doBRASIL
retrato
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | N O 13
TRABALHO:
O MAL ESTÁ
NO AMBIENTE
REPORTAGEM:
40 ANOS DEPOIS,
O RETORNO AO
RIO DOS PEIXES
FILOSOFIA: POR
QUE NIETZSCHE
FAZ SUCESSO?
POLÍTICA:
À SOMBRA DO ESCÂNDALO DANTAS
Até agora, a espalhafatosa Operação Satiagraha, que pretendeu expor
oretratodo
submundo
das finanças e da política, mais escondeu do que revelou
BRASIL 13
1
A cultura brasileira
vai mostrar sua cara.
Estão abertas as inscrições para projetos
culturais que receberão patrocínio da CAIXA
em 2009. Entre no site da CAIXA, consulte os
editais e inscreva seu projeto. A CAIXA quer
ver o Brasil inteiro aplaudindo a sua arte.
Relação de editais e datas de aberturas
s Ocupação dos Espaços CAIXA Cultural
21/7 a 5/9
s Festivais de Teatro e Dança
25/8 a 26/9
s Programa Artesanato Brasil
25/8 a 26/9
s Programa CAIXA de Adoção
de Entidades Culturais
27/10 a 28/11
s Programa de Revitalização
do Patrimônio Histórico
e Cultural Brasileiro
27/10 a 28/11
Para mais informações, acesse o site:
caixa.gov.br/caixacultural
CAIXA. O banco que acredita nas pessoas.
2
retratodoBRASIL 13
doBRASIL
retrato
WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | N O 13 | AGOSTO-SETEMBRO 2008
Ponto de vista ALÉM DA SATIAGRAHA O governo vai ignorar o debate por trás do afastamento do
delegado Protógenes Queiroz? 05
CARTA AO LEITOR
Política À SOMBRA DO ESCÂNDALO DANTAS A Operação da PF para expor o submundo das finanças e
da política mais escondeu que revelou Raimundo Rodrigues Pereira 06
Nesta edição, Retrato do Brasil
inicia uma reforma para ser
completada até fevereiro do
próximo ano. O número de páginas
da revista cresceu das 32 que
tivemos nas 12 últimas edições
mensais para as 40 da edição atual
e, ao final do processo, deve chegar
a 64. A cada dois meses, a revista
deve ganhar mais oito páginas.
Outra mudança importante é que
Retrato do Brasil deixou de ser
monotemática, para ter um leque
mais amplo de assuntos. Ao mesmo
tempo, procura uma apresentação
visual mais aberta, mais elaborada.
A revista quer ganhar público,
mercado. Precisa ser mais forte
para manter sua independência, sua
política editorial central de examinar
os fatos mais candentes e mais
relevantes da vida social nos seus
aspectos políticos, econômicos e
culturais.
Retrato do Brasil continua dizendo,
com convicção, que não se faz
jornalismo fora do mundo material,
a partir do céu, como os anjos, sem
tomar partido, sem um ponto de
vista. E o nosso é o de contribuir
para a elevação dos padrões de vida
material e cultural das classes e
camadas sociais mais pobres: os
operários, os camponeses, as
classes médias trabalhadoras, os
pequenos e médios empresários.
Reportagem DE VOLTA AO RIO DOS PEIXES Nosso repórter retorna à aldeia dos kaiabi. Da primeira vez,
acompanhava uma operação dos irmãos Villas Boas. Agora, o Mato Grosso que ele conheceu, 42 anos atrás,
não existe mais Carlos Azevedo 10
Trabalho O MAL ESTÁ NO AMBIENTE Mudança de método aumenta o número de registros de acidentes e
ajuda a identificar os locais de trabalho doentios Tania Caliari 24
Educação NEGÓCIO SUPERIOR O ensino universitário transformou-se, nos últimos anos, num
empreendimento para os grandes capitais Verônica Bercht 28
Livros HISTÓRIA DAS GUERRAS PRIVADAS A Colômbia e o Iraque são apenas dois exemplos do
espetacular ressurgimento dos exércitos mercenários Renato Pompeu 31
Futebol A PÁTRIA DAS CHUTEIRAS Uma nova regra da Fifa ou desmonta clubes como o Real Madrid ou vai
levar muito jogador a mudar de nacionalidade Rafael Hernandes 34
Filosofia A VOLTA DE NIETZSCHE O pensador do pessimismo e da decadência está, mais uma vez, no topo
da lista dos mais queridos Priscila Lobregatte 36
EXPEDIENTE
REDAÇÃO SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira • EDIÇÃO Armando Sartori • REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia
Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht • COLABORAM NESTA EDIÇÃO José Carlos Ruy •
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CAPA Daniel Dantas (fotografado em 16/07/2008)/ Folha Imagem
retratodoBRASIL 13
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retratodoBRASIL 13
ALÉM DA SATIAGRAHA
O governo vai ignorar
o debate por trás do
afastamento do delegado
Protógenes Queiroz?
Folha Imagem
Ponto de vista:
O delegado Protógenes Queiroz foi
afastado do comando da Operação Satiagraha
depois de um grande tumulto na Polícia Federal (PF). Ele e seu superior na organização, o
delegado Paulo de Tarso Teixeira, desentenderam-se violentamente, por telefone, nas
horas que antecederam a operação. Depois
houve uma sessão de lavagem de roupa-suja
na PF em São Paulo, de três horas, gravada.
Pelo que sabe Retrato do Brasil, na reunião,
em meio a desaforos e palavrões, em certo
momento alguém até exigiu que o outro pusesse as mãos na mesa, como se o advertisse
para não sacar o revólver.
Depois do encontro, Queiroz protocolou
no Ministério Público uma reclamação. A PF
está dividida, portanto. Que rumo seguirá a
investigação? Manterá o seguido por
Queiroz ou escolherá outro? A Satiagraha é
a seqüência de duas outras investigações
espetaculares. A primeira é a do Opportunity Fund, um fundo de aplicações financeiras
do banco nacional Opportunity, de Daniel
Dantas, sediado nas Ilhas Cayman, reservado para não-residentes no Brasil e que teria
sido utilizado indevidamente por brasileiros, a partir do fim dos anos 1990.
Essa investigação desembocou numa
outra, do primeiro mandato do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, a do “mensalão”,
referente a empresas comandadas por
Dantas a partir dos negócios do Opportunity
– Brasil Telecom, Telemig e Amazônia Celular – que teriam despejado perto de 130 milhões de reais na conta do Partido dos Trabalhadores, com o objetivo de corromper a política brasileira pelo suborno sistemático –
regular, mensal – de muitos políticos.
O relevante para a investigação, após a
saída de Queiroz, parece-nos, é manter o
projeto original do trabalho: verificar a eventual ligação entre os fundos supostamente
ilegais do Opportunity em Cayman, as
retratodoBRASIL 13
privatizações e o “mensalão”. Como mostramos a seguir, o erro de Queiroz foi o de
abandonar esse caminho e percorrer outro
que o empurrou em direção ao Palácio do
Planalto, por considerar ilegais as manobras
que o governo faz com o objetivo de criar
uma supertele. Um delegado de Polícia Federal não pode tomar a decisão de fazer
uma investigação dessas. Se necessária,
uma resolução dessas cabe ao Congresso
Nacional, e o instrumento para a investigação é a Comissão Parlamentar de Inquérito.
Não é uma decisão policial e local. É uma
decisão nacional e política.
Por que a investigação de Queiroz, agora sob outra direção, não parte de uma crítica do trabalho já feito? Por que, por exemplo, a PF não divulga suas conclusões tentando resolver, pelo sim ou pelo não, os vínculos das empresas telefônicas então controladas por Dantas com o “mensalão”? A
jornalista Andrea Michael, da Folha de
S.Paulo, contou que o laudo preliminar do
disco fixo do servidor do Opportunity, feito
logo depois que ele foi aberto, no início de
2007, não descobriu vínculo entre uma coisa e outra. É isso ou é o oposto disso? O
delegado Queiroz, mesmo sem pedir o indiciamento de Andréa no seu relatório final,
quis prendê-la, alegando que a PF tem indícios para considerar necessária a abertura
de inquérito policial a seu respeito. A PF
deveria se pronunciar sobre esse ponto: afinal, a jornalista é ou não suspeita? Queiroz
estava certo ou errado?
O QUE FARÁ A PF?
O ministro da Justiça, Tarso Genro, e a
direção da PF procuraram adotar, com palavras, um tom elogioso com relação à investigação de Queiroz, que teve, de modo
geral, ampla e favorável repercussão, tanto na imprensa conservadora quanto em
publicações do campo democrático progressista, como o semanário Carta Capital.
Na prática, porém, as palavras do governo não coincidem com o fato básico: Queiroz
foi afastado. E o que se precisa saber é se a
PF vai tornar a investigação mais objetiva,
de fato, ou não. Da forma como foi encaminhada, a Satiagraha seguiu objetivos, conservadores e retrógrados, do delegado
Queiroz, que passou a investigar pessoas, e
não problemas.
A Polícia Federal brasileira tem sido
muito ativa. Nos dois governos do presidente Lula até agora, entre o início de 2003
e meados de julho deste ano, fez 590 operações, que levaram à prisão cerca de 9 mil
pessoas. E a Satiagraha (do sânscrito “firmeza da verdade”), deflagrada com três
centenas de agentes, buscas e apreensões
em mais de 50 endereços e a prisão de
uma dúzia de figurões, seria o seu momento de glória. No começo, os investigadores
tinham o disco fixo do servidor do Opportunity. Com as buscas e apreensões do dia
8, estima-se que eles têm agora os discos
fixos de mais de 200 computadores. Têm
ainda, aproximadamente, 55 mil horas de
grampos telefônicos.
Para muitos, o delegado Queiroz é o
último herói nacional. Suas idéias, portanto, têm repercussão e devem ser analisadas. Ele acha que “a cada dia que passa as
instituições ficam mais desprotegidas”, diante do crime organizado, dos mafiosos,
do terrorismo. E que, para combater essas
ameaças, a PF deveria ter autonomia e ser
uma instituição independente do Poder
Executivo. E, como defendeu em depoimento na Câmara dos Deputados, ter mais liberdade de acesso aos modernos métodos
de comunicação, como a telefonia e a
internet, utilizados pelos criminosos e por
pessoas ligadas a eles e que também deveriam ser escrutinadas, com mais liberdade, pela polícia.
O trabalho do delegado Queiroz foi precário. Suas teses sofríveis foram vendidas
à opinião pública com a manipulação das
escutas telefônicas e da mídia. Com a prisão de graúdos e sua exibição, algemados,
para as câmeras da Rede Globo – que, providencialmente, estavam sempre ao lado
da PF –, a justiça estaria sendo, finalmente, igual para todos. O conteúdo parcial das
gravações que a polícia fez, embora protegidas por segredo de justiça, surgiram misteriosamente na mídia – no prato já feito, a
manchete já pronta – como a verdade.
Não é fácil achar a verdade, no entanto. E
procurá-la, principalmente espionando as pessoas, com certeza não é o caminho. Não se faz
justiça examinando todas as palavras de pessoas definidas como bruxas de antemão. Não
se pode esquecer de que palavras não bastam
como prova. Se o cadáver não existe, mesmo
que alguém confesse ter matado uma pessoa
não pode ser considerado criminoso. A grande
mudança que tirou a Justiça das trevas da
Idade Média foi justamente a de investigar
crimes, definidos por leis, a partir de provas
materiais concretas.
5
Política:
À SOMBRA DO ESCÂND
O delegado Protógenes Queiroz, comandante da Operação Satiagraha, ação da Polícia Federal (PF) que prendeu no dia 8 de julho, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas, o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São
Paulo Celso Pitta, vê a investigação como um
clímax. “Foi praticamente um grito que saiu
da garganta de todos os brasileiros que se sentiam oprimidos por estarem, aí sim, algemados por poderes que até então não identificamos”. “A sociedade estava com isso entalado
na garganta”, disse ele à Folha de S. Paulo no
início de agosto.
Para muitos, o trabalho do delegado
Queiroz permitirá chegar ao fundo do poço
de duas tramas essenciais. Uma, financeira,
a dos fundos em “paraísos fiscais” para aplicações de “não-residentes”, uma fachada
por trás da qual se esconderiam, de fato,
grandes investidores brasileiros. Outra,
política, a do “mensalão”, movimentação
ilegal de recursos pelo Partido dos Trabalhadores por meio da qual teriam sido feitos depósitos mensais regulares para a compra de apoio de parlamentares ao governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em
seu primeiro mandato.
Daniel Dantas seria o elo entre as tramas.
Foi o gestor do Opportunity Fund, constituído nas Ilhas Cayman para participar no
processo brasileiro de privatizações nos anos
1990. E afinal, controlador da Brasil Telecom,
Telemig e Amazônia Celular, operadoras de
telefonia surgidas naquele processo e que seriam justamente as principais empresas
financiadoras, com depósitos somados de
127 milhões de reais.
A história da Satiagraha, até agora, com a
espalhafatosa operação do dia 8 de julho, com
as prisões acompanhadas pela Rede Globo,
com o vazamento controlado de informações para a mídia, é um escândalo que esconde questões essenciais. O desenvolvimento
da Satiagraha ajuda a descobrir quais são essas
questões e porque estão sem resposta.
Quando a operação começou, no início
do ano passado, considerava-se que o ponto
de partida eram as informações do disco fixo
do servidor do Opportunity, o computador
central do banco. Ele fora apreendido em 2004,
durante a Operação Chacal, investigação da
Polícia Federal sobre grampos clandestinos
que teriam sido realizados a mando de Dantas
contra concorrentes e mesmo pessoas como
Luiz Gushiken, então ministro da Comunicação Social e Assuntos Estratégicos. E seus
6
segredos haviam sido protegidos por três
decisões da Justiça, uma delas da ministra Ellen
Gracie, do Supremo Tribunal Federal, negando pedido feito por Comissão Parlamentar
de Inquérito da Câmara dos Deputados que
investigava o “mensalão”.
Em março de 2007, no entanto, um pedido do Ministério Público Federal de São
Paulo foi aceito pela 2a Vara da Justiça Federal
no estado e contornou a proibição anterior.
O disco fixo foi aberto e seu conteúdo passou às mãos dos investigadores. A partir daí,
a PF trabalhou com essas informações e produziu laudos técnicos para serem entregues
eventualmente à Justiça, ao final do inquérito.
Foram três os laudos, todos eles do Instituto
Nacional de Criminalística (INC), da Diretoria Técnica da PF:
• o laudo 1351/2008, que examinou o dispositivo de armazenamento de dados do computador e atestou a sua integridade e
confiabilidade para uso como prova na justiça;
• o laudo 1354/2008, que disponibilizou as
informações contidas de forma confiável e
acessível para consulta legal;
• e o laudo 1773/2008, organizado a partir
do anterior, de modo a responder às questões que a investigação formulava.
NA LISTA, O SÓCIO
As respostas desse último laudo são
muito afirmativas. Em resumo, o INC diz
que foram identificados 84 aplicadores no
Opportunity Fund Cayman, gerido por
Dantas do Brasil, mas reservado legalmente
para “não-residentes”. E mostra a lista, com
empresas e pessoas físicas, estas a grande maioria. E diz mais: que “a maioria absoluta” é
de brasileiros. Um dos brasileiros que teve
sua aplicação ilegal confirmada no laudo é
Luiz Roberto Demarco Almeida, sócio de
Daniel Dantas que rompeu com ele no fim
dos anos 1990 e o denunciou posteriormente
para alguns jornalistas. Demarco, um brasileiro, aplicou 150 mil dólares num dos
subfundos do Opportunity em Cayman, o
Agressive Equities, e mais 350 mil dólares
em outro, o Brazilian Fixed Income
Derivatives. O laudo diz também que o fundo movimentou 1,97 bilhão de dólares, no
período registrado no computador, de 10/
12/1992 a 23/6/2004.
Esses laudos, no entanto, demoraram: só
ficaram prontos em 2008. A essa altura, a investigação já avançara. Trabalhava com uma
análise preliminar do disco e, principalmente,
com escutas telefônicas de suspeitos, autorizadas pela Justiça em julho de 2007. O comando
da operação era então do delegado Protógenes
Queiroz. No dia 27 de março, ele substituíra
Ézio Vicente da Silva, também delegado da PF
de Brasília. Uma semana antes, no dia 20, Silva
apresentara ofício ao juiz que autorizara e acompanhava a operação de quebra do sigilo das
comunicações de internet do Opportunity. O
documento dizia que, nos dados interceptados no período analisado, a primeira quinzena
de março, apesar do “enorme volume”, mais
de 4 milhões de páginas de internet, “nada foi
encontrado em nome de Daniel Dantas, Carlos
Rodenburg (ex-cunhado de Dantas), José Dirceu e Nathalia (secretária da irmã do banqueiro). E pedia a suspensão do grampo.
Além disso, segundo se soube por artigo
de Andréa Michael, publicado na Folha de S.
Paulo, o exame preliminar do disco fixo da
central de armazenamento de dados do
Oportunitty “não continha informações relevantes que pudessem ajudar a elucidar os responsáveis ou beneficiários do mensalão”.
O artigo de Michael, publicado no dia 26
de abril deste ano, fez o delegado Queiroz
considerá-la pessoa associada ao grupo
Opportunity. Ele pediu a prisão temporária
da jornalista na jornada espetacular de 8 de
julho. O pedido não foi atendido.
