Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), Licenciado em História pela Universidade de Uberaba, Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF-MG [email protected] Resumo: O fundamentalismo islâmico é certamente um tipo específico de fundamentalismo, que deve ser compreendido como integrante de um gênero mais abrangente, que engloba outras espécies de fundamentalismo religioso, um fenômeno típico da modernidade. Em face da modernidade, o fundamentalismo religioso apresenta uma aparentemente paradoxal relação tanto de reação quanto de identificação. No caso específico do fundamentalismo islâmico, estas relações de reação e de identificação são dirigidas ao mundo ocidental, identificado com a modernidade, com seus valores de secularismo e laicismo. Sob esta perspectiva, o presente trabalho pretende analisar alguns casos emblemáticos na história contemporânea de países como Irã, Egito e Líbano, onde o fundamentalismo islâmico desempenha papel relevante como ideologia política. Palavras-chave: Fundamentalismo. Islã. Modernidade. Abstract: Islamic fundamentalism is certainly a specific kind of fundamentalism, and it ought to be understood as part of a broader genre which encompasses other species of religious fundamentalism, a typical phenomenon of modernity. In face of modernity, religious fundamentalism presents an apparently paradoxical relation of both reaction and identification. In the specific case of Islamic fundamentalism, these relations of reaction and identification are driven towards the western world, which is identified with modernity, along with their values of secularism and laicism. From this perspective, the present text intends to analyze some emblematic cases in contemporary history in countries like Iran, Egypt and Lebanon, where Islamic fundamentalism plays a relevant role as a political ideology. Keywords: Fundamentalism. Islam. Modernity Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 109 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Introdução Entre as várias razões pelas quais o fundamentalismo islâmico contemporâneo ocupa o imaginário ocidental com mais força do que outros movimentos fundamentalistas religiosos, pode-se destacar a rejeição aos valores ocidentais presente em seu ideário. Entretanto, o fundamentalismo islâmico é certamente um tipo específico de fundamentalismo, que deve ser compreendido como integrante de um gênero mais abrangente. O fundamentalismo não nasceu no mundo islâmico, mas no mundo protestante. O termo fundamentalismo tem origem norte-americana1, e foi se firmando a partir de uma série de panfletos redigidos pela ortodoxia protestante no início do século XX, sob o título “The Fundamentals: A Testimony to the Faith”. Por que, então, existe no Ocidente a percepção de que fundamentalismo é algo ligado somente ao mundo muçulmano? Uma característica de todos os movimentos fundamentalistas é a reatividade religiosa, que se dirige às “forças secularizadoras no mundo moderno”2. Se estas forças secularizadoras são percebidas pelos fundamentalistas cristãos ocidentais como um problema interno, no mundo islâmico a secularização e a modernidade são vistas pelos fundamentalistas como um mal ocidental, que vem de fora. A reatividade do fundamentalismo islâmico, assim, identifica secularização e modernidade com o próprio ocidente. Entre este e o mundo islâmico contemporâneo é inegável a existência de uma percepção mútua de inimizade que, mesmo possuindo raízes históricas mais antigas, foi sensivelmente estimulada pela expansão do poder político, técnico e econômico ocidental ao longo dos séculos XIX e XX. Tal expansão do poderio europeu não poderia deixar de repercutir profundamente na mentalidade dos povos islâmicos, para os quais são estranhas as noções ocidentais de secularização e de separação entre política e religião3. O fundamentalismo e o Islã Pace e Stefani4 identificam elementos que estão presentes em todas as formas de fundamentalismo religioso. Em primeiro lugar, o fundamentalismo sempre propõe um retorno do discurso religioso à esfera das discussões