Transgênicos sem
maniqueísmo
VALLE, S.: ‘Transgênicos sem
maniqueísmo’. História, Ciências,
Saúde — Manguinhos, vol. VII(2),
493-98, jul.-out. 2000.
Transgenics without
manichaeism
Vivemos em uma época marcada
pela hegemonia da ciência e da
tecnologia, carregada de questões à
espera de respostas, para que o
futuro da humanidade seja alcançado
de forma segura e sustentável.
O desenvolvimento de processos
agroindustriais — especificamente, a
produção de alimentos — com
tecnologia de DNA recombinante tem
trazido perspectivas de bons lucros
apenas para os grandes
conglomerados da biotecnologia e
para produtores rurais com alto grau
de desenvolvimento tecnológico.
Discordamos de uma moratória para
a tecnologia do DNA recombinante.
Além disso, afirmações de ausência
de risco podem levar a conclusões
precipitadas, pois pouquíssimos
testes foram realizados até hoje.
É premente que se estabeleça uma
política nacional de biossegurança,
que envolva a sociedade civil
organizada e todos os órgãos de
governo (federal e estaduais)
responsáveis pela fiscalização, e que
se implantem um programa de
biovigilância e um código de ética de
manipulações genéticas.
Silvio Valle
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Rua Oliveira Machado, 8 apt. 101
24220-240 Niterói — RJ Brasil
[email protected]
[email protected]
PALAVRAS-CHAVE: biossegurança,
alimentos transgênicos,
biotecnologia, princípio da precaução,
equivalência substancial,
biovigilância.
VALLE, S.: ‘Transgenics without
manichaeism’. História, Ciências,
Saúde — Manguinhos, vol. VII(2),
493-98, July-Oct. 2000.
We live in an era characterized by
the hegemony of science and
technology, an era fraught with
questions awaiting answers which
would enable a safe and sustainable
future for humankind. The
development of agro-industrial
processes — food products in
particular — through recombinant
DNA technology has enhanced the
profit prospects of the few big
biotechnology companies and of
large-scale farmers who have access
to the latest technological
developments. We thus oppose a
moratorium on recombinant DNA
technology. Moreover, hasty
statements about risk-free
transgenics may be misleading in the
absence of extensive safety tests.
There is a pressing need for the
establishment of a biosafety policy in
this country involving the organized
civil society and every government
agency responsible for monitoring
such matters. There is also the need
to put in place a bio-surveillance and
a code of ethics regarding genetic
manipulation.
KEYWORDS: biosafety, transgenic
foods, biotechnology, the
precautionary principle, substantial
equivalence, bio-surveillance
program.
Vivemos em uma época marcada pela hegemonia da ciência e da
tecnologia, carregada de questões à espera de respostas, para que o
futuro da humanidade seja alcançado de forma segura e sustentável.
No tema que nos interessa, trata-se de adotar um duplo ponto de
partida: o uso do conhecimento científico não deve ser precipitado,
ameaçando causar desequilíbrios genéticos, mas tampouco a sociedade
deve recusar avanços científicos. Nesse contexto, tentaremos
evidenciar algumas incertezas presentes nos processos que envolvem
a moderna biotecnologia, em especial no que diz respeito aos
alimentos transgênicos.
Melhoramentos que envolvem a engenharia genética podem ser
considerados mais precisos, pois se conhece previamente qual
característica genética está sendo introduzida. Entretanto, no caso da
soja resistente ao glifosato, foi utilizada a biobalística, que consiste em
bombardear o gene de interesse para dentro da célula vegetal, para
que ele se integre ao genoma desta última.
Essa técnica, além da baixa eficiência — em média, 20% de
aproveitamento na soja —, não possibilita a exata localização do gene
inserido. Permite, porém, que se introduzam genes em espécies
distintas; por exemplo, uma característica genética do homem, de
outra espécie animal ou de bactérias pode ser introduzida em plantas,
e assim por diante. A capacidade de transferir genes torna-se
praticamente ilimitada. Eis o ponto crucial na avaliação do risco: depois
de incorporado, o gene pode ser transmitido para as gerações
seguintes.
O desenvolvimento de processos agroindustriais — especificamente, a
produção de alimentos — com tecnologia de DNA recombinante tem
trazido perspectivas de bons lucros apenas para os grandes conglomerados da biotecnologia e para produtores rurais com alto grau de
desenvolvimento tecnológico. Em nosso país, o agricultor e o
consumidor — sendo este o elo final da cadeia — ainda não se
sentiram atraídos. Ao contrário, acumulam-se incertezas, quase
sempre geradas por discussões sobre uma regulamentação que não
garante a segurança desses alimentos.
Grupos econômicos, políticos e organizações não-governamentais
usam argumentos e defendem interesses de forma muitas vezes
maniqueísta. Enquanto isso, a sociedade está em um estágio decisivo
para viabilizar ou não uma tecnologia que — se devidamente
entendida, controlada, aplicada e rastreada — pode contribuir muito
para a qualidade de vida das pessoas.
