OLDACK RÓDER INTERTEXTUALIDADE E O RESGATE DA CULTURA POPULAR EM AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA MARÍLIA - SP 2009 OLDACK RÓDER INTERTEXTUALIDADE E O RESGATE DA CULTURA POPULAR EM AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação, em Comunicação, da Universidade de Marília, para o exame de defesa. BANCA EXAMINADORA Prof. Orientadora Dra. Suely Fadul Villibor Flory Prof. Dr. César Augusto de Carvalho Prof. Dra. Rosângela Marçolla DEDICATÓRIA À memoria de meus pais Attilio Róder e Maria de Lourds Róder e minha irmã Maria Alice que, mesmo nos seus últimos dias entre nós sempre torceu por mim, sendo exemplo e apoio e, onde quer que esteja será sempre luz em minha vida. Ao grande inspirador Ariano Suassuna: mestre, poeta, dramaturgo – o inventor de brasilidades e criador do Auto da Compadecida, em cujo trabalho literário procurei me aprofundar. AGRADECIMENTOS A Deus, o dispensador de todos os bens, Mestre dos mestres. A Quem tudo devemos e Aquele que em tudo nos provê. Ao meu filho Ruy, meu pequeno poeta, minha esposa Maria Aparecida, a nossa mãe Neusa e meus irmãos que sempre foram grandes incentivadores nesta jornada. À Prof.ª Dra. Suely Fadul Villibor Flory, minha dedicada orientadora. A todos os professores do Núcleo de Mestrado em Comunicação da Unimar e, de modo especial à Rosângela Braga Barbosa da Secretaria de Pós-graduação, pelo profissionalismo, dedicação e generosidade, a minha eterna gratidão. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Iluminogravura: O amor e o desejo 28 Figura 2 - Iluminogravura: O reino de Acauhan 29 Figura 3 - Iluminogravura: Abertura “sob pele de ovelha” 30 Figura 4 - Iluminogravura: Sonho 31 Figura 5 - Iluminogravura: Soneto de Babilônia e Sertão 32 Figura 6 - Iluminogravura: Lápide 33 Figura 7 - Iluminogravura: O campo 34 SUMÁRIO INTRODUÇÃO: IMPORTÂNCIA DO TEMA, AUTOR E OBRA 10 1.0 O MOVIMENTO ARMORIAL 17 2.0 LENDAS E CORDÉIS: A TRADIÇÃO ORAL NORDESTINA 35 3.0 O IMAGINÁRIO NA OBRA DE SUASSUNA 53 4.0 INTERTEXTUALIDADES: A CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO E DAS 71 PERSONAGENS NO AUTO DA COMPADECIDA 4.1 O REPERTÓRIO 71 4.2 A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NO ESPAÇO REGIONAL 78 NORDESTINO 5.0 UMA LEITURA DO RECEPTOR NO AUTO DA COMPADECIDA 6.0 AUTO DA COMPADECIDA: DA LITERATURA AO CINEMA 82 89 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS 96 REFERÊNCIAS 99 ANEXOS 105 RÓDER, Oldack. Intertextualidade e o resgate da cultura popular em Auto da Compadecida de Ariano Suassuna.2008. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Marília. RESUMO A escolha da obra Auto da Compadecida como corpus básico dessa dissertação foi motivada pela sua significativa representatividade no conjunto da produção de Ariano Suassuna, bem como sua importância no resgate da cultura popular, buscando na tradição oral nordestina e na produção literária dos cordéis destacar as lendas e mitos que povoam o imaginário popular. Busquei realçar no presente trabalho o estudo das intertextualidades e o resgate da cultura popular no Auto da Compadecida, do texto teatral ao texto fílmico, analisando a construção do repertório, das personagens, as mudanças e intertextos, que ocorrem na transposição de um código a outro e a criação de um “mundo possível ficcional” (ECO, 2002, p. 80) que resgata a tradição oral nordestina. Contempla, ainda, a importância do autor, Ariano Suassuna e a significativa expressão do Movimento Armorial como elemento de criação de arte erudita a partir de elementos próprios da cultura popular brasileira. Assim, no primeiro capítulo é feita uma abordagem sobre o Movimento Armorial como manifestação de resgate das tradições nordestinas, mescladas às influências das culturas européia, africana e indígena. O segundo capítulo traz uma visão das lendas e cordéis como fortes elementos da tradição popular, inspiradores da obra de Suassuna. A presença do imaginário popular como força criadora e patrimônio de um grupo, é a abordagem central do terceiro capítulo. O quarto capítulo percorre os meandros da intertextualidade, desdobrando-se nas análises das construções do repertório e das personagens, tendo como cenário o espaço regional nordestino. O quinto capítulo configurase por uma leitura do receptor e a interação entre texto/receptor que resulta na dimensão completa da obra. O sexto capítulo faz uma abordagem da transcodificação da peça teatral Auto da Compadecida para as versões televisiva e fílmica. Portanto, o trabalho desenvolvido pretendeu dimensionar a importância do autor e da obra, no território da dramaturgia brasileira e, numa visão mais abrangente, no contexto da cultura universal. Palavras chave: cultura popular, intertextualidade, personagens, receptor, transcodificação. RÓDER, Oldack. Intertextualidade e o resgate da cultura popular em Auto da Compadecida de Ariano Suassuna.2008. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Marília. ABSTRACT The approach of Ariano Suassuna’s play – Auto da Compadecida detach his importance in Brazilian culture and the amalgam between popular and erudite culture. This research observe the importance of the author, Ariano Suassuna, and the Armorial Movement. In the first chapter, the rescue of the Brazilian Northeast tradition mixtured with European, African and Aboriginal cultures. The second chapter approach about the legend and cords with elements popular tradition. The third chapter approach the popular imaginary what inspiration of the Suassuna work. In the fourth chapter, was can see the meanders of inter text, observing the constructions of repertory and characters in Brazilian Northeast. The fifth chapter emphasize at a reading of receiver and your interaction with the text. In the sixth chapter observing strategies of transposition and transcoding of the text/play into the version television and movie. Key-words: popular culture, inter text, characters, receiver, transcoding. INTRODUÇÃO: IMPORTÂNCIA DO TEMA, AUTOR E OBRA Ao decidir pelo tema da dissertação pretendemos nos aprofundar na obra Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2000) em função da sua importância no cenário da cultura brasileira. Tal decisão deve-se também à amplitude do trabalho de Ariano Suassuna que, conforme o título do ensaio escrito por Idelette Muzart Fonseca dos Santos, publicado no Caderno de Literatura Brasileira (2000, p.94) o“decifrador de brasilidades” é responsável, em muitas situações, pelo resgate de valores folclóricos, de danças, de contos fantásticos, da produção literária dos cordéis, de traços das heranças ibéricas e européias de modo geral, das tradições medievais, da junção das culturas popular e erudita, proporcionadas pelo conjunto de sua obra. Nosso objetivo foi traçar também, nesta análise da obra Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2000), uma visão da relevância do folclore para a literatura oral, num mergulho na identidade cultural nordestina, suas tradições, sua gente e religiosidade e, ao mesmo tempo, a inserção da obra de Ariano Suassuna na literatura universal. Buscamos também focalizar, com especial atenção, as estratégias de intertextualidade muito presentes na obra, que se fazem sentir pela aproximação entre a cultura popular e a cultura erudita e pela própria variedade de temas que são voltados ora ao social, ora à moral e religiosidade, ora à existência humana na complexidade de seus problemas. O percurso literário, trilhado por Ariano Suassuna, caracteriza-se por sua forte ligação com o Nordeste e, num contexto mais amplo, com o popular. Ressalta-se ainda um estreito contato com o mundo rural e suas tradições. 10 Apesar deste acentuado vínculo com suas origens e suas raízes, o escritor admite, assim como fez João Guimarães Rosa que, para ele, o sertão é o mundo, mas a sua obra é o universo (em Grande Sertão, o narrador Riobaldo afirma: “o sertão é o mundo”). Portanto, quem quiser encontrar as chaves da criação suassuniana, procurando nas ruas de uma cidadezinha do interior paraibano, certamente sofrerá uma decepção. Isto porque, embora a sua criação apóie-se em elementos do real, da crueza do sertão nordestino, Ariano usa, com máxima liberdade, o seu direito de transformar e criar. Esta aproximação entre o real e o imaginário, que permite e promove a relação com a cultura oral e popular nordestina brasileira, em vez de estabelecer limites, amplia os horizontes, dilata as abrangências, transforma o regionalismo e o próprio nacionalismo estreito, incentivando uma verdadeira viagem ao interior da cultura brasileira e dos sentimentos universais, transitando entre o popular e o erudito, num surpreendente entremear de universos. Um outro aspecto, ressaltado neste trabalho e muito visível na obra de Suassuna, é a presença de duas visões distintas do Brasil, apresentada com humor nas peripécias e astúcias de João Grilo e Chicó. Temos por um lado, a visão de um Brasil rural, povoado pelo sonho sertanejo, ao mesmo tempo explorado e relegado a um plano inferior que, no entanto, se revela capaz de artimanhas para compensar a sua situação de desvantagem em relação aos donos do poder e, de outro lado, o Brasil urbano que se faz representar por comerciantes (no caso do Auto, o padeiro e sua esposa) e pelos detentores do poder:o clero (com o Padre e o Bispo, mostrando inclusive as diferenças com relação à hierarquia), os coronéis e os militares. Enfim uma amostragem da distinção entre o “país real”, que é aquele do povo e o “país oficial”, que é aquele dominado pelos poderosos. 11 Tudo isso pode ser comprovado pela afirmação de Ariano Suassuna, ao concordar que a força do povo através dos poetas é que molda o país, preludiando o futuro. É a força do povo, anunciada e revelada pelo sonho e pela voz dos poetas, que molda o país e preludia o futuro. Cervantes era o porta-voz do seu povo – e, por isso, eu pude dizer, já uma vez: que a Espanha não seria o que é hoje se aquele poeta não tivesse sonhado e forjado o “Dom Quixote” (MORAES, 1992, p. 24). Num outro texto, escrito por Suassuna ao proferir sua Aula Magna na Universidade Federal da Paraíba, em novembro de 1992, ressaltamos uma importante referência com relação a Canudos e ao povo liderado por Antônio Conselheiro. Afirma o escritor que, em Canudos, a bandeira usada era a do Divino Espírito Santo. Era, pois, a bandeira do país real, do povo pobre, do negro, do índio e do mestiço. O país oficial, ou seja, o Brasil dos brancos e poderosos, mais uma vez, como já acontecera no Quilombo de Palmares, iria esmagar e sufocar o país real. Assim, a “justiça” dos poderosos esmagou a do povo. Esse confronto de visões opostas de justiça continua a se refletir neste país continente, a cada instante. Os acontecimentos de Canudos repetem-se quando uma milícia de poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, ou quando um morador de rua é brutalmente assassinado. Ou ainda, quando um índio é queimado vivo na capital do país e mesmo, quando os menores de rua são mortos à sombra da Candelária. Também quando em algum lugar qualquer, a polícia invade e destrói os barracos de uma favela, é a própria visão das pobres choupanas dos arraiais de Canudos. É Canudos que se repete, atirando, espancando e matando o Brasil real. Observamos que, na criação do Auto da Compadecida, nos é dada uma amostra de várias injustiças presentes nestes dois “Brasis” – o real e o oficial. 12 Quando o padeiro e sua esposa, tratam melhor os seus animais de estimação do que os seus empregados, ou quando, em nome de um suposto valor deixado em forma de herança para ser usado para o enterro da cachorra, as portas do impossível são abertas e o que era proibido pela Igreja, passa a ser possível, estamos diante desse confronto entre os poderosos e os pequenos, ou seja, entre os contrastes dos dois “Brasis”. Outros pontos importantes a serem destacados no Auto da Compadecida, bem como, em toda a obra de Suassuna, referem-se à retomada de uma herança cultural, que engloba: a reafirmação de temas populares, advindos da originalidade regional. A renovação dos modelos formais atrelados a uma temática nova, o recurso do uso de formas populares, a transcodificação do oral para o escrito, o aproveitamento das produções de cordel; enfim, a reelaboração erudita a partir de moldes primordialmente populares. Em Suassuna, a perfeita integração entre a matéria popular e a produção erudita conjuga-se através do binômio regional – universal, pois os temas, problemas e personagens do sertão nordestino passam a ser os mesmos de outras regiões, apenas expressos por roupagens distintas. Ariano Suassuna busca em suas recordações de Taperoá (nos sertões dos Cariris Velhos) suas raízes fincadas no estado da Paraíba; epicentro de sua produção literária, tornando-a o cenário para o desenrolar do seu Auto. Além disso, ele faz aproximar este pequeno ponto do sertão nordestino às criações cômicas do teatro cristão, encontrando profundas ligações entre ambos. Assim, dessa mistura de idéias e inspirações decorre todo hibridismo e originalidade de seu teatro, cuja tônica essencialmente jogralesca é ressaltada pela moralidade de seu epílogo, 13 correspondendo à morte de um cristão que confia na certeza da vinda da verdadeira justiça. Outras características marcantes do teatro de Suassuna, que se evidenciam também no Auto da Compadecida, são: a aproximação entre o profano e o religioso e a comicidade das personagens. Também a religião transparece nas peças do escritor, especialmente o catolicismo rural e popular, através das invocações aos Santos e da concepção de Nossa Senhora como mediadora e misericordiosa – a Compadecida dos homens. Há ainda a expressão do respeito a Cristo, o Filho de Deus e, como tal, o Juiz Supremo e Derradeiro, que, no entanto, curva-se aos pedidos de Maria, a sua mãe. A visão do Cristo na pele de um negro, conflita, de certo modo com a teologia Cristã, ao explicar o mistério da Santíssima Trindade como Três Pessoas em uma só. Ao colocar Cristo como o representante de Deus, há uma simplificação desta condição teológica e, conseqüentemente, uma “humanização” do divino, o que, aliás, é outra característica de seu Auto. No conjunto das operações textuais adotadas por Suassuna, podemos considerar como um dos procedimentos mais frequentes o uso da intertextualidade, ou seja, a retomada de um enunciado de outro texto, mantendo-o visível, com a possibilidade de ser reconhecido e demarcado sob outro, sem, no entanto, desligarse do sistema, sem perder a ambiguidade própria da literatura. Tais operações intertextuais em Suassuna apresentam-se sob duas facetas: a reelaboração do próprio texto, ou seja, a intratextualidade1 e o aproveitamento de texto alheio, que configura a intertextualidade2 propriamente dita, que em particular, no trabalho 1 Intratextualidade = alia-se à multiplicidade de vozes, à mobilidade e ao dialogismo, configurando-se pela ocorrência de um diálogo interior. 2 Intertextualidade = está relacionada ao intertexto, ou seja, texto preexistente a outro texto. É a ocorrência do diálogo exterior, numa relação móvel e polifônica do próprio texto em relação a outros. 14 literário do escritor incide tanto em textos da cultura popular quanto da cultura erudita. Podemos também observar que a abordagem do profano, na qual se situa a farsa, a comédia italiana ou “commedia dell’arte”, figura também como elemento agregador ou convergente, com presença acentuadamente marcada na obra teatral suassuniana. Procuramos focalizar neste trabalho o estudo das intertextualidades e o resgate da cultura popular no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, do texto teatral ao texto fílmico, analisando a construção do repertório, das personagens, as mudanças e intertextos, que ocorrem na transposição de um código a outro e a criação de um “mundo possível ficcional” (ECO, 2002, p. 80) que resgata a tradição oral nordestina. A escolha da obra Auto da Compadecida como corpus básico dessa dissertação foi motivada pela sua significativa representatividade no conjunto da produção de Ariano Suassuna, bem como sua importância no resgate da cultura popular, buscando na tradição oral nordestina e na produção literária dos cordéis destacar as lendas e mitos que povoam o imaginário popular. Como esta obra servirá de âncora e ao mesmo tempo, fonte de pesquisa para todo o trabalho, utilizamos a edição que identificamos a seguir, valendo como referência para todas as vezes que a obra for citada neste trabalho: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2000. Ao tratarmos do Movimento Armorial é importante destacar que entre o popular e o erudito, entre o oral e o escrito, ele representa na cultura brasileira um papel original e, talvez, único: reunir os produtos de cultura num Movimento, onde a 15 originalidade da criação artística e sua singularidade são considerados dogmas, encontrando na voz popular uma fonte temática, rica em novas formas poéticas. É importante ressaltar que a relação com a cultura oral e popular nordestina brasileira em vez de limitar a arte Armorial a um regionalismo ou nacionalismo estreito propõe-nos uma grande viagem dentro das culturas brasileiras e universais. A forma dos autos e a etnologia remetem para os instrumentos da catequese no período dito colonial, que por sua vez, articula-se com práticas medievais e tradições judaicas e árabes, com a herança do teatro espanhol do Século de Ouro. Não é “coisa somente de Nordeste”, mas remete para um universo cultural muito mais amplo. Este trabalho está dividido em seis capítulos. O primeiro capítulo focaliza o Movimento Armorial. No segundo, é feita uma abordagem sobre as lendas e cordéis, bem como as manifestações populares, além das reproduções de sete iluminogravuras produzidas pelo escritor. O terceiro capítulo centra-se na análise e registros do imaginário popular que compõe a obra suassuniana. O quarto capítulo trabalha a questão da intertextualidade tão presente no Auto da Compadecida. No quinto capítulo é feita uma leitura sobre o receptor com relação à obra Auto da Compadecida e, finalmente, o sexto capítulo traz uma análise da trajetória da peça teatral em sua transposição para a TV e o cinema. Nos anexos, dois trabalhos biográficos sobre Ariano Suassuna. Primeiramente “Oito décadas com Ariano Suassuna” e, na seqüência, “Ariano Suassuna: Vida em Cordel”, ambos de minha autoria. Por último, incluímos o acróstico Ariano Suassuna, publicado no Jornal O Debate, do município de Santa Cruz do Rio Pardo – SP, em 15 de julho de 2007, para homenagear o escritor por ocasião do seu 80.