doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | N O 13 TRABALHO: O MAL ESTÁ NO AMBIENTE REPORTAGEM: 40 ANOS DEPOIS, O RETORNO AO RIO DOS PEIXES FILOSOFIA: POR QUE NIETZSCHE FAZ SUCESSO? POLÍTICA: À SOMBRA DO ESCÂNDALO DANTAS Até agora, a espalhafatosa Operação Satiagraha, que pretendeu expor oretratodo submundo das finanças e da política, mais escondeu do que revelou BRASIL 13 1 A cultura brasileira vai mostrar sua cara. Estão abertas as inscrições para projetos culturais que receberão patrocínio da CAIXA em 2009. Entre no site da CAIXA, consulte os editais e inscreva seu projeto. A CAIXA quer ver o Brasil inteiro aplaudindo a sua arte. Relação de editais e datas de aberturas s Ocupação dos Espaços CAIXA Cultural 21/7 a 5/9 s Festivais de Teatro e Dança 25/8 a 26/9 s Programa Artesanato Brasil 25/8 a 26/9 s Programa CAIXA de Adoção de Entidades Culturais 27/10 a 28/11 s Programa de Revitalização do Patrimônio Histórico e Cultural Brasileiro 27/10 a 28/11 Para mais informações, acesse o site: caixa.gov.br/caixacultural CAIXA. O banco que acredita nas pessoas. 2 retratodoBRASIL 13 doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$6,00 | N O 13 | AGOSTO-SETEMBRO 2008 Ponto de vista ALÉM DA SATIAGRAHA O governo vai ignorar o debate por trás do afastamento do delegado Protógenes Queiroz? 05 CARTA AO LEITOR Política À SOMBRA DO ESCÂNDALO DANTAS A Operação da PF para expor o submundo das finanças e da política mais escondeu que revelou Raimundo Rodrigues Pereira 06 Nesta edição, Retrato do Brasil inicia uma reforma para ser completada até fevereiro do próximo ano. O número de páginas da revista cresceu das 32 que tivemos nas 12 últimas edições mensais para as 40 da edição atual e, ao final do processo, deve chegar a 64. A cada dois meses, a revista deve ganhar mais oito páginas. Outra mudança importante é que Retrato do Brasil deixou de ser monotemática, para ter um leque mais amplo de assuntos. Ao mesmo tempo, procura uma apresentação visual mais aberta, mais elaborada. A revista quer ganhar público, mercado. Precisa ser mais forte para manter sua independência, sua política editorial central de examinar os fatos mais candentes e mais relevantes da vida social nos seus aspectos políticos, econômicos e culturais. Retrato do Brasil continua dizendo, com convicção, que não se faz jornalismo fora do mundo material, a partir do céu, como os anjos, sem tomar partido, sem um ponto de vista. E o nosso é o de contribuir para a elevação dos padrões de vida material e cultural das classes e camadas sociais mais pobres: os operários, os camponeses, as classes médias trabalhadoras, os pequenos e médios empresários. Reportagem DE VOLTA AO RIO DOS PEIXES Nosso repórter retorna à aldeia dos kaiabi. Da primeira vez, acompanhava uma operação dos irmãos Villas Boas. Agora, o Mato Grosso que ele conheceu, 42 anos atrás, não existe mais Carlos Azevedo 10 Trabalho O MAL ESTÁ NO AMBIENTE Mudança de método aumenta o número de registros de acidentes e ajuda a identificar os locais de trabalho doentios Tania Caliari 24 Educação NEGÓCIO SUPERIOR O ensino universitário transformou-se, nos últimos anos, num empreendimento para os grandes capitais Verônica Bercht 28 Livros HISTÓRIA DAS GUERRAS PRIVADAS A Colômbia e o Iraque são apenas dois exemplos do espetacular ressurgimento dos exércitos mercenários Renato Pompeu 31 Futebol A PÁTRIA DAS CHUTEIRAS Uma nova regra da Fifa ou desmonta clubes como o Real Madrid ou vai levar muito jogador a mudar de nacionalidade Rafael Hernandes 34 Filosofia A VOLTA DE NIETZSCHE O pensador do pessimismo e da decadência está, mais uma vez, no topo da lista dos mais queridos Priscila Lobregatte 36 EXPEDIENTE REDAÇÃO SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira • EDIÇÃO Armando Sartori • REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht • COLABORAM NESTA EDIÇÃO José Carlos Ruy • Priscila Lobregate • Renato Pompeu • EDIÇÃO DE ARTE Ana Castro • Pedro Ivo Sartori • REVISÃO Silvio Lourenço • Marco Bortolazzo • OK Lingüística VENDAS [[email protected]] GERENTE Daniela Dornellas • REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas ADMINISTRAÇÃO Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho • Gabriel Carneiro Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. 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Folha Imagem Ponto de vista: O delegado Protógenes Queiroz foi afastado do comando da Operação Satiagraha depois de um grande tumulto na Polícia Federal (PF). Ele e seu superior na organização, o delegado Paulo de Tarso Teixeira, desentenderam-se violentamente, por telefone, nas horas que antecederam a operação. Depois houve uma sessão de lavagem de roupa-suja na PF em São Paulo, de três horas, gravada. Pelo que sabe Retrato do Brasil, na reunião, em meio a desaforos e palavrões, em certo momento alguém até exigiu que o outro pusesse as mãos na mesa, como se o advertisse para não sacar o revólver. Depois do encontro, Queiroz protocolou no Ministério Público uma reclamação. A PF está dividida, portanto. Que rumo seguirá a investigação? Manterá o seguido por Queiroz ou escolherá outro? A Satiagraha é a seqüência de duas outras investigações espetaculares. A primeira é a do Opportunity Fund, um fundo de aplicações financeiras do banco nacional Opportunity, de Daniel Dantas, sediado nas Ilhas Cayman, reservado para não-residentes no Brasil e que teria sido utilizado indevidamente por brasileiros, a partir do fim dos anos 1990. Essa investigação desembocou numa outra, do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a do “mensalão”, referente a empresas comandadas por Dantas a partir dos negócios do Opportunity – Brasil Telecom, Telemig e Amazônia Celular – que teriam despejado perto de 130 milhões de reais na conta do Partido dos Trabalhadores, com o objetivo de corromper a política brasileira pelo suborno sistemático – regular, mensal – de muitos políticos. O relevante para a investigação, após a saída de Queiroz, parece-nos, é manter o projeto original do trabalho: verificar a eventual ligação entre os fundos supostamente ilegais do Opportunity em Cayman, as retratodoBRASIL 13 privatizações e o “mensalão”. Como mostramos a seguir, o erro de Queiroz foi o de abandonar esse caminho e percorrer outro que o empurrou em direção ao Palácio do Planalto, por considerar ilegais as manobras que o governo faz com o objetivo de criar uma supertele. Um delegado de Polícia Federal não pode tomar a decisão de fazer uma investigação dessas. Se necessária, uma resolução dessas cabe ao Congresso Nacional, e o instrumento para a investigação é a Comissão Parlamentar de Inquérito. Não é uma decisão policial e local. É uma decisão nacional e política. Por que a investigação de Queiroz, agora sob outra direção, não parte de uma crítica do trabalho já feito? Por que, por exemplo, a PF não divulga suas conclusões tentando resolver, pelo sim ou pelo não, os vínculos das empresas telefônicas então controladas por Dantas com o “mensalão”? A jornalista Andrea Michael, da Folha de S.Paulo, contou que o laudo preliminar do disco fixo do servidor do Opportunity, feito logo depois que ele foi aberto, no início de 2007, não descobriu vínculo entre uma coisa e outra. É isso ou é o oposto disso? O delegado Queiroz, mesmo sem pedir o indiciamento de Andréa no seu relatório final, quis prendê-la, alegando que a PF tem indícios para considerar necessária a abertura de inquérito policial a seu respeito. A PF deveria se pronunciar sobre esse ponto: afinal, a jornalista é ou não suspeita? Queiroz estava certo ou errado? O QUE FARÁ A PF? O ministro da Justiça, Tarso Genro, e a direção da PF procuraram adotar, com palavras, um tom elogioso com relação à investigação de Queiroz, que teve, de modo geral, ampla e favorável repercussão, tanto na imprensa conservadora quanto em publicações do campo democrático progressista, como o semanário Carta Capital. Na prática, porém, as palavras do governo não coincidem com o fato básico: Queiroz foi afastado. E o que se precisa saber é se a PF vai tornar a investigação mais objetiva, de fato, ou não. Da forma como foi encaminhada, a Satiagraha seguiu objetivos, conservadores e retrógrados, do delegado Queiroz, que passou a investigar pessoas, e não problemas. A Polícia Federal brasileira tem sido muito ativa. Nos dois governos do presidente Lula até agora, entre o início de 2003 e meados de julho deste ano, fez 590 operações, que levaram à prisão cerca de 9 mil pessoas. E a Satiagraha (do sânscrito “firmeza da verdade”), deflagrada com três centenas de agentes, buscas e apreensões em mais de 50 endereços e a prisão de uma dúzia de figurões, seria o seu momento de glória. No começo, os investigadores tinham o disco fixo do servidor do Opportunity. Com as buscas e apreensões do dia 8, estima-se que eles têm agora os discos fixos de mais de 200 computadores. Têm ainda, aproximadamente, 55 mil horas de grampos telefônicos. Para muitos, o delegado Queiroz é o último herói nacional. Suas idéias, portanto, têm repercussão e devem ser analisadas. Ele acha que “a cada dia que passa as instituições ficam mais desprotegidas”, diante do crime organizado, dos mafiosos, do terrorismo. E que, para combater essas ameaças, a PF deveria ter autonomia e ser uma instituição independente do Poder Executivo. E, como defendeu em depoimento na Câmara dos Deputados, ter mais liberdade de acesso aos modernos métodos de comunicação, como a telefonia e a internet, utilizados pelos criminosos e por pessoas ligadas a eles e que também deveriam ser escrutinadas, com mais liberdade, pela polícia. O trabalho do delegado Queiroz foi precário. Suas teses sofríveis foram vendidas à opinião pública com a manipulação das escutas telefônicas e da mídia. Com a prisão de graúdos e sua exibição, algemados, para as câmeras da Rede Globo – que, providencialmente, estavam sempre ao lado da PF –, a justiça estaria sendo, finalmente, igual para todos. O conteúdo parcial das gravações que a polícia fez, embora protegidas por segredo de justiça, surgiram misteriosamente na mídia – no prato já feito, a manchete já pronta – como a verdade. Não é fácil achar a verdade, no entanto. E procurá-la, principalmente espionando as pessoas, com certeza não é o caminho. Não se faz justiça examinando todas as palavras de pessoas definidas como bruxas de antemão. Não se pode esquecer de que palavras não bastam como prova. Se o cadáver não existe, mesmo que alguém confesse ter matado uma pessoa não pode ser considerado criminoso. A grande mudança que tirou a Justiça das trevas da Idade Média foi justamente a de investigar crimes, definidos por leis, a partir de provas materiais concretas. 5 Política: À SOMBRA DO ESCÂND O delegado Protógenes Queiroz, comandante da Operação Satiagraha, ação da Polícia Federal (PF) que prendeu no dia 8 de julho, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas, o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, vê a investigação como um clímax. “Foi praticamente um grito que saiu da garganta de todos os brasileiros que se sentiam oprimidos por estarem, aí sim, algemados por poderes que até então não identificamos”. “A sociedade estava com isso entalado na garganta”, disse ele à Folha de S. Paulo no início de agosto. Para muitos, o trabalho do delegado Queiroz permitirá chegar ao fundo do poço de duas tramas essenciais. Uma, financeira, a dos fundos em “paraísos fiscais” para aplicações de “não-residentes”, uma fachada por trás da qual se esconderiam, de fato, grandes investidores brasileiros. Outra, política, a do “mensalão”, movimentação ilegal de recursos pelo Partido dos Trabalhadores por meio da qual teriam sido feitos depósitos mensais regulares para a compra de apoio de parlamentares ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato. Daniel Dantas seria o elo entre as tramas. Foi o gestor do Opportunity Fund, constituído nas Ilhas Cayman para participar no processo brasileiro de privatizações nos anos 1990. E afinal, controlador da Brasil Telecom, Telemig e Amazônia Celular, operadoras de telefonia surgidas naquele processo e que seriam justamente as principais empresas financiadoras, com depósitos somados de 127 milhões de reais. A história da Satiagraha, até agora, com a espalhafatosa operação do dia 8 de julho, com as prisões acompanhadas pela Rede Globo, com o vazamento controlado de informações para a mídia, é um escândalo que esconde questões essenciais. O desenvolvimento da Satiagraha ajuda a descobrir quais são essas questões e porque estão sem resposta. Quando a operação começou, no início do ano passado, considerava-se que o ponto de partida eram as informações do disco fixo do servidor do Opportunity, o computador central do banco. Ele fora apreendido em 2004, durante a Operação Chacal, investigação da Polícia Federal sobre grampos clandestinos que teriam sido realizados a mando de Dantas contra concorrentes e mesmo pessoas como Luiz Gushiken, então ministro da Comunicação Social e Assuntos Estratégicos. E seus 6 segredos haviam sido protegidos por três decisões da Justiça, uma delas da ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, negando pedido feito por Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigava o “mensalão”. Em março de 2007, no entanto, um pedido do Ministério Público Federal de São Paulo foi aceito pela 2a Vara da Justiça Federal no estado e contornou a proibição anterior. O disco fixo foi aberto e seu conteúdo passou às mãos dos investigadores. A partir daí, a PF trabalhou com essas informações e produziu laudos técnicos para serem entregues eventualmente à Justiça, ao final do inquérito. Foram três os laudos, todos eles do Instituto Nacional de Criminalística (INC), da Diretoria Técnica da PF: • o laudo 1351/2008, que examinou o dispositivo de armazenamento de dados do computador e atestou a sua integridade e confiabilidade para uso como prova na justiça; • o laudo 1354/2008, que disponibilizou as informações contidas de forma confiável e acessível para consulta legal; • e o laudo 1773/2008, organizado a partir do anterior, de modo a responder às questões que a investigação formulava. NA LISTA, O SÓCIO As respostas desse último laudo são muito afirmativas. Em resumo, o INC diz que foram identificados 84 aplicadores no Opportunity Fund Cayman, gerido por Dantas do Brasil, mas reservado legalmente para “não-residentes”. E mostra a lista, com empresas e pessoas físicas, estas a grande maioria. E diz mais: que “a maioria absoluta” é de brasileiros. Um dos brasileiros que teve sua aplicação ilegal confirmada no laudo é Luiz Roberto Demarco Almeida, sócio de Daniel Dantas que rompeu com ele no fim dos anos 1990 e o denunciou posteriormente para alguns jornalistas. Demarco, um brasileiro, aplicou 150 mil dólares num dos subfundos do Opportunity em Cayman, o Agressive Equities, e mais 350 mil dólares em outro, o Brazilian Fixed Income Derivatives. O laudo diz também que o fundo movimentou 1,97 bilhão de dólares, no período registrado no computador, de 10/ 12/1992 a 23/6/2004. Esses laudos, no entanto, demoraram: só ficaram prontos em 2008. A essa altura, a investigação já avançara. Trabalhava com uma análise preliminar do disco e, principalmente, com escutas telefônicas de suspeitos, autorizadas pela Justiça em julho de 2007. O comando da operação era então do delegado Protógenes Queiroz. No dia 27 de março, ele substituíra Ézio Vicente da Silva, também delegado da PF de Brasília. Uma semana antes, no dia 20, Silva apresentara ofício ao juiz que autorizara e acompanhava a operação de quebra do sigilo das comunicações de internet do Opportunity. O documento dizia que, nos dados interceptados no período analisado, a primeira quinzena de março, apesar do “enorme volume”, mais de 4 milhões de páginas de internet, “nada foi encontrado em nome de Daniel Dantas, Carlos Rodenburg (ex-cunhado de Dantas), José Dirceu e Nathalia (secretária da irmã do banqueiro). E pedia a suspensão do grampo. Além disso, segundo se soube por artigo de Andréa Michael, publicado na Folha de S. Paulo, o exame preliminar do disco fixo da central de armazenamento de dados do Oportunitty “não continha informações relevantes que pudessem ajudar a elucidar os responsáveis ou beneficiários do mensalão”. O artigo de Michael, publicado no dia 26 de abril deste ano, fez o delegado Queiroz considerá-la pessoa associada ao grupo Opportunity. Ele pediu a prisão temporária da jornalista na jornada espetacular de 8 de julho. O pedido não foi atendido. De qualquer modo, já em meados de 2007, Queiroz não estava mais comandando uma investigação para buscar a conexão dos fundos off-shore ilegais do Opportunity com a má política do “mensalão”. Ele ainda buscava uma conexão de