Julho/Agosto - 2009 2 editorial O outro como altar e como cura da esterilidade POR MAURÍCIO BRONZATTO Isaías 58, se bem o entendo, é desconcertante. E ao mesmo tempo libertador. Explico. (Se possível, me ajude lendo todo o texto bíblico primeiro e mantenhao aberto ao lado para alguma consulta, pois não mencionarei as referências). O cerne do capítulo fala em cura, iluminação, irrupção da justiça, manifestação da glória do Senhor, permeabilidade entre o homem e Deus. Mas tanta notícia boa é precedida de uma séria admoestação à casa de Jacó, numa clara referência ao antigo regime da Lei e suas práticas. Ao profeta pede-se que denuncie com voz forte as transgressões e os pecados do povo, estranhamente um povo que “tem prazer” em saber os caminhos do seu Deus, que “pratica a justiça e não deixa o direito do seu Deus”. De que pecado deveria ser acusada uma nação na qual a espiritualidade não estava ausente? Ora, a grande questão da casa de Jacó é, depois de insistentemente jejuar e mortificar a alma, dar com os céus trancados. Nenhuma resposta. Tanta dedicação à observância da justiça e dos interesses ‘divinos’ deveria conferir direitos a quem desse zelo estivesse cheio. Por que Deus não retribui se a legislação é tão clara quanto aos benefícios que devem se seguir ao cumprimento? Curiosamente este texto tem uma similaridade muito grande com as façanhas de ‘fé’, os desafios e as maratonas espirituais que superlotam as agendas das igrejas modernas. Depois de dar cabo de um número sem conta de etapas e exercícios de perseverança, basta ao honesto fiel reivindicar o prêmio a que fez jus por não ter desistido no meio do GRUPO NEWS caminho, mesmo quando os sacrifícios exigidos mais pareciam verdadeiros e irracionais atentados financeiros aos seus já bastante diminuídos recursos. O não atendimento de Deus às reivindicações contundentes da casa de Jacó tem a coragem de chamar de pecado e transgressão aquilo que muitos chamariam de perseverança, fidelidade, obediência. Porque para Deus, pior do que a falta de espiritualidade é uma espiritualidade egoísta, cujo objetivo não é outro senão “que se faça todo o vosso trabalho”. Espiritualidade que elege dias e necessidades especiais para ‘dar o ar da sua graça’, ainda que adornada com fachada de mortificação pretextando severa humildade, totalmente desconectada de tudo o mais que representa a vida de quem a põe em ação, não pode ser recebida como oferta aceitável pelo Senhor. Vestir saco e deitar sobre a cinza combina com um estilo de vida quebrantado em que o outro encontra muito espaço. Combina com esforços para produzir rompimentos, ainda que relativos, nas ligaduras da impiedade, geralmente manifestadas pelo sistema capitalista predatório à nossa volta, mas não restritas a ele. Tais rompimentos com a impiedade, de acordo com a jornalista Eliane Brum, manifestam-se mais veementemente se o olhar que escolhermos lançar, tal qual um farol, sobre os infortunados, for o da compaixão, aquele que reconhece no outro a fratura que já adivinhou em si mesmo. Tem a ver com a dissolução da opressão espiritual, principalmente a religiosa, que se baseia na manutenção do sistema da culpa e da condenação ou da recompensa, que uma postura de É uma publicação da Associação Grupo Unido de Irmãos e Amigos Jornalista Responsável: Ivonete Camargo Pegnolazzo - MTB 16.844 Diagramação e Arte: Marina Venuto, Renata Ribeiro e Rubens Fernando Revisão: Maurício Bronzatto Tiragem: 2500 exemplares / bimestral Impressão: Gráfica Lance Tel.: 11 4198-4616 e-mail: [email protected] desempenhos no sentido de conquistar o favor de Deus e tentar agradar-lhe proporciona. Relaciona-se com a libertação dos jugos, em especial os psicológicos, que a vã maneira de viver que herdamos dos nossos (o que inclui, além dos familiares, colegas, professores, patrões, autores favoritos etc.) perpetua. Afligir a alma faz todo o sentido quando o faminto se beneficia da nossa mesa, até mesmo dos afetos e conflitos que dela emanam e nos fazem amadurecer; quando o pobre encontra acolhimento em tudo aquilo que temos, inclusive no nosso tempo; quando o nu, depois de se encontrar conosco, se vê coberto não apenas de roupas e cobertores, mas sobretudo de dignidade e sentido para a existência. Inclinar a cabeça como o junco é uma boa pedida, desde que paremos de brincar de esconde-esconde com o nosso semelhante, o que muitas vezes acontece quando, mesmo a despeito de estarmos presentes, ocultamos dele quem de fato somos, insistimos em não andar na luz. O que esse texto de Isaías está nos dizendo é: esse estilo de vida que leva em conta o outro, ameniza-lhe as dores, fornece-lhe encontros significativos, supre-lhe necessidades concretas, guialhe o olhar para a verdade, entre outras coisas, é a espiritualidade que faz chegar a nossa voz lá no alto. Ou seja, é o que afasta de nós a possibilidade de um dia ouvirmos: “Nunca vos conheci!”. Surgenos como um convite à desmistificação da vida espiritual. Ela se torna carne à medida que se despe de trejeitos, de senhas linguísticas para acessar a divindade, de despachos espirituais para conseguir o favor do céu e de pretensa piedade para angariar a simpatia e a admiração dos que estão por perto. A espiritualidade que tem saúde e vida vai dispensando os mediadores, inclusive os altares, vai ficando parecida com aquela de antes da queda, ela e a vida estão imbricadas, adora a Deus com o ato de viver, de servir, não importa qual seja a rotina. Se há um altar, esse se encontra no outro. Ali Deus é bem servido. É desconcertante, mas é verdade: muita depressão, muita esquizofrenia, muita autocomiseração, para ficar só nesses exemplos, poderiam simplesmente se evaporar se simplesmente ousássemos desviar nos- sos olhares ensimesmados para o outro. É a Palavra de Deus quem está dizendo: “romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti”. Isso diz respeito a viver em verdade, sem fantasias, sem representações nem performances, iluminados por fora e por dentro, alegres, joviais, de maneira intensa, cheios de apetite pela vida, apaixonadamente. Fala também sobre a cura de uma doença essencial: a de ficar mendigando afetos, aplausos, reconhecimentos a todo custo. A alma fica serena, pois se descobre amada até o ciúme por um Deus possessivo, ardoroso, estável, imutável. Fala, ainda, da descoberta de que a minha justiça é trapo de imundície, mas Deus me abraçou com a dele, me cobriu. Negócio resolvido. Não tenho que expiar mais nada. O que vai à minha vanguarda é o reconhecimento de que o que agrada a Deus em mim é o que Deus mesmo providenciou. Acabamos percebendo que fazemos mais pelo mundo sendo verdadeiros e andando na luz do que realizando milagres, pregações ou alteando a voz para entregar uma profecia. Essa é a luz, e a cura, e a justiça que, qual um holofote, nos precederão ou serão o nosso ‘papel de parede’. Nessa base há diálogo: eu clamo, e o Senhor responde; eu grito por socorro, e ele aparece de algum lugar misterioso dentro de mim. A vida fica leve, não porque desapareceram aflições, mas porque a graça é melhor do que a vida. Ela conduz e farta a alma até em lugares áridos. Cheios assim, acabamos atraentes: outros se aproximam, se detêm e bebem. E mais: é contagiante. Os filhos aprendem este estilo como aprendem a comer e a beber e se habilitam a edificar ruínas antigas, ou seja, a dar passos ligeiros em direção à restauração da casa de Deus. Parece muito romântico? Talvez assim o consideremos se continuarmos profanando o sábado do Senhor. Em poucas palavras, se continuarmos no regime antigo, insistindo em não entrar no descanso de Deus, mas suando a camisa para manter intactos os nossos interesses, acharemos tudo isso muito estranho. Como resultado, não nos deleitaremos no Senhor nem cavalgaremos sobre os altos da terra, tampouco seremos sustentados com a herança de Jacó. Julho/Agosto - 2009 3 quem tem ouvidos para ouvir...ouça Você crê que Ele te ama? POR BRENNAN MANNING Por causa dos últimos 48 anos desde que fui emboscado por Jesus numa pequena capela no Oeste do estado da Pensilvânia e por causa dos milhares e milhares de horas de dedicação à oração, meditação, silêncio