políticas. Se, no ocidente, havia até recentemente uma forte percepção de que a religião já havia se distanciado das questões políticas, os movimentos fundamentalistas, em quaisquer das grandes religiões, trazem de volta o discurso religioso, impedindo seus interlocutores de ignorá-lo. Este retorno do discurso religioso à cena política pode ser relacionado com a reatividade típica do fundamentalismo5, que ocorre diante de uma marginalização da religião. Um movimento fundamentalista pode almejar controlar o Estado no qual está presente, uma vez que o poder sobre o Estado é um instrumento poderoso para seus propósitos de combater a secularização6. A inserção do discurso religioso na política é, pois, indissociável do aspecto reativo dos movimentos fundamentalistas. 1 BRUCE, S. Fundamentalism. 2ª ed. Malden: Polity, 2008, p. 27 2 ALMOND, G.; SIVAN, E.; APPLEBY, R. S. Fundamentalism: genus and species. In MARTY, M. E. Fundamentalism Comprehended. Chicago: Chicago University Press, 1992, p. 409. 3 ANTES, P. O Islã e a política. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 123. 4 PACE, E.; STEFANI, P. Fundamentalismo Religioso Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2002. 5 ALMOND, G.; SIVAN, E.; APPLEBY, R. S. Op. cit. 6 Idem, p. 415. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 110 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Outro aspecto essencial do fundamentalismo é o princípio do “primado do livro”, ou seja, a necessidade de “referência constante e insistente a um livro sagrado”7. O “absolutismo e inerrância” dos textos sagrados, aliado à sua não submissão aos “cânones da racionalidade crítica”, é um aspecto essencial da interpretação fundamentalista dos textos religiosos8. Pace e Stefani9 desdobram este princípio do primado do livro em quatro elementos. O primeiro deles é a crença na inerrância do texto do livro sagrado em sua totalidade, ou seja, a igual validade de todas as partes do texto, sem possibilidade de interpretações que, por exemplo, concedam maior validade a trechos mais verossímeis em detrimento de outros mais fantásticos. O segundo é a não historicidade do livro, ou seja, o caráter atemporal do texto, que não pode ser interpretado como fruto de determinada época, ou do espírito de certo tempo, mas sim como um conteúdo eterno, igualmente válido em qualquer momento da história. O terceiro é a ideia de que o livro revela uma ordem divina superior à ordem terrena, da qual sempre será possível deduzir um modelo de sociedade perfeita. Por fim, o quarto elemento destacado por Pace e Stefani é o “primado do mito da fundação”, ou seja, a ideia de que o momento da fundação da religião é o ideal que deve ser emulado no estabelecimento da sociedade presente. No caso do Islã, este papel é desempenhado por Meca e Medina do século VII, quando viveu o Profeta. É importante observar que no Islã o primado do livro é particularmente fortalecido por um dos aspectos centrais de sua teologia. A partir do mesmo texto sagrado, o Alcorão, é possível o desenvolvimento de diversas correntes teológicas e jurídicas diferentes10, fato, aliás, verificável pela pluralidade cultural, política e social existente no mundo muçulmano. Mesmo assim, Peter Antes chama a atenção para o fato de que a teologia islâmica tem como um de seus pontos centrais a autoria divina do Alcorão. Para um muçulmano, o Alcorão não é um livro escrito pelo Profeta Mohamed, mas sim a própria palavra de Deus, em um sentido literal, diferente da noção de inspiração divina do cristianismo. Peter Antes faz uma analogia entre a encarnação do verbo em Jesus no cristianismo e a “enlivração” do verbo no islã11. Por último, é importante salientar a relação complexa que os movimentos fundamentalistas têm com a tradição. O fundamentalismo não é nem tradicional e nem conservador de uma maneira simples12. A tradição é um elemento essencial para o fundamentalismo, mas os fundamentalistas deparam-se continuamente com cenários da vida presente que impõem o desafio de preservar a tradição e, ao mesmo tempo, buscar nela respostas para situações concretas. Neste sentido, não é incorreto afirmar que o fundamentalismo é também moderno, uma vez que depende da modernidade para existir. As sociedades do mundo islâmico não puderam escapar de um processo global de modernização, mesmo que em escala diferente de outras partes do mundo. Por mais ênfase que os movimentos fundamentalistas dêem ao que se poderia chamar de nostalgia de uma era passada, a maior 7 PACE, E.; STEFANI, P. Op. cit, p.20 8 ALMOND, G.; SIVAN, E.; APPLEBY, R. S. Op. cit, p. 407. 9 PACE, E.; STEFANI, P. Op. cit, 2002. 10 ANTES, P. Op. cit, p. 32. 11 Idem, p. 36, nota 6. 12 BRUCE, S. Op. cit. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 111 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza parte dos muçulmanos hoje, incluindo os fundamentalistas, não vivem como viviam os muçulmanos do século VII. Alguns exemplos emblemáticos de movimentos fundamentalistas islâmicos A rigor, no mundo islâmico o termo “fundamentalismo” só deve ser aplicado a movimentos posteriores à segunda metade do século XVIII 13. Com a queda dos grandes califados, na idade média, o Império Otomano tornou-se a maior unidade política do mundo islâmico, até seu declínio no século XX após a Primeira Guerra Mundial. Mesmo assim, o Império Otomano já começou a experimentar um progressivo declínio a partir do século XVI, à medida que o ocidente expandia seus domínios através da navegação e do desenvolvimento técnico e científico. Na Península Arábica do século XVIII, formalmente parte do Império Otomano, diante desse progressivo declínio, começaram a surgir movimentos que Pace e Stefani14 chamam de despertar islâmico. Dentre estes movimentos, o mais importante foi o iniciado por Abdul Wahhab, o “Calvino Árabe”15. O Wahhabismo é um exemplo interessante por reunir alguns dos elementos característicos do fundamentalismo. Ao contrário dos ensinamentos do Alcorão, a religiosidade popular árabe no século XVIII consistia em preces a diversos santos, veneração de pedras, árvores e estátuas sagradas, além de um relaxamento na observância da lei corânica. Em reação a este quadro, Wahhab pregou um retorno aos princípios estabelecidos pelo Profeta Mohamed. Seu movimento foi muito bem sucedido, pois Wahhab foi apoiado por Ibn Saud, um dos muitos chefes tribais que disputavam o poder na região central da península. De forma análoga às conquistas do Profeta, Ibn Saud, fortalecido pelo movimento wahhabista obteve o poder na península e estabeleceu uma organização política vigente até hoje na Arábia Saudita, fundamentada na interpretação wahhabista dos preceitos corânicos. É interessante notar que todas as características do fundamentalismo estão presentes no bem sucedido wahhabismo, mesmo que o termo “fundamentalista” só tenha sido cunhado e se propagado no século XX. É interessante notar também que a reatividade deste “fundamentalismo” árabe do século XVIII se dá em relação a elementos internos ao mundo islâmico, seja diante da religiosidade popular, seja diante do Estado Otomano. Assim, na época de Wahhab, a reação fundamentalista se deu em relação àquilo que era percebido como uma deterioração interna da religião. Neste sentido, não se via uma necessidade de reforma, e sim de um retorno a uma ordem esquecida. O Islã viu a real necessidade de se reformar quando travou contato mais intenso com a expansão imperialista do ocidente e seu progresso científico e tecnológico, especialmente nos séculos XIX e XX 16. Colocava-se diante dos muçulmanos um desafio de modernizar seu mundo sem abandonar os fundamentos de sua fé, e é neste momento que o aspecto da reatividade diante da modernidade emerge com mais intensidade. 13 PACE, E.; STEFANI, P. Op. cit. 14 Idem 15 HOLDEN, D.; JOHNS, R. The house of Saud. London: Pan Books, 1982, p.20 e 21. 16 PACE, E.; STEFANI, P. Op. cit, p. 59 e 60. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 112 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Nas origens do fundamentalismo islâmico contemporâneo, visto como reação ao mundo ocidental e à penetração de seus valores, é importante mencionar o papel da Fraternidade Islâmica, ou Irmãos Muçulmanos, que, conforme Pace e Stefani17, está na raiz do radicalismo religioso muçulmano atual. Esta associação foi fundada na década de 1920 no Egito, impulsionada pelo arrefecimento do entusiasmo que se seguiu à independência de alguns Estados do mundo islâmico. Tal movimento via no fundamentalismo religioso uma opção diante do fracasso de ideologias surgidas no ocidente, como nacionalismo e socialismo, em modernizar os países do mundo muçulmano, especialmente os países árabes do Norte da África e do Oriente Médio. O que se vê ao longo da história deste movimento, com seus ideais de “estado islâmico”, “soberania de Deus” e jihad, é uma constante luta com o Estado Egípcio, especialmente com as elites nacionalistas. É importante ressaltar que este “estado islâmico” não se confunde com o ideal de um estado nacional. No fundamentalismo islâmico, este estado é, em última instância, supranacional, abrangendo todas as “nacionalidades” e as submete ao critério de igualdade entre os adeptos da fé, não podendo admitir o poder paralelo ou concorrente dos diversos Estados, que o fragmentariam. Em alguns momentos, esta luta no Egito atinge maior tensão, como no assassinato de um ministro do governo pelos Irmãos Muçulmanos em 1948, pelo assassinato do fundador da organização em 1949 e de seu sucessor em 1966 pelo regime de Nasser, pelo assassinato do presidente Sadat em 1981 e pelos atuais distúrbios que levaram à queda de Mubarak em 2011. A luta prolongada dos Irmãos Muçulmanos no Egito é um bom exemplo da alternância cíclica entre “quietismo” e ativismo, mencionada por Tamadonfar18 como característica do papel do fundamentalismo islâmico na política. Tanto no Egito como em outros países do mundo islâmico, é visível um aspecto do fundamentalismo para o qual Tamadonfar19 chama a atenção: todas as ideologias “importadas” são rejeitadas. Nacionalismo, liberalismo, socialismo, secularismo, tudo é visto como instrumento do poderio ocidental e obstáculo à soberania de Deus. Apesar de constantes conflitos travados interna e externamente, o fundamentalismo islâmico obteve um estímulo forte com o êxito da revolução iraniana de 1979, que alcançou seu objetivo de tomar o poder político em um Estado nacional e implementar um regime baseado em princípios religiosos. A importância da revolução no Irã para o mundo islâmico é tão intensa que Pace e Stefani20 chegam a afirmar que é um evento equivalente para os muçulmanos ao que foi a queda do muro de Berlim para os ocidentais. Além disso, a despeito das diferenças existentes entre sunitas e xiitas, a revolução iraniana foi celebrada por todos os muçulmanos fundamentalistas como uma espécie de “desforra de um inteiro povo contra os símbolos do ocidente – o Grande Satanás”21. 17 Idem, p. 67. 18 TAMADONFAR, M. Islamism in Contemporary Arab Politics: Lessons in Authoritarism and Democratization. In Religion and politics in comparative perspective. New York: Cambridge University Press, 2002. 19 Idem. 20 PACE, E.; STEFANI, P. Op. cit. 21 Idem, p. 77. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 113 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Ao expor os antecedentes históricos da revolução iraniana, Siavoshi22 destaca o confronto entre a dinastia Pahlavi, que governava o Irã antes de 1979, e o as elites religiosas. Estas tradicionalmente controlavam algumas funções do estado, como o sistema educacional e o poder judiciário. A política da dinastia Pahlavi via na secularização um pré-requisito para a modernização. Entretanto, o regime do Xá fracassou em promover a modernização do país, mesmo contando com reservas de petróleo para impulsionar o desenvolvimento econômico. O impacto do petróleo na economia do Irã foi paradoxal, pois apesar de ser uma valiosa fonte de riquezas, seu aproveitamento depende de um progresso técnico que o Irã não havia ainda alcançado em plena segunda metade do século XX. A ausência deste progresso técnico se evidenciava na total carência de uma infra-estrutura mínima que pudesse permitir a modernização pretendida pelo governo do Xá. Aliado ao fracasso econômico, o