negócios ilegais com má política. Mas esta e aqueles eram diferentes. Os negócios ilegais eram os das “organizações criminosas” de Dantas e de Naji Nahas. E a má política era a decisão do governo federal de incentivar a formação de uma tele verde-amarela. Como ele processou essa mudança? A conjuntura talvez ajude na resposta. Em meados de 2007, a ministra Dilma Rousseff encomendou ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) um estudo para realização desse negócio. Na mesma época, a 26 de julho, Queiroz pediu à Justiça a quebra do sigilo telefônico de cerca de 20 pessoas ligadas a Dantas e Najas. Dantas e Najas tinham uma relação que, em vários aspectos, convinha ao enredo imaginado por Queiroz. Os dois estavam envolvidos com negócios tidos como escusos. E também com a telefonia: Dantas, como já se retratodoBRASIL 13 ALO DANTAS retratodoBRASIL 13 Raimundo Rodrigues Pereira Mas ela não estava apenas ameaçada de ser engolida pelos outros grandes grupos. Estava corroída por ferozes brigas internas, todas envolvendo Dantas. A Telecom Italia, depois de um esforço para controlar a companhia, vendera sua parte no bloco para se concentrar na Tim. E se engalfinhava com o Opportunity por conta de um suposto sobrepreço num negócio de telefonia no sul do Brasil. Ambas as empresas contrataram equipes de espiões e acabaram na Justiça, acusadas de efetuarem grampos clandestinos aqui e na Itália. FUNDOS CONTRA DANTAS O Citibank queria deixar a sociedade e embolsar dinheiro para curar feridas da enorme crise das hipotecas imobiliárias no seu paíssede, os EUA. Tinha um acordo com Dantas e mandavam na BrT por meio dele, desde a privatização, à revelia dos fundos de pensão das estatais, também sócios da empresa. Mas, em 2007, o acordo estava rompido. No início de 2005, numa reunião em Cayman, o Citi derrubara Dantas do comando do Citibank Venture Capital/Opportunity Equity Partners, subfundo do fundo Opportunity na ilha e controlador da BrT, da Telemig Celular e da Amazônia Celular. Os fundos de pensão das estatais também estavam acesos na briga. No novo governo petista, eles, também dirigidos por petistas, buscaram derrubar Dantas do comando do fundo nacional, organizado para participar da BrT, à semelhança do fundo de Cayman. A direção de Dantas neste fundo – o CVC Equity Partners FIA – tinha sido engolida por eles a contragosto no governo anterior, tucano. Em outubro de 2003, já haviam afastado Dantas da gestão desse fundo. A partir de então, buscaram uma aproximação com o Citi. E a oportunidade de um grande acordo surgiu com a idéia do novo arranjo da telefonia imaginado pelo governo para criar a supertele verde-e-amarela. Citi e Opportunity venderiam suas participações na BrT para a Oi, novo nome do grupo formado pela Telemar e sua operadora de telefonia celular. A BrT e a Oi se fundiriam para formar a tele brasileira. E o BNDES e os fundos das estatais se reagrupariam dentro da nova tele, a ser controlada pelos donos da Oi – os grupos de Carlos Jereissati e AndradeGutierrez. O argumento é que isso criará uma tele verde-amarela, uma nova multinacional brasileira, numa área estratégica, tecnológica. Folha Imagem sabe, e Najas, como logo se verá, após um exame do ninho de serpentes em que se tinha transformado o setor de telefonia brasileiro depois da privatização. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso privatizou o sistema Telebrás falando em acabar com o monopólio na telefonia. De fato, premido por uma dívida externa galopante, vendeu o bloco das estatais brasileiras – bastante dividido do ponto de vista político, pois os Estados administravam várias de suas partes – para um punhado de monopólios. No fim de 1998, quando a privatização ocorreu, o governo queria que a venda das telefônicas estatais fosse feita a grupos de fora, que trouxessem dólares para evitar a quebra do País – que acabou, afinal, acontecendo logo depois das eleições daquele ano. A telefonia fixa estatal foi dividida para a privatização em quatro grandes áreas econômicas. O governo queria que as quatro ficassem com estrangeiros. Três acabaram ficando: uma com os espanhóis da Telefônica; outra, a Brasil Telecom (BrT), com um consórcio no qual estavam presentes a Telecom Italia, o Citibank e os grandes fundos de pensão das estatais; e uma terceira, a área da telefonia fixa internacional, com o mexicano Carlos Slim, da Telmex. Só uma, chamada de Telemar, ficou com grupos brasileiros, Jereissati e Andrade-Gutierrez. Aparentemente, era para ficar cada um na sua área. Mas uma disputa enorme entre os grupos se desenvolveu, graças especialmente à telefonia celular, que acabou se tornando o motor do mercado. A Telmex passou a operar na telefonia móvel com a Claro, a Telefônica com a Vivo, a Telemar com a Oi e a Telecom Itália com a Tim. E cada grupo procurou avançar sobre o mercado do outro, porque as novas condições técnicas e a convergência dos diversos meios de comunicação tornaram isso inevitável. Em 2007, o delegado Queiroz, tudo indica, encontra Dantas e Nahas nesse campo de batalha, numa disputa dentro de um grupo perdedor, a BrT. Dantas fora o controlador da BrT na era dos tucanos. Baiano, muito ligado a financistas como Pérsio Arida, que fora presidente do Banco Central no início do governo Fernando Henrique e em 1998 estava no Opportunity, saiu desse processo como um dos grandes dirigentes da telefonia brasileira. A BrT era a grande empresa que comandava. A Operação da PF para expor o submundo das finanças e da política mais escondeu que revelou 7 Dantas e Nahas, inicialmente, estão em campos opostos na briga dentro da BrT. Nahas é uma espécie de eminência parda do presidente da Telecom Itália, Tronchetti Provera. Mas, em 2007, a situação era outra. No ano anterior, Nahas já trabalhara, por uma comissão gorda garantida por Provera – a revista CartaCapital fala em 20 milhões de euros – para mediar um acordo com Dantas, que acaba não saindo. Em abril de 2007, Dantas pareceu ter percebido uma saída no negócio da tele patriótica. Contratou, então, Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado histórico do PT e dos movimentos de direitos humanos, para servir de conselheiro nas inúmeras brigas judiciais em que estava envolvido e de mediador na negociação de venda de suas participações na telefonia. Greenhalgh é amigo de Dilma Rousseff, a ministra da Casa Civil, que está no centro da articulação do negócio da tele brasileira. É amigo também de Gilberto Carvalho, chefe do gabinete do presidente Lula. E ainda de José Dirceu que, ao contrário de Gushiken, inimigo frontal de Dantas, recebeu o banqueiro no Palácio do Planalto quando ainda era chefe da Casa Civil. O PALADINO QUEIROZ O segundo semestre de 2007, nesse contexto, é a hora em que se prepara o acerto geral. Nahas espera negócios e comissões. Dantas quer sua parte na telefonia, que estima em 1 bilhão de dólares. E o delegado Queiroz se vê como o defensor do bem, no meio de uma disputa maligna. O relatório do delegado Protógenes Queiroz, no qual expõe os motivos pelos quais pede ao juiz autorização para as prisões que comandará no dia 8 de julho, tem 245 páginas. Cerca de 40 dos laudos técnicos preparados pelo INC da PF, com apoio do Banco Central e da Receita Federal. É a parte mais importante do trabalho. O restante vem das escutas telefônicas, basicamente, ou é inspirado por elas. São resumos de diálogos, algumas vezes seguidos de análises localizadas, outras, de observações de pretensões mais amplas. Não poucas vezes, Queiroz aparece, em suas próprias palavras, sempre num português claudicante, como um paladino. “Ante as ameaças de corsários saqueadores das riquezas do nosso país, deixo aqui registrado que o amanuense, que ora subscreve a presente peça, e por cautela alerto aos incautos, seja de forma individual ou organizados criminosamente para tal finalidade, que estarei 8 de prontidão, comparado a um integrante da Brigada dos Tigres, fazendo um acompanhamento detalhado do futuro Fundo Soberano e ao menor movimento de ações ilícitas de tais reservas cambiais ou fraudes com os papéis que o governo federal pretende lançar começaremos desde já uma nova e complexa investigação”, diz ele a certa altura. Com as escutas, Queiroz reconstrói Naji Nahas. O investidor tinha quebrado a si próprio e à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em 1989. E, os diálogos mostram, Nahas continua numa espécie de pântano, cercado por uma dúzia de doleiros, com seus negócios, geralmente menores, e por políticos aparentemente decadentes, como o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, que os grampos mostram quase como um pedinte, sempre a lhe implorar uns tantos milhares de dólares a mais do que ele fornece, por motivos não se sabe bem quais são. Queiroz eleva Nahas a outro nível. A questão do Fundo Soberano mostra como é feita essa proeza. Num dos relatórios com que pede ao juiz a prorrogação dos grampos dos telefones de Nahas, dedica 33 linhas ao assunto. Diz, então, um disparate atrás de outro. Um exemplo: que o mecanismo do Fundo Soberano foi adotado por alguns tipos de países, entre os quais “grandes produtores de petróleo”, “cuja característica básica é a unicidade entre atividade pública e privada, ou seja países totalistas onde alguns ‘empresários’ são considerados os titulares dos poderes políticos do país”. O relatório conclui essa parte com uma frase espetacular. “Conforme acima, o jornalista Leonardo Attuch chega a perguntar a Naji R. Nahas se já pode divulgar Nahas como a pessoa que está à frente do Fundo Soberano. Mas Nahas pede calma, diz que por enquanto não seria conveniente”. Queiroz sente que os fatos em seu poder são poucos para comprovar uma sociedade entre Dantas e Nahas. Mas, não se intimida. “Assim, o que temos de concreto é que Daniel V. Dantas prestou depoimento na Itália e está utilizando esse fato para criar uma cortina de fumaça onde Nahas seria um corruptor de autoridades, mas na verdade ambos continuam articulando nos bastidores uma forma de desacreditar, principalmente, a Polícia Federal na condução das investigações”. Que fatos provam essa articulação ele não diz. Mas vai em frente. Luiz Eduardo Greenhalgh teve seus telefones grampeados a partir de 31 de março deste ano. Essa decisão parece ter sido toma- da depois da análise do diálogo gravado no dia 26 de março deste ano, às 15h53m01s, a partir de um telefonema de Humberto Braz, executivo que foi diretor da BrT quando a empresa era controlada por Dantas, para o advogado petista, então, assessor do banqueiro. O resumo apresentado no relatório tem oito linhas. Ele é incompreensível. Diz que os dois “tratam sobre o negócio das teles, na proposta da Telemig, estariam aceitando que recebecem este ‘cheque’ de cada um (dos interessados) está contribuindo que vale US$60,000,000.00 (sessenta milhões de dólares americanos); mas em compensação querem 1/3 da Telemig para levar à arbitragem” (esse 1/3 equivale a 110 milhões), Humberto diz que eles estão pra receber 260 e se for para pagar 110 estarão pagando com “nosso dinheiro”, e que a diferença para eles é de 20 milhões, aproximadamente 0,3% do total”. “Gomes [que seria o apelido de Greenhalgh no grupo Dantas, continua o relato do grampo] diz que os compradores estão ‘orientados’ ‘para resolver’ o “nosso”problema. ‘Gomes’ diz que vai fechar hoje”. Logo a seguir no relatório aparece a “Análise”. “Aparenta que o valor que estava sendo discutido trata do “custo”para o trabalho de “tráfico de influência”. “Então, a divergência não estava no valor do negócio e sim em quanto cada parte interessada estaria disposta a pagar para criação da ‘SuperTele’ exigindo os lobista a quantia de US$ 260,000,000.00 (duzentos e sessenta milhões de dólares americanos), valor que possivelmente irá constituir ‘caixa dois’ de alguma campanha eleitoral”. INTERPRETAÇÃO ABSURDA Esse resumo, depois das prisões de 8 de julho, vazou para a imprensa. Os jornais o publicaram. Não o texto estropiado original; mas corrigindo os erros de português e tentando dar sentido à algaravia. Diz, por exemplo, o diário O Globo em 23 de julho no artigo “Lobby de US$ 260 milhões”, com manchete de página inteira: “Relatórios do Serviço de Inteligência da Polícia Federal aos quais O GLOBO teve acesso, apontam que o grupo de lobistas suspeitos de ligação com o banqueiro Daniel Dantas – integrado, segundo a PF, pelo ex-deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh – exigiu em março deste ano US$ 260 milhões para viabilizar a criação da supertele (fusão entre a Brasil Telecom e a Oi, que foi assinada em abril), junto ao governo federal. O dinheiro seria usado posteriormente para a formação de retratodoBRASIL 13 Angeli caixa dois para a campanha eleitoral, acusa a PF”. Diz ainda o jornal: “Segundo a PF, Opportunity e Citi deveriam arcar cada um com US$ 130 milhões”. Na conversa grampeada entre Braz e Greenhalgh, continua o diário, “a PF constata que a proposta pendente era do Citi, que envolvia um terço do valor da Telemig”. O bom senso, no mínimo, sugeriria aos editores desses artigos que algo estava errado na narrativa da PF: Braz e Greenhalgh estavam trabalhando para Dantas, profissionalmente. Queriam receber, por fora, de Dantas, mais 130 milhões de dólares? E do Citi, adversário de Dantas, outros 130 milhões? E num negócio global de menos de US$ 1 bilhão? Parece absurdo. Não se deveria, antes de publicar a pataquada suspeita com tanto destaque, ouvir a versão de Greenhalgh, que disse em nota, que a conversa entre ele e Braz se referia ao negócio por inteiro e não a qualquer comissão? Que os 260 milhões “nosso”, a que Braz e ele se referiam, tratava da parte à qual estavam vinculados – ou seja, à parte do Opportunity? retratodoBRASIL 13 Outro exemplo da qualidade das análises enviadas pela PF aos juízes para convencê-los da necessidade de manter os grampos telefônicos vem de um telefonema de Humberto Braz de 21 de maio, 14h17m03s. Braz fala com um tal Gilberto. São 13 falas curtas. Usaremos B para Braz e G para Gilberto. “G: (inaudível). B: Fala Giba... G: E aí, tudo bem? B: Tudo bem, deu uma enrolada aí, a Andreia te passou um negócio? G: passou... B: E aí é seguinte... e eu não vou né... e ele vai viajar, então vai ficar pra semana que vem mesmo, e o que ficou acertado que se por acaso você tiver com ele ou qualquer coisa que o valha, é o seguinte: tá decidido aqui, fazer em duas vezes a consultoria dele lá... “conta curral”... G: Tá. B: 50% já e 50% na hora que for aprovado lá no meio ambiente. G: Tá. B: E ir direto as... G: Oi...alô... alô... Fim da ligação”. HIPÓTESE RIDÍCULA Depois vem a “Analise”: “Humberto José da Rocha Braz conversa com Gilberto (possivelmente Gilberto Carvalho, assessor do gabinete da Presidência da Repúbli- ca e pessoa diretamente vinculada a José Dirceu de Oliveira Silva, ex-deputado federal) e diz que a Andrea (possivelmente Andrea Michael, jornalista da Folha de São Paulo) vai passar para ‘ele’ (José Dirceu) aquela matéria que está muito bem feita. Que será realizado o pagamento referente a “Consultoria”de José Dirceu 50% agora e 50% quando for aprovado lá no “Meio Ambiente” (aparentemente se refere ao Ministério do Meio Ambiente) e a “consultoria” seria paga em uma “conta curral”, podendo significar pagamento no exterior com sonegação de impostos e evasão de divisas”. O que esse grampo e sua análise provam? A partir do fato – os diálogos – é feita uma dezena de conjecturas: Gilberto é o assessor do presidente; Andréa é a jornalista da Folha; José Dirceu está na parada; “conta curral” é pagamento no exterior. Por que as conjecturas são feitas? Evidentemente, porque o analista parte do pressuposto de que existe, na história que investiga, um vínculo Braz, Gilberto Carvalho, José Dirceu. E sabe da matéria da Folha feita por Andréa Michael, considerada suspeita pela direção da Operação Satiagraha. É crime levantar essa hipótese? Não é: é exatamente tarefa do analista levantar hipóteses. É uma hipótese boa ou ruim? É um bom ou um mau analista? Parece ser uma hipótese simplesmente ridícula. Nas 400 páginas do trabalho da equipe de Queiroz que Retrato do Brasil leu, ressalvados os trechos referentes aos laudos técnicos do INC citados, o trabalho de análise, que orienta a busca dos dados, parece merecer igual avaliação: é ridículo. A hipótese básica de que existem duas organizações criminosas, a de Dantas e a de Najas, encimadas por uma terceira, cuja cabeça aparentemente estaria no Palácio do Planalto não se sustenta nos fatos. E como a hipótese mãe é ruim e o trabalho é mal feito, as coisas não andam. Ficam uns arapongas escrevendo relatórios sofríveis, que provavelmente ninguém leva mesmo a sério e que acabam servindo basicamente para levar fofocas a jornalistas que, mal editados, acabam tornando a parte política da imprensa conservadora brasileira ruim como ela é. E uma investigação relevante, como a dos fundos off-shore inventados pelo Banco Central do Brasil para ajudar a escancarar as fronteiras econômicas nacionais, para a qual a PF poderia dedicar tempo e talento, fica esquecida. 9 Reportagem: Mapa do Mato Grosso em 1966 mostra a floresta intacta e o roteiro da viagem 1966 Floresta Floresta de transição Cerrado Pantanal Rios principais 10 retratodoBRASIL 13 DE VOLTA AO RIO DOS PEIXES Nosso repórter, Carlos Azevedo, retorna à aldeia dos kaiabi. Da primeira vez, passou 67 dias na mata. E acompanhava uma operação dos irmãos Villas Boas para levar índios da tribo para o Parque Xingu. Agora, o Mato Grosso que ele conheceu, 42 anos atrás, não existe mais. E um amigo índio, daqueles tempos, lhe diz que nem sempre os Villas Boas fizeram a coisa certa... Na foto da viagem de 1966, o repórter está ao centro. O kaiabi Canísio, então com 15 anos, é o último à direita retratodoBRASIL 13 Edi Pereira Em julho deste ano, voltei ao rio dos Peixes, norte do Mato Grosso. Em setembro de 1966, eu havia acompanhado o sertanista Cláudio Villas Boas em uma missão de resgate de um grupo de índios da etnia kaiabi, cuja aldeia, Tatu-ã, ficava à margem do rio dos Peixes, afluente do rio Arinos. Eu estava fazendo a reportagem “Resgate de uma tribo”, para a revista Realidade. Na ocasião, 31 índios foram levados para o então Parque Nacional do Xingu, hoje Parque Indígena do Xingu (PIX). O Mato Grosso de 1966 era maior que o estado que atualmente leva esse nome. Em 1977, o antigo Mato Grosso, com mais de 1,2 milhão de km², foi dividido em dois. A parte maior, ao norte, conservou o nome original. A menor passou a se chamar Mato Grosso do Sul. Sempre que me referir a Mato Grosso, mesmo no passado, o leitor deve ter em mente o território atual desse estado. Até porque a história que passo a relatar ocorreu nessa área. Em 1966, o estado contava com 300 mil pessoas em cerca de 30 municípios. Sua economia se baseava na pecuária extensiva e no extrativismo, e a agricultura moderna ainda dava os primeiros passos na região de Rondonópolis. A cobertura vegetal do estado estava praticamente intacta (mapa ao lado). A expedição partiu em agosto, do Posto Diauarum, que fica no rio Xingu, na parte Norte do PIX. Num avião C-47 da Força Aérea Brasileira (FAB), voamos para oeste por quase duas horas, cerca de 350 km, o tempo todo sobre o tapete contínuo da Floresta Amazônica, até chegarmos a um campo de pouso improvisado numa várzea no meio do nada. Esse foi apenas o começo de uma viagem prevista para 10 dias, que se tornou uma peregrinação de mais de dois meses. 11 Desmatamento acumulado: foto do satélite em junho de 2008 indica que no Mato Grosso ainda existem grandes florestas, mas só nas terras indígenas e reservas do governo 2008 Rios principais Estradas principais Desmatamento até 2008 Unidades de conservação Terras indígenas Pantanal 12 retratodoBRASIL 13 Laércio Miranda Canísio e o repórter voltam juntos à cachoeira do rio dos Peixes, 42 anos depois OS MAPAS SÃO CORTESIA DO INSTITUTO CENTRO Hoje, nessa mesma linha reta do nosso trajeto aéreo, não se avista mais floresta, somente pastagens ou terra nua para agricultura, cercando cidades, como Marcelândia, Sinop, Cláudia, Nova Santa Helena, Tabaporã. Atualmente, o Mato Grosso tem 2,8 milhões de habitantes em 141 municípios, é o maior produtor de soja e possui o maior rebanho bovino do País. Em julho passado, acompanhado de um fotógrafo que conheci em Cuiabá, viajei em um carro alugado desde a capital até o município de Juara, 640 km para o norte, o lugar mais próximo da aldeia kaiabi que quero revisitar. Em toda a viagem, a paisagem dominante foi a de campos de lavoura e de imensas pastagens. Pelo caminho empoeirado, encontramos centenas de grandes caminhões e carretas, transportando dia e noite gado, madeira, soja, algodão, milho, álcool. Da margem das estradas se assiste a pelotões de colheitadeiras em marcha sincronizada, fazendo a colheita de milho, algodão e sorgo, que são as produções do meio do ano. Nas mesmas terras, a soja foi colhida entre março e abril. Nesses imensos campos planos de lavoura não se vê uma só árvore por quilômetros. Já nas pastagens, rebanhos de gado nelore pastam o capim-braquiária plantado entre tocos enegrecidos e árvores mortas pelas queimadas. Antes da colonização, essa área do Centro-Oeste, onde se localiza o atual Mato Grosso, tinha uma cobertura vegetal formada em 58% por florestas (5,3 milhões de hectares), que iam da parte central do estado para norte e noroeste, e em 42% pelo cerrado (3,8 milhões de hectares), aí incluída a área do Pantanal, que se estende do centro do território para o sul e sudoeste. A superfície do estado é de 905 mil km² ou 9 milhões de hectares, o equivalente a quase quatro vezes o tamanho do estado de São Paulo. Essas terras vêm sendo rapidamente desmatadas (mapa ao lado). De acordo com números oficiais do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (SemaMT), até 2006, foram desmatados aproximadamente 321 mil km², ou seja, 3,2 milhões de hectares. Portanto, 36% do território do estado. Da área de florestas, foram abaixo 33% (1,72 milhão de hectares). Do cerrado, 40% (1,49 milhão de hectares). O auge do desmatamento no estado se deu entre 2000 e 2007. A maior derrubada foi em 2004, de 118 mil hectares, segundo o projeto Prodes, do Ministério de Ciência e Tecnologia, que realiza o monitoramento da Floresta Amazônica por satélite. Os dados oficiais sobre a ocupação do solo se referem a 900 mil hectares com agricultura (10% do território mato-grossense) e 2,3 milhões de hectares com pastagem (aproximadamente 24%). As terras indígenas ocupam cerca de 1,3 milhão de hectares (14%). As reservas florestais federais, estaduais e municipais somam algo em torno de 310 mil hectares (4%), e os assentamentos de reforma agrária, 420 mil hectares (5%). Outros 3,2 milhões de hectares (35%) são apontados pelo governo do estado como terras não-desmatadas em propriedades privadas. Segundo esses números, portanto, 36% do território foram desmatados, restando 64% supostamente intactos. São números polêmicos, pelo menos no que se refere às florestas. A imagem do desmatamento acumulado até 2008, registrada pela fotografia do satélite, indica que, fora as florestas das terras indígenas e das reservas ou unidades de conservação, restam poucos trechos significativos de floresta em Mato Grosso. DE VIDA, ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIP), QUE DESENVOLVE ESTUDOS SOBRE CONSERVAÇÃO E MANEJO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA retratodoBRASIL 13 QUASE 70 DIAS DE PEREGRINAÇÃO NA FLORESTA Quarenta e dois anos atrás, éramos uma comitiva grande, 21 pessoas, somando Cláudio Villas Boas, sete índios kaiabis, 11 oficiais e sargentos do Para-sar, o fotógrafo Luigi Mamprin e eu. Entre os índios, o lendário cacique Pepori, que, depois de lutas sangrentas com serin13 gueiros, refugiara-se no Parque do Xingu, ao lado dos Villas Boas, e era, segundo Cláudio, o inspirador da idéia de levar todos os kaiabis para junto de si. Viajamos a pé, em fila indiana, por dentro da mata fechada por quatro dias, tropeçando em tocos e raízes, acossados por mosquitos, abelhas e formigas. Acompanhamos o curso do córrego Coatá até encontrar o rio dos Peixes. À sua margem, acampamos por dois dias, tempo para os índios construírem sete jangadas com as quais descemos o rio até chegar à aldeia do cacique Temioni, na região hoje conhecida como Batelão, uns 80 km distantes do ponto de partida. Mas havia outra aldeia mais ao norte que era preciso contatar. Cláudio me pediu que fosse até lá com dois índios e um sargento. Descemos o rio de canoa por três dias. Navegamos uns 60 km até encontrarmos as cachoeiras do salto Kaiabi. A pé, contornamos o salto. No dia seguinte, seguimos caminhando pela mata, pois não havíamos encontrado canoa. Por sorte, topamos com três jovens kaiabis que remavam um bote. Eles nos levaram até a aldeia, 40 km rio abaixo, onde lhes transmitimos o convite de Villas Boas e Pepori para que se mudassem para o Xingu. Dois dias depois, pegamos carona com seringueiros que, em barco a motor, iam até a cachoeira. Depois, contornamos a cachoeira e subimos o rio de canoa a remo por quatro dias até o reencontro com a comitiva na aldeia de Temioni. Dali, partimos em canoas até o local em que foram feitas as jangadas. Na viagem de volta, a comitiva era maior, levava o cacique Temioni e as famílias de sua aldeia, homens, mulheres e crianças, carregados com panelas, cabaças e objetos do velho índio. Cada movimentação exigia uma demorada operação de logística. Com a malária e a fome atacando, a caminhada até o campo de pouso foi mais penosa e demorou sete dias. Felizmente, no acampamento-base havia comida. Porque ainda tivemos de esperar cerca de duas semanas para que o avião viesse para nos levar de volta ao Parque do Xingu. Programada para ser realizada em 10 dias, a viagem havia se transformado numa árdua peregrinação de quase dez semanas. A comida acabou logo, e nossa comitiva viajou a maior parte do tempo assediada por fome e sede, por malária e desconforto, principalmente para os não-índios. Durante todo o tempo, caminhávamos alguns quilômetros por dia, caçando o que houvesse, e dormíamos em redes sob imensas árvores. A imagem que ficou daquela viagem foi a da floresta e de sua onipresença esmagadora. Emagreci oito quilos. JUARA, CAPITAL DO GADO Agora, o fotógrafo e eu seguimos viagem de carro, com ar-condicionado, 500 km por asfalto, 150 km em estrada de terra. À margem da estrada, encontramos a cada passo restaurantes, ainda que de comida sofrível, mas não há possibilidade de passar fome ou sede. O destino imediato é a cidade de Juara, encravada no antigo território dos kaiabis, numa espécie de ilha entre o rio dos Peixes e o rio Arinos. Chego às 9 da noite e avisto uma cidade toda iluminada, com ares modernos. É sexta-feira, o restaurante-boa- Laércio Miranda Na época da estiagem e da pastagem seca, o gado é retirado. As árvores, mortas pela queimada, ainda testemunham que ali existiu uma floresta 14 retratodoBRASIL 13 Fotos: Laércio Miranda No lugar da floresta e do cerrado, agora reinam a agricultura, a extração de madeira, a criação de gado. É tudo mercadoria circulando sobre as rodas do caminhão te Di Lorenzo está lotado, com show de dupla sertaneja. Nas mesas, fazendeiros de meia-idade tomam uísque juntos, suas filhas e filhos circulam animados pela pista de dança, vestiretratodoBRASIL 13 dos na última moda. São estudantes recémchegados para as férias de julho. Todos brancos, o biótipo dominante é o de “gaúchos”, isto é, descendentes de italianos, poloneses e alemães que vieram do Sul a partir dos anos 1970. Cabelos louros ou castanhos, pele rosada e olhos azuis revelam a origem. São os donos das fazendas e do comércio em Juara, nome que parece indígena, mas é a combinação de Juruena com Arinos. Juara se anuncia como a “capital do gado”, com um rebanho de 1 milhão de cabeças, praticamente empatada com o município de Cáceres. No hotel, confortável, tenho acesso a uma sala para internet, telefone direto com o mundo, banho quente e uma TV por antena parabólica que funciona mal. Na manhã seguinte, apresento-me na Casa do Índio, um escritório na cidade que serve de representação das etnias Kaiabi e Apiaká, que ocupam a mesma terra indígena. Encontro com kaiabis e, acompanhado por um deles, Sebastião, 38 anos, alto, forte, sempre de óculos escuros, viajamos, eu e o fotógrafo, direto para a aldeia, 50 km para o norte, por uma estrada terrível. Vamos a 20, 30 km por hora, o carro tropeçando em buracos. Conto a Sebastião que estive ali 42 anos atrás, que participei da comitiva de Villas Boas, que levou parte da tribo para o Xingu. Mostro-lhe meu livro, em que relato essa viagem e reproduzo a reportagem. Educadamente, Sebastião repete várias vezes que está “admirado” com minha história e faz várias perguntas. Pelo seu espanto, começo a me dar conta de quanto foi traumático para os kaiabis aquele acontecimento, o deslocamento de uma parte de seu povo, e o sentimento de abandono vivido pelos remanescentes. Sebastião não era nascido quando essa diáspora aconteceu. Mas já ouviu muito falar dela. Estudou até o segundo grau e hoje é responsável pela manutenção da escola municipal instalada na aldeia, que vai ser substituída por uma escola estadual, de tijolos, atualmente em obras e que também oferecerá ensino médio. Atualmente, os alunos do segundo grau vão de ônibus a uma escola no povoado vizinho de Águas Claras. A estrada passa por ali. Na última esquina do povoado, há um bar, onde dá para ver alguns índios que gostam de cachaça a tomar um último gole antes de voltar para a reserva. Dos dois lados da estradinha, somente fazendas, pastagens, bois, nenhuma nesga da floresta que conheci. Então, vejo que as pastagens confinam com a mata. Sebastião diz que é a divisa com a terra indígena. Há uma placa do governo informando que é “terra protegida” e é proibido entrar sem autorização. 15 A partir daí, viajamos por dentro da floresta, onde avisto trechos que foram derrubados pelos índios. “Para fazer roça”, explica Sebastião. Mas não há roças à vista. Duas horas depois da partida, chegamos à aldeia Tatu-ã. À entrada, um índio forte se aproxima do carro, ordenando: “devagar!”. Paramos, mas Sebastião manda que sigamos até a última casa. O homem fica para trás, pouco satisfeito. Percebo que há um conflito no ar. Aquele homem, José Ricardo, é um ex-cacique, que foi demitido pelo conselho da aldeia em votação direta dos adultos, homens e mulheres. A VICE-CACIQUE NOS RECEBE Sebastião está me conduzindo até a casa da vice-cacique Sueli, já que o novo cacique não está na aldeia. Ele havia me contado que as mulheres estão assumindo cada vez mais as responsabilidades na comunidade. Elas fizeram um movimento de protesto para suspender a venda de madeira da reserva indígena a não-índios, que era feita por alguns chefes, que se apossavam dos resultados da venda. As mulheres conseguiram suspender esse comércio. E uma delas, Sueli, se tornou a vice-cacique. Cercada por um grupo de crianças curiosas, ela recebe a mim e ao fotógrafo, com o vestido meio aberto no peito, porque fora interrompida quando amamentava seu bebê. Ouve minha história com reserva. Mostro as fotos do livro. Sebastião ajuda a explicar. Responde em tom neutro que podemos ficar ali e esperar a volta do cacique. Algumas pessoas vão chegando e observam o livro com curiosidade. A notícia se espalha. José Ricardo vem conversar e conta que estão vivos vários índios que estavam aqui quando eu vim pela primeira vez. Manda alguém chamar Canísio – esse nome me é familiar. Pouco depois, ele chega, forte e bem disposto, de óculos para vista cansada. Não me reconhece, nem eu a ele. Mostro o livro, vemos as fotos. Ele me reconhece pela foto, em que estamos juntos numa canoa. Ele era o mais novo do grupo, tinha então 15 anos. “Eu fui para o Xingu com o Cláudio Villas Boas e com você!” Então, ele me surpreende. “Villas Boas fez coisas boas para o índio, mas também fez coisas erradas. Levou meu povo daqui da nossa terra, meu povo perdeu a maior parte da reserva, a da aldeia Batelão, do cacique Temioni, que foi para o Xingu também. 16 Sábado na aldeia, os kaiabis descansam com a família e brincam com os amigos Aquela terra foi em seguida invadida por fazendeiros, desmataram muita coisa para tirar madeira e criar gado. Até agora, não conseguimos voltar a ocupar nossa terra”. Eu já havia ouvido críticas ao deslocamento dos kaiabis para o PIX, mas nunca achei que tenha sido um erro. Pensava que os Villas Boas haviam livrado a tribo da exploração e violência movidas por seringueiros e caçadores de peles. Canísio agora minimiza essas ameaças. Diz que teria sido melhor ter ficado. “Ali é a minha terra, ali está o cemitério onde estão os ossos de minha mãe e de outros parentes. O Xingu não é nossa terra, é a terra de outros povos – camaiurás, cuicuros, waurás, iaulapitis, trumai – não é a terra da gente.” Seguimos conversando por bom tempo. Ele diz que se sentiu enganado. Pensava que a viagem seria apenas uma visita aos kaiabis que já viviam no Xingu. E se viu obrigado a ficar lá. Pergunto se no parque era ruim. Diz que não, era bom, lá moravam muitos kaiabis (hoje devem ser quase 900), havia assistência médica, brancos não entravam, “mas não era nossa terra”. Canísio acha que os Villas Boas se deixaram envolver por uma manobra do governo (eram os militares) que queria liberar áreas indígenas para os fazendeiros, concentrando a maior número de tribos no PIX. Revendo tudo, hoje acho que ele pode ter razão. Um mês antes, a mesma FAB que transportou os kaiabis havia retirado os xavantes retratodoBRASIL 13 Fotos: Laércio Miranda Maci mostra sua casa e o estoque de flechas. A vice-cacique Sueli faz vinho de açaí de suas terras para que o grande latifúndio das fazendas Suiá-Missú pudesse se instalar no leste mato-grossense. Ele me diz que chegou a manifestar seu descontentamento ao próprio Cláudio. E continuou sempre querendo voltar. Ficou no PIX por 30 anos. Em uma ocasião, veio visitar os parentes no rio dos Peixes. Voltou ao Xingu, preparou sua mudança e, junto com outros kaiabis desterrados como ele, retornou ao rio dos Peixes. Está aqui há 12 anos e exerce forte influência para a recuperação dos costumes e tradições do seu povo. Junto com a tribo, não cessou de reivindicar a retomada da terra ao sul, da aldeia Batelão, no que ele chama de “guerra de papel”. A Funai reconheceu os direitos dos kaiabis retratodoBRASIL 13 àquela terra, e, em dezembro de 2007, o ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou portaria declaratória reconhecendo a Terra Indígena Batelão com 117 mil hectares em favor dos kaiabis. Aguarda-se decisão da Justiça, mas dezenas de fazendeiros instalados na área já prometem resistir nos tribunais e “até pela força”. KAIABIS, APESAR DE TUDO Canísio mostra mapas e documentos de sua “guerra de papel” e diz que não vai descansar enquanto não voltar à terra de seus ancestrais Ele me apresenta o novo cacique, Kawaip, um jovem de 22 anos e que também é um de seus 12 filhos (Canísio tem 45 netos). Combinamos refazer parte da via- gem que fiz em 1966, indo de barco a motor até o Salto dos Kaiabis, 40 km rio acima. Por enquanto, Kawaip vai me levar a conhecer a aldeia, e rever, ali ao lado, o rio dos Peixes, pelo qual naveguei na mocidade. Kawaip nasceu no Xingu e ali foi criado. Diz que lá as tradições e ritos da etnia kaiabi são mantidos mais rigorosamente que aqui. Percebo que junto com seu pai e um grupo que na maioria voltou do Xingu, forma um partido dentro da aldeia interessado na retomada dos costumes de seu povo. Continuamos a caminhar pela aldeia, que não tem mais a forma tradicional. São casas de tábuas de madeira, telhados de amianto ou de tabuinhas de madeira, com água encanada puxada por uma bomba do rio até uma caixa-d’água. Cada casa tem ao lado seu banheiro e sanitário, de tijolos, construídos com recursos da Funasa. As casas estão espalhadas por uma área de uns 300 metros, sem simetria, em meio a grandes mangueiras e outras fruteiras. Só a casa de Canísio tem cobertura de sapé, mantendo a tradição. Ele diz que é mais fresco. Em várias casas há rádio e TV com antena parabólica, poucas funcionando. A luz elétrica, produzida por gerador de motor a diesel, só funciona das sete às nove da noite. Ali vivem cerca de 350 pessoas. Os kaiabis do rio dos Peixes continuam kaiabis, mas já absorveram muito da cultura dos brancos. Vivem por inteiro uma experiência sincretista. A maioria adotou a religião católica, e, naquele entardecer, tive a oportunidade de ver que se realizava uma missa em um galpão da aldeia com a presença de vários padres, inclusive um dignitário de uma missão religiosa. Mas, entre esses índios, também há evangélicos. Misturam essas crenças com seus ritos religiosos tradicionais. Uma espécie de painel na parede da casa da vicecacique Sueli é uma eloqüente manifestação dessa complexa combinação: cocar de penas, enfeites de braço e colar de dentes de animais dividem espaço com uma efígie de Jesus Cristo, retratos de formatura, de crianças e bebês da família, e um calendário de 2008. Várias mulheres kaiabis vêm se casando com rapazes brancos da cidade. Conheci um casal assim, ele, louro, ela kaiabi, e o filho, moreninho de cabelos negros e olhos claros. Também conversei com duas adolescentes, Andréia, de 16 anos, e Paloma, de 14, filhas de casais mistos, estudantes que moram na cidade e vieram passar o fim de semana com os parentes na aldeia. Dei carona a elas na 17 PARAÍSO PERDIDO Em busca do espírito das águas, velho conhecido do repórter se prepara para encontrar seus antepassados na floresta 18 Laércio Miranda Um fazendeiro perguntou a Canísio: “por que os índios querem tanta terra?”. E ele respondeu: “e por que você, um homem sozinho, quer tanta terra?”. Os indígenas têm direito à sua terra, isso é reconhecido universalmente e está inscrito no artigo 231 da nossa Constituição. E por que têm esse direito? Porque são seus detentores originários, estavam na terra antes que o colonizador chegasse. São povos antigos, milenares, que aprenderam a viver na natureza sem destruí-la, nutrindo-se dela, em profunda interação com a terra. Assim viveram, sem registros históricos, a identidade conservada pela tradição oral, fazendo parte da natureza, em “estado de eternidade”. Não procuraram os “civilizados”, foram obrigados a conviver com eles. Perderam a maior parte de seu território. Mas também perderam a inocência. Sua experiência com a frente pioneira já foi suficiente para se darem conta de que sem a terra não sobrevivem como povos. E os fatos mostram que sem eles a terra, enquanto floresta, também não sobrevive. No Mato Grosso de hoje, a quase totalidade das florestas remanescentes está nas terras indígenas. Os índios são seus protetores e, diante da necessidade inarredável de sobreviverem em contato e intercâmbio com a economia de mercado, já começam a desenvolver métodos de aproveitamento da floresta sem destruí-la. Numerosas tribos da Amazônia estão se empenhando nisso. No noroeste do Mato Grosso mesmo, tribos como os zorós e os rikbatskas estão transformando a coleta da castanha-do-pará e a extração do látex de seringueira em atividades produtivas. Essas tribos contam com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD. Em 2007, os kaiabis do rio dos Peixes, mesmo sem apoio externo, colheram e venderam 80 toneladas de castanha. Adaptam-se, mas protegendo a terra, para não perderem a identidade cultural, sua condição de povo diferente, mas brasileiro. “Mais brasileiro que vocês!”, diz Canísio. Em 1966, o adolescente Canísio foi para o Xingu. Voltou 30 anos depois, decidido a lutar pela recuperação das terras de seu povo. Para visitar a cachoeira com o repórter, enfeitou-se com o cocar de penas de arara e o cinturão tecido em algodão nativo. Nele se engancham fios coloridos com castanhas-do-pará em casca presas na ponta. É um cinto especial para rituais e dança. Quando Canísio anda, as castanhas fazem um som de pedrinhas rolando. Ao se vestir com os aparatos tradicionais de seu povo, para nos conduzir ao sítio sagrado da cachoeira, o líder kaiabi Canísio agiu com a mentalidade de um índio. Aquelas penas, aqueles colares, o cinturão, o arco e as flechas são expressões da cultura kaiabi, nas quais ele acredita e às quais dá real valor. Indo vestido assim à cachoeira, para ao lado dela ser fotografado, Canísio deu significado à visita. Manifestou respeito ao local sagrado e reafirmou a posse dela como terra kaiabi para o mundo, ou, ao menos, para os leitores de Retrato do Brasil. retratodoBRASIL 13 Carlos Azevedo Laércio Miranda estrada e o assunto cochichado entre as duas versava sobre namorados, meninos e meninas, traições amorosas, músicas pop. Eram os mesmos temas que ocupam minha neta de 15 anos, que mora em Campinas (SP). Kawaip havia me falado do seu empenho para que o povo retome suas roças. “Não devemos comprar tudo, precisamos produzir também”, justificou. Mas as pessoas não estão passando necessidade, parecem saudáveis e alguns até gordos. As crianças são fortes e bonitas, com belos dentes. As famílias recebem a Bolsa Família e cestas básicas. Os mais velhos recebem aposentadoria. E boa parte dos adultos têm emprego na Funai, na Funasa ou na prefeitura de Juara. Dentro da aldeia, além da escola, que tem professores índios e não-índios, há também um posto de saúde da Funasa, com vários auxiliares de enfermagem, alguns deles indígenas. É o caso da vice-cacique Sueli, que fez o curso de auxiliar de enfermagem numa escola da Funasa e hoje atende no posto, a 30 metros de sua casa. Os kaiabis também obtêm uma boa renda com a coleta de castanha-do-pará. E completam sua dieta com peixes e caça, essa, pelo menos, ainda abundante. Canísio veio ao nosso encontro ataviado para um ritual, cocar de penas de arara na cabeça, colares, cinturão. E armado com arco e flechas. Vamos para a cachoeira, o famoso Salto Kaiabi, distante cerca de 40 km ao sul, pelo rio. Seguem conosco o fotógrafo e os índios Tamaná, hábil piloto de bote a motor, Novecatu, um jovem que está sempre ao nosso lado, o qual eu acredito que seja um representante do cacique para nos dar assistência, e Maci, esse, meu velho conhecido da viagem para o Xingu. Ele voltou de lá com Canísio. Agora com cerca de 60 anos, se apresenta de óculos para vista cansada, de boné, camiseta branca muito limpa e uma espingarda cartucheira calibre 32. Sempre amável e discreto. COMIDA, A PRIORIDADE Em que pese a existência de fazendas de gado nas suas nascentes, as águas do rio dos Peixes continuam transparentes, parecem limpas. E a mata ao seu redor – 30 km de um lado e 20 km do outro, segundo Canísio – está essencialmente preservada. Canísio me mostra o exato local onde eu e alguns companheiros de viagem nos encontramos com ele e outros índios, em 1966. Era um trecho de margem desmatada de um posto dos seringueiros. Não restam sinais. A floresta retratodoBRASIL 13 19 20 retratodoBRASIL 13 retratodoBRASIL 13 21 A CACHOEIRA, 42 ANOS DEPOIS Retomamos mais uma vez a viagem, o bote vai a 30 km/h, cortando o ar frio da manhã. Canísio está conversando comigo quando levanta o rosto e cheira o ar. Manda o bote parar e aponta para a margem direita. Cochicha: “porco”. O barco recua um pouco rio abaixo e embica na margem para Maci descer mais uma vez. Canísio pega seu arco e flechas e Novecatu empunha um facão. Lá vão os três mata adentro, rápidos e silenciosos. Esperamos um pouco mais e ouvimos o tiro. Silêncio. Quinze minutos depois, Maci e Canísio trazem ao barco, pendurado pelos pés, amarrados com embira e presos a uma vara grossa, um porco-do-mato, um queixada de uns 40 kg e grandes presas, já sem barrigada. No bote, vai ocupar um lugar perto de mim. Agora, sim, sinto seu cheiro forte. Afinal, o salto Kaiabi. De longe, já avistamos a última de uma seqüência de sete quedas-d’água que formam o salto. Desembarcamos um pouco abaixo e seguimos a pé pela mata rala da margem. Pelo caminho, galhos de taquari me arranham o braço, fazendo um buraco na camisa. Reencontro por momentos o ambiente em que viajei 42 anos atrás. O sol está quente e começo a transpirar, enquanto pulo troncos e desvio de galhadas. Canísio mostra um terreno areno22 Carlos Azevedo se recuperou e cobriu tudo. Canísio garante que por lá ainda há pés do antigo mandiocal. A viagem é interrompida várias vezes para caçar. Como conseguir comida é prioridade número um, os índios interrompem qualquer atividade quando surpreendem alguma caça. Avistam marrecos empoleirados numa árvore duzentos metros adiante. Tamaná reduz o motor e desvia o bote para a margem. Maci desce com sua espingarda. Vai caminhando por dentro da mata para surpreender a caça. Ficamos em silêncio e cinco minutos depois ouvimos o disparo. O bando de marrecos voa para longe, mas um caiu na água. Tenta bater as asas, mas está morrendo. O bote se aproxima, é recolhido já sem vida. Isso se sucede outras vezes, sempre Maci vai lá e mata um marreco. Da traseira do barco ouço críticas cochichadas: “ele só mata um de cada vez. Se fosse eu, matava vários”. Quando Maci entra no barco de novo, como se estivesse respondendo aos críticos, explica que está usando cartuchos de chumbo grosso, que não se espalham muito, por isso não consegue matar vários. Na viagem até à cachoeira, os kaiabis caçaram um queixada, porco-do-mato so entre arbustos e diz que nesse ponto se localizava o rancho de seringueiro em que eu dormi uma noite e tentei sem muito êxito comer a carne muito dura de um macaco. Divirjo dele, acho que era mais para cima, mais próximo da cachoeira. “Não, era aqui mesmo”, ele responde taxativamente. E não há como discordar. Vamos em frente. Chegamos ao salto. A água despenca de uns 20 metros de altura, fazendo espuma e um barulho imenso. Pelas pedras, seguimos até o salto principal, mais acima. Ele se abre numa boca larga, de mais de 200 metros. Majestoso. Lembro-me dele, esteve todos esses anos guardado em minha memória. O Salto Kaiabi foi incluído no plano do governo federal de aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios do Mato Grosso. Foi prevista a construção de uma PCH (Pequena Central Hidrelétrica) ali. Mas, por estar em terra indígena e por haver resistência dos índios, o projeto está suspenso. Canísio me diz que seu povo não aceita a hidrelétrica no salto. Essa seqüência de cachoeiras é um santuário da cultura dos kaiabis. Canísio conta que todos os anos a maioria das famílias se deslocava de suas aldeias e vinha acampar ao lado do salto. Passavam ali de três a quatro meses, de junho a setembro, celebrando orações rituais comandadas pelo pajé, destinadas a trazer bons tempos para todos. Era também a ocasião do ano em que se realizavam as danças dos homens com as mulheres, época de namoro. Dedicavam-se à colheita de varas de taquara para fazer flechas e a pescar grandes peixes que se escondiam nas locas das pedras. Colhiam castanha e faziam muita farofa de peixe seco para levar em seu retorno às aldeias. Ele mostra o local em que acampavam, um terreno plano que se mantém ainda quase sem árvores, de solo arenoso, e com a forma de um círculo com um raio de uns cem metros, ao lado da cachoeira. Aponta os poços de água profunda entre as pedras. “Eram cheios de peixes, bastava atirar a flecha e pegar. Hoje você não consegue pescar mais nenhum”, diz. Em seguida, reclama que os peixes estão acabando por conta da devastação das matas nas nascentes, pelas fazendas de gado, e também pela ação de pescadores profissionais que pescam de rede na confluência com o rio Arinos. Diz que eles capturam a maioria dos peixes antes de subirem o rio dos Peixes para a piracema, a época da desova, que é feita nas cabeceiras, acima das cachoeiras. E ressalva: “mas caça ainda tem muita, você viu”. Antes de retornar, eu quis tomar um banho ali onde me banhei na outra viagem. Nado completamente nu, como da outra vez. A água está fria e alivia o calor. Voltando ao bote, Maci mostra que matou mais marrecos. retratodoBRASIL 13 os lados e vejo no meio do aglomerado homens, mulheres, crianças kaiabis, todos limpos e bem vestidos. As mulheres, com seus belos cabelos pretos presos em rabo de cavalo, blusas sem mangas em geral pretas, calças jeans, sandálias de saltinho, esbeltas, elegantes. Não se estranha que vários não-indígenas estejam se casando com moças da tribo. Na fila dos saques, encontro a vice-cacique Sueli, com sua filhinha no colo – nome provisório, Ellen – esperando sua vez. Logo vai à máquina, insere o cartão e saca o salário. Vou embora me perguntando: afinal, o que significa isso? Integração? Aculturação? Sem resposta, refugio-me numa lembrança do velho cacique Pepori. Ele me dizia que os kaiabis sempre se esforçaram para “pacificar” os brancos. Estarão conseguindo? A vice-cacique Sueli, enfermeira da FUNASA, usa seu cartão para sacar o salário Laércio Miranda Agora são onze. Na volta, venho pensando que, pelo menos, os mais velhos continuam sendo kaiabis de verdade, uma gente do tronco lingüístico tupi, que está entre os povos indígenas mais competentes e empreendedores, como não se cansavam de reconhecer os irmãos Villas Boas, Orlando e Cláudio. Ao anoitecer, Novecatu nos ajudou a armar nossas redes numa pequena casa vazia em um canto da aldeia. Quando o gerador foi desligado, saí ao terreiro e fiquei examinando o céu. A lua, um fio de unha, logo se pôs e a noite foi envolvida pela luminosidade leitosa das estrelas. Surpreendo-me, não me lembro de haver visto um céu estrelado assim, as constelações parecendo maiores e muito próximas. Brinco que estão quase a tocar a copa das árvores e a cumeeira das casas dos kaiabis. O silêncio cheio de grilos só é interrompido de tempo em tempo por gritos eufóricos de um jovem índio que bebeu demais. O povo dessa aldeia já está integrado no universo econômico e cultural dos brancos. As crianças quase já não falam o idioma kaiabi. Na escola que freqüentam somente se ensina português. Economicamente, dependem mais do governo do que de sua própria produção. Entretanto, arrisco uma avaliação, a de que continuam a ser visceralmente kaiabis. Quatro décadas depois de que os conheci, aqui estão eles, e isso me dá uma percepção de sua perenidade. Agarrados à terra, elemento crucial para afirmação de sua identidade, continuam a existir e ter consciência e orgulho de serem um povo diferente. Essa floresta, esse rio que corre sereno ali ao lado e essas estrelas tão domésticas são sua âncora formidável. Ao contrário dos temores da minha mocidade de que os índios, como povos, desaparecessem, agora me tranqüilizo. Eles são muito mais fortes do que eu imaginava. E estarão por aqui ainda por muito tempo, pelo menos enquanto conservarem sua terra, essa ilha verde cercada de pastagens e lavouras por todos os lados. A VICE-CACIQUE NO CAIXA Volto para Juara e, na manhã seguinte, uma segunda-feira, vou à agência local do Banco do Brasil sacar algum dinheiro. Está lotada, é o quinto dia útil do mês, dia de aposentados e beneficiários do Bolsa Família receberem. Uma voz amistosa me chama. Dou de cara com o jovem cacique Kawaip, bem vestido, camisa passada, calças jeans e tênis. Conta que boa parte de seu povo está vindo para receber seus benefícios. Olho para retratodoBRASIL 13 23 Trabalho: O MAL ESTÁ NO AMBIENTE Tempos Modernos, Charles Chaplin/ Reprodução Mudança de método aumenta o número de registros de acidentes e ajuda a identificar os locais de trabalho doentios | Tania Caliari 24 Uma pequena revolução está ocorrendo na forma de recolher, organizar e interpretar os dados sobre acidentes de trabalho e doenças ocupacionais no Brasil. Isso poderá, em breve, expor um quadro mais realista sobre as condições de segurança nos ambientes de trabalho no País. A nova metodologia adotada pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) para reconhecer casos de acidentes e doenças do trabalho tem causado alguma confusão. “Casos de LER aumentam 512%”, “Registro de doenças ocupacionais cresce 134%” e “Dobra registro de acidentes e doenças” são exemplos de manchetes de jornal que podem ter levado muitos a acreditar que as condições de trabalho pioraram demais nos últimos anos. De fato, as condições de saúde do trabalhador podem ser bastante ruins e ter piorado em alguns setores. Tanto que o Ministério do Trabalho elegeu recentemente quatro setores críticos na ocorrência de doenças osteomusculares – como as Lesões por Esforço Repetitivo (LER) –, nos quais vai reforçar a fiscalização: frigoríficos, supermercados, indústria de calçados e telemarketing. Para vários especialistas, no entanto, os novos números não indicam uma piora generalizada, e, sim, flagram e confirmam a prática de subnotificação dos acidentes pelas empresas, primeiras responsáveis por relatar um acidente de trabalho ou doença ocupacional. As grandes variações registradas pelos jornais foram verificadas a partir de abril de 2007, quando entrou em vigor o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), norma que permite relacionar automaticamente determinadas doenças às categorias profissionais. Se um motorista de ônibus urbano passar a sofrer de hipertensão arterial, por exemplo, não precisa provar que adquiriu a doença devido às suas atividades de trabalho: a hipertensão está na lista de males que têm nexo com sua caretratodoBRASIL 13 tegoria, pois estudos estatísticos baseados nos dados do INSS evidenciaram que a incidência dessa doença é muito maior entre os motoristas do que entre trabalhadores de outras categorias profissionais. Para entender o novo método de apreensão dos dados e suas conseqüências, é preciso, primeiramente, entender como são registrados os acidentes de trabalho no Brasil. A fonte primária de dados são as empresas, responsáveis por fazer a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) ao Ministério da Previdência. É a partir dessas comunicações que o ministério organiza o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT). As empresas sempre podem subnotificar as ocorrências. Isso mostra a vulnerabilidade dos dados e os problemas para a concessão dos benefícios. E as informações se revelam ainda mais limitadas quando se vê que elas são verificáveis apenas nos ambientes do emprego formal, pois só os acidentes que ocorrem com trabalhadores com carteira assinada são registrados no Ministério da Previdência Social. Num país onde os trabalhadores com carteira assinada representam não mais que 30 milhões, ou seja, menos de 40% da População Economicamente Ativa (PEA), um universo de 90 milhões de trabalhadores, o quadro apresentado pelo banco de dados do INSS é parcial, não retrata a situação dos trabalhadores do setor informal, além de excluir aqueles vinculados a outros regimes previdenciários, como servidores públicos e militares. “Apesar das limitações, são os dados mais precisos e abrangentes que temos”, diz José Damásio de Aquino, assessor da Diretoria Técnica da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho dedicado à segurança e à saúde do trabalhador. A despeito das limitações dos dados, Damásio faz uma análise do comportamento dos acidentes ao longo das últimas décadas. São duas as principais conclusões. A retratodoBRASIL 13 primeira: o número de óbitos por acidente de trabalho tem se mantido estável desde os anos 1970: por volta de 3 mil casos anuais. Ao mesmo tempo, o número de acidentes passou de 1 milhão para 500 mil, também entre os anos 1970 e agora. Isso indica que, para que o número de mortes caísse da mesma forma como caiu o número de acidentes, os investimentos em segurança e prevenção necessários para evitar os casos de morte teriam de ser muito maiores dos que os que foram feitos ao longo de décadas. ALTA RECENTE A segunda: apesar da queda do número de acidentes verificada no intervalo de 36 anos, os dados oficiais apontam que, a partir do fim da década de 1990, o número de casos registrados pelo CAT voltou a subir, tendo passado de 363.868 em 2000 para 503.890 em 2006. O aumento registrado até 2006 estaria condizente com o crescimento econômico dos últimos anos no País, com o aumento do emprego formal – em 2006, foram criados 1,4 milhão de novos empregos formais, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) – e a conseqüente exposição de maior número de trabalhadores aos riscos laborais. O aumento de acidentes verificado mais recentemente também se deve, na avaliação de Damásio, às melhorias na divulgação dos dados. “Apesar de reunir os dados sobre acidentes desde os anos 1970, foi só a partir de 1999 que o anuário da Previdência passou a discriminar os acidentes ocorridos por Categoria Nacional de Atividades Econômicas, a CNAE. Esse fato fez que se aumentassem a fiscalização trabalhista e a cobrança sindical a setores com maior incidência de acidentes e, com isso, se aumentassem os registros dos acidentes ocorridos.” A Previdência considera acidentes de trabalho os acidentes típicos, que ocorrem no desempenho da função, os de trajeto, que ocorrem durante a ida e volta do trabalhador para o local de trabalho, e as doenças ocupacionais. Depois que a empresa emite o CAT, o trabalhador se submete à perícia de um médico do INSS, que atesta, ou não, a necessidade de afastamento por mais de 15 dias do trabalho. Se for afastado por acidente ou doença ocupacional, o trabalhador passa a receber auxílio-doença acidentário, que implica a continuidade do pagamento do FGTS pelo empregador e lhe garante um ano de estabilidade no emprego depois da sua volta à empresa. Se for concluído que a doença ou acidente apresentado não tem origem no trabalho, mas que o trabalhador precisa ser afastado, ele passa a ser remunerado com o auxílio-doença previdenciário, que não implica obrigações para o patrão e preserva o índice de acidentes da empresa. É por isso que muitas evitam admitir o vínculo entre as doenças e suas atividades, preferindo que os males dos trabalhadores sejam classificados como doença comum, gerando a subnotificação e a defasagem nos dados. Um levantamento feito recentemente pela Universidade de Brasília (UnB) estima que, até 2006, os casos subnotificados chegavam a 50% do total declarado. O Ministério da Previdência divulga também, mensalmente, o Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS), que, entre outros dados, registra o número e as modalidades de benefícios concedidos, emitidos e cessados. Foi por meio dessas informações, analisadas em dois períodos de 11 meses, que já foi possível verificar o impacto ocorrido com o uso do NTEP a partir de abril de 2007: no período de maio de 2006 a março de 2007, o número de auxílios-doença relacionados ao trabalho saltou de 125.246 para 293.912 de abril de 2007 a fevereiro de 2008, um aumento de 134%. No entanto, essa alta não significou uma alteração expressiva no conjunto de benefícios concedidos aos tra25 26 partir de 2009, será usado para estabelecer a alíquota do Seguro de Acidente de Trabalho (SAT) paga sobre o valor da folha de pagamento de cada empresa. Hoje o SAT varia entre 1%, 2% e 3%, de acordo com o grau de risco que cada setor econômico representa para a saúde do trabalhador. O FAP variará de 0,5 a 2. O número será determinado por empresa individualmente, com o objetivo de “premiar” as que reduzirem seus índices de acidente. Aquela que hoje tem uma alíquota de 3% poderá ter sua cota reduzida se tiver poucas ocorrências e conseguir o FAP 0,5, que, multiplicado pela alíquota original, resultará num SAT menor de 1,5%. Se, ao contrário, a empresa registrar muitos acidentes, sua alíquota será multiplicada pelo FAP 2, por exemplo, e a alíquota a ser paga passará de 3% para 6%. NOVA FORMA DE AVALIAR No bojo dessas mudanças metodológicas, foi feita também uma reavaliação dos riscos de cada setor. Algumas categorias das chamadas atividades de intermediação financeira, por exemplo, como bancos comerciais, passaram de risco leve para risco grave, tendo a alíquota do SAT aumentada de 1% para 3%. A mudança foi baseada na avaliação dos dados acidentários acumulados pelo INSS quanto a freqüência, gravidade e custo dos acidentes registrados. Segundo a Previdência, em 2006 os bancos lideraram o ranking de ocorrências de doenças ocupacionais, com 2.652 registros, sendo que 49,3% dos casos eram de LER. A adoção do NTEP e a reavaliação do risco levaram a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) a questionar as novas regras e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) a entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra o NTEP. “Quando se compara o segmento bancário com o segmento industrial, o senso comum diz que o segmento industrial é muito mais perigoso. Quando você vê os números, é justamente o contrário. Os bancos têm um ambiente muito mais arriscado do que a indústria. Não porque haja mais acidentes ou doentes, mas porque o perfil das doenças que esse ambiente provoca é um perfil crônico. A média de tempo de afastamento é de 90 dias na indústria; nos bancos, a média sobe para 500 dias”, diz Oliveira, que lembra que os desembolsos do INSS são altos no caso dos bancos também porque a média salarial desse setor é maior do que a de muitos outros. Roberto Ângelo Moraes, 31 anos, é bancário há 16. A perseguição das metas de produtividade impostas pelo banco gerou um quadro de LER que dolorosamente o acompanha desde 1998. Com experiência como caixa de agência no centro da cidade de São Paulo, Moraes se destacou, por sua agilidade, num departamento interno do banco que processava material de caixas automáticos e malotes. A dor inicial, no punho, não o fez parar, e logo o esforço repetitivo começou a sobrecarregar o cotovelo e depois o ombro. Seu caso era acompanhado privadamente por um ortopedista que diagnosticou a LER. No entanto, a médica do trabalho vinculada à empresa o desaconselhava a pedir um afastamento acidentário: “Você é novo, não vá queimar sua carteira.” Além disso, havia uma pressão moral dentro do banco, com comentários como: “Fulano está com LER, lerdeza...” Moraes levou a situação até 2004, se ausentando periodicamente por menos de 15 dias, quando foi demitido. Reincorporado à empresa por pressão do sindicato, ele teve finalmente sua LER classificada como acidente de trabalho, coisa que aconteceria hoje automaticamente com o NTEP. Sua situação não é boa: perdeu os benefícios bancários, como tíquetes-alimentação e a participação no lucro da empresa. Casado, com dois filhos, passa o Moraes, bancário: LER e depressão Tania Caliari balhadores adoentados. O que houve foi uma mudança na classificação dos infortúnios. Se em 2006 apenas 7,5% dos benefícios concedidos pela Previdência aos trabalhadores afastados foram acidentários, contra 92,5% de benefícios previdenciários, em 2007 a categoria dos acidentários subiu para 18,8%. Nesse intervalo, o número de trabalhadores formais cresceu 9,7%, e o total de benefícios concedidos diminuiu 28%. Os dados acima foram organizados pelo Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília, que, desde 2003, tem tido acesso aos dados brutos do INSS para desenvolver uma série de estudos sobre o tema. Pode-se dizer que esses estudos, além do entendimento por parte de pesquisadores e técnicos da Previdência de que a saúde do trabalhador tem de ser tratada como questão de saúde pública, são a origem da metodologia do NTEP. Orientado pela coordenadora do Laboratório, a professora Anadergh Barbosa-Branco, o doutorando em Ciências da Saúde Paulo Rogério Oliveira identificou, a partir do banco de dados do INSS, os principais problemas de saúde que acometeram as diferentes categorias entre 2000 e 2004. Oliveira, que trabalha como assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Previdência Social, diz que, desde a Constituição de 1988, elaborada após a redemocratização do País, a saúde do trabalhador saiu da esfera do trabalho, de mera relação patrão-empregado, e passou para a esfera da saúde pública. Para reforçar esse caráter e subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas para a saúde do trabalhador, a metodologia usada no NTEP deixou de usar o referencial teórico da medicina do trabalho anterior, de cunho liberal, e passou a usar o referencial coletivo. “Passamos a ver de qual ambiente vinha aquele trabalhador doente. Deixamos de perguntar se o indivíduo está ou não doente, mas se o ambiente de trabalho é ou não doentio. E, para responder a essa pergunta, fizemos um trabalho epidemiológico, pegando toda a população empregada naquele setor econômico e verificando se o adoecimento por determinadas moléstias é diferenciado em relação aos outros setores econômicos. Com isso, a doença deixa de ser um problema do trabalhador e passa a ser problema de um segmento econômico ou empresa.” Oliveira também criou o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), um índice que, a retratodoBRASIL 13 AE Call center em São Paulo: atividades aparentemente mais suaves são exercidas em ambientes de trabalho de alto risco, segundo especialistas dia estudando para prestar concursos públicos para se livrar da situação de “afastado” e da depressão que surgiu acompanhando a LER. LER SÓ AUMENTOU Walcir Previtale Bruno, secretário de Saúde e Condições de Trabalho do Sindicato dos Bancários de São Paulo, tem uma explicação empírica para a ocorrência crescente de casos como o de Moraes. Caixa desde os anos 1980, Bruno foi, junto com seus colegas, exposto às conseqüências das mudanças radicais na gestão do trabalho bancário. Houve redução do número de funcionários, aumento no ritmo de produção, determinação e cobrança de metas de produtividade e de vendas de produtos. “Nos anos 1980, o foco do sindicato para o combate à LER era a melhoria das instalações físicas dos bancos, adequação ergonométrica do mobiliário. As coisas melhoraram nesse sentido. No entanto, a epidemia de LER não passou e até se aprofundou. Verificamos que a questão passou a ser a gestão do trabalho, com sobrecarga de horário num mundo de metas e produtos a serem vendidos”. Associadas ou não aos casos de LER, doenças mentais, como depressão, síndrome do pânico e transtorno bipolar, que podem ser geradas pelo ambiente competitivo, aparecem como a segunda maior causa de afastamento de bancários do trabalho. Apesar de o grau de exposição dos bancários aos males do trabalho ser tão alto, setores retratodoBRASIL 13 mais tradicionais, que requerem grande esforço físico dos trabalhadores, continuam fazendo vítimas. É o caso da agricultura e da construção civil. No cultivo de cana-de-açúcar, de grande importância econômica, nos últimos anos, por exemplo, de acordo com Maria Cristina Gonzaga, da Fundacentro, um conjunto de fatores contribuiu para tornar mais precárias as condições de trabalho de homens e mulheres que ganham seu sustento nessa atividade, deixando-os mais expostos aos riscos de doenças ocupacionais e acidentes. Gonzaga fala de uma mistura de “riscos organizacionais com riscos operacionais”. A organização do trabalho no cultivo da cana-de-açúcar impõe condições, como pagamento vinculado à produtividade e longa duração dos turnos, que, quando executadas, resultam em riscos operacionais, com os movimentos repetitivos, uso excessivo da força, problemas de postura, e outros. “Há dez anos a meta do trabalhador era o corte de 6 toneladas por dia. Hoje são 12, 15 toneladas”, diz. Em termos de segurança, nos últimos anos houve evolução nos equipamentos de proteção individual dos canavieiros. A adaptação das luvas dos cortadores, por exemplo, saiu de uma sugestão de sua tese de mestrado, que constatou que as luvas das mãos direita e esquerda deveriam ser diferentes por terem funções diferentes no corte. Apesar de aperfeiçoamentos dessa natureza, entretanto, têm ocorrido cada vez mais mortes nos últimos anos. Gonzaga apresenta uma lista de trabalhadores mortos produzida pela Pastoral do Migrante em Guariba, interior de São Paulo, com 20 casos entre 2004 e 2007. A média de idade dos mortos é 40 anos e a maior parte das causa mortis é parada cardiorrespiratória. “Essas paradas cardíacas podem vir de um quadro de exaustão que eu consideraria um acidente fatal de trabalho. Mas isso ainda não é assumido pelo poder público”. O boom de lançamento de novos imóveis também influencia de forma importante a elevação da ocorrência de acidentes num setor tradicionalmente sujeito a eles. Moisés de Oliveira, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo, considera que grande parte dos casos ocorre devido a um conjunto de fatores, entre os quais a falta de preparo do trabalhador e as más condições de equipamentos de segurança. Ele chama a atenção, no entanto, para aspectos que parecem ter se tornado comuns a muitas categorias nos últimos anos, independentemente do nível de esforço físico a que são submetidas: a aceleração do ritmo de trabalho e as pressões psicológicas a que os trabalhadores estão sujeitos devido a ela. “Um edifício que antes era construído em 2, 3 anos, hoje é levantado em um. Um prédio de 25 andares usava 150 operários. Hoje, precisa só de 60. É claro que os novos materiais e tecnologia mais avançada ajudaram nesse quadro. Mas o sujeito não percebe que a pressão do prazo sobre o trabalhador é muito maior”. 27 Educação: Folha Imagem NEGÓCIO SUPERIOR Em junho, o empresário João Carlos Di Gênio, dono do grupo Objetivo, recebeu uma oferta do grupo norte-americano Apollo para a aquisição de toda a fatia que ele domina no ensino superior, formada pela Unip (Universidade Paulista) e por outras 46 faculdades. A oferta, de 2,5 bilhões de reais, não foi aceita, mas o interesse dos estrangeiros na aquisição de instituições de ensino superior brasileiras continua, e as empresas nacionais estão se preparando para isso. A presença de capital estrangeiro nos estabelecimentos de ensino superior brasileiros não é novidade. O próprio grupo Apollo – que mantém uma das maiores instituições com fins lucrativos dos EUA, a Universidade de Phoenix, no estado do Arizona, além de outros estabelecimentos em território americano e no Canadá, México, Chile e Holanda – foi, de 2001 a 2006, acionista da empresa mineira Kroton, dona do sistema de ensino Pitágoras. Além do Apollo, outras duas empresas americanas têm presença no Brasil. O Whitney Education Group, em 2006, comprou, por 23,5 milhões de reais, metade do capital das Faculdades Jorge Amado, de Salvador. E a Laureate International Universities, a primeira a chegar, adquiriu, em 2005, 51% do controle da Universidade Anhembi Morumbi e tem sociedade também na São Paulo Business School e na Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte. Neste ano, o Centro Universitário do Norte (UniNorte), no Amazonas, e a Escola Superior de Administração Direito e Economia 28 (Esade), no Rio Grande do Sul, passaram a integrar a rede da Laureate, que hoje tem 70 mil alunos no Brasil. Além disso, a partir de 2007, algumas instituições de ensino superior brasileiras abriram seu capital e fizeram captação de recursos, especialmente estrangeiros, com lançamento inicial de ações na Bovespa. O grupo Anhanguera Educacional Participações foi o primeiro a utilizar esse expediente, seguido por Estácio de Sá, SEB (Sociedade Educacional Brasileira) e Kroton. Juntas, captaram 1,9 bilhão de reais, e grande parte das ações foi comprada por estrangeiros. Especialistas calculam que, nos próximos dois anos, o setor deve receber até 3 bilhões de reais além do que já foi investido. Os que já investiram no Brasil têm mais dinheiro para investir, e ainda há outros grupos para vir, disse o consultor de ensino privado e presidente da Hoper Educacional, Ryon Braga, a O Estado de S. Paulo. Braga é um defensor da abertura do capital das empresas de ensino e acha que o setor ainda não está preparado para isso. O que atrapalharia o processo, ainda, seria o fato de a maioria das universidades ser controlada por famílias, com estruturas de custo “pesadas e inchadas”, diz O Estado. COM A LDB, EMPRESAS Pode-se dizer que o mercado do ensino superior brasileiro “explodiu” a partir da promulgação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), em 1996, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Até então, a Constituição Fede- ral reconhecia a existência de instituições privadas, mas não caracterizadas claramente como empresas. A LDB distinguiu as instituições privadas com fins lucrativos das demais e estabeleceu regras para o funcionamento das entidades, passando a permitir a existência de empresas de ensino visando, obviamente, ao lucro. A mudança também disparou um processo de concentração de capitais, com a compra de pequenas empresas pelas grandes e a formação de grupos de peso. Também bancos e fundos de investimentos, como o Garantia Participações e o União de Bancos Suíços-Pactual, entraram no negócio. É “um movimento de aquisições sem precedentes”, diz o jornal Valor Econômico. Num artigo do início de junho, o periódico apresenta dados da consultoria KPMG que mostram 30 transações no setor, no primeiro semestre deste ano. Esse movimento de fusões e aquisições só é inferior aos dos setores de tecnologia da informação e de alimentos, bebidas e fumo. As empresas não declaram os valores envolvidos, mas, segundo o jornal, eles chegam a 250 milhões de reais. Em 2006, existiam 2.270 instituições de ensino superior. Apenas 248, pouco mais de 10%, eram públicas; quase 90%, 2.022, eram privadas, que tinham 3,8 milhões de estudantes, 80% do total, e movimentavam, anualmente, cerca 20,5 bilhões de reais. O movimento de concentração no setor está apenas no começo e poderá resultar na existência de apenas 15 ou 20 grandes grupos, com 3 milhões de alunos, estimam alguns analistas. retratodoBRASIL 13 Verônica Bercht Um exemplo de formação de um desses grupos é o Anhanguera Educacional Participações. O grupo nasceu em 1994, na cidade de Leme (SP). Em 2003, já era um grupo médio, com 8.848 alunos em sete unidades espalhadas por seis cidades do interior de São Paulo. Nesse mesmo ano, o Anhanguera transformou suas instituições sem fins lucrativos em empresas, com fins lucrativos, portanto. No mesmo ano, associou-se à Anhembi Morumbi, na capital paulista. Em 2004, incorporou várias faculdades do interior do estado de São Paulo e mudou sua estrutura societária para a de uma sociedade anônima. No fim de 2005, já tinha dez unidades de ensino. Em 2006, quando abriu sua 11ª unidade, possuía mais de 23 mil alunos. E chegou a 59 mil alunos em 2007, já então espalhada por São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso do Sul. Só para efeito de comparação: em 2007, a USP (Universidade de São Paulo), a maior universidade pública do País, tinha 45 mil alunos na graduação e 35 mil na pós-graduação, totalizando 80 mil estudantes matriculados. O desempenho do Anhanguera mostra uma lucratividade atraente para grandes investidores, como as empresas estrangeiras que rondam o mercado brasileiro de ensino. O balanço divulgado em março de 2008 mostra que, em 2007, o grupo captou cerca de 500 milhões de reais na Bolsa de Valores. No ano passado, seu lucro líquido foi de 63,5 milhões de reais, mais de quatro vezes o alcançado em 2006, de 14,9 milhões de reais. retratodoBRASIL 13 A mudança na LDB acatou as recomendações do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), de abrir o ensino para o capital privado. O resultado da privatização seria a democratização do acesso à educação superior. O acesso, de fato, cresceu. O Mapa do ensino superior privado, estudo da professora Gladys Beatriz Barreyro, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, publicado em 2008 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, fez um diagnóstico dessa situação. Entre 1980 e 1996, o número de estabelecimentos de ensino superior no Brasil passou de 882 para 922, um aumento de apenas 4,5%, sendo que as escolas públicas cresceram mais do que as particulares – 5,5% contra 4,2%. Na década seguinte, entre 1996 e 2006, o ritmo de crescimento acelerou: de 922 instituições saltou para 2.270, um aumento de quase 250%, e a relação entre públicas e particulares se inverteu de forma espetacular. Enquanto as públicas passaram de 211 para 248, um aumento de apenas 17%, as particulares pularam de 711 para 2.022, um aumento de quase 300%. ARRANCADA DA PRIVATIZAÇÃO O estudo mostra também o crescimento das matrículas no período. Em 1980, foram 1,4 milhão de matrículas; em 1995, 1,8 milhão, um crescimento de cerca de 25%. E, de 1995 a 2004, houve um salto para 4,2 milhões de matrículas, um aumento cerca de dez vezes maior, devido, esmagadoramente, ao crescimento das matrículas nas instituições particulares. As públicas evoluíram de 492 mil matrículas em 1980 para 700 mil em 1995, aumento de cerca de 40%, e para 1,2 milhão em 2004, aumento de quase 70%. Enquanto isso, as privadas passaram de 885 mil em 1980 para 1 milhão em 1995, aumento de menos de 20%, abaixo do obtido pelas públicas, e tomaram a dianteira disparada em 2004, com 3 milhões de matrículas, quase 300% de aumento. A dianteira das particulares pode ser observada, também, por outro ângulo. Em 1980, o setor público tinha 36% das matrículas, e o privado, 64%. Nos quinze anos seguintes, as públicas avançaram sobre as particulares, chegando, em 1995, a 40% do total das matrículas, enquanto as privadas caíam para 60%. Na década se- guinte, a tendência se inverteu de forma acentuada: em 2004, as públicas tiveram sua participação reduzida para 28%, enquanto as privadas subiram para 72%. Mesmo assim, em termos de ocupação das vagas oferecidas, as públicas foram mais eficientes. Em 2004, foram oferecidas 2,3 milhões de vagas, sendo, aproximadamente, 300 mil em estabelecimentos públicos e 2 milhões em privados. Mas, nas públicas, 93% das vagas oferecidas foram preenchidas por novos alunos; entre as privadas, apenas 50% das vagas foram efetivamente preenchidas. O preço do ensino privado é alto. As mensalidades, no Rio de Janeiro, por exemplo, variaram, em 2003, entre 200 reais e mais de 2 mil reais. Na Universidade Gama Filho, os cursos de pedagogia e matemática custavam, naquele ano, 199 reais por mês. Na PUC-Rio, o curso de engenharia custava 962 reais por mês. E as mensalidades de medicina na Uninove e na Unicastelo eram 2.200 reais. São valores que destroem a ilusão, difundida pelo BID e pelo governo FHC, a respeito da democratização do ensino superior pela expansão dos negócios privados, que representam 90% das instituições de ensino e oferecem 80% das vagas. Estão em tramitação no Congresso dois projetos de lei que tratam da privatização do ensino superior e da entrada de capital estrangeiro no setor. Um deles é o projeto de lei (PL 2138/2003) do deputaDi Gênio: oferta de R$ 250 bilhões recusada Folha Imagem O ensino universitário transformou-se, nos últimos anos, num empreendimento para os grandes capitais 29 do federal Ivan Valente (Psol-SP), que quer proibir, pura e simplesmente, a entrada de capital estrangeiro nas instituições educacionais privadas. Outro é o projeto de lei da Reforma Universitária (PL 7200/2006), enviado pelo presidente Lula à Câmara dos Deputados em junho daquele ano. Ele prevê o limite de 30% para o capital estrangeiro no ensino superior privado e estabelece critérios para a negociação e fiscalização dos preços das mensalidades. APOIO AO CAPITAL DE FORA As entidades mantenedoras do ensino superior e os empresários do setor são radicalmente contra qualquer restrição ao dinheiro de fora. Hermes Ferreira Figueiredo, presidente do sindicato das mantenedoras do estado de São Paulo e dono da Unicsul, considera “equivocada” a proibição da entrada de capital estrangeiro. “A origem do capital não determina a qualidade”, ele diz. O professor Antonio Carbonari Neto, presidente do grupo Anhanguera Educacional, por sua vez, também elogia a participação dos investidores estrangeiros e diz que sua proibição é puramente “ideológica”. No texto “O capital estrangeiro na educação superior brasileira”, divulgado em junho deste ano no portal da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES), Edson Franco procura distinguir entidades mantenedoras e instituições educacionais. O argumento é que não há proibição para a participação do capital estrangeiro nas mantenedoras. Do outro lado, no debate, há um leque diversificado. A vinda do capital estrangeiro “será uma penetração cultural que precisa ser monitorada, pois não atende aos interesses do País e tampouco traz melhoria para a qualidade do ensino, pois a lógica do capital visa somente ao lucro”, argumenta o deputado Ivan Valente, na justificativa de seu projeto de lei. Educação “não é negó- Anhembi Morumbi: associação com a Laureate International Universities 5 milhões 4 milhões no de matrículas DISPARADA DAS PARTICULARES As matrículas do terceiro grau foram aceleradas a partir dos anos 1990, puxadas pelas escolas privadas EVOLUÇÃO DE MATRÍCULAS NO TERCEIRO GRAU [1980-2004] TOTAL A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, durante a primeira administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, provocou aumento expressivo das matrículas, especialmente nas escolas particulares. A LDB foi uma recomendação do BID, no sentido de ampliar a privatização do ensino superior 3 milhões PRIVADO 2 milhões PÚBLICO 1 milhão 0 1996 1980 Fonte: MEC/INEP 30 1985 1990 1995 2000 2004 Grupo Anhanguera: grande fusão entre capital interno e externo cio”, disse ele numa audiência pública realizada na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 19 de junho. O professor Francisco Miraglia Neto, da USP, concorda. “Educação é um direito social básico, mas está se transformando em mercadoria”, diz ele. Miraglia não é, em tese, contra o ensino privado, mas considera que os preços da rede privada precisam ser administrados pelo poder público. Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), também condena a mercantilização do ensino e a presença do capital estrangeiro, que provocam, na maioria dos casos, diz ela, a degradação da educação, prejudicando alunos, professores e funcionários das instituições. “São necessárias ações que tenham o poder de limitar, ou até de impedir, o capital estrangeiro na educação superior”, disse em entrevista ao jornal Valor Econômico, no início de julho. retratodoBRASIL 13 Livros: Até recentemente, como na Guerra do Vietnã, os combatentes eram cidadãos recrutados para o serviço militar, obrigatório para todos, com o objetivo de supostamente defenderem a pátria ameaçada por forças estrangeiras. Mas isso nem sempre foi assim. Da Idade Média até a Revolução Francesa, os exércitos dos Estados europeus não eram compostos de cidadãos em armas, e sim de mercenários, e até de mercenários estrangeiros. Porém, há muitos anos, deixou de ser assim. A partir do fim dos anos 1970, os Estados Unidos aboliram o serviço militar obrigatório e adotaram o que se chama de Forças Exclusivas de Voluntários, ou seja, cidadãos que se apresentam para guerrear em troca de salário. Isso visou, basicamente, evitar que a opinião pública se voltasse contra as operações militares, principalmente pelo excesso de mortes de jovens cidadãos comuns, como ocorreu na Guerra do Vietnã. Durante todo esse período, os exércitos supostamente compostos por jovens de todas as classes sociais continuaram, em especial nos países coloniais e ex-coloniais, a contratar mercenários, individualmente ou em grupos, para combaterem organizações anticolonialistas e antiimperialistas ou simplesmente rivais na partilha do butim formado pelas nações colonizadas ou ex-colônias. Ficaram famosos os “soldados da fortuna”, contratados individualmente ou em grupo, notadamente a Legião Estrangeira da França e os mercenários de vários países europeus que atuaram na África, particularmente no então Congo belga. CAPITAL, NÃO AVENTURA A partir dos anos 1990, um novo passo foi dado: a outorga de “serviços” militares a empresas de segurança privada, concedida pelo governo dos EUA (e por outros governos, em especial africanos), cujos contratos muitas vezes são bilionários, como no caso americano. Trata-se de uma verdadeira atividade empresarial em busca de lucro, e não de uma ação de aventureiros, como os tradicionais mercenários. Foram três as principais razões para essa privatização da guerra. Uma, ideológica: os empreendimentos privados seriam sempre mais eficientes, com relação a custos e benefícios, do que os empreendimentos públicos, mesmo no caso das Forças Armadas. Como disse o exretratodoBRASIL 13 secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld: “Está claro que é eficiente em termos de custos ter civis contratados para uma variedade de coisas que os militares não precisam fazer.” Outra razão foi mais prática: com grupos privados, os governantes podem assegurar gordos lucros a empresários que são de seu grupo. Por exemplo: uma subsidiária da Halliburton, megaempresa de cuja direção participava o vice-presidente americano Dick Cheney, construiu a nova prisão da base dos EUA em Guantánamo, Cuba. Finalmente, o terceiro motivo é ainda mais prático: o limbo legal em que esses serviços militares privados ficam abrigados. Em outras palavras, os “funcionários” dessas empresas podem praticar quaisquer crimes, civis ou militares, como torturas e ataques a pessoas desarmadas e, mesmo assim, ficar totalmente impunes. Um exemplo: a Caci International foi contratada para fazer os interrogatórios em Guantánamo, que incluem os bem-conhecidos “afogamentos simulados” e a ameaça por cães ferozes. Outro exemplo: agentes da Blackwater USA, a maior empresa de segurança privada do mundo, com 30 mil funcionários, mataram a tiros, sem motivação conhecida, em 16 de setembro de 2007, 17 transeuntes e passageiros de carros, todos civis iraquianos desarmados, na praça Nissur, em Bagdá. No caso da Caci, ninguém foi punido. No caso da praça Nissur, também não houve sanção penal, apenas a direção da Blackwater ordenou a alguns dos assassinos que deixassem o Iraque. As companhias militares privadas (PMCs, na sigla em inglês) firmam, com o governo dos EUA, contratos de imunidade processual com relação às leis americanas. Por sua vez, o governo americano firma acordos com governos estrangeiros, em especial o de países ocupados ou ajudados militarmente pelos EUA, de forma a garantir imunidade judicial aos cidadãos americanos, em geral, e, em particular, aos integrantes, de quaisquer nacionalidades, das companhias militares privadas. No recente resgate, na Colômbia, da ex-senadora Ingrid Betancourt, houve, segundo reportagem do jornalista Pedro Paulo Rezende publicada na edição do último 4 de julho do jornal Correio Braziliense, “a participação de membros da DynCorp e da Blackwater, as duas maiores empresas A Colômbia e o Iraque são apenas dois exemplos do ressurgimento dos exércitos mercenários | Renato Pompeu de segurança privada do mundo”, ambas americanas. Esclarece ainda Rezende: “A DynCorp e a Blackwater, que têm conexões com o governo dos Estados Unidos, ajudam na segurança da Zona Verde, área mais protegida de Bagdá, e na escolta de autoridades estrangeiras no Iraque. As duas disputam um gordo contrato, estimado em US$ 2 bilhões, estabelecido pelo Departamento de Estado, para criar um plano de combate ao narcotráfico na Colômbia.” CIVIS E MILITARES DIVERGEM Note-se que esse contrato é com o Departamento de Estado, equivalente ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro, e não com o Departamento da Defesa, que engloba as Forças Armadas americanas. A explicação é que os militares profissionais Prince, da Blackkwater: republicano de direita Reuters HISTÓRIA DAS GUERRAS PRIVADAS 31 dos EUA não são muito fãs das companhias militares privadas, as quais são, porém, muito apreciadas pelos civis que comandam a diplomacia americana. O motivo, nos dois casos, é o mesmo: o limbo legal que permite ações que “dão mau exemplo aos soldados regulares”, na opinião dos militares profissionais, mas também “garantem vantagens estratégicas”, na visão dos responsáveis civis pela política externa dos EUA. Dois livros recentes, de pesquisadores independentes, dão uma visão mais concreta das atividades das companhias militares privadas. Um, atualizado até o início deste ano, acaba de ser lançado no Brasil: Blackwater. A ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo, do jornalista americano Jeremy Scahill, editado pela Companhia das Letras. O outro ainda não foi traduzido para o português: Cor porate Warriors. The Rise of the Privatized Military Industry (“Guerreiros corporativos – A ascensão da indústria militar privatizada”, em tradução livre), de Peter Singer, com edição atualizada no início de 2007 pela Universidade de Cornell, EUA. DE MILHÕES A BILHÕES Scahill centra seu livro na história da Blackwater, fundada pelo megaempresário Erik Prince, cristão fundamentalista e simpatizante da extrema direita do Partido Republicano. A história começa em 1996, em pleno governo Clinton. No atual governo Bush, os contratos da Blackwater passaram dos milhões de dólares iniciais para os bilhões. Singer relaciona centenas de companhias militares privadas no mundo inteiro, num “negócio” atualmente de 100 bilhões de dólares anuais. De acordo com ele, o Departamento da Defesa dos Esta- >> BLACKWATER A ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo autor Jeremy Scahill editora Companhia das Letras ano 2008 >> CORPORATE WARRIORS The Rise of the Privatized Military Industry autor Peter Singer editora Cornell University Press ano 2007 dos Unidos, entre 1994 e 2002, gastou 300 bilhões de dólares em 3 mil contratos com companhias militares privadas, absorvendo oito por cento do total do orçamento do Dod, sigla em inglês do Departamento, também conhecido como Pentágono. Além do Iraque, do Afeganistão e de vários países africanos, essas empresas atuam em outras partes do mundo, como na Colômbia, no Líbano e até na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Reuters Falluja, Iraque, 2004: população matou e incinerou corpos de funcionários da Blackwater que atuavam na cidade 32 retratodoBRASIL 13 Reuters Scahill se preocupa, porque, visivelmente, uma conseqüência possível da privatização da guerra seria a utilização das companhias militares particulares em ações ilegais de maior envergadura do que a tortura a presos ou a matança de civis desarmados, como, por exemplo, golpes de Estado ou atentados contra governos. NO GOLPE, FILHO DE THATCHER Resgate de Betancourt na Colômbia: suspeita de participação de mercenários Singer inclui, entre as PMCs, a Raytheon, que forneceu a logística do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia brasileira). Ainda de acordo com ele, a DynCorp, desde os anos 1990, contratou ex-pilotos da Força Aérea Brasileira para atuarem na Colômbia, havendo ainda outros mercenários brasileiros em várias regiões do planeta, contratados por diferentes empresas. Já segundo Scahill, a Embraer vendeu para a Blackwater um avião Super Tucano, passível de utilização em “operações de contra-insurgência”, com o consentimento do governo brasileiro. O avião teria sido enviado para os EUA, mas se supõe que deva ser usado, prioritariamente, na Colômbia. 15% PARA MERCENÁRIOS Embora a guerra privatizada já existisse há muitos anos, sua realidade só tomou corpo maciçamente na mídia internacional, especialmente na televisão, em 31 de março de 2004, quando a TV mostrou, ao vivo, para o mundo inteiro, o chamado “incidente de Falluja”. Nessa cidade, a 50 quilômetros de Bagdá, centenas de civis iraquianos cercaram quatro soldados uniformizados da Blackwater, os mataram, queimaram e mutilaram, pendurando o que restava de seus cadáveres em uma ponte, para que toda a cidade visse. retratodoBRASIL 13 Inicialmente, a opinião pública ficou chocada com “o massacre contra quatro soldados” regulares que estavam no Iraque para “garantir a democracia” no país. Depois, ficou ainda mais chocada quando soube que eram “assalariados” de uma empresa contratada para garantir a segurança de autoridades, estrangeiras ou iraquianas, diplomatas ou governantes, e de instalações estratégicas, como oleodutos, refinarias, linhas de transmissão de energia, rodovias, meios de comunicação, etc. Em particular, são empresas privadas que fazem a segurança das ruas, prédios, autoridades e funcionários, estrangeiros e iraquianos, da chamada Zona Verde de Bagdá, onde ficam situadas, além das principais embaixadas, como a americana e a britânica, também os principais comandos militares da ocupação e órgãos do governo iraquiano. O Conselho Britânico-Americano de Informações sobre Segurança calcula que até 15% do dinheiro gasto na “reconstrução” do Iraque seja destinado a companhias militares privadas, diz Singer. O pior de tudo, segundo Scahill, é que as autoridades americanas acham que a privatização da guerra “funciona”. Por exemplo, alardeia-se que nenhuma autoridade protegida pela Blackwater se feriu, foi morta ou vítima de atentado. Aliás, isso já aconteceu: em julho último, o mercenário britânico Simon Mann foi condenado a 34 anos de prisão pela Justiça da Guiné Equatorial, país da África Ocidental, por ter tentado organizar, com as forças sob seu comando, em 2004, um golpe para derrubar o presidente Teodoro Obiang. Mann tinha sido financiado por um amigo, ninguém menos do que Mark Thatcher, o único filho (tem uma irmã gêmea) da ex-primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher, um dos ícones do neoliberalismo. Mark Thatcher, que em 2004 residia na África do Sul, foi processado pela Justiça sulafricana, esteve preso e foi libertado após ter confessado que “financiou a compra de um avião por Mann sem saber que o amigo planejava um golpe de Estado”. Mark Thatcher voltou para a GrãBretanha. Em 2005, tentou se estabelecer nos Estados Unidos e em Mônaco, mas teve a entrada recusada nos dois países, por seu envolvimento na tentativa de golpe na Guiné Equatorial. A execução da guerra por empresas privadas com fins de lucro pode, afinal, levar a que as guerras deixem definitivamente de ser travadas, em qualquer grau, em nome da “defesa da pátria” com o fim de ser desencadeadas exclusivamente para defender interesses particulares. Porém, pode acontecer algo ainda mais grave do que isso, como mostra a ação de Mann e Mark Thatcher: as companhias militares privadas deixarem de atender a contratos governamentais para iniciarem seus próprios empreendimentos de conquista e saque, como já aconteceu no passado. Basta lembrar as Companhias das Índias, da era da Revolução Comercial. Afinal, no mundo “maravilhoso” do neoliberalismo, tudo é fantasticamente possível. RENATO POMPEU é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, 2006. 33 Futebol: A PÁTRIA DAS CHUTEIRAS Uma nova regra da Fifa ou desmonta clubes como o Real Madrid ou vai levar muito jogador a mudar de nacionalidade peus. A norma, proposta por seu presidente, o suíço Joseph Blatter, e apelidada de “6+5”, estabelece que, a partir da temporada 2012-2013, “ao começo de cada partida, cada clube deverá escalar ao menos seis jogadores aptos a jogar pela seleção nacional de seu país, ou seja, limita a no máximo cinco a quantidade de estrangeiros no início dos jogos. geiros: “Todos sentiram o fato de a Inglaterra não ser representada na Eurocopa 2008. Não é só a Inglaterra que está sendo afetada pela situação atual; outros países estão preocupados, talvez seja a Alemanha no futuro. Nós debatemos a “6+5” dentro de nosso Comitê e todos foram favoráveis à idéia. [Agora] precisamos entrar num acordo com a União Européia.” A medida foi aprovada pelos representantes das associações e confederações nacionais filiadas à entidade por 155 votos favoráveis e apenas 5 contrários, o que é surpreendente, tratando-se de medida que deverá atingir os maiores e mais ricos clubes do planeta. E é a pressão desses clubes que pode ser a maior barreira para sua entrada em vigor. O jornalista e comentarista esportivo da TV Bandeirantes e do jornal Lance!, Mauro Beting, disse a RB que acredita que “é ao regramento da União Européia que os clubes vão se ater. Pela própria lei da União Européia e pela liberalidade da Lei Bosman, de 1995, o trabalhador da comunidade tem o direito de ir e vir por qualquer país da região. É a própria norma européia, evidentemente acima das normas do futebol, que determina isso. Então, a briga vai ser muito boa, vai ser ótima”. Daniel Affini, agente de jogadores credenciado pela Fifa, vê o problema da mesma forma. “Eles vão tentar provar o direito do cidadão de poder trabalhar. A União Européia permite que o cidadão nascido em qualquer país de lá trabalhe e more em outro país do bloco”, disse ele a RB. “Na União Européia, não é mais estrangeiro quem sai da Espanha e vai para a Suíça, para Portugal. Ele (Blatter) não pode vetar o direito do trabalhador de escolher O Real Madrid, da Espanha, somente na temporada 2006-2007, arrecadou aproximadamente 475 milhões de dólares. Boa parte desse dinheiro veio de partidas de exibição, especialmente na Ásia, da venda de camisas do clube no mundo todo e da venda total e antecipada de ingressos, feitos obtidos graças ao prestígio de possuir alguns dos melhores jogadores do mundo, como o brasileiro Robinho, os holandeses Arjen Robben, Ruud van Nistelrooy e o italiano Fabio Cannavaro. Entre os 24 atletas do elenco, são 16 estrangeiros e apenas 8 espanhóis no time que participou do Campeonato Espanhol, talvez o mais forte de todos os campeonatos nacionais. Porém, se prevalecer uma nova regra apresentada agora pela Fifa (Fédération Internationale de Football Association), entidade máxima do futebol, que restringe a cinco a quantidade de não-nacionais no início dos jogos dos clubes, o Real Madrid terá de se desfazer de muitas de suas estrelas, perdendo boa parte de sua fama e, conseqüentemente, da arrecadação. O mesmo vale para clubes como a Internazionale de Milão, atual bicampeão italiano – cujo elenco possui nada menos que 23 estrangeiros e apenas 5 italianos –, o Chelsea (18 estrangeiros e 7 ingleses) e o Barcelona (14 estrangeiros e 8 espanhóis), por exemplo. Mesmo clubes europeus medianos, como Manchester City (Inglaterra), Udinese (Itália) e Betis (Espanha), sofreriam grandes alterações, pois seus elencos contam atualmente com mais de dez estrangeiros cada. A regra da Fifa foi aprovada no fim de maio. Deve gerar alvoroço entre grandes clubes do mundo todo, mas atingirá especialmente os poderosos times euro34 SELEÇÕES FRACAS A medida entraria em vigor de forma gradual: a partir de 2010-2011 ainda será permitida a presença de sete estrangeiros no início das partidas; na temporada 20112012 serão seis. Em contrapartida, não existirá limite com relação ao número de atletas estrangeiros sob contrato ou qualquer impedimento nas substituições realizadas (um técnico pode, por exemplo, substituir três jogadores locais por estrangeiros durante o jogo). A Fifa justifica a alteração com vários argumentos: manter a harmonia entre os times e os clubes nacionais; evitar a perda de identidade nacional dos clubes – o que deixaria em perigo a formação dos jogadores e aumentaria as diferenças entre as agremiações, reduzindo também a competitividade e aumentando a previsibilidade dos resultados; salvaguardar a formação dos jogadores (esportiva e educacional) e manter o desenvolvimento do futebol. A decisão foi discutida no 58° Congresso da Fifa, realizado na Sydney Opera House, na Austrália. Durante o evento, o ex-jogador alemão Franz Beckenbauer, presidente do Comitê de Futebol da entidade, apontou também o enfraquecimento das seleções dos países que mais contratam estran- Rafael Hernandes retratodoBRASIL 13 Getty Images A LEGIÃO ESTRANGEIRA DO REAL MADRID seu local de trabalho. O futebol não pode ser mais forte que o acordo entre os países”, diz Affini. A Fifa sabe das dificuldades que surgirão. O próprio Blatter disse: “Nós não queremos ir contra as leis existentes. No que diz respeito à Europa, nós queremos usar as bases legais do Tratado de Lisboa, o qual admite a especificidade do esporte e suas estruturas e organizações e passa a valer em 1° de janeiro de 2009. Nós queremos ir para uma consulta, não para um confronto.” NATURALIZAÇÃO É OPÇÃO Na outra ponta da questão, entre os clubes que formam e vendem jogadores, também deverá haver uma guinada, especialmente no Brasil, um dos maiores fornecedores mundiais de atletas. Beting acredita que a saída será a procura de “outros mercados”, embora diga que “esses não têm tanto dinheiro”. “Os bons [jogadores] são sempre bons, continuarão indo para os melhores times, mas os não-tão-bons, que atualmente vão de qualquer jeito, irão meretratodoBRASIL 13 nos. Por tabela, para nós será melhor; para os jogadores, não”, disse, apontando a menor quantidade de opções de trabalho para os brasileiros fora do país. O próprio texto da regulamentação proposta pela Fifa, no entanto, pode ter deixado a solução para o atleta que quiser atuar no exterior. A norma não exige que o atleta nasça no país em que pretende jogar. Ele só precisa ser apto a representar a seleção local, ou seja, o jogador que se naturalizar poderá atuar sem restrições. Como o processo de naturalização não é tão difícil de ser efetuado, a saída parece até óbvia. Existem dois caminhos para a naturalização: ser filho ou neto de imigrantes do país desejado ou jogar dois anos por um clube local e nunca ter atuado por outro selecionado. “[A naturalização] vai ser a grande tendência, vai ser a grande mudança, aumentando significativamente o número de naturalizações. O grande jogador que tiver a oportunidade de se naturalizar, ao ver sua oportunidade na seleção brasileira passar, vai se naturalizar”, diz Affini. 1 2 3 4 7 8 9 5 6 10 11 REAL MADRID 1 Van Nistelrooy [Holandês] | 2 Casillas [Espanhol] | 3 Sérgio Ramos [Espanhol] | 4 Pepe [Brasileiro naturalizado português] | 5 Torres [Espanhol] | 6 Diarra [Maliano] | 7 Drenthe [Holandês] | 8 Robinho [Brasileiro] | 9 Raúl [Espanhol] | 10 Robben [Holandês] | 11 Cannavaro [Italiano] “A discussão está apenas no começo”, diz Beting. Para ele, a medida da Fifa deverá entrar em vigor, “mas mais negociada, não passa assim. Ou será dilatado o período de adaptação ao regulamento ou este será flexibilizado para algo como ‘5+6’ ou ‘4+7’. A meu ver, a Fifa jogou pesado para poder ter margem de negociação depois”, completa. 35 Filosofia: A VOLTA DE NIETZSCHE Friedrich Nietzsche não é um filósofo de fácil leitura e compreensão. Mas está no rol dos mais influentes. No Brasil, é possível que ele tenha mais leitores que outro filósofo alemão de peso, Karl Marx. Uma busca no acervo virtual da Livraria Cultura (ver tabela na página seguinte), a maior do País, mostra que o autor de Assim Falava Zaratustra aparece na lista dos autores mais procurados, com mais de 554 livros, contadas as diferentes edições, nas várias línguas. Na mesma lista, o autor de O Capital tem menos da metade, 224 livros. “A Livraria Cultura trabalha com mais de 2,5 milhões de títulos de livros. Nosso acervo está sempre atualizado tanto com relação a publicações nacionais quanto internacionais. Nietzsche é um dos mais importantes filósofos do mundo e sua obra não poderia faltar nas prateleiras das lojas da Cultura”, afirma Fábio Herz, diretor comercial da livraria. A Companhia das Letras, uma das maiores editoras do País, resolveu apostar na popularização de Nietzsche, com três títulos dele em sua série de bolso. E se deu bem: Além do bem e do mal vendeu 43 mil exemplares desde maio de 2005, quando foi lançado; Humano, demasiado humano vendeu 22 mil desde o lançamento, em dezembro de 2005; e Ecce Homo, em cinco meses, desde o lançamento, neste ano, já vendeu 1.100 exemplares. Qual o sentido da popularidade atual das idéias de Nietzsche? Pode ser, diz a professora titular de Filosofia Contemporânea da Universidade de São Paulo Scarlett Marton, a busca por soluções para as mais cotidianas inquietações existenciais humanas. Marton escreveu Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos (Editora Brasiliense, 1990). Diz que a procura pela pregação do filósofo alemão pode estar ligada não só à busca por respostas simples mas também a uma tendência de se delegar a terceiros o próprio destino. “Estamos nos convertendo – e acho que essa é a tônica de nossa sociedade hoje – em figuras heterônomas”, isto é, não autônomas, mas comandadas pelo sistema. 36 Entre as várias características da pós-modernidade, diz ela, uma delas é certo descrédito às grandes narrativas, que caracterizam as filosofias que querem entender o mundo e transformá-lo. Há forte depreciação com relação às “visões globais do mundo, da história”. Isso explicaria “o fato de que autores como Marx e Hegel, com seus sistemas e visões globais, sejam preteridos em relação a autores como Nietzsche”, diz Marton. Ivana Jinkings, da Editora Boitempo, liga a popularidade de Nietzsche ao crescimento do interesse por livros de autoajuda. Essa popularidade, diz ela, “sinaliza um mal-estar da população, uma fragilidade das pessoas dentro do capitalismo. E elas tentam resolver suas mazelas de modo individual”. É uma forma, segundo Jinkings, “de canalizar angústias para o consumo desenfreado, no sentido de buscar em leituras ‘fáceis’ e ‘reconfortantes’ um sentido para uma vida ingrata e difícil”. BOOM DA AUTO-AJUDA “Autores como Maquiavel, Sun Tzu, Platão, Freud e Nietzsche são usados por esse ramo editorial como ‘autoridades’ da autoajuda, para dar um verniz mais ‘científico’, o que representa somente uma forma perversa de vender mais”, diz Jinkings. Para ela, as interpretações dadas a esses intelectuais nessas obras de vulgarização são “muito pobres” e “não-condizentes com a importância deles no pensamento social”. O historiador Voltaire Schilling tem interpretação parecida: “A verdadeira literatura do individualismo dos nossos dias é a autoajuda, e isso se deve não ao capitalismo, mas ao declínio das grandes religiões, do catolicismo e do protestantismo.” Antigamente, diz ele, “as pessoas tentavam se ‘salvar’ pela leitura do catecismo, de trechos da Bíblia ou de livros de orientação religiosa. Hoje é por essa enorme produção de auto-ajuda”. Em defesa do que seria o verdadeiro Nietzsche, Scarlett Marton salienta que “não é O pensador do pessimismo e da decadência está, mais uma vez, no topo da lista dos mais queridos Priscila Lobregatte* Nietzsche que se privilegia, mas certa imagem que está sendo associada a ele”. Segundo a professora, desde a morte do filósofo, “uma quantidade enorme de imagens foi colada à sua figura”. A professora usa como exemplo a classificação de “pensador irracionalista”, que ela não aceita, mas que, diz, “cai como uma luva nesse momento em que são privilegiadas as emoções em detrimento de uma compreensão mais global da realidade”. Ela acredita que, na forma como é apresentado, Nietzsche está “inteiramente domesticado” e “esvaziado do seu poder contestador”. Nietzsche nasceu em 1844 e morreu em 1900. Em 1872, teve seu primeiro trabalho publicado, O Nascimento da Tragédia, e passou os últimos 11 anos de sua vida em estado catatônico, perturbado mentalmente. Sua vida intelectual, portanto, transcorreu durante os anos da consolidação do estado alemão, proclamado em janeiro de 1871, depois da vitória na guerra contra a França. O fim dos séculos XVII e XVIII tinha sido marcado pelas revoluções burguesas – a inglesa, a americana e a francesa. Era uma época de demolição do pensamento feudal e de ascensão das idéias liberais, burguesas. Ali pela metade do século XIX, abriu-se outra época, marcada pelas revoluções proletárias. Seu primeiro grande marco foi a onda revolucionária de 1848, que se espalhou da França para a Europa; o outro grande sinalizador da nova época foi a Comuna de Paris, quando, em 1871, o operariado parisiense tomou o poder na cidade e o manteve por 72 dias, de 18 de março a 28 de maio daquele ano. Nietzsche defendeu o massacre da Comuna e foi um retratodoBRASIL 13 propagandista do fascismo, o que, evidentemente, ele não foi. O aproveitamento das idéias de Nietzsche pela direita não é arbitrário. A crítica do capitalismo pode ser feita de várias formas e a dele serviu e ainda serve a muitos conservadores. Nietzsche nunca disfarçou suas posições elitistas. Para ele, a cultura é um privilégio da aristocracia, e sistemas como a democracia ou o socialismo seriam expressão da “decadência humana”. Ele acreditava que a construção de uma sociedade “elevada”, liderada por übermenschen, como se diz em alemão – algo que muitos traduziram como “além do homem” –, está naturalmente alicerçada sobre a escravidão. “Uma cultura superior só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos”, escreveu Nietzsche. E completou: “Ou, para dizê-lo com palavras mais fortes, a casta do trabalho forçado e a do trabalho livre.” Cassio Loredano DESPREZO DA RAZÃO feroz adversário da democracia e do socialismo. Na Alemanha, a novidade política era o grande crescimento do Partido Social Democrata, da corrente socialista formada por Marx e Engels, fundado em 1863. O fim do século XIX na Europa foi também o tempo da germinação das idéias fascistas. Elizabeth, irmã de Nietzsche, por exemplo, que cuidou dele durante seus últimos 11 anos e foi responsável pela edição final de obras que ele deixara sem publicação (principalmente o livro A vontade de poder), é acusada por alguns críticos de ter editado alguns textos de Nietzsche de modo a apoiar suas idéias protofascistas. Junto do marido, Bernard Förster, Elizabeth trabalhou para fundar uma colônia ariana, anti-semita, chamada Nova Germânia, no Paraguai. Ela teria sido uma das pessoas que ajudaram a converter Nietzsche de um pensador desiludido com o cristianismo, com o estado geral do capitalismo e com a perspectiva de democratização da sociedade em sua época num retratodoBRASIL 13 Em Genealogia da moral (1887), Nietzsche apresenta um diagnóstico da “decadência”: “Prestemos atenção aos fatos: o povo venceu, ou ‘os escravos’, ou ‘a chusma’, ou ‘a horda’, como se quiser chamá-los... ‘Os senhores’ estão liquidados; a moral do homem comum e corrente triunfou... A ‘redenção’ do gênero humano (isto é, ‘dos senhores’) vai pelo melhor caminho; tudo se judaíza ou se cristianiza ou se aplebéia (que importam as palavras!) a olhos vistos. E o processo desta intoxicação em todo o corpo da humanidade parece impossível de conter...” Nietzsche, afirma Georg Luckács, encarava os problemas da sociedade de maneira individualista e acreditava que o mundo não poderia ser compreendido pelo conhecimento humano. “O desprezo do entendimento e da razão, a glorificação rasa e simples da intuição, a teoria aristocrática do conhecimento, a repulsa do progresso social, a mitomania etc. são outros tantos elementos que podemos descobrir sem dificuldade, com pequenas diferenças, em todo irracionalista”, disse o marxista húngaro em sua obra O assalto à razão. Ao explicar a concepção que Nietzsche tinha da realidade, o professor do Departamento de História da PUC-SP Antonio Rago Filho lembra que, para o filósofo alemão, “os fatos não existem, só as interpretações, porque cada um de nós, tendo a sua paixão, vê o mundo pela sua ótica”. Para Nietzsche, diz Rago, a compreensão da realidade objetiva é um mito. Tal posicionamento tem razão de ser. “Nenhum filósofo é inocente”, lembra Rago. “A irracionalidade é dada pelo sistema do capital de modo geral. O capitalismo tem alguma racionalidade, mas ele se baseia numa irracionalidade que não pode resolver: não é capaz de realizar plenamente os indivíduos na forma da universalidade.” Nietzsche foi um dos fundadores do clima irracionalista que impregnou a filosofia burguesa após o surto de otimismo que ela viveu nos seus anos de revolução. A partir dos anos 1850, quando a população operária aglomerada nas cidades começou a se desencantar com a democracia liberal, a filosofia burguesa tornou-se apologética: antes, acreditava no progresso social; depois, passou a fugir da realidade, a adotar um discurso vazio, que não estava mais preocupado com as necessidades humanas concretas e com a necessidade de sua superação. Em artigo publicado na internet e intitulado “O pensamento de Nietzsche”, Voltaire Schilling diz que a Comuna de Paris é um marco para o filósofo. “Onde Karl Marx viu um momento de bravura popular, Nietzsche identificou o surgimento de uma nova barbárie que era preciso deter a qualquer custo.” A Comuna seria, segundo Schilling, o ponto de partida para uma série de escritos que ele desenvolveu ao longo dos 20 anos seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas, dos anti-socialistas e contra todo tipo de pregação que visasse à igualdade, tornando-o um apologista da distinção”. NEM SÓ NIETZSCHE FAZ SUCESSO A busca pelas obras de Nietzsche, refletida na grande quantidade de edições que se pode encontrar desse autor numa grande livraria (ver tabela abaixo), convive, na opinião pública, com a importância dada pelo leitores aos escritos de Marx, por exemplo, e a de outros autores de esquerda. •Se é verdade que existe esse interesse pela obra de Nietzsche, somos agentes e testemunhas de outro interesse seminal pela obra de Marx e Engels, tantas vezes considerada moribunda•h, diz Ivana Jinkings, da Boitempo. A editora, que até o fim do ano deverá completar a publicação de nove títulos da dupla, investe em marxistas contemporâneos, como István Mészáros, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben e Immanuel Wallerstein. Recentemente, a Boitempo realizou curso livre sobre a obra de Marx e Engels que superou a expectativa dos organizadores: foram 1.500 inscritos e muita gente na fila de espera. Número de edições de livros por autor AUTOR OBRAS NA LISTA Friedrich Nietzsche 554 Georg Hegel 429 Martin Heidegger 287 Karl Marx 224 Arthur Schopenhauer 162 Soren Kierkegaard 160 Friedrich Engels 76 Georg Lukács 43 Fonte: Portal da Livraria Cultura [www.livrariacultura.com.br] 37 Reprodução A Revolução Francesa (ao alto), do final do século XVIII, foi influenciada e influenciou pensadores importantes, como Rousseau e Hegel. É a era do liberalismo radical. A Comuna de Paris, oito décadas depois, é de outro período, o das revoltas operárias, que antecedem a monopolização capitalista. Nietzsche, que viu nos grandes movimentos populares uma ameaça fatal à cultura da elite, é dessa fase. Suas idéias acabaram servindo ao nazismo, que chegou ao poder na Alemanha nos anos 1930 38 Politicamente, diz Schilling a Retrato do Brasil, “Nietzsche era um reacionário, um filósofo que detestava os fracos e as mulheres e fazia mofa da democracia e dos direitos iguais. Defendia o surgimento de uma nova elite, a dos super-homens.” Schilling acha que Nietzsche “é o maior derrotado do nosso tempo”, mas “continua um escritor de charme inabalável”. E um grande vendedor de livros que oscilam entre a consolação para as inquietações e dilemas da pequena burguesia e a defesa intransigente da hierarquia social. “Nietzsche coloca como central em sua obra a vontade de poder, o papel dos grandes homens. O resto, para ele, é uma massa amorfa, inerte, acostumada a ser explorada e pronta para se submeter aos desejos de uma elite”, afirma o professor de Filosofia na Unicamp João Quartim de Moraes. Em sua opinião, o que atrai em Nietzsche é sua oposição ao conformismo. “Ele critica a resignação trazida pelo cristianismo, porém defende a reação por meio do individualismo e do estímulo à criatividade individual. É nesse sentido que parece bastante convincente.” Na visão do professor do Departamento de Psicologia da Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências Milton Barbosa, “os filósofos da desilusão com o homem são uma espécie de projeção crítica da mentalidade entristecida de nossa época”. Nietzsche se insere nesse clima. Ele “expõe suas idéias de uma forma dramática, carregada das perguntas e dúvidas que assolam a vida das classes médias dos grandes centros urbanos, e sua forma de escrever fascina e inspira”, diz. Na atualidade, avalia Barbosa, o que faz sua figura ser tão atraente é o “desejo de ir além da barbárie que domina o mundo e de se opor à degradação da vida”. Mas o que é essa barbárie? As conferências realizadas por Nietzsche na década de 1870, intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, trazem uma pista do que ele entende por isso: “A formação mais geral, isto é, a barbárie: eis aí a premissa do comunismo... A cultura geral passa a odiar a verdadeira cultura...” Ou seja, barbárie é a democratização e a valorização do trabalhador e das pessoas comuns, que ele, pejorativamente, encara como “rebanho”. Para muitas pessoas, essa saída individual, inócua, é a única que elas conseguem enxergar ou realizar. *colaborou JOSÉ CARLOS RUY. retratodoBRASIL 13 realização Inscreva-se e ganhe: Uma assinatura da Fórum até fevereiro de 2009 Um exemplar do livro Geração de Trabalho e Renda retratodoBRASIL 13 A revista Fórum e a Fundação Banco do Brasil vão levar cinco professores do ensino público fundamental para participar do Fórum Social Mundial em janeiro de 2009, na cidade de Belém (PA). Serão premiadas as melhores propostas de difusão do conceito e das experiências de Tecnologia Social na comunidade. PARTICIPE 39 40 retratodoBRASIL 13