e solitude durante esses anos, estou totalmente convencido de que, no dia do Julgamento, o Senhor Jesus fará a cada um de nós uma pergunta somente: “Você creu que eu o amava, que o desejei, que o aguardei dia após dia, que ansiava por ouvir o som da sua voz?” Os verdadeiros crentes responderão: “Sim, Senhor Jesus, eu cri no seu amor e procurei moldar a minha vida como uma resposta a esse amor”. Mas tantos de nós que são tão fiéis no ministério, nos costumes, no frequentar a igreja, terão de responder: “Francamente, eu não, Senhor. Na verdade, eu nunca cri. Ouvi, sim, uns maravilhosos sermões e uns ensinamentos sobre o seu amor. E eu até mesmo dei aulas sobre isso. Mas eu pensei que era só um jeito de se falar – uma mentirinha amável. Alguns cristãos piedosos me incentivaram com uns tapinhas nas costas”. E aí está a diferença entre os cristãos verdadeiros e os cristãos nominais, que povoam as igrejas do mundo afora. Ninguém como um crente pode mensurar a profundidade e a intensidade do amor de Deus. Mas, ao mesmo tempo, ninguém como um crente pode medir a eficácia com que o pessimismo, a melancolia na escuridão, a baixa consideração, a ausência de autoestima, o ódio próprio e o desespero nos bloqueiam do Seu amor. Você percebe como é importante abraçarmos esse fundamento crucial de nossa fé? Porque você só será tão grande quanto o seu próprio conceito de Deus. Lembra a famosa frase do filósofo francês Blaise Pascal: “Deus fez o homem à sua semelhança, e o homem, em retribuição, fez Deus à sua imagem”? Tornamo-lo mesquinho, bitolado, rude, legalista, julgador, sem sentimentos, não perdoador e tão odioso como somos todos nós! Nos últimos anos tenho pregado para a comunidade financeira em Wall Street – NY, para a Academia da Força Aérea do Colorado, em milhares de visitas a Nairobi. Estive em igrejas em todos os cantos dos EUA, literalmente. E, honestamente, o Deus que me tem sido apresentado é pequeno demais para mim, porque ele não é o Deus da Palavra, o Deus que se revela através de Jesus, e que neste momento vai até você e diz: “Eu tenho uma palavra para você. Eu conheço toda a sua história de vida, todos os cantos escuros de sua alma, todos os momentos de pecado, vergonha, desonestidade e amor degradante que escurecem seu passado. Eu sei que agora mesmo você está com uma fé superficial, uma vida de oração frívola e discipulado inconsistente. E a minha palavra para você é esta: desafio-o a confiar que eu o amo do jeito que você é. E não do jeito que você deveria ser, porque você nunca será como deveria ser”. Fonte: www.youtube.com Brennan Manning – Você crê que ele te ama? ...e estas histórias tu inculcarás a teus filhos cf. Dt 6:6-7 O Peixe e o Mar - Nós e Deus POR NUNO TOVAR DE LEMOS Uma vez pediram a um peixe para falar do mar. – Fala-nos do mar – disseram-lhe. – Dizem que é muito grande o mar – respondeu o peixe. – Dizem que sem ele morreríamos. Não sou o peixe mais indicado para vos falar do mar. Eu, do mar, o que conheço bem são só estes dez metros à superfície. É só deles que vos posso falar. É aqui que passo o meu tempo, quase sempre distraído. Ando de um lado para o outro, à procura de comida ou simplesmente às voltas com o meu cardume. No meu cardume não se fala do mar. Falase das algas, das rochas, das marés, dos peixes grandes e perigosos, dos peixes pequenos e saborosos e de que temperatura fará amanhã. O meu cardume é assim: eles vão, e eu vou atrás deles. – Mas tu, que és peixe, nunca sentiste o mar? – Creio que o sinto, às vezes, ao passar-me nas guelras. Umas vezes sinto-o, outras não. Às vezes sinto-o, quando não me distraio com outras coisas. Fecho os olhos e fico a sentir o mar. Isto tudo de noite, claro, para que os outros não vejam. Diriam que sou louco por dar tempo ao mar. – Conheces o mar, portanto. Podes falar-nos do mar? – Sei que é grande e profundo, mas não vos quero enganar. Sei de peixes que já desceram ao fundo do mar. Quando os ouvi falar, percebi que não conheço o mar. Perguntai a eles, que vos saberão falar do mar. Eu nunca desci muito fundo. Bem, talvez uma ou duas vezes... Um dia as ondas eram tão fortes que eu tive de me deixar levar muito fundo, para não morrer. Nunca lá tinha estado e nunca esquecerei que lá estive. Apenas vos sei falar bem da superfície do mar... – Foi mau, quando desceste? Por que voltaste à superfície? – Não foi mau. Foi muito bom. Havia muita paz, muito silêncio. Era como se fosse lá a minha casa, como se ali eu estivesse inteiro. – Por que não voltaste lá ao fundo? Por preguiça? – Às vezes acho que é preguiça, outras vezes acho que é medo. – Medo? Mas tu não disseste que era bom? Medo de quê? – Medo do desconhecido, medo de me perder. Aqui à superfície já estou habituado. Adquiri certo estatuto para mim mesmo. Controlo as coisas ou, pelo menos, tenho a sensação de as controlar. Lá em baixo não sei bem o que me pode acontecer. Estou todo nas mãos do mar. – Tiveste medo, quando chegaste ao fundo do mar? – Não tive medo algum. Era tudo muito simples... E, no entanto, agora tenho medo... Mas eu não cheguei ao fundo do mar! Apenas estive menos à superfície. – E que dizem os outros, os que lá estiveram? – Dizem coisas que eu não entendo. Dizem que é preciso ir para perceber. E dizem que nada há de mais importante na vida de um peixe. – E explicaram como se vai? – Aí é que está. Explicam que não se chega lá por esforço, que só podemos fazer esforço em deixar-nos ir. Que é só o mar que nos leva ao mar. Então veio uma corrente mais forte que o fazia descer. O peixe tentou lutar contra ela com quantas forças tinha, à medida que via distanciarem-se as coisas da superfície. Talvez para sempre... Mas depois fechou os olhos, confiou e já sem medo deixou-se ir. Fonte: O príncipe e a lavadeira, Editora Paulinas Contribuição: Renata Ribeiro Julho/Agosto - 2009 4 Henri Nouwen: o sacerdote trapezista POR MICHAEL FORD Em um trailer estacionado na zona oeste de Frankfurt, está sendo projetado um vídeo. Na tela estão as imagens em câmera lenta de uma figura alta e magricela subindo por uma escada de aço e se amarrando a um cinto para realizar seu segundo voo no trapézio. Não é bem o lugar em que alguém espera encontrar um sacerdote de 64 anos, de aparência cansada, apenas dois meses antes de sua morte, mas Henri Nouwen havia desfrutado tanto sua primeira experiência três anos antes que agora voltava para provar novamente. Quando Nouwen caiu na rede naquela primeira ocasião, disse que havia sido a experiência mais emocionante de sua vida. E pediu para voltar a subir uma e outra vez, intentando em cada ocasião voar mais alto. O atrativo do vídeo era o evidente deleite infantil de Nouwen ao voar. Era possível que aquele homem que cruzava o ar e caía na rede fosse um ex-professor de Yale e de Harvard? Tudo havia começado quando o circo alemão Simoneit-Barum se instalara em Friburgo enquanto Nouwen estava visitando seus amigos editores. Foi por curiosidade e acabou tão fascinado pela técnica que continuou retornando para ver a troupe em ação, chegando, inclusive, a alugar um trailer e a viajar com eles. Planejava escrever um novo estilo de livro, e quanto mais observava os duplos e os triplos mortais, mais absolutamente nova era a teologia que elaborava. A arte do trapézio constituía muito mais que um alegre trabalho: era toda uma imagem da vida. Henri queria aprender o máximo possível acerca da vida profissional dos artistas e compreendeu que os dez minutos de emoção tinham por detrás uma estrita disciplina que ele queria captar desde o interior. Quando conheceu os “Voadores Rodleighs”, um grupo de trapezistas sulafricanos, estava há vários anos trabalhando na Arca Amanhecer e havia visto como voluntários de 21 nações diferentes conseguiam criar comunidades em torno de pessoas cujos corpos eram fracos e tinham dificuldades para se expressarem. Quando viu os Rodleighs no ar, percebeu neles algo similar. Tratava-se de um grupo de artistas que não falavam durante sua atuação, que faziam algo com seus corpos e formavam uma comunidade, a princípio entre eles mesmos, e depois com as pessoas que vinham vê-los. Segundo Nouwen percebia, reuniam um grupo de pessoas