio, é muito mais uma razão instintiva. Nesse sentido
Eliézer Cardoso utiliza-se de Edmund Burke para pensar tal situação, diz que:
O sublime para Burke é mais instinto do que raciocínio. Ele é arrebatador,
invade o espírito, completamente, paralisando-o sem lhe dar tempo para
12 Em defesa do Grotesco, Victor Hugo escreve Do Grotesco e do Sublime. Nele, o autor francês diz: “deveria
ser feito, em nossa opinião, um livro bem novo sobre o emprego do grotesco nas artes”. Hugo defende a união
harmoniosa de opostos como o feio que existe ao lado do belo, o disforme ao lado do gracioso, o grotesco no
reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz, o corpo com a alma, o animal com o espírito... para
alcançar uma elevação da Arte e fugir do comum que, segundo ele, é seu inimigo. Para fugir do comum, Hugo
sugeria a rejeição do tradicionalismo e a inovação em todos os campos da arte. Essa inovação consistia em
contrapor opostos harmoniosamente de forma que um ressaltasse o outro, valorizando-os ao mesmo tempo em
que
mostrava
uma
realidade
natural,
não
idealizada.
Disponível
em:
ppgav.ceart.udesc.br/ciclo3/anais/Amanda%20Nascimento.doc Acesso em: 19 ago. 2012.
reflexão. O espírito é invadido pelo terror, mais ao mesmo tempo sente
admiração, reverencia e respeito pelo objeto que lhe suscita tal sentimento.
[...] Para Burke as fontes do sublime encontra-se nos objetos e não nos
sujeitos (OLIVEIRA, 2008, p. 34).
Na teoria romântica defendida por Kayser (2009) o grotesco costuma invadir a vida
comum, numa ameaça a desestruturação da mesma, sendo assim ele (o grotesco) se pauta nos
contrastes da vida cotidiana, seja por meio da poesia, da pintura, da música... Enfim, a arte
grotesca pode vir a expressar ameaças. No caso de nossa pesquisa, a pintura grotesca unir-se-á
a morte presente na tragédia do Césio-137, em que história e arte uniram-se para retratar a dor
da perda das vítimas e os defeitos físicos deixados pela radiação no corpo das vítimas fatais.
Segundo Eliézer Cardoso (2006) a relação entre a dor e a morte é “mais íntima do que
muitos imaginam.” (OLIVEIRA, 2006, p. 262). Ela pode vir a manifestar as forças da alma do
homem. Segundo o autor os homens são capazes de ver, sentir através do sentimento de perda
alheio, a arte é capaz de compendiar o sublime, que segundo os autores românticos, é
essencial a estética da catástrofe.
Victor Hugo (2002) diz que:
[...] na nova poesia, enquanto o sublime representará a alma tal qual ela é,
purificada pela moral cristã, ele [o grotesco] representará o papel da besta
humana... O segundo tomará todos os ridículos, todas as enfermidades, todas
as feiúras. Nesta partilha da humanidade e da criação, é a ele que caberão as
paixões, os vícios, os crimes; é ele que será luxurioso, rastejante, guloso,
avaro, pérfido, enredador, hipócrita (HUGO, 2002, p. 36).
Em concordância com a citação acima, Baudelaire (1995), em sua obra “Flores do
Mal”, a arte grotesca nos tempos de modernidade trazia consigo o imaginário do avanço e do
fastio, ou seja, está vinculado ao progresso e ao tédio, o que é monstruoso e defeituoso, que se
mistura ao belo, ao que é encantador, sendo que “a mistura do grotesco e do trágico é
agradável ao espírito, como as discordâncias aos ouvidos enervados.” (BAUDELAIRE, 1981,
p. 37). Aqui o grotesco se revela de forma mais forte, contundente, se alinhavado ao tema da
morte ou de estados doentio, mórbido. Trata da sensibilidade dos homens, trazendo a flor da
pele o sentimento de desavença entre os homens.
2.2 - Moderno, Modernidade e Pós Modernidade: celeuma ou encontros conceituais?
Historicamente a modernidade refere-se a um estilo de existência pautado nos
costumes e em uma organização social que surgiu por volta do século XVII na Europa,
transportando-se para o mundo em um passo acelerado. Para Bauman (1999) é impossível
falar modernidade sem remeter ao século das luzes, já que nesse período é que se deu o auge
da Razão. Giddens (1991) afirma que existem quatro formas institucionais que mantêm um
elo, sendo que uma dá força a outra, elas são: o capitalismo, o industrialismo, a vigilância e o
poder militar.
Esta relação com a modernidade está justificada por Bauman (1999) quando afirma
que “existência é moderna na medida em que contém a alternativa da ordem e do caos.”
(BAUMAN, 1999, p. 14). Evidencia-se a Modernidade Líquida, que torna o indivíduo o
núcleo de tudo, onde nesta modernidade todos devem ser indivíduos, todos devem ser
diferentes, e para cumprir isto, o que vale agora é cada um por si. Constrói-se a
individualidade. Agora tudo é liquido. Tudo se desfaz rápido.
Entretanto, cabe aqui ressaltar a perspectiva de Bauman em relação ao que é ser
moderno, ou melhor, as nuances que levam um lugar, sua dependência à condição de moderno
e (pós) moderno. Segundo o autor “existência é moderna na medida em que contém a
alternativa da ordem e do caos” (BAUMAN, 1999, p. 14). Sendo que, a própria identidade
também se torna algo instável. Dentro deste plano de modernidade e pós-modernidade,
Bauman prefere que diferenciemos por dois tipos de modernidade: a líquida e a sólida.
A modernidade sólida se caracterizaria pela ideia de um projeto de sociedade
moderno, que consistiria na busca pelo controle do mundo através da razão, que teria como
principal objetivo tornar este mundo cada vez melhor, onde eliminar-se-ia a ambiguidade
existente. Os dois pontos de destaque em sua teoria são os Estados-Nações e a Ciência. Sendo
que o papel dos Estados-Nações forneceria “os critérios para avaliar a realidade do dia
presente. Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e
cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas.” (BAUMAN,
1999, p. 29). A Ciência, por sua vez, nasceria com o propósito de buscar na natureza os
subsídios necessários para suprir as necessidades humanas, ou seja, “conquistar a Natureza e
subordiná-la às necessidades humanas” (BAUMAN, 1999, p. 48).
No entanto, ao refletirmos sobre as defesas de Bauman (2001) sobre a modernidade,
percebemos a semelhança no pensar de Adorno e Horkheimer, em que os mesmos
averiguaram a autenticidade do funcionamento de uma racionalidade chamada de
instrumental13, pelo que percebemos que “o pensamento crítico, que não se detém nem diante
13
A razão instrumental, segundo Horkheimer é aquela que é neutra, abstrata e apela pela formalidade lógica e
matemática das coisas, sendo assim: “a razão subjetiva (instrumental) é a faculdade que torna possível as nossas
ações. É a faculdade de classificação, inferência e dedução, ou seja, é a faculdade que possibilita o
do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas
tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da
grande marcha histórica” (ADORNO; HORKHEIMER, 1991, p. 9), que segundo Bauman
(2001), só é possível seu predomínio através da modernidade, que se dá principalmente
através dos dois pontos citados acima: o Estado e a Ciência, onde se eliminaria a
ambivalência das contradições, das incertezas, cabendo aos indivíduos a adaptação a esta
nova forma de caminhar da política e das ciências e tudo o que fosse regido por elas.
Portanto, a modernidade sólida seria, segundo Bauman, o ponto onde a razão se
voltaria contra si mesma, uma boa prova disso seria as tragédias nucleares de Hiroshima e
Nagasaki, que abalaram o mundo por terem representado o fim de um período de dominação,
separaram o mundo ao invés de uni-lo.
A modernidade líquida seria a que preza pela individualidade, a que trouxe mais
liberdade ao homem, considerado aqui por moderno, a que não exige que os laços entre os
indivíduos sejam mantidos, é a que liberta o homem dos laços estreitos da vivência em
comunidade.
O que caracterizaria o homem seria o fato de o mesmo ter se tornado um indivíduo,
que possui agora com a modernidade a liberdade de ação. De acordo com Bauman “a
apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna”
(2001, p. 39).
Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes
como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com precedentes
e manter-se fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das
oportunidades mutáveis e de curta duração, não constituem opções
promissoras (BAUMAN, 2005, p. 60).
Na modernidade que carrega consigo a liquidez, as necessidades dos indivíduos é
virem a se tornar a lei universal, ou seja, todos são diferentes, por meio de suas próprias
condições14. O que vale agora é não se prender mais a nada, nem a ninguém. Entretanto, não
“funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento”. (HORKHEIMER, 1976, p. 11). Esta razão ao qual
falamos é a razão pensada pela maioria dos teóricos, sendo que esta em especial foi transformada em uma mera
abstração, onde o individuo perdeu sua autonomia.
14
Cabe citar que, segundo Bauman o consumo tem um papel muito importante, sendo que o mesmo representa
para a modernidade líquida sua principal forma de construção da individualidade, pois ele satisfaz desejos
momentâneos e se esvai, sendo móveis, passageiros, assim como os líquidos, que seguem contornando os
obstáculos. É como se o consumir contribui-se para o bem-estar individual, tornando-os prisioneiros do capital.
Nos utilizamos de Adorno e Horkheimer nestas considerações pelo fato de os mesmos afirmarem que com a
chegada da modernidade a civilização foi levada a uma dialética que os prende ao consumo, ou seja, sem
podemos nos esquecer que estas considerações valiam para cidadãos de grandes metrópoles,
sendo que ainda aqui no Estado de Goiás, a modernidade é considerada tardia, o Evento
Radiológico do Césio-137 pode nos explicar esta situação, seguindo por uma lógica de que se
funcionasse com padrões de sociedade moderna, de acordo com a conceituação trazida pelo
autor acima.
Em meio a estas questões percebemos que a sociedade criada pela modernidade rejeita
o sentimento de perda. Para afirmar estes sentimentos e sensibilidades, Pablo Augusto Silva
(2006) afirma que:
O homem moderno tentou aniquilar a morte rejeitando-a tanto como algo
‘natural’ quanto expelindo-a para a esfera do irracional. Freud afirmou que a
morte era inconcebível psiquicamente (já que em nosso inconsciente só
podemos ser mortos), e mesmo quando a psicanálise debruça-se sobre tal
assunto é sempre na tentativa de domá-lo, racionalizá-lo, compreendê-lo
cientificamente; de uma perspectiva psicanalítica isso significa que a morte é
tão somente a aniquilação do ego; todo o pavor, misticismo e mistério nela
presentes são ordenados em um conceito. Essa tentativa de classificação de
um sentimento que remete ao grandioso é mais uma daquelas ambivalências
que a modernidade tentou expelir sem êxito; o sentimento de rejeição da
morte equivale ao medo do desconhecido. (SILVA, 2006, p. 25-26).
