A EDUCAÇÃO FORMAL E NÃO-FORMAL NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS LAGOINHA DE BAIXO E LAGOINHA DE CIMA, LOCALIZADAS NO MUNICÍPIO DE CHAPADA DOS GUIMARÃES - MT Ema Maria dos Santos Silveira Introdução “No advento de um novo milênio, espera-se que a história possa reconhecer verdadeiramente a igualdade entre os homens sem distinção. No Brasil em especial, impõem-se uma reflexão diversa, seguida de uma ação transformadora no sentido do reconhecimento de todos, na perspectiva democrática. Por sua formação histórica, a sociedade brasileira é marcada pela presença de diferentes etnias, grupos culturais, descendentes de imigrantes de diversas matrizes culturais e nacionalidades, religiões e línguas.” (MEC/SEC:1998). A diversidade étnica constitui o traço mais importante da identidade brasileira. A multiplicidade de matrizes da nossa formação cultural, não pode ser desconsiderada no processo educacional, ou continuar á margem dos currículos escolares, priorizando a visão hegemônica e unilateral de mundo. A História de um Brasil multicultural e multiétnico deve ser concebida, como fonte fundamental para entendermos nossa humanidade diversa. Os currículos escolares precisam contemplar “o conhecimento de todos os povos, de todos os grupos, sem exclusão. Somente assim, a grande maioria que compõem a mestiçagem do país poderá reconhecer-se e ser reconhecida como detentora de valores humanos e partícipes do processo civilizatório (MEC/SEC: 1998).” O conhecimento da diversidade cultural tornou-se elemento indispensável para viver num contexto democrático. O conhecimento e a revitalização da memória coletiva e da história, tanto dos diversos grupos indígenas, como das comunidades negras brasileira e do Mato Grosso, é o caminho para diminuir em grande parte, as distancias e desigualdades tão presentes no país. Conforme aponta Kabenguele Munanga, o conhecimento das nossas raízes, “não interessa apenas aos alunos de descendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas principalmente brancas, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas.” (MUNANGA: 2005). Não podemos perder de vista, que a memória é patrimônio de todos os cidadãos, e que nenhum segmento da nossa composição social, pode ficar de fora do processo educativo, sob pena de cercearmos o direito dos sujeitos conhecer sua própria história: “não somente aos negros, mas a todos os sujeitos históricos, é a cultura que alimenta e constrói o nosso quotidiano, é fruto de todos os segmentos étnicos, que de todas as maneiras e escalas diversas, se desenvolvem, alimentam e contribuem para a formação econômica e social e da identidade brasileira. (MUNANGA: 2005). É nesse sentido que elaboramos este projeto de pesquisa, com a finalidade de analisar e conhecer o processo educativo vivido no cotidiano de duas comunidades de remanescentes de Quilombo, na região conhecida como Lagoinha de Baixo e Lagoinha de Cima, e sobretudo, compreender aspectos das Africanidades mato-grossenses. Uma das características de uma escola, situada em área de remanescentes de quilombo, diz respeito ao tratamento dos conteúdos, que nem sempre são aqueles que os livros didáticos difundem. As relações ali travadas, o lugar histórico, a localização peculiar, as formas de sobrevivência do grupo, a oralidade, a corporeidade, são os principais componentes pedagógicos. Nestas comunidades, a docência tem um olhar mais atento às diversidades étnico-raciais, pois a diferença se constitui no patrimônio local. A diversidade enriquece, não inferioriza. Nos últimos anos, as Comunidades remanescentes de quilombos vêm ganhando no cenário nacional maior visibilidade, ocupando, de variadas formas, espaços nos meios de comunicação. O estado de Mato Grosso abriga em seu território, várias comunidades negras remanescentes de quilombos. O interesse pelo reconhecimento destas comunidades por parte das instituições públicas, é muito recente. As informações sobre elas são esparsas, necessitando, dessa forma, de pesquisas que contribuam no desvelamento das especificidades destas comunidades, que vivem no interior deste estado. As comunidades remanescentes de quilombos ainda são pouco conhecidas por grande parte dos brasileiros e mato-grossenses. Entretanto, levantamentos feitos pelos órgãos federais como a Fundação Cultural dos Palmares, ligado ao Ministério da Cultura, mencionam a existência de aproximadamente 743 comunidades localizadas em pelo menos 18 estados brasileiros, entre os quais encontra-se o Estado de Mato Grosso. O estado de Mato Grosso reúne grande contingente de comunidades quilombolas, atualmente, com cerca de 70 comunidades conhecidas, das quais, 67 encontram-se em processo de identificação. Segundo dados do INEP de 2004, a Região Centro Oeste, registra 4.922 estudantes matriculados em áreas remanescentes de Quilombos. A historiadora Elizabeth Madureira (1990), aponta que durante o período colonial, o “Vale do Guaporé, onde foi criada a capitania de Mato Grosso, cuja sede era Vila Bela da