A rastreabilidade dos alimentos transgênicos, apesar de prevista no
Código de Defesa do Consumidor (através da rotulagem), deve ser
analisada, preferencialmente, em bases científicas, visando a
responder perguntas inerentes às questões de saúde pública. Aspectos
éticos e culturais também precisam ser considerados.
Sobre as plantas transgênicas que já estão no mercado, é importante
refletir a opinião de Elói Garcia, presidente da Fundação Oswaldo Cruz,
em palestra sobre o tema no Centro de Pesquisas René Rachou, em
Belo Horizonte: "É justo considerar a biotecnologia moderna somente o
desenvolvimento de genes ‘exterminadores’ ou de genes de
‘resistência’ a um herbicida de determinada empresa? Não é provável
que os genes escolhidos pelas empresas biotecnológicas para o
desenvolvimento de seus produtos não sejam os adequados?"
A preocupação com a saúde pública foi manifestada pela Associação
Médica inglesa, que considera prematura a introdução de alimentos
transgênicos na Inglaterra por causa da insuficiência de dados sobre a
segurança do processo de produção. De acordo com a Organização
para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial de
Saúde (OMS), define-se segurança alimentar como a garantia de que
um alimento não causará danos ao consumidor quando preparado e/ou
ingerido de acordo com as especificações estabelecidas.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (CDE)
adotou o conceito de "equivalência substancial" como indicador da
segurança de alimentos ou de seus componentes derivados da
biotecnologia. Esse conceito passou a ser definido da seguinte forma:
"Se não existir diferença aparente entre um alimento geneticamente
modificado (AGM) e sua contrapartida natural (o alimento
convencional), considera-se que o AGM é seguro, de acordo com a
legislação atual."
A FAO e a OMS consideram que o critério da "equivalência substancial"
aplica-se apenas a avaliações de alimentos já existentes e cujas
características sejam bem conhecidas. Millstone et alii (1999), por sua
vez, consideram que esse conceito é "pseudocientífico".
O procurador federal no Distrito Federal, Aurélio Rios, avaliou dessa
forma os argumentos apresentados pela empresa produtora da soja
transgênica junto à CTNBio e ao Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI):
Sobre o assunto, é interessante notar que a Monsanto sustenta pontos
de vista diametralmente opostos quanto às características da soja
Roundup Ready. Quando se fala em segurança alimentar, para efeito
de rotulagem da soja transgênica, o produto é considerado
substancialmente igual à soja natural. Quando se fala em propriedade
intelectual, o mesmo produto passa a ser considerado
substancialmente diferente, como mostram os pedidos de registro de
patentes por ela feitos junto ao INPI.
Nesse contexto, propomos um programa de desenvolvimento
tecnológico que contemple os seguintes tópicos: levantamento dos
alimentos processados com possibilidades de ter origem em (e/ou
efeitos de) um processo envolvendo tecnologia de DNA recombinante;
elaboração de métodos para detecção de organismos geneticamente
modificados e proteínas correlacionadas, em alimentos processados e
não processados; desenvolvimento de métodos preditivos para o
potencial alergênico dos alimentos geneticamente modificados;
investigação da possível transferência de material genético dos
organismos modificados para a flora intestinal; investigação da
estabilidade de expressão da transgênese.
Discordamos de uma moratória para a tecnologia do DNA
recombinante. Constatamos, porém, que já existe uma "moratória
judicial" para a soja transgênica, visto que seu cultivo comercial está
sub judice, por causa da falta do estudo de impacto ambiental. Apesar
desse antecedente, a CTNBio emitiu parecer afirmando serem seguros,
para uso na alimentação animal, diversos cultivares de milho
transgênico que possuem toxina de uma bactéria, incorporada à planta
com o objetivo de matar determinados insetos. Por suas afinidades
com os agrotóxicos, tais cultivares também precisam ser avaliados.
A Academia Brasileira de Ciências (ABC), no documento ‘Plantas
transgênicas na agricultura’ (www.abc.org.br), recomenda que sejam
implantados sistemas reguladores de saúde pública. A CTNBio, por
intermédio da instrução normativa no 18, deixou de dar parecer sobre
os derivados de organismos geneticamente modificados, como
determina a regulamentação da lei de biossegurança. Porém, os
órgãos de vigilância sanitária não assumiram a responsabilidade por
essa análise, o que é grave. A liberação de todas as variedades de
milho transgênico, feita de maneira inapropriada, teve como referência
a portaria no 134/95 da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde
(sobre Bacillus thuringiensis, Bt), que é específica para inseticida
biológico aplicado sobre as plantas e não para toxina inserida no
próprio vegetal. No entanto, quando a portaria foi adaptada ao milho
transgênico Bt não se recomendou que o importador considerasse as
normas de segurança e de manejo do produto, por ela determinadas.
Sobre o consumo dos transgênicos inseridos na cadeia alimentar
humana, a ABC se posiciona com muita propriedade: "A possibilidade
de efeitos adversos de longo prazo deve ser lembrada quando tais
sistemas são implementados. A informação deve estar disponível ao
público com referência aos seus suprimentos de alimentos, como eles
são regulamentados e sua segurança garantida."
No documento ‘A questão dos organismos geneticamente modificados’,
a SBPC recomenda: "A introdução dos organismos geneticamente
modificados na cadeia de produção de alimentos para uso humano
requer a divulgação — por meio da rotulagem de cada produto — da
informação detalhada e compreensível, para que a população possa se
orientar e decidir sobre seu consumo."
Voltando ao exemplo do milho transgênico Bt, o parecer da CTNBio não
aponta para a necessidade de uma segregação do produto, permitindo
que o mesmo seja misturado ao milho convencional. Assim, a
rastreabilidade fica impraticável e se dificulta qualquer programa de
biovigilância por parte dos órgãos vinculados à saúde pública.
Baseado no "princípio da precaução", Marco Maciel, vice-presidente da
República e autor da Lei de Biossegurança, também se posicionou
contra a liberação indiscriminada dos transgênicos e a favor da
participação do governo e da sociedade na análise dos pedidos de
importação, comércio, plantio ou experimentação.
Lembro que as plantas transgênicas disponíveis no mercado mundial —
como o milho, a soja e o algodão — não são consumidas in natura. A
quase totalidade do milho é para ração animal. Portanto, na maioria
dos atuais alimentos transgênicos produzidos a partir das plantas
geneticamente modificadas não é possível detectar o DNA ou mesmo a
proteína transgênica. Como tampouco são rotulados, não é possível
estabelecer um efetivo programa de biovigilância.
Além disso, afirmações de ausência de risco podem levar a conclusões
precipitadas, pois pouquíssimos testes foram realizados até hoje. Um
levantamento feito por Roig e Arnàis (2000), nas bases de dados
Medline e Toxiline de 1980 até 2000, aponta que só foram publicados
três traba-lhos experimentais sobre toxicidade e efeitos adversos dos
alimentos transgênicos.
A proposta de rotulagem que foi apresentada para consulta pública
pelo Ministério da Justiça, apesar de ser um avanço, não contempla
alguns aspectos importantes:
a) exclui os alimentos cujo material genético (DNA e proteínas
transgênicas) tenham sido destruídos ou não estejam presentes;
b) não se aplica aos aditivos alimentares;
c) não propõe um símbolo que identifique tais alimentos, o que
facilitaria seu reconhecimento por parte dos analfabetos;
d) exclui os alimentos não embalados, em especial os consumidos in
natura;
e) não prevê nem a segregação nem a preservação da identidade "IP"
como princípios indispensáveis para a rotulagem segura;
f) considera apenas fundamentos "científicos", esquecendo que os
alimentos possuem aspectos culturais.
É premente que se estabeleça uma política nacional de biossegurança,
que envolva a sociedade civil organizada e todos os órgãos de governo
(federal e estaduais) responsáveis pela fiscalização, e que se
implantem um programa de biovigilância e um código de ética de
manipulações genéticas. Os alimentos produzidos com organismos
transgênicos não apresentam, a priori, mais ou menos riscos que os
alimentos convencionais: o debate precisa ser feito sem maniqueísmo,
e a análise deve ser realizada de maneira adequada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Academia Brasileira de Ciências (2000) ‘Plantas transgênicas na
agricultura’, www.abc.org.br [ Links ]
Brasil (2. 12.1999) ‘Consulta pública sobre regulamento técnico para
rotulagem de alimentos e ingredientes geneticamente modificados’.
Diário Oficial da União. [ Links ]
Donaldson, L. e May, R. (1999) ‘Health implications of genetically
modified foods’. www.doh.gov.uk/gmfood.htm [ Links ]
Jones, L. (1999) ‘Genetically modified foods’. BMJ, 318: 581-4. [ Links ]
Lachmann, P. (1999) ‘GM food debate’. Lancet, 354: 1726. [ Links ]
Millstone, E.; Brunner, E. e Mayer, S. (1999) ‘Beyond substantial
equivalence’. Nature, vol. 401, pp. 525-56. [ Links ]
Rios, Aurélio Virgílio Veiga (ago. 1999) ‘Questões sobre biossegurança’.
Revista CEJ, p. 132-8. [ Links ]
Roig, Domingo José e Arnàis, Mercedes Gómes (2000) ‘Riesgos sobre la
salud de los alimentos modificados geneticamente: una revisión
bibliografica’. Revista Española de Salud Publica, vol. 74, no 3. [ Links ]
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (2000) ‘A questão dos
organismos geneticamente modificados’. www.sbpcnet.org.br [ Links ]
Valle, Silvio (2000) ‘As sociedades científicas e a biossegurança’.
www.ufrj.br/consumo [ Links ]
Valle, Silvio e Costa, Marco Antônio Ferreira (ago. 1999) ‘Controlar é
preciso’. Agroanalysis, vol. 18, no 8, pp. 35-7. [ Links ]
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