e, mediante seus corpos, sua beleza e interação, convidavam-nas a criar uma comunidade em forma de amizade, pertencimento, união, riso, aplauso, liberdade e disciplina. “Está tudo aí em um só ato – dizia Nouwen. – Nisso consiste a vida e é o que o mundo necessita desesperadamente”. Assim os Rodleighs se converteram para Nouwen não em instrutores de acrobacia, mas em professores de teologia. Do mesmo modo que os membros deficientes da Arca se haviam convertido em seus mestres do coração, convencendo-o, mediante seu silêncio, de que ser é mais importante que fazer, os artistas do trapézio revelaramlhe “a incrível mensagem que o corpo pode transmitir”, especialmente por sua habilidade para estar “totalmente Rede, filme sobre sua teologia do trapézio: “Se vamos assumir riscos, para ser livres, no ar, na vida, temos que estar seguros de que há um aparador. Temos que estar convencidos de que, quando nos tivermos soltado, seremos firmemente seguros, estaremos a salvo. O grande herói é o menos visível. Confiemos no aparador”. Entram em cena os palhaços Apesar desta fixação com o trapézio ter surgido já em sua idade avançada, o amor de Henri Nouwen pelo circo remontava a sua infância. O mundo de risco e celebração circense o atraía muitíssimo, e pôde mesmo reconhecer nele alguns dos riscos e emoções de sua própria vida. O circo habitualmente relaciona-se com a confusão ou o pandemônio, ou seja, com um caos organizado, o que também poderia se constituir numa descrição da vida de Quanto mais observava os duplos e os triplos mortais, mais absolutamente nova era a teologia que Henri Nouwen elaborava presente aos presentes”. Tratava-se de um símbolo da vida contemplativa que oferecia, no mesmo instante, tanto uma sensação de liberdade temporária como um vislumbre de eternidade. Nouwen terminou compreendendo também que a estrela não é o trapezista acrobata – a figura que cruza o espaço e confia –, mas o aparador, cujas mãos estão sempre prontas para receber e acolher. O produto desta ideia foi um novo modo de ver e experimentar o divino: “Só posso voar livremente quando há um aparador para receber-me”, comentava Nouwen em Anjos sobre a Henri. Sua atração pela vida circense tinha também a ver com o fato de que os espectadores gozavam de liberdade para responder às muitas atuações silenciosas do modo que desejavam. E a Nouwen agradava a liberdade de interpretação. Apesar de se divertir com muitos artistas – malabaristas, engolidores de espadas, bailarinos exóticos... –, eram sempre os grupos de trapezistas que o faziam retornar. Para ele, não se tratava apenas da mais elegante e emocionante das atuações, mas de que, além disso, ele se aproximava do voo, do seu secre- to anseio de ser capaz de mover-se de modos que seu corpo desproporcional nunca lhe havia permitido. Também lhe agradavam os palhaços, porque Nouwen era capaz de rir-se de si mesmo, do mesmo modo que outros, algumas vezes, se riam de suas palhaçadas na vida real. Quando, por exemplo, a água que havia posto para ferver antes de ter podido preparar o chá se evaporava, ou quando metia a manga do moletom na marmelada enquanto perguntava a alguém sobre sua vida de oração durante o café da manhã, ou quando batia o carro enquanto dirigia gesticulando e olhando para trás, Henri aceitava sua falta de jeito com um sorriso. Quando Nouwen completou seu sexagésimo aniversário, seus amigos lhe prepararam uma festa com tema circense e dispuseram que voltasse a nascer como palhaço frente a cem convidados, incluindo um palhaço profissional. Henri tinha que entrar num saco como ele mesmo e depois sair como palhaço. Desfrutou daquilo tudo como uma criança e, uma vez dentro do saco, correu tudo tão bem que o episódio completo durou quarenta e cinco minutos. Mas Nouwen também era capaz de ver o lado sério da palhaçada. A capa de um de seus livros, Clowning in Rome, mostra um bufão observando a cidade eterna. O livro, escrito durante os cinco meses em que fez parte do corpo de professores do North American College, foi produto das conferências que ministrou à comunidade de fala inglesa sobre a solidão, o celibato, a oração e a contemplação: “quatro elementos bufonescos da vida espiritual”: Os palhaços não se encontram no centro dos acontecimentos. Aparecem entre os números importantes, desajeitados e excessivos, e nos fazem sorrir de novo depois das tensões criadas pelos heróis que acabamos de admirar. Os palhaços fazem quase tudo errado, não obtêm êxito no que intentam, são palermas, ridículos e inábeis, mas... estão do nosso lado. Nouwen se dava conta de que as pessoas reagiam diante dos palhaços não com admiração, assombro ou tensão, mas com compaixão, compreensão e um sorriso. Dos grandes artistas as pessoas perguntam: “Como conseguem fazer isso?”, mas a respeito dos palha- Julho/Agosto - 2009 ços reconhecem: “São como nós”. Com risos e choros, os palhaços – na realidade, pessoas marginais que “suscitam um sorriso e despertam a esperança” mediante suas vidas humildes e angelicais – compartilham com o resto do mundo as mesmas fraquezas humanas. É significativo (e Nouwen o destacava) que psicólogos pastorais como Heije Faber e Seward Hiltner tenham utilizado a imagem do palhaço para aludir ao papel do pastor na sociedade contemporânea. Em um sermão dirigido a uns seminaristas, Nouwen disse que o circo seria deprimente se as pessoas somente se fixassem nos artistas cujos heroísmos assustadores são extremamente difíceis de igualar: Mas o palhaço nos salva: é nosso homem, porque fracassa como nós, comete erros como nós e nos diz que nossa falta de virtuosismo também está perdoada. E em sua cara branca nos reconhecemos em nossas tarefas cotidianas, que em muitas ocasiões são um fracasso... Cristo é o palhaço que veio ao nosso circo e nos fez rir, porque veio dizer-nos que não somos o que interpretamos. Veio para os que choram, os perseguidos, os fracos, os famintos, os pobres... Quem é chamado a ser pastor é chamado a ser palhaço. Nouwen percebia que na vulnerabilidade do palhaço subjazem segredos acerca do discipulado. Os pastores não são unicamente curadores, reconciliadores e doadores de vida, mas também seres doentes que necessitam tantas atenções como qualquer das pessoas que eles atendem, e isso era especialmente verdade em seu caso. Do mesmo modo que o palhaço não pode seguir adiante sem os risos e as gargalhadas dos espectadores, tampouco o apóstolo pode ser enviado sem o amor e o apoio de uma comunidade. Quando foi enviado a pregar com outros membros da comunidade Amanhecer, considerou que o simbolismo do circo era adequado para descrever como A Arca havia mudado sua perspectiva: Ao viver em uma comunidade com pessoas muito feridas, compreendi que havia passado a maior parte da minha vida como um equilibrista que tentara atravessar, andando por um alto e finíssimo cabo, de uma torre a outra, esperando sempre que me aplaudissem quando conseguia me sustentar sem cair nem quebrar uma perna. 