De qualquer modo, já em meados de
2007, Queiroz não estava mais comandando uma investigação para buscar a conexão
dos fundos off-shore ilegais do Opportunity
com a má política do “mensalão”. Ele ainda
buscava uma conexão de negócios ilegais com
má política. Mas esta e aqueles eram diferentes. Os negócios ilegais eram os das “organizações criminosas” de Dantas e de Naji
Nahas. E a má política era a decisão do governo federal de incentivar a formação de
uma tele verde-amarela.
Como ele processou essa mudança? A
conjuntura talvez ajude na resposta. Em meados de 2007, a ministra Dilma Rousseff encomendou ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) um
estudo para realização desse negócio. Na mesma época, a 26 de julho, Queiroz pediu à Justiça a quebra do sigilo telefônico de cerca de 20
pessoas ligadas a Dantas e Najas.
Dantas e Najas tinham uma relação que,
em vários aspectos, convinha ao enredo imaginado por Queiroz. Os dois estavam envolvidos com negócios tidos como escusos. E
também com a telefonia: Dantas, como já se
retratodoBRASIL 13
ALO DANTAS
retratodoBRASIL 13
Raimundo Rodrigues Pereira
Mas ela não estava apenas ameaçada de
ser engolida pelos outros grandes grupos.
Estava corroída por ferozes brigas internas,
todas envolvendo Dantas. A Telecom Italia,
depois de um esforço para controlar a companhia, vendera sua parte no bloco para se
concentrar na Tim. E se engalfinhava com o
Opportunity por conta de um suposto
sobrepreço num negócio de telefonia no sul
do Brasil. Ambas as empresas contrataram
equipes de espiões e acabaram na Justiça, acusadas de efetuarem grampos clandestinos
aqui e na Itália.
FUNDOS CONTRA DANTAS
O Citibank queria deixar a sociedade e
embolsar dinheiro para curar feridas da enorme crise das hipotecas imobiliárias no seu paíssede, os EUA. Tinha um acordo com Dantas
e mandavam na BrT por meio dele, desde a
privatização, à revelia dos fundos de pensão
das estatais, também sócios da empresa. Mas,
em 2007, o acordo estava rompido. No início
de 2005, numa reunião em Cayman, o Citi
derrubara Dantas do comando do Citibank
Venture Capital/Opportunity Equity
Partners, subfundo do fundo Opportunity
na ilha e controlador da BrT, da Telemig Celular e da Amazônia Celular.
Os fundos de pensão das estatais também estavam acesos na briga. No novo governo petista, eles, também dirigidos por
petistas, buscaram derrubar Dantas do comando do fundo nacional, organizado para
participar da BrT, à semelhança do fundo de
Cayman. A direção de Dantas neste fundo –
o CVC Equity Partners FIA – tinha sido
engolida por eles a contragosto no governo
anterior, tucano. Em outubro de 2003, já
haviam afastado Dantas da gestão desse fundo. A partir de então, buscaram uma aproximação com o Citi. E a oportunidade de um
grande acordo surgiu com a idéia do novo
arranjo da telefonia imaginado pelo governo para criar a supertele verde-e-amarela. Citi
e Opportunity venderiam suas participações
na BrT para a Oi, novo nome do grupo formado pela Telemar e sua operadora de telefonia celular. A BrT e a Oi se fundiriam para
formar a tele brasileira. E o BNDES e os
fundos das estatais se reagrupariam dentro
da nova tele, a ser controlada pelos donos da
Oi – os grupos de Carlos Jereissati e AndradeGutierrez. O argumento é que isso criará uma
tele verde-amarela, uma nova multinacional
brasileira, numa área estratégica, tecnológica.
Folha Imagem
sabe, e Najas, como logo se verá, após um
exame do ninho de serpentes em que se tinha
transformado o setor de telefonia brasileiro
depois da privatização.
O governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso privatizou o sistema
Telebrás falando em acabar com o monopólio na telefonia. De fato, premido por uma
dívida externa galopante, vendeu o bloco
das estatais brasileiras – bastante dividido
do ponto de vista político, pois os Estados
administravam várias de suas partes – para
um punhado de monopólios. No fim de
1998, quando a privatização ocorreu, o governo queria que a venda das telefônicas estatais fosse feita a grupos de fora, que trouxessem dólares para evitar a quebra do País –
que acabou, afinal, acontecendo logo depois
das eleições daquele ano.
A telefonia fixa estatal foi dividida para a
privatização em quatro grandes áreas econômicas. O governo queria que as quatro ficassem com estrangeiros. Três acabaram ficando: uma com os espanhóis da Telefônica;
outra, a Brasil Telecom (BrT), com um consórcio no qual estavam presentes a Telecom
Italia, o Citibank e os grandes fundos de pensão das estatais; e uma terceira, a área da telefonia fixa internacional, com o mexicano Carlos
Slim, da Telmex. Só uma, chamada de
Telemar, ficou com grupos brasileiros,
Jereissati e Andrade-Gutierrez.
Aparentemente, era para ficar cada um
na sua área. Mas uma disputa enorme entre
os grupos se desenvolveu, graças especialmente à telefonia celular, que acabou se tornando o motor do mercado. A Telmex passou a operar na telefonia móvel com a Claro,
a Telefônica com a Vivo, a Telemar com a Oi
e a Telecom Itália com a Tim. E cada grupo
procurou avançar sobre o mercado do outro, porque as novas condições técnicas e a
convergência dos diversos meios de comunicação tornaram isso inevitável.
Em 2007, o delegado Queiroz, tudo indica, encontra Dantas e Nahas nesse campo
de batalha, numa disputa dentro de um grupo perdedor, a BrT. Dantas fora o controlador da BrT na era dos tucanos. Baiano, muito ligado a financistas como Pérsio Arida,
que fora presidente do Banco Central no início do governo Fernando Henrique e em
1998 estava no Opportunity, saiu desse processo como um dos grandes dirigentes da
telefonia brasileira. A BrT era a grande empresa que comandava.
A Operação da PF para
expor o submundo das
finanças e da política mais
escondeu que revelou
7
Dantas e Nahas, inicialmente, estão em
campos opostos na briga dentro da BrT.
Nahas é uma espécie de eminência parda do
presidente da Telecom Itália, Tronchetti
Provera. Mas, em 2007, a situação era outra.
No ano anterior, Nahas já trabalhara, por uma
comissão gorda garantida por Provera – a revista CartaCapital fala em 20 milhões de euros
– para mediar um acordo com Dantas, que
acaba não saindo.
Em abril de 2007, Dantas pareceu ter percebido uma saída no negócio da tele patriótica. Contratou, então, Luiz Eduardo
Greenhalgh, advogado histórico do PT e dos
movimentos de direitos humanos, para servir de conselheiro nas inúmeras brigas judiciais em que estava envolvido e de mediador
na negociação de venda de suas participações
na telefonia. Greenhalgh é amigo de Dilma
Rousseff, a ministra da Casa Civil, que está no
centro da articulação do negócio da tele brasileira. É amigo também de Gilberto Carvalho,
chefe do gabinete do presidente Lula. E ainda
de José Dirceu que, ao contrário de Gushiken,
inimigo frontal de Dantas, recebeu o banqueiro no Palácio do Planalto quando ainda era
chefe da Casa Civil.
O PALADINO QUEIROZ
O segundo semestre de 2007, nesse contexto, é a hora em que se prepara o acerto
geral. Nahas espera negócios e comissões.
Dantas quer sua parte na telefonia, que estima
em 1 bilhão de dólares. E o delegado Queiroz
se vê como o defensor do bem, no meio de
uma disputa maligna.
O relatório do delegado Protógenes
Queiroz, no qual expõe os motivos pelos
quais pede ao juiz autorização para as prisões
que comandará no dia 8 de julho, tem 245
páginas. Cerca de 40 dos laudos técnicos preparados pelo INC da PF, com apoio do Banco Central e da Receita Federal. É a parte mais
importante do trabalho. O restante vem das
escutas telefônicas, basicamente, ou é inspirado por elas. São resumos de diálogos, algumas vezes seguidos de análises localizadas,
outras, de observações de pretensões mais
amplas. Não poucas vezes, Queiroz aparece,
em suas próprias palavras, sempre num português claudicante, como um paladino. “Ante
as ameaças de corsários saqueadores das riquezas do nosso país, deixo aqui registrado
que o amanuense, que ora subscreve a presente peça, e por cautela alerto aos incautos,
seja de forma individual ou organizados criminosamente para tal finalidade, que estarei
8
de prontidão, comparado a um integrante da
Brigada dos Tigres, fazendo um acompanhamento detalhado do futuro Fundo Soberano e ao menor movimento de ações ilícitas
de tais reservas cambiais ou fraudes com os
papéis que o governo federal pretende lançar
começaremos desde já uma nova e complexa investigação”, diz ele a certa altura.
Com as escutas, Queiroz reconstrói Naji
Nahas. O investidor tinha quebrado a si próprio e à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro
em 1989. E, os diálogos mostram, Nahas
continua numa espécie de pântano, cercado
por uma dúzia de doleiros, com seus negócios, geralmente menores, e por políticos aparentemente decadentes, como o ex-prefeito
paulistano Celso Pitta, que os grampos mostram quase como um pedinte, sempre a lhe
implorar uns tantos milhares de dólares a mais
do que ele fornece, por motivos não se sabe
bem quais são.
Queiroz eleva Nahas a outro nível. A questão do Fundo Soberano mostra como é feita
essa proeza. Num dos relatórios com que pede
ao juiz a prorrogação dos grampos dos telefones de Nahas, dedica 33 linhas ao assunto.
Diz, então, um disparate atrás de outro. Um
exemplo: que o mecanismo do Fundo Soberano foi adotado por alguns tipos de países,
entre os quais “grandes produtores de petróleo”, “cuja característica básica é a unicidade
entre atividade pública e privada, ou seja países totalistas onde alguns ‘empresários’ são
considerados os titulares dos poderes políticos do país”.
O relatório conclui essa parte com uma
frase espetacular. “Conforme acima, o jornalista Leonardo Attuch chega a perguntar a Naji
R. Nahas se já pode divulgar Nahas como a
pessoa que está à frente do Fundo Soberano.
Mas Nahas pede calma, diz que por enquanto
não seria conveniente”.
Queiroz sente que os fatos em seu poder
são poucos para comprovar uma sociedade entre Dantas e Nahas. Mas, não se intimida. “Assim, o que temos de concreto é que Daniel V.
Dantas prestou depoimento na Itália e está utilizando esse fato para criar uma cortina de fumaça onde Nahas seria um corruptor de autoridades, mas na verdade ambos continuam articulando nos bastidores uma forma de desacreditar, principalmente, a Polícia Federal na condução das investigações”. Que fatos provam essa
articulação ele não diz. Mas vai em frente.
Luiz Eduardo Greenhalgh teve seus telefones grampeados a partir de 31 de março
deste ano. Essa decisão parece ter sido toma-
da depois da análise do diálogo gravado no
dia 26 de março deste ano, às 15h53m01s, a
partir de um telefonema de Humberto Braz,
executivo que foi diretor da BrT quando a
empresa era controlada por Dantas, para o
advogado petista, então, assessor do banqueiro. O resumo apresentado no relatório tem
oito linhas. Ele é incompreensível. Diz que
os dois “tratam sobre o negócio das teles, na
proposta da Telemig, estariam aceitando que
recebecem este ‘cheque’ de cada um (dos interessados) está contribuindo que vale
US$60,000,000.00 (sessenta milhões de dólares americanos); mas em compensação querem 1/3 da Telemig para levar à arbitragem”
(esse 1/3 equivale a 110 milhões), Humberto
diz que eles estão pra receber 260 e se for para
pagar 110 estarão pagando com “nosso dinheiro”, e que a diferença para eles é de 20
milhões, aproximadamente 0,3% do total”.
“Gomes [que seria o apelido de Greenhalgh
no grupo Dantas, continua o relato do grampo] diz que os compradores estão ‘orientados’ ‘para resolver’ o “nosso”problema. ‘Gomes’ diz que vai fechar hoje”.
Logo a seguir no relatório aparece a “Análise”. “Aparenta que o valor que estava sendo
discutido trata do “custo”para o trabalho de
“tráfico de influência”. “Então, a divergência
não estava no valor do negócio e sim em quanto cada parte interessada estaria disposta a pagar
para criação da ‘SuperTele’ exigindo os lobista
a quantia de US$ 260,000,000.00 (duzentos e
sessenta milhões de dólares americanos), valor que possivelmente irá constituir ‘caixa
dois’ de alguma campanha eleitoral”.
INTERPRETAÇÃO ABSURDA
Esse resumo, depois das prisões de 8 de
julho, vazou para a imprensa. Os jornais o
publicaram. Não o texto estropiado original; mas corrigindo os erros de português e
tentando dar sentido à algaravia. Diz, por
exemplo, o diário O Globo em 23 de julho
no artigo “Lobby de US$ 260 milhões”, com
manchete de página inteira: “Relatórios do
Serviço de Inteligência da Polícia Federal aos
quais O GLOBO teve acesso, apontam que o
grupo de lobistas suspeitos de ligação com
o banqueiro Daniel Dantas – integrado, segundo a PF, pelo ex-deputado petista Luiz
Eduardo Greenhalgh – exigiu em março
deste ano US$ 260 milhões para viabilizar a
criação da supertele (fusão entre a Brasil
Telecom e a Oi, que foi assinada em abril),
junto ao governo federal. O dinheiro seria
usado posteriormente para a formação de
retratodoBRASIL 13
Angeli
caixa dois para a campanha eleitoral, acusa a
PF”. Diz ainda o jornal: “Segundo a PF,
Opportunity e Citi deveriam arcar cada um
com US$ 130 milhões”. Na conversa grampeada entre Braz e Greenhalgh, continua o
diário, “a PF constata que a proposta pendente era do Citi, que envolvia um terço do
valor da Telemig”.
O bom senso, no mínimo, sugeriria aos
editores desses artigos que algo estava errado
na narrativa da PF: Braz e Greenhalgh estavam
trabalhando para Dantas, profissionalmente.
Queriam receber, por fora, de Dantas, mais
130 milhões de dólares? E do Citi, adversário
de Dantas, outros 130 milhões? E num negócio global de menos de US$ 1 bilhão?
Parece absurdo. Não se deveria, antes de
publicar a pataquada suspeita com tanto destaque, ouvir a versão de Greenhalgh, que disse em nota, que a conversa entre ele e Braz se
referia ao negócio por inteiro e não a qualquer
comissão? Que os 260 milhões “nosso”, a
que Braz e ele se referiam, tratava da parte à
qual estavam vinculados – ou seja, à parte do
Opportunity?
retratodoBRASIL 13
Outro exemplo da qualidade das análises
enviadas pela PF aos juízes para convencê-los
da necessidade de manter os grampos telefônicos vem de um telefonema de Humberto
Braz de 21 de maio, 14h17m03s. Braz fala
com um tal Gilberto. São 13 falas curtas. Usaremos B para Braz e G para Gilberto. “G:
(inaudível). B: Fala Giba... G: E aí, tudo bem?
B: Tudo bem, deu uma enrolada aí, a Andreia
te passou um negócio? G: passou... B: E aí é
seguinte... e eu não vou né... e ele vai viajar,
então vai ficar pra semana que vem mesmo, e
o que ficou acertado que se por acaso você
tiver com ele ou qualquer coisa que o valha, é
o seguinte: tá decidido aqui, fazer em duas
vezes a consultoria dele lá... “conta curral”...
G: Tá. B: 50% já e 50% na hora que for aprovado lá no meio ambiente. G: Tá. B: E ir
direto as... G: Oi...alô... alô... Fim da ligação”.
HIPÓTESE RIDÍCULA
Depois vem a “Analise”: “Humberto
José da Rocha Braz conversa com Gilberto
(possivelmente Gilberto Carvalho, assessor do gabinete da Presidência da Repúbli-
ca e pessoa diretamente vinculada a José
Dirceu de Oliveira Silva, ex-deputado federal) e diz que a Andrea (possivelmente
Andrea Michael, jornalista da Folha de São
Paulo) vai passar para ‘ele’ (José Dirceu)
aquela matéria que está muito bem feita.
Que será realizado o pagamento referente a
“Consultoria”de José Dirceu 50% agora e
50% quando for aprovado lá no “Meio
Ambiente” (aparentemente se refere ao Ministério do Meio Ambiente) e a “consultoria” seria paga em uma “conta curral”,
podendo significar pagamento no exterior com sonegação de impostos e evasão de divisas”.
O que esse grampo e sua análise provam?
A partir do fato – os diálogos – é feita uma
dezena de conjecturas: Gilberto é o assessor
do presidente; Andréa é a jornalista da Folha;
José Dirceu está na parada; “conta curral” é
pagamento no exterior. Por que as conjecturas
são feitas? Evidentemente, porque o analista
parte do pressuposto de que existe, na história que investiga, um vínculo Braz, Gilberto
Carvalho, José Dirceu. E sabe da matéria da
Folha feita por Andréa Michael, considerada
suspeita pela direção da Operação Satiagraha.
É crime levantar essa hipótese? Não é: é exatamente tarefa do analista levantar hipóteses.
É uma hipótese boa ou ruim? É um
bom ou um mau analista? Parece ser uma
hipótese simplesmente ridícula. Nas 400
páginas do trabalho da equipe de Queiroz
que Retrato do Brasil leu, ressalvados os trechos referentes aos laudos técnicos do INC
citados, o trabalho de análise, que orienta a
busca dos dados, parece merecer igual avaliação: é ridículo. A hipótese básica de que existem duas organizações criminosas, a de
Dantas e a de Najas, encimadas por uma
terceira, cuja cabeça aparentemente estaria no
Palácio do Planalto não se sustenta nos fatos. E como a hipótese mãe é ruim e o trabalho é mal feito, as coisas não andam. Ficam
uns arapongas escrevendo relatórios sofríveis, que provavelmente ninguém leva mesmo a sério e que acabam servindo basicamente para levar fofocas a jornalistas que,
mal editados, acabam tornando a parte política da imprensa conservadora brasileira ruim
como ela é.