º aniversário. 16 1.0 O MOVIMENTO ARMORIAL Dentro da análise da obra de Suassuna, destaca-se, pela sua grande importância, a idealização concretizada do Movimento Armorial, que resgata as tradições do povo nordestino, mesclando influências das culturas ibérica, africana e indígena. “A sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você foi decifrado. Beba o fogo na taça de pedras dos Lajedos. (...)” (Trecho do manuscrito: A Pedra do Reino, Cadernos de Literatura Brasileira, 2000. p. 85). Ao proclamar a existência do Movimento Armorial nos anos 70, mais especificamente em 18 de outubro, na cidade de Recife, com uma exposição de gravuras, pinturas e esculturas – e o ponto alto – a apresentação do concerto “Três séculos de música nordestina – do Barroco ao Armorial”, o escritor assume por inteiro o seu compromisso com a arte popular, definindo-a como arte Armorial. A referência à obra popular constitui o cimento do Movimento Armorial e confere-lhe uma marcante peculiaridade no panorama histórico da cultura brasileira. O movimento em si não congrega artistas populares, mas artistas cultos que recorrem à obra popular como matéria-prima a ser transformada pela recriação segundo modos de expressão e comunicação que possam pertencer a outras práticas artísticas, numa dimensão culta e erudita. Segundo Gérard Genette (1982, p.35), tudo o que faz com que um texto mantenha relações textuais com outros 17 textos, constitui-se como transtextualidade3. Assim, a inter-relação que o texto armorial estabelece com a literatura oral e popular, enquadra-se como uma prática transtextual, uma vez que os intertextos, em seus mais diversos tipos, estão presentes em toda produção suassuniana. Eis, portanto, a profunda originalidade de Ariano Suassuna, que se concretiza através do Movimento Armorial: o empréstimo da literatura popular, com suas temáticas e modelos poéticos; reelaborados em uma estética nova, que não imobiliza a obra por ser uma estética em movimento, que realimenta as obras num ciclo infinito de retomadas e empréstimos. O próprio autor, num depoimento dado a Mariana Camarotti (Revista Caros Amigos), revela-nos: Como o universo Armorial é ligado muito ao universo do romanceiro, há também uma ligação com o universo do folheto, tanto da parte literária, quanto da parte pintada. É por isso que tem alguma coisa da gravura popular. “outro dado da minha paixão pelo Brasil literário e pelo nordeste em particular é que comecei imediatamente a me rebelar porque li num cartaz numa exposição realizada em São Paulo que tinha assim: “Arte do Brasil”. Eles são adeptos da mesma idéia daquele professor universitário, não existe arte brasileira, existe arte do Brasil. Então dizia: “Arte do Brasil, uma história de cinco séculos”. Quer dizer, só começou a arte quando os portugueses chegaram. Aí eu digo, peraí, e a arte indígena, o teatro, a dança, a cultura indígena? E comecei a me interessar pela cultura rupestre. Se você olhar a Pedra do Reino, tem desenho baseado na pintura rupestre. E muitos desses desenhos que você vê aí são baseados na pintura rupestre. Quer dizer que comecei a integrar no universo brasileiro essa pintura de muitos anos antes de Cristo. As pessoas pesam que só me interesso pela cultura ibérica, hoje mesmo recebi um recorte do jornal Le Monde dizendo que só me interesso pela cultura ibérica. Falo da importância da cultura ibérica, mas falo também da japonesa. Gosto muito do cinema japonês, acho que tem muito a ver com a gente. Agora, então, O Movimento Armorial tinha duas preocupações. Em primeiro lugar, lutar contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira. Em segundo lugar, procurar uma arte erudita brasileira baseada nas raízes brasileiras da nossa cultura. Era esse o programa do Movimento Armorial. (CAMAROTTI, Ed. 75, junho/2003), 3 Genette esclarece que seu conceito de transtextualidade alcança “tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”. 18 No Movimento Armorial, identificamos uma iniciativa artística com o objetivo de criar uma arte erudita, partindo de elementos originários da cultura popular do Nordeste Brasileiro. O movimento procura convergir para esse fim todas as formas de expressões artísticas: literatura, teatro, cinema, música, dança, artes plásticas, arquitetura, entre outras expressões. A Arte Armorial Brasileira é aquela que pode ser denominada erudita, mas tem ao mesmo tempo suas raízes populares na cultura brasileira. Essas raízes devem servir de base para a criação dessa nova arte e, encontramse a partir de pesquisas junto às manifestações populares do sertão nordestino, um local privilegiado para estas buscas porque ali a tradição é mais severamente preservada. (SUASSUNA, 1974, p.6). O Movimento Armorial foi criado sob a inspiração e direção de Ariano Suassuna, com a colaboração de um grupo de artistas e escritores da região Nordeste do Brasil e com o apoio do Departamento de Extensão Cultural da PróReitoria para Assuntos Comunitários da Universidade Federal de Pernambuco. Inicialmente atingiu o âmbito universitário, mas com o apoio oficial da Prefeitura de Recife e da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, estendeu-se além da população acadêmica. O grande objetivo do Movimento Armorial foi valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, pretendendo realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da cultura do país. Conforme o seu idealizador, concebe-se como “armorial” o conjunto de insígnias, brasões, estandartes, e bandeiras de um povo. A heráldica é percebida como sendo uma arte muito mais popular do que qualquer outra. Desse modo, o 19 nome adotado significou o desejo de ligação com essas heráldicas raízes culturais brasileiras. O Movimento direciona interesse pelas manifestações artísticas diversas, sendo que uma grande importância é dada aos folhetos do romanceiro popular nordestino, a chamada literatura de cordel. Justamente por entender que neles encontramos a fonte de uma arte e de uma literatura que expressam as aspirações e o espírito do povo brasileiro. Além disso, o cordel é capaz de reunir três formas de arte: as narrativas da poesia, a xilogravura, que ilustra sua capa e a música através do canto dos seus versos, acompanhada por viola ou rabeca, interpretados pelos cantadores. Apresentam-se também, como importantes elementos para o Movimento Armorial, os espetáculos populares do Nordeste, encenados ao ar livre, trazendo personagens míticas, cantos, roupagens principescas feitas a partir de farrapos, músicas e a fantasia de animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho. O mamulengo ou teatro de bonecos nordestino também é outra riquíssima fonte de inspiração para o Movimento, que procura além da dramaturgia, um modo tipicamente brasileiro de encenação e representação. O Movimento Armorial congrega nomes importantes da cultura pernambucana. Além do próprio Ariano Suassuna, Francisco Bennand, Raimundo Carrero, Gilvan Samico, entre outros, além de grupos como o Balé Armorial do Nordeste, a Orquestra Armorial de Câmara, a Orquestra Romançal e o Quinteto Armorial. Oficialmente o Movimento Armorial foi deflagrado em 18 de outubro de 1970, uma orquestra recém criada, a Orquestra Armorial, realizou um concerto na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife. Paralelamente, aconteceu uma exposição de 20 artes plásticas. Ambas as manifestações foram organizadas pelo Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. No texto do programa, o seu diretor, Ariano Suassuna, revelava ao público a existência do Movimento Armorial. Segundo Idelette Muzart Fonseca dos Santos, professora titular de Literatura e Civilização Brasileira na Universidade de Paris, o Movimento Armorial promove a liberdade da criação e os artistas mantêm uma ligação muito forte com o Nordeste. Assim ela expressou-se sobre este vínculo: O Movimento Armorial nasceu e desenvolveu-se numa demanda poética e artística apoiada no imaginário popular, usando livremente seu direito de transformar e criar, no riso e na dor, uma nova linguagem artística desde o nascimento do movimento, está Ariano Suassuna, e ele continua presente. Canto improvisado, folheto, romance tradicional, danças populares, espetáculo de marionetes, orais ou escritas, impõe-se através da obra inteira de Ariano Suassuna como objeto artístico. Parece fácil afirmá-lo, contudo se trata de uma ruptura radical com a perspectiva habitual. Essa objetivação conduz a uma reflexão estética nova – quando a arte popular não é mais considerada primitiva, documento sociológico ou produção de oprimidos, mas simplesmente arte, cujo grau de elaboração e complexidade pode ser apreciada de modo autônomo, independente de qualquer hierarquia social dos valores estéticos. (FONSECA DOS SANTOS, 2002, p. 3) Todos, ou quase todos os artistas que integram o Movimento Armorial, nasceram no que Suassuna chama de “coração do Nordeste”, ou seja, nos Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Todos mantiveram em sua infância e, às vezes, ao longo de sua vida, um contato estreito com o mundo rural e com suas tradições, estudaram no Recife, onde produziam suas primeiras obras. E se viajaram, voltaram. A maioria deles continua vivendo e produzindo em Recife. Aqueles que se mudaram para São Paulo, talvez vivam até mais intensamente essa relação fundadora. Apesar de originários de uma região geograficamente delimitada, e que se constitui abertamente em espaço privilegiado de criação, os artista armoriais não são regionalistas, nem procuram ser realistas, uma das convicções 21 quase que necessárias do regionalismo. Tanto para Ariano Suassuna, como para João Guimarães Rosa, o sertão serviu como fonte de inspiração e a partir das particularidades dos sertanejos, houve uma ampliação para o contexto universal. Essa insistência sobra a multiplicidade e sobre a abertura cultural ganha hoje um sentido que não era o mesmo no início do Movimento Armorial. Agora, em tempos de globalização cultural, ela adquire uma significação de particular importância: precisamos ser diferentes para não desaparecer, para garantirmos a sobrevivência dos elementos culturais. A referência à obra popular representa o cimento do Movimento Armorial e sua peculiaridade na história da cultura brasileira. O Movimento Armorial não reúne artistas populares, mas artistas cultos que recorrem à obra popular como material a ser recriado e trabalhado. Essa dimensão culta e erudita manifesta-se, tanto numa reflexão teórica que acompanha a prática de criação, como na multiplicidade das referências culturais. Segundo Idelette Muzart: as referências culturais dos artistas devem ser vistas mais como confluência de interesses do que realmente como influências. Através da ocorrência de objetivos ou caminhos comuns ou próximos dos artistas armoriais de tal forma que: Gil Vicente, Rabelais, Calderón de La Barca, Cervantes, José de Alencar, Euclides da Cunha ou Frederico Garcia Lorca foram identificados como os mestres dos artistas armoriais. Uma grande coerência aparece na escolha, consciente ou não, dessas influências. Todos esses autores criaram uma obra em relação estreita com a cultura popular de seu país. A obra de um escritor consagrado, ou declarado como tal, pode constituir, portanto, para quem o lê hoje, uma via de acesso segura à cultura oral de sua época. 22 A arte armorial não retrata nem ignora a realidade. Procura recriá-la poeticamente. É um mundo de reis, cangaceiros, loucos, bispos, heróis, diabos, juízes de togas negras e vermelhas, dançarinos, palhaços, pícaros, valentões falsos e verdadeiros, com máscaras de couro ou tatuada no rosto, de guerreiros brancos, negros, vermelhos e mestiços, de reis magos e pastores, onde se ouve a corneta do diabo e onde brilha a estrela do Cristo. Será um mundo apalhaçado, violento e que parecerá mesmo, aos olhos dos refinados, elementar, pouco interior e pouco profundo. (SUASSUNA, 1974, p.15). Pode-se afirmar que, a realização de Suassuna no seu fazer literário, estreitamente ligado ao espírito mágico e poético do Romanceiro popular nordestino, nos permite falar de uma poesia armorial desde 1946. A preocupação estética de Suassuna foi definindo-se ao longo de seu percurso como escritor e culminou com o Movimento Armorial, um projeto cultural ímpar, que se fez conhecer por meio da valorização da arte brasileira e por configurar-se como uma espaço aberto às mais variadas expressões artísticas. O Armorial resulta muito mais da convergência entre o fazer de diversos artistas do que do estabelecimento de diretrizes e propostas rígidas. Por isso, o Armorial busca enfrentar o problema da criação de uma arte brasileira muito mais do lado da criação que da teoria. Trata-se de um grupo de artistas que, criando junto ou isoladamente, descobre características comuns, não possuindo uma linha rígida de princípios e sendo um movimento aberto. (SUASSUNA, 1974, p. 17). Conforme afirma seu idealizador, Ariano Suassuna: o Movimento Armorial apresenta-se com a nítida pretensão de realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa cultura. No Movimento Armorial muitos autores procuram, na sua liberdade criativa tematizar o espaço cultural do Nordeste, enfocando aspectos ligados ao sertão, em estreito contato com a natureza agreste e as tradições populares. 23 A Arte Armorial parte do folheto de cordel, não como uma fonte única, mas como um ponto de referência, para o qual convergem os elementos da arte musical dos instrumentos e de cantoria, bem como, as imagens em xilogravuras, conforme o ponto de vista dos artistas populares. O teatro é visto por Suassuna, como a arte maior no Movimento Armorial, porque é uma atividade que congrega as diversas formas de expressão, como: o literário, as artes plásticas e a arte musical. Numa análise mais ampla, o Movimento Armorial defende a retomada de uma herança cultural que se caracteriza por sua perenidade. De tal forma que o Movimento abre espaços para reafirmação da originalidade regional, a renovação dos modelos formais na abordagem de uma temática considerada inovadora, transformando o recurso próprio das formas populares em obra não popular, a transposição da oralidade para a escrita, em suma, a reelaboração da forma popular para a forma erudita. A preocupação primeira do Movimento foi a de valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, admitindo-se a proposta da realização da Arte Erudita Brasileira a partir de nossas raízes culturais populares. A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados (SUASSUNA, 1974, p.7). O trabalho intelectual que Ariano Suassuna se propõe a desempenhar, diz respeito a preservar e valorizar o espaço da nossa cultura popular. Esse empenho passa pelo campo ideológico, indo além da preocupação do autor em produzir a sua obra de modo coerente com os seus ideais de preservação da memória cultural 24 nacional, reunindo através do Movimento Armorial, os interessados em manter as raízes culturais do Nordeste brasileiro em diferentes campos das artes em suas diversas manifestações. É notável a atenção que se dá ao teatro, no conjunto de elementos que compõe o Movimento Armorial. Mesmo porque, o teatro funciona como um veículo por excelência para transpor as fontes populares rurais ao mundo urbano letrado. Isso não ocorre apenas por ser o teatro uma forma privilegiada pelo projeto estético Armorial, mas por funcionar como um canal de ligação entre a oralidade do espetáculo em si e o registro do texto escrito. Portanto, é esse texto escrito, que trazido à oralidade acaba se concretizando através da encenação. Nesse particular há uma convergência perceptível na aproximação com o folheto de Cordel, que guarda em si todos os traços da oralidade e da retórica através da voz. A partir dessa transposição das fontes populares para o meio culto e erudito é que se engendra toda uma circularidade entre a expressão oral e a escrita. Por sinal, esta relação é uma marca muito forte e própria da cultura européia à época dos descobrimentos, reforçando o cunho medievalizante da cultura nordestina e, acentuadamente, da obra literária de Ariano Suassuna. A teatralização presente no Movimento Armorial incide num teatro classificado como épico ou narrativo, presente na Idade Média na região do antigo Oriente, que se associa aos autos Vicentinos do Quinhentismo, bem como, aos autos Sacramentais da Espanha, como “O grande teatro do mundo”, do século XVII, de autoria de Calderón de La Barca. Todos esses ingredientes são incorporados aos folguedos ao ar livre que ainda vicejam no Nordeste e que se associam a um incontável número de representações folclóricas. 25 Prevalece no Teatro Armorial a concepção de palco aberto (característica marcante do Auto da Compadecida), no qual as modificações cênicas são feitas à vista do público. É possível ainda citar, como outras características marcantes, a presença de um prólogo narrativo, bem como um epílogo que culmina com uma mensagem cristã. Traz ainda o monólogo, comentários e apartes para exteriorizar reflexões das personagens. Incorpora a música e ações trazidas dos bastidores, bem como, personagens estereotipados, sendo um deles, o apresentador da peça que se dirige diretamente ao público. No caso do Auto, esse apresentador é o palhaço que abre o espetáculo e comanda as cenas nas seqüências dos atos e no final. Observe-se que na transposição para o filme este personagem foi eliminado e o início da trama apresenta João Grilo e Chicó nas peripécias de uma mal sucedida apresentação do filme “Vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”, cujo público pagante acaba exigindo de João Grilo uma artimanha para resolver o problema de interrupção do filme. Suassuna ao proclamar o Movimento Armorial na década de setenta, de maneira pública e notória, deixou expresso o seu compromisso com a arte popular. A sua proposta define a arte Armorial, relacionando-a estreitamente com a produção cultural representativa do povo, sendo, portanto, a sua voz.. Na sequência, apresentamos as reproduções de sete iluminogravuras de autoria do escritor Ariano Suassuna. Estas são resultantes das combinações das iluminuras da Época Medieval com as modernas técnicas de gravação em papel. Para produzi-las, Ariano faz os desenhos e escreve os textos, com nanquim sobre papel. Depois, através de off-set, produz cópias dessas matrizes, sendo em média tiragens de 50 exemplares. Finalmente, utilizando guache e/ou óleo, pinta à mão cada cópia, produzindo as suas gravuras policromáticas. 