Voltando-se para o Acidente do Césio-137 no Estado de Goiás, notamos que a cidade
de Goiânia15, que emergia em meio à modernidade da mudança, era composta por uma
população frágil em seus laços que, com a tragédia, foram atingidos pela “doença social”,
onde apelou-se pela destruição da memória coletiva, fazendo com que o prejuízo da dor, por
causa da perda das vidas, caracterizassem a calamidade de medo espalhada na sociedade pelo
Césio-137, abalasse a identidade goiana, como pelo silêncio dos inocentes, como da menina
Leide das Neves, que depositou sobre Goiás a extensão sensível e material do trauma social
que o Acidente Radiológico do Césio-137 representou; enfraquecendo, assim, a imagem de
prosperidade, possibilitando através deste fato a construção de paradigmas ligados à
modernidade no Estado de Goiás, principalmente na cidade de Goiânia, que ainda carregava o
ar de gloriosa em suas entranhas desde que foi nomeada a capital do Estado, fundamentada
nos discursos de que sua nova condição daria um novo ar sustentador de (pós) modernidade a
Goiás.
síntese, sendo que esta seria a forma contraditória com que o individuo esta submetido, onde vivem em uma
contradição que na maioria dos casos nem eles mesmos percebem.
15
Segundo Eliézer Cardoso a cidade de “Goiânia foi construída e justificada sob o signo da modernidade.
Desejava-se uma cidade moderna, ruas retas, largas, numeradas, uma cidade-jardim. Uma cidade que fosse
motivo de orgulho e não de insultos e chacotas.” (OLIVEIRA, 2006, p. 230).
Estas discussões voltadas para a sociedade goiana e relacionadas à Catástrofe do
Césio-137 nos leva a refletir e a formular premissas que possam esclarecer o que de fato
aconteceu, ou melhor, o que o Acidente representou àquela sociedade, que não tinha a mínima
informação do que seria ser contaminado por radiação. Sabiam que isso era ruim, e só.
Entretanto, o que é esse ser moderno? Como o Acidente teve o poder de inserir o Estado de
Goiás na pós-modernidade, enquanto os outros lugares já se consideravam pós-modernos? O
fato é que:
Portanto, o acidente com o Césio-137 foi a maior catástrofe da história de
Goiás, não comente pelo número de mortos, pelo número de vítimas e pelos
prejuízos econômicos, mas principalmente porque foi uma catástrofe
conceitual. Ela abalou a crença no progresso e na técnica moderna e jogou
Goiás nos braços da pós-modernidade, Goiânia foi construída sob a
promessa de colocar o Estado no caminho do progresso. Em vez disso, a
tecnologia moderna – quase que idolatrada por alguns – contaminou a cidade
com um preconceito inimaginável (OLIVEIRA, 2006, p. 260).
Ainda ao perceber o choque da tragédia para a sociedade em detrimento da
modernidade e consequentemente à inauguração da pós-modernidade, evidencia-se que:
O acidente com a cápsula de Césio 137, em Goiânia, ao mesmo tempo em
que inseria o Estado de Goiás na modernidade tardia e tardiamente,
porquanto obrigasse, de maneira trágica, a incorporar a perspectiva de
reflexividade – éramos modernos e não sabíamos -, transportava-o para além
dela, na medida que a superação da tragédia se dá pelo equacionamento dos
rejeitos radioativos, mas também pela acomodação das mentes, ou seja, pela
sua dimensão simbólica (RABÊLO, 2009, p. 10).
Podemos perceber que está em pauta agora o que uma catástrofe representa à
sociedade, nesse caso, o que representa o desconhecido, pois o que chamaram de Acidente
Radiológico representava algo inevitável. Conforme o público tomava conhecimento do
Acidente, ele revelava sua força de abater as pessoas envolvidas diretamente, pois os que não
eram da mesma família, era amigo, ou mantinha alguma relação muito próxima.
Esses sentimentos continuam se intensificando em meio ao aparecimento de mais
contaminados e irradiados, entretanto, algumas pessoas com grau mais avançado. Segundo
Suzane de Alencar Vieira, em sua Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, pela
UNICAMP, o evento Radiológico do Césio-137 produz uma suspensão “na linearidade
temporal suposta nas ideias de progresso e modernidade” (VIEIRA, 2010, p. 147), o que
evidencia mais uma vez a ruptura com o pensamento moderno e a inauguração da pósmodernidade.
2.3 - História e Arte: relações da Nova História Cultural
Durante anos historiadores do mundo todo buscavam um real sentido para o que seria
História Cultural, surgiram inúmeros conceitos, porém, o que podemos perceber é que a
História Cultural é extremamente sedutora e tem trazido inúmeros pesquisadores para esse
campo de pesquisa. Essa prática social pode valer-se de silêncio, pois estes servem como
discursos e ausências que para a História Cultural pode apresentar uma presença, as imagens
revelam funções, as músicas revelam sentimentos, nesse ponto o trabalho do historiador
cultural é captar a subjetividade e as sensibilidades.
O estudo da cultura possui inúmeras exigências e expõe riscos: é necessário teoria,
além de exigir do pesquisador um olhar conceitual e epistemológico para enxergar o mundo.
Ela se pauta em ações humanas perdidas no passado e cabe ao historiador buscar esse
significado perdido na trajetória do tempo. Entretanto segundo Burke (2008):
O principal objetivo do historiador cultural era retratar padrões da cultura,
em outras palavras, descrever os pensamentos e sentimentos característicos
de uma época e suas expressões ou incorporações nas obras de literatura e
arte. O historiador descobre esses padrões de cultura estudando temas,
símbolos, sentimentos e formas (BURKE, 2008, p.19).
É importante salientar que o termo Nova História Cultural disseminou-se a partir dos
anos 1980, sendo que entre os historiadores acredita-se que a mesma possua duas vertentes de
identificação, primeiro a que seria herdeira de uma história cultural que teria surgido no
século XVIII, e a segunda com estirpes mais recentes, que estariam vinculadas a historiografia
francesa, a qual conhecemos como história das mentalidades.
Le Goff (1993) em sua obra “História Nova” nos revela que a Nova História Cultural é
fundamentalmente uma afirmação/continuação da historiografia francesa, desembocada pela
Escola dos Annales, que ocupavam nos anos de 1980 o posto central de referência dos
historiadores que estavam à frente nos estudos e fornecimento de metodologias e temáticas,
que problematizavam ainda mais os temas da história. No entanto, Le Goff (1993) nos afirma
que “toda forma de história nova seria uma tentativa de história total, sendo a mais fecunda
das perspectivas a longa duração”. (LE GOFF, 1993, p. 67).
De acordo Peter Burke (1992), o surgimento de uma Nova História Cultural estaria
basicamente ligado a um conflito ocasionado nos paradigmas das vertentes historiografias, o
que acabou provocando uma maior preocupação com os métodos e estruturas das narrativas
dos eventos e acontecimentos, daí surge à necessidade de ir além de documentos oficiais e
escritos, e buscar fundamentos para a história em outros campos como na arte, nas relações
cotidianas, na literatura, tradição cultural.
De qualquer forma, os historiadores não podem se dar o luxo de esquecer
sua existência. [...] Muros e arames farpados não podem impedir o transito
de idéias, mas daí não decorre que inexistam barreiras culturais. Há pelo
menos alguns obstáculos físicos, políticos e culturais, inclusive a língua e
religião, que diminuem a velocidade dos movimentos culturais ou que
desviam para canais diferentes (BURKE, 2008. p. 153).
O fato é que na Nova História Cultural viria com o intuito de afirmar a preocupação ao
resgate do que é popular, do que é necessário para a busca da memória coletiva, o que
firmaria seu estilo crítico e ao mesmo tempo mantenedor da multiplicidade de fontes, que não
deixa de lado as estratificações dos conflitos e acordos de determinada sociedade.
Para Johan Huizinga a História Cultural deve ser interpretada por meio de suas fontes
factuais, documentais e até mesmo pela oralidade, e tal compreensão necessita ser pensada
por meio de uma sensibilidade do historiador em seu olhar e narrativa. Parafraseando
Huizinga:
Um leitor dos nossos dias, ao estudar a história da Idade Média baseada em
documentos oficiais, nunca poderá fazer uma ideia da emotividade
extraordinária da alma medieval. Ao quadro desenhado inteiramente pelas
penas oficiais, mesmo que provenham de origens da maior confiança, faltarlhe-á um elemento: o da veemente paixão que arrebatava por igual os
príncipes e o povo. É certo que o elemento passional não está ausente de
política de nossos dias, mas no presente ele é limitado e desviado em grande
parte pelo complicado mecanismo da vida social (HUIZINGA [s.d.], p. 20).
É uma interpretação difícil, contudo, de suma vitalidade para não deixar que a História
Cultural seja colocada de lado, assim como indaga Peter Burke (2008), de uma realidade
impressionista. Deste ponto em diante Huizinga anuncia que o discurso do historiador sobre a
cultura deve compreender que inúmeras práticas culturais estão radicadas à concepção social
da moral, religiosidade, senso de justiça e outros anseios que se fazem presentes em cada
sociedade. É sobretudo com o fim da Idade Média e o surgimento do pensamento Iluminista
que as sociedades aos poucos vão dotando-se de um espírito revolucionário e os indivíduos,
como ressalta Burckhardt (2009), passam a se enxergar como seres dotados de poder,
autocríticos, e percebem-se como sujeitos históricos, agentes de suas próprias necessidades,
costumes, aspirações, enfim, de sua história.
A principal afirmação de Burckhardt (2009) é esta de que só a partir do momento em
que os homens conseguem se ver como produtores de sentido para sua própria existência é
que a História, especialmente a História Cultural, toma forma e contornos mais específicos.
Deixa de ser uma história escrita por um sistema vigente e passa a ser uma história mais
sensível, das particularidades, das especificidades dos indivíduos e das micro-sociedades.
Enxerga as micro-histórias, o lugar, os sentimentos sociais, as necessidades de expressão da
história das minorias. Burckhardt (2009) escreve que: “a descoberta do homem, porém, não se
limita à descrição espiritual dos indivíduos e povos. Também em sua exterioridade, o homem
é contemplado diferentemente [...]” (BURCKHARDT, 2009, p. 313).
Esta percepção do historiador, de quem escreve a história sobre a narrativa da vida
habitual é o que Burckhardt (2009) acredita que tenha promovido este sentido revelador no
homem, de si e de sua cultura. A partir desta ideia, Burckhardt (2009) escreve que:
Cabe-nos, finalmente, vincular à descoberta do homem também o interesse
pela descrição da vida real e movimentada do cotidiano. Para atingir seus
objetivos, todo o lado cômico e satírico das literaturas [...] não pudera
prescindir de imagens da vida comum. Algo inteiramente diferente se dá
quando [...] retratam essas mesmas imagens por nenhum outro motivo que
não elas próprias, porque são em si interessantes e porque parte da vida
universal por cuja mágica eles se sentem envolvidos [...] que se desenrola
nas casas, ruas e aldeias porque deseja fazer dos cidadãos, [...] seu alvo -,
encontramos aqui o princípio de um genuíno panorama dos costumes
(BURCKHARDT, 2009, p. 318).