regime do Xá não era capaz de obter o mesmo apoio popular que os movimentos fundamentalistas obtinham com suas iniciativas sociais, que supriam as carências populares onde o Estado estava ausente. Estas iniciativas sociais dos movimentos fundamentalistas, por sua vez, acabaram por proporcionar, mesmo que em médio prazo, a modernização técnica e econômica que a dinastia Palahvi não foi capaz de conseguir. Na base destes movimentos fundamentalistas estava a ideologia do Ayatollah Khomeini, líder religioso que propunha um governo baseado em uma liderança calcada na lei corânica e na jurisprudência dela advinda. Neste governo, teria importância central a figura do vali, líder religioso com extenso conhecimento das leis divinas23. Assim, com a queda do Xá em 1979, Khomeini e seus partidários puderam organizar o Estado iraniano em um regime no qual desempenha papel central um líder religioso. Uma assembléia de setenta e dois membros, a maioria clérigos muçulmanos, foi convocada para redigir uma constituição baseada nas leis corânicas, e o próprio Khomeini tornou-se o primeiro líder supremo. A partir do momento em que os fundamentalistas obtiveram o poder, eles mesmos se depararam com alguns dilemas naturais que não eram sua preocupação anteriormente. O papel do estado é um destes aspectos polêmicos. Apesar de a política ser indissociável da religião no Irã, muito se debate sobre a extensão do papel do governo na esfera religiosa, pois há quem pense que o governo é responsável por todos os aspectos da vida religiosa dos cidadãos, enquanto há quem pense que o governo deve se limitar a suprir as necessidades temporais. Há ainda a sempre presente questão do nacionalismo em contraposição ao universalismo do islã em suas concepções fundamentalistas, dilema com que inevitavelmente se depararam os fundamentalistas quando se viram, eles mesmos, no controle de um Estado Nacional que é uma parte da fragmentação do mundo islâmico que os movimentos fundamentalistas desejam combater. Esse caráter universalista do fundamentalismo islâmico não deixou de guiar a política externa do Irã em seus primeiros momentos. Assim que a revolução obteve êxito no Irã, o universalismo 22 SIAVOSHI, S. Between Heaven and Earth: the dilemma of the Islamic Republic of Iran. In Religion and politics in comparative perspective: the one, the few, and the many. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 126. 23 Idem, p. 128. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 114 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza do fundamentalismo iraniano levou o governo a declarar guerra ao Iraque, já em 1980, com o intuito de estender a revolução ao país vizinho, que possui uma grande população xiita, da qual o governo iraquiano, nacionalista, era visto como opressor. Curiosamente, tal conflito foi movido por um Estado nacional contra outro em nome de um princípio religioso supranacional. Digna de menção nas relações entre Islã e política é a situação do Líbano após o êxito da revolução iraniana. Bruce24 expõe a situação libanesa na década de 1950, quando o país tornou-se um centro financeiro e comercial do Oriente Médio, no qual, porém, uma rica elite cristã maronita controlava um estado que não prestava serviços sociais à população pobre muçulmana. Novamente, tal quadro revelou-se fértil para o surgimento de movimentos fundamentalistas religiosos, nos quais seus integrantes identificavam-se mais com seu grupo étnico do que com a nação. Tal situação fez eclodir uma guerra civil em 1958, no qual árabes nacionalistas rebeldes desafiaram o estado controlado pelos cristãos. Os Estados Unidos da América intervieram militarmente e instalaram no poder um presidente da minoria étnico-religiosa druza. A situação permaneceu estável até meados da década de 1970, quando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi expulsa da Jordânia e deslocou 300.000 refugiados palestinos para o Líbano, Com este contingente de árabes, o equilíbrio se rompeu e eclodiu uma guerra civil em 1975. Esta guerra durou quatorze anos, durante os quais ocorreram diversas intervenções