NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Manuel Ferreira Patrício
II
Guerra Junqueiro: A Alvorada
APROXIMAÇÃO À IDEIA DE PÁTRIA
Com Junqueiro A Águia ainda não existe, mas
já é. Está quase a chegar. A hora é de alvorada.
Vem aí o sol.
Dos voos d’ A Águia
aos voos da Nova Águia
O título do poema dramático Pátria, publicado
sob forma de livro em 1896, no Porto, é seguido
da epígrafe «Esta é a ditosa pátria minha amada» de Camões. (Guerra Junqueiro, Pátria, Porto,
Lello Editores, Edição do Centenário, 1996. É a
edição que seguimos.)
I
Introdução
Fernando Pessoa escreveu, a dada altura, sobre
a revista A Águia, em que inicialmente colaborou, e num momento em que esta se encontrava
em outra fase, menos criadora, estas palavras
enigmáticas… saudosas: «A Águia que voava».
A ideia em nós deixada é que essa Águia deixara
de voar. Sempre interpretei estas palavras como
significando elas que A Águia que voava era a
de Pascoaes.
Que Junqueiro foi um patriota, não duvido. Foi
também um temperamento excessivo. O poema
reflecte esse temperamento. Todavia, Fernando
Pessoa, em 1914, na resposta ao inquérito de Boavida Portugal, no jornal República, declarava que
«a Pátria de Junqueiro é, não só a maior obra dos
últimos trinta anos, mas a obra capital do que há
até agora da nossa literatura». Na nossa literatura havia Os Lusíadas e a fulgurante, fantástica e
omnímoda obra do Padre António Vieira.
Aí temos agora a Nova Águia que, naturalmente,
nasce para voar, quer voar, como lhe cumpre.
Bom será lembrar-se, neste momento decisivo –
o primeiro voo é sempre decisivo… –, d’A Águia
original e do seu voo. Foi sempre do chão pátrio
que essa águia levantou voo. Foi sempre para o
céu pátrio que essa águia ergueu o voo.
Mas não é esse o ponto que interessa aqui. Aqui
importa é o indiscutível patriotismo do poeta e
a ideia de Pátria que ele tem e vive. O amor e o
pensamento da Pátria.
São famosos, e formosos, os olhos da águia.
Vêem extraordinariamente bem e longe. Queremos que esta águia de agora nasça com os olhos
que lhe são próprios. E estou convencido de que
esses olhos têm o essencial do poder de Jano bifronte. Que, na verdade, é Jano trifronte. Está no
presente, que é de onde vê; olha para trás, que é
de onde vem; olha para a frente, que é para onde
vai. No presente, tem os olhos radicados na pátria; no passado, tem as raízes da memória; no
porvir, tem os anseios da vontade, do desejo e
da esperança. A emoção da pátria, a paixão da
pátria, o amor da pátria – eis o complexo afectivo, trino e uno, que nutre e orienta os olhos
da águia: da águia de ontem, A Águia; da águia
de hoje, a Nova Águia. Coroa desse corpo, dessa
alma e desse espírito – o conhecimento.
Na Cena VIII do poema intervêm o Rei (D. Carlos), Opiparus e Astrologus. No diálogo com o
Rei fala-se do Doido. O Doido parece ser a Pátria,
que segundo Astrologus endoideceu «de miséria
e de dor», «vai fazer três séculos». Falando do
Doido, fala solene o Astrologus: «Acaso, meu senhor, não vedes, como eu vejo, / Neste gigante,
em seu aspecto e seu fadário, / O quer que seja
de extra-humano e de lendário? / Maior que nós,
simples mortais, este gigante / Foi da glória dum
povo o semideus radiante, / Cavaleiro e pastor,
lavrador e soldado, / Seu torrão dilatou, inóspito
montado, / Numa pátria…» O Doido não é, portanto, a Pátria. A Pátria é o que o leva, o conduz.
Não erraremos se virmos nela um ser espiritual.
É então este que conduz o Doido, que é o Povo.
Continua o Astrologus, num arroubo: «E que pátria! a mais formosa e linda / Que ondas do mar
e luz do luar viram ainda!» (p.55) Segue-se a referência ao corpo físico da pátria. Primeiro a obra
do povo sobre a natureza: campos de milho e de
trigo, hortas, vergéis. Logo, a associação da natureza viva ao povo e seu trabalho: rouxinóis que
cantam, andorinhas que voam, gados que pastam. Logo, ainda, a como que fusão da natureza
e do povo e seu trabalho: as colinas brancas olorosas, o cheiro de sol, o cheiro de mel, o cheiro de
Voemos um pouco sobre as asas de ontem, nas
asas de hoje, desde já prefigurando e preparando os voos de amanhã. Celebremos nesse voo as
núpcias do estremecimento amoroso e do fulgor
gnósico. O celebrante é a nossa vontade de ser.
Como o deixou escrito Espinosa na sua Ética,
«todo o ser quer persistir no seu ser». Nós queremos persistir no nosso.
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rosas, as selvas fundas, os píncaros nevados, os
outeiros d’olivais, os nogais onde os pegureiros
tangem as suas frautas, os rios, as noras gemendo, as azenhas nas levadas, as eiras de sonho, as
grutas de génios e de fadas, e do povo o riso, a
abundância, o amor, a concórdia, a juventude.