Esta situação histórica proposta por Burckhardt (2009), na qual o homem passa por um
processo de descoberta dele mesmo, culminando no que o autor chama de “desenvolvimento
do individuo”, nos evidencia segundo ele, que as pessoas só perceberam o universo à sua
volta em suas minúcias, quando encontraram em suas sociedades, no convívio social diário, a
beleza paisagística.
Neste ponto, é interessante pensarmos à lógica de Roger Chartier (2002), onde os
atores sociais, já enunciados por Burckhardt (2009), adquirem consciência de si e passam a
interagir com os demais fatores que determinam os costumes e os moldes das sociedades. Para
ele, a História Cultural deve ser pensada da seguinte forma:
Pensar uma história cultural do social que tome por objeto a compreensão
das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do
mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e
interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a
sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse
(CHARTIER, 2002, p. 19).
Nesta acepção, Chartier (2002) pontua que é necessário na narrativa culturalista da
história, identificar muito mais que os atores sociais. Segundo esta prerrogativa deve levantar
no historiador a seguinte indagação:
Será necessário identificar como símbolos e considerar como ‘simbólicos’
todos os signos, atos ou objetos, todas as figuras intelectuais ou
representações coletivas graças aos quais os grupos fornecem uma
organização conceptual ao mundo social ou natural, construindo assim sua
realidade apreendida e comunicada? (CHARTIER, 2002, p. 19).
Por meio desta prerrogativa, podemos entender que esta função mais do que simbólica
dentro da História Cultural, se dá por meio das representações, que por sua vez, alicerçam a
própria História Cultural a pensar-se como eterno debate entre o que se expressa e a
sensibilidade apresentada nesta representação. Remetendo-nos ao que já foi dito
anteriormente, baseado nas concepções de Huizinga.
Contudo, este revestimento estruturalista da História Cultural em suas formas de
interpretação, nos sugere segundo Chartier (2002) uma fragmentação histórica. Para ele:
Tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também outras
ciências sociais, como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens
estruturalistas e perspectivas fenomenológicas, trabalhando as primeiras em
grande escala sobre posições e relações dos diferentes grupos, muitas vezes
identificados com classes, e privilegiando as segundas o estudo dos valores e
dos comportamentos de comunidades mais restritas, frequentemente
consideradas homogêneas (CHARTIER, 2002, p. 18).
O objeto de estudo dessa ciência é a construção da realidade social, como para
Chartier (2002), que a realidade passa por desdobramentos, pois cada sociedade comporta sua
própria identidade e sua representatividade, sendo que o último não se afasta do social e,
nesse aspecto, a maneira como se percebe o social acaba não sendo neutra, pois através desta
análise é que se produz a narrativa histórica.
A História das grandes estruturas ou História estruturalista são formadas a partir da
representação, sendo que essas estruturas sociais são objetivas. Porém, o que Chartier retrata é
o que realmente queremos apresentar em nosso estudo que é a percepção/representação do
passado, valendo-se pela diversidade de objetos de investigação, das perspectivas
metodológicas e dos conceitos teóricos possíveis, que só são construídos e firmados através
de uma pluralidade de debates, que recusa a diminuição da história a simples campos, como o
político e o econômico, abrindo variadas dimensões de estudo historiográfico.
CAPÍTULO III
3.0 – A Arte Catástrofe: o retrato do sofrimento coletivo por meio de cenas individuais
“Os quadros sobre as vítimas do acidente radioativo demonstram
esse desconforto em relação à morte. Ela é aludida, mas não
explicitada. As vítimas do Césio foram paradigmáticas do desconforto
da modernidade em relação à morte: elas morreram isoladas, em
extrema solidão, numa instituição, longe da família e dos amigos.
Nota-se a solidão do homem ante ao perigo e à morte”.
Eliézer Cardoso de Oliveira
Diante das pontuações que resaltamos nos capítulos anteriores, chegamos a alguns
pressupostos que podem nos esclarecer algumas das considerações que serão realizadas neste,
os quais possuem como principal intuito a efetivação de uma análise das quatro vítimas da
série Césio do artista plástico Siron Franco.
Pretendemos destacar os principais pontos dos quadros de Siron Franco que
possibilitam o observador se emocionar, no caso, o fascínio pela dor da catástrofe
representada pelo artista que, ao esboçar nas telas as vítimas, torna perceptível o tempo em
que o Acidente ocorreu, assim como o elemento principal gerador do desastre: o Césio-137,
as sensibilidades das vítimas, principalmente na pintura que representa o segundo mártir, e,
ainda, os materiais inovadores que utilizara, os quais permitem o reconhecimento de sua arte
como contemporânea e inovadora.
Ao refletirmos sobre as pinturas das vítimas, nos deparamos com alguns
questionamentos, como por exemplo: Se é tão horrendo e triste, por que nos encanta e nos dá
sentimento de horror ao mesmo tempo? Como é possível se emocionar diante de uma
representação artística? Por que sempre vemos além da visão do autor da obra, principalmente
quando se trata de acontecimentos históricos, como foi o Acidente do Césio-137?
Em primeiro lugar, a arte catástrofe possui o poder de emocionar pelo fato de
representar algo que realmente tenha acontecido em uma sociedade, no caso das vítimas, a
partir do momento em que se tem a noção do sofrimento, um sentimento de pena, de choque
que atravessam pensamentos.
Esse sentimento também ocorre ante as características contemporâneas que a arte
catástrofe ganha. Não mais se representa a morte com flores, choro, no sentido de confortar
quem tenha ficado. A arte catástrofe procura evidenciar a dor, a consternação, a angústia
presente na realidade do quadro.
Outro ponto que merece destaque são as vítimas pintadas por Siron Franco, nas quais
percebemos a intencionalidade de se retratar uma dor que é coletiva, além de, por utilizar
casos específicos, a mantença da memória, numa afirmação do que havia acontecido.
Halbwachs (1990) afirma que o que caracteriza a memória coletiva é a afetividade,
que só é possível através da interação entre os membros de determinada comunidade, ou
melhor, de relações que tenham em comum a questão de valores e experiências – enfim é uma
construção social – que são parte de quadros agregados a sistemas de valores, como por
exemplo a família, que é o componente que mais se destaca nas relações do Acidente alvo de
nossas discussões.
3.1 - A estética pictórica/dramática de Siron Franco: performances no grotesco
Ao estudarmos pela visão das artes, em suas manifestações artísticas, o Acidente com
o Césio-137, ocorrido em Goiânia – Goiás, não podemos deixar de nos remeter ao artista
plástico goiano Gessiron Franco, que ascende sua carreira com a construção da série “Césio”.
Por meio desta expressão artística, percebemos sua vocação crítica, o modo com que o mesmo
escancara seu modo de ver o Acidente.
Ao propor ao observador uma reflexão sobre seus traumas interiores, individuais e/ou
coletivos, Siron pretende estimular o aparecimento do sentir nostálgico, triste, indigesto,
presente na vida de cada um. O registro do Acidente com o Césio-137, na série intitulada
“Césio”, produzida em 1987, e em outras posteriores retratadas pelo autor que geram grande
repercussão, principalmente aos envolvidos, que ainda hoje, 25 anos depois da tragédia, são
reconhecidos como vítimas, faz que vejamos os sentimentos provocados pelo presenciar e
atuar diretamente no Acidente com o Césio.
Para compreender um pouco mais das inspirações deste artista, partiremos para um
conhecimento sucinto da vida do mesmo. Nesse sentido, implica mencionar que Gessiron
Franco nasceu em 1947 na Cidade de Goiás – Goiás, e mudou-se em 1950 para Goiânia,
capital do referido estado. Entre os anos de 1969 e 1971, começou a frequentar ateliês, como
o de Bernando Cid e Walter Levy, na cidade de São Paulo. Dentre suas fontes de inspiração,
encontra-se a vida pacata da cidade onde nasceu e a modernidade que é expressada pelo
desenvolvimento de Goiânia. Este último, alvo de nossos estudos, traz à tona problemas
sociais e de relações humanas na cidade de Goiânia, envolvendo a participação de Siron
Franco em movimentos ativistas contra o preconceito e a falta de sensibilidade com a
sociedade goiana.
Segundo Lúcia Bertazzo (2009), na primeira exposição feita por Siron Franco em
1967 “foram presos os organizadores e retirados vários trabalhos considerados subversivos.
Siron Franco, por exemplo, teve dois trabalhos queimados, restando apenas à obra Cavalo de
Tróia” 16 (VICENTE, 2009, p. 42-43). No ano de 1968, Siron Franco conquistou o prêmio da
segunda Bienal da Bahia, com sua obra “Cavalo de Tróia”, sendo que na noite de inauguração
da mesma,
a Bienal inteira foi fechada pelos militares vários artistas foram presos.
Começava uma relação paradoxal entre a ditadura e Siron, que se livrou da
prisão, nesse dia, ao apresentar a carteira de identidade que mostrava o nome
de Gessiron Alves Franco e, portanto, não foi reconhecido pelo militar
(BERTAZZO, 2009, p. 29).
No mais, Bertazzo (2009) esclarece que Siron Franco, no período ditatorial17
brasileiro, “por ter medo de enfrentar o serviço militar” (2009, p. 29), conseguiu ser
dispensado graças a um retrato que fez da esposa do governador Otávio Lage, a primeira
dama Marilda. Siron fez ainda uma pintura da avó da primeira dama do Brasil, Iolanda Costa
e Silva, a senhora Júlia Craveiro de Sá. É importante ressaltar que:
Nesta época, Siron atuava no circuito comercial por questões financeiras,
pois retratos eram um produto de venda fácil, e foi deste modo que ele
obteve recursos para investir na pesquisa em pintura e desenho. E foi
também por motivos comerciais que ele abordou, no início da sua carreira, a
pintura com temas sacros (VICENTE, 2009, p. 109).
16
“Ironicamente, esta tela pode ser interpretada como uma metáfora de algumas ações realizadas pelos agentes
do SNI durante a vigência da ditadura. Cavalo de Tróia traz a representação do cavalo, em destaque, com a boca
amarrada por uma corda. Ao ser aproximada a imagem, percebe-se que este cavalo é composto por diferentes
partes. Uma coluna principal une cabeça e corpo; sua crina é formada por lanças e o corpo é formado por
compartimentos que são interligados por diferentes meios - uma escada de pedra, cavidades e desenhos
rebuscados. Estes compartimentos agregam muitas pessoas, todas pequenas, com aparência de bonecos que
recordam “soldadinhos de chumbo”. Estas pessoas, unidas umas às outras, misturam-se aos detalhes que formam
a estrutura do cavalo de tróia. Parece não haver uma diferenciação entre pessoas e peças”. (VICENTE, 2009, p.