5 guma razão para idealizar a igreja. Algo de trapezista em cada Grande parte do que ocorre nela é sacerdote muito pouco espiritual. E, contudo, Ao longo de sua vida adulta nunca o coração humano busca algo mais perdeu a capacidade de assombrar-se amplo, algo maior que sua própria por coisas que a maior parte das pessomesquinharia, e quem entra no ciras nem notava. Nouwen era capaz de esco ou na igreja busca algo que chetabelecer uma conexão entre as cambague até as estrelas ou mais além! lhotas em uma pista de circo e a prática Não deveria haver algo de trapeda vida espiritual. Também sabia como zista em cada sacerdote e algo de utilizar o exagero convenientemente, a sacerdote em cada trapezista? fim de revelar aos demais os milagres escondidos de suas vidas. Representava A vida espiritual é uma vida com grande efeito, para que as pessoas pudessem ver o extraordinário no ordi- encarnada Estas novas questões o estavam nário e o ordinário no extraordinário. O artista que havia em Nouwen escul- introduzindo em um novo território pia as sensibilidades das pessoas para quanto ao modo que queria escrever que vissem o mundo de um modo que e à mensagem menos cerebral e mais ainda não o tinham feito. Com a arte corpórea que queria transmitir. O circo podia acontecer o mesmo que com a incluía muitos elementos do modo de música. Como consumado pianista, na viver de Henri, e ele queria vivê-los de combinação de tons e sequências de um maneira ainda mais intensa, oferecendo concerto de piano de Mozart, descobria seus braços com uma fé absoluta para sempre algum aspecto do harmonioso que Deus pudesse sustentá-lo, abraçámodo como Deus sustenta as pessoas lo e levá-lo a um lugar seguro. Como os “Voadores Rodleighs”, ele sabia que durante suas vidas. somente podia fazer Nouwen refleuma autêntica celetia também soO amor de Henri pelo bração depois de ter bre o significado de seu ministério circo remontava a sua assumido os riscos. isso constituía e se ele entrava infância. O mundo de Tudo um material magníliteralmente na risco e celebração fico para um livro, categoria de “enmas, por alguma t r e t e n i m e nt o”. circense o atraía razão, foi adiado, Examinando as muitíssimo apesar da enorme raízes da palainvestigação que havra latina – inter (entre) e tenere (ter) –, questionava sua via realizado. Nouwen estava convencido de ter capacidade de sus-ter as pessoas entre os momentos fragmentados de suas vi- sido enviado aos Rodleighs para desdas. Pretendia proporcionar-lhes um cobrir algo novo sobre a vida e a morvislumbre de algo além? Sabia que sua te, o amor e o medo, a paz e o conflito, vida não se distanciava muito da de um o céu e o inferno, que não poderia ter artista nômade que se transfere de um conhecido nem escrito de nenhuma lugar a outro fazendo com que as pesso- outra maneira. Enquanto os palhaços, as se sintam seguras ou emocionadas, os mágicos, os domadores e os músiajudando-as a aceitar seus sentimentos cos permaneciam na periferia de sua de perda ou fracasso, assim como seus visão, o trapézio era o objetivo em que momentos de maturidade e êxito. Tam- ele fundamentalmente se centrava e bém estabelecia uma conexão direta que o levava em direção a uma revelaentre o recinto circense e a igreja: acaso ção interior. Mas, apesar de sua enorme ambos não tratam de elevar o espírito investigação, nunca chegou a escrever o humano e de ajudar as pessoas a ver livro. Algumas reflexões de 1993 mosalém dos limites de sua vida cotidiana? tram que estava buscando uma nova Contudo, ao mesmo tempo, não cor- forma de narrar: riam também o perigo de se tornarem Muitos de meus livros já não reflelugares de rotinas inanimadas que pertem minha visão espiritual e, apesar deram sua vitalidade e seu poder transde não rejeitar meus escritos antecendente? A propósito desse assunto, riores nem deixar de considerá-los Nouwen dizia o seguinte: válidos, sinto que se me exige algo distinto. Meus constantes encontros Não há razão para idealizar o circo. com pessoas que não têm conexão Grande parte do que ocorre nele, com a igreja, meu contato com patanto dentro como fora do recinto, é cientes aidéticos, minha experiência pouco espetacular. Tampouco há al- no circo e numerosos acontecimentos sócio-políticos dos últimos anos exigem um novo modo de falar de Deus. E a novidade deve afetar não só o conteúdo, mas também a forma. Não apenas deve ser diferente o que se diz, mas também como se diz. O que principalmente me vem à mente são histórias. Sei que tenho que escrever histórias. Não ensaios com argumentos, citações e análises, mas histórias que sejam curtas e simples e que nos proporcionem um vislumbre de Deus em meio a nossas vidas multifacetadas. Mas escrever histórias, histórias reais e humanas, histórias divinas, exigirá de mim o máximo. Durante seu ano sabático de 1996, que foi também o último, Nouwen levou as notas e entrevistas em cassete de seus dias de circo e planejou começar o novo livro, mas em seu lugar escreveu outra série deles. Todavia, deixou muitas pistas de como poderia ter sido: O corpo conta uma história espiritual. O corpo não é meramente corpo, mas uma expressão do espírito do ser humano, e a vida realmente espiritual é uma vida encarnada. Por isso creio na encarnação. Não há vida divina fora do corpo, porque Deus decidiu revestir-se de um corpo, converter-se em corpo. Henri Nouwen, como orador célebre, utilizava principalmente seu corpo para comunicar profundas verdades sobre o espírito. Sua audiência observava cativa como punha em ação todos os músculos faciais e das extremidades, o que um amigo descrevia como “o sistema vibratório de Henri”. Suas espetaculares intervenções públicas se converteram em assunto de conversas em catedrais, universidades e conventos, embora a alguns não lhes parecessem tão boas como esperavam. Fonte: Henri Nouwen – el profeta herido (Henri Nouwen, o profeta ferido), de Michael Ford, Editora Sal Terrae (2000) – Tradução e adaptação do capítulo 3 – “En el alambre” (No arame) – por Maurício Bronzatto. Julho/Agosto - 2009 6 O outro: o lugar onde Deus deseja ser encontrado POR PEDRO ARRUDA Reforma, Comunhão Avivamento e Fazendo uma retrospectiva da restauração que Deus vem promovendo na igreja, podemos notar com grande destaque: • A Bíblia, redescoberta como Palavra de Deus a todos, por meio do Protestantismo, movimento que teve origem no início do século XVI; • A Oração, especialmente a coletiva, mais conhecida como reunião de oração, reintroduzida a partir do Avivamento, já no início do século XX, com os Pentecostais, seguidos dos Carismáticos e, contemporaneamente, dos Neopentecostais. As contribuições da valorização da Bíblia pelo Protestantismo e a restauração da oração como experiência pelos avivados não produziram comunhão e unidade. Muito pelo contrário, o que se obteve foi uma avassaladora sucessão de divisões! Continuamos a desprezar a comunhão e a unidade, estas ainda tão estranhas e ocultas como a Bíblia antes da Reforma ou a oração antes do Avivamento. A história recente da igreja se desenrola com o Movimento Pentecostal. Esse mover de Deus trouxe uma força e um poder desconhecidos à época, e por isso logo tornados motivo de escândalo aos mais conservadores. A situação de conflitos e rupturas que se seguiu foi abrandada com a Renovação Carismática, um desdobramento do movimento anterior, que se difundiu de maneira mais palatável e equilibrada entre as denominações, tornando possível a muitos conservadores a experiência do batismo no Espírito Santo e a prática dos dons espirituais. Com isso, houve uma revitalização do Pentecostalismo, que já começava a experimentar seu esgotamento. Por sua vez, o movimento chamado Gospel, ou Neopentecostal, vem se consolidando nos últimos anos como uma espécie de sucessor, ocupando o espaço que surge com o enfraquecimento dos movimentos anteriores. Contudo temos que reconhecer que o Avivamento original está em decadência, pois há muitos cristãos e igrejas que se dizem participantes dele, mas não praticam os carismas que lhe são inerentes, enquanto que a Teologia, dita da prosperidade – marca distintiva da era Gospel –, está avançando cada vez mais sobre o segmento ‘avivado’ do cristianismo, impondo seus valores sobre os demais e destacando enfaticamente o acúmulo financeiro. O esgotamento do Avivamento é acompanhado da frustração cada vez mais forte e latente de não se terem alcançado a comunhão e a unidade. Por isso, como ocorreu às vésperas da Reforma e do Avivamento, cresce a expectativa de que Deus faça algo novo, diferente e impactante. Embora alguns não percebam e estejam satisfeitos com a situação atual, há muitos outros, dos quais Deus tem despertado o espírito, que estão descontentes e inconformados e não cessam de pedir uma intervenção do alto. Se nas vezes anteriores Deus respondeu com a Reforma e com o Avivamento, agora a sua resposta deve ser Comunhão. Vamos experimentar o batismo no Corpo e aprender a encontrar Cristo nos outros membros tanto quanto o encontramos na Bíblia e na oração. Deus. Todas as coisas foram criadas por causa do homem, mas este, que arrancou de Deus um “muito bom” ao final do sexto dia (Gn 1.31), formou-o o Criador para Si mesmo, fazendo de Sua comunhão com ele e dos homens entre si a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas (Ef 1.23). Sendo o homem tão