Frei Carlos Mesters: Vejo esses trinta anos, dos anos 60 até hoje, como uma semente plantada. Semente boa, que foi crescendo, mas que já estava no chão antes do Vaticano II. Já havia um trabalho de divulgação bíblica aqui no Brasil desde os anos 40 e 50, sobretudo com as Semanas Bíblicas. A preocupação era, basicamente, conhecer melhor a Bíblia. O Vaticano II estimulou, e essa leitura da Palavra foi provocando o surgimento de comunidades em toda parte. O povo foi se agregando em grupos. A Palavra foi agrupando as pessoas. E, sobretudo, depois de Medellín (1968), houve aqui no Brasil o começo forte de formação das CEBs, em que o povo, lendo a Bíblia, começou a olhar também a realidade. Temos, então, três etapas: conhecer a Bíblia, viver em comunidade e essa comunidade existe a serviço da realidade. São três elementos básicos que vão aparecendo nessa caminhada feita nos últimos trinta anos. O primeiro desafio para o futuro é manter esses três pontos unidos: colocar em dia o conhecimento, manter a comunidade viva — porque lá existe a fé que nos faz enxergar o Espírito — e manter sempre essa atenção da comunidade para a realidade do povo. A Igreja não é uma realidade em si mesma. Ela existe a serviço da vida e da humanidade. O segundo desafio é que a Palavra de Deus tem duas dimensões básicas. É luz e força. Luz enquanto nos traz consciência, conhecimento crítico da realidade. Força enquanto nos ajuda a caminhar. Na realidade pastoral isso está um pouco separado. Os movimentos carismáticos insistem mais na força e os libertadores na luz, na consciência mais crítica. É um desafio tentar unir essas duas dimensões, para superar o perigo do fundamentalismo que nos ameaça de todos os lados. Outro desafio é colocar a exegese, o estudo da Bíblia, a serviço dos pobres — e não apenas buscar aí o aumento do conhecimento —, numa linha de libertação sobretudo ecumênica. O ecumenismo cresce na medida em que estudamos a Bíblia para servir à vida, como Jesus falou: “vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Um outro desafio é a leitura feminina ou feminista da Bíblia. Nas comunidades, a maior parte das pessoas que participam são mulheres e entre os exegetas a maior parte são homens. Aí há um desequilíbrio, porque o olhar da mulher percebe coisas que o homem não percebe. É importante que essa leitura seja estimulada o mais possível. Às vezes o pessoal fica preocupado com a leitura que se diz reducionista, progressista, libertadora, marxista da Bíblia. Acho que o perigo muito maior é a leitura fundamentalista, porque ela faz o que Jesus (e a própria Bíblia) nunca fez: desligar a Palavra da vida. Ela desliga e faz o que Jesus combateu. Os fundamentalistas dizem: “o homem é para o sábado”. Jesus diz: “Não. O sábado é que é para o homem”. Não é fácil enfrentar esse problema da leitura fundamentalista, porque há muito mais gente que faz essa leitura do que a libertadora. No Brasil, grande parte do povo pobre que está nos movimentos pentecostais faz leitura fundamentalista. Muitas vezes o movimento carismático, não digo que seja totalmente fundamentalista, tende para esse tipo de leitura. Todos temos tendências à leitura fundamentalista. Não é só a Igreja católica que tem fundamentalistas; protestantes, judeus, muçulmanos e budistas também têm. O fundamentalismo é um movimento que afeta toda a humanidade. É sinal de insegurança. É desejo de se agarrar nestes tempos difíceis em que nos encontramos. O que pode ajudar a enfrentar o fundamentalismo é a ligação da Bíblia com a vida. Isso de duas maneiras. Uma ligada à vida de hoje e outra estudando o texto que mostra ter nascido de uma situação muito concreta de vida do povo daquele tempo. O agente tem obrigação de estudar a Bíblia para poder mostrar que ela nasce de uma situação concreta. Ela não cai do céu. A chuva cai do céu, mas a planta nasce de uma terra concreta. Outra coisa para ajudar a superar o fundamentalismo é fomentar a vida comunitária, que traz segurança. O fundamentalismo nasce, em parte, da falta de segurança. É na comunidade que encontro Deus presente na vida. Se eu encontro irmãos e irmãs, isso pode me ajudar a superar o fundamentalismo. Seria o que hoje se fala que a comunidade começa a ser luz para o povo pelo Brasil afora. Essa é a tendência de serviço à vida. Um desafio extensivo a todos é a dimensão ecumênica da Palavra de Deus. A Palavra une todas as confissões cristãs: católicos, luteranos, metodistas, presbiterianos, batistas, anglicanos, assembleia de Deus. Todos temos em comum a Palavra de Deus. O que aparentemente nos divide, deveria ser fator de união.