26 27 28 29 30 31 32 33 34 2.0 LENDAS E CORDÉIS: A TRADIÇÃO POPULAR NORDESTINA Ao observarmos a obra de Suassuna podemos perceber a preocupação quanto à forma e conteúdo de suas composições. Ao mesmo tempo convém ressaltar que através das apresentações teatrais, como é o caso do texto/teatro do autor, é possível preservar na memória coletiva elementos peculiares da cultura popular como o artesanato, a pintura, a música e os diversos elementos do folclore. Neste contexto, salientamos a importância das lendas, que constituem em sua essência um relato de acontecimentos. Relatos delimitados por espaços geográficos e determinados períodos de tempo, onde o maravilhoso e o imaginário situam-se acima do histórico e do verdadeiro. As lendas fazem parte da trajetória histórica do homem e originam-se a partir da necessidade humana de explicar determinados acontecimentos do mundo. Desde a pré-história o homem defrontava-se com determinadas realidades, que não conseguia compreender e para ele afiguravam-se como grandes mistérios. Esse homem da pré-história era vulnerável a uma série de fenômenos que não compreendia e que fugiam do seu controle. Portanto, diante dessa situação geradora de angústia e perguntas sem respostas, a imaginação humana passou a criar lendas como respostas às suas indagações. Desta forma, ao tentar “explicar o inexplicável”, os fenômenos, os mistérios e a própria vida de pessoas, cujos feitos são considerados extraordinários, funcionam como elementos geradores de lendas que buscam dar aos homens as explicações para certos acontecimentos que os cercam e, aparentemente, afiguram-se como misteriosos ou inexplicáveis. 35 Segundo Lúcia Pimentel Góes (1984, p. 106 – 107), “lenda é uma narrativa localizada, individualizada, objeto de fé”, acrescenta ainda a mesma autora que, “as lendas são a base fundamental da cultura dos povos”. Para se assegurar a efetiva contribuição da “memória popular” afirma-nos ORTIZ, 2003, p. 135: “é necessário que essa memória se transforme em vivência, pois é isto que garante a sua permanência”. Neste sentido, as representações teatrais, funcionam como veículo cristalizador daquilo que se configura como “memória popular” em “vivência popular”. As lendas, presenças constantes das narrativas, como partes integrantes da literatura oral, configuram-se como importantes itens do fenômeno folclórico. Este, por sua vez, desde cedo é identificado como tradicional, anônimo e popular, com predominância da oralidade, ou seja, da transmissão direta entre pessoas, motivadas pela participação e pela proximidade. É certo que as concepções sobre o Folclore vêm sempre sofrendo influências e transformações; portanto o Folclore, considerando as clássicas definições de Sébillot e Saintyves, como conjunto de modos de sentir, pensar e agir próprios das camadas populares, nas sociedades civilizadas; passam por constantes ebulições. O termo original “folk-lore”, simplificado para “folklore”, “saber do povo”, foi o termo proposto por Willian John Thoms, em carta ao Athenacum de Londres, publicada em 22 de agosto de 1846. Nesse sentido amplo de “saber do povo”, a idéia de folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil dizer onde começa e onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites de uma idéia tão extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada, mas será também o samba, o funk, o rock? É o Natal, a Páscoa, o Divino, o Boi-Bumbá, mas será também o desfile das escolas de Samba? [...] Pensamos e pesquisamos um bocado sobre o assunto. Chegamos à conclusão de que mais importante do que saber concretamente o que é ou não folclore é entender que folclore é, antes de qualquer coisa, um campo 36 de estudos. Isso quer dizer que a noção de folclore não está dada na realidade das coisas. Ela é construída historicamente e, portanto, a compreensão do que é ou não folclore varia ao longo do tempo. Para se Ter uma idéia, aqui no Brasil, no começo do século, os estudos de folclore incidiam basicamente sobre a literatura oral, depois veio o interesse pela música, e mais tarde ainda, nos meados do século, o campo se amplia com 4 a abordagem dos folguedos populares. (SILVA, 2008, p.21). No bojo dessas ebulições, colocou-se em pauta a questão do anonimato, pois considerando-se que os traços culturais, de quaisquer procedências deveriam aperfeiçoar-se ao meio popular num processo especial, identificado como folclorização, que torna irrelevante a questão do anonimato em comparação à importância da aceitação popular, pois, de outra forma ter-se-ia de chegar ao absurdo de descartar do domínio do folclore a literatura de cordel e as modas de viola. As lendas por sua vez, estão estreitamente ligadas a um outro gênero folclórico, que são as crendices e superstições. Nesse campo encontram-se os prenúncios, agouros, o mundo sobrenatural, os cultos e devoções, os demônios, a magia, enfim, um amplo elenco de típicos representantes das legítimas manifestações folclóricas, que estão muito presentes no Auto da Compadecida. Outro exemplo passível de verificação no texto de Ariano Suassuna, refere-se à questão de usos e costumes, especialmente nas cerimônias, rituais, chamadas ritos de passagem, que marcam: batismo, primeira comunhão, noivado, casamento e – especialmente no sertão nordestino – a morte (com o canto das “incelenças” e as carpideiras do nordeste). A importância desse ritual constata-se no caso da peça de Ariano Suassuna, pela situação criada a partir do episódio do enterro do cachorro. 4 O texto “Entendo o folclore”, escrito por Maria Laura Cavalcanti, faz parte do boletim do programa “O que é, o que é: folclore e cultura popular” da série “Cultura popular e Educação”, março, 2003. 37 “[...] Mulher: Mas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro. Padre: Enterro o cachorro? Mulher: Enterra e tem que ser em latim [...]” (SUASSUNA, 2000, p.60). Desta forma, muitas lendas acabaram incorporadas ao texto de Suassuna, seja de forma explícita na obra ou de maneira implícita; sendo que tais presenças conferem ao enredo a sua total proximidade com a vivência e a realidade da cultura popular. Suassuna, em sua obra, vem nos proporcionar uma visão do contexto simultâneo de complexidade e simplicidade do sertanejo nordestino. Neste universo há um compartilhar de crenças, mitos e ritos do ambiente popular brasileiro. Há que se destacar que nesta busca do resgate das origens populares, o trabalho de Suassuna, que se torna realidade pelo teatro, convida o povo a ver e a interagir com valores inerentes à cultura popular. Assim as lendas, que se configuram como elementos tão pertinentes e importantes dessa cultura, revelam-se como presenças significativas na obra do escritor. Conforme definição apresentada por Câmara Cascudo (s.d., p. 511) “lenda é um episódio heróico ou sentimental com o elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo”. Como toda a obra de Ariano Suassuna está estreitamente ligada à tradição popular e aos principais elementos da sabedoria popular, é muito natural que ela seja permeada por lendas e contos próprios da cultura popular, cujas presenças enriquecem essa mesma cultura e, naturalmente, a própria obra “suassuniana”. Ainda a respeito das lendas, o folclorista brasileiro Luis da Câmara Cascudo, no seu livro Literatura Oral no Brasil, registra a seguinte afirmação: 38 Iguais em várias partes do mundo, semelhantes há dezenas de séculos, diferem em pormenores e, essa diferenciação, caracteriza sinalando o típico, imobilizando-o num ponto certo da Terra. Sem que o documento histórico garanta veracidade, o povo ressuscita o passado, indicando passagens, mostrando, como referências indiscutíveis para verificação racionalista, os lugares onde o fato ocorreu. (CASCUDO, 1987, p. 51). No Auto da Compadecida percebe-se ainda, as profundas raízes da tradição cultural do Ocidente transmitidas através do romanceiro, resgatando-se folhetos populares, com matizes do cancioneiro medieval e nordestino. É conveniente ressaltar que a peça não se apresenta dividida em atos com um caráter rigoroso. O autor confere plena liberdade ao encenador e ao diretor para definirem a representação. No entanto, ele sugere três atos. No primeiro ato, o autor aborda a delicada situação do enterro do cachorro, com influências do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros. No segundo ato, aborda-se, com algumas transformações, a História do cavalo que defecava dinheiro, também de autoria de Leandro Gomes de Barros. No terceiro ato, o Auto da Compadecida, justifica seu nome, com elementos do Castigo da Soberba de Anselmo Vieira e Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauá Lima, ambos retomados pelo entremez de Suassuna, Castigo da Soberba provém ainda do romanceiro popular a cantiga de Canário Pardo, usada por João Grilo como invocação à Nossa Senhora. O nome Compadecida e a estrofe em que o palhaço encena o espetáculo pedindo dinheiro também figuram no folheto Castigo da Soberba: Meu verso acabou-se agora, Minha história verdadeira. Toda vez que eu canto ele, Vem dez mil réis prá algibeira. Hoje estou dando por cinco, Talvez não ache quem queira.” (SUASSUNA, 2000, p. 203). 39 Salienta-nos FLORY e MORAIS (2005, p 40) que se a morte é o fato que iguala todos os homens, o sepultamento já torna a distingui-los. Chicó, quando está prestes a enterrar João Grilo, lamenta por não poder dar um enterro digno ao amigo, antes é forçado a abrir uma vala comum, para que João fosse simplesmente sepultado como um indigente. Logo após a morte das personagens, inicia-se o julgamento. O recurso estético para a incorporação de Nossa Senhora entre as personagens ocorre por meio de um verso popular. Os versos populares são programados no texto do Auto da Compadecida de maneira a familiarizar o receptor com o contexto, como na passagem em que João Grilo recita: Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, / a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, / só me falta ser mulher (SUASSUNA, 2000, p. 170) Cascudo (1988, p. 550-553) traz como exemplo, uma evocação de oração forte: “Valei-me ó virgem da Conceição”. O mesmo recurso estético foi pensado na primeira e na última linha do verso recitado por João Grilo: “Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré”, onde a repetição reforça a súplica do pedido insistente. Origina-se ainda do romanceiro, a cantiga de Canário Pardo, que Suassuna coloca como invocação de João Grilo à Maria – a Compadecida, observando que, a tradição popular repetidas vezes se faz cercar por rezas e práticas rituais que evocam forças sobrenaturais que possam ajudar nas situações de dificuldades: Os versos populares recuperam a estratégia estética do esconjuro e da adoração, que remetem às “orações fortes”. No esconjuro há práticas exorcistas, onde cruzes, a água, o sal e os ramos bentos são empregados 40 em rituais para expulsar demônios. O auto flagelo, ou práticas como bater no peito e na face, o batismo (aspersão com água benta), indicam o esconjuro. A adoração precede a evocação de um ente divino, ocorre por meio de preces, ações de graça (práticas de agradecimento), das procissões ou cortejos (na minissérie substituem a fala do palhaço no momento em que as personagens morrem). No momento da prece esperase um fato notável, há o pedido de intervenção por alguém e o de condenação ou maldizer para outro.” (FLORY, (org.) 2005, p. 40). Além disso, tanto o nome Compadecida, quanto a estrofe com que o palhaço encerra o espetáculo pedindo dinheiro, origina-se do folheto Castigo da Soberba, que também figura como nome de um entremez do próprio Ariano Suassuna. A peça transcorre permeada de hilariantes situações, como o testamento e o enterro do cachorro, o animal que defeca (ou “descome” no dizer criativo de João Grilo) dinheiro e também a gaita mágica que ressuscita; são temas que remontam há vários séculos e que foram buscados pelo autor nos folhetos populares. Observe-se, também que o próprio instrumento mágico, capaz de ressuscitar um defunto – no caso, a gaita – é também um instrumento bem ao gosto popular e praticado com reconhecida freqüência pelas pessoas simples do sertão nordestino. A estes aspectos, que despertam o riso pelos ingredientes hilários, somam-se o cenário de circo, acentuado pela personagem do palhaço, acabando por evocar um divertimento popular, muito presente no gosto sertanejo. Por outro lado configura-se como elemento de retomada da peça O grande teatro do mundo, do espanhol Calderón de La Barca (escritor seiscentista), presentificando-se uma relação de intertextualidade que aflora em vários personagens do Auto. Na obra de Suassuna, o discurso permite ao autor colocar-se como o erudito que se apropria, de forma competente e eficaz, de uma realidade da massa e da cultura de sua região, trazendo-a para o seu teatro, num suceder de acontecimentos díspares e heterogêneos que se organizam no fio condutor do julgamento divino. Neste trabalho, há um debruçar sobre o popular, com aproveitamento de “causos”, 41 de temáticas das histórias de cordel, provérbios, ditos populares e crenças. Podemos exemplificar com o gato que “descome” dinheiro, o julgamento das almas, a flauta com poder de ressurreição, entre outros. Enfim, todo um universo que se identifica pelas manifestações folclóricas. Na concepção de Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o folclore “é a cultura popular tornada normativa pela tradição [...]. Qualquer objeto que projete interesse humano, além de sua finalidade imediata, material e lógica, é folclórico”. Portanto, com base em tal concepção, muitos elementos que utilizamos como recursos na expressão da religiosidade, na culinária, nas festas comemorativas e tudo mais o que se refere à preservação de um povo, poderão afigurar-se como folclóricos, “O folclore deve estudar todas as manifestações tradicionais da vida coletiva” (CASCUDO, 1987, p.17). Ao se transpor a obra de Suassuna, Auto da Compadecida, para o cinema e a televisão, houve também a transposição dos mais diversos elementos da cultura popular, incluindo aspectos de lendas e outros itens folclóricos, com as restrições próprias dos seus respectivos regionalismos de origem, para o universo muito mais amplo, coberto pela abrangência das mídias. O próprio Ariano Suassuna relata um fato ocorrido após a difusão de sua obra para as grandes massas, especialmente pela televisão. Trata-se de um motorista de táxi que reconhecendo o autor perguntou-lhe: “Por acaso não foi o senhor que escreveu o Morro da Compadecida? Certamente, observa Suassuna, ele entendeu a palavra “auto” como “alto” e por isso chamou de “morro” (um monte, um lugar alto). Foi a forma como o motorista 42 conseguiu compreender o título da obra e pode transferi-la para os limites de sua realidade interpretativa em conformidade com seu próprio repertório. O Auto da Compadecida bebe na fonte popular e recria no universo nordestino, as tramas e situações do cotidiano da região, numa narrativa pontilhada pelo ritmo dinâmico e situações de humor que levam as pessoas a identificarem-se com a trama, permitindo a irreverência das personagens numa postura crítica à estrutura social de poder. Quando nos deparamos com o texto/teatro, é perfeitamente cabível a associação da peça, com o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente (1517), dramaturgo português do século XVI, especialmente quando a cena nos remete ao julgamento de almas carregadas de pecados e que são expostas ao Tribunal Divino. O dramaturgo consegue reunir em seus textos, tendências que quase sempre se excluem ou mantêm-se distantes, de forma isolada. Funde em suas obras o espontâneo ao elaborado, o popular ao universal. As superstições das histórias folclóricas são transportadas para o vigor de uma religiosidade profunda. O próprio desenrolar do texto apresenta-se como uma crítica ao aspecto do materialismo e ao mundanismo presentes na igreja. Combatese o preconceito de cor (Deus aparece como um negro), ridiculariza-se a fragilidade da justiça, critica-se a ignorância católica sobre a Bíblia (quando João Grilo pergunta se Jesus Cristo é protestante, por conhecer tão bem o Livro Sagrado). Faz prevalecer sempre a vitória do fraco contra o forte, do humilde sobre o poderoso, do sincero sobre o dissimulado, da verdade sobre a mentira. A tradição religiosa chega a Suassuna, por diferentes caminhos a partir da religiosidade própria do sertanejo, na simplicidade autêntica da crendice popular, ou então, pelas fontes do teatro Cristão, em suas formas mais cultas e elaboradas. 