Santíssima Trindade, tornou-se a principal entrada de negros africanos, uma vez que com a intensificação da via da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, os escravos africanos eram uma das mercadorias mais desejadas pelos colonos de Mato Grosso”. Isso explica a forte presença negra, como traço característico da composição social desta região. O adensamento da região também proporcionou o surgimento de espaços tidos como alternativos, para os seguimentos minoritários, e excluídos como a população indígena e escrava. Assim se caracterizava os habitantes do Quilombo do Piolho (ou Quariterê). Este Quilombo foi um dos mais resistentes e também o mais populoso que se tem notícias. Tornou-se conhecido por volta de 1770 e a sua destruição ocorreu em 1791. Dados da mesma autora revelam que “abrigou na época da destruição, mais de 600 escravos africanos entre homens, mulheres e crianças”. Segundo a autora, viviam neste Quilombo negros, crioulos, índios da nação Cabixi, caburés até brancos pobres. Outros quilombos fazem parte da história do negro no Mato Grosso. Entre os séculos XVIII e XIX, são conhecidos 11 quilombos, em várias regiões que não somente na Região do Guaporé. Como é o caso do Quilombo Pindaituba, localizados em Chapada dos Guimarães, destruído em 1791; do quilombo Rio Manso localizado na região de Cáceres, sendo este, o último a ser destruído em 1873. Com a promulgação Constituição Federal em 05 de outubro de 1988, os grupos considerados diversos passaram a ser reconhecidos, tanto sob ponto de vista étnico, como cultural. Estas comunidades conquistaram o direito a terra. Onde quer que se situe hoje, os locais que abrigam remanescentes de Quilombos, devem ser reconhecidos como de propriedades destes, assegurando seus direitos de posse e cidadania e confirmando o direito dos quilombolas de se expressarem culturalmente. Diante deste contexto, faz-se necessário uma discussão a cerca do como se configura um quilombo. Genericamente, existem várias definições de quilombos, mas existe fatores locais e temporais que necessitam ser observados para uma compreensão histórica: “Do final do século XIX até quase o final da segunda metade do século XX, os quilombos foram tratados na historiografia e na educação brasileira como se restringindo a “redutos de escravos fugitivos” e as experiências do período escravista” (LIMA NUNES, 2006). Sobre conceito de quilombo contemporâneo pode ser definido como “comunidades negras rurais habitadas por descendentes de escravos que mantém laços de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em terra doada, comprada ou ocupada secularmente pelo grupo.” (MOURA, 1999). Conforme Antonio Moura (2004), atualmente, “o conceito de quilombo contemporâneo, abrange não somente as comunidades que têm vínculo histórico e social com os quilombos definidos pelo conceito restrito, mas passam a ser considerados quilombos, as outras formas dos escravos negros e ex-escravos libertos que mantiveram autonomia em relação aos proprietários de escravos e grandes proprietários rurais, em terras obtidas através de doação dos senhores, em terras compradas, e em terras ocupadas por não estarem sendo utilizadas, por serem terras de santos ou abandonadas pelos grandes proprietários, devido a queda de preços de produtos de plantação (MOURA, 2004).” O antropólogo Alfredo Wagner de Almeida destaca a importância de corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão do quilombo, sob pena de continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítico, nem a definição determinada pelo Conselho ultramarino de 1740. (Almeida: 2002) Essa forma generalizante construiu ao longo da história, uma idéia cristalizada de quilombo, como sendo o local que se remete a fuga, perseguição, esconderijo, sofrimento, angustia, pobreza, moradia temporária, transitória, ponto de chegada. Enfim, um local onde não fosse possível estabelecer relações, construir sentido, raízes, formas de sobrevivência, identidade. Um local estéril de humanidade. A compreensão do processo de educação formal e não-formal num espaço histórico de lutas e resistência, permite o conhecimento da diversidade destas comunidades. Possibilita conhecer outros aspectos e particularidades, revelando que cada grupo lançou mão de diversas estratégias para a constituição de sua identidade, o que definem o pertencimento de cada comunidade. Permite conhecermos: - Como se organizam estas comunidades nas esferas sociais, familiar, político, econômico, religioso, e cultural? - Como é a organização em espaços de Quilombo no sentido histórico e contemporâneo? - Como alunos e pais vivenciam os ensinamentos escolares? - Ocorre algum tipo de choque entre a cultura popular e a cultura escolar? - Afinal de contas, com o que as crianças, adolescentes e jovens quilombolas sonham? A importância de uma pesquisa nessa área se dá pela necessidade de compreender a nossa realidade e fortalecer a área de estudos de populações afrobrasileiras e mato-grossense, especificamente, focando