111).
17
“É importante dizer que essa ingerência não foi só da censura política, desde sempre muito forte, mas decorreu
também da censura moral, de usos e costumes e de uma outra, mais forte ainda, posto que subliminar, imposta
pelo curso da economia capitalista: a censura proveniente do mercado, o crivo determinado pelos interesses
sobre idéias e produtos que, independente de seus conteúdos perniciosos e tendenciosos, são postos em
circulação e divulgação porque rendem, geram lucros pecuniários e garantem o consumo”. (MARTINS, 2002, p.
162). Segundo O Brasil, em termos políticos, encontrava-se em séria crise econômica e financeira: além da
desvalorização da moeda, a dívida externa exigiu certa atenção e o estabelecimento de alianças políticas com
outros países. Somada a isso, havia a necessidade de reformas de base relacionadas às reformas agrárias,
tributária, bancária, educacional e eleitoral, as quais visavam à melhoria da qualidade de vida da população.
(VICENTE, 2009, p. 25).
De acordo com Bertazzo (2009), Siron Franco se envolve na “luta” contra a Ditadura à
noite, quando pichava muros e realizava outros tipos de manifestações, o que demarcou
profundamente sua carreira. A querela à Ditadura Militar, como observa a autora, fez com que
imagens fortes de figuras descarnadas e de vísceras fossem por Siron pintadas, assinalando
seu modo particular de retratar a dor e sua objeção aos crimes conta a vida, que são
característicos de sua arte singular, contemporânea.
Fato é que no período militar a recriminação praticada pelos aparelhos do Estado,
conhecida como “censura”, “interferiu diretamente na produção dos artistas daquele momento
que, de certa maneira, protestavam ‘quebrando regras’ para refletir a vontade de
transformação da sociedade” (VICENTE, 2009, p. 25). Vicente (2009) afirma que:
Apesar da crescente atuação da censura, a cultura foi contaminada por um
misto de irreverência e engajamento político. Muitos artistas buscavam,
através da arte, uma maneira de demonstrar e ao mesmo tempo alertar a
população sobre as arbitrariedades perpetradas no país pelo regime militar,
mostrando seu inconformismo e reagindo contra a censura e a política
adotada naquela época (VICENTE, 2009, p. 27).
Ressalte-se aqui que com a morte de um estudante na cidade de Goiânia, pela ação de
militares, as críticas em desfavor do regime ditatorial se tornaram mais frequentes.
Esta relação paradoxal com o poder que, na época da ditadura, se
evidenciava na censura que não permitia a ‘livre expressão’, acompanhará o
artista ao logo de toda sua carreira, mesmo em tempos menos autoritários.
Apesar de produzir obras com claras críticas ao sistema político e social
brasileiro, Siron nunca deixou de ter amigos entre os mandatários da política.
José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique foram retratados pelo
artista. Mesmo assim, durante seus mandatos, Siron realizou várias ações em
que protestava contra situações políticas e sociais no grande ‘Jardim do
Poder’, que é a Explanada dos Ministérios em Brasília (BERTAZZO, 2009,
p. 32).
No ano de 1987, a caminho de Goiânia, Siron Franco – como ficou conhecido –,
recebeu a notícia do Acidente envolvendo o Césio 137, pelo que busca se informar mais sobre
o ocorrido. Percebe, então, que não haviam notícias (dada pelas autoridades) robustas o
suficiente para se entender o que acontecia, o que provocou grande insegurança na sociedade,
tanto a envolvida diretamente como as que mantinham relações comerciais ou não com
Goiânia, fato que, saliente-se, resultou em grande discriminação de Goiás na época. Segundo
Oliveira (2008):
De fato, o envolvimento de Siron com o acidente radioativo transcendeu o
âmbito artístico: participou de passeatas, produziu máscaras de protestos,
denunciou em depoimentos na televisão e nos jornais o preconceito em
relação à cidade de Goiânia. No entanto, foi através da pintura que sua ação
teve maior repercussão. Ele se isolou em seu ateliê e passou a pintar e
esculpir freneticamente durante dias: o resultado foi a série Goiânia Rua 57,
uma das mais conhecidas do autor (OLIVEIRA, 2008, p. 47).
Segundo Passos (s.d), “em 1987, logo que aconteceu e foi divulgado o acidente
radioativo com o Césio-137” (PASSOS, s.d,), Siron Franco participava de movimentos que
buscam informações sobre o ocorrido. Por ter conhecimento da área territorial do Bairro
Popular afetado – lugar onde morou até os 21 anos, jornalistas que cobriam o caso lhe
pediram para que construísse um mapa, detalhando as regiões afetadas, pois não se tinha
acesso a esses espaços, ante a contaminação pelo Césio 137. Nesse caso, o papel político do
artista contrasta com a realidade que o faria conhecido e renomado. Em que medida tais ações
não representavam duplo interesse? Não nos proporemos a responder tal questionamento.
Continuaremos explicitando mais elementos da pessoa e do artista facultando ao leitor tais
reflexões.
Siron começa a esboçar suas primeiras telas da Série “Césio”, ou como ficou
conhecida “Goiânia Rua 57”,18 produzindo seu testemunho, sua visão do que seria e que
dimensões estéticas, grotescas e consequentemente sublimes o Acidente Radiológico teria se
tomado. Dessarte, Siron Franco “produziu uma série de trabalhos que problematizavam as
dimensões da catástrofe que se abatera sobre a cidade e principalmente sobre o bairro onde
vivera sua juventude” (PASSOS, s.d).
Na efervescente criatividade artística e cultural que permeou o ano de
emergência do evento, 1987, o artista plástico goiano Siron Franco cria uma
série de pinturas sobre o acidente. Em seu processo de criação, o artista
vislumbra Goiânia como um lugar fantástico que ultrapassa os limites da
imaginação. O acidente se apresenta como um acontecimento que está além
da criação e imaginação literária: terrivelmente fantástico e real [...]. A
energia criativa do acidente embala o artista em seu trabalho intensivo de
criação. Cada nova notícia sobre o acidente e as vítimas inspirava uma nova
obra (VIEIRA, 2010, p. 101).
18
A série sironeana (Césio) ganha fama através de um instrumento muito comum, a mídia. Em uma entrevista no
ano de 1990 ao Jornal Popular Siron Franco comenta que “uma denúncia artística continua ressoando, é difícil de
ser esquecida e, portanto tem mais efeito que uma passeata, reuniões ou manifestações do gênero” (Entrevista, O
POPULAR, 12 out 1990). O que torna o elemento imagético mais fácil de divulgação, pois ele sensibiliza,
impregna-se na mente, o que facilita a veiculação dos protestos, que por sua vez atraem a mídia. No que se diz as
intenções apresentadas por Siron Franco, podemos afirmar que foram alcançados os objetivos, a que inicialmente
as obras se propunham a sensibilizar, que seria a intenção de apresentar à sociedade as situações do Acidente
Radiológico, que mereciam maior visibilidade, por parte da sociedade e discussões e posições por parte dos
poderes públicos.
À medida que insurgiam novas notícias, Siron se inspirava mais, o que é provado pela
retratação de particularidades do Acidente pelo artista, como a ação Geraldo Guilherme ao
carregar nos ombros a peça radiológica e acompanhar Maria Gabriela à Vigilância Sanitária
(imagem 01), a pintura dos homens que trabalhavam na descontaminação (imagem 02), as
relações de Maria Gabriela e Devair (imagem 03 e 04), que chegaram a conhecimento público
depois de se expor os relatos da tragédia.
Diante dessas afirmações, podemos perceber que Siron Franco buscou retratar alguns
elementos que marcaram profundamente a imagem do acidente, alguns pontos que ficaram
presos na memória de quem presenciou ou se informou dos detalhes do inusitado. O artista
plástico retratou até mesmo especificidades da vida cotidiana.
A série de desenhos executados a guache sobre o suporte preto do papel,
registra de uma maneira simples e despretensiosa, com gesto enérgico e
linha firme, ao modo de esboços realizados na trincheira, personagens e
acontecimentos envolvidos no acidente radioativo. O suporte empregado
corrobora com o ambiente de luto e isolamento criado na cidade (PASSOS,
s.d).
Segue uma amostragem imagética:
Em verdade, as obras de Siron Franco representam registros de acidente, ou melhor, de
acontecimentos da história (como é o caso de outras obras) enquanto ocorrem, ou mesmo no
auge de sua repercussão, sendo que “a ocasionalidade se manifesta no primeiro olhar... Neste
caso, a referência à ocasião vai ser diretamente proporcional com o envolvimento emotivo
com a tragédia” (OLIVEIRA, 2008, p.51).
Ao olhar, agora, para a Série Césio de Siron Franco recompomos todo o
impacto que o acidente acarretou sobre a paisagem física e humana de
Goiânia, revivemos a experiência de um trauma coletivo pulsante ainda em
nossa memória. A série percorre um trajeto pela paisagem afetada pelo césio.
É simultaneamente lamentação, questionamento, revolta, denúncia,
perplexidade, atitude e engajamento, diante da contaminação de um lugar
íntimo e público apossado pela eminência do perigo e coberto pela sombra
da morte (PASSOS, s.d).
A Série “Césio” contém vinte e três (23) quadros, dentre eles estão os focos de nossa
pesquisa, que são “As quatro vítimas” fatais do Acidente Radiológico. As pinturas
demonstram o poder da imagem, afirmando os sentimentos provocados pelos quadros da
Série, principalmente por que:
As imagens têm poder de fala, pois são formas e estruturas de pessoas, que
se indagam, se afirmam, se negam. As formas expressam e refletem nossos
pensamentos e nossas maneiras de ser e de acreditar em determinados
valores, pois somos modalizados e modalizantes pelas manifestações visuais
(FRANGE apud LELIS, 2004, p. 02).
As vítimas se destacam nas pinturas de Siron por se tratarem de algo mais profundo e
compassivo, que se misturam à dor da perda; traços estes bem característicos da arte
considerada contemporânea do artista plástico. Aqui é importante apresentar alguns elementos
que nos levam a classificar a arte de Siron Franco como contemporânea. Primeiramente a
Série Césio que, como obra de arte, fornece ao observador a possibilidade de compreensão do
que teria sido o Acidente, como se ela interagisse com o público. Em segundo lugar, a pintura
detém o poder de surpreender o expectador, e este a liberdade de relacionar a pintura com sua
realidade, com igual espontaneidade e sensibilidade que o artista a produz. Ao mesmo tempo,
a pintura causa no observador sentimento de estranhamento, pois provoca inquietação, um
pensar de que: - tudo isso aconteceu, e eu não fiz nada! Não pude fazer nada!