E uma investigação relevante, como a
dos fundos off-shore inventados pelo Banco Central do Brasil para ajudar a escancarar
as fronteiras econômicas nacionais, para a
qual a PF poderia dedicar tempo e talento,
fica esquecida.
9
Reportagem:
Mapa do Mato Grosso em 1966 mostra
a floresta intacta e o roteiro da viagem
1966
Floresta
Floresta de transição
Cerrado
Pantanal
Rios principais
10
retratodoBRASIL 13
DE VOLTA AO RIO
DOS PEIXES
Nosso repórter, Carlos Azevedo, retorna à aldeia
dos kaiabi. Da primeira vez, passou 67 dias na
mata. E acompanhava uma operação dos irmãos
Villas Boas para levar índios da tribo para o Parque
Xingu. Agora, o Mato Grosso que ele conheceu,
42 anos atrás, não existe mais. E um amigo
índio, daqueles tempos, lhe diz que nem sempre
os Villas Boas fizeram a coisa certa...
Na foto da viagem de 1966, o repórter
está ao centro. O kaiabi Canísio, então
com 15 anos, é o último à direita
retratodoBRASIL 13
Edi Pereira
Em julho deste ano, voltei ao rio dos Peixes, norte do Mato Grosso. Em setembro de 1966,
eu havia acompanhado o sertanista Cláudio Villas Boas em uma missão de resgate de um
grupo de índios da etnia kaiabi, cuja aldeia, Tatu-ã, ficava à margem do rio dos Peixes, afluente
do rio Arinos. Eu estava fazendo a reportagem “Resgate de uma tribo”, para a revista
Realidade. Na ocasião, 31 índios foram levados para o então Parque Nacional do Xingu, hoje
Parque Indígena do Xingu (PIX).
O Mato Grosso de 1966 era maior que o estado que atualmente leva esse nome. Em
1977, o antigo Mato Grosso, com mais de 1,2 milhão de km², foi dividido em dois. A parte
maior, ao norte, conservou o nome original. A menor passou a se chamar Mato Grosso do
Sul. Sempre que me referir a Mato Grosso, mesmo no passado, o leitor deve ter em mente o
território atual desse estado. Até porque a história que passo a relatar ocorreu nessa área.
Em 1966, o estado contava com 300 mil pessoas em cerca de 30 municípios. Sua economia se baseava na pecuária extensiva e no extrativismo, e a agricultura moderna ainda dava os
primeiros passos na região de Rondonópolis. A cobertura vegetal do estado estava praticamente intacta (mapa ao lado).
A expedição partiu em agosto, do Posto Diauarum, que fica no rio Xingu, na parte Norte
do PIX. Num avião C-47 da Força Aérea Brasileira (FAB), voamos para oeste por quase duas
horas, cerca de 350 km, o tempo todo sobre o tapete contínuo da Floresta Amazônica, até
chegarmos a um campo de pouso improvisado numa várzea no meio do nada. Esse foi
apenas o começo de uma viagem prevista para 10 dias, que se tornou uma peregrinação de
mais de dois meses.
11
Desmatamento acumulado: foto do
satélite em junho de 2008 indica que no
Mato Grosso ainda existem grandes
florestas, mas só nas terras indígenas e
reservas do governo
2008
Rios principais
Estradas principais
Desmatamento até 2008
Unidades de conservação
Terras indígenas
Pantanal
12
retratodoBRASIL 13
Laércio Miranda
Canísio e o repórter voltam juntos à cachoeira do rio dos Peixes, 42 anos depois
OS MAPAS SÃO CORTESIA DO INSTITUTO CENTRO
Hoje, nessa mesma linha reta do nosso trajeto aéreo, não se avista mais floresta, somente
pastagens ou terra nua para agricultura, cercando cidades, como Marcelândia, Sinop, Cláudia,
Nova Santa Helena, Tabaporã. Atualmente, o Mato Grosso tem 2,8 milhões de habitantes
em 141 municípios, é o maior produtor de soja e possui o maior rebanho bovino do País.
Em julho passado, acompanhado de um fotógrafo que conheci em Cuiabá, viajei em um
carro alugado desde a capital até o município de Juara, 640 km para o norte, o lugar mais
próximo da aldeia kaiabi que quero revisitar. Em toda a viagem, a paisagem dominante foi a
de campos de lavoura e de imensas pastagens. Pelo caminho empoeirado, encontramos
centenas de grandes caminhões e carretas, transportando dia e noite gado, madeira, soja,
algodão, milho, álcool. Da margem das estradas se assiste a pelotões de colheitadeiras em
marcha sincronizada, fazendo a colheita de milho, algodão e sorgo, que são as produções do
meio do ano. Nas mesmas terras, a soja foi colhida entre março e abril. Nesses imensos
campos planos de lavoura não se vê uma só árvore por quilômetros. Já nas pastagens,
rebanhos de gado nelore pastam o capim-braquiária plantado entre tocos enegrecidos e
árvores mortas pelas queimadas.
Antes da colonização, essa área do Centro-Oeste, onde se localiza o atual Mato Grosso,
tinha uma cobertura vegetal formada em 58% por florestas (5,3 milhões de hectares), que
iam da parte central do estado para norte e noroeste, e em 42% pelo cerrado (3,8 milhões de
hectares), aí incluída a área do Pantanal, que se estende do centro do território para o sul e
sudoeste.
A superfície do estado é de 905 mil km² ou 9 milhões de hectares, o equivalente a quase
quatro vezes o tamanho do estado de São Paulo. Essas terras vêm sendo rapidamente
desmatadas (mapa ao lado). De acordo com números oficiais do Instituto de Pesquisas
Espaciais (Inpe) e da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (SemaMT), até 2006,
foram desmatados aproximadamente 321 mil km², ou seja, 3,2 milhões de hectares. Portanto, 36% do território do estado. Da área de florestas, foram abaixo 33% (1,72 milhão de
hectares). Do cerrado, 40% (1,49 milhão de hectares). O auge do desmatamento no estado se
deu entre 2000 e 2007. A maior derrubada foi em 2004, de 118 mil hectares, segundo o
projeto Prodes, do Ministério de Ciência e Tecnologia, que realiza o monitoramento da
Floresta Amazônica por satélite.
Os dados oficiais sobre a ocupação do solo se referem a 900 mil hectares com agricultura
(10% do território mato-grossense) e 2,3 milhões de hectares com pastagem (aproximadamente 24%). As terras indígenas ocupam cerca de 1,3 milhão de hectares (14%). As reservas
florestais federais, estaduais e municipais somam algo em torno de 310 mil hectares (4%),
e os assentamentos de reforma agrária, 420 mil hectares (5%). Outros 3,2 milhões de
hectares (35%) são apontados pelo governo do estado como terras não-desmatadas em
propriedades privadas.
Segundo esses números, portanto, 36% do território foram desmatados, restando 64%
supostamente intactos. São números polêmicos, pelo menos no que se refere às florestas. A
imagem do desmatamento acumulado até 2008, registrada pela fotografia do satélite, indica
que, fora as florestas das terras indígenas e das reservas ou unidades de conservação, restam
poucos trechos significativos de floresta em Mato Grosso.
DE VIDA, ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE
INTERESSE PÚBLICO (OSCIP), QUE DESENVOLVE
ESTUDOS SOBRE CONSERVAÇÃO
E MANEJO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA
retratodoBRASIL 13
QUASE 70 DIAS DE PEREGRINAÇÃO NA FLORESTA
Quarenta e dois anos atrás, éramos uma comitiva grande, 21 pessoas, somando Cláudio
Villas Boas, sete índios kaiabis, 11 oficiais e sargentos do Para-sar, o fotógrafo Luigi Mamprin
e eu. Entre os índios, o lendário cacique Pepori, que, depois de lutas sangrentas com serin13
gueiros, refugiara-se no Parque do Xingu,
ao lado dos Villas Boas, e era, segundo Cláudio, o inspirador da idéia de levar todos os
kaiabis para junto de si.
Viajamos a pé, em fila indiana, por dentro da mata fechada por quatro dias, tropeçando em tocos e raízes, acossados por mosquitos, abelhas e formigas. Acompanhamos
o curso do córrego Coatá até encontrar o rio
dos Peixes. À sua margem, acampamos por
dois dias, tempo para os índios construírem
sete jangadas com as quais descemos o rio
até chegar à aldeia do cacique Temioni, na
região hoje conhecida como Batelão, uns 80
km distantes do ponto de partida.
Mas havia outra aldeia mais ao norte que
era preciso contatar. Cláudio me pediu que
fosse até lá com dois índios e um sargento.
Descemos o rio de canoa por três dias. Navegamos uns 60 km até encontrarmos as
cachoeiras do salto Kaiabi. A pé, contornamos o salto. No dia seguinte, seguimos caminhando pela mata, pois não havíamos
encontrado canoa. Por sorte, topamos com
três jovens kaiabis que remavam um bote.
Eles nos levaram até a aldeia, 40 km rio abaixo, onde lhes transmitimos o convite de
Villas Boas e Pepori para que se mudassem
para o Xingu.
Dois dias depois, pegamos carona com
seringueiros que, em barco a motor, iam até a
cachoeira. Depois, contornamos a cachoeira e
subimos o rio de canoa a remo por quatro
dias até o reencontro com a comitiva na aldeia
de Temioni. Dali, partimos em canoas até o
local em que foram feitas as jangadas. Na viagem de volta, a comitiva era maior, levava o
cacique Temioni e as famílias de sua aldeia,
homens, mulheres e crianças, carregados com
panelas, cabaças e objetos do velho índio. Cada
movimentação exigia uma demorada operação de logística. Com a malária e a fome atacando, a caminhada até o campo de pouso foi
mais penosa e demorou sete dias.
Felizmente, no acampamento-base havia comida. Porque ainda tivemos de esperar
cerca de duas semanas para que o avião viesse para nos levar de volta ao Parque do Xingu.
Programada para ser realizada em 10 dias, a
viagem havia se transformado numa árdua
peregrinação de quase dez semanas. A comida acabou logo, e nossa comitiva viajou a
maior parte do tempo assediada por fome e
sede, por malária e desconforto, principalmente para os não-índios. Durante todo o
tempo, caminhávamos alguns quilômetros
por dia, caçando o que houvesse, e dormíamos em redes sob imensas árvores. A imagem que ficou daquela viagem foi a da floresta e de sua onipresença esmagadora. Emagreci oito quilos.
JUARA, CAPITAL DO GADO
Agora, o fotógrafo e eu seguimos viagem de carro, com ar-condicionado, 500 km
por asfalto, 150 km em estrada de terra. À
margem da estrada, encontramos a cada passo restaurantes, ainda que de comida sofrível, mas não há possibilidade de passar fome
ou sede. O destino imediato é a cidade de
Juara, encravada no antigo território dos
kaiabis, numa espécie de ilha entre o rio dos
Peixes e o rio Arinos. Chego às 9 da noite e
avisto uma cidade toda iluminada, com ares
modernos. É sexta-feira, o restaurante-boa-
Laércio Miranda
Na época da estiagem e da pastagem seca, o gado é retirado. As árvores, mortas pela queimada, ainda testemunham que ali existiu uma floresta
14
retratodoBRASIL 13
Fotos: Laércio Miranda
No lugar da floresta e do cerrado, agora reinam a agricultura, a extração de madeira, a
criação de gado. É tudo mercadoria circulando sobre as rodas do caminhão
te Di Lorenzo está lotado, com show de dupla sertaneja.
Nas mesas, fazendeiros de meia-idade
tomam uísque juntos, suas filhas e filhos
circulam animados pela pista de dança, vestiretratodoBRASIL 13
dos na última moda. São estudantes recémchegados para as férias de julho. Todos brancos, o biótipo dominante é o de “gaúchos”,
isto é, descendentes de italianos, poloneses
e alemães que vieram do Sul a partir dos anos
1970. Cabelos louros ou castanhos, pele rosada e olhos azuis revelam a origem. São os
donos das fazendas e do comércio em Juara,
nome que parece indígena, mas é a combinação de Juruena com Arinos. Juara se anuncia
como a “capital do gado”, com um rebanho
de 1 milhão de cabeças, praticamente empatada com o município de Cáceres. No hotel,
confortável, tenho acesso a uma sala para
internet, telefone direto com o mundo, banho quente e uma TV por antena parabólica
que funciona mal.
Na manhã seguinte, apresento-me na
Casa do Índio, um escritório na cidade que
serve de representação das etnias Kaiabi e
Apiaká, que ocupam a mesma terra indígena. Encontro com kaiabis e, acompanhado
por um deles, Sebastião, 38 anos, alto, forte, sempre de óculos escuros, viajamos, eu
e o fotógrafo, direto para a aldeia, 50 km
para o norte, por uma estrada terrível. Vamos a 20, 30 km por hora, o carro tropeçando em buracos.
Conto a Sebastião que estive ali 42 anos
atrás, que participei da comitiva de Villas
Boas, que levou parte da tribo para o Xingu.
Mostro-lhe meu livro, em que relato essa viagem e reproduzo a reportagem. Educadamente, Sebastião repete várias vezes que está
“admirado” com minha história e faz várias
perguntas. Pelo seu espanto, começo a me
dar conta de quanto foi traumático para os
kaiabis aquele acontecimento, o deslocamento de uma parte de seu povo, e o sentimento
de abandono vivido pelos remanescentes.
Sebastião não era nascido quando essa
diáspora aconteceu. Mas já ouviu muito falar
dela. Estudou até o segundo grau e hoje é
responsável pela manutenção da escola municipal instalada na aldeia, que vai ser substituída por uma escola estadual, de tijolos, atualmente em obras e que também oferecerá
ensino médio. Atualmente, os alunos do segundo grau vão de ônibus a uma escola no
povoado vizinho de Águas Claras. A estrada
passa por ali. Na última esquina do povoado,
há um bar, onde dá para ver alguns índios
que gostam de cachaça a tomar um último
gole antes de voltar para a reserva.
Dos dois lados da estradinha, somente
fazendas, pastagens, bois, nenhuma nesga
da floresta que conheci. Então, vejo que as
pastagens confinam com a mata. Sebastião
diz que é a divisa com a terra indígena. Há
uma placa do governo informando que é
“terra protegida” e é proibido entrar sem
autorização.
15
A partir daí, viajamos por dentro da floresta, onde avisto trechos que foram derrubados pelos índios. “Para fazer roça”, explica Sebastião. Mas não há roças à vista. Duas
horas depois da partida, chegamos à aldeia
Tatu-ã. À entrada, um índio forte se aproxima do carro, ordenando: “devagar!”. Paramos, mas Sebastião manda que sigamos até
a última casa. O homem fica para trás, pouco
satisfeito. Percebo que há um conflito no ar.
Aquele homem, José Ricardo, é um ex-cacique, que foi demitido pelo conselho da aldeia em votação direta dos adultos, homens
e mulheres.
A VICE-CACIQUE NOS RECEBE
Sebastião está me conduzindo até a casa
da vice-cacique Sueli, já que o novo cacique
não está na aldeia. Ele havia me contado que
as mulheres estão assumindo cada vez mais
as responsabilidades na comunidade. Elas
fizeram um movimento de protesto para
suspender a venda de madeira da reserva indígena a não-índios, que era feita por alguns
chefes, que se apossavam dos resultados da
venda. As mulheres conseguiram suspender esse comércio. E uma delas, Sueli, se tornou a vice-cacique.
Cercada por um grupo de crianças curiosas, ela recebe a mim e ao fotógrafo, com o
vestido meio aberto no peito, porque fora
interrompida quando amamentava seu bebê.
Ouve minha história com reserva. Mostro
as fotos do livro. Sebastião ajuda a explicar.
Responde em tom neutro que podemos ficar ali e esperar a volta do cacique. Algumas
pessoas vão chegando e observam o livro
com curiosidade.
A notícia se espalha. José Ricardo vem
conversar e conta que estão vivos vários índios que estavam aqui quando eu vim pela
primeira vez. Manda alguém chamar
Canísio – esse nome me é familiar. Pouco
depois, ele chega, forte e bem disposto, de
óculos para vista cansada. Não me reconhece, nem eu a ele. Mostro o livro, vemos as
fotos. Ele me reconhece pela foto, em que
estamos juntos numa canoa. Ele era o mais
novo do grupo, tinha então 15 anos. “Eu
fui para o Xingu com o Cláudio Villas Boas
e com você!”
Então, ele me surpreende. “Villas Boas
fez coisas boas para o índio, mas também fez
coisas erradas. Levou meu povo daqui da
nossa terra, meu povo perdeu a maior parte
da reserva, a da aldeia Batelão, do cacique
Temioni, que foi para o Xingu também.
16
Sábado na aldeia, os kaiabis descansam com a família e brincam com os amigos
Aquela terra foi em seguida invadida por fazendeiros, desmataram muita coisa para tirar
madeira e criar gado. Até agora, não conseguimos voltar a ocupar nossa terra”.
Eu já havia ouvido críticas ao deslocamento dos kaiabis para o PIX, mas nunca
achei que tenha sido um erro. Pensava que
os Villas Boas haviam livrado a tribo da
exploração e violência movidas por seringueiros e caçadores de peles. Canísio agora
minimiza essas ameaças. Diz que teria sido
melhor ter ficado. “Ali é a minha terra, ali
está o cemitério onde estão os ossos de minha mãe e de outros parentes. O Xingu
não é nossa terra, é a terra de outros povos
– camaiurás, cuicuros, waurás, iaulapitis,
trumai – não é a terra da gente.”