43 Encontramos ainda, na obra de Ariano Suassuna, com destaque para o Auto da Compadecida, os três tipos de tradições reconhecidas: a culta, a religiosa e a popular. Da tradição culta, a obra nos remete aos “Autos” de Gil Vicente, bem como a “Commedia dell’arte”, criação italiana de caráter popular e a Calderón de La Barca, do teatro espanhol, entre outros. A tradição religiosa é outra constante em Ariano Suassuna, sendo também uma realidade própria do sertanejo, que aparece em destaque no Auto da Compadecida, através dos representantes do catolicismo (bispo, padre, sacristão, beatos, etc) e por fim, o próprio Cristo (na figura de um negro) e a Compadecida (Nossa Senhora), que se apresentam mesclando divindade e humanidade, aproximando-nos do celestial de forma mais humana e informal, como se, de certo modo, encontrássemos com grandes amigos. Finalmente nos deparamos com a tradição popular, ricamente representada na obra de Suassuna pelos mais diversos traços e personagens. Desde a figura da mulher do padeiro, com seus caprichos, dengos e traições amorosas; passando pelos tipos inesquecíveis de João Grilo e Chicó, que compensam suas situações inferiores, através da esperteza e da capacidade de subverter a ordem natural dos fatos, com artimanhas inteligentes. Passam, ainda, as figuras dos cangaceiros, tão típicas do Nordeste e também dos coronéis, representados pelo Major que se orgulha de seu passado ibérico, ao se considerar um legítimo descendente da mais pura origem portuguesa: Acima de tudo, acentua-se na dimensão popular o embate entre o bem e o mal, entre o pobre e o rico, entre o explorado e o explorador. Quanto ao valor do popular, Barbero traz a seguinte explicação: 44 [...] frente a toda tendência culturalista, o valor do popular não reside em sua autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade sócio-cultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratégias das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemônica e o integram e fundem como o que vem de sua memória histórica. (2003, p. 117). Outro ponto de destaque no trabalho de Suassuna, é a notável competência em apresentar, através de um recorte da realidade, um quadro que se pode admitir abstraído do espaço/temporal da cultura popular. Tal abstração resulta de uma realidade modelizada pelos recursos literários, mas que permanece fiel à realidade inspiradora do texto. Acrescente-se a este quadro, alguns temas sugestivos ao repertório dos receptores e reconhecidos no mundo das letras, independente das barreiras geográficas ou culturais e poderemos reconhecer na essência criadora do autor, o poder de sedução de sua obra. A temática de animais que defecam dinheiro encontra-se nas mais variadas versões em diferentes textos da literatura universal, remontando sus origens à antiga tradição das velhas províncias francesas. Encontramos no texto de Lígia Vassalo O grande teatro do mundo, publicado em Cadernos de Literatura Brasileira (2000, p. 178) a seguinte referência: A História do cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, fornece ao Auto da Compadecida um dos mais recorrentes temas da literatura universal. [...] O tema pertence à antiga tradição das velhas províncias francesas [...] Suassuna, num deliberado processo de apropriação da cultura popular, trouxe este episódio para seu Auto: 45 João Grilo, virando o gato para Chicó, com o rabo levantado: Tire aí, Chicó. Chicó Eu não, tire você. João Grilo Deixe de luxo, Chicó, em ciência tudo é natural. Chicó Pois se é natural, tire. João Grilo Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões). (SUASSUNA, 2000, p. 56). Um outro tema, também originário das velhas tradições francesas, refere-se às trocas com grandes perdas, como acontece no episódio da gaita com o poder de vencer a morte, ofertada ao cangaceiro, ou ainda, do gato que defecava dinheiro. As trocas com perdas configuram um tema constante em fontes orais [...] Esse tema está presente em um conto tradicional de várias províncias da França, “Les trocs”. (VASSALLO, Cadernos de Literatura Brasileira, 2000, p. 178) Estes dois temas aparecem tanto em fontes orais como em folhetos da cultura popular nordestina, o que faz confirmar a significativa influência francesa na cultura do nordeste, intermediada por culturas próprias dos países ibéricos. Finalmente, um terceiro tema que aparece em destaque no Auto da Compadecida, aborda personagens da cultura popular nos romances de astúcias. João Grilo encarna o sertanejo pobre, que usa da astúcia e esperteza para superar as situações adversas e conseguir vencer os mais fortes. É o mesmo tipo conhecido no Brasil como Pedro Malasartes, cujas artimanhas e peripécias encontram acolhida e sucesso entre o público popular nordestino. As situações decorrentes da astúcia presentes nos tipos que se configuram como “inferiores” em alguns aspectos, como no econômico ou na força física. De tal forma que as “saídas” encontradas pelas estratégias matreiras e astutas resultam em situações hilariantes, conferindo o lado pitoresco e provocador de riso. 46 Ao abordarmos o aspecto de intertextualidade na obra de Ariano Suassuna, bem como, o enfoque da cultura popular que nela encontramos, não poderíamos omitir uma importante manifestação inspiradora para o autor: trata-se do Teatro Mamulengo, ou teatro de bonecos, em que atores contracenam com bonecos, elaborados para este fim, que adquirem vida, movimento e ritmo pelas habilidades artísticas dos próprios atores, configurando-se como uma modalidade de arte teatral muito frequiente nas manifestações populares do Nordeste. O mamulengo5 encontra-se na própria origem da produção na escrita teatral de Ariano Suassuna, pois suas primeiras obras são escritas sob forte influência da encenação com marionetes, destinando-se à apresentações pelo Teatro de Bonecos T.E.P. (Teatro Experimental de Pernambuco). Suassuna foi altamente influenciado por habilidosos “mamulengueiros” de Pernambuco como: Cheiroso, Ginu e Benedito. No Teatro de Mamulengo destacamse algumas características bem específicas, determinadas pelas habilidades artísticas dos mamulengueiros, quais sejam: dança, música, simulação de pancadaria, valentia e galanteios, forte expressão de comicidade, através do jogo de palavras, expressões engraçadas e repetições intencionais. Há também a presença de aspectos de sensualidade que se aliam, muitas vezes, ao grotesco e à simploriedade, além das improvisações sempre constantes nas apresentações, até conforme as manifestações do público e da platéia. Outra característica marcante no mamulengo é a interferência de um narrador – apresentador do espetáculo. Ele encarrega-se de conduzir a narrativa dando informações, explicações e comentários que conferem maior dinâmica à trama. As apresentações ocorrem na simplicidade de um palco ou tablado, sem maiores 5 O mamulengo configura-se por um teatro de fantoches caracterizado pela riqueza de situações cômicas e satíricas. 47 adereços ou cenários, o que está bem ao gosto do “despojamento” de Ariano Suassuna. Um outro aspecto do Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2000) é a significativa presença do processo de intertextualidade, cuja ocorrência pode ser verificada quando se reúnem conteúdos de outros textos promovendo-se a ampliação do leque de informações que serão transformadas recebendo um novo significado em um contexto espaço-temporal diverso, renovando-se portanto: idéias, conceitos e abordagens. É possível ilustrar tal afirmação através da figura marcante de João Grilo que traz muito presente as características do “arlequim”, personagem típica da Commedia dell´arte. No entanto devemos ressaltar que João Grilo encarna um tipo autenticamente brasileiro, não se tratando de uma mera cópia da tradição italiana. Por sinal, a personagem representa uma figura lendária da literatura popular nordestina, sendo o herói de dois romances intitulados As proezas de João Grilo (SUASSUNA, 2000, p.10). A polifonia do texto configurada pelas vozes das personagens e seus pontos diversos, permite ao autor a abordagem de elementos muito peculiares ao gosto do povo, como o uso das figuras de animais de modo cômico e inesperado, num entrelaçamento de mitos folclóricos, religiosos e da crendice popular. João Grilo: Não, você fica comigo. Vim encomendar a benção do cachorro por sua causa e você tem de ficar. E mesmo, Chicó, você já está acostumado com essas coisas, já teve até um cavalo bento! Chicó: É, mas acontece que o major Antonio Morais pode ter alguma coisa de cavalo, de bento é que ele não tem nada. (SUASSUNA, 2000, pp. 42, 43) O Folclore brasileiro apresenta uma série de situações envolvendo diversos animais, que passam a figurar em lendas, ganhando dimensões inusitadas. É o 48 caso, por exemplo, da Mula-Sem-Cabeça, do Boi-Tatá, a Cobra Norato e de uma extensa variedade de pássaros e peixes, entre outros. Chicó: Foi quando eu estive no Amazonas. Eu tinha amarrado a corda do arpão em redor do corpo, de modo que estava com os braços sem movimento. Quando ferrei o bicho, ele deu um puxavante maior e eu caí no rio. João Grilo: O bicho pescou você!... Chicó: Exatamente, João, o bicho me pescou. Para encurtar a história, o pirarucu me arrastou rio acima três dias e três noites. (SUASSUNA, 2000, p.58). Com relação aos cachorros, o folclore cria características negativas para o animal, associando-o à figura do demônio – o Cão. Este fato não se faz notar em outras culturas. Segundo Câmara Cascudo, tal associação entre o cachorro e o demônio na cultura brasileira, seria uma herança que nos foi legada pelos africanos. Estes, por sua vez, sofreram influência do povo árabe, já que para os muçulmanos o cão seria um animal impuro, porém, não demoníaco. Assim, redimensiona-se o aspecto, ao mesmo tempo hilário e de certo modo sacrílego, quando o padre dispõe-se a proceder ao enterro do animal; motivado pelo dinheiro da “herança” – com testamento e tudo – deixado pelo falecido (no caso, o próprio cachorro)6. Tudo isso, arquitetado pelo “gênio” e artimanha de João Grilo. Essa situação é também pretexto para toda uma seqüência em que o clero é desmoralizado pela sua avareza. O cachorro da mulher do padeiro, por ter deixado – segundo a versão de João Grilo – um testamento garantindo dinheiro para o padre, o sacristão e o bispo, passa a ser considerado pelos interessados como: inteligente, com nobreza de sentimentos e até mesmo possuidor de alma. 6 Na transposição da peça Auto da Compadecida, Guel Arraes inicia a adaptação baseada no primeiro ato da peça de Suassuna: “O enterro do cachorro”. Porém, na adaptação, o animal é uma fêmea 49 Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou três contos de réis para o sacristão, quatro para a paróquia e seis para a diocese. (SUASSUNA, 2000, p. 85). As lendas, originam-se de modo geral, no anônimo coletivo. As pessoas reuniam-se em grupos para contar as aventuras de um mundo incompreendido, redesenhado pela imaginação, com elementos e situações que extrapolam a lógica e a ordem natural das coisas. Nessas reuniões, muitas “histórias” foram sendo oralmente transmitidas de geração em geração, especialmente as de assombrações, que contadas de forma simples, encantadoras e convincentes atraiam a atenção e assim acabavam sendo transmitidas entusiasticamente, motivadas e alimentadas pela imaginação das pessoas. Aparecem nesse universo, as situações fantásticas, frutos da imaginação e da própria criatividade das pessoas, que a partir das suas condições de simplicidade e credulidade aceitam os causos como verídicos e inquestionáveis. Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de assombração de cachorro. (SUASSUNA, 2000, p. 66). No Auto de Suassuna, o animal que realiza a proeza de defecar dinheiro é um gato, que trazido em cena por João Grilo e Chicó, é usado como objeto de astúcia e artimanha, sendo vendido à mulher do padeiro, atribuindo-se a ele a capacidade de “descomer” dinheiro. Suassuna também apresenta em sua obra, dois demônios, sendo um subserviente ao outro. O próprio Demônio e o Encourado, este último, uma figura que sobrevive como crença comum no sertão nordestino disseminado pela idéia de que o demônio transfigura-se em vaqueiro, para semear o mal e percorrer o sertão. 50 Na sua vestimenta típica, recobre-se de couro e percorre a caatinga árida como um vaqueiro para tanger o “gado”, arrebanhando as almas para condená-las ao inferno, ao fogo eterno e ao sofrimento sem fim. Trata-se de certa forma, de uma oposição à imagem do Cristo, como pastor de ovelhas, para conduzi-las pelos bons caminhos ao paraíso. O autor, atento aos fatos presentes na cultura popular e no cotidiano das pessoas, não poderia deixar de admitir que exerceram fascínio sobre o ser humano, interferindo no lado da sensibilidade e da própria emotividade do indivíduo. É reconhecida na lenda e na cultura universal, a presença das flautas mágicas, capazes de feitos espetaculares, como ocorre em A Flauta Mágica7 lenda européia que está na base da ópera de Mozart, de mesmo nome. A gaita como instrumento de certo modo simples e muito presente na tradição popular nordestina é apresentada no Auto da Compadecida com o poder lendário e sobrenatural de ressuscitar os mortos. João Grilo, na sua habilidade de persuasão, convence o chefe dos cangaceiros, Severino de Aracaju, que poderia ser morto, passear pelo outro mundo, encontrar-se com as almas, especialmente “visitar” o seu Padrinho Padre Cícero e depois retornar à vida com o simples toque da gaita que havia sido benzida pelo próprio Padre Cícero, em carne e osso. Para provar a veracidade da tese que a gaita poderia restituir a vida a um morto, João Grilo simula uma punhalada em Chicó e depois, tocando a gaita promove a sua ressurreição. É a astúcia vencendo a força e o desejo do ser humano em conhecer a realidade da vida após a morte, podendo voltar à vida conforme sua vontade. Neste particular, valendo-se da curiosidade natural do ser humano para o que existe após 7 Lenda medieval sobre uma cidade invadida por ratos e salva por um flautista, que através do encantamento produzido pela música conduziu os ratos, salvando a cidade. Esta lenda foi compilada pelos irmãos Grimm, no livro: As Crianças de Hamelin. 51 a morte, Chicó conta ao cangaceiro ter passeado pelo céu, encontrando-se com Nossa Senhora e Padre Cícero e que este último teria lhe dito: “Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês”. (SUASSUNA, 2000, p. 125). São situações como esta que fazem o Auto da Compadecida estabelecer a identificação imediata com o público, onde a matéria popular e a produção culta se entrelaçam, resultando no binômio regional-universal. Isso se justifica em virtude dos temas, problemas e personagens do sertão serem os mesmos de outras regiões, apenas expressos por diferentes roupagens. Se partirmos do princípio que o ato criativo é uma via de mão dupla já que se completa no momento da leitura (da recepção) [...] O diálogo que pressupomos na realização artística, entre o emissor e o receptor chama a atenção para um terceiro elemento do âmbito da linguagem: o contexto. (MOREIRA, 2002, p. 139-140) Desta forma, as lendas muito presentes na oralidade popular e nas produções dos cordéis, perpassam a produção de Ariano Suassuna ao recriar em sua obra literária, especialmente na peça Auto da Compadecida, todo o universo nordestino, bebendo na fonte da tradição, com nuances de textos eruditos, o que faz ampliar a literalização dos temas populares da mais legítima brasilidade, projetando-os para a universalização. Nesta tessitura elaborada por Suassuna encontra-se sobremaneira uma confluência de interesses e valores culturais, promovendo em sua obra a riqueza, o dinamismo e a vivacidade tão características da produção literária do escritor. 52 3.0 O IMAGINÁRIO NA OBRA DE SUASSUNA A palavra “imaginário” ganhou força no final do século XX e para muitos, como Gilbert Durand e Michel Mafesoli, não havia nenhuma novidade em tal terminologia. Para outros, incluindo os discípulos de Jacques Lacan ou de Cornelius Castoriadis, estava em curso um deslocamento conceitual inaceitável, com inevitável confusão entre o imaginário e o simbólico (Coincidentia oppositorum). É possível perceber o imaginário como algo desafiador, afigurando-se a uma narrativa inacabada, sendo portanto, um processo, uma teia em construção, um hipertexto decorrente de uma construção anônima e coletiva. Lacan identificou o imaginário situando-se na fronteira entre filosofia e a psicanálise, algo anterior ao simbólico; comparando-o a um tipo de nutriente primitivo do qual decorre um reservatório arcaico de imagens anteriores à cultura. O fato é que o termo “imaginário”, até então contido nos limites do universo acadêmico, invadiu a mídia disseminando-se por todos os espaços. De tal forma que, os fatos até então rotulados como ideologia e cultura, passaram ao rótulo de imaginário, gerando dúvida e confusão. No entanto, é perfeitamente cabível afirmar que o imaginário pode configurar-se pela narrativa, assemelhando-se a uma trama em construção. Uma maneira de ver, através de um ângulo privilegiado que é variável de pessoa para pessoa, conforme seu repertório de crenças, tradições e ideologias. Num sentido mais convencional, o imaginário opõe-se ao real, uma vez que, através da imaginação procura-se representar esse real, promovendo distorções, idealizações e formações simbólicas. 53 Conforme teoriza Maffesoli, (1997, p. 32): o acesso do indivíduo ao imaginário acontece, via de regra, pela compreensão e aceitação das regras e a participação acontece pelos fatos da fala imaginal (que é a própria vivência) e as alterações do imaginário podem ocorrer porque cada indivíduo é também um agente imaginal, ou seja, um ator social. Portanto o imaginário não é fixo, nem estático, nem tampouco palpável ou visível. Configura-se como uma rede etérea e movediça de valores e sensações que são partilhadas por indivíduos. É possível afirmar que esse dinamismo e mobilidade justificam-se pelo fato do imaginário estar pautado e fundamentado na linguagem que, por sua vez, é dinâmica por excelência, sujeitando-se às transformações naturais e constantes, presentes na transmissão pela oralidade. Michel Maffesoli (1997) trouxe a palavra “imaginário” para uma noção semântica mais geral e compatível com os seus múltiplos sentidos. Ao afirmar a identificação do imaginário como força catalisadora, energia e patrimônio de um grupo. Nesta concepção, o imaginário pode assemelhar-se a uma fonte comum de sensações, lembranças, afetos e estilos de vida, guardando em si o poder de interferir e transformar o contexto social. [...] “longe de ser um epifenômeno passivo, aniquilamento ou ainda contemplação de um passado superado, o imaginário não somente se manifesta como atividade que transforma o mundo, como imaginação criadora, mas, sobretudo, como transformação eufêmica do mundo [...]” (MAFFESOLI, 1997, p.36. Há um conceito do imaginário que o compara a um reservatório e ao mesmo tempo, também um motor. Reservatório no sentido de agregar imagens, sentimentos, lembranças e experiências. Motor, porque o imaginário é um sonho que realiza a realidade, uma força capaz de impulsionar os indivíduos ou grupos. 