A FORÇA SACRAMENTAL DA PALAVRA DE DEUS
“Per evangelica dicta deleantur nostra delicta”
Por frei Luis Felipe C. Marques, OFMConv.
No mês passado, o conhecido mês da Bíblia, a Igreja no Brasil dedicou grande espaço nas
suas celebrações litúrgicas para dar um enfoque maior na importância da Palavra de Deus.
Uma Palavra que gera e que dá vida. Neste domingo, o 28º do tempo Comum, a mesma
Igreja, pela Liturgia da Palavra, trazendo um pequeno trecho da Carta aos Hebreus,
torna a falar desta palavra.
Um texto rico e singular, pois ao dizer para nós que esta “Palavra é viva e eficaz” (cf. Hb
4,12-13), garante-nos que ela tem a força que transcende o nosso modo de pensar. A
força que ocupa nossa história, espaço e tempo. A força que tem um nome e é uma pessoa.
A força que possui o rosto misericordioso do Pai. É a própria palavra do Pai encarnada,
Jesus Cristo.
Por ser Palavra encarnada do Pai, os atos e as palavras de Jesus tem força salvífica, tornase palavra redentora, possui força sacramental: “Ele é a vossa palavra viva, pela qual tudo
criastes”1.
A Palavra eterna não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras;
mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e
singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que
motivo, “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e,
desta forma, um rumo decisivo”2.
A liturgia é o lugar privilegiado onde Deus fala-nos no momento presente: fala hoje ao
seu povo, que escuta e responde. Cristo, de tal modo, está presente na sua Palavra, pois
quando na Igreja proclama a Sagrada Escritura é Ele mesmo quem fala3. Desse modo, a
Palavra é considerada momento de atuação e atualização do mistério de Cristo.
A palavra de Deus é comunicação de salvação, enquanto proclamação eficaz da
economia divina. A palavra, atuada e atualizada no hoje da nossa salvação, é também a
revelação da ação potente do Espírito Santo. A presença de Cristo é vista como
presença pessoal e dinâmica no seu mais profundo mistério.
A palavra é comunicação – não somente humana de transmissão de mensagem – e ação,
pois possui uma força eficaz que garante, atualiza e dá vida.
Assim, a Palavra de Deus não é um conjunto de frases ocas, vagas e estéreis, ‘que entram
por um ouvido e saem pelo outro’, sem causar impacto de conversão na vida daqueles
que a escutam. Se não existe impacto, talvez estamos escutando, acolhendo e aprendendo
“palavras” que nos fazem passar com indiferença ao lado da Palavra eterna de Deus.
A ritualidade que acompanha a Liturgia da Palavra, sobretudo na proclamação do
Evangelho, é expressão clara da força sacramental desta Palavra. O presidente da
celebração, após proclamar o Evangelho e beijar o livro sagrado, reza em silêncio: “que
as palavras do Santo Evangelho perdoem os nossos pecados - per evangelica dicta
1
Cf. Prefácio da Oração Eucarística II.
Verbum Domini, n. 11.
3
Cf. Sacrosanctum Concilium, n.7.
2
deleantur nostra delicta”. Nesta oração podemos claramente perceber a força salvífica, e
por isso, sacramental, da Palavra de Deus. De fato, é uma Palavra viva e eficaz.
A palavra de Deus se faz carne sacramental no evento eucarístico e realiza plenamente a
Sagrada Escritura. A Eucaristia é o princípio hermenêutico da Escritura e a Escritura é a
iluminação e explicação do mistério eucarístico. Tanto a Escritura, quanto a Eucaristia
são “pão de vida”, segundo a bela expressão conciliar, “é preciso nutrir-se do pão de
vida seja na mesa da palavra de Deus seja na mesa de comunhão com Cristo”4.
Alimentada nessas duas mesas, a Igreja, por meio da Palavra de Deus, instrui-se mais pois
anuncia a aliança divina e pela Eucaristia, santifica-se plenamente pois renova esta mesma
nova e eterna aliança. Numa, recorda-se a história da salvação com palavras e na outra a
mesma história se expressa por meio de sinais sacramentais da Liturgia. Portanto, convém
recordar sempre que a Palavra divina que a Igreja lê e anuncia na Liturgia conduz,
como a seu próprio fim, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, isto é, à
Eucaristia5.
Talvez uma única vez na vida tal palavra tenha penetrado o nosso coração – não acredito
tanto – mas essa vez nos garantiu a compreensão da salvação e a permanência, constância
na busca e proclamação desta salvação.
A Palavra de Deus “penetra”, “rompe” e "fundamenta" a vida cristã.
Tudo o que a Igreja é nasce da relação com esta Palavra. Isso não significa que ela
depende, em primeiro lugar, do "significado" das palavras, nem que devemos encontrar
uma palavra que explique todos os seus aspectos pois isto seria um “virar de cabeça para
baixo”, a força da Palavra. Assim, teríamos uma Igreja que justificaria a Palavra e não se
deixaria justificar por ela.
Na verdade, esta palavra é tão forte, tão doce e inebriante, que sempre mexe com toda a
Igreja, sua ordem e seus programas, suas boas intenções e suas perspectivas. A Palavra
da Escritura torna-se vida somente fazendo-se corpo nas palavras do sacramento. Dessa
forma, ela foge de uma pretensão “gnostica” de dominar o texto que, quando não é mais
palavra, é somente “significado”, podendo tornar-se prisioneiro da cabeça de quem lê e,
desse modo, não é mais texto inspirado, mas ao mesmo tempo: ideologia, escravidão,
fundamentalismo e relativismo6.
Assim, a relação entre o texto sagrado e a assembleia litúrgica da Igreja não é somente
de atualidade, mas também de identidade; não é apenas hermenêutico, mas simbólico.
De fato, o texto em questão não é leitura de um poema ou de uma oração para alimentar
a vida cristã e espiritual, mas leitura de textos que fundamentam a identidade cristã7.
A Palavra, Evangelho encarnado na liturgia da vida, nos convida, antes de tudo, a
responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós
mesmos para procurar o bem de todos8. Desse modo, a força sacramental da Palavra pode
fortalecer a nossa vida cristã, garantindo eficácia na nossa ação, nos ajudando a “pensar
com o coração”, fortalecendo nosso testemunho e nosso desejo de continuar numa
comunidade que encontra sua plenitude na celebração comum da Palavra e do
4
Cf. Dei verbum, n.21.
Introdução ao Lecionário da Missa, n.10.
6
Cf. A. GRILLO, Il lavoro della Parola nella liturgia: verità dimenticate ed evidenze sospette.
7
Cf. L.M CHAUVET, L’umanità dei sacramenti. Magnano: Edizioni Qiqajon, 2010. p.39.
8
Cf. Evangelii Gaudium, n.39.
5
Sacramento. A Palavra possui a força sacramental que transcende o nosso modo de
pensar.
“Porque, assim como desce a chuva e a neve dos céus,
e para lá não tornam, mas regam a terra, e a fazem produzir, e brotar,
e dar semente ao semeador, e pão ao que come.
Assim será a palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes
fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei” (Is 55, 10-11).
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