Seguimos conversando por bom tempo. Ele diz que se sentiu enganado. Pensava
que a viagem seria apenas uma visita aos
kaiabis que já viviam no Xingu. E se viu
obrigado a ficar lá. Pergunto se no parque era
ruim. Diz que não, era bom, lá moravam
muitos kaiabis (hoje devem ser quase 900),
havia assistência médica, brancos não entravam, “mas não era nossa terra”.
Canísio acha que os Villas Boas se deixaram envolver por uma manobra do governo (eram os militares) que queria liberar áreas indígenas para os fazendeiros, concentrando a maior número de tribos no PIX. Revendo tudo, hoje acho que ele pode ter razão. Um mês antes, a mesma FAB que transportou os kaiabis havia retirado os xavantes
retratodoBRASIL 13
Fotos: Laércio Miranda
Maci mostra sua casa e o estoque de flechas. A vice-cacique Sueli faz vinho de açaí
de suas terras para que o grande latifúndio
das fazendas Suiá-Missú pudesse se instalar
no leste mato-grossense.
Ele me diz que chegou a manifestar seu
descontentamento ao próprio Cláudio. E
continuou sempre querendo voltar. Ficou
no PIX por 30 anos. Em uma ocasião, veio
visitar os parentes no rio dos Peixes. Voltou
ao Xingu, preparou sua mudança e, junto
com outros kaiabis desterrados como ele,
retornou ao rio dos Peixes. Está aqui há 12
anos e exerce forte influência para a recuperação dos costumes e tradições do seu povo.
Junto com a tribo, não cessou de reivindicar
a retomada da terra ao sul, da aldeia Batelão,
no que ele chama de “guerra de papel”. A
Funai reconheceu os direitos dos kaiabis
retratodoBRASIL 13
àquela terra, e, em dezembro de 2007, o ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou portaria declaratória reconhecendo a Terra Indígena Batelão com 117 mil hectares em favor
dos kaiabis. Aguarda-se decisão da Justiça,
mas dezenas de fazendeiros instalados na
área já prometem resistir nos tribunais e “até
pela força”.
KAIABIS, APESAR DE TUDO
Canísio mostra mapas e documentos de
sua “guerra de papel” e diz que não vai descansar enquanto não voltar à terra de seus
ancestrais Ele me apresenta o novo cacique,
Kawaip, um jovem de 22 anos e que também é um de seus 12 filhos (Canísio tem 45
netos). Combinamos refazer parte da via-
gem que fiz em 1966, indo de barco a motor
até o Salto dos Kaiabis, 40 km rio acima. Por
enquanto, Kawaip vai me levar a conhecer a
aldeia, e rever, ali ao lado, o rio dos Peixes,
pelo qual naveguei na mocidade. Kawaip
nasceu no Xingu e ali foi criado. Diz que lá as
tradições e ritos da etnia kaiabi são mantidos
mais rigorosamente que aqui. Percebo que
junto com seu pai e um grupo que na maioria voltou do Xingu, forma um partido dentro da aldeia interessado na retomada dos
costumes de seu povo.
Continuamos a caminhar pela aldeia,
que não tem mais a forma tradicional. São
casas de tábuas de madeira, telhados de
amianto ou de tabuinhas de madeira, com
água encanada puxada por uma bomba do
rio até uma caixa-d’água. Cada casa tem ao
lado seu banheiro e sanitário, de tijolos,
construídos com recursos da Funasa. As
casas estão espalhadas por uma área de uns
300 metros, sem simetria, em meio a grandes mangueiras e outras fruteiras. Só a casa
de Canísio tem cobertura de sapé, mantendo a tradição. Ele diz que é mais fresco. Em
várias casas há rádio e TV com antena parabólica, poucas funcionando. A luz elétrica,
produzida por gerador de motor a diesel,
só funciona das sete às nove da noite. Ali
vivem cerca de 350 pessoas.
Os kaiabis do rio dos Peixes continuam
kaiabis, mas já absorveram muito da cultura
dos brancos. Vivem por inteiro uma experiência sincretista. A maioria adotou a religião
católica, e, naquele entardecer, tive a oportunidade de ver que se realizava uma missa em
um galpão da aldeia com a presença de vários
padres, inclusive um dignitário de uma missão religiosa. Mas, entre esses índios, também há evangélicos. Misturam essas crenças
com seus ritos religiosos tradicionais. Uma
espécie de painel na parede da casa da vicecacique Sueli é uma eloqüente manifestação
dessa complexa combinação: cocar de penas,
enfeites de braço e colar de dentes de animais
dividem espaço com uma efígie de Jesus Cristo, retratos de formatura, de crianças e bebês
da família, e um calendário de 2008.
Várias mulheres kaiabis vêm se casando
com rapazes brancos da cidade. Conheci um
casal assim, ele, louro, ela kaiabi, e o filho,
moreninho de cabelos negros e olhos claros.
Também conversei com duas adolescentes,
Andréia, de 16 anos, e Paloma, de 14, filhas
de casais mistos, estudantes que moram na
cidade e vieram passar o fim de semana com
os parentes na aldeia. Dei carona a elas na
17
PARAÍSO PERDIDO
Em busca do espírito das águas, velho
conhecido do repórter se prepara
para encontrar seus antepassados na floresta
18
Laércio Miranda
Um fazendeiro perguntou a Canísio: “por que os índios querem tanta
terra?”. E ele respondeu: “e por que você, um homem sozinho, quer
tanta terra?”.
Os indígenas têm direito à sua terra, isso é reconhecido universalmente
e está inscrito no artigo 231 da nossa Constituição. E por que têm esse
direito? Porque são seus detentores originários, estavam na terra antes
que o colonizador chegasse. São povos antigos, milenares, que aprenderam a viver na natureza sem destruí-la, nutrindo-se dela, em profunda
interação com a terra. Assim viveram, sem registros históricos, a identidade conservada pela tradição oral, fazendo parte da natureza, em “estado de eternidade”.
Não procuraram os “civilizados”, foram obrigados a conviver com eles.
Perderam a maior parte de seu território. Mas também perderam a inocência. Sua experiência com a frente pioneira já foi suficiente para se darem
conta de que sem a terra não sobrevivem como povos. E os fatos mostram
que sem eles a terra, enquanto floresta, também não sobrevive. No Mato
Grosso de hoje, a quase totalidade das florestas remanescentes está nas
terras indígenas. Os índios são seus protetores e, diante da necessidade
inarredável de sobreviverem em contato e intercâmbio com a economia de
mercado, já começam a desenvolver métodos de aproveitamento da floresta
sem destruí-la. Numerosas tribos da Amazônia estão se empenhando nisso.
No noroeste do Mato Grosso mesmo, tribos como os zorós e os rikbatskas
estão transformando a coleta da castanha-do-pará e a extração do látex de
seringueira em atividades produtivas. Essas tribos contam com apoio do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD. Em 2007, os
kaiabis do rio dos Peixes, mesmo sem apoio externo, colheram e venderam
80 toneladas de castanha. Adaptam-se, mas protegendo a terra, para não
perderem a identidade cultural, sua condição de povo diferente, mas brasileiro. “Mais brasileiro que vocês!”, diz Canísio.
Em 1966, o adolescente Canísio foi para o Xingu. Voltou 30 anos depois,
decidido a lutar pela recuperação das terras de seu povo. Para visitar a
cachoeira com o repórter, enfeitou-se com o cocar de penas de arara e o
cinturão tecido em algodão nativo. Nele se engancham fios coloridos
com castanhas-do-pará em casca presas na ponta. É um cinto especial
para rituais e dança. Quando Canísio anda, as castanhas fazem um som
de pedrinhas rolando.
Ao se vestir com os aparatos tradicionais de seu povo, para nos conduzir ao
sítio sagrado da cachoeira, o líder kaiabi Canísio agiu com a mentalidade de
um índio. Aquelas penas, aqueles colares, o cinturão, o arco e as flechas são
expressões da cultura kaiabi, nas quais ele acredita e às quais dá real valor.
Indo vestido assim à cachoeira, para ao lado dela ser fotografado, Canísio
deu significado à visita. Manifestou respeito ao local sagrado e reafirmou a
posse dela como terra kaiabi para o mundo, ou, ao menos, para os leitores
de Retrato do Brasil.
retratodoBRASIL 13
Carlos Azevedo
Laércio Miranda
estrada e o assunto cochichado entre as duas
versava sobre namorados, meninos e meninas, traições amorosas, músicas pop. Eram
os mesmos temas que ocupam minha neta
de 15 anos, que mora em Campinas (SP).
Kawaip havia me falado do seu empenho para que o povo retome suas roças. “Não
devemos comprar tudo, precisamos produzir também”, justificou. Mas as pessoas não
estão passando necessidade, parecem saudáveis e alguns até gordos. As crianças são fortes
e bonitas, com belos dentes. As famílias recebem a Bolsa Família e cestas básicas. Os mais
velhos recebem aposentadoria. E boa parte
dos adultos têm emprego na Funai, na
Funasa ou na prefeitura de Juara.
Dentro da aldeia, além da escola, que tem
professores índios e não-índios, há também
um posto de saúde da Funasa, com vários
auxiliares de enfermagem, alguns deles indígenas. É o caso da vice-cacique Sueli, que fez o
curso de auxiliar de enfermagem numa escola
da Funasa e hoje atende no posto, a 30 metros
de sua casa. Os kaiabis também obtêm uma
boa renda com a coleta de castanha-do-pará.
E completam sua dieta com peixes e caça, essa,
pelo menos, ainda abundante.
Canísio veio ao nosso encontro ataviado para um ritual, cocar de penas de arara na
cabeça, colares, cinturão. E armado com arco
e flechas. Vamos para a cachoeira, o famoso
Salto Kaiabi, distante cerca de 40 km ao sul,
pelo rio. Seguem conosco o fotógrafo e os
índios Tamaná, hábil piloto de bote a motor, Novecatu, um jovem que está sempre
ao nosso lado, o qual eu acredito que seja
um representante do cacique para nos dar
assistência, e Maci, esse, meu velho conhecido da viagem para o Xingu. Ele voltou de lá
com Canísio. Agora com cerca de 60 anos, se
apresenta de óculos para vista cansada, de
boné, camiseta branca muito limpa e uma
espingarda cartucheira calibre 32. Sempre
amável e discreto.
COMIDA, A PRIORIDADE
Em que pese a existência de fazendas de
gado nas suas nascentes, as águas do rio dos
Peixes continuam transparentes, parecem
limpas. E a mata ao seu redor – 30 km de
um lado e 20 km do outro, segundo Canísio
– está essencialmente preservada. Canísio me
mostra o exato local onde eu e alguns companheiros de viagem nos encontramos com
ele e outros índios, em 1966. Era um trecho
de margem desmatada de um posto dos
seringueiros. Não restam sinais. A floresta
retratodoBRASIL 13
19
20
retratodoBRASIL 13
retratodoBRASIL 13
21
A CACHOEIRA, 42 ANOS DEPOIS
Retomamos mais uma vez a viagem, o
bote vai a 30 km/h, cortando o ar frio da
manhã. Canísio está conversando comigo
quando levanta o rosto e cheira o ar. Manda
o bote parar e aponta para a margem direita. Cochicha: “porco”. O barco recua um
pouco rio abaixo e embica na margem para
Maci descer mais uma vez. Canísio pega seu
arco e flechas e Novecatu empunha um facão. Lá vão os três mata adentro, rápidos e
silenciosos. Esperamos um pouco mais e
ouvimos o tiro. Silêncio. Quinze minutos
depois, Maci e Canísio trazem ao barco,
pendurado pelos pés, amarrados com
embira e presos a uma vara grossa, um
porco-do-mato, um queixada de uns 40 kg
e grandes presas, já sem barrigada. No bote,
vai ocupar um lugar perto de mim. Agora,
sim, sinto seu cheiro forte.
Afinal, o salto Kaiabi. De longe, já avistamos a última de uma seqüência de sete
quedas-d’água que formam o salto. Desembarcamos um pouco abaixo e seguimos a pé
pela mata rala da margem. Pelo caminho,
galhos de taquari me arranham o braço, fazendo um buraco na camisa. Reencontro por
momentos o ambiente em que viajei 42 anos
atrás. O sol está quente e começo a transpirar, enquanto pulo troncos e desvio de
galhadas. Canísio mostra um terreno areno22
Carlos Azevedo
se recuperou e cobriu tudo. Canísio garante
que por lá ainda há pés do antigo mandiocal.
A viagem é interrompida várias vezes para
caçar. Como conseguir comida é prioridade
número um, os índios interrompem qualquer atividade quando surpreendem alguma
caça. Avistam marrecos empoleirados numa
árvore duzentos metros adiante. Tamaná reduz o motor e desvia o bote para a margem.
Maci desce com sua espingarda. Vai caminhando por dentro da mata para surpreender a
caça. Ficamos em silêncio e cinco minutos depois ouvimos o disparo. O bando de marrecos voa para longe, mas um caiu na água. Tenta bater as asas, mas está morrendo. O bote se
aproxima, é recolhido já sem vida.
Isso se sucede outras vezes, sempre Maci
vai lá e mata um marreco. Da traseira do barco ouço críticas cochichadas: “ele só mata um
de cada vez. Se fosse eu, matava vários”.
Quando Maci entra no barco de novo, como
se estivesse respondendo aos críticos, explica que está usando cartuchos de chumbo
grosso, que não se espalham muito, por isso
não consegue matar vários.
Na viagem até à cachoeira, os kaiabis caçaram um queixada, porco-do-mato
so entre arbustos e diz que nesse ponto se
localizava o rancho de seringueiro em que eu
dormi uma noite e tentei sem muito êxito
comer a carne muito dura de um macaco.
Divirjo dele, acho que era mais para cima,
mais próximo da cachoeira. “Não, era aqui
mesmo”, ele responde taxativamente. E não
há como discordar. Vamos em frente. Chegamos ao salto. A água despenca de uns 20
metros de altura, fazendo espuma e um barulho imenso. Pelas pedras, seguimos até o
salto principal, mais acima. Ele se abre numa
boca larga, de mais de 200 metros. Majestoso. Lembro-me dele, esteve todos esses anos
guardado em minha memória.
O Salto Kaiabi foi incluído no plano do
governo federal de aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios do Mato Grosso. Foi prevista a construção de uma PCH
(Pequena Central Hidrelétrica) ali. Mas, por
estar em terra indígena e por haver resistência dos índios, o projeto está suspenso.
Canísio me diz que seu povo não aceita a
hidrelétrica no salto. Essa seqüência de cachoeiras é um santuário da cultura dos
kaiabis. Canísio conta que todos os anos a
maioria das famílias se deslocava de suas aldeias e vinha acampar ao lado do salto. Passavam ali de três a quatro meses, de junho a
setembro, celebrando orações rituais comandadas pelo pajé, destinadas a trazer bons
tempos para todos.
Era também a ocasião do ano em que se
realizavam as danças dos homens com as
mulheres, época de namoro. Dedicavam-se
à colheita de varas de taquara para fazer flechas e a pescar grandes peixes que se escondiam nas locas das pedras. Colhiam castanha e
faziam muita farofa de peixe seco para levar
em seu retorno às aldeias.
Ele mostra o local em que acampavam,
um terreno plano que se mantém ainda quase sem árvores, de solo arenoso, e com a
forma de um círculo com um raio de uns
cem metros, ao lado da cachoeira. Aponta os
poços de água profunda entre as pedras.
“Eram cheios de peixes, bastava atirar a flecha e pegar. Hoje você não consegue pescar
mais nenhum”, diz. Em seguida, reclama
que os peixes estão acabando por conta da
devastação das matas nas nascentes, pelas
fazendas de gado, e também pela ação de
pescadores profissionais que pescam de rede
na confluência com o rio Arinos. Diz que
eles capturam a maioria dos peixes antes de
subirem o rio dos Peixes para a piracema, a
época da desova, que é feita nas cabeceiras,
acima das cachoeiras. E ressalva: “mas caça
ainda tem muita, você viu”.
Antes de retornar, eu quis tomar um banho ali onde me banhei na outra viagem.
Nado completamente nu, como da outra vez.
A água está fria e alivia o calor. Voltando ao
bote, Maci mostra que matou mais marrecos.
retratodoBRASIL 13
os lados e vejo no meio do aglomerado homens, mulheres, crianças kaiabis, todos limpos e bem vestidos. As mulheres, com seus
belos cabelos pretos presos em rabo de cavalo, blusas sem mangas em geral pretas, calças
jeans, sandálias de saltinho, esbeltas, elegantes. Não se estranha que vários não-indígenas estejam se casando com moças da tribo.
Na fila dos saques, encontro a vice-cacique
Sueli, com sua filhinha no colo – nome provisório, Ellen – esperando sua vez. Logo vai
à máquina, insere o cartão e saca o salário.
Vou embora me perguntando: afinal, o
que significa isso? Integração? Aculturação?
Sem resposta, refugio-me numa lembrança
do velho cacique Pepori. Ele me dizia que os
kaiabis sempre se esforçaram para “pacificar”
os brancos. Estarão conseguindo?
A vice-cacique Sueli, enfermeira da FUNASA, usa seu cartão para sacar o salário
Laércio Miranda
Agora são onze. Na volta, venho pensando
que, pelo menos, os mais velhos continuam
sendo kaiabis de verdade, uma gente do tronco lingüístico tupi, que está entre os povos
indígenas mais competentes e empreendedores, como não se cansavam de reconhecer os
irmãos Villas Boas, Orlando e Cláudio.