54 Maffesolli, inspirado em Walter Benjamin (1996), admite ainda o imaginário como uma aura, que não podemos ver, mas podemos sentir. Portanto, para ele, o imaginário é algo que envolve e, ao mesmo tempo, ultrapassa a obra. Se o imaginário pode ser comparado a um motor, podemos também comparálo a uma fonte racional e não-racional de impulsos para a ação e também a uma represa de emoções, de vestígios, de símbolos e de valores. É justamente pelo imaginário que o homem constrói-se na cultura e encontra reconhecimento no outro tornando-se capaz de reconhecer a si mesmo. Também pelo imaginário, Suassuna introduz elementos do fantástico, necessários para estabelecer a interatividade entre o autor, a história e o receptor. Pela intermediação do sobrenatural acentua-se a relação entre emissor e receptor. A tribo – nação orgânica de grupo – produz a “errância” dos indivíduos. Ou seja, o imaginário que leva ao tribal é capaz de retirar o indivíduo da solidão para inseri-lo num clima de partilha, de afinidades e interação. A partir dessas considerações sobre o imaginário é possível estabelecer a relação entre a cultura popular – tão presente na obra de Ariano Suassuna – e o imaginário. Admitindo-se cultura como a máxima expressão, em diferentes formas, dos valores e crenças de um povo ou das pessoas de modo individualizado, de tal forma que ao analisarmos uma sociedade, poderemos observar em sua essência, a presença de um sistema com significado para ela, que evidentemente teve sua significação particular e pessoal também ao indivíduo. Na cultura popular encontramos um conjunto de valores implícitos que possuem um poder maior do que aqueles que são impostos através de leis e determinações que cuidam da organização social. 55 Para exemplificarmos, podemos observar que toda a estrutura social apresenta-se como um pano de fundo do comportamento social, onde um “código de honra” é constantemente ritualizado e aceito pelo grupo. A cultura popular revela em si um mundo riquíssimo de valores, além de configurar-se como um universo extremamente peculiar em seu movimento evolutivo e de expressão. Numa visão antropológica, é dada ênfase a toda expressão oral ou escrita, num determinado contexto social. Há que se salientar toda simbologia implícita nas mais diversas formas de expressão da sociedade. É possível reconhecer que há uma dinâmica no processo da cultura. Para essa dinâmica é preciso considerar alguns fatores próprios e inerentes ao grupo e à sociedade, quais sejam: o imaginário, a prática social e a produção material, compreendidas em seus símbolos e dinâmicas peculiares. Segundo Gramsci (1995, p. 15), a cultura popular era apenas capaz de reproduzir valores e conhecimentos, mas nunca de produzi-los. Assim, a visão de Gramsci sobre cultura popular era o conceito de passividade,através da qual a cultura popular jamais criaria uma visão de mundo capaz de gerar mudanças. Se por um lado a visão de Gramsci sobre a cultura popular conflita com outras concepções, ele nos ajuda a entender a natureza de senso comum, como um conhecimento heterogêneo, assimétrico, histórico e fragmentado. Na realidade o senso comum é coletivo, socializado e surge no bojo de um incontável número de informações que se entrecruzam numa dinâmica geradora. Assim, o senso comum, enquanto manifestação da cultura popular possui uma dinâmica muito peculiar. Renato Ortiz (1989) detém seus estudos na ambigüidade da cultura popular, afirmando que se percebem duas manifestações implícitas nesses movimentos 56 subjacentes à fragmentalidade viva que promove a dinâmica da cultura: a reprodução e a contestação. Não se pode compreender as atividades da cultura popular, com suas manifestações simbólicas, como sendo algo segregado pela sociedade; o pensamento popular é extremamente heterogêneo e por isso gera tensão, isso confirma a fragmentalidade da cultura popular. O Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2000) possui uma aproximação com os gêneros teatrais medievais populares, sejam as farsas medievais ou autos sacramentais. O “medievalismo” aí presente refere-se tanto na escolha da temática da peça como na construção formal utilizada por Suassuna incluindo a palavra “auto” que já aparece no título. É importante observarmos que o teatro medieval, acontecido numa época em que a Igreja Católica detinha o poder político e econômico, exercendo forte controle na produção cultural e científica (entre os séculos V e XV), faz com que os temas religiosos predominem nas artes. Ariano Suassuna, ao enfocar em sua obra Auto da Compadecida as histórias populares do Nordeste, com seus cenários e tipos característicos revela-nos que a inspiração para compor a personagem do seu Bispo, teve origem no bispo Cauchon – que foi o juiz de Joana D’arc, sob a égide da Santa Inquisição. Da mesma forma o prefácio do “Auto” evoca os “Milagres de Nossa Senhora”, no século XIV, presentes ainda, as influências do teatro Gil Vicente, do teatro espanhol do século XVII e da “Commedia dell’arte”, da expressão teatral italiana. 57 Associam-se também ao tom popular dominante na obra de Suassuna, os espetáculos teatrais nordestinos como o Bumba-meu-Boi8 e o Mamulengo. Outra peculiaridade do Auto da Compadecida é o tom de farsa. No teatro medieval europeu, as farsas eram encenadas nos intervalos dos grandes espetáculos religiosos, ou então eram produzidas para encenações em ocasiões especiais (como as farsas de casamentos). Caracterizavam-se por serem peças curtas, com poucas intrigas ou situações, um número reduzido de personagens, geralmente caracterizados como “tipos” que se ocupam em suas atuações de forma anônima tais como: o marido, o mendigo, a mulher, o padeiro, o moleiro, etc. A comicidade surge provocada pelo embate que se verifica entre a inteligência dos humildes e os lapsos dos mais poderosos sem, no entanto, discutirem-se as estruturas da organização social vigente. A questão da exploração dos poderosos sobre os mais humildes é relevante na obra de Suassuna, onde ao contrário das farsas medievais, questionam-se as organizações sociais e religiosas e a exploração do homem pelo homem. A referência aos personagens, no tocante à vida espiritual, remete-nos a demonstração de crenças populares em lendas e mitos fundamentadas em acontecimentos miraculosos e imaginários e nas punições ou recompensas divinas, mas as críticas ao “status quo” fazem-se contundentes nos diálogos, principalmente entre João Grilo, Chicó e, no julgamento, pelo embate com o demônio. No artigo De textos e receptores o Auto da Compadecida, de Suassuna a Arraes, do teatro à minissérie, por Patrícia Irina Loose de Moraes e Suely Fadul 8 O boi é um animal presente em antiquíssimas tradições de regiões rurais do todo o planeta, incluindo rituais onde ele é sacrificado ou adorado. O Bumba-meu-boi tem suas origens em Portugal, onde as chamadas “touras” eram festejadas por multidões. No Maranhão, o boi ficou relacionado com o desaparecimento do rei Dom Sebastião (de Portugal) em Alcácer-Quibir. (Vide página 64). Diziam que após a batalha ele chegou às costas brasileiras na forma de um reluzente touro coberto de jóias preciosas. (SAVINI, 1996, p.1). 58 Villibor Flory, encontramos importante registro sobre a herança medieval na obra de Suassuna. Observam as autoras que o trabalho do escritor situa-se entre a ironia cômica e a satírica, trazendo ao mesmo tempo o externar de valores do autor, como acontece em Gil Vicente. Percebe-se no Auto da Compadecida uma fusão e, ao mesmo tempo, uma intensificação do aspecto emocional do autor com o horizonte de expectativas do público. Há que se perceber também que, incorporado ao emocional do autor encontra-se o capital emocional dos autores que compuseram os cordéis, sobre os quais Suassuna elaborou a sua releitura, bem como, para a microssérie, incidiu a releitura de Arraes. No trabalho de Suassuna observam-se inúmeras expressões de ironia, que segundo ressalta Muecke (1995, p.77), podem ser entendidas como “ironia instrumental” e “ironia observável”9, uma vez que ironiza sua realidade e o contexto que o cerca. Temos ainda na obra de Suassuna a coexistência de duas estratégias vistas pela Estética da Recepção: o estranhamento e a carnavalização. De acordo com Bakhtin, no seu livro Problemas da poética de Dastoewski (1981), a “carnavalização” pode ser vista como um desvio dos costumes consagrados, sobrepondo-se ao sacro e profano; sendo de alguma forma o mundo às avessas, podendo assim assumir a leitura de parodização. Observa-se a existência de textos elaborados sob o signo da carnavalização, mostrando na cultura de um povo os efeitos cômicos e paródicos proporcionados pelo inconsciente social que se manifesta nos rituais, no uso de máscaras, no riso, na busca do grotesco, nas festas ou na religiosidade. 9 Ironia definida como produção de sentido indireto. Identifica-se ironia instrumental por alguém sendo irônico e ironia observável através de coisas vistas ou apresentadas com ironia. 59 Na peça Auto da Compadecida, observa-se além do processo de carnavalização propriamente dito, que acontece durante todo o transcorrer da peça; também o processo inverso, a “descarnavalização”, quando no episódio do julgamento final, as personagens deixam cair as máscaras revelando nesse “desnudar” das atitudes as suas verdades mais íntimas. Ainda na mesma obra, Bakhtin identifica o “estranhamento”(no sentido dos formalistas russos) como uma forma singular de ver e aprender o mundo, bem como, tudo aquilo que o constitui. É uma visão que a literatura de certa forma alarga, quer seja no nível da linguagem, quer no nível do conteúdo.Neste, porque desafia e transforma as idéias pré-concebidas e, no primeiro, porque “estranha” as convenções literárias, introduzindo novas formas de expressão. Observamos que, no Auto da Compadecida, a tradição encontra-se presente, nas suas mais variadas formas, sendo uma das mais visíveis a da tradição religiosa. A obra analisada inicia-se com um auto de Páscoa, uma festa religiosa de origem popular, preservada por cristãos e judeus. A tradição folclórica está presente, entre outros, através do personagem pícaro de João Grilo, que faz parte do imaginário popular da literatura de cordel. Assim, a obra de Suassuna, promove o acesso à essência da cultura popular brasileira, com seus personagens típicos do sertão nordestino. É o caso de João Grilo e seu companheiro Chicó, representando as figuras picarescas e malandras, comparáveis a Pedro Malasartes. Há ainda a figura de Severino de Aracaju que nos remete à figura histórica e, ao mesmo tempo, lendária de Lampião. Também a presença do Major Moraes (que orgulha-se de sua ascendência lusitana: “gente que veio nas caravelas”), e que representa os poderes político e econômico da região, corporificando assim a figura do “coronel” numa 60 cultura acostumada ao convívio com o “coronelismo” autoritário e injusto. [...] Meu nome todo é Antônio Noronha de Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente que veio nas caravelas, ouviu? (SUASSUNA, 2000, p.46). Portanto, todos esses tipos e situações, que configuram o tecido com o qual se desenvolve a trama concebida por Suassuna, através da transposição para a TV e o cinema puderam romper os limites próprios de um regionalismo intrínseco, para ganhar espaços, ampliando os seus próprios horizontes de penetração, servindo à difusão de valores culturais elaborados e que estavam restritos pelos limites de sua divulgação. O complexo conjunto constituído pelas manifestações tradicionais, seja pela oralidade ou de forma escrita, impõe-se através da obra de Ariano Suassuna como um objeto artístico. Essa relação com a cultura popular nordestina, ao invés de colocar limites aos textos de Suassuna, serve antes para ampliá-los, projetando esses fatos culturais brasileiros numa amplitude universal. O escritor reúne os valores mais autênticos e arraigados de sua região, portanto os elementos da mais pura arte, genuinamente popular, com o seu imenso arcabouço erudito e teórico. Assim com sua “alquimia” o dramaturgo – decifrador das brasilidades – acaba transformando o local ou fato restrito, em algo de caráter simbólico e de abrangência universal. Suassuna possui uma escrita que reúne em si, a um só tempo, elementos do Simbolismo, do Barroco, da própria literatura de cordel e da literatura oral popular, entre outros. Esse “cadinho” efervescente de cultura, transforma o sertão árido e inóspito, no palco das questões humanas possíveis de acontecerem em qualquer 61 lugar do mundo. Ele é o grande perpetuador e “reinventor” de contos, canções, poemas e lendas, especialmente as de origem ibérica, que através da sua tessitura própria, ganham releituras autenticamente brasileiras. Assim, o escritor vê a cada dia, surgir em torno de si e de seus escritos a magia de uma lenda. É importante que se diga que em Ariano Suassuna toda essa intelectualidade, toda essa “produtividade” cultural, acontece sem a sisudez que imaginamos habitar os grandes pensadores e literatos. Pelo contrário, a autêntica simplicidade acaba sendo sua marca registrada. A sua alegria pela vida torna-o muito mais próximo do seu leitor, que se perde no anonimato para encontrar-se no imaginário popular, bem ao gosto do próprio autor. Quando o escritor afirma que a literatura é a sua festa, onde ele toca e dança, podemos refletir que o comum é as pessoas dançarem ao som da música que outros tocam e, em geral quem as toca acaba por não dançá-las. Com Ariano isso não acontece. Ele participa intensamente, ele vivencia a sua criação. Por isso, ele toca... mas não deixa de dançar. (Cadernos de Literatura Brasileira, n.º 10, 2000, p.41). A maioria dos temas abordados por Suassuna pertence à tradição popular ou ainda aos folhetos e aos folguedos nordestinos. Identificamos muitos deles, nas diversas obras do autor, especialmente no “corpus” selecionado para esta dissertação: o Auto da Compadecida. Conforme escreve Lígia Vassallo em O grande teatro do mundo, publicado em Cadernos de Literatura Brasileira (2000, p. 177), a covardia entre os valentões é uma temática que provém de uma antiga estirpe. Podemos reconhecê-la no Miles gloriosus de Plauto, na galeria de risíveis soldados fanfarrões da Commedia dell’Arte ou ainda no Franc Archer de Bagnoles. 62 A morte simulada de Chicó, no Auto da Compadecida, tem sua origem no folheto O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (BARROS, 2002). Porém, é uma situação que já se encontra em Dom Quixote, quando no episódio das Bodas de Camacho, o jovem enamorado finge suicídio para casar-se com a amada. O tema pode ser identificado, ainda mais distante, na criação de Apuleio, quando no conto Asno de ouro10, uma magia mal realizada, transforma Lucio em burro, o que também acaba sendo uma falsa morte. João Grilo Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó. Chicó Na minha, não. João Grilo Deixe de moleza Chicó. Depois eu toco na minha gaita e você fica vivo de novo! (Murmurando, a Chicó) A bexiga, a bexiga! [...] João Grilo Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome lá! Morra, desgraçado! Dá uma punhalada na bexiga [...] João Grilo Está vendo o sangue? Severino Estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver é você curar o homem. João Grilo É já. Começa a tocar na gaita e Chicó começa a se mover no ritmo da música. [...] até que se levanta como se estivesse com dança de São Guido. (SUASSUNA, 2000, pp.123-124) Quanto ao “testamento do cachorro“ é outro tema bastante explorado, conforme comprovam estudos desenvolvidos por Martinez Lopes, J. Girodon e I. F. Santos. É um tema presente desde textos da Idade Média. Os exemplares mais antigos remontam a textos medievais da França. Aparece ainda nas Cent nouvelles 10 O Asno de Ouro (Metamorfoses), romance de Lucius Apuleio, escrito no século II d C. é composto por narrativas das aventuras burlescas e fantásticas de um homem que se vê transformado em asno e passa a perambular pelo mundo, ouvindo histórias transcritas no livro, em forma de contos. 63 nouvelles, uma coletânea de novelas que remontam ao ano de 1455, de autoria de vários escritores franceses. Para o Auto da Compadecida, Suassuna, resgatou da trama, a História do cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, um tema muito recorrente na literatura universal sendo 105 versões, por Martinez – Lopes. Encontra-se ainda na comédia de 1735: Os encantos de Medea, de Antonio José da Silva. Sobre Leandro Gomes de Barros, Ariano Suassuna fez a declaração a seguir que foi registrada por José Tavares de Araújo Neto: Os cordelistas me influenciaram tanto quanto Lorca, que tem um mundo de cavalo, boi, cigano e romanceiro popular parecido com o meu, ou Calderón de La Barca; para mim o príncipe dos poetas brasileiros é Leandro Gomes de Barros, autor de dois dos três folhetos em que me inspirei para escrever Auto da Compadecida: O enterro do cachorro e A história do cavalo que defecava dinheiro. (SUASSUNA ) De forma mais suavizada o tema sobre animais que defecam dinheiro aparece também na Galinha dos ovos de ouro e João e o pé de feijão (Irmãos Grimm) e em Pele de Asno (Perrault). Os irmãos Grimm, dois alemães conhecidos pelas histórias infantis, como: João e o pé de feijão, onde um menino é enviado para trocar uma vaca de sua família pobre e faminta e acabou sendo enganado. Uma alma sem coração ficou com o animal, dando a João um pequeno punhado de feijão. Os grãos revelaram-se mágicos, crescendo rumo ao céu, o que levou João até a Galinha dos ovos de ouro. Este outro conto, traz a história de uma galinha encantada que punha os ovos de ouro. Isto despertou a ganância e a galinha acabou sendo morta para que se retirasse de dentro dela a fortuna por inteiro. No entanto, ao abri-la, viram que nada havia a não ser as vísceras do animal. 64 Em Pele de Asno, conto de Charles Perrault, mesmo autor de Cinderela; um rei, uma rainha e uma princesa vivem felizes até o monarca enviuvar-se. Querendo casar-se com uma mulher mais bonita que a rainha, até para cumprir um desejo da própria rainha falecida, ele acaba escolhendo a própria filha para desposar. Esta para evitar o apuro foge escondida em uma pele de asno. Assim, o animal capaz de defecar dinheiro faz parte do imaginário, figurando no bestiário maravilhoso. Essa “capacidade” associa-se ao cunho satírico como o poder sobrenatural de “descomer” aquilo que é sempre buscado pelo homem: o ouro, o dinheiro, a fortuna. Veja a seguir um trecho da história do Cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros: [...] Do fiofó do cavalo Ele fez um mealheiro Saiu dizendo: - Sou rico! Inda mais que fazendeiro, Porque possuo o cavalo Que só defeca dinheiro [...] O tema figura, originariamente, nas velhas províncias francesas e se diversificou com as mais variadas versões, em diferentes regiões da Europa. Outra fonte de inspiração nas obras de Suassuna, são as trocas com perdas. As “barganhas” engendradas por João Grilo em diversos momentos do Auto da Compadecida, são exemplos dessa inspiração, que rende inclusive momentos hilários da peça. Esse tema também aparece num conto tradicional de várias províncias francesas: Lês trocs. 