a ERER - Educação das Relações Étnico-Raciais, implementando ação desencadeada pela Lei 10.639/03. Busca conhecer o processo educacional que se dá dentro e fora das comunidades, conhecendo as dificuldades que ainda enfrentam, principalmente quanto à acessibilidade aos meios de promoção, como é o caso da educação. Levantamentos já realizados apontam que em nenhuma destas comunidades existe unidade escolar. Para que as crianças e os jovens possam estudar, precisam se deslocar para escolas que pertencem a outras localidades, conforme acontece no Rio da Casca e das escolas urbanas do município de Chapada dos Guimarães. Vale ressaltar, que este deslocamento contribui em grande parte para o baixo nível de escolaridade entre os jovens e adultos. Conhecer os conflitos, os valores, entre a comunidade e a escola e qual a importância que a educação tem para as comunidades em questão é de grande importância para pensar políticas e práticas educativas que atendam as demandas do segmento negro. Dessa forma, esta proposta justifica-se ainda, pelo fato de tratar-se de uma área de estudo, que ao longo dos anos tem se revelado de grande interesse da sociedade brasileira e mato-grossense, tanto no plano cultural, na educação, na formação social e política e, sobretudo, fortalecer o debate sobre a persistência das comunidades étnicas nos limites do grupo, da região e da nação. Estudos realizados sobre comunidade sremanecsentes de quilombos, como é o caso da quilombola Kalunga, uma população de negros que vive na zona rural do nordeste do Estado de Goiás, revela que a escola na comunidade tem seu próprio calendário escolar, o qual resguarda os dias santos significativos para os indivíduos da localidade. Primamos pela importância de contextualizar as comunidades em questão para perceber de onde fala os seus atores e proceder a uma sociologia das condições de produção dos conhecimentos, desenvolvendo um descrição densa, inspirada nos estudos do antropólogo Cliford Geertz, que considera que a observação e a pesquisa “vão além das atividades rotineiras, como as entrevistas de informantes, observar rituais, deduzir termos de parentescos, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico, mas confrontar uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas as outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e o que o pesquisador tem que de alguma forma apreender (GEERTZ 1994).” Geertz afirma que “cultura” são “teias de significados” tecidas pelo homem, o significado que os homens dão às suas ações e a si mesmos. Filia-se as discussões que levam em conta o respeito e reconhecimento à diversidade cultural, em especial a Educação das Relações Étnico-Raciais, defendidas por educadores como Nilma Lino Gomes, Kabenguele Munanga, Iolanda Oliveira, Eduardo de Oliveira, Paulo Freire e tantos outros, que entendem que o ambiente escolar deve ser o espaço fundamental no combate ao racismo e a discriminação racial. O primeiro passo teve inicio com a realização de formação continuada para professores que atuam em área de remanescentes de quilombos, promovido pela Secretaria Estadual de Educação – SEDUC/MT, no município de Poconé-MT, em 2006. Este evento reuniu representantes de comunidades de vários municípios, e foi possível compreender que cada comunidade possui suas especificidades, e merecem ser conhecidas. Dando continuidade, iniciamos os levantamentos para conhecer as demandas das escolas localizadas nestas, áreas, e principalmente, conhecer a organização da aprendizagem, a composição curricular em contextos diversos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. D.O.U. de 10/01/2003 BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais e para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. CNE/CP 3/2004, de 10 Março de 2004. BRASIL.Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio/Ministério da Educação.Brasilia:MEC; SEMTEC, 2002. GEERTZ, Cliford. A interpretação das Culturas. HAGUETTE, T. M. F. Metodologias Qualitativas. In: Metodologias Qualitativas em Sociologia. Petrópolis, RJ:Vozes, 1982. INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Boletim nº 59, Brasília: MEC, 2004 LIMA NUNES, Georgina Helena. Educação Quilombola. In: Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília:SECAD, 2006. MUNANGA, Kabengele. In: “Superando o racismo na escola”. 2ª edição revisada/Kabengele Munanga, (org.).- Brasília: Ministério de Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. MOURA, Glória. In: Revista Humanidades. Nº 47, Novembro de 1999.ed. UnB SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. O Processo Histórico de Mato Grosso/Elizabeth M.Siqueira, Lourença Alves da Costa, Cathia Maria Coelho Carvalho – UFMT, Cuiabá, 1990. DISSERTAÇÔES, ARTIGOS: MOURA, Antonio Eustáquio de. Algumas considerações sobre os agrupamentos negros-rurais – comunidades remanescentes de quilombos/Comunidades Negras Rurais. Texto mimeo.2004 SILVA, Ana Van Meegen. “Comunidade Kalunga” – Dissertação de Mestrado/UFG , Texto mimeo. 2005