Ao anoitecer, Novecatu nos ajudou a armar nossas redes numa pequena casa vazia
em um canto da aldeia. Quando o gerador foi
desligado, saí ao terreiro e fiquei examinando
o céu. A lua, um fio de unha, logo se pôs e a
noite foi envolvida pela luminosidade leitosa
das estrelas. Surpreendo-me, não me lembro
de haver visto um céu estrelado assim, as constelações parecendo maiores e muito próximas.
Brinco que estão quase a tocar a copa das árvores e a cumeeira das casas dos kaiabis. O
silêncio cheio de grilos só é interrompido de
tempo em tempo por gritos eufóricos de um
jovem índio que bebeu demais.
O povo dessa aldeia já está integrado no
universo econômico e cultural dos brancos.
As crianças quase já não falam o idioma kaiabi.
Na escola que freqüentam somente se ensina português. Economicamente, dependem
mais do governo do que de sua própria produção. Entretanto, arrisco uma avaliação, a
de que continuam a ser visceralmente kaiabis.
Quatro décadas depois de que os conheci,
aqui estão eles, e isso me dá uma percepção
de sua perenidade. Agarrados à terra, elemento crucial para afirmação de sua identidade,
continuam a existir e ter consciência e orgulho de serem um povo diferente. Essa floresta, esse rio que corre sereno ali ao lado e
essas estrelas tão domésticas são sua âncora
formidável. Ao contrário dos temores da
minha mocidade de que os índios, como
povos, desaparecessem, agora me tranqüilizo. Eles são muito mais fortes do que eu
imaginava. E estarão por aqui ainda por
muito tempo, pelo menos enquanto conservarem sua terra, essa ilha verde cercada de
pastagens e lavouras por todos os lados.
A VICE-CACIQUE NO CAIXA
Volto para Juara e, na manhã seguinte,
uma segunda-feira, vou à agência local do
Banco do Brasil sacar algum dinheiro. Está
lotada, é o quinto dia útil do mês, dia de
aposentados e beneficiários do Bolsa Família receberem. Uma voz amistosa me chama.
Dou de cara com o jovem cacique Kawaip,
bem vestido, camisa passada, calças jeans e
tênis. Conta que boa parte de seu povo está
vindo para receber seus benefícios. Olho para
retratodoBRASIL 13
23
Trabalho:
O MAL
ESTÁ
NO
AMBIENTE
Tempos Modernos, Charles Chaplin/ Reprodução
Mudança de método
aumenta o número de
registros de acidentes e
ajuda a identificar os
locais de trabalho
doentios | Tania Caliari
24
Uma pequena revolução está ocorrendo na
forma de recolher, organizar e interpretar
os dados sobre acidentes de trabalho e doenças ocupacionais no Brasil. Isso poderá,
em breve, expor um quadro mais realista
sobre as condições de segurança nos ambientes de trabalho no País. A nova
metodologia adotada pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) para reconhecer casos de acidentes e doenças do
trabalho tem causado alguma confusão.
“Casos de LER aumentam 512%”, “Registro de doenças ocupacionais cresce
134%” e “Dobra registro de acidentes e
doenças” são exemplos de manchetes de
jornal que podem ter levado muitos a acreditar que as condições de trabalho pioraram demais nos últimos anos.
De fato, as condições de saúde do trabalhador podem ser bastante ruins e ter piorado em alguns setores. Tanto que o Ministério do Trabalho elegeu recentemente quatro
setores críticos na ocorrência de doenças
osteomusculares – como as Lesões por Esforço Repetitivo (LER) –, nos quais vai reforçar a fiscalização: frigoríficos, supermercados, indústria de calçados e telemarketing.
Para vários especialistas, no entanto, os novos números não indicam uma piora generalizada, e, sim, flagram e confirmam a prática de subnotificação dos acidentes pelas empresas, primeiras responsáveis por relatar um
acidente de trabalho ou doença ocupacional.
As grandes variações registradas pelos
jornais foram verificadas a partir de abril
de 2007, quando entrou em vigor o Nexo
Técnico Epidemiológico Previdenciário
(NTEP), norma que permite relacionar
automaticamente determinadas doenças às
categorias profissionais. Se um motorista
de ônibus urbano passar a sofrer de hipertensão arterial, por exemplo, não precisa
provar que adquiriu a doença devido às suas
atividades de trabalho: a hipertensão está
na lista de males que têm nexo com sua caretratodoBRASIL 13
tegoria, pois estudos estatísticos baseados
nos dados do INSS evidenciaram que a incidência dessa doença é muito maior entre
os motoristas do que entre trabalhadores
de outras categorias profissionais.
Para entender o novo método de apreensão dos dados e suas conseqüências, é preciso, primeiramente, entender como são registrados os acidentes de trabalho no Brasil.
A fonte primária de dados são as empresas,
responsáveis por fazer a Comunicação de
Acidente de Trabalho (CAT) ao Ministério
da Previdência. É a partir dessas comunicações que o ministério organiza o Anuário
Estatístico de Acidentes de Trabalho
(AEAT). As empresas sempre podem subnotificar as ocorrências. Isso mostra a vulnerabilidade dos dados e os problemas para a
concessão dos benefícios. E as informações
se revelam ainda mais limitadas quando se
vê que elas são verificáveis apenas nos ambientes do emprego formal, pois só os acidentes que ocorrem com trabalhadores com
carteira assinada são registrados no Ministério da Previdência Social. Num país onde
os trabalhadores com carteira assinada representam não mais que 30 milhões, ou seja,
menos de 40% da População Economicamente Ativa (PEA), um universo de 90 milhões de trabalhadores, o quadro apresentado pelo banco de dados do INSS é parcial,
não retrata a situação dos trabalhadores do
setor informal, além de excluir aqueles vinculados a outros regimes previdenciários,
como servidores públicos e militares.
“Apesar das limitações, são os dados
mais precisos e abrangentes que temos”, diz
José Damásio de Aquino, assessor da Diretoria Técnica da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho dedicado à segurança e
à saúde do trabalhador.
A despeito das limitações dos dados,
Damásio faz uma análise do comportamento dos acidentes ao longo das últimas décadas. São duas as principais conclusões. A
retratodoBRASIL 13
primeira: o número de óbitos por acidente
de trabalho tem se mantido estável desde os
anos 1970: por volta de 3 mil casos anuais.
Ao mesmo tempo, o número de acidentes
passou de 1 milhão para 500 mil, também
entre os anos 1970 e agora. Isso indica que,
para que o número de mortes caísse da mesma forma como caiu o número de acidentes,
os investimentos em segurança e prevenção
necessários para evitar os casos de morte teriam de ser muito maiores dos que os que
foram feitos ao longo de décadas.
ALTA RECENTE
A segunda: apesar da queda do número de acidentes verificada no intervalo de 36
anos, os dados oficiais apontam que, a partir do fim da década de 1990, o número de
casos registrados pelo CAT voltou a subir,
tendo passado de 363.868 em 2000 para
503.890 em 2006. O aumento registrado
até 2006 estaria condizente com o crescimento econômico dos últimos anos no
País, com o aumento do emprego formal –
em 2006, foram criados 1,4 milhão de novos empregos formais, de acordo com o
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) – e a conseqüente exposição de maior número de trabalhadores
aos riscos laborais.
O aumento de acidentes verificado mais
recentemente também se deve, na avaliação
de Damásio, às melhorias na divulgação dos
dados. “Apesar de reunir os dados sobre
acidentes desde os anos 1970, foi só a partir
de 1999 que o anuário da Previdência passou
a discriminar os acidentes ocorridos por Categoria Nacional de Atividades Econômicas,
a CNAE. Esse fato fez que se aumentassem
a fiscalização trabalhista e a cobrança sindical
a setores com maior incidência de acidentes
e, com isso, se aumentassem os registros dos
acidentes ocorridos.”
A Previdência considera acidentes de trabalho os acidentes típicos, que ocorrem no
desempenho da função, os de trajeto, que
ocorrem durante a ida e volta do trabalhador
para o local de trabalho, e as doenças
ocupacionais. Depois que a empresa emite o
CAT, o trabalhador se submete à perícia de
um médico do INSS, que atesta, ou não, a
necessidade de afastamento por mais de 15
dias do trabalho. Se for afastado por acidente ou doença ocupacional, o trabalhador passa
a receber auxílio-doença acidentário, que implica a continuidade do pagamento do
FGTS pelo empregador e lhe garante um
ano de estabilidade no emprego depois da
sua volta à empresa. Se for concluído que a
doença ou acidente apresentado não tem
origem no trabalho, mas que o trabalhador
precisa ser afastado, ele passa a ser remunerado com o auxílio-doença previdenciário, que
não implica obrigações para o patrão e preserva o índice de acidentes da empresa. É
por isso que muitas evitam admitir o vínculo entre as doenças e suas atividades, preferindo que os males dos trabalhadores sejam
classificados como doença comum, gerando
a subnotificação e a defasagem nos dados.
Um levantamento feito recentemente pela
Universidade de Brasília (UnB) estima que,
até 2006, os casos subnotificados chegavam
a 50% do total declarado.
O Ministério da Previdência divulga também, mensalmente, o Boletim Estatístico
da Previdência Social (BEPS), que, entre outros dados, registra o número e as modalidades de benefícios concedidos, emitidos e
cessados. Foi por meio dessas informações,
analisadas em dois períodos de 11 meses,
que já foi possível verificar o impacto ocorrido com o uso do NTEP a partir de abril de
2007: no período de maio de 2006 a março
de 2007, o número de auxílios-doença relacionados ao trabalho saltou de 125.246 para
293.912 de abril de 2007 a fevereiro de 2008,
um aumento de 134%. No entanto, essa alta
não significou uma alteração expressiva no
conjunto de benefícios concedidos aos tra25
26
partir de 2009, será usado para estabelecer a
alíquota do Seguro de Acidente de Trabalho (SAT) paga sobre o valor da folha de
pagamento de cada empresa. Hoje o SAT
varia entre 1%, 2% e 3%, de acordo com o
grau de risco que cada setor econômico representa para a saúde do trabalhador. O FAP
variará de 0,5 a 2. O número será determinado por empresa individualmente, com o
objetivo de “premiar” as que reduzirem
seus índices de acidente. Aquela que hoje
tem uma alíquota de 3% poderá ter sua cota
reduzida se tiver poucas ocorrências e conseguir o FAP 0,5, que, multiplicado pela
alíquota original, resultará num SAT menor de 1,5%. Se, ao contrário, a empresa
registrar muitos acidentes, sua alíquota será
multiplicada pelo FAP 2, por exemplo, e a
alíquota a ser paga passará de 3% para 6%.
NOVA FORMA DE AVALIAR
No bojo dessas mudanças metodológicas, foi feita também uma reavaliação
dos riscos de cada setor. Algumas categorias das chamadas atividades de intermediação financeira, por exemplo, como
bancos comerciais, passaram de risco leve
para risco grave, tendo a alíquota do SAT
aumentada de 1% para 3%. A mudança
foi baseada na avaliação dos dados
acidentários acumulados pelo INSS quanto a freqüência, gravidade e custo dos acidentes registrados. Segundo a Previdência, em 2006 os bancos lideraram o ranking
de ocorrências de doenças ocupacionais,
com 2.652 registros, sendo que 49,3%
dos casos eram de LER.
A adoção do NTEP e a reavaliação do
risco levaram a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) a questionar as novas regras
e a Confederação Nacional da Indústria
(CNI) a entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra o NTEP.
“Quando se compara o segmento bancário
com o segmento industrial, o senso comum diz que o segmento industrial é muito mais perigoso. Quando você vê os números, é justamente o contrário. Os bancos têm
um ambiente muito mais arriscado do que a
indústria. Não porque haja mais acidentes
ou doentes, mas porque o perfil das doenças
que esse ambiente provoca é um perfil crônico. A média de tempo de afastamento é de
90 dias na indústria; nos bancos, a média
sobe para 500 dias”, diz Oliveira, que lembra
que os desembolsos do INSS são altos no
caso dos bancos também porque a média
salarial desse setor é maior do que a de muitos outros.
Roberto Ângelo Moraes, 31 anos, é bancário há 16. A perseguição das metas de produtividade impostas pelo banco gerou um
quadro de LER que dolorosamente o acompanha desde 1998. Com experiência como
caixa de agência no centro da cidade de São
Paulo, Moraes se destacou, por sua agilidade, num departamento interno do banco
que processava material de caixas automáticos e malotes. A dor inicial, no punho, não
o fez parar, e logo o esforço repetitivo começou a sobrecarregar o cotovelo e depois
o ombro. Seu caso era acompanhado privadamente por um ortopedista que diagnosticou a LER. No entanto, a médica do
trabalho vinculada à empresa o desaconselhava a pedir um afastamento acidentário: “Você é novo, não vá queimar sua carteira.” Além disso, havia uma pressão
moral dentro do banco, com comentários
como: “Fulano está com LER, lerdeza...”
Moraes levou a situação até 2004, se
ausentando periodicamente por menos de
15 dias, quando foi demitido. Reincorporado à empresa por pressão do sindicato,
ele teve finalmente sua LER classificada
como acidente de trabalho, coisa que aconteceria hoje automaticamente com o
NTEP. Sua situação não é boa: perdeu os
benefícios bancários, como tíquetes-alimentação e a participação no lucro da empresa. Casado, com dois filhos, passa o
Moraes, bancário: LER e depressão
Tania Caliari
balhadores adoentados. O que houve foi
uma mudança na classificação dos infortúnios. Se em 2006 apenas 7,5% dos benefícios concedidos pela Previdência aos trabalhadores afastados foram acidentários, contra 92,5% de benefícios previdenciários, em
2007 a categoria dos acidentários subiu para
18,8%. Nesse intervalo, o número de trabalhadores formais cresceu 9,7%, e o total de
benefícios concedidos diminuiu 28%.
Os dados acima foram organizados pelo
Laboratório de Saúde do Trabalhador da
Universidade de Brasília, que, desde 2003,
tem tido acesso aos dados brutos do INSS
para desenvolver uma série de estudos sobre o tema. Pode-se dizer que esses estudos, além do entendimento por parte de
pesquisadores e técnicos da Previdência de
que a saúde do trabalhador tem de ser tratada como questão de saúde pública, são a
origem da metodologia do NTEP. Orientado pela coordenadora do Laboratório, a
professora Anadergh Barbosa-Branco, o
doutorando em Ciências da Saúde Paulo
Rogério Oliveira identificou, a partir do
banco de dados do INSS, os principais problemas de saúde que acometeram as diferentes categorias entre 2000 e 2004. Oliveira, que trabalha como assessor da Secretaria
Executiva do Ministério da Previdência Social, diz que, desde a Constituição de 1988,
elaborada após a redemocratização do País,
a saúde do trabalhador saiu da esfera do
trabalho, de mera relação patrão-empregado, e passou para a esfera da saúde pública.
Para reforçar esse caráter e subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas para a
saúde do trabalhador, a metodologia usada no NTEP deixou de usar o referencial
teórico da medicina do trabalho anterior,
de cunho liberal, e passou a usar o referencial
coletivo. “Passamos a ver de qual ambiente
vinha aquele trabalhador doente. Deixamos
de perguntar se o indivíduo está ou não
doente, mas se o ambiente de trabalho é
ou não doentio. E, para responder a essa
pergunta, fizemos um trabalho epidemiológico, pegando toda a população empregada naquele setor econômico e verificando
se o adoecimento por determinadas moléstias é diferenciado em relação aos outros
setores econômicos. Com isso, a doença
deixa de ser um problema do trabalhador e
passa a ser problema de um segmento econômico ou empresa.”
Oliveira também criou o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), um índice que, a
retratodoBRASIL 13
AE
Call center em São Paulo: atividades aparentemente mais suaves são exercidas em ambientes de trabalho de alto risco, segundo especialistas
dia estudando para prestar concursos públicos para se livrar da situação de “afastado” e da depressão que surgiu acompanhando a LER.
LER SÓ AUMENTOU
Walcir Previtale Bruno, secretário de Saúde e Condições de Trabalho do Sindicato
dos Bancários de São Paulo, tem uma explicação empírica para a ocorrência crescente de
casos como o de Moraes. Caixa desde os
anos 1980, Bruno foi, junto com seus colegas, exposto às conseqüências das mudanças radicais na gestão do trabalho bancário.
Houve redução do número de funcionários,
aumento no ritmo de produção, determinação e cobrança de metas de produtividade e
de vendas de produtos.
“Nos anos 1980, o foco do sindicato para
o combate à LER era a melhoria das instalações físicas dos bancos, adequação
ergonométrica do mobiliário. As coisas melhoraram nesse sentido. No entanto, a epidemia de LER não passou e até se
aprofundou. Verificamos que a questão passou a ser a gestão do trabalho, com sobrecarga de horário num mundo de metas e produtos a serem vendidos”.
Associadas ou não aos casos de LER,
doenças mentais, como depressão, síndrome
do pânico e transtorno bipolar, que podem
ser geradas pelo ambiente competitivo, aparecem como a segunda maior causa de afastamento de bancários do trabalho.
Apesar de o grau de exposição dos bancários aos males do trabalho ser tão alto, setores
retratodoBRASIL 13
mais tradicionais, que requerem grande esforço físico dos trabalhadores, continuam fazendo vítimas. É o caso da agricultura e da construção civil. No cultivo de cana-de-açúcar, de
grande importância econômica, nos últimos
anos, por exemplo, de acordo com Maria
Cristina Gonzaga, da Fundacentro, um conjunto de fatores contribuiu para tornar mais
precárias as condições de trabalho de homens
e mulheres que ganham seu sustento nessa
atividade, deixando-os mais expostos aos riscos de doenças ocupacionais e acidentes.
Gonzaga fala de uma mistura de “riscos organizacionais com riscos operacionais”. A organização do trabalho no cultivo da cana-de-açúcar impõe condições,
como pagamento vinculado à produtividade e longa duração dos turnos, que, quando executadas, resultam em riscos operacionais, com os movimentos repetitivos,
uso excessivo da força, problemas de
postura, e outros. “Há dez anos a meta do
trabalhador era o corte de 6 toneladas por
dia. Hoje são 12, 15 toneladas”, diz.
Em termos de segurança, nos últimos anos houve evolução nos equipamentos de proteção individual dos
canavieiros. A adaptação das luvas dos
cortadores, por exemplo, saiu de uma
sugestão de sua tese de mestrado, que
constatou que as luvas das mãos direita e
esquerda deveriam ser diferentes por terem funções diferentes no corte.
Apesar de aperfeiçoamentos dessa natureza, entretanto, têm ocorrido cada vez
mais mortes nos últimos anos. Gonzaga
apresenta uma lista de trabalhadores mortos produzida pela Pastoral do Migrante
em Guariba, interior de São Paulo, com 20
casos entre 2004 e 2007. A média de idade
dos mortos é 40 anos e a maior parte das
causa mortis é parada cardiorrespiratória.
“Essas paradas cardíacas podem vir de um
quadro de exaustão que eu consideraria um
acidente fatal de trabalho. Mas isso ainda
não é assumido pelo poder público”.
O boom de lançamento de novos imóveis também influencia de forma importante a elevação da ocorrência de acidentes
num setor tradicionalmente sujeito a eles.
Moisés de Oliveira, diretor do Sindicato
dos Trabalhadores da Construção Civil de
São Paulo, considera que grande parte dos
casos ocorre devido a um conjunto de fatores, entre os quais a falta de preparo do
trabalhador e as más condições de equipamentos de segurança. Ele chama a atenção, no entanto, para aspectos que parecem ter se tornado comuns a muitas categorias nos últimos anos, independentemente do nível de esforço físico a que são
submetidas: a aceleração do ritmo de trabalho e as pressões psicológicas a que os
trabalhadores estão sujeitos devido a ela.
“Um edifício que antes era construído em
2, 3 anos, hoje é levantado em um. Um
prédio de 25 andares usava 150 operários.
Hoje, precisa só de 60. É claro que os novos materiais e tecnologia mais avançada
ajudaram nesse quadro. Mas o sujeito não
percebe que a pressão do prazo sobre o
trabalhador é muito maior”.
27
Educação:
Folha Imagem
NEGÓCIO
SUPERIOR
Em junho, o empresário João Carlos Di
Gênio, dono do grupo Objetivo, recebeu
uma oferta do grupo norte-americano
Apollo para a aquisição de toda a fatia que
ele domina no ensino superior, formada
pela Unip (Universidade Paulista) e por
outras 46 faculdades. A oferta, de 2,5 bilhões de reais, não foi aceita, mas o interesse dos estrangeiros na aquisição de instituições de ensino superior brasileiras
continua, e as empresas nacionais estão se
preparando para isso.
A presença de capital estrangeiro nos
estabelecimentos de ensino superior brasileiros não é novidade. O próprio grupo
Apollo – que mantém uma das maiores
instituições com fins lucrativos dos EUA,
a Universidade de Phoenix, no estado do
Arizona, além de outros estabelecimentos em território americano e no Canadá,
México, Chile e Holanda – foi, de 2001 a
2006, acionista da empresa mineira
Kroton, dona do sistema de ensino
Pitágoras.
Além do Apollo, outras duas empresas
americanas têm presença no Brasil. O
Whitney Education Group, em 2006, comprou, por 23,5 milhões de reais, metade do
capital das Faculdades Jorge Amado, de Salvador. E a Laureate International Universities, a
primeira a chegar, adquiriu, em 2005, 51%
do controle da Universidade Anhembi
Morumbi e tem sociedade também na São
Paulo Business School e na Universidade
Potiguar, no Rio Grande do Norte. Neste
ano, o Centro Universitário do Norte
(UniNorte), no Amazonas, e a Escola Superior de Administração Direito e Economia
28
(Esade), no Rio Grande do Sul, passaram a
integrar a rede da Laureate, que hoje tem 70
mil alunos no Brasil.
Além disso, a partir de 2007, algumas
instituições de ensino superior brasileiras
abriram seu capital e fizeram captação de
recursos, especialmente estrangeiros, com
lançamento inicial de ações na Bovespa. O
grupo Anhanguera Educacional Participações foi o primeiro a utilizar esse expediente, seguido por Estácio de Sá, SEB (Sociedade Educacional Brasileira) e Kroton.
Juntas, captaram 1,9 bilhão de reais, e grande parte das ações foi comprada por estrangeiros. Especialistas calculam que, nos
próximos dois anos, o setor deve receber
até 3 bilhões de reais além do que já foi
investido. Os que já investiram no Brasil
têm mais dinheiro para investir, e ainda
há outros grupos para vir, disse o consultor de ensino privado e presidente da
Hoper Educacional, Ryon Braga, a O Estado de S. Paulo. Braga é um defensor da
abertura do capital das empresas de ensino e acha que o setor ainda não está preparado para isso. O que atrapalharia o
processo, ainda, seria o fato de a maioria
das universidades ser controlada por famílias, com estruturas de custo “pesadas
e inchadas”, diz O Estado.
COM A LDB, EMPRESAS
Pode-se dizer que o mercado do ensino superior brasileiro “explodiu” a partir
da promulgação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), em 1996, no
primeiro mandato de Fernando Henrique
Cardoso. Até então, a Constituição Fede-
ral reconhecia a existência de instituições
privadas, mas não caracterizadas claramente
como empresas. A LDB distinguiu as instituições privadas com fins lucrativos das
demais e estabeleceu regras para o funcionamento das entidades, passando a permitir a existência de empresas de ensino
visando, obviamente, ao lucro.
A mudança também disparou um
processo de concentração de capitais, com
a compra de pequenas empresas pelas grandes e a formação de grupos de peso. Também bancos e fundos de investimentos,
como o Garantia Participações e o União
de Bancos Suíços-Pactual, entraram no negócio. É “um movimento de aquisições
sem precedentes”, diz o jornal Valor Econômico. Num artigo do início de junho, o
periódico apresenta dados da consultoria
KPMG que mostram 30 transações no
setor, no primeiro semestre deste ano.
Esse movimento de fusões e aquisições
só é inferior aos dos setores de tecnologia
da informação e de alimentos, bebidas e
fumo. As empresas não declaram os valores envolvidos, mas, segundo o jornal, eles
chegam a 250 milhões de reais.
Em 2006, existiam 2.270 instituições
de ensino superior. Apenas 248, pouco
mais de 10%, eram públicas; quase 90%,
2.022, eram privadas, que tinham 3,8 milhões de estudantes, 80% do total, e movimentavam, anualmente, cerca 20,5 bilhões de reais. O movimento de concentração no setor está apenas no começo e
poderá resultar na existência de apenas 15
ou 20 grandes grupos, com 3 milhões de
alunos, estimam alguns analistas.
retratodoBRASIL 13
Verônica Bercht
Um exemplo de formação de um desses grupos é o Anhanguera Educacional
Participações. O grupo nasceu em 1994,
na cidade de Leme (SP). Em 2003, já era
um grupo médio, com 8.848 alunos em
sete unidades espalhadas por seis cidades
do interior de São Paulo. Nesse mesmo
ano, o Anhanguera transformou suas instituições sem fins lucrativos em empresas,
com fins lucrativos, portanto. No mesmo
ano, associou-se à Anhembi Morumbi, na
capital paulista. Em 2004, incorporou várias faculdades do interior do estado de
São Paulo e mudou sua estrutura societária
para a de uma sociedade anônima. No fim
de 2005, já tinha dez unidades de ensino.
Em 2006, quando abriu sua 11ª unidade,
possuía mais de 23 mil alunos. E chegou
a 59 mil alunos em 2007, já então espalhada por São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás e Mato
Grosso do Sul. Só para efeito de comparação: em 2007, a USP (Universidade de São
Paulo), a maior universidade pública do
País, tinha 45 mil alunos na graduação e
35 mil na pós-graduação, totalizando 80
mil estudantes matriculados.
O desempenho do Anhanguera mostra uma lucratividade atraente para grandes investidores, como as empresas estrangeiras que rondam o mercado brasileiro
de ensino. O balanço divulgado em março
de 2008 mostra que, em 2007, o grupo
captou cerca de 500 milhões de reais na
Bolsa de Valores. No ano passado, seu lucro
líquido foi de 63,5 milhões de reais, mais
de quatro vezes o alcançado em 2006, de
14,9 milhões de reais.
retratodoBRASIL 13
A mudança na LDB acatou as recomendações do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), de abrir o ensino para o capital privado. O resultado da
privatização seria a democratização do acesso à educação superior. O acesso, de fato,
cresceu. O Mapa do ensino superior privado,
estudo da professora Gladys Beatriz
Barreyro, da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da USP, publicado em 2008
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),
do Ministério da Educação, fez um diagnóstico dessa situação. Entre 1980 e 1996,
o número de estabelecimentos de ensino
superior no Brasil passou de 882 para 922,
um aumento de apenas 4,5%, sendo que
as escolas públicas cresceram mais do que
as particulares – 5,5% contra 4,2%. Na
década seguinte, entre 1996 e 2006, o ritmo de crescimento acelerou: de 922 instituições saltou para 2.270, um aumento de
quase 250%, e a relação entre públicas e
particulares se inverteu de forma espetacular. Enquanto as públicas passaram de 211
para 248, um aumento de apenas 17%, as
particulares pularam de 711 para 2.022, um
aumento de quase 300%.
ARRANCADA DA PRIVATIZAÇÃO
O estudo mostra também o crescimento das matrículas no período. Em 1980,
foram 1,4 milhão de matrículas; em 1995,
1,8 milhão, um crescimento de cerca de
25%. E, de 1995 a 2004, houve um salto
para 4,2 milhões de matrículas, um aumento cerca de dez vezes maior, devido, esmagadoramente, ao crescimento das matrículas nas instituições particulares. As públicas evoluíram de 492 mil matrículas em
1980 para 700 mil em 1995, aumento de
cerca de 40%, e para 1,2 milhão em 2004,
aumento de quase 70%. Enquanto isso,
as privadas passaram de 885 mil em 1980
para 1 milhão em 1995, aumento de menos de 20%, abaixo do obtido pelas públicas, e tomaram a dianteira disparada em
2004, com 3 milhões de matrículas, quase
300% de aumento.
A dianteira das particulares pode ser
observada, também, por outro ângulo.
Em 1980, o setor público tinha 36% das
matrículas, e o privado, 64%. Nos quinze
anos seguintes, as públicas avançaram sobre as particulares, chegando, em 1995, a
40% do total das matrículas, enquanto as
privadas caíam para 60%. Na década se-
guinte, a tendência se inverteu de forma
acentuada: em 2004, as públicas tiveram
sua participação reduzida para 28%, enquanto as privadas subiram para 72%.
Mesmo assim, em termos de ocupação das vagas oferecidas, as públicas foram
mais eficientes. Em 2004, foram oferecidas 2,3 milhões de vagas, sendo, aproximadamente, 300 mil em estabelecimentos
públicos e 2 milhões em privados. Mas,
nas públicas, 93% das vagas oferecidas foram preenchidas por novos alunos; entre
as privadas, apenas 50% das vagas foram
efetivamente preenchidas.
O preço do ensino privado é alto. As
mensalidades, no Rio de Janeiro, por
exemplo, variaram, em 2003, entre 200 reais e mais de 2 mil reais. Na Universidade
Gama Filho, os cursos de pedagogia e matemática custavam, naquele ano, 199 reais
por mês. Na PUC-Rio, o curso de engenharia custava 962 reais por mês. E as mensalidades de medicina na Uninove e na Unicastelo eram 2.200 reais. São valores que
destroem a ilusão, difundida pelo BID e
pelo governo FHC, a respeito da democratização do ensino superior pela expansão dos negócios privados, que representam 90% das instituições de ensino e oferecem 80% das vagas.
Estão em tramitação no Congresso
dois projetos de lei que tratam da privatização do ensino superior e da entrada de
capital estrangeiro no setor. Um deles é o
projeto de lei (PL 2138/2003) do deputaDi Gênio: oferta de R$ 250 bilhões recusada
Folha Imagem
O ensino universitário
transformou-se, nos
últimos anos, num
empreendimento para
os grandes capitais
29
do federal Ivan Valente (Psol-SP), que quer
proibir, pura e simplesmente, a entrada de
capital estrangeiro nas instituições educacionais privadas. Outro é o projeto de lei
da Reforma Universitária (PL 7200/2006),
enviado pelo presidente Lula à Câmara dos
Deputados em junho daquele ano. Ele prevê o limite de 30% para o capital estrangeiro no ensino superior privado e estabelece
critérios para a negociação e fiscalização dos
preços das mensalidades.
APOIO AO CAPITAL DE FORA
As entidades mantenedoras do ensino superior e os empresários do setor são
radicalmente contra qualquer restrição ao
dinheiro de fora. Hermes Ferreira Figueiredo, presidente do sindicato das mantenedoras do estado de São Paulo e dono
da Unicsul, considera “equivocada” a proibição da entrada de capital estrangeiro. “A
origem do capital não determina a qualidade”, ele diz. O professor Antonio
Carbonari Neto, presidente do grupo
Anhanguera Educacional, por sua vez,
também elogia a participação dos investidores estrangeiros e diz que sua proibição
é puramente “ideológica”. No texto “O
capital estrangeiro na educação superior
brasileira”, divulgado em junho deste ano
no portal da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES),
Edson Franco procura distinguir entidades mantenedoras e instituições educacionais. O argumento é que não há proibição
para a participação do capital estrangeiro
nas mantenedoras.
Do outro lado, no debate, há um leque
diversificado. A vinda do capital estrangeiro “será uma penetração cultural que precisa ser monitorada, pois não atende aos interesses do País e tampouco traz melhoria
para a qualidade do ensino, pois a lógica do
capital visa somente ao lucro”, argumenta
o deputado Ivan Valente, na justificativa de
seu projeto de lei. Educação “não é negó-
Anhembi Morumbi: associação com a
Laureate International Universities
5 milhões
4 milhões
no de matrículas
DISPARADA DAS PARTICULARES As matrículas do terceiro grau
foram aceleradas a partir dos anos 1990, puxadas pelas escolas privadas
EVOLUÇÃO DE MATRÍCULAS
NO TERCEIRO GRAU
[1980-2004]
TOTAL
A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, durante a primeira
administração do presidente Fernando
Henrique Cardoso, provocou aumento
expressivo das matrículas, especialmente nas escolas particulares. A LDB foi uma
recomendação do BID, no sentido de
ampliar a privatização do ensino superior
3 milhões
PRIVADO
2 milhões
PÚBLICO
1 milhão
0
1996
1980
Fonte: MEC/INEP
30
1985
1990
1995
2000
2004
Grupo Anhanguera: grande fusão entre
capital interno e externo
cio”, disse ele numa audiência pública realizada na Comissão de Educação da Câmara
dos Deputados, em 19 de junho. O professor Francisco Miraglia Neto, da USP, concorda. “Educação é um direito social básico, mas está se transformando em mercadoria”, diz ele. Miraglia não é, em tese, contra o ensino privado, mas considera que os
preços da rede privada precisam ser administrados pelo poder público.
Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), também
condena a mercantilização do ensino e a
presença do capital estrangeiro, que provocam, na maioria dos casos, diz ela, a degradação da educação, prejudicando alunos,
professores e funcionários das instituições.
“São necessárias ações que tenham o poder de limitar, ou até de impedir, o capital
estrangeiro na educação superior”, disse
em entrevista ao jornal Valor Econômico,
no início de julho.
retratodoBRASIL 13
Livros:
Até recentemente, como na Guerra do
Vietnã, os combatentes eram cidadãos recrutados para o serviço militar, obrigatório para todos, com o objetivo de supostamente defenderem a pátria ameaçada por
forças estrangeiras. Mas isso nem sempre
foi assim. Da Idade Média até a Revolução
Francesa, os exércitos dos Estados europeus não eram compostos de cidadãos em
armas, e sim de mercenários, e até de mercenários estrangeiros. Porém, há muitos
anos, deixou de ser assim. A partir do fim
dos anos 1970, os Estados Unidos aboliram o serviço militar obrigatório e adotaram o que se chama de Forças Exclusivas
de Voluntários, ou seja, cidadãos que se
apresentam para guerrear em troca de salário. Isso visou, basicamente, evitar que a
opinião pública se voltasse contra as operações militares, principalmente pelo excesso de mortes de jovens cidadãos comuns, como ocorreu na Guerra do Vietnã.
Durante todo esse período, os exércitos supostamente compostos por jovens
de todas as classes sociais continuaram,
em especial nos países coloniais e ex-coloniais, a contratar mercenários, individualmente ou em grupos, para combaterem
organizações anticolonialistas e antiimperialistas ou simplesmente rivais na partilha do butim formado pelas nações colonizadas ou ex-colônias. Ficaram famosos
os “soldados da fortuna”, contratados individualmente ou em grupo, notadamente a Legião Estrangeira da França e os mercenários de vários países europeus que atuaram na África, particularmente no então
Congo belga.
CAPITAL, NÃO AVENTURA
A partir dos anos 1990, um novo passo foi dado: a outorga de “serviços” militares a empresas de segurança privada,
concedida pelo governo dos EUA (e por
outros governos, em especial africanos),
cujos contratos muitas vezes são bilionários, como no caso americano. Trata-se
de uma verdadeira atividade empresarial
em busca de lucro, e não de uma ação de
aventureiros, como os tradicionais mercenários. Foram três as principais razões
para essa privatização da guerra. Uma,
ideológica: os empreendimentos privados
seriam sempre mais eficientes, com relação a custos e benefícios, do que os empreendimentos públicos, mesmo no caso
das Forças Armadas. Como disse o exretratodoBRASIL 13
secretário da Defesa dos EUA, Donald
Rumsfeld: “Está claro que é eficiente em
termos de custos ter civis contratados
para uma variedade de coisas que os militares não precisam fazer.” Outra razão foi
mais prática: com grupos privados, os
governantes podem assegurar gordos lucros a empresários que são de seu grupo.
Por exemplo: uma subsidiária da
Halliburton, megaempresa de cuja direção participava o vice-presidente americano Dick Cheney, construiu a nova prisão
da base dos EUA em Guantánamo, Cuba.
Finalmente, o terceiro motivo é ainda
mais prático: o limbo legal em que esses
serviços militares privados ficam abrigados. Em outras palavras, os “funcionários” dessas empresas podem praticar
quaisquer crimes, civis ou militares, como
torturas e ataques a pessoas desarmadas
e, mesmo assim, ficar totalmente impunes. Um exemplo: a Caci International
foi contratada para fazer os interrogatórios em Guantánamo, que incluem os
bem-conhecidos “afogamentos simulados” e a ameaça por cães ferozes. Outro
exemplo: agentes da Blackwater USA, a
maior empresa de segurança privada do
mundo, com 30 mil funcionários, mataram a tiros, sem motivação conhecida, em
16 de setembro de 2007, 17 transeuntes e
passageiros de carros, todos civis
iraquianos desarmados, na praça Nissur,
em Bagdá. No caso da Caci, ninguém foi
punido. No caso da praça Nissur, também não houve sanção penal, apenas a
direção da Blackwater ordenou a alguns
dos assassinos que deixassem o Iraque.
As companhias militares privadas
(PMCs, na sigla em inglês) firmam, com o
governo dos EUA, contratos de imunidade processual com relação às leis americanas. Por sua vez, o governo americano firma acordos com governos estrangeiros, em
especial o de países ocupados ou ajudados
militarmente pelos EUA, de forma a garantir imunidade judicial aos cidadãos
americanos, em geral, e, em particular, aos
integrantes, de quaisquer nacionalidades,
das companhias militares privadas.
No recente resgate, na Colômbia, da
ex-senadora Ingrid Betancourt, houve, segundo reportagem do jornalista Pedro
Paulo Rezende publicada na edição do último 4 de julho do jornal Correio Braziliense,
“a participação de membros da DynCorp
e da Blackwater, as duas maiores empresas
A Colômbia e o Iraque
são apenas dois exemplos
do ressurgimento dos exércitos
mercenários | Renato Pompeu
de segurança privada do mundo”, ambas
americanas. Esclarece ainda Rezende: “A
DynCorp e a Blackwater, que têm conexões com o governo dos Estados Unidos, ajudam na segurança da Zona Verde, área mais protegida de Bagdá, e na
escolta de autoridades estrangeiras no
Iraque. As duas disputam um gordo contrato, estimado em US$ 2 bilhões, estabelecido pelo Departamento de Estado,
para criar um plano de combate ao
narcotráfico na Colômbia.”
CIVIS E MILITARES DIVERGEM
Note-se que esse contrato é com o Departamento de Estado, equivalente ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro,
e não com o Departamento da Defesa, que
engloba as Forças Armadas americanas. A
explicação é que os militares profissionais
Prince, da Blackkwater: republicano de direita
Reuters
HISTÓRIA DAS
GUERRAS PRIVADAS
31
dos EUA não são muito fãs das companhias militares privadas, as quais são, porém, muito apreciadas pelos civis que comandam a diplomacia americana. O motivo, nos dois casos, é o mesmo: o limbo
legal que permite ações que “dão mau
exemplo aos soldados regulares”, na opinião dos militares profissionais, mas também “garantem vantagens estratégicas”, na
visão dos responsáveis civis pela política
externa dos EUA.
Dois livros recentes, de pesquisadores
independentes, dão uma visão mais concreta das atividades das companhias militares privadas. Um, atualizado até o início
deste ano, acaba de ser lançado no Brasil:
Blackwater. A ascensão do exército mercenário
mais poderoso do mundo, do jornalista americano Jeremy Scahill, editado pela Companhia das Letras. O outro ainda não foi traduzido para o português: Cor porate
Warriors. The Rise of the Privatized Military
Industry (“Guerreiros corporativos – A
ascensão da indústria militar privatizada”,
em tradução livre), de Peter Singer, com
edição atualizada no início de 2007 pela
Universidade de Cornell, EUA.
DE MILHÕES A BILHÕES
Scahill centra seu livro na história da
Blackwater, fundada pelo megaempresário
Erik Prince, cristão fundamentalista e simpatizante da extrema direita do Partido Republicano. A história começa em 1996, em
pleno governo Clinton. No atual governo
Bush, os contratos da Blackwater passaram dos milhões de dólares iniciais para
os bilhões. Singer relaciona centenas de
companhias militares privadas no mundo
inteiro, num “negócio” atualmente de 100
bilhões de dólares anuais. De acordo com
ele, o Departamento da Defesa dos Esta-
>> BLACKWATER A ascensão do exército
mercenário mais poderoso do mundo
autor Jeremy Scahill
editora Companhia das Letras
ano 2008
>> CORPORATE WARRIORS The Rise of
the Privatized Military Industry
autor Peter Singer
editora Cornell University Press
ano 2007
dos Unidos, entre 1994 e 2002, gastou 300
bilhões de dólares em 3 mil contratos com
companhias militares privadas, absorvendo oito por cento do total do orçamento
do Dod, sigla em inglês do Departamento, também conhecido como Pentágono.
Além do Iraque, do Afeganistão e de vários países africanos, essas empresas atuam em outras partes do mundo, como
na Colômbia, no Líbano e até na tríplice
fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Reuters
Falluja, Iraque, 2004: população matou e incinerou corpos de funcionários da Blackwater que atuavam na cidade
32
retratodoBRASIL 13
Reuters
Scahill se preocupa, porque, visivelmente, uma conseqüência possível da privatização da guerra seria a utilização das companhias militares particulares em ações ilegais de maior envergadura do que a tortura a presos ou a matança de civis desarmados, como, por exemplo, golpes de Estado ou atentados contra governos.
NO GOLPE, FILHO DE THATCHER
Resgate de Betancourt na Colômbia: suspeita de participação de mercenários
Singer inclui, entre as PMCs, a
Raytheon, que forneceu a logística do
Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia brasileira). Ainda de acordo com ele, a
DynCorp, desde os anos 1990, contratou
ex-pilotos da Força Aérea Brasileira para
atuarem na Colômbia, havendo ainda outros mercenários brasileiros em várias regiões do planeta, contratados por diferentes empresas. Já segundo Scahill, a
Embraer vendeu para a Blackwater um
avião Super Tucano, passível de utilização
em “operações de contra-insurgência”,
com o consentimento do governo brasileiro. O avião teria sido enviado para os
EUA, mas se supõe que deva ser usado,
prioritariamente, na Colômbia.
15% PARA MERCENÁRIOS
Embora a guerra privatizada já existisse há muitos anos, sua realidade só tomou corpo maciçamente na mídia internacional, especialmente na televisão, em 31
de março de 2004, quando a TV mostrou,
ao vivo, para o mundo inteiro, o chamado
“incidente de Falluja”. Nessa cidade, a 50
quilômetros de Bagdá, centenas de civis
iraquianos cercaram quatro soldados uniformizados da Blackwater, os mataram,
queimaram e mutilaram, pendurando o
que restava de seus cadáveres em uma
ponte, para que toda a cidade visse.
retratodoBRASIL 13
Inicialmente, a opinião pública ficou
chocada com “o massacre contra quatro
soldados” regulares que estavam no
Iraque para “garantir a democracia” no país.
Depois, ficou ainda mais chocada quando
soube que eram “assalariados” de uma
empresa contratada para garantir a segurança de autoridades, estrangeiras ou
iraquianas, diplomatas ou governantes, e
de instalações estratégicas, como oleodutos, refinarias, linhas de transmissão de
energia, rodovias, meios de comunicação,
etc. Em particular, são empresas privadas
que fazem a segurança das ruas, prédios,
autoridades e funcionários, estrangeiros e
iraquianos, da chamada Zona Verde de
Bagdá, onde ficam situadas, além das principais embaixadas, como a americana e a
britânica, também os principais comandos
militares da ocupação e órgãos do governo iraquiano.
O Conselho Britânico-Americano de
Informações sobre Segurança calcula que
até 15% do dinheiro gasto na “reconstrução” do Iraque seja destinado a companhias militares privadas, diz Singer. O pior
de tudo, segundo Scahill, é que as autoridades americanas acham que a privatização da guerra “funciona”. Por exemplo,
alardeia-se que nenhuma autoridade protegida pela Blackwater se feriu, foi morta
ou vítima de atentado.
Aliás, isso já aconteceu: em julho último, o mercenário britânico Simon Mann
foi condenado a 34 anos de prisão pela
Justiça da Guiné Equatorial, país da África Ocidental, por ter tentado organizar,
com as forças sob seu comando, em 2004,
um golpe para derrubar o presidente
Teodoro Obiang. Mann tinha sido financiado por um amigo, ninguém menos do
que Mark Thatcher, o único filho (tem
uma irmã gêmea) da ex-primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher,
um dos ícones do neoliberalismo. Mark
Thatcher, que em 2004 residia na África
do Sul, foi processado pela Justiça sulafricana, esteve preso e foi libertado após
ter confessado que “financiou a compra
de um avião por Mann sem saber que o
amigo planejava um golpe de Estado”.
Mark Thatcher voltou para a GrãBretanha. Em 2005, tentou se estabelecer
nos Estados Unidos e em Mônaco, mas
teve a entrada recusada nos dois países,
por seu envolvimento na tentativa de
golpe na Guiné Equatorial.
A execução da guerra por empresas
privadas com fins de lucro pode, afinal,
levar a que as guerras deixem definitivamente de ser travadas, em qualquer grau,
em nome da “defesa da pátria” com o
fim de ser desencadeadas exclusivamente para defender interesses particulares.
Porém, pode acontecer algo ainda mais
grave do que isso, como mostra a ação
de Mann e Mark Thatcher: as companhias militares privadas deixarem de atender a contratos governamentais para iniciarem seus próprios empreendimentos
de conquista e saque, como já aconteceu
no passado. Basta lembrar as Companhias das Índias, da era da Revolução
Comercial. Afinal, no mundo “maravilhoso” do neoliberalismo, tudo é fantasticamente possível.
RENATO POMPEU é jornalista e escritor, autor do
romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo
Brasil, Editora Casa Amarela, 2006.
33
Futebol:
A PÁTRIA
DAS
CHUTEIRAS
Uma nova regra da Fifa
ou desmonta clubes
como o Real Madrid ou
vai levar muito jogador a
mudar de nacionalidade
peus. A norma, proposta por seu presidente, o suíço Joseph Blatter, e apelidada
de “6+5”, estabelece que, a partir da temporada 2012-2013, “ao começo de cada
partida, cada clube deverá escalar ao menos seis jogadores aptos a jogar pela seleção nacional de seu país, ou seja, limita a
no máximo cinco a quantidade de estrangeiros no início dos jogos.
geiros: “Todos sentiram o fato de a Inglaterra não ser representada na Eurocopa
2008. Não é só a Inglaterra que está sendo
afetada pela situação atual; outros países
estão preocupados, talvez seja a Alemanha
no futuro. Nós debatemos a “6+5” dentro
de nosso Comitê e todos foram favoráveis
à idéia. [Agora] precisamos entrar num acordo com a União Européia.”
A medida foi aprovada pelos representantes das associações e confederações nacionais filiadas à entidade por 155 votos favoráveis e apenas 5 contrários, o que é surpreendente, tratando-se de medida que deverá atingir os maiores e mais ricos clubes
do planeta.
E é a pressão desses clubes que pode
ser a maior barreira para sua entrada em
vigor. O jornalista e comentarista esportivo da TV Bandeirantes e do jornal Lance!,
Mauro Beting, disse a RB que acredita que
“é ao regramento da União Européia que
os clubes vão se ater. Pela própria lei da
União Européia e pela liberalidade da Lei
Bosman, de 1995, o trabalhador da comunidade tem o direito de ir e vir por qualquer país da região. É a própria norma européia, evidentemente acima das normas
do futebol, que determina isso. Então, a
briga vai ser muito boa, vai ser ótima”.
Daniel Affini, agente de jogadores
credenciado pela Fifa, vê o problema da
mesma forma. “Eles vão tentar provar o
direito do cidadão de poder trabalhar. A
União Européia permite que o cidadão
nascido em qualquer país de lá trabalhe e
more em outro país do bloco”, disse ele a
RB. “Na União Européia, não é mais estrangeiro quem sai da Espanha e vai para a
Suíça, para Portugal. Ele (Blatter) não pode
vetar o direito do trabalhador de escolher
O Real Madrid, da Espanha, somente na
temporada 2006-2007, arrecadou aproximadamente 475 milhões de dólares. Boa
parte desse dinheiro veio de partidas de
exibição, especialmente na Ásia, da venda
de camisas do clube no mundo todo e da
venda total e antecipada de ingressos, feitos obtidos graças ao prestígio de possuir
alguns dos melhores jogadores do mundo, como o brasileiro Robinho, os holandeses Arjen Robben, Ruud van Nistelrooy
e o italiano Fabio Cannavaro. Entre os 24
atletas do elenco, são 16 estrangeiros e apenas 8 espanhóis no time que participou
do Campeonato Espanhol, talvez o mais
forte de todos os campeonatos nacionais.
Porém, se prevalecer uma nova regra
apresentada agora pela Fifa (Fédération
Internationale de Football Association),
entidade máxima do futebol, que restringe a cinco a quantidade de não-nacionais
no início dos jogos dos clubes, o Real
Madrid terá de se desfazer de muitas de
suas estrelas, perdendo boa parte de sua
fama e, conseqüentemente, da arrecadação.
O mesmo vale para clubes como a
Internazionale de Milão, atual bicampeão
italiano – cujo elenco possui nada menos
que 23 estrangeiros e apenas 5 italianos –,
o Chelsea (18 estrangeiros e 7 ingleses) e o
Barcelona (14 estrangeiros e 8 espanhóis),
por exemplo. Mesmo clubes europeus
medianos, como Manchester City (Inglaterra), Udinese (Itália) e Betis (Espanha),
sofreriam grandes alterações, pois seus
elencos contam atualmente com mais de
dez estrangeiros cada.
A regra da Fifa foi aprovada no fim
de maio. Deve gerar alvoroço entre grandes clubes do mundo todo, mas atingirá
especialmente os poderosos times euro34
SELEÇÕES FRACAS
A medida entraria em vigor de forma
gradual: a partir de 2010-2011 ainda será
permitida a presença de sete estrangeiros
no início das partidas; na temporada 20112012 serão seis.
Em contrapartida, não existirá limite
com relação ao número de atletas estrangeiros sob contrato ou qualquer impedimento nas substituições realizadas (um
técnico pode, por exemplo, substituir três
jogadores locais por estrangeiros durante
o jogo).
A Fifa justifica a alteração com vários argumentos: manter a harmonia entre os times e os clubes nacionais; evitar a perda de
identidade nacional dos clubes – o que deixaria em perigo a formação dos jogadores e
aumentaria as diferenças entre as agremiações,
reduzindo também a competitividade e aumentando a previsibilidade dos resultados;
salvaguardar a formação dos jogadores (esportiva e educacional) e manter o desenvolvimento do futebol.
A decisão foi discutida no 58° Congresso da Fifa, realizado na Sydney Opera House,
na Austrália. Durante o evento, o ex-jogador alemão Franz Beckenbauer, presidente
do Comitê de Futebol da entidade, apontou também o enfraquecimento das seleções dos países que mais contratam estran-
Rafael Hernandes
retratodoBRASIL 13
Getty Images
A LEGIÃO ESTRANGEIRA DO REAL MADRID
seu local de trabalho. O futebol não pode
ser mais forte que o acordo entre os países”, diz Affini.
A Fifa sabe das dificuldades que surgirão. O próprio Blatter disse: “Nós não queremos ir contra as leis existentes. No que
diz respeito à Europa, nós queremos usar
as bases legais do Tratado de Lisboa, o qual
admite a especificidade do esporte e suas
estruturas e organizações e passa a valer em
1° de janeiro de 2009. Nós queremos ir para
uma consulta, não para um confronto.”
NATURALIZAÇÃO É OPÇÃO
Na outra ponta da questão, entre os clubes que formam e vendem jogadores, também deverá haver uma guinada, especialmente no Brasil, um dos maiores fornecedores mundiais de atletas. Beting acredita
que a saída será a procura de “outros mercados”, embora diga que “esses não têm tanto dinheiro”. “Os bons [jogadores] são
sempre bons, continuarão indo para os
melhores times, mas os não-tão-bons, que
atualmente vão de qualquer jeito, irão meretratodoBRASIL 13
nos. Por tabela, para nós será melhor; para
os jogadores, não”, disse, apontando a
menor quantidade de opções de trabalho
para os brasileiros fora do país.
O próprio texto da regulamentação proposta pela Fifa, no entanto, pode ter deixado a solução para o atleta que quiser atuar
no exterior. A norma não exige que o atleta
nasça no país em que pretende jogar. Ele só
precisa ser apto a representar a seleção local,
ou seja, o jogador que se naturalizar poderá
atuar sem restrições. Como o processo de
naturalização não é tão difícil de ser efetuado, a saída parece até óbvia. Existem dois
caminhos para a naturalização: ser filho ou
neto de imigrantes do país desejado ou jogar dois anos por um clube local e nunca ter
atuado por outro selecionado.
“[A naturalização] vai ser a grande tendência, vai ser a grande mudança, aumentando significativamente o número de naturalizações. O grande jogador que tiver a
oportunidade de se naturalizar, ao ver sua
oportunidade na seleção brasileira passar,
vai se naturalizar”, diz Affini.
1
2
3
4
7
8
9
5
6
10
11
REAL MADRID 1 Van Nistelrooy [Holandês] | 2 Casillas
[Espanhol] | 3 Sérgio Ramos [Espanhol] | 4 Pepe [Brasileiro naturalizado português] | 5 Torres [Espanhol] |
6 Diarra [Maliano] | 7 Drenthe [Holandês] | 8 Robinho
[Brasileiro] | 9 Raúl [Espanhol] | 10 Robben [Holandês] | 11 Cannavaro [Italiano]
“A discussão está apenas no começo”,
diz Beting. Para ele, a medida da Fifa deverá entrar em vigor, “mas mais negociada,
não passa assim. Ou será dilatado o período de adaptação ao regulamento ou este
será flexibilizado para algo como ‘5+6’ ou
‘4+7’. A meu ver, a Fifa jogou pesado para
poder ter margem de negociação depois”,
completa.
35
Filosofia:
A VOLTA DE
NIETZSCHE
Friedrich Nietzsche não é um filósofo de fácil
leitura e compreensão. Mas está no rol dos mais
influentes. No Brasil, é possível que ele tenha
mais leitores que outro filósofo alemão de peso,
Karl Marx. Uma busca no acervo virtual da
Livraria Cultura (ver tabela na página seguinte),
a maior do País, mostra que o autor de Assim
Falava Zaratustra aparece na lista dos autores
mais procurados, com mais de 554 livros, contadas as diferentes edições, nas várias línguas.
Na mesma lista, o autor de O Capital tem menos da metade, 224 livros. “A Livraria Cultura trabalha com mais de 2,5 milhões de títulos de livros. Nosso acervo está sempre atualizado tanto com relação a publicações nacionais quanto internacionais. Nietzsche é um
dos mais importantes filósofos do mundo
e sua obra não poderia faltar nas prateleiras
das lojas da Cultura”, afirma Fábio Herz,
diretor comercial da livraria.
A Companhia das Letras, uma das maiores editoras do País, resolveu apostar na
popularização de Nietzsche, com três títulos
dele em sua série de bolso. E se deu bem:
Além do bem e do mal vendeu 43 mil exemplares
desde maio de 2005, quando foi lançado; Humano, demasiado humano vendeu 22 mil desde
o lançamento, em dezembro de 2005; e Ecce
Homo, em cinco meses, desde o lançamento,
neste ano, já vendeu 1.100 exemplares.
Qual o sentido da popularidade atual das
idéias de Nietzsche? Pode ser, diz a professora titular de Filosofia Contemporânea da Universidade de São Paulo Scarlett Marton, a busca por soluções para as mais cotidianas inquietações existenciais humanas. Marton escreveu Nietzsche, das forças cósmicas aos valores
humanos (Editora Brasiliense, 1990). Diz que
a procura pela pregação do filósofo alemão
pode estar ligada não só à busca por respostas
simples mas também a uma tendência de se
delegar a terceiros o próprio destino.
“Estamos nos convertendo – e acho que essa
é a tônica de nossa sociedade hoje – em figuras heterônomas”, isto é, não autônomas,
mas comandadas pelo sistema.
36
Entre as várias características da pós-modernidade, diz ela, uma delas é certo descrédito às grandes narrativas, que caracterizam
as filosofias que querem entender o mundo e transformá-lo. Há forte depreciação
com relação às “visões globais do mundo,
da história”. Isso explicaria “o fato de que
autores como Marx e Hegel, com seus sistemas e visões globais, sejam preteridos em
relação a autores como Nietzsche”, diz
Marton. Ivana Jinkings, da Editora Boitempo, liga a popularidade de Nietzsche ao crescimento do interesse por livros de autoajuda. Essa popularidade, diz ela, “sinaliza
um mal-estar da população, uma fragilidade das pessoas dentro do capitalismo. E
elas tentam resolver suas mazelas de modo
individual”. É uma forma, segundo
Jinkings, “de canalizar angústias para o
consumo desenfreado, no sentido de buscar em leituras ‘fáceis’ e ‘reconfortantes’ um
sentido para uma vida ingrata e difícil”.
BOOM DA AUTO-AJUDA
“Autores como Maquiavel, Sun Tzu,
Platão, Freud e Nietzsche são usados por esse
ramo editorial como ‘autoridades’ da autoajuda, para dar um verniz mais ‘científico’, o
que representa somente uma forma perversa
de vender mais”, diz Jinkings. Para ela, as interpretações dadas a esses intelectuais nessas
obras de vulgarização são “muito pobres” e
“não-condizentes com a importância deles no
pensamento social”.
O historiador Voltaire Schilling tem interpretação parecida: “A verdadeira literatura
do individualismo dos nossos dias é a autoajuda, e isso se deve não ao capitalismo, mas
ao declínio das grandes religiões, do catolicismo e do protestantismo.” Antigamente, diz
ele, “as pessoas tentavam se ‘salvar’ pela leitura do catecismo, de trechos da Bíblia ou de
livros de orientação religiosa. Hoje é por essa
enorme produção de auto-ajuda”.
Em defesa do que seria o verdadeiro
Nietzsche, Scarlett Marton salienta que “não é
O pensador do pessimismo
e da decadência está,
mais uma vez, no topo da
lista dos mais queridos
Priscila Lobregatte*
Nietzsche que se privilegia, mas certa imagem
que está sendo associada a ele”. Segundo a
professora, desde a morte do filósofo, “uma
quantidade enorme de imagens foi colada à
sua figura”. A professora usa como exemplo
a classificação de “pensador irracionalista”, que
ela não aceita, mas que, diz, “cai como uma
luva nesse momento em que são privilegiadas as emoções em detrimento de uma compreensão mais global da realidade”. Ela acredita que, na forma como é apresentado,
Nietzsche está “inteiramente domesticado” e
“esvaziado do seu poder contestador”.
Nietzsche nasceu em 1844 e morreu em
1900. Em 1872, teve seu primeiro trabalho
publicado, O Nascimento da Tragédia, e passou os últimos 11 anos de sua vida em estado catatônico, perturbado mentalmente. Sua
vida intelectual, portanto, transcorreu durante
os anos da consolidação do estado alemão,
proclamado em janeiro de 1871, depois da
vitória na guerra contra a França. O fim dos
séculos XVII e XVIII tinha sido marcado
pelas revoluções burguesas – a inglesa, a americana e a francesa. Era uma época de demolição do pensamento feudal e de ascensão
das idéias liberais, burguesas. Ali pela metade do século XIX, abriu-se outra época,
marcada pelas revoluções proletárias. Seu
primeiro grande marco foi a onda revolucionária de 1848, que se espalhou da França para
a Europa; o outro grande sinalizador da nova
época foi a Comuna de Paris, quando, em
1871, o operariado parisiense tomou o poder na cidade e o manteve por 72 dias, de 18
de março a 28 de maio daquele ano. Nietzsche
defendeu o massacre da Comuna e foi um
retratodoBRASIL 13
propagandista do fascismo, o que, evidentemente, ele não foi.
O aproveitamento das idéias de
Nietzsche pela direita não é arbitrário. A crítica do capitalismo pode ser feita de várias formas e a dele serviu e ainda serve a muitos
conservadores. Nietzsche nunca disfarçou
suas posições elitistas. Para ele, a cultura é
um privilégio da aristocracia, e sistemas como
a democracia ou o socialismo seriam expressão da “decadência humana”. Ele acreditava
que a construção de uma sociedade “elevada”, liderada por übermenschen, como se diz
em alemão – algo que muitos traduziram
como “além do homem” –, está naturalmente alicerçada sobre a escravidão. “Uma
cultura superior só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos”,
escreveu Nietzsche. E completou: “Ou, para
dizê-lo com palavras mais fortes, a casta do
trabalho forçado e a do trabalho livre.”
Cassio Loredano
DESPREZO DA RAZÃO
feroz adversário da democracia e do socialismo. Na Alemanha, a novidade política era o
grande crescimento do Partido Social Democrata, da corrente socialista formada por Marx
e Engels, fundado em 1863.
O fim do século XIX na Europa foi também o tempo da germinação das idéias fascistas. Elizabeth, irmã de Nietzsche, por
exemplo, que cuidou dele durante seus últimos 11 anos e foi responsável pela edição
final de obras que ele deixara sem publicação
(principalmente o livro A vontade de poder), é
acusada por alguns críticos de ter editado alguns textos de Nietzsche de modo a apoiar
suas idéias protofascistas. Junto do marido,
Bernard Förster, Elizabeth trabalhou para
fundar uma colônia ariana, anti-semita, chamada Nova Germânia, no Paraguai. Ela teria sido uma das pessoas que ajudaram a
converter Nietzsche de um pensador desiludido com o cristianismo, com o estado geral
do capitalismo e com a perspectiva de democratização da sociedade em sua época num
retratodoBRASIL 13
Em Genealogia da moral (1887), Nietzsche
apresenta um diagnóstico da “decadência”:
“Prestemos atenção aos fatos: o povo venceu, ou ‘os escravos’, ou ‘a chusma’, ou ‘a
horda’, como se quiser chamá-los... ‘Os senhores’ estão liquidados; a moral do homem
comum e corrente triunfou... A ‘redenção’ do
gênero humano (isto é, ‘dos senhores’) vai
pelo melhor caminho; tudo se judaíza ou se
cristianiza ou se aplebéia (que importam as
palavras!) a olhos vistos. E o processo desta
intoxicação em todo o corpo da humanidade
parece impossível de conter...”
Nietzsche, afirma Georg Luckács, encarava os problemas da sociedade de maneira individualista e acreditava que o mundo não
poderia ser compreendido pelo conhecimento humano. “O desprezo do entendimento e
da razão, a glorificação rasa e simples da intuição, a teoria aristocrática do conhecimento, a
repulsa do progresso social, a mitomania etc.
são outros tantos elementos que podemos
descobrir sem dificuldade, com pequenas diferenças, em todo irracionalista”, disse o marxista húngaro em sua obra O assalto à razão.
Ao explicar a concepção que Nietzsche
tinha da realidade, o professor do Departamento de História da PUC-SP Antonio
Rago Filho lembra que, para o filósofo alemão, “os fatos não existem, só as interpretações, porque cada um de nós, tendo a sua
paixão, vê o mundo pela sua ótica”. Para
Nietzsche, diz Rago, a compreensão da realidade objetiva é um mito. Tal posicionamento tem razão de ser. “Nenhum filósofo é inocente”, lembra Rago. “A irracionalidade é dada pelo sistema do capital de modo
geral. O capitalismo tem alguma racionalidade, mas ele se baseia numa irracionalidade que não pode resolver: não é capaz de
realizar plenamente os indivíduos na forma da universalidade.”
Nietzsche foi um dos fundadores do clima irracionalista que impregnou a filosofia
burguesa após o surto de otimismo que ela
viveu nos seus anos de revolução. A partir
dos anos 1850, quando a população operária
aglomerada nas cidades começou a se desencantar com a democracia liberal, a filosofia
burguesa tornou-se apologética: antes, acreditava no progresso social; depois, passou a
fugir da realidade, a adotar um discurso vazio,
que não estava mais preocupado com as necessidades humanas concretas e com a necessidade de sua superação.
Em artigo publicado na internet e
intitulado “O pensamento de Nietzsche”,
Voltaire Schilling diz que a Comuna de Paris é
um marco para o filósofo. “Onde Karl Marx
viu um momento de bravura popular,
Nietzsche identificou o surgimento de uma
nova barbárie que era preciso deter a qualquer
custo.” A Comuna seria, segundo Schilling, o
ponto de partida para uma série de escritos
que ele desenvolveu ao longo dos 20 anos
seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas, dos anti-socialistas e contra todo
tipo de pregação que visasse à igualdade, tornando-o um apologista da distinção”.
NEM SÓ NIETZSCHE FAZ SUCESSO
A busca pelas obras de Nietzsche, refletida na
grande quantidade de edições que se pode encontrar desse autor numa grande livraria (ver
tabela abaixo), convive, na opinião pública, com
a importância dada pelo leitores aos escritos de
Marx, por exemplo, e a de outros autores de
esquerda. •Se é verdade que existe esse interesse pela obra de Nietzsche, somos agentes e testemunhas de outro interesse seminal pela obra
de Marx e Engels, tantas vezes considerada
moribunda•h, diz Ivana Jinkings, da Boitempo. A
editora, que até o fim do ano deverá completar
a publicação de nove títulos da dupla, investe em
marxistas contemporâneos, como István
Mészáros, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben e
Immanuel Wallerstein. Recentemente, a
Boitempo realizou curso livre sobre a obra de
Marx e Engels que superou a expectativa dos
organizadores: foram 1.500 inscritos e muita
gente na fila de espera.
Número de edições de livros por autor
AUTOR
OBRAS NA LISTA
Friedrich Nietzsche
554
Georg Hegel
429
Martin Heidegger
287
Karl Marx
224
Arthur Schopenhauer
162
Soren Kierkegaard
160
Friedrich Engels
76
Georg Lukács
43
Fonte: Portal da Livraria Cultura [www.livrariacultura.com.br]
37
Reprodução
A Revolução Francesa (ao alto), do final do século XVIII, foi influenciada e influenciou
pensadores importantes, como Rousseau e Hegel. É a era do liberalismo radical. A
Comuna de Paris, oito décadas depois, é de outro período, o das revoltas operárias, que
antecedem a monopolização capitalista. Nietzsche, que viu nos grandes movimentos
populares uma ameaça fatal à cultura da elite, é dessa fase. Suas idéias acabaram
servindo ao nazismo, que chegou ao poder na Alemanha nos anos 1930
38
Politicamente, diz Schilling a Retrato do
Brasil, “Nietzsche era um reacionário, um filósofo que detestava os fracos e as mulheres e
fazia mofa da democracia e dos direitos iguais.
Defendia o surgimento de uma nova elite, a
dos super-homens.”
Schilling acha que Nietzsche “é o maior
derrotado do nosso tempo”, mas “continua
um escritor de charme inabalável”. E um grande vendedor de livros que oscilam entre a consolação para as inquietações e dilemas da pequena burguesia e a defesa intransigente da
hierarquia social.
“Nietzsche coloca como central em sua
obra a vontade de poder, o papel dos grandes
homens. O resto, para ele, é uma massa
amorfa, inerte, acostumada a ser explorada e
pronta para se submeter aos desejos de uma
elite”, afirma o professor de Filosofia na
Unicamp João Quartim de Moraes. Em sua
opinião, o que atrai em Nietzsche é sua oposição ao conformismo. “Ele critica a resignação trazida pelo cristianismo, porém defende
a reação por meio do individualismo e do
estímulo à criatividade individual. É nesse sentido que parece bastante convincente.”
Na visão do professor do Departamento de Psicologia da Fundação Bahiana para
Desenvolvimento das Ciências Milton Barbosa, “os filósofos da desilusão com o homem são uma espécie de projeção crítica da
mentalidade entristecida de nossa época”.
Nietzsche se insere nesse clima. Ele “expõe
suas idéias de uma forma dramática, carregada das perguntas e dúvidas que assolam
a vida das classes médias dos grandes centros urbanos, e sua forma de escrever fascina e inspira”, diz.
Na atualidade, avalia Barbosa, o que faz
sua figura ser tão atraente é o “desejo de ir
além da barbárie que domina o mundo e
de se opor à degradação da vida”.
Mas o que é essa barbárie? As conferências realizadas por Nietzsche na década de 1870,
intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, trazem uma pista do que ele entende por isso: “A formação mais geral, isto é,
a barbárie: eis aí a premissa do comunismo...
A cultura geral passa a odiar a verdadeira cultura...” Ou seja, barbárie é a democratização e
a valorização do trabalhador e das pessoas
comuns, que ele, pejorativamente, encara
como “rebanho”. Para muitas pessoas, essa
saída individual, inócua, é a única que elas conseguem enxergar ou realizar.
*colaborou JOSÉ CARLOS RUY.
retratodoBRASIL 13
realização
Inscreva-se e ganhe:
Uma assinatura da Fórum até
fevereiro de 2009
Um exemplar do livro Geração
de Trabalho e Renda
retratodoBRASIL 13
A revista Fórum e a Fundação
Banco do Brasil vão levar cinco
professores do ensino público
fundamental para participar do
Fórum Social Mundial em janeiro
de 2009, na cidade de Belém (PA).
Serão premiadas as melhores
propostas de difusão do conceito
e das experiências de Tecnologia
Social na comunidade.
PARTICIPE
39
40
retratodoBRASIL 13
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