A arte contemporânea surge ainda como uma forma de expressão da ação, como um
processo que evidencia a construção imagética de algum evento/experiência que tenha
marcado a história de determinada sociedade; uma arte conectada ao cotidiano, que permeia a
fronteira da arte com a vida. Demonstra elementos que tratam de assuntos sociais, estéticos,
políticos, filosóficos, históricos, éticos, não tendo só um significado; abre possibilidades de se
perceber determinado assunto de vários ângulos. Evidencia-se ainda na obra contemporânea
que qualquer material pode se tornar obra de arte; utiliza-se de todos os objetos possíveis.
Afirma-se que a arte de Siron “gesta as mais polêmicas temáticas sociais com o
objetivo de questionar, denunciar e levar o espectador à reflexão, travando uma luta diária
para despertar o sensível adormecido no coração da humanidade” (LELIS, 2004, p. 01).
Mesmo antes do Acidente do Césio, Siron Franco já revelava sua forma inovadora de
construir telas, perceptível em algumas temáticas desenvolvidas em seus quadros, como por
exemplo: “Era das máquinas”, pintura em que o artista revelava uma crítica à sociedade que
nascia, ao modelo contemporâneo de se viver.
Sua estética aproximava-se do surrealismo pela fragmentação e associação
de elementos, aparentemente dessemelhantes, como o exemplo do homem e
da máquina, o que podemos relacionar ao questionamento do homem e à sua
condição no mundo. A substituição do homem pela máquina representa uma
inversão de valores, através da qual a máquina passa a ter mais importância
que o ser humano, em termos de trabalho (VICENTE, 2009, p. 113).
Siron mostrava sua maneira de ver o mundo, assim como os outros artistas. A tragédia
que gerou a inspiração à série “Césio” parece ter causado um impacto ainda maior em sua
sensibilidade de artista plástico, pois balançou as estruturas de sua origem. Podemos nos
referir neste momento as afirmações de Gullar (1999), ao descrever que:
A ligação com a vida é um traço da própria personalidade de Siron, sempre
presente, sempre atuante, buscando interferir no processo social e político.
Esse traço ‘participante’ do cidadão - do pintor - se expressa em
manifestações que às vezes extrapolam a linguagem da pintura para se
valerem de formas heterodoxas de expressão (GULLAR, 1999, p. 16).
Dessa forma, a arte de Siron Franco é o que conhecemos como a que toma partido, não
a que se preocupa só com movimentos estéticos, mais a que se adéqua ao trabalho que busca a
sensibilidade humana, sua linguagem contemporânea, por meio do retrato dos problemas
sociais, valorizando a cultura popular, que é uma das suas principais fontes de inspiração, o
que possibilita seu reconhecimento internacional. Portanto, “para o intelectual integrado no
trabalho de cultura popular, a cultura se coloca em termos de problema social” (GULLAR,
2006, p. 25). Assim, percebemos que “é natural que a cultura popular lide tão intimamente
com problemas objetivos, uma vez que isso é determinado por seu propósito de atuar na
realidade concreta” (GULLAR, 2006, p. 24).
Na premissa com que Siron Franco cria suas telas retratando as vítimas do Acidente do
Césio-137, aplica-se a narrativa estética, que sensibiliza a visão da tal Catástrofe, sendo que a
presença do artista é evidenciada na pintura de cada vítima, por meio da escrita de seu nome
nas pinturas e da marcação do ano em que ocorreu o Acidente que gerou as vítimas. O “Césio
provocou mudanças na arte pictórica de Siron Franco, destacando-se a utilização de materiais
inusitados” (OLIVEIRA, 2008, p. 48).
3.2 - O arranjo dos quadros: a estética contemporânea presente nas vítimas do artista
Siron traz uma “novidade” na pintura das vítimas que, segundo Veira (2010), se opera
a partir dos produtos utilizados na pintura das vítimas – terra e tinta automotiva –, pelo que o
artista promove a interação entre o que é humano (sensível, pois é retirado do natural) e da
tecnologia, levando-nos a pensar as transmutações físicas que as vítimas sofreram. “Siron
Franco compõe as pinturas com tinta obtida a partir da terra retirada de Goiânia e tinta
automotiva para marcar a presença da tecnologia nuclear” (VIEIRA, 2010, p. 102).
Além da terra, foram utilizados concreto e chumbo. Todos esses materiais
estão relacionados de alguma forma ao acidente radioativo. A utilização de
materiais não tradicionais para produzir novos efeitos pictóricos não é
novidade dentro da história da arte: é impossível entender o aspecto
revolucionário da arte renascentista sem levar em conta a introdução da
pintura a óleo. No entanto, no caso de Siron Franco, a introdução de
materiais não-convencionais é sintomática de uma nova concepção pósmoderna de arte (OLIVEIRA, 2008, p. 48).
Fato é que ao utilizar elementos inusitados, como a terra de Goiânia, Siron Franco deu
as pinturas algo mais do que a expressão da morte, do catastrófico, da dor da perda de vidas.
Fez com que “o próprio material utilizado tenha uma carga expressiva” (OLIVEIRA, 2008, p.
48),
[...] abrindo para miríades de significações que parecem reafirmar que é
desta terra que fomos feitos todos nós, que ela simboliza para nós a
fecundidade e a renovação da vida, e que é sobre ela que nos fixamos no
solo pátrio, que fundamos nosso lugar de pertencimento e que demarcamos o
território em que nos movemos e agimos, tanto em concepções afetivas
quanto políticas. A terra contaminada de Goiânia foi empregada em camadas
espessas que cobrem partes ou toda a superfície dos suportes, como se esse
uso reagisse à negatividade impingida à cidade naquele momento: através
destas pinturas a terra de Goiânia retoma uma aura de sagrado, impõe-se
com uma força telúrica que emana de todo o planeta, e sedimenta um terreno
em que problemas centrais para a contemporaneidade são colocados em
questão (PASSOS, s.d).
Para Eliézer Cardoso de Oliveira (2008) esse tipo específico de situação imposta pela
imagem da vítima trata-se de: “qualquer descrição, análise, representação artística ou literária,
feita na ocasião da catástrofe ou posteriormente a sua ocorrência (neste caso, o narrador terá
de se valer da sua memória ou da de outrem)” (OLIVEIRA, 2008, p. 22). No caso das pinturas
de Siron Franco, “o conceito básico para análise estética da catástrofe é o de sublime”
(OLIVEIRA, 2008, p. 22). Como já expresso no capítulo anterior, o sublime é conquistado
através do grotesco, que busca a sensibilização do observador.
Dentre as vítimas, destaca-se as figuras de Maria Gabriela e Leide das Neves, esposa e
sobrinha de Devair, este dono do ferro velho que abrigou cápsula de Césio durante algum
tempo. No dia 23 de outubro, a força dramática do Acidente ganha intensidade, pois é nesta
data que se concretiza a existência de vítimas fatais. Maria Gabriela e Leide das Neves
tornaram-se as primeiras vítimas do Acidente (faleceram no Hospital Naval Marcílio Dias, no
Rio de Janeiro, assim como exposto no primeiro capítulo) e, com elas, a marca da dor e da
morte tornam-se fatos que são inaceitáveis às pessoas que compartilham dos mesmos
sintomas.
São os sentimentos de dor e morte que são expressos nas pinturas das “quatro
vítimas”, onde se enfatiza o heroísmo atribuído à Maria Gabriela e à imagem de inocência da
pequena Leide das Neves. Sobrepuja-se que a imagem de Leide ficou presa na memória do
Acidente, representando a ingenuidade com que a família e os amigos receberam as partículas
de Césio 137. Citando, o professor Eliézer Cardoso Oliveira (2008):
No quadro da Primeira Vítima, da série Césio, por exemplo, o conteúdo é
um ‘embrulho’, de pequena dimensão, de um material cor prata, muito
brilhante, parecido com as roupas que os técnicos utilizavam para evitar a
contaminação (OLIVEIRA, 2008, p. 50).
A primeira vítima aparece como se estivesse embrulhada em um papel branco; a
pintura transmite a impressão de que está se desfazendo, não sendo possível identificar o
corpo. Somente se sabe que é o retrato da primeira vítima por estar evidenciado no canto
esquerdo da pintura, seguido do símbolo internacional do Césio-137, o que traz o Acidente
Radiológico para dentro da realidade do quadro. Percebe-se ainda a identificação do artista
que a produziu, pois o nome “Siron” é inserido discretamente no canto direito da tela.
Assim, é relevante elucidar que ante as considerações acima expostas e pelo
explicitado por Oliveira (2008), que observa quanto à identificação da vítima e a localização
do símbolo internacional do Césio 137, este que é colocado na imagem logo após a nomeação
da pessoa retratada, o que traz a realidade da radiação para junto do corpo embrulhado e
prejudica sua visão, provocando sentimento de nostalgia. Porquanto o significado da imagem
só poderá ser entendido por quem souber do ocorrido, bem como somente será possível a
distinção do corpo se o observador souber quem foi a primeira vítima fatal do Acidente;
podemos afirmar que é preciso conhecimento prévio do Acidente para entender a obra de
Siron Franco.
1° Vítima – Siron Franco, 1987. Série Césio
Se comparada às outras vítimas, perceberemos o quão sensível é o retrato da primeira
e da segunda vítima (que segue). A primeira simboliza a fragilidade feminina diante da
radiação, o que pode ser notado se confrontado a um corpo adulto. A imagem representa
Maria Gabriela, que é menor do que deveria ser. Já a segunda vítima pintada, Siron deixa
transparecer o quão frágil era a pequena Leide das Neves, a criança que se tornara símbolo da
tragédia.
Cabe pensar as relações das pinturas com o que é sublime, pois assim como afirma
Kant (1993), o sublime carrega o ar e a marca da morte em suas entranhas, trazendo ao
espectador a experiência de presenciar através da arte os traços particulares, promovendo uma
comoção através de sua estética, um sentimento de estar e ser incompleto, deixando um ar de
que aquela pintura não é tudo, de que existe algo mais por detrás da história da mesma. Ora,
pois, o sublime, segundo Kant (2005), pode ser encontrado no disforme.
Pensemos aqui as considerações de Pesavento (2008):
As imagens são frutos da ação humana, que interpreta e recria o mundo
como representação, exercendo grande fascínio. As imagens são visuais, e
carregam consigo esta condição especial que se realiza no plano dos
sentidos, ao serem captadas e fixadas por um certo tempo na retina de quem
vê. Imagens são, pois, traços de uma experiência sensorial e emotiva
(PESAVENTO, 2008, p.18)
Não tratamos estas questões em linhas gerais, entretanto, este sentir a pintura depende
do observador, pois pode se emocionar ou não. Falamos aqui de envolvimento com o
observar, ou melhor, com a representação, conquanto quem conhece ou presenciou o Acidente
Radiológico do Césio-137 terá maior entendimento do que as imagens representam. Vejamos
o que Kant (2005) nos diz sobre tal afirmação:
A faculdade dos conceitos, quer sejam eles confusos ou claros, é o
entendimento; e conquanto ao juízo de gosto, como juízo estético também
pertença o entendimento (como a todos os juízos), ele contudo pertence ao
mesmo, não como faculdade do conhecimento de um objeto, mas como
faculdade da determinação do juízo e de sua representação (sem conceito)
segundo a relação da mesma ao sujeito e seu sentimento interno, e na
verdade, na medida em que este juízo é possível segundo uma regra
universal (KANT, 2005, p. 74-75).