65 Os dois temas mencionados: animais que defecam dinheiro e as trocas vantajosas confirmam a influência de cultura francesa na cultura brasileira, especialmente no Nordeste, por intermédio da influência dos países ibéricos. Outra absorção feita por Suassuna, além dos temas de origem imemorável, são as personagens da cultura popular originários, particularmente, dos circos e da arte de mamulengos. É o caso típico do palhaço que se apresenta no Auto da Compadecida, facilitando o desenrolar da trama. Aparece também no texto de Suassuna o astuto João Grilo que personifica o sertanejo “desvalido”, porém muito esperto. Esse tipo faz parte dos romances de astúcias, muito presente na literatura popular européia. Seus primeiros exemplares podem ser identificados pelo personagem alemão Till Eulenspiegel e o espanhol Pedro Urdemalas. Este último bastante difundido em Portugal e no Brasil como Pedro Malasartes. Por sinal, muitos folhetos protagonizados pela personagem atestam a aceitação e o sucesso do tema entre o público do sertão nordestino. Diferente da literatura de cordel portuguesa, que não possui uniformidade, a literatura de folhetos produzida no Nordeste do Brasil é bastante codificada, obedecendo-se a uma forma quase “canônica”. As apresentações orais de narrativas, poemas, charadas, disputas, não são exclusivas no Nordeste brasileiro. É uma prática comum a todos os povos, especialmente aqueles nos quais a cultura escrita não é dominante. No Nordeste têm grande relevância as cantorias, espetáculos que compreendem a apresentação de poemas e desafios. Estes, por sua vez, são também conhecidos como “pelejas”. Trata-se de um embate, onde cantadores enfrentam-se, devendo dar prosseguimento aos versos apresentados pelo oponente, sem se retardar na composição de sua fala. 66 Durante os anos oitocentos, parte do universo poético das cantorias começa a ganhar forma impressa, guardando, entretanto, fortes marcas de oralidade. Essas publicações apareciam, via de regra, através dos ”Folhetos” e, portanto, essa forma simples e rudimentar de publicação garantiu o registro de muitas criações populares. Lígia Vassalo, em seu artigo O grande teatro do mundo, publicado em Cadernos de Literatura Brasileira (número 10, novembro de 2000), observa que a manifestação da poética popular aflora desde os primeiros poemas “suassunianos” publicados nos suplementos literários dos jornais do Recife, bem como, na primeira manifestação pública que organizou em 1946: uma cantoria que teve como palco o Teatro Santa Isabel. Também a poética popular está presente no entremez11 para mamulengo que escreveu em Taperoá: Torturas de um Coração ou Em boca fechada não entra mosquito é incontestável que sempre que a manifestação artística surge do popular, aí estará vigorosamente presente o imaginário popular, pois dele emerge com vigor e primazia, os exemplares artísticos mais autênticos e representativos da cultura de um povo. Assim, a arte popular deixa de ser considerada como primitiva, para ser apreciada como um “revelador cultural”. Esse debruçar sobre a cultura oral e popular do Nordeste, em vez de impor limites à obra de Suassuna, circunscrevendo-a a um regionalismo ou nacionalismo estreito, ampliou-se numa viagem pela diversidade cultural brasileira e universal. Transformou-se, pois, num investigar intelectual como uma busca de diferenças, um penetrar na própria multiplicidade cultural e um perene encontrar-se com o imaginário e criatividade popular. Câmara Cascudo (1979, p.13) afirmava: “O português emigrava com o seu mundo na memória”. Assim, atribui-se às “folhas volantes” lusitanas, a origem dos 11 Palavra originária do italiano: inter-mezzo, significando pequena farsa, ato cênico, auto, uma breve representação teatral. 67 cordéis que encontram no sertão nordestino um terreno muito fértil tanto para a sua produção como para a sua aceitação e consumo. Diga-se, antes de qualquer coisa, que o próprio nome que se consagrou entre nós, também é usado em Portugal. Faz referência às pequenas cordas, nas quais eram expostos as folhas ou livretos. (Ou como cita Nicolau Tolentino em “O Bilhar: “a cavalo num barbante”). No Brasil, esta produção era chamada também de Literatura de Folhetos ou identificada ainda como Cordel Nordestino. Estas “folhas volantes” ou “folhas soltas” apresentavam-se em impressão muito rudimentar ou precárias, e eram vendidas nas feiras, romarias, nas praças ou ruas; destinando-se portanto, às classes mais populares. Seus conteúdos chamavam a atenção, pois neles registravam-se fatos históricos ou transcreviam-se poesias eruditas. Gil Vicente, por exemplo, aparece em várias publicações desse tipo. Essa prática literária, de tradição do romanceiro transladou-se com o colono português para o Brasil, nas naus colonizadoras. A partir de duas tradições distintas – a da literatura popular ibérica em prosa e verso e a prática tão bem aceita e reconhecida do cordel nordestino, bem como o desafio dos repentistas. A poesia sertaneja do Nordeste, com sua incontestável origem ibérica adquire feição peculiar; criando, adaptando e recriando novas fórmulas, que permanecem tão vivas nos dias de hoje. Curiosamente, seria a própria imprensa em seu ritmo evolutivo que, nos meados e fins do século XIX, iria ocupar muito do espaço explorado pela literatura de cordel (em Portugal), que diante de tal fato, “emigrou” para o Nordeste brasileiro, onde as condições de recepção deste tipo particular de literatura foi tão especial que ela floresceu e ganhou vigor. 68 Afirma-nos Luís da Câmara Cascudo: Tudo indica que nossa literatura de cordel vem da tradição européia, particularmente dos colonizadores portugueses. O português emigrava com o seu mundo na memória. Aclimatado no Brasil pela cultura oral, teve uma floração sem fim na forma de cordel. (CASCUDO, 1979, p.13). Interessa-nos uma abordagem sobre a “Peleja da Alma” do cantador paraibano Silvino Pirauá de Lima, (CARVALHO, 1967), em virtude de sua relação com a obra de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida. A Peleja da Alma foi composta para apresentação em cantorias e narra a história de um homem muito rico e avarento, que “não estimava a pobreza”. Embora tivesse grande desejo de ter um filho, este só foi concebido tardiamente, após a intervenção de Deus. O menino, traz consigo a ruína dos pais e lhes dá grande desgosto pelo mau gênio, falta de respeito e temor a Deus, morrendo precocemente. Depois de morto vai ao encontro de Deus, desejando a salvação. Confessa seus pecados, mas é condenado ao inferno, para regozijo dos diabos. Recorre, então, à Virgem Maria, que intercede a seu favor, conseguindo a adesão de São Miguel para salvar a sua alma. O trecho a seguir, extraído do Livro: Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho, mostra o pedido de intercessão feito à Virgem Maria. Tal situação motivou Ariano Suassuna a comentar que a posição que se coloca Maria é a de Verdadeira Advogada dos homens, como se manifesta na oração da Salve Rainh: “Maria, Virgem Maria, Mãe de Deus Redentor, Mãe de Deus e Mãe de Cristo. Mãe do Padre Salvador Rogai por mim a teu Filho Que nesta hora nos condenou. Alma sai-te de meus pés Para que vem te valer de mim? 69 Que meu filho, reto juiz, Não faz o que é ruim. Lúcifer se levantou Disse: Alma, que vieste ver cá? Manoel já te deu a sentença Maria, jeito não dá Aquilo que Manoel faz Não é para Maria desmanchar.” (CARVALHO, 1967, P.113) É bem possível reconhecer, apesar de pontos de distanciamentos na trama: os elementos de convergência entre a obra de Pirauá e a abordagem feita por Suassuna no Auto da Compadecida. As reflexões sobre a intertextualidade e transmutação do código teatral para os códigos cinematográfico e televisivo serão abordadas a seguir, através da análise de estratégias, mudanças e adaptações necessárias para a divulgação do Auto de Suassuna nas mídias audiovisuais. N microssérie dirigida por Arraes, a partir do Auto da Compadecida, Suassuna promove a divulgação de sua obra com reflexos na preservação da memória nacional, através do resgate da cultura popular, das tradições e do imaginário nordestino. 70 4.0. INTERTEXTUALIDADES: A CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO E DAS PERSONAGENS EM “AUTO DA COMPADECIDA” “Foi a leitura que me abriu o mundo”. (SUASSUNA). A partir desta afirmação do escritor que se confirma pela realidade intertextual dos seus escritos, é fundamental considerar que não há obra radicalmente original. O que existe é um elo profundo que une toda criação e composição literária, quer pela própria linguagem ou pelo gênero. São os arquétipos12 que explicam todo o sentido e estrutura de uma obra literária. O dialogismo é próprio do ser humano. É impossível pensar o homem sem relacioná-lo com outro. Quando Ariano Suassuna “bebe nas fontes inesgotáveis do romanceiro popular nordestino” ele promove um diálogo com essas fontes. Ao pinçar as histórias anônimas que circulam – muitas delas pela oralidade, - juntá-las com outras de autores eruditos e inseri-las em suas obras ele está promovendo o diálogo com elas (e entre elas), trazendo à luz um novo discurso. 4.1 O repertório O repertório constitui-se pela somatória dos intertextos, ou seja, a intertextualização que reúne em si informações provenientes de diversos textos, num processo de ampliação do conjunto de informações que serão transformadas, 12 Modelo, protótipo, padrão. Na visão do psicólogo e psicanalista suíço C.G. Jung (1875-1961) é possível afirmar que os arquétipos constituem imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que são patrimônio comm a toda humanidade. 71 assumindo novos significados em diversos contextos de espaço, tempo, projeções pessoais, ideologias, etc. Identifica-se, pois, o diacronismo da obra, onde o velho é resgatado em nova concepção, possibilitando novas leituras das próprias releituras e, assim, sucessivamente, nesta constante relação texto/leitor. Na análise mais profunda, ou até mesmo numa simples leitura é possível identificarmos elementos determinantes que fazem com que um texto mantenha relações textuais com outros textos, num claro processo de intertextualidade. A presença dos textos populares no Auto da Compadecida bem como, em toda obra de Ariano Suassuna, numa prática freqüente e realizada com maestria; garantem a autenticidade da narrativa, e isto funciona como mais um elemento de aproximação entre a obra teatral e o público, determinando o caráter popular. Na obra criadora de Suassuna é freqüente observarmos a intratextualidade, quando ocorre a reescrita de um folheto em forma de um entremez e deste, pela transformação, surge uma nova peça de teatro. São os resultantes dessas reescritas sucessivas em cascatas que possibilitam a integração entre textos populares e também eruditos, dando origem a um texto absolutamente novo. Tal fato verifica-se facilmente nas obras do dramaturgo e de forma particular no Auto da Compadecida, cujo texto, mesmo conservando marcas de suas origens, além dos elementos acrescentados pelos caminhos percorridos no seu processo de elaboração, tornou-se um texto completamente novo, graças a esta convergência textual. Assim, ao emprestar da literatura oral e popular a matéria-prima para a base, ou a essência de sua obra literária, Suassuna produz um texto que permanece em 72 seu íntimo aberto à retomada, à transformação, seja na escrita ou em qualquer outra dimensão artística. Quando citamos a literatura oral estamos nos reportando, de modo especial à arte verbal do povo, onde se evidenciam as composições anônimas e coletivas, realizadas e transmitidas de forma exclusivamente oral, em oposição ao conceito da literatura tradicional que se alicerça no registro escrito, como suporte. De fato é sabido que nas sociedades tradicionais, particularmente nas camadas mais simples, a transferência do saber passa pela oralidade, que assim constitui não apenas um veículo privilegiado de identidade, comunicação e reprodução sociais, mas também como meio de desenvolvimento humano e de construção do mundo. Afirma-nos Antonio José Saraiva e o etnólogo formalista Vladimir Propp que o termo “literatura” deve abarcar o conjunto de obras faladas e escritas. Numa visão mais radical Alfonso Reys admite que: [...] a literatura é oral por essência (e não pela sua origem genérica), visto que o caractere se refere à palavra falada e nela cobra sentido, e a palavra só é escrita por acidente, por exigência da memória. (REYS, 1944, p.13). A oralidade constitui-se então, a semente de uma arte de transmissão, onde os fatos contados e recontados, embora passíveis de uma natural metamorfose, acabam sendo transmitidos entre as pessoas, os grupos e entre as gerações. Ao nos referirmos à convergência textual, convém ressaltar que as personagens criadas por Ariano Suassuna ancoram-se na realidade rural nordestina e submetem-se à mais alta autoridade possível: a de Deus. Porém, antes disso ocorrem submissões que poderiam ser identificadas como “menores”, quais sejam; autoridades do senhor da terra, do patrão, do pai, do marido etc. Desta forma o 73 escritor tematiza, prioritariamente, a situação daqueles que se encontram em posição inferior na ordem social, segundo a ideologia própria dos folhetos de cordéis. Algumas outras situações dessa convergência de textos, mais especificamente da intratextualidade, podemos notar quando, por exemplo, o terceiro ato do “Auto da Compadecida” ao ser reescrito como “O Processo do Cristo Negro”, acabou novamente reescrito tornando-se o “Auto da virtude e da esperança”, que corresponde ao terceiro ato de “A pena e a lei”. Na intertextualidade é possível identificarmos a citação literal do texto popular da cantiga de Canário Pardo presente no Auto da Compadecida. Identifica-se ainda a citação do Ofício dos Mortos, com deslocamento paródico no episódio O enterro do cachorro. A Compadecida Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo. (SUASSUNA, 2000, p.171) Desta forma, os procedimentos textuais de convergência são constantes em Suassuna, como é possível constatar no episódio do enterro do cachorrro inserido na peça e o romance popular anônimo com o mesmo nome. João Grilo Ah! E o senhor não sabe da história do testamento ainda não? Bispo Do testamento? Que testamento? Chicó O testamento do cachorro. Bispo Testamento do cachorro? Padre, animando-se Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou três contos de réis para o sacristão,quatro para a paróquia e seis para a diocese 74 Bispo È por isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre! (SUASSUNA, 2000, p.85) Mandou chamar o vigário: _ Pronto! _ O vigário chegou. _ Às ordens, Sua Excelência! O Bispo lhe perguntou: Então, que cachorro foi Que o reverendo enterrou? _ Foi um cachorro importante; Animal de inteligência: Ele, antes de morrer, Deixou a Vossa Excelência Dois contos de réis em ouro. Se eu errei, tenha paciência. _ Não errou não, meu vigário, Você é um bom pastor. Desculpe eu incomodá-lo, A culpa é do portador! Um cachorro como esse, Se vê que é merecedor! (O enterro do cachorro, romance popular anônimo do Nordeste.) Um dos mais interessantes em seu diálogo com a tradição culta incide na relação com O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca. O texto de modo fragmentado, diluído e ainda de modo paródico encontra-se muito presente no Auto da Compadecida. Outro exemplo deste presente diálogo com cultura erudita, expressa-se através de alguns personagens alegóricos, como heranças dos Autos de Gil Vicente que representam arquétipos da sociedade cristã medieval, com figurações da luta maniqueísta entre o Bem e o Mal, sem posições intermediárias de tal forma que todos pertencem ou ao mundo celeste ou então ao mundo infernal, os quais representam o sobrenatural, atuando também como função narrativa e épica, bem como, para a conclusão moralizante. Nota-se ainda, na obra de Suassuna a presença de temas e estruturas advindas do Romanceiro europeu, especialmente o francês e outros de origem oriental; dos mouros, judeus e ciganos; legados à cultura nordestina através da 75 interferência ibérica. Assim, através de Portugal nos foram legados elementos culturais com fortes traços arcaicos e cosmopolitas “Romance” designa, em primeiro lugar, este amálgama de dialetos do baixo latim, língua popular que foi a origem das línguas românticas, é também o termo utilizado, por extensão, para as poesias orais cantadas “em romance”, em oposição à cultura letrada, escrita em latim... O termo amplia seu campo e designa, mais tarde, toda a literatura narrativa em prosa, concorrendo com o termo “novela”. Enfim, “romance” remete para o imenso romanceiro popular brasileiro, a esses romances e folhetos, orais e escritos, cuja estrutura narrativa herdada da Europa adaptou-se tão perfeitamente aos temas e às vozes nordestinas... Mas o feixe de acepções seria incompleto e demasiadamente europeu para ser brasileiro, se não se acrescentasse uma reminiscência do termo romani, designando a língua falada pelos ciganos da Europa Ocidental, que conserva, sob aspectos diversos, um fundo oriundo da Índia. Os ciganos foram, de fato, para Suassuna como para Garcia Lorca, os principais responsáveis pela recriação e renovação do romanceiro medieval, que souberam reinterpretar no século XX, reintroduzindo nele o elemento popular apagado pelo tempo se não totalmente desaparecido. (SANTOS, 1999, p.31). Por conseguinte, em cada um dos textos das peças de Suassuna podemos aquilatar a convergência de uma diversidade de temas, de remotos passados e múltiplas culturas, reforçando as origens européias dos folhetos populares nordestinos; bem como, os resquícios da cultura medieval. Neste sentido a obra do artista reitera a circularidade de temas, enfatizando a relação entre o popular e o erudito, além da relação entre o regional e o universal. Por esse prisma é possível afirmar que as peças do dramaturgo paraibano correspondem a um mesmo molde: a expressão de fontes populares, oriundas dos folhetos populares associados à tradição oral com estruturas em maior ou menor grau dos Autos Vicentinos. Contudo, os textos teatrais de Suassuna abrangem um conjunto de traços próprios que envolvem diferentes estruturas teatrais, com características e vínculos que transitam do modelo europeu aos folguedos tipicamente nordestinos. Além disso, esse trânsito, se faz marcado pelo diacronismo 76 desde elementos das estruturas teatrais da Baixa Idade Média Européia aos elementos que podemos considerar da modernidade. A produção teatral de Suassuna contempla a intertextualidade, de modo que o receptor ao ter contato com a obra aproxima-se também do texto de origem. No Auto da Compadecida observamos que algumas situações de comicidade buscam resgatar uma característica bastante marcante dos autos medievais que enfatizam problemas sérios e de caráter universal, como os sócio-econômicos, políticos e filosóficos, através da tônica da ironia. Essas situações problemáticas são incorporadas na trama, dinamizando o enredo e despertando no receptor, uma reflexão sobre determinados desajustes, em diferentes instâncias do contexto social. (FLORY, 1997, p. 40). Convém ainda ressaltar que a transmutação do texto teatral para o texto televisivo, com seus aproveitamentos e acréscimos, serve como veículo de divulgação da literatura; antes restrito a um público de elite e que passa a um universo muito mais amplo e diversificado, através da mídia televisiva e cinematográfica. Também é possível notar como importância do tema que, através do Auto de Suassuna, apresenta-se como uma oportunidade de relatar e mostrar ao grande público o contexto simultâneo e paradoxal de complexidade e simplicidade do sertanejo nordestino, no seu universo próprio; compartilhando crenças, mitos e ritos. São elementos próprios da riqueza do ambiente popular brasileiro, que nos levam a compreender a arte como um fato polissêmico, porque é passível das mais diversas formas de interpretação que deve contemplar a relação autor/receptor, a partir da qual, tudo se concretiza no pluralismo das artes. A sistemática adotada por Suassuna para a construção dramática de sua obra, adota a reelaboração de suas próprias matrizes textuais ou de outros autores, sejam de textos populares ou eruditos. 77 A partir dessas matrizes textuais o escritor adota determinadas operações de interferência deslocando, condensando ou ampliando essas matrizes numa forma muito própria e característica de criar textos a partir de outras fontes. 4.2. A construção das personagens no espaço regional nordestino Existe na história de Portugal uma espécie de Rei Arthur, o lendário cavaleiro da Távola Redonda, cuja figura ocupava posição de destaque no imaginário popular. Seu nome era Dom Sebastião cuja figura passou a faze parte do imaginário popular português a partir da época de seu desaparecimento na batalha de Alcácer-Quibir em 157813. Um rei de carne e osso, que morre sem deixar corpo. Esse fato provocou grande comoção popular. Primeiro, porque com o “desaparecimento” de D. Sebastião, também desapareceu a dinastia fundadora do reino português, pois não deixando herdeiros, a sua morte determinou o fim da Casa de Avis. Essa falta de herdeiro ao trono de Portugal foi a responsável pela Unificação Ibérica e o Reino, pela ausência de um rei, submeteu-se aos desígnios do Reino Espanhol, sob o comando de Felipe II, tio de D. Sebastião. O povo português podia sofrer sob as ordens dos espanhóis, mas nutria a esperança da volta triunfal de D. Sebastião, para resgatá-los. O tempo foi passando e com a Restauração em 1640, Portugal tornou-se de novo um Reino independente, porém o povo ainda mantinha a expectativa do retorno de um salvador mítico. A espera nem era mais pela vinda corpórea de D. sebastião, mas tornou-se a espera por um símbolo, por um regresso à glória, ao tempo de fartura e de benesses. E assim, D. Sebastião, cuja única atitude de maior realce foi morrer, passou à história 13 A Batalha de Alcácer-Quibir travou-se entre os portugueses liderados por D. Sebastião e os mouros de Marrocos a 4 de agosto de 1578. 78 alimentado pelo imaginário popular do povo português como um símbolo de esperança. As lendas em torno da figura de D. Sebastião, levadas pelo sebastianismo ganharam o mundo, chegaram ao Brasil. Aqui encontraram acolhida popular e muitos brasileiros, passaram também a esperar, de forma intensa e verdadeira, pela mítica vinda de D. Sebastião. No ano de 1835, numa curiosa formação rochosa do sertão nordestino, em São José do Belmonte, na divisa de Pernambuco, a Pedra Bonita, foi banhada pelo sangue de homens, mulheres e crianças. Por convencimento de um desses “Antonios Conselheiros” que, de vez em quando surgem na história, muitos sacrifícios humanos foram feitos para que Dom Sebastião retornasse do seu desaparecimento encantado. Da mesma forma que a Guerra de Canudos premiou a literatura brasileira com Os Sertões de Euclides da Cunha, os sangrentos acontecimentos de Pedra Bonita, inspiraram grandes obras de nossa literatura. É o caso de Pedra Bonita, romance escrito por José Lins do Rego, em 1938. Também a obra O Reino Encantado, escrita por Araripe Júnior, cujo lançamento ocorreu em 1974. Porém, já em 1971, Ariano Suassuna, lança o que viria a ser considerada a sua obra-prima: O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Observamos que os personagens criados por Suassuna, ancoram-se principalmente na realidade de um Nordeste rural, onde são tematizados com destaque, aqueles que se encontram numa posição social inferior. Outros personagens apresentam-se também como elementos alegóricos e, neles, a referência com a possível herança dos autos vicentinos. Trata-se de tipos representantes dos arquétipos da sociedade cristã medieval, responsáveis pelas 79 figurações de lutas que se travam constantemente entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal. Tais personagens pertencem ao reino celestial ou ao mundo infernal, estando sempre prontos para agir entre os humanos. Esses dois níveis de personagens (os celestiais e os infernais), radicalmente opostos entre si, encarregam-se de representar o sobrenatural, sempre tão presente no imaginário popular. Para Suassuna, as referências culturais de escritores e artistas, como é o caso de Gil Vicente, entre tantos outros, devem ser compreendidas como confluência de interesses e valores culturais, muito mais do que mera influência. Por outro lado, a imaginação popular e a ingênua credulidade popular, comumente levam a identificação do demônio com cães e bodes e tal associação já se nota em Gil Vicente, quando em sua peça Auto da Barca do Inferno, faz referência ao “lago dos cães”, como inferno. Além disso, o diabo da Barca do Purgatório “berra” como um bode. São associações que remontam ao cristianismo medieval.14 É relevante comentar que Gil Vicente, cuja obra difundiu-se em Portugal nas três primeiras décadas do século XVI, representa um marco no processo de laicização15 da cultura, até então, fortemente marcada por preocupações religiosas e espirituais. O autor volta-se não para Deus, mas para o homem, em sua enorme diversidade de classes e grupos sociais: o fidalgo, o rei, o clérigo, o burguês 14 O cristianismo medieval caracteriza-se pelo poder de opressão e determinação religiosa. O poder econômico e social conferido à igreja, faz dela um ponto de convergência e direcionamento para o homem medieval que vive numa situação precária e de extrema insegurança, com o dever de aceitar-se num lugar social determinado (rico ou pobre, forte ou fraco). 15 Ato ou efeito de tornar laico, leigo, eliminação do caráter religioso substituindo por leigo. Adoção de uma postura de neutralidade religiosa. 80 comerciante, a mulher adúltera, a moça casamenteira, o nobre decadente, o velho devasso, entre outros tipos. Gil Vicente tinha para si, uma missão moralizante e reformadora. Não visava atingir as instituições, mas os inescrupulosos que as compunham. É, portanto, notória a “confluência de interesses e valores culturais” da qual nos fala Suassuna, e que se fez notar pelo caráter intertextual de suas obras, particularmente no Auto da Compadecida onde a presença do palhaço como condutor do espetáculo à maneira circense, configura-se um exercício da função metateatral. É ele quem se dirige ao público, em momentos bem definidos como no prólogo de cada ato e no epílogo da peça, anunciando aquilo que está por acontecer e tecendo alguns comentários. Desta forma ele não se mistura à ação da peça. O palhaço, na obra de Suassuna, além de ser a consciência crítica, com uma visão “distanciada” dos acontecimentos da cena, ele representa ainda, um agente de distanciamento entre ator e personagem. Um exemplo disso acontece quando o palhaço pede aos mortos da peça (personagens) que se levantem para ajudar a montar um novo cenário (atores), mas ao mesmo tempo o autor o nomeia como seu representante e, através dele, pode julgar as atitudes das personagens. 81 5.0. UMA LEITURA DO RECEPTOR NO AUTO DA COMPADECIDA Percebemos na produção literária de Suassuna, de modo especial, no Auto da Compadecida, o ponto de convergência para diversos textos. Neste construir estético, o dramaturgo deixa explícita a forma como a cultura popular nordestina, que lhe serve de raíz, funde-se com a cultura erudita, caracterizando a transposição da arte popular para o ambiente culto. O Auto da Compadecida apresenta um discurso que se abre às plurissignificações, e, como conseqüência, surge um texto capaz de atingir um amplo e diversificado grupo de receptores. A plurissignificação se dá pela construção e encontro de receptores, que se configuram como produtos de recepção. Com relação a este assunto em foco, observam-nos FLORY e MORAIS (2005,p.38) que o diálogo entre o emissor e o receptor está previsto no próprio discurso e as estratégias textuais acabam por estabelecer uma interatividade que constantemente acaba se renovando. Esta situação promove a abertura de espaços para a inserção de um outro “personagem”, que na realidade é a participação do próprio leitor no texto. Esse mesmo leitor que, como receptor procura uma ligação bastante íntima com o texto, reconhecendo que a interação entre o receptor e a obra relaciona-se diretamente com o processo de sua criação. Por outro lado, podemos entender como recepção de um texto a sua assimilação por diferentes sujeitos – os receptores – e o produto resultante das interrelações possíveis que são estabelecidas entre o próprio texto, o contexto e o 82 metatexto e seus leitores (ou espectadores – no caso específico do texto de Suassuna que se concretiza através dos atores e elementos cênicos no teatro). Neste particular, o espectador, na posição de receptor, trará para si a tarefa de representar as múltiplas possibilidades de significações e, através delas, modelar e construir o próprio sentido da obra, através da sua imaginação e balizado por seu repertório: O repertório constitui-se de um conjunto de convenções, tradições, normas históricas e sociais – húmus sócio-cultural de onde o texto é proveniente – que formando o quadro ou cercadura do texto, reaparece, não com seu sentido primeiro, mas sim valendo como um pólo de interações. [...] O repertório dá conta dos diversos horizontes de expectativa, gerados pelos grupos sociais que interagem na narrativa ficcional. São horizontes do passado interferindo e compondo um horizonte do presente. São ideologias que se definem por oposições, obrigando o leitor a aceitá-las ou negá-las, criando sua própria visão dos fatos e personagens da diegese ficcional, presentificando-se o texto através da comunicação texto/receptor. (FLORY, 1997, p. 38-40). Ao receptor do texto cabe, portanto, a significativa tarefa do preenchimento das lacunas, as quais Umberto Eco (1979) denominou de “brancos do texto” ou seja, os espaços intencionalmente deixados pelo autor com o propósito de que o receptor possa presentificar a mensagem e participar de forma própria e inequívoca na construção do texto. Assim, esse vivenciar do texto por parte do receptor, acontece na diversidade própria do conjunto, tendo como interferente de extrema significação, o repertório próprio e particular de cada um. Esta vivência da obra, através da construção pessoal do texto, pode remeter o receptor a diversos níveis de prazer estético. Tais níveis, segundo Jaus (in Lima, 1979) configuram como a “Poiesis” (que se relaciona ao prazer estético vivenciado pelo receptor ao perceber-se inserido no texto, que o eleva à condição de sentir-se co-autor da obra); a “Aisthesis” (como momento de conscientização do receptor, a 83 renovação do sentido e da concepção de mundo) e, por último, a “Karthasis” (que se configura como a possibilidade de libertação do receptor, a fuga de si próprio e da rotina do cotidiano, que lhe permite viver, através dos personagens, novas experiências, vivenciando outras sensações e sentimentos). O Auto da Compadecida, assim como toda a obra de Suassuna, funciona como um forte convite ao leitor/espectador/receptor para vivenciar as experiências da Poiesis, da Aisthesis e Karthasis. Tal convite se intensifica no texto/teatro de Suassuna, porque a obra permite uma gama diversificada de receptores e seus respectivos repertórios, levando-os a identificarem-se com diferentes questões que transitam do caráter religioso ao político, chegando ao sócio-econômico. Palhaço Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades. (SUASSUNA, 2000 p. 23) Toda essa abertura, que promove a perfeita integração autor/obra/receptor é possível no texto de Suassuna, daí seu grande sucesso de audiência, pois ocorre numa estrutura de comunicação que busca a visualização da informação, através de um campo pertinente de valores, por meio da qual defrontam (sem nenhum confronto) os horizontes de expectativas do emissor e do receptor em diferentes momentos temporais e na multiplicidade de ideologias originárias da intertextualização resultantes das diversas leituras do texto. Para Patrícia Irina Loose de Morais e Suely Fadul Villibor Flory, em Narrativas Ficcionais da literatura às mídias audiovisuais (2005): 84 Ao identificarmos a preocupação com a receptividade, claramente configurada no texto/teatro de Suassuna, através de seu repertório esteticamente composto, a proposta é atingir o maior número possível do que chamaremos de “leitor modelo” (Eco, 1979), “leitor implícito” (Iser, 1979), ou ainda arquileitor” (Riffaterre, 1971). No caso de Suassuna, esse leitor implícito, fazendo uso do conceito de Iser, aparece quando o texto abre lacunas a serem preenchidas pelos leitores, com seus repertórios diversificados e seus respectivos segmentos sociais. O diálogo entre emissor e receptor está previsto no próprio discurso e as estratégias textuais estabelecem uma interatividade, constantemente renovada, abrindo espaços para um personagem “in absentia”, que é a presença do próprio leitor no texto. A informação assume seu ponto máximo de inclusão e interação entre emissor e receptor, levando à elaboração de novas leituras, semiotizadas pelos fragmentos heterogêneos, emanados da relação entre emissores/receptores, repertórios/segmentos sociais, traçando o quadro cultural em que estão mergulhados o próprio texto e os seus leitores. (FLORY, 2005, p.38). Na obra de Martin-Barbero, Dos meios às mediações (2003, p. 116-117), o autor afirma que a problemática da recepção encontra-se centrada na questão da cultura popular. Segundo sua análise, tal fato se dá em função da fragmentação dessa cultura, numa sociedade que se pretende homogênea. Lançando mão da teoria de Gramsci, sobre a hegemonia das classes, Barbero ressalta que Gramsci dispõe-se através de uma análise do processo de dominação social, a evidenciar que as classes sociais não são homogêneas nem permanentes, estando continuamente num processo em que se desfazem e se constroem pela aquisição do sentido de poder outorgado de uma classe social a outra. Segundo Gramsci, esta relação interclasses é a da concessão e cumplicidade. As peças de Suassuna, dimensionadas em seu diacronismo, enquadram-se, de modo geral, nas modalidades do teatro medieval, tanto religioso, quanto profano. No primeiro caso, trazem as características do mistério, milagre e moralidade, bem como, as roupagens do auto sacramental. 85 Severino Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez. João Grilo Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer. (SUASSUNA, 2000, p. 122) Na modalidade profana, situam-se a farsa, a comédia italiana ou “Commedia dell’Arte”, o circo. Pode-se constatar em todas as situações, a possibilidade de integração entre o texto e seus receptores, inseridos num mesmo contexto: a cultura popular brasileira com todas as suas raízes. Palhaço O distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é à sua esquerda. [...] O resto é com o os atores. (SUASSUNA, 2000, p.25) Além desse aspecto do teatro medieval, é possível situar o trabalho de Ariano Suassuna entre a ironia cômica e a satírica, que nos remete a externalização de valores do autor, como ocorre na produção de Gil Vicente. O “Auto” promove a fusão e intensificação entre o emocional do autor e o horizonte de expectativas do público. Convém salientar que se incorporam ao emocional do autor, também aqueles que compuseram os cordéis, trazidos ao Auto pela ótica suassuniana. Observe-se ainda, a releitura de Guel Arraes ao transpor o texto teatral para mídia televisiva, através da microssérie e, ao público em geral, pelo cinema e vídeo. É inegável que esta transposição dos palcos para a mídia televisiva e, desta, para o cinema, aumentou significativamente o público receptor em relação à obra Auto da Compadecida, tornando a mais conhecida obra da dramaturgia brasileira, conforme afirmação de Nelson de Sá (colunista da Folha de São Paulo – 2008). A versão televisiva do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna surgiu em 1999, através de uma adaptação realizada pela Globo Filmes, ou seja, quase meio 86 século após o nascimento da peça, escrita em 1955. Inicialmente, essa passagem do código teatral para o televisivo deu origem a uma minissérie – ou microssérie, como alguns preferem definir – para depois, ser reformulada para edição em forma de filme, sempre mantendo o nome original da peça, Auto da Compadecida. Esta transposição da obra, do teatro à mídia televisiva, sob a ótica do diretor Guel Arraes, atendia a um projeto da emissora, com a introdução de obras da literatura nacional, para serem veiculadas junto ao grande público receptor. A exemplo das transposições realizadas com Os Maias, de Eça de Queiroz; a obra adaptada ao cinema, Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins, ou ainda, A Muralha de Dinah Silveira de Queiroz entre outras, a microssérie Auto da Compadecida dirigida por Arraes, destaca-se pela qualidade e pelo sucesso junto ao grande público. Ainda quanto ao repertório e o receptor, no Auto escrito por Suassuna, as estratégias discursivas peculiares do escritor permitem que a leitura do seu texto/teatro, possa ser constantemente reestruturada, incorporando-se a cada nova leitura, os níveis de espectativas do receptor. Com essa concepção, Suassuna traz para os seus textos os elementos do fantástico que estabelecem a ligação e a interatividade envolvendo o próprio autor, a história que se registra pelo texto e o receptor. Assim, cada um ao mergulhar no texto teatral, libera o imaginário, facilitado pelo sobrenatural, acentuando a relação e a interação entre o emissor e o receptor. Percebe-se no Auto da Compadecida, o criterioso cuidado e preocupação de Suassuna com as possíveis leituras que sua obra venha propiciar. Mas, ao mesmo tempo, é também possível notar a clara intenção de possibilitar ao receptor, essa múltipla possibilidade de leitura, respeitando-se o repertório de cada um, nos limites 87 de um quadro sócio-temporal e histórico buscando a valorização do conhecimento nos diversos elementos intrínsecos do texto. Tal fato proporciona um mergulho no contexto das plurissignificações do Auto da Compadecida, que se intensifica pela interação texto/receptor, bem como pelas diversas possibilidades de releituras, marcadas pelos repertórios de cada leitor. Mulher O que é isso? É a voz da verdade, Padre João. O senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro! João Grilo Ai, ai, ai, e a senhora, o que é que é do padeiro? Mulher A vaca... Chicó A vaca?! (SUASSUNA, 2000, p.54) Afirma-nos Flory (1994, p.34-38) a presentificação do texto pelo leitor configura-se como um labirinto, cuja única chave possível consiste na interpretação dos códigos, contidos no próprio texto. Ao mesmo tempo, a ausência dessa chave poderia implicar no não entendimento e na instabilidade de recepção da mensagem. Desta forma, a interação decorrente a partir do repertório próprio e peculiar de cada receptor e a tessitura textual criada pelo autor, com aberturas e lacunas intencionalmente propostas na obra, permitem ao Auto da Compadecida a sua completa aproximação com os horizontes de expectativas do seu público, conferindo ao texto/teatro a sua incontestável aceitação e sucesso. 