estrangeiras, por parte da Síria, de Israel, dos EUA e da Arábia Saudita. No meio desta crise, o Irã vislumbrou mais uma oportunidade de exportar sua revolução, armando e organizando a minoria xiita da população libanesa. Foi então fundado o Hezbollah, o partido de Deus, que conta com uma milícia armada e até mesmo com contingentes do exército iraniano. O Hezbollah expressamente declara sua intenção de suplantar o Estado Libanês e estabelecer um amplo Estado Islâmico, sendo, portanto, inevitavelmente um fator de desestabilização do país. Isto é inclusive afirmado por alguns dos líderes clérigos do partido, que expressam sua intenção de destruir o estado libanês a partir de dentro25. Conclusão A análise da realidade interna do mundo muçulmano e do fundamentalismo islâmico revela, em primeiro lugar, um fato importante: ao contrário da percepção de grande parte da população ocidental, o mundo islâmico não é monolítico e nem seus movimentos fundamentalistas o são. Como mencionado acima, se o fundamentalismo é um gênero e se o fundamentalismo islâmico é uma espécie, a fragmentação do mundo islâmico permite afirmar a existência de subespécies de fundamentalismo. Conforme Bruce observa, “a tendência natural do extremismo é a fissão, amplificada por outras fontes de identidade tais como etnia e nacionalidade, e encorajada pela manipulação 24 BRUCE, S. Op. cit., p. 58. 25 TAMADONFAR, M. Op. cit, p. 161. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 115 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza externa”26. Apesar da descrição precisa de Tamadonfar27, de que os “islamistas rejeitam o nacionalismo porque o Islã é uma ideologia universalista que se sustenta na unidade da comunidade dos crentes”, ou que “os fundamentalistas consistentemente rejeitam qualquer forma de particularismo etno-racial ou nacional”, é importante ressaltar a observação realista de Bruce28 acerca da resiliência do Estado-nação, exemplificada pela sobrevivência de diversos Estados estabelecidos “artificialmente” a partir dos movimentos de descolonização e retração do imperialismo ocidental. Vê-se nisso uma competição entre o nacionalismo e o universalismo fundado em ideais religiosos muçulmanos. Não obstante, movimentos de cunho fundamentalista no mundo islâmico têm demonstrado sua força ao se fazerem presentes junto a grupos sociais e comunidades que se vêem abandonadas pelo Estado, como no exemplo acima descrito do Irã, ou no Egito e na Líbia, palcos atuais de revoltas contra governos ditatoriais eminentemente nacionalistas. Este, entre outros fatores, aliado ao caráter de alternância entre “quietismo” e ativismo religioso, comum no mundo islâmico conforme bem observou Tamadonfar29 , permite conjecturar que o fundamentalismo religioso tem a capacidade de persistir, e provavelmente persistirá, como uma força política considerável no mundo muçulmano, a despeito da inevitável modernização e das constantes transformações do mundo contemporâneo. 27 TAMADONFAR, M. Op. cit, p. 145. 28 BRUCE, S. Op. cit, p. 65. 29 TAMADONFAR, M. Op. cit. Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 109-118, 2011 116 Reação e Identificação nas Relações entre Fundamentalismo Islâmico e Modernidade Humberto Araújo Quaglio de Souza Referências ALMOND, Gabriel A.; SIVAN, Emmanuel; APPLEBY, R. Scott. Fundamentalism: genus and species. In MARTY, Martin E. Fundamentalism Comprehended. Chicago: Chicago University Press, 1992. ANTES, Peter. O Islã e a política. São Paulo: Paulinas, 2003. BRUCE, Steve. Fundamentalism. 2ª ed. Malden: Polity, 2008. HOLDEN, David; JOHNS, Richard. The house of Saud. London: Pan, 1982. KEPEL, Gilles. Las políticas de Dios. Bogotá: Norma, 2007. O ALCORÃO: tradução de Mansour Challita. Rio de Janeiro: Acigi, s.d. PACE, Enzo; STEFANI, Piero. Fundamentalismo Religioso Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2002. SIAVOSHI, Sussan. Between Heaven and Earth: the dilemma of the Islamic Republic of Iran. In Religion and politics in comparative perspective: the one, the few, and the many. 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