Trata-se aqui de pensar a representação social do Acidente, no qual o grotesco está
alinhavado ao sublime na intenção de provocar um choque ao observador, une-se elementos
opostos, como Victor Hugo (2002) nos revela:
A musa moderna verá as coisas com um olhar mais elevado e mais amplo.
Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao
lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz (VICTOR HUGO, 2002, p.
26).
A imagem que se refere a determinado período histórico, como as vítimas do Césio137. As informações intrínsecas nas pinturas são de grande valia, pois revelam qual a vítima e
o ano de construção da mesma, assim como na primeira vítima evidencia-se o símbolo
internacional do Césio.
Vejamos a imagem da Segunda vítima, que assim como na primeira, Siron deixa sua
marca, identificando desta vez a rua marcada pelo Acidente com o Césio-137. Estas marcas
são consideradas por Oliveira (2008) como sinais que afirmam as vítimas de Siron como
pinturas catástrofes.
2° Vítima – Siron Franco, 1987. Série Césio
Na imagem da segunda vítima é possível perceber a dramaticidade que é referenciada
com a morte da menina Leide das Neves.19 De acordo com Vieira (2010), a imagem da
menina “evoca a relação entre o perigo da energia nuclear e a ingenuidade com que as pessoas
o acolheram. O mesmo elemento usado em armas atômicas é inocentemente manipulado por
uma menina comum” (p. 122-123).
O quadro nos revela a figura de uma criança envolta de uma claridade, que poderia
representar seu berço. Também demonstra uma figura que parece representar seus calçados,
19
“Leide das Neves também empresta seu nome a fundações e organizações de assistência às vítimas do Césio137 como a Suleide (Superintendência Leide das Neves Ferreira) e a Funleide (Fundação Leide das Neves
Ferreira), atualmente desativada. Enquanto um símbolo, Leide das Neves concentra as referências de sua
parentela. Ao expandir seu poder referencial, o símbolo engloba a comunidade de vítimas e, finalmente, passa a
remeter ao evento radiológico como um todo” (VIEIRA, 2010, p. 120).
com botinhas que crianças usam, cingidas pela terra de Goiânia, o que poderia representar o
principal foco de contaminação pelo qual a menina foi irradiada.
Neste ponto, chegamos a refletir sobre a morte, já que segundo Oliveira (2006), o
artista Siron Franco, ao retratar as quatro vítimas fatais do acidente, faz “uma à concepção de
morte na modernidade (p. 283)”, já que “o artista se afasta da morte barroca, colorida, cheia
de flores, barulho de gente, choro, comum ao meio cultural goiano. A morte nesses quadros é
parecida com um cemitério norte-americano: lisa, gramada, camuflada, solitária”
(OLIVEIRA, 2006, p. 283).
A fragilidade das relações, salientada por Bauman (2008), pode ser percebida quando
se trata de morte na modernidade, já que o medo não aparece pelo outro, mas pelo si, e o
temor de se tornar vítima é maior do que a sensibilidade pela dor alheia, característica da
sociedade líquida – moderna. A teoria expressa por Bauman afirma que o ser humano deve
tomar consciência do que a morte representa, da intensidade de sua inevitabilidade, enfim, em
relação ao homem e sua “apavorante tarefa de sobreviver à aquisição desse conhecimento” (p.
45). De controlar o medo do inadmissível.
Ao refletirmos sobre a questão da inevitabilidade da morte, que estão impregnadas nos
quadros das vítimas, percebemos o quão frágeis torna-se a vida. Entretanto, além da morte de
Maria Gabriela e Leide das Neves, que representam esteticamente e midiaticamente o drama
vivido pelas pessoas envolvidas no acidente, nas pinturas da terceira e quarta vítimas, Siron
Franco evidencia em seus rostos a marca das mudanças/transfigurações físicas que são
consequências do contato com o elemento Césio 137, além de realçar na terceira vítima
algumas partes do corpo que tiveram elevados graus de contaminação.
A ótica do pintor incide nas figuras exponenciais da sociedade, ou pelo
menos as que representam as classes dominantes, pelo que elas apresentam
de exterioridade, de ridículo, de animalidade e, sobretudo, de agressividade,
que se manifestam entre indivíduos deformados pela ideia fixa do poder ou
voltados para os valores do ter em detrimento do ser (VIEIRA, 2000, p. 26
apud OLIVEIRA, 2008, p.46).
Ao refletir sobre estas considerações, acima apresentadas, voltamos a análise da
terceira vítima, onde percebe-se que a mesma não possui expressão facial. Vejamos a pintura:
3° Vítima – Siron Franco, 1987. Série Césio
A quarta pintura, por sua vez, possui traços modificados, e estes nos dão a ideia de
obscuridade, pois carregam o mistério, que são características do grotesco ao elevar-se à
categoria de sublime.
Segundo Oliveira (2006) “a obscuridade, o desconhecido, o misterioso são fontes do
sublime” (p.268), assim, ao citar Burke (1993), Oliveira (2006) faz uma comparação,
afirmando que “é por isso que a escuridão da noite provoca medo e admiração [...]. As
grandes alturas e os grandes abismos são sublimes. O infinito ou a sensação de infinito
também são sublimes” (BURKE apud OLIVEIRA, 2006, p. 268).
Podemos perceber que a arte catástrofe é um instrumento valioso da história, notamos
isso na fala de Oliveira (2008), vejamos:
[...] nestas obras percebe-se com bastante evidencia a ânsia de ser um
humanista, de não cruzar os braços diante da realidade catastrófica, fazendo
com que transpareça nas suas telas um sentimento de solidão, não uma
solidão de ambiente, mas uma solidão de causa, de questionamento, de
sentimento solitário de luta. Um pessimismo crítico (OLIVEIRA, 2008,
p.47)
Estas considerações são perceptíveis na pintura das vítimas de Siron Franco, como
exemplo disso, analisemos a quarta vítimas.
Na pintura Quarta Vítima, o artista esboça a figura de um homem quase
inteiramente absorvido em um plano ocre. Reconhecemos apenas uma parte
de seu tronco e alguns traços de sua fisionomia que recebem um pouco de
luz. Destacam-se na tela as inscrições em azul que registram a morte da 4ª
vítima no tempo e no espaço. (VIEIRA, 2010, p. 102).
Observemos a pintura da quarta vítima:
4° Vítima – Siron Franco, 1987. Série Césio
Entretanto, em favor do ver/evidenciar a sua presença, no endereço da Catástrofe e na
identificação das vítimas, há elementos que são características individuais da pintura do
artista. “A metamorfose e a transfiguração entre humano e animal, as mutilações e as
deformações são temas recorrentes em suas obras. O uso de grafismos e de números nas telas
também constitui uma de suas marcas” (VIEIRA, 2010, p. 102). Nota-se que tais elementos é
que dão singularidade e intimidade ao Acidente Radiológico do Césio 137.
Na Série Césio, a linguagem indicial mobiliza os elementos do evento
radiológico e, desse modo, atualiza-o no presente e provoca uma sensação de
proximidade com a tragédia. A catástrofe permanece em seus rastros de
destruição e no sofrimento ainda presente. O artista plástico Carlos Passos
(2007) define a referida série como um ‘depoimento plástico profundo’ do
artista e sugere que o impacto das telas aproxima o espectador de uma
experiência do trauma (VIEIRA, 2010, p. 105).
Podemos pensar mais uma vez a arte grotesca, sendo que “o grotesco é o contraste
pronunciado entre forma e matéria (assunto), a mistura centrífuga do heterogêneo, a força
explosiva do paradoxal, que são ridículos e horripilantes ao mesmo tempo” (KAYSER, 2009,
p. 56). O estilo grotesco de arte se configura a Série do Césio, e consequentemente as vítimas,
justamente em razão de:
Todo o conjunto desta série de Siron Franco dedicada ao episódio do
acidente com o césio 137, para além de mostrar o pânico instaurado em
nosso meio, constitui uma voz coletiva que se materializa através do trabalho
do artista, para falar da nossa permanente indignação, da nossa contínua
indagação sobre o destino deste lugar, das pessoas e da cidade após o
acidente de outubro de 1987 (PASSOS, s.d).
A imagem, a arte, reflete uma simulação da verdade, de como o artista vê determinada
situação, ele segue suas próprias condições e situações. A razão da realidade revela conceitos
lacônicos à arte, no sentido de que “a razão humana tem um destino singular em certo gênero
de seus conhecimentos: sente-se importunada por questões a que não pode esquivar-se”
(PASCAL, 2005, p. 31). A arte de Siron Franco representada nas quatro vítimas apresenta a
expressão do artista no que lhe provoca, cria seus quadros das vítimas em protesto e em
apresentação das consequências do Acidente.
3.3 – Espólio Social do Acidente Radiológico do Césio-137
É certo que o Acidente com o Césio-137 gerou muitas vítimas, sendo que quatro delas
foram fatais no cume dos acontecimentos trágicos. Contudo, se pensarmos o significado de
vítima, percebemos que os envolvidos, de alguma forma, possuem suas vidas alinhavadas
com a situação de caos ou medo, se tornando, assim, vítimas. Alves (2005) ao realizar um
estudos sobre a vítima na perspectiva Enrique Dussel, teoriza que a vítima seria:
Um vivente que se mostra em materialidade extrema. Está situada dentro de
uma história local, tem como referência uma determinada cultura localizada
no tempo e no espaço, fala uma língua, está organizada numa sociedade
econômica e política especifica. É nesta materialidade que está o vivente na
situação de vítima (ALVES, 2005, p. 77).
Nesse ponto, notamos que há influências da modernidade na construção de situações
que podem mudar a perspectiva da condição de vivente à vítima:
O nível de profundidade da crítica é maior, concernente ao terceiro mundo.
A razão, tal como a modernidade a forjou, é insuficiente, pois devemos
mergulhar nas situações extremamente desconfiguradas da humanidade nas
quais surge a vítima (ALVES, 2005, p.25).
Neste imagina-se que o “mito da modernidade” tece as relações existentes, dando a
ideia de um falso poder/controle das situações, a cada dia o indivíduo se depara com coisas
novas. Ocorre ainda a vitimação, atribuindo ao homem à inocência, no lugar em que o
individuo recebe algo que ele ainda não conhecia com a simplicidade de uma criança,
simplesmente pelo encantamento que este possa lhe proporcionar.
Voltando ao evento, epicentro de nossas discussões, vemos que a cápsula de césio-137
foi recebida inocentemente, tendo em mira que as pessoas envolvidas diretamente não tinham
conhecimento do produto radioativo, como se não estivessem preparadas para receber a
tecnologia do mundo contemporâneo europeu, no sentido de que em Goiás carregaria a falsa
modernidade, ou mesmo a modernidade líquida expressa por Bauman, onde as relações se
desfazem, escorrem como se fossem líquido. Para completar as palavras do sociólogo,
podemos citar Alves (2005) ao afirmar que “o mito da modernidade é falsamente
emancipatório” (p. 42).
Um ponto importante que merece saliência se refere ao esquecimento público no qual
as vítimas estão agregadas. Siron Franco ao pintar seus quadros (não só as vítimas, mas a
série Césio) registra a construção do Acidente, por remeterem ao acontecido, registrando na
memória coletiva o desastre.
Agregada ao corpo pictórico constituído por planos ora de terra, ora de tintas
de tonalidades graves, ora de cor prata metálico, a roupa tensiona a
superfície com seus volumes e rugas peculiares, e atua como um duplo
simbólico do corpo ausente que potencializa diante dos nossos olhos a
memória dolorida de todos os que faleceram vitimados pelo césio 137
(PASSOS, s/d. p. 02).
Em uma matéria divulgada no site do Greenpeace, em memória às vítimas do acidente
com o Césio-137, foi citado que:
Estima-se que as 19 gramas de césio-137 contidas naquela fonte fizeram
mais de 60 vítimas e contaminaram mais de 6 mil pessoas, segundo dados da
AVICÉSIO. Os afetados sofrem com problemas como câncer, defeitos
genéticos, seqüelas psicológicas e preconceito. A tragédia ainda deixou
como herança mais de 20 toneladas de lixo radioativo (GREENPEACE,
2007).
A notícia nos faz lembrar da herança radioativa, que são os descendentes das vítimas
diretas e o lixo enterrado na cidade de Abadia de Goiás. Ambos os legados, representam um
problema na sociedade atual.
Em 1988 é criada a Associação das Vítimas do Césio-137, que ficou popularmente
conhecida pela sigla AV-CÉSIO, a qual é atribuída importância por sua existência consolidar
a representação de vítimas ainda existentes do acidente, além de buscar a reparação aos
prejuízos morais, físicos, financeiros dos rádioacidentados. Grife-se que os envolvidos não
foram só prejudicados emocionalmente, eles
[...] sofreram, chocante e inesperadamente, a ruptura de todo um modo de
vida. A começar de perdas materiais, consideradas imprescindíveis a um ser
humano, tais como: casas, móveis, utensílios, vestuário, documentos
pessoais, jóias, fotografias, repentinamente, se viram obrigados a serem
deixados para trás. O que é pior, toda uma história de vida considerada, em
poucos minutos, como lixo radioativo. As perdas afetivas também foram
enormes, tais como: a separação e isolamento de membros do grupo familiar
para tratamento nas unidades hospitalares, o distanciamento de parentes e
amigos, as mortes, e ainda o sofrimento do processo de discriminação social
por parte da sociedade de forma acirrada, levando-os a se discriminarem
entre si e a se sentirem discriminados, fazendo parte real de um processo de
exclusão social (ALMEIDA, 2004, p.13).
Após alguns protestos, o Estado providenciou temporariamente casas de aluguel para
que as famílias envolvidas diretamente fossem abrigadas, garantindo a elas uma ajuda mensal,
com uma cesta básica de alimentos. No ano de 1989 aprovou-se a Lei 10.977/8920 que
beneficiava as vítimas com pensões, ficando o benefício estabelecido da seguinte forma:
I - 22 (vinte e dois) MVR, para os pacientes com incapacidade funcional
laborativa parcial ou total permanente, resultante do evento; II - 15 (quinze)
MVR, para os pacientes, não abrangidos pelo item anterior, irradiados e/ou
contaminados em proporção igual ou superior a 100 (cem) Rads; III - 11
(onze) MVR, para os pacientes irradiados e/ou contaminados em doses
inferiores a 100 (cem) e equivalentes ou superiores a 50 (cinqüenta) Rads;
IV - 8 (oito) MVR, para os demais pacientes irradiados e/ou contaminados,
20
Este benefício abrangeria 149 dentre as 249 vítimas consideradas “incontestáveis”, ou seja, as diretamente
atingidas, as quais desde o momento do acidente necessitaram de resposta urgente por parte do Estado de Goiás.
Em 1996, a União, através da lei 9.425/96 reconheceu o direito das vítimas do Césio-137 a assistência
governamental Federal. Até então, não havia por parte deste ente governamental nenhuma assunção concreta de
responsabilidades pela resposta ao acidente. Esta lei veio alterar essa situação, ao garantir pensão federal a
vítimas já contempladas em 1989 pela pensão estadual, estabeleceu valores superiores a esta e ampliou o seu
alcance, atendendo a 249 vítimas. Assim todas as vítimas do grupo 1 passaram a ter acesso a pensão federal ou
estadual, ou em certos casos a ambas (BARBOSA, 2009, p. 100-101).
não abrangidos pelos itens anteriores, sob controle médico regular pela
Fundação Leide das Neves Ferreira, a partir da sua instituição até a data da
vigência desta lei, desde que cadastrados nos grupos de acompanhamento
médico I e II da referida entidade (BRASIL, 1989).
O que percebemos é que os homens que trabalharam para a descontaminação não são
incluídos na lista da Lei como beneficiários. Nessa perspectiva, a posição do Estado 21 é
destacada por Barbosa (2009) da seguinte maneira:
A posição dos órgãos governamentais em relação ao acidente de Goiânia
apresenta fortes semelhanças com o que ocorreu em outros acidentes
ampliados como Seveso e Bhopal. O Estado e as suas instituições
assumiram-se como garantes da assistência às vítimas e do seu bem-estar,
mas as respostas foram pontuais, insuficientes e inadequadas à magnitude e
persistência dos problemas, associadas a uma postura paternalista
(BARBOSA, 2009, p. 114).
Em afirmação a persistência dos problemas, temos a questão do lixo radioativo, que se
encontra em um aterro no município de Abadia de Goiás. Os entulhos produzidos pelo
Acidente excediam a quantidade considerada normal pela CNEN (eram 40 mil toneladas de
lixo radiativo), o que representava um grande problema, já que não se tinha lugar preparado
para receber tamanha quantidade de material descartado.
Após a descontaminação, os rejeitos radioativos ainda permaneciam no centro de
Goiânia. Mas o que fazer com tanto lixo?22 Segundo Pereira (2005), a questão dos rejeitos
atômicos só ganhou culminância nas discussões do Estado quando na cidade de Goiânia
oraganizou-se um movimento social. Estima-se que 5.000 (cinco mil) cidadãos, em forma de
protesto, se direcionaram ao centro da cidade com faixas que diziam: “Fora lixo atômico”. Em
resposta a essa manifestação, Barbosa explica:
Em outubro de 1987, o Conselho Estadual de Meio Ambiente, órgão
deliberativo, proibiu que o lixo radioativo permanecesse na área urbana de
Goiânia, levando as autoridades a iniciar, com caráter de urgência, o
21
A proteção social estatal tem, pois, sido uma conquista alcançada a duras penas para os radioacidentados, após
um longo período de reivindicações e lutas coletivas. Nesse processo, o Estado tendeu a se posicionar como uma
entidade neutra, alheia ao processo, secundarizando o apoio às vítimas em relação aos imperativos do
desenvolvimento. Esta situação não tem, por isso, proporcionado o debate sobre qual deve ser o papel do Estado
diante de situações de catástrofe de grande alcance, ainda que não deixe de, através de medidas que vão sendo
aprovadas ou aplicadas, muitas vezes, como resposta a longos períodos de luta e de reivindicação, realçar
publicamente a sua função de proteção dos cidadãos (BARBOSA, 2009, p. 104).
22
No âmbito Federal, o Presidente da República, à época José Sarney, que inicialmente teria apoiado o
Governador de Goiás em suas declarações favoráveis à retirada dos rejeitos radioativos de Goiás, já não
conseguia, diante das pressões de outros Estados da Federação Brasileira, manter essa posição: ‘Logo se
percebeu que esta posição do governo era uma posição muito mais isolada do que se poderia supor’ (COSTA
apud BARBOSA, 2009, p. 76).
processo de identificação e escolha da área em que viria a ser localizado o
depósito provisório. Neste percurso algumas áreas goianas foram
identificadas como possíveis locais para a deposição de rejeitos radioativos,
mas em todas elas houve fortes protestos no intuito de que essa deposição
não fosse concretizada (BARBOSA, 2009, p. 74).
Até então os rejeitos acabavam ficando em um lugar “provisório do provisório”
(PEREIRA, 2005, p. 51). No entanto, abriu-se variadas discussões com intuito de chegarem à
definição de um local23 onde pudesse ser transformado em aterro do lixo produzido no
acidente. Pensou-se em levar os rejeitos para outro Estado, como por exemplo para o Pará,
que se recusou afirmando que não seria a “lixeira do Brasil” (BARBOSA, 2009, p. 77). Todos
os Estados e cidades citados para abrigar os rejeitos se manifestavam contrários a ideia.
Durante este processo, persistia em Goiás a discriminação, a ignorância
associada à incerteza e ao medo, aliados ao despreparo de organismos
governamentais. A população goianiense continuava a ser confrontada com
as incertezas e dúvidas acerca da idoneidade das declarações científicas e da
suspeita, sempre presente, de que os cientistas poderiam estar ocultando o
verdadeiro impacto do acidente. Tudo isto, vivido pelos goianenses na
época, continua presente no imaginário das pessoas que tiveram a
experiência do acidente e das suas sequelas (BARBOSA, 2009, p. 77).
As exigências ao local que se tornaria o deposito definitivo eram as seguintes:
[...] o local selecionado deve ser bem drenado e não estar sujeito a
inundações e erosões, estar situado em áreas de baixa sismicidade e de baixa
densidade populacional, possuir um solo de baixa permeabilidade e alta
capacidade de retenção de radionuclídeos. O nível da água subterrânea deve
ser bem abaixo da parte inferior do depósito para não haver escape de
material radioativo para o meio ambiente (CDTN, 1991, p. 25).
Dentro das exigências de armazenamento do lixo do acidente e dos lugares citados
para se tornarem o deposito de rejeitos, foi escolhida a cidade de Abadia de Goiás, que se
distância 25 km (vinte e cinco quilômetros) de Goiânia.
23
O terreno escolhido deveria ser público; Deveria localizar-se preferencialmente distante de núcleos
populacionais, ou seja, em área rural, sem adensamentos; A distância aos pontos de origem dos rejeitos deveria
ser a menor possível, de forma a minimizar os riscos inerentes ao transporte; A área em questão deveria estar
razoavelmente bem atendida por infra-estrutura rodoviária, para facilitar os trabalhos de transporte, bem como o
acesso ao depósito; Da mesma forma, o local deveria apresentar infra-estrutura existente e adequada ao
suprimento e fornecimento de energia elétrica; O uso do solo no entorno da área escolhida não deveria ser
caracterizado, em escala, por atividades agropecuárias; O local não deveria estar situado próximo a grandes
mananciais ou outros corpos d´água de expressividade; Em termos topográficos, o terreno deveria ser
razoavelmente elevado, eliminando-se assim quaisquer riscos relativos a inundações; A vegetação da área
deveria se encontrar preferencialmente antropizada, ou seja, já apresentando um certo grau de degradação; O
terreno não deveria apresentar afloramentos de água provenientes do lençol freático; A área efetiva do depósito
deveria ser delimitada de tal forma que as taxas de exposição na cerca fossem inferiores ao limite para público
estabelecido pela norma CNEN-NE-3.01 (GOIÁS,1994, p. 16-17).
As discussões que deveriam dar rumo ao lixo atômico tiveram repercussão
internacional, o que revelou a falta de preparo do Brasil à recepção de materiais nucleares,
além da precariedade da segurança pública em relação a estes materiais. O fato é que foi ainda
possível notar a garantia à ordem nacional e a solidariedade entre Estados, já que além de
manifestações sociais, artísticas e ambientalistas, “governadores e parlamentares também se
manifestaram contra qualquer eventualidade de seus Estados virem a abrigar depósitos de lixo
atômico” (PEREIRA, 2005, p. 55).
Quanto a essas questões, no aniversário de 10 anos do acidente, Siron Franco produz a
pintura que seria intitulada de “Quinta Vítima”, que carregaria as heranças mais frias e
sensíveis da tragédia que marcou o Brasil. Esta quinta vítima seria as gerações pós-césio que
vivem, lembrando e cuidando do lixo produzido em tempos de Césio.
Soma-se a estas questões as eventualidades de fatores que a “Quinta Vítima” ainda
espera respostas. O fato é que existem problemas que os herdeiros do césio-137 aguardam
suas respostas. É certo que
os temores diante das incertezas frente ao futuro e ao sentimento de
descuidado torna ainda mais delicada qualquer investigação feita junto à
população. Outro fator, que já deveria ter sido esclarecido há bastante tempo,
mas que ainda se encontra presente nos discursos de alguns profissionais e
instituições, se refere à tentativa de criminalização da população afetada face
aos episódios que caracterizaram a movimentação inicial do equipamento
médico radioativo que continha o Césio. Apesar da justiça já ter inocentado
todos os trabalhadores envolvidos com a movimentação e abertura da
cápsula de Césio 137, e concentrado toda a responsabilidade naqueles
diretamente envolvidos no abandono do equipamento perigoso nos
escombros de uma edificação abandonada há mais de dois anos, ainda hoje
infelizmente este discurso retorna por parte de certos profissionais e
contribui simbolicamente para criminalizar e tornar ainda mais vulneráveis
as populações afetadas pelo acidente (PORTO, 2007, p.70).
É notável que as pessoas afetadas, ou radioacidentadas, não são reconhecidas como
cidadãos que teriam sido expostas à consequência de uma irresponsabilidade, e sim como
vítimas, o que de certa forma impede a reconstrução de sua identidade, já que carrega a
lembrança do acidente na discriminação dada principalmente pelo Estado, pois é necessário
que se identifiquem como vítimas para que recebam assistência que lhes deveria ser dada por
direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com um olhar no passado e outro no presente, nós nos propomos a realizar uma
análise das quatro vítimas fatais do Césio-137 pintados por Siron Franco, percebendo como a
fragilidade da tragédia afirmadas nas vítimas impactou a sociedade como um todo, ganhando
amplitude com o aparecimento de sintomas nos descendentes, que carregam a herança dos
envolvidos diretamente ou não com o Acidente.
Cabe destacar aqui a importância da ação cultural neste Acidente, bem como em
qualquer evento da História, a relevância histórica dada as obras de Siron Franco, o pintor das
vítimas, está agregado a tentativa de expressão de uma memória trama que seria coletiva, por
meio da retratação de cenas individuais, possibilitando ao observador a percepção do evento
dentro da tela, já que nos traz a data, a rua e sua presença.
Outro ponto que nos leva a pensar as obras do artista para a história, que incentivou na
construção desta pesquisa é a novidade trazida nas telas, tais como a presença do humano, por
meio da terra de Goiânia e a tinta nuclear que representaria essa pós-modernidade que é
agregada no Acidente e na memória, caracterizada pelo trauma da tecnologia, que foi uma das
heranças do Evento Radiológico do Césio-137.
Somados as considerações acerca da série “Césio”, é possível afirmar que Siron não
constrói os acontecimentos seguindo uma linearidade dos episódios, possibilitando sua
própria formatação, transformando a série em um depoimento de artista plástico, que é muito
intenso e profundo para memória do Acidente, tanto para os que vivenciaram quanto para as
gerações pós-césio, que carregam sua herança.
Essa experiência da academia possibilitou a aproximação com o evento que marcou os
olhos goianos com sofrimento, com a presença da tecnologia e o despreparo à recepção da
mesma. Sendo que foi possível enxergá-la em sua amplitude e dor, bem como alguns dos
movimentos, eventos e descasos surgidos ou talvez evidenciados, por uma ausência de
carinho ou até mesmo atenção do Governo e dos cidadãos para com as vítimas diretas e
indiretas do Acidente.
Até o momento em que começava a pesquisar sobre o assunto, parecia ser o
acontecimento alheio á realidade do Brasil e de Goiás atual, parecendo estar distante. Um dos
aprendizados proporcionados pela pesquisa e estudo do tema foi que o “acidente com o Césio137” está mais presente em nós do que pensamos, já que inaugurou um novo período no
Estado de Goiás, o que os historiadores insistem em nomear de pós-modernidade.
Esta pós-modernidade carrega em si o ar da tragédia e do descaso público,
implantando na memória goiana o medo do nuclear, do novo. Visto que, o Acidente com o
Césio-137 além de inaugurar este novo período, veio como um desastre que arrancou
violentamente das entranhas da cidade de Goiânia o ar de moderna, por ser uma cidade
planejada, e o sentimento de gloriosa dada à mesma desde o ano de 1930, quando o Estado de
Goiás passou pelo processo de transferência da capital.
Concomitantemente, cabe aqui comentarmos sobre o último tópico deste 3º capítulo,
que intitula-se “3.3 - Espólio Social do Acidente Radiológico do Césio-137”, momento em
que nos dispusemos a realizar uma reflexão acerca da herança da tragédia em nossa
sociedade, bem como a condição do lixo gerado, momento em que destacamos a presença da
quinta vítima pintada por Siron, no intuito de remetermos ao depósito radioativo como um
lugar, onde foi depositado não só o lixo gerado, “mas também um pouco da vitalidade mais
primitiva e essencial à humanidade” (PASSOS, s.d, p.02).
É importante destacar que:
O que evidencia a tragédia de Goiânia é o fato de tratar-se de um acidente
que envolve a questão da energia nuclear e seus efeitos sobre os seres
humanos. No processo de domínio da tecnologia nuclear, deparamos com
diversos subprodutos – o lixo, a bomba – que podem a qualquer momento,
por falhas no sistema, irresponsabilidade ou por deliberação própria,
reverterem-se em catástrofes de impacto semelhante ou ainda maior que o
ocorrido em Goiânia (MIRANDA, 1993, p. 14).
Neste ano de 2012 (dois mil e doze) a tragédia completa 25 (vinte e cinco) anos, o que
ocasionou uma série de publicações no Jornal O Popular. A matéria do dia 29 de setembro da
jornalista Karla Borges, relata pesquisa sobre a qualidade de vida dos radioacidentados, que
foi realizada pelo pesquisador Rafael Souto.24 A pesquisa revelou que 42,5% das pessoas mais
afetadas (classificadas de grupo 01 e 02) “apresentaram depressão moderada a grave”, que os
pesquisadores consideram um fator altíssimo.
De acordo com a matéria, Rafael afirma que esse índice é possível pelo fato de o
acidente ter desordenado tanto com o psicológico individual quanto com as relações sociais.
Afirma que: “O evento reforçou o processo de exclusão”, no qual o pesquisador se refere a
circunstâncias que levaram pessoas envolvidas no Acidente a sofrerem com isolamento,
discriminação e ou rejeição.
24
Segundo O Popular Rafael Souto é “doutorando em epidemiologia e gerente do Centro de Excelência em
Ensino Leide das Neves, Pesquisa e Projetos, uma das instituições remanescentes da antiga Fundação Leide das
Neves” (O POPULAR, 29/10/12, p. 08).
Notamos que o trauma não é ambiental, por causa do lixo atômico, e físico, por causa
das deformações no corpo, trata-se de sofrimentos psicossociais, pois as “pessoas passaram
todo esse tempo na iminência de sofrerem de alguma doença grave, como câncer’. Imagine
conviver com isso todos os dias, durante 25 anos”.
Em uma matéria a parte, intitulada de “Reflexão”, ressaltasse a visão do Presidente da
Associação das Vítimas do Césio 137, Odesson Alves Ferreira, onde fica bem nítido o
descaso do Governo para com as vítimas. Sobreleva-se um trecho da fala de Odesson, onde
diz que: “deixamos de receber muitas coisas a que temos direito, principalmente atenção e
carinho”. Na matéria Odesson ressalta que “os 25 anos do acidente devem servir para que
todos os envolvidos façam uma análise. ‘Não apenas as vítimas, mas especialmente o
Governo”.
Na “Reflexão”, é proeminente destacar ainda falas do secretário estadual de saúde
Antônio Faleiros, que disse buscar a melhoria no atendimento as vítimas, assim como os
medicamentos. Faleiros se diz ainda muito satisfeito por as Universidades estarem se
envolvendo cada vez em pesquisas relacionadas ao Césio.
O fato é que podemos ver as sequelas do acidente nitidamente na sociedade, não só
devido a falta de atendimento médico aos radioacidentados, mas também no visível
despreparo ao recebimento da notícia do acidente, sendo que a “incoerência e negligência não
só para com as vítimas identificadas, mas principalmente para com a população goianiense,
que ainda convive com o medo e as dificuldades de aceitação do acidente e das suas
consequências” (BARBOSA, 2009). Os retratos das vítimas mostram claramente as situações
de sensibilidade da sociedade, sentimentos expressos ao longo de todo o trabalho.
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Vinte cinco anos de sensibilidades pictóricas na catástrofe