88 6.0. AUTO DA COMPADECIDA: DA LITERATURA AO CINEMA O Auto da Compadecida, microssérie exibida pela Rede Globo, em 1999 e transformada em filme no ano seguinte, é resultado de uma adaptação feita por Guel Arraes da peça de Ariano Suassuna, escrita em 1955. Marcada principalmente pelo caráter regionalista – com narrativas nordestinas e um contexto religioso – característico dos Autos. A peça é uma mescla de gêneros teatrais medievais e populares que se fundem. A transposição da peça, dos palcos para a televisão revela o processo folkmidiático pelo qual ela passou. Guel Arraes apropriou-se da obra de Suassuna e tornou-a possível a um público maior, sem no entanto, banalizá-la. Quem não conhecia Suassuna encantou-se pela sua paradoxal simplicidade. Aqueles que já conheciam a obra, apreciaram o trabalho de adaptação e recriação, onde Guel Arraes lançou mãos de outras obras de Suassuna, trazendo algumas personagens que, como se deixassem seus contextos de origem, vieram integrar-se ao grupo. Através da transposição para as linguagens fílmica e televisiva o acesso à obra tornou-se praticamente irrestrito. Isto porque, inicialmente a adaptação foi levada ao ar, na microssérie em quatro capítulos, em TV aberta, portanto acessível ao público em geral. Desta forma, o percurso entre a obra literária e a obra fílmica promoveu a sua abrangência a um público notadamente maior. A cultura de massas eleva ao cosmopolitanismo, temas e imagens locais da cultura popular. (MARQUES DE MELO, 1998, p. 190), 89 É importante ressaltar que cinema e literatura têm linguagens próximas, contudo distintas, tendo o cinema o poder de “transformar” e “reformular” obras literárias tornando-as mais próximas do grande público, fazendo assim um resgate da cultura, através da divulgação de obras e autores. Podemos salientar que uma significativa diferença entre as linguagens literária e fílmica incide na forma de representação. Enquanto na linguagem literária a representação do universo ficcional de forma estática, encontra-se presa ao discurso e ao próprio texto; na linguagem cinematográfica (ou televisiva) a representação se faz pelas cores, pelos movimentos, que associam=se aos recursos sonoros, imagéticos e fílmicos, em ocorrências simultâneas aos diálogos, possibilitando ao espectador a assimilação e o entendimento da obra. No Auto da Compadecida, a maioria das personagens da peça foi mantida no filme, sendo que uma em especial que foi acrescentada é Rosinha, apresentada no filme como a moça pura e de boa índole, filha do Major Antonio Moraes. Na realidade, Rosinha veio às telas, trazida por Arraes, de outra peça de Suassuna, chamada “Torturas de um Coração”, junto com Cabo Setenta e Vicentão, outros personagens da mesma história. Em “Torturas de um Coração”, quatro homens (Benedito, Cabo Setenta, Vicentão e Afonso Gostoso) disputam o amor da dengosa Marieta, na cidade de Taperoá. No Auto, o amor de Rosinha é disputado por Chicó, Cabo Setenta e Vicentão. A história do Auto da Compadecida, carregada de força poética e popular, mostra basicamente a vida simples em uma cidade do interior da Paraíba, Taperoá. Na produção cinematográfica todas as personagens pecadoras encontram a misericórdia e perdão após a morte, através da Compadecida. 90 Ao todo são seis núcleos narrativos explorados na trama: 1 – o núcleo do malandro João Grilo e seu companheiro Chicó, simbolizando a esperteza e a pobreza; 2 – o do padeiro avarento e sua esposa infiel, representando a mesquinhez da pequena burguesia da cidade; 3 – o núcleo religioso que inclui os corruptos padre João e o bispo; 4 – o núcleo do Major Antonio Moraes, que inclui Rosinha, representando o poder político e o coronelismo regional; 5 – também o núcleo que faz parte da cena do julgamento: a Compadecida, o Diabo e Jesus, simbolizando a justiça divina e 6 – por último, o núcleo do Severino de Aracaju, o cangaceiro que saqueia toda a cidade e mata as personagens citadas, simbolizando a justiça dos homens. A personagem de Rosinha só entra em cena depois da primeira meia hora de filme, mas até então já havia sido comentada a sua existência e inclusive foi chamada pelo padre de “cachorra” em uma discussão dele com o pai da moça, Major Antonio Moraes. Logicamente, que este insulto à moça foi feito enganosamente pelo padre, achando que o Major estava se referindo à cadela que estava doente e precisava curar-se, resultado da mirabolantes mentiras de João Grilo e Chicó. Rosinha chegando a Taperoá, vinda de Recife, chama a atenção de todos os homens que estão na praça da igreja em uma festa da cidade. Podemos verificar que a personagem de Rosinha tem semelhança com outra personagem: Marieta de Torturas de um coração, levando-nos a crer que Rosinha não foi colocada no filme por acaso. Ela veio para agregar ao filme mais dados e elementos característicos das tantas obras de Suassuna. Além disso, a personagem de Rosinha, carregada do significado de pureza, surge no filme como um contraponto à adúltera e, portanto pecadora, Dorinha, 91 mulher do padeiro Eurico. Uma antítese da figura feminina característica daquela cidade fictícia e, pela sua generosidade, contrapõe-se ao poderio de seu pai. . No entanto, devemos lembrar também, que Arraes acrescentou esses personagens ao filme, por conta da microssérie, pois a mesma exigia uma trama mais longa e dinâmica que o Auto de Suassuna – estruturado basicamente em três atos. Desta forma, a inclusão deste núcleo possibilitou a expansão da obra original, sem que a mesma perdesse sua essência, uma vez que Arraes se utilizou de personagens que fazem parte do mesmo universo autoral de Suassuna. Outro elemento de acréscimo é a porca, que serve de cofre e pelo qual o Major tem grande apreço. Ela foi trazida por Arraes da peça O Santo e a Porca, também escrita por Suassuna. A porca, objeto/representação, é retirada de um armário e apresentada a Rosinha pelo pai como sendo um presente dado pela bisavó para que quando ela se casasse, pudesse garantir seu futuro com as economias que estavam dentro do cofre. O dote que tinha, aproximadamente um século, era cobiçado por Chicó. No entanto, depois de se casarem, a porca é quebrada pelos noivos e, nesse momento são encontradas somente moedas antigas e sem valor algum. No texto teatral, Auto da Compadecida, o Major Antonio Moraes é o mesmo homem poderoso retratado no filme de Arraes, mas ao invés de ser pai da donzela Rosinha, é pai de um moço adoentado. Assim como sua porca, as filhas de Eurico e do Major Antonio Moraes são consideradas um patrimônio, devido a imagem de pureza que cerca a personagem, caracterizada pela sua virgindade e recato. 92 A partir do momento em que a porca do Auto é quebrada, os personagens observam que de nada valeu toda a expectativa com relação ao objeto/cofre, é o momento em que a esperança e a decepção são trazidas em cena e retratam aquilo que muitas vezes, sob diferentes formas, acontece no dia-a-dia das pessoas comuns. O filme nos leva a refletir que mesmo nos dias de hoje, o casamento é praticamente um negócio e só sobrevive se o casal realmente se amar, conseguindo viver juntos, mesmo sendo na miséria financeira, como é o caso de Rosinha e Chicó, trazidos para a tela pelo talento do cineasta. A microssérie transmitida pela Rede Globo de Televisão, depois transformada em filme, adaptando a obra Auto da Compadecida, teve uma grande influência no sentido de divulgar a obra do dramaturgo Ariano Suassuna e, consequentemente, o próprio escritor. Com relação à mídia televisiva, observa-nos Marçola em seu artigo Os telenetos de Lobato: literatura infantil: Os cuidados para a realização de uma adaptação devem ser contínuos, principalmente por utilizar um meio de comunicação de massa, a televisão, com um alcance maior e muito mais rápido que o livro [...] A televisão como meio de comunicação de massa, fornece às adaptações uma forma eficiente de difusão do trabalho, pois atinge um grande número de pessoas [...]. MARÇOLA, 2005. Protagonizado por um elenco notável, de atores e atrizes renomados, sob a direção de Guel Arraes, dentre os quais podemos citar: Matheus Nachtergaele, como João Grilo; Selton Mello, no papel de Chicó; Marco Nanini, interpretando o Cangaceiro Severino; Fernanda Montenegro, no papel de Nossa Senhora (A Compadecida); Maurício Gonçalves, como Jesus Cristo; Lima Duarte, o bispo; Rogério Cardoso, interpretando o Padre João; Luis Mello, no papel de Diabo; 93 Enrique Diaz, como capanga do Cangaceiro Severino; Paulo Goulart, interpretando o Major Antônio Moraes; Virgínia Convendish, no papel de Rosinha, filha do Major; Aramis Trindade, como o Cabo Setenta; Bruno Garcia, interpretando Vicentão; Diogo Vilela, no papel de padeiro e Denise Fraga, como Dora, sua mulher. A adaptação para a TV, da peça de Suassuna, Auto da Compadecida, coube a parceria entre Guel Arraes e João Falcão que incluíram partes de outros textos do mesmo autor: Sob a direção geral de Guel Arraes e com direção de arte a cargo de Lia Renha. O figurinista responsável foi Caio Albuquerque; cabendo a Félix Monte, a direção fotográfica e Eduardo Figueira responsabilizou-se pela direção de produção. Os direitos estão reservados à Globo Filmes, tendo como produtor associado Daniel Filho e distribuição pela Colúmbia Tristar. A microssérie teve composição de cento e cinqüenta e sete minutos, enquanto a edição para o filme resultou numa duração de cento e quatro minutos, tendo portanto, nesta transposição, a eliminação de algo muito próximo de uma hora de cenas gravadas. Tal procedimento foi necessário para viabilizar a edição do filme. Arraes em sua versão fílmica fez a fusão de três peças teatrais de Suassuna: Torturas de um coração, O Santo e a Porca e, evidentemente, a peça Auto da Compadecida e, mesmo sendo fiel ao texto e à estrutura determinada por Suassuna, a transposição realizada por Guel Arraes resultou num trabalho de leitura muito bem sucedido da obra de Ariano, que conhece em profundidade. Desta forma, o cineasta deu uma grande contribuição ao público leigo em literatura que desconhecia a obra original, trazendo para o cinema e através da microssérie para a TV uma das peças de Suassuna, projetando-a junto a grande massa da população brasileira. Surge aí o resultado da apropriação da cultura 94 popular pela cultura de massas, onde Guel Arraes, realizou a adaptação mais elogiada pela crítica especializada e, indiscutivelmente, muito aceita pelo público de modo geral. É conveniente acrescentar que, este trabalho realizado por Guel Arraes, foi a terceira versão cinematográfica da obra de Suassuna. A contribuição de Guel Arraes para a folkmídia através da apropriação da obra teatral de Suassuna, proporcionou ao público brasileiro o contato pela TV aberta, com algo que apenas poderia ser visto no teatro e, portanto, por um público muito restrito. Configura-se como um trabalho de recriação, trazendo para a televisão e para o cinema o encontro da cultura popular, erudita e massiva, numa conjunção cujo mérito maior foi manter a essência e toda riqueza da obra literária original. 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes de nos encontrarmos com o Auto da Compadecida, travamos um encontro com seu criador, o dramaturgo, poeta, professor, mas, acima de tudo o brasileiro: Ariano Suassuna. A partir desse encontro, mergulhando nesse pensador de gestos e atitudes, que se integram perfeitamente ao seu caráter e preocupações, foi possível melhor compreender o universo suassuniano, no qual se insere o seu “Auto” e, nesse trilhar de conhecimentos, pela concepção do Movimento Armorial, que consolida toda uma preocupação com a cultura popular. Alimentando-se dessa fonte de idéias, conceitos, manifestações e tradições autenticamente enraizadas no cerne de uma cultura muito própria e muito particular – o nordeste brasileiro, o escritor produz a sua obra. Foi isto que nos propusemos a fazer e, nesse sentido, elaboramos o presente trabalho, pois que, em nada acrescenta ao conceber literário de seu criador, mas que pretendeu registrar interrelações de idéias e conceitos. Foi a oportunidade de nos debruçarmos sobre a obra de Ariano Suassuna: Auto da Compadecida, num estudo das intertextualidades e o resgate da cultura popular. Buscamos estabelecer uma análise da trajetória da obra, do texto teatral ao texto fílmico, a construção do repertório, das personagens; as transformações perceptíveis na transposição de um código a outro e às inferências decorrentes dessa transcodificação. Há uma afirmação definitiva sobre o Auto escrito por Suassuna: enquanto teatro popular o Auto da Compadecida já nasceu clássico16. 16 Tal afirmação encontra-se na contra-capa da edição da obra, como parte da Coleção Folha, Grandes Escritores Brasileiros). 96 O Auto da Compadecida é essencialmente teatro popular, debruçando-se sobre o seu público com o qual se identifica, seja pela moralidade, pela crítica política e social ou estratégias de sobrevivência. A peça esconde, sob um manto de ingenuidades, seu extremo rigor formal. Suassuna partiu do auto medieval, modelizado pelo ibéricos Calderón de La Barca e Gil Vicente, além da tradição italiana da “Commedia dell’Arte”. Transitou também pelo romance de cordel, o teatro mamulengo, pelo circo-teatro característico do seu sertão de origem, bem como por elementos do folclore brasileiro, do imaginário e da religiosidade popular. Tudo se fundiu numa nova dramaturgia envolvente e vigorosa, com o mérito de reconhecimento do público e da crítica. O enredo focaliza dois simpáticos Malasartes que desafiam a “aparente” ordem de Tqperoá, pequena cidade onde vicejam os desmandos, traições e falcatruas. A história toma novo rumo com a chegada de Severino de Aracaju, chefe de um bando de cangaceiros e culmina com a disputa numa espécie de “tribunal celestial” entre o demônio e a Compadecida, trazendo para a cena, Jesus de pele negra. É inegável que a transposição da obra teatral para o código fílmico levou-a a ultrapassar as barreiras limítrofes de público, tornando-a acessível a milhões de telespectadores através das mídias televisava e cinematográfica. Convém ainda ressaltar o cuidado que Ariano Suassuna dispensa às suas obras e à própria cultura brasileira. Isso o manteve atento para que na transposição para a mídia não houvesse nenhum comprometimento com o essencial do seu texto, ou seja, a cultura popular resgatada em sua obra, mantendo a clareza de visão que vivemos num país multicultural. 97 Toda essa preocupação, aliada ao trabalho de Guel Arraes ensejou como resultado uma transposição de qualidade para a TV e para o cinema, revelando que é possível produzir uma obra de essência popular, onde os compromissos com a indústria de consumo não se sobreponham aos compromissos de fidelidade e respeito à cultura, às tradições e às manifestações de um povo. Destaca-se ainda, a iniciativa do escritor paraibano Ariano Suassuna , na idealização e na fundação do Movimento Armorial (1970), com o propósito de defesa e valorização das mais autênticas raízes populares da cultura brasileira. O próprio autor ao referir-se à arte essencialmente brasileira sob as luzes do Movimento Armorial, admite a erudição ao reportar-se à “arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa cultura”. (SUASSUNA, 1974). Portanto, o trabalho desenvolvido pretendeu dimensionar a importância do autor e da obra, no território da dramaturgia brasileira e, numa visão mais abrangente, no contexto da cultura universal. 98 REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. História de Cordéis e Folhetos. São Paulo: Editora Mercado das Letras, 2000. ACHCAR, Francisco. Gil Vicente: Auto da Barca do Inferno. São Paulo: CERED, 1996. ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. São Paulo: Globo Filmes, 2000. BALLOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções e Transmutações da Literatura ao Cinema e a TV. São Paulo: Annablume, 2005. BAKHTIN, Michail. Problemas da Poética de Destoewski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BARROS, Leandro Gomes. No reino da poesia sertaneja. Org. Irani Medeiros. João Pessoa: Idéia, 2002. 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