Tudo a suavemente estremecer, como um zéfiro acariciante, numa harmonia virgiliana. Que
povo! Que natureza! «Um povo montanhês e heróico à beira-mar, / Sob a graça de Deus, a cantar
e a lavrar!» É o primeiro período da história, se
é que não da vida, da Pátria. Período que Junqueiro define assim, lapidarmente: «Pátria feita
lavrando e batalhando» (p. 56). A montanha e o
mar delineiam o Portugal de Pascoaes, em Marânus. Mas da beira-mar ao mar é menos que um
passo. Que o povo anseia dar, sonhando tudo,
«para além dessa bruma» (p.56). E lá vai ele. «Ữa
a manhã, / Louco, machado em punho, a golpes
de titã / Abateu impiedoso o roble familiar, /
Há mil anos guardando o colmo do seu lar. / Fez
do tronco num dia uma barca veleira, / Um anjo
à proa, a cruz de Cristo na bandeira…/ Manhã
d’heróis…levantou ferro…e, visionário, /Sobre
as águas de Deus foi cumprir seu fadário.» (p.57)
Seu destino, portanto. «O seu rumo era a luz, seu
piloto era Deus!» (p.57) Grande hora foi essa das
navegações pelo oceano-mundo. «Epopeia inaudita! Herói, ele a viveu, / Sonhador, a cantou:
Ésquilo e Prometeu!» (p.58) Ésquilo foi Camões.
Prometeu, Vasco da Gama. «Inda em hinos de
bronze, em estrofes marmóreas/Vibra eterno o
clangor dessas passadas glórias…» (p.58) Glórias. Passadas. «Mas a glória entontece e mata…»
(p.58) Entonteceu-o, matou-o. Dessa primeira
morte afinal ressuscitou. Foi 1580, foi 1640. «Mas
então, ó tristeza, ó desonra, ó desgraça! / Feras
do mesmo sangue, homens da mesma raça/
Envenenaram-no!...» (p.60) Foi, para Junqueiro,
a chegada letal dos Braganças. Com D. Carlos, o
veneno estava a agonizá-lo. Assim via e sentia o
poeta. É a morte da Pátria que este poema anuncia. É a Pátria morta que ele vela.
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como Cristo na cruz: «Deus! abandonas-me!...»
(p.182). E expira. Expira?!... Já fora do poema, o
autor-dramaturgo acredita, acredita ainda, na
ressurreição… da vida. À morte da Pátria sobrou
uma criança, um menino. É como, na derradeira
árvore do bosque, árvore nua e carcomida, uma
florinha última no tronco. «Flor de morte!...Flor
d’esp’rança!...» (p.183) Essa flor «nasceu de um
cadáver, e dela se hão-de gerar, talvez, os rumorosos bosques d’amanhã!...» (p.183). A espada de
Nun’Álvares, espada-símbolo da Pátria amada,
talvez um dia ainda venha a brilhar nas mãos
dessa criança, nesse dia homem. «Mistério…
mistério…» (p.183) Mas para o poeta é certo que
assim será. Ele vê que «invisivelmente, saudando a luz, as cotovias gorjeiam…» (p.183)
Todavia, o poeta olha para o País e só vê o tronco
morto da árvore, não vê nele nenhum botão de
flor grávido do bosque futuro. Exclama, quase
com raiva: «Povo messiânico, mas que não gera
o Messias. Não o pariu ainda […] Sonha a quimera, não a realiza.» (p.191)
Porque o que Junqueiro quer, desde o mais fundo da alma, não é a república, é a redenção da
Pátria. «Fora o rei um homem, que a nacionalidade moribunda se levantaria por encanto. E
bem se me dava a mim da questão politica, da
forma de governo.» (p.192) Isso é da ordem do
acidental. «Essencial, a forma do governante.»
(p.192) O lema de Junqueiro é: A Pátria acima de
tudo. Tem ela hoje ouvidos para o ouvir, este poeta que sozinho quase cavou a cova da monarquia, que matou o Rei e o Príncipe sem lhes atirar
sequer um grão de areia?!... Ou é hoje a crise da
Pátria imensamente mais funda, e mais grave,
que em 1896?!...
O fim da monarquia, a ressurreição da Pátria, tão
almejada, nada veio como o poeta sonhava. Eis o
que ele queria: «A metempsicose em moderno,
do grande Condestável, eis o meu sonho.» (p.195)
Eis o que veio: o Buíça, o Costa e o Afonso Costa.
Ele exclama: “Alma! eis o que nos falta.” (p.196)
E logo explicara: «Porque uma nação não é uma
tenda, nem um orçamento uma bíblia.» (p.196)
Não veio a alma.
A Cena XXIII é a derradeira do poema. É a cena
em que a Pátria morre. O único figurante é o
Doido. O Doido identificado com o Espectro de
Nun’Álvares. O Espectro de Nun’Álvares identificado com a Pátria. Sozinho no palco, o Doido
não dramatiza, declama. Dramatiza declamando. Chora. Esgota-se em sangue. Bendiz o pranto, bendiz o sangue que lhe corre das f’ridas.
«Súbito, numa visão interior, descobre em roda
dele as nações armadas, cerco de lobos à volta
de uma presa. Já no estertor, agonizando», brada
O republicanismo de Junqueiro é a consequência
logicamente impecável do seu patriotismo. Ele o
disse: «Viva a República! é hoje sinónimo de viva
Portugal!» (p.221) E Portugal é o nome da Pátria
adorada por Guerra Junqueiro. Da Pátria de que
disse Camões, e ele recolheu: «Esta é a ditosa pátria minha amada».
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