precioso, feito um Missão da Rua Azusa, Los Angeles, Califórnia, 1906: berço do pouco menor que Deus Movimento Pentecostal Mundial (Sl 8.5), como nós ousamos desprezá-lo tanto? A maneira mais contundente de parâmetro é o insuperável padrão de ofender a Deus é desprezar o que lhe é Deus. Vemos isso de forma clara no caro. Quando agimos assim em relação “assim como” expresso na oração do ao homem, também depreciamos o Pai-nosso. O mesmo padrão se repete incomparável sangue de Jesus. Pode na parábola do servo incompassivo, parecer ufania humana, mas enquanto que, mesmo perdoado de uma grande não enxergarmos o homem sob a ótica dívida, anulou o indulto recebido ao O lugar preferido de Deus de Deus, pouca serventia teremos à sua não estendê-lo a um conservo que pouco valorizado obra, pois ela é voltada para o homem. lhe devia uma ninharia. Outra lição Valorizamos muito a Bíblia como Os judeus nacionalistas e religiosos sobre o perdão foi protagonizada pela a “voz de Deus”, pois compreendemos com toda razão consideravam os pretensa generosidade de Pedro ao que Ele também a valoriza como sua publicanos e propor uma medida de aplicação de Palavra. Igual as prostitutas tão magnânimo gesto ao longo de um reverência temos pessoas dia: sete vezes. Jesus, no entanto, ao O atual esgotamento como para com a oração e x e c r á v e i s , multiplicar essa medida por setenta, do Avivamento é como mecanismo mas Jesus demonstrou que o discípulo estava muito longe do padrão celestial. de contato com os enxergava acompanhado da Jesus também alertou que se os céus. Quanto nos primeiros ao homem, frustração cada vez lugares na fila de a nossa justiça não excedesse em entretanto, não ao reino muito a dos escribas e fariseus (que mais forte de não se ter entrada lhe damos o de Deus. Que jejuavam duas vezes por semana e mesmo valor c o n t r a d i ç ã o ! davam o dízimo até do coentro e da alcançado a comunhão que observamos E n q u a n t o hortelã, além de distribuírem esmolas e a unidade sendo dispensado aqueles se e fazerem longas orações), não por Deus. Nossa pautavam pelo poderíamos entrar no reino dos céus. valorização mecanismo do Ora, como superar esses campeões de geralmente acontece de maneira conhecimento do bem e do mal, Jesus justiça? Quando olhamos para outros equivocada, partindo de pressupostos o fazia pela vida, cuja manifestação é ensinamentos como “misericórdia quero e não sacrifícios” (Mt 9.13; humanos, todos eles baseados no dom de Deus! egoísmo e no orgulho. O resultado Jesus ensinou que a Lei que eles 12.7), nós podemos entender que não é alçar o homem a uma posição tanto respeitavam estava a serviço vamos superar a justiça dos escribas pretensiosa e ilusória. da vida humana, por isso quem não e fariseus sendo mais justos que eles. Seu real valor é aquele que Deus era sacerdote podia comer os pães da Aliás, a própria Bíblia nos ensina que lhe dá, tão imensurável quanto o foi proposição, colher espigas e também não devemos ser demasiadamente a eloquente entrega de Seu próprio fazer curas no dia de sábado (Mt justos para não destruirmos a nós Filho através da encarnação e morte 12.1-14). Afinal o sábado fora criado mesmos (Ec 7.16). Confrontando na cruz. Jamais compreenderemos o para o homem (Mc 2.27) e não podia estas afirmações com a injustiça feita sentido completo da expressão “de tal contribuir para a extinção da vida, aos trabalhadores da primeira hora e maneira” que o evangelista usou para senão para preservá-la. Provavelmente ao irmão mais velho do filho pródigo se referir ao amor de Deus pelo homem ainda conservemos muitos dos (Mt 20.1-16; Lc 15.11-32), vemos que (Jo 3.16). Qualquer palavra que se conceitos desses religiosos que nos o excedente ou transbordar da justiça empregue ainda será insuficiente para impedem de ver o homem como Jesus não é uma dose maior dela, mas sim a misericórdia, que foi conferida aos explicar tão grande demonstração. via. trabalhadores da última hora, ao filho Impossível alcançar tamanha altura, pródigo e também a um moribundo, largura ou profundidade. Muito além da justiça Podemos dizer com segurança que o Dentre os ensinamentos mais vítima de salteadores, pelo chamado homem é o principal objeto do amor de enfáticos de Jesus está o perdão, cujo “bom samaritano” (Lc 10.25-37). Julho/Agosto - 2009 Portanto Deus se importa muito mais com o perdão do que com a ofensa, muito mais com a misericórdia do que com a justiça, e espera a mesma atitude de nossa parte. O preceito geralmente colocado é que devemos amar o próximo como a nós mesmos e fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fizessem a nós. Contudo, aos nascidos de novo, que creem e compreendem estas coisas, Deus espera levar além: ele ensina que devemos amar nossos irmãos como ele nos amou e, portanto, fazer pelo outro aquilo que ele fez por nós, ou seja, dar a própria vida como maior prova de amor (1 Jo 3.16). Há, como podemos observar, dois padrões estabelecidos para nossas atitudes. O primeiro diz respeito à relação com o próximo ou o mundo de uma maneira geral, e tem a nossa vontade como referência, ou seja, devemos fazer ao outro aquilo que gostaríamos que fosse feito a nós. Traduz-se, portanto, com o mandamento de amar ao próximo como a nós mesmos. O segundo é com relação ao irmão, membro como eu do mesmo corpo, e se situa num degrau mais elevado, pois tem a vontade de Deus como referência. Encontra-se, assim, na dimensão da comunhão. Neste caso o padrão deixa de ser o meu amor e passa a ser o de Jesus por mim. O desejo de Deus, expresso pela expectativa de que nos amemos uns aos outros como Cristo nos amou, assume o lugar do desejo humano, o que nos introduz na cadeia da vontade divina: Jesus fez o que viu o Pai fazer e falou o 7 que ouviu do Pai, logo devemos praticar o que vimos em Jesus e ouvimos dele. Afinal, ele também nos deu o Espírito Santo para nos transmitir tudo o que ouviu, a fim de que participemos do conselho de Deus e sejamos guiados a toda a verdade. Isso é comunhão. A comunhão é o reconhecimento da presença viva de Jesus Cristo na igreja e tem início quando O percebemos uns nos outros. A prática do evangelho é essencialmente de mutualidade: estamos vinculados a um organismo, o corpo de Cristo, do qual ele próprio é a cabeça. Enquanto não agirmos em comunhão, ou seja, de acordo com o estilo de vida da Trindade, guiados, como vimos, por uma justiça superior e sendo capazes de ver Cristo uns nos outros, o mundo não o reconhecerá na igreja e tampouco poderá crer nele. Mas perceber o Cristo no outro não se consegue se estivermos confiando apenas em “carne e sangue” (Mt 16.17). A necessidade de revelação A falta de revelação é o fator comum que impede muitos de encontrarem Cristo quando leem a Bíblia e a usam para fins diversos, tais como adivinhar o futuro ou fazer de Judas um herói, de Davi e Jônatas parceiros homossexuais etc. Igualmente muitos também não encontram Cristo nas orações. Contudo, e esta é a nossa preocupação neste artigo, a grande maioria não consegue encontrá-lo no outro. Faltanos a mesma revelação que fez a opinião de Pedro se distinguir das de seus pares, estas baseadas no conhecimento humano extraído das escrituras, quando Jesus lhes perguntou o que pensavam acerca dele. “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!”, foi a resposta de Pedro (Mt 16.13-20). Semelhante revelação possibilitou a Simeão (Foralhe revelado, pelo Espírito Santo, que ele não morreria antes de ter visto o Cristo do Senhor. - Lc. 2.26) olhar para o menino Jesus e ver o que os sacerdotes que o circuncidavam não viam: “... os meus olhos viram a salvação que preparaste...” (v.30). Crer que Cristo está no outro é o primeiro passo para se abrir à revelação, pois é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe...! (Hb 11.6). Temos que considerar que encontrar Cristo no outro não depende deste, mas da revelação de Deus em nós. Nem mesmo em Jesus houve unanimidade, ou seja, nem todos viram o Cristo nele. Portanto, muito menos nós devemos ter essa pretensão. Assim como o buscamos na sua Palavra e na oração, também devemos buscá-lo em nosso irmão, sabendo que quem procura acha! (Mt 7.7). “Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração” (Jr 29.13). Quando não estiver vendo Cristo no outro, devo ter o mesmo desespero por não encontrá-lo na Palavra e na oração e jamais atribuir essa deficiência àquele que é o ‘lugar’ de minha procura, da mesma forma como não o fazemos à Palavra ou à oração. Vale dizer que somente depois de nos livrarmos da trave de nossos olhos é que poderemos enxergar o cisco no olho do irmão (Mt 7.3-5). Isso equivale a afirmar que não é o mau testemunho do outro que produz um eclipse e me impede de enxergar Cristo nele. O eclipse está nos olhos de quem vê. Não perceber Cristo no outro deveria me fazer questionar o quanto dEle está presente em mim. Diante de nossa própria imperfeição, temos que considerar que é absolutamente certo nos confiarmos a pessoas imperfeitas, pois assim Jesus agiu com os seus. Ele não fez um processo seletivo procurando os melhores e mais capacitados homens da elite de Israel. A escolha de homens absolutamente simples, desprovidos de grandes potenciais naturais, era coerente com a simplicidade de Jesus. Embora não tendo a expectativa da perfeição de seus discípulos e apóstolos, Jesus confiou-se a eles. Igualmente não podemos ter expectativas de perfeição dos irmãos para nos confiarmos a eles. Para superar essa desconfiança, temos que aprender a ver Cristo neles. À medida que vejo Cristo no outro, o meu referencial deixa de ser o irmão e passa a ser Cristo. Isso resulta em mudança das minhas atitudes, de forma que Cristo passa a crescer em mim e, nessa mutualidade, todos nós poderemos chegar à perfeita varonilidade (Ef 4.13). Ao mesmo tempo, nos sentiremos parte ativa de um organismo vivo que vai produzindo “o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.16). LaGuardia suspirou, virou-se para a mulher e disse: – Tenho de punir a senhora. A lei não abre exceções: são dez dólares ou dez dias na cadeia. Mas, ainda enquanto falava, o prefeito já colocava a mão no bolso. Ele tirou uma nota para fora e arremessoua no seu famoso chapéu de abas largas, dizendo: – Aqui está a multa de dez dólares, que eu agora perdoo. Além disso, vou impor uma multa de cinquenta centavos para cada um presente neste tribunal, por morarem numa cidade em que uma pessoa tem de roubar pão para que seus netos tenham o que comer. Senhor Bailliff, recolha as multas e entregue-as à ré. Assim, no dia seguinte, os jornais de Nova York anunciaram que 47,50 dólares haviam sido entregues a uma perplexa senhora que havia roubado um pão para alimentar os netos famintos, cinquenta centavos dos quais haviam sido doados pelo ruborizado dono da mercearia, enquanto cerca de setenta pessoas, acusadas de pequenos crimes e de violações de tráfego, lado a lado com policiais da cidade de Nova York, aplaudiam o prefeito em pé. Os retos e os bons Por Brennan Manning¹ Conta-se uma história sobre Fiorello LaGuardia, que, quando era prefeito de Nova York durante os piores dias da Depressão e durante toda a Segunda Guerra Mundial, era carinhosamente chamado de “Little Flower” pelos seus admiradores nova-iorquinos, porque tinha apenas 1,65 m e trazia sempre um cravo na lapela. Era um personagem pitoresco que costumava andar em caminhões do Corpo de Bombeiros, participar de batidas em bares ilegais junto com o departamento de polícia, levar orfanatos inteiros para partidas de baseball e, quando os jornais de Nova York estavam em greve, ia à rádio ler quadrinhos humorísticos para as crianças. Numa noite terrivelmente fria de janeiro de 1935, o prefeito compareceu a um tribunal noturno que servia a região mais pobre da cidade. LaGuardia dispensou o juiz por aquela noite e assumiu a tribuna ele mesmo. Minutos depois, uma senhora esfarrapada foi trazida à presença dele, acusada de roubar um pão. Ela disse a LaGuardia que o seu genro havia ido embora, que sua filha estava doente e que seus dois netos estavam passando fome. Mas o merceeiro, de quem o pão havia sido roubado, recusava-se a retirar a acusação. – É uma vizinhança ruim, meritíssimo – o homem disse ao prefeito. – Ela deve ser punida para ensinar às pessoas daqui uma lição. Quando os jornais de Nova York estavam em greve, o prefeito Fiorello LaGuardia ia à rádio ler quadrinhos humorísticos para as crianças Que tremendo momento de graça foi aquele para todos que estavam presentes naquele tribunal. A graça de Deus opera num nível profundo na vida de uma pessoa afetuosa. Ah! Quem dera fôssemos capazes de reconhecer a graça de Deus quando ela vem a nós! ¹Brennan Manning utiliza como fonte o capítulo “The righteous and the good” (que emprestamos para título deste artigo), do livro “Best sermons” (Os melhores sermões), de James N. McCutcheon (San Francisco: Harper & Row, 1988). Fonte: O Evangelho Maltrapilho, Ed. Mundo Cristão Julho/Agosto - 2009 8 Um legado pessoal de coisas novas e velhas Ele lhes disse: “Por isso, todo mestre da lei instruído quanto ao Reino dos céus é como o dono de uma casa que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas” (Mateus 13.52). POR RICARDO RODRIGUES DE SOUZA Segundo o escritor português José Saramago, as palavras são como pedras que nos levam a outra margem do rio. No texto bíblico acima, Jesus parece destacar a figura do “mestre da lei instruído quanto ao Reino dos céus”. Ele é a ponte, aquele que coloca as pedras que serão pisadas até a outra margem. E a margem, neste contexto, é o Reino de Deus. Infelizmente, a leitura bíblica no Ocidente se tornou pragmática, e ao invés de uma prática que extrai sabedoria para a vida, acaba influenciada pelos manuais de autoajuda e liderança corporativa. Uma das características desse tipo de literatura é o seu imediatismo, ou seja, as soluções propostas têm que funcionar em alguns meses, caso contrário são abandonadas. No entanto, a proposta de Jesus é o REINO de DEUS, um projeto de longo prazo e que tem sido enriquecido geração após geração. Sem a sabedoria daqueles que nos antecederam, sejam nossos pais, sejam mentores espirituais, podemos gastar parte da nossa vida “testando caminhos”, o que pode em algum momento ser interessante. Por outro lado, podemos nos tornar como o filho pródigo que desperdiçou sua vida. O cristianismo, durante todos estes séculos, tem criado uma base “tradicional” sobre a qual as novas gerações são chamadas a trabalhar as novas realidades que se impõem, utilizando o material ou ambiente “antigo” ou “velho” juntamente com o novo. A expressão “tira do” de Mateus 13.52 dá a ideia de algo pronto que precisa apenas ser pego, porém a respectiva palavra grega do texto original tem o sentido de “brotar”, “extrair”, algo que precisa ser trabalhado, recriado a partir do tesouro. Mas o que é tesouro? A palavra tesouro usada por Jesus tem um emprego figurativo. Tesouro, de acordo com o vocábulo grego, não está associado a piratas e baús com joias, mas àquilo que consideramos de elevado valor – literal ou figurado (“Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” – Mt 6.21). Por exemplo, uma grande amizade é tratada como um tesouro dentro do peito. As ferramentas de um profissional podem ser o seu tesouro. Nossa história de vida pode se tornar um tesouro. Jesus ensina a “ajuntar tesouros no céu”. Estamos entrando em um tempo de decadência institucional. Grandes corporações econômicas, financeiras e religiosas estão perdendo sua relevância e testemunho. Temos que aprender a viver sem o testemunho institucional e passarmos a um testemunho pessoal. Jesus sempre se dirigiu pessoalmente aos seus interlocutores, e as histórias bíblicas são testemunhos pessoais. Por essa razão, vamos substituir a palavra tesouro por legado, que parece sintetizar o testemunho pessoal, que precisa ser transmitido para as próximas gerações. de nossos irmãos do passado é que apesar de tudo, o evangelho chegou até nós, e deveríamos ser gratos por isso. Sempre haverá uma tensão entre o novo e o velho, entre o atual e o antigo. Dessa forma, a interpretação dos textos bíblicos é fundamental na construção do Reino; é a partir disso que as ações deste Reino são aferidas e validadas. Se os óculos da interpretação permanecerem os mesmos, não haverá ponte entre o texto (antigo) e o Reino de Deus (novo). Segundo Leonardo Boff, qualquer mudança séria precisa passar por uma revisão da dogmática cristã (verdades certas, indubitáveis e não sujeitas a qualquer tipo de revisão ou crítica). Jesus, ao falar do Reino de Deus, precisou questionar a dogmática judaica. Uma geração relevante tem que ter profundos leitores da Bíblia. 2. As comunidades cristãs não são nem devem ser homogêneas. Sou de uma geração em que a transmissão da fé se deu de maneira institucional, mas reconheço que esse modelo vive seus últimos dias O teólogo irlandês James Houston aos 83 anos foi indagado por seus filhos sobre como viver uma vida frutífera. Sua resposta a eles rendeu o livro “Meu Legado Espiritual”, ensinamentos que não se restringiram apenas a seus filhos naturais, mas se estenderam aos diversos filhos espirituais espalhados pelo mundo. James Houston entende que os cristãos que deveriam estar lúcidos também estão confusos quanto a como viver a vida cristã de maneira frutífera e construir um legado para sua família e para o testemunho de Deus neste mundo. Farei a seguir uso de algumas propostas e lições transmitidas por ele em seu livro. 1. Toda geração terá que lidar com as tensões do presente e do passado. A Bíblia tem pelo menos cinco mil anos e sempre será o livro dos cristãos. A morte e ressurreição de Jesus se deram no passado. Nossa fé é uma fé histórica, ela tem sido transferida de geração em geração. Fico preocupado quando ouço críticas à Reforma Protestante do século XVI, já que cinco séculos depois é fácil apontar os caminhos que não deram certo, no entanto o grande legado Paulo, em Efésios 3.10, trata essa questão escrevendo que somos expressão da multiforme (do grego polupoikilos) sabedoria de Deus (polu significa multiplicar muitas vezes; poikilos traz a ideia de colorido, várias cores, algo engenhosamente construído, no sentido artístico). A bíblia King James traduz o termo como “manifold”, que é uma palavra muito usada no campo da mecânica e significa “distribuidor”, ou seja, a imagem é a de um produto que, partindo de uma entrada comum, acaba sendo distribuído por várias saídas. Os diversos ministérios no corpo de Cristo são complementares e não beligerantes. Por não sabermos lidar com as heterogeneidades da igreja, usamos palavras que dão sempre a ideia de um espírito de competição: “geração que precisa superar”, “ir além”, “sobrepujar” e “guerrear”. Esse não parece ser o espírito do Reino de Deus. Uma geração relevante precisa entender que o Espírito Santo está em todos e age por meio de todos (Ef 4.6). 3. Investir mais no tempo, que é o bem mais precioso e não renovável da vida, do que em espaços e coisas. Temos gastado muito tempo construindo espaços e adquirindo bens, ao invés de relacionamentos frutíferos. A fé precisa ser transmitida de maneira pessoal. Eventos e encontros podem nos transmitir generalizações e muito proselitismo, dando-nos uma falsa impressão de crescimento. Temos que resgatar a Bíblia como a fonte que responde à necessidade de se “remir (resgatar) o tempo”. As pessoas não estão interessadas nas diferenças entre a bíblia católica e protestante, sobre os atributos invisíveis de Deus, mas em como viver. “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna” (Jo 5.39). Não podemos falar de vida plena sem o resgate do tempo, não em uma perspectiva Kronos (tempo em que vou viver), mas em um tempo kairós (o que vou fazer e como vou viver com o tempo que recebi). Uma geração relevante precisa aprender a santificar momentos em qualquer espaço. 4. Não estamos em uma disputa histórica de gerações. Cada qual tem que lidar para ser relevante no momento histórico em que está e enfrentar os desafios que estão postos. A geração de Josué tinha um desafio, a de Samuel outro, a de Davi outro, e assim sucessivamente. A igreja de Atos lidava com problemas diferentes dos nossos, mas dentro daquelas circunstâncias históricas, ela foi relevante, e por isso é tão admirada. Historicamente diversas comunidades foram tão importantes quanto. Israel tinha um ano chamado de Jubileu, que acontecia a cada 50 anos. Nessa ocasião, todas as dívidas eram perdoadas, o que dava a oportunidade de um novo começo. O recado que esse evento nos dá é que pela graça de Deus cada geração pode começar de novo, sem dívidas passadas. O sangue de Jesus é o pagamento das dívidas, e podemos recomeçar geração após geração. Pessoalmente, vivi em uma geração em que a transmissão da fé se deu de maneira institucional, mas reconheço que esse modelo cumpre seus últimos dias. Quando a fé é transmitida de maneira pessoal, ela exige de nós maior responsabilidade e experiência pessoal com Deus. Uma geração relevante vai perceber que a cultura brasileira precisa ser redimida por meio do testemunho pessoal e que até esse momento essa cultura é rebelde e injusta quando tomamos o Reino de Deus como parâmetro. Julho/Agosto - 2009 9 um lugar chamado Nárnia Parte V - O dragão que há em nós Este artigo é o quinto de uma sequência de sete sobre “As Crônicas de Nárnia”, criação do escritor irlandês C. S. Lewis, que teve, recentemente, dois episódios da série adaptados para o cinema: “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” e “Príncipe Caspian”. POR RENATA RIBEIRO Um rato falante. Um príncipe recém-coroado. Dois irmãos em férias escolares. Um menino resmungão metido a adulto. Um capitão. E o Peregrino da Alvorada. Os personagens são impressionantes, alguns até já conhecidos. A partir deles, C. S. Lewis descreve mais uma aventura nas terras longínquas de Nárnia. O primeiro de que falei é Ripchip, o líder dos ratos narnianos. Conhecido por sua hombridade (será isso possível a um rato?) e lealdade, conquistou prestígio no reinado de Caspian. A propósito, como Nárnia é, sobretudo, um lugar mágico, isso explica um garoto conseguir reinar com sabedoria e bom senso. É o poder que alcança os que conhecem o Grande Leão, Aslam. Lúcia e Edmundo retornam ao país de Nárnia sem os irmãos mais velhos, mas acompanhados de outra criança. Trata-se de um primo não muito querido, o Eustáquio. Seu nome é tão interessante quanto sua pessoa. Imagine! Por fim temos o capitão e o navio: lorde Drinian fora o escolhido para comandar o antigo mas reformado Peregrino da Alvorada. Agora que você já consegue ao menos imaginar os seres que estão reunidos na embarcação, é importante considerar que eles ficarão juntos por muitos dias. Lúcia, Edmundo e o primo indesejado se juntaram à troupe já em mar, o que causou extremo mal-estar ao novato. Eustáquio não compreendia que estava num outro mundo governado por outras regras. Por isso vez ou outra ameaçava comunicar à embaixada inglesa que havia sido sequestrado ou algo assim. Um menino impertinente! A viagem era na verdade uma busca por sete fidalgos do reinado do pai de Caspian. Eles tinham sido mandados para bem longe durante o governo seguinte, o de Miraz, tio e usurpador, por algum tempo, do trono que pertencia a Caspian. Agora, por uma questão de honra, este iria à busca dos antigos amigos do pai. E o percurso envolvia mares nunca antes navegados. O alvo eram as Ilhas Solitárias. Mas até o destino final, a embarcação passará por diversas ilhas nas quais muitas emoções e aprendizados serão experimentados. No entanto, vou me prender ao episódio de apenas uma dessas ilhas. Os tripulantes viviam bons momentos em alto-mar quando tiveram de enfrentar doze dias de tempestade. Depois de muita luta contra a correnteza, finalmente chegou a calmaria, e conseguiram ancorar o navio numa ilha com o fim de obter alguma caça, reconstruir barris de água e consertar partes do Peregrino que haviam sido quebradas. O primo inconveniente, ao perceber que não haveria muito descanso, e por se achar mais digno que outros, numa demonstração acentuada de egoísmo, resolve afastar-se dos demais para dar uma descansadinha. Foi o início de longas noites. Em geral, um menino mimado não tem noções de sobrevivência em mata fechada, por isso ele acabou sumindo por um bom tempo. Quando perceberam sua ausência, os companheiros formaram grupos de busca, mas não encontraram ao menos um sinal do garoto. Enquanto isso, Eustáquio foi parar numa caverna, daquelas em que há milhares de joias, mas que você quase não consegue ver, tão escuras são essas cavidades. Era a caverna de um dragão, que momentos antes morrera bem ali na frente do menino medroso. Fugindo da chuva, Eustáquio foi abrigar-se na caverna. Assim que percebeu estar envolto por joias, começou a imaginar o lucro que poderia tirar disso, e como estava cansado, acabou adormecendo. Ao acordar, levou um susto. A bordo do Peregrino da Alvorada, Lúcia, Edmundo e outros partem à procura de pessoas desaparecidas. Inesperadamente, um garoto é transformado em dragão... Por dormir sobre o tesouro de um dragão, o garoto, cheio de ganâncias, acabara transformado num monstro semelhante. Uma cilada, do tipo que só acontece em Nárnia! Mas nós acabamos quase comemorando a transformação, pensando algo como: “bem feito”, ou ainda: “ele fez por merecer”. É o que elaboramos o tempo todo a respeito de várias pessoas ao nosso redor. Obviamente nunca sobre nós mesmos. Chegamos até a pensar que Deus poderá fazer isso conosco se não nos comportarmos adequadamente, numa espécie de castigo pelos pecados. Entretanto esta narração mostra bem o contrário, o cuidado de Deus. Somos em grande parte responsáveis pelo que nos tornamos, e talvez muitos já sejam verdadeiros dragões, soltando fogo pelas narinas, sendo indelicados, gananciosos, além de, como nosso pequeno dragãozinho, julgando-se sempre superiores aos outros. Ao perceber a mutação que havia sofrido, olhando sua terrível aparência no reflexo das águas do rio, Eustáquio se deu conta de que talvez não fosse tão bonzinho quanto pensava. Vou poupar os detalhes de como ele viveu alguns dias como dragão, partindo para o brilhante desfecho. Por graça, Eustáquio voltou a ser humano, mas seu caminho foi doloroso, uma vez que havia se tornado uma pessoa quase insuportável. Aconteceu que o próprio Aslam foi encontrá-lo, e ele nem ao menos sabia de quem se tratava, mas teve respeito. Aslam olhou para Eustáquio, e este de alguma maneira captou a mensagem: deveria tirar a roupa. Mas pensou que dragões não se vestem. Entendeu então que deveria arrancar sua pele, uma espécie de escama, como as de cobra, que os dragões possuem. Ele nem desconfiava, porém, que possuía muitas destas peles. Estando Eustáquio na terceira camada, o Leão falou: “eu tiro sua pele”: A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter atingido o coração. A única coisa que me fazia aguentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. É como quem tira um espinho de um lugar dolorido. Dói pra valer, mas é bom ver o espinho sair. Depois disso, Eustáquio sofreu uma mudança notável. Às vezes tinha alguma recaída, mas a cura em seu caráter, provocada pela ação de Aslam, havia começado. Quando li esta história pela primeira vez, me identifiquei muito. Pensei no quanto eu precisava me despir das cascas do pecado e do mal. Por outro lado, pensei que isso só é possível quando, após olhar nosso reflexo, descobrimos o dragão que há em nós. E, por fim, que qualquer tentativa de arrancar nossa própria casca é vã. Jesus, ele mesmo, trata de vir nos transformar. Seu “tratamento” talvez lembre as unhas de Aslam entrando fundo em nosso coração. Mas a sensação de limpeza e liberdade valem qualquer dor. E para nós, pecadores de nascença, essa é a melhor solução possível, queira crer! Julho/Agosto - 2009 10 desenvolvendo os dons proféticos Parte III - Como Deus fala Este artigo é o terceiro de uma sequência sobre dons proféticos, assunto que o autor vem pesquisando desde 2002 e compartilhando em muitos lugares POR EZEQUIEL NETTO Muitas pessoas dizem que não conseguem ouvir a voz de Deus. Elas ficam admiradas quando alguém alega ter ouvido isso ou aquilo da parte dEle com certa facilidade. Elas não percebem que Deus pode até estar lhes falando, mas de uma maneira diferente do que estavam esperando. “Pois a verdade é que Deus fala, ora de um modo, ora de outro, mesmo que o homem não perceba” (Jó 33.14). Deus fala de formas diferentes com cada pessoa. Uma outra razão pela qual a pessoa não reconhece que Deus está lhe falando é que ele prefere fazê-lo de um modo estranho, por enigmas (questões propostas em termos obscuros para serem interpretadas; aquilo que é difícil compreender; mistérios), e raramente nos fala com uma voz audível (Nm 12.6-8; Jz 14.12; Jó 33.14-17; Ez 17.2). Deus é um Ser que se comunica, e a expressão da palavra é algo importante em sua natureza (Jo 1.1; Gn 1; Hb 1.2; Gn 3.8; Jo 6.45). Saber ouvir a voz de Deus é essencial para se comunicar com ele, até mesmo para atender ao chamado inicial de seguirmos os seus passos. Em contrapartida, Deus colocou o espírito no homem para o capacitar neste relacionamento com ele (Jó 32.8; 2 Co 3.18). Assim: • É fundamental na natureza de Deus o fato de ele ser um ser que se comunica. • É fundamental na natureza de todo crente ser capaz de ouvir a voz de Deus. Embora não haja instruções claras de como ouvir Deus nas Escrituras, encontramos uma série de exemplos em que Deus se comunica de diversas maneiras, muitos deles no livro de Atos (5.2-5,19; 8.26-30; 9.3-4,10; 10.3,1020; 12.7; 13.2; 14.9; 16.9; 18.9). E quando temos dúvidas se o que ouvimos é ou não a voz de Deus? Podemos pedir uma confirmação? Em Êxodo 3.10-12, vemos que a dúvida é um elemento que acompanha muito de perto o ministério profético. Deus fala com Moisés e pede que vá ao governante da maior nação da época e diga-lhe para que simplesmente liberte mais de 600 mil trabalhadores (603 mil homens maiores de 20 anos – Nm 1.46), deixando-os voltar para sua terra natal. Moisés vacila, achando que a tarefa é muito grande para ele, e duvida se é mesmo a voz de Deus que está escutando. Mas Deus promete-lhe uma confirmação de que era ele mesmo quem estava falando com Moisés: “quando houveres tirado do Egito o meu povo, servireis a Deus neste monte”. Muitas vezes quando recebemos uma palavra profética para alguém, queremos uma ou várias confirmações antes de falar. Deus não se nega a confirmar a palavra, mas precisamos compreender como ele fará isso. Com Moisés, a confirmação só viria após ele ter dado o passo de fé em obedecer à voz de Deus, e depois que tudo fosse realizado!!! Em Jeremias 32.6-8, vemos que o profeta recebeu uma palavra, e foi somente depois de tudo se cumprir, que ele entendeu que ela vinha mesmo do Senhor. Este é o estilo que Deus adota para confirmar suas palavras. Precisamos aprender a ministrar em fé, no escuro, confiando nele, e com toda humildade – depois de tudo, teremos plena certeza de que foi ele mesmo quem falou conosco. Muitos que entenderam bem este processo têm sido usados com poder para abençoar significativamente muitas vidas. Impressões proféticas Impressões são influências do Espírito Santo sobre nossos sentimentos, sentidos e mentes. Elas não possuem a precisão das frases ou das palavras e são semelhantes a intuições, pois não possuem nenhuma comprovação racional ou conclusão lógica em apoio deste conhecimento (as impressões divinas partem do Espírito Santo, ao passo que as intuições têm origem no espírito humano). É muito comum que as impressões venham contradizer todos os sentidos naturais. Representam a forma mais simples de revelação. Muitos cristãos recebem revelação dessa forma, mas não atentam para isso por não reconhecerem nela a voz de Deus, considerando-a como um pensamento vago ou coincidência. Por sua simplicidade, é a porta de entrada para a revelação profética para a maioria das pessoas. Deus nos criou com sentimentos, mente e corpo e pode falar por meio destes três canais. Todos eles podem ser fontes de bênçãos ou maldições, dependendo da forma como os usamos. Podemos dar ouvidos aos nossos sentimentos, mente e corpo, em contradição à Palavra de Deus, e eles estarão sendo usados como instrumentos de rebelião. Mas podemos também discernir a voz de Deus através desses canais, tornando-nos servos com melhores ferramentas e mais úteis para o serviço na casa de Deus. Muitas pessoas têm tido impressões cada vez mais frequentes e específicas, talvez por adotarem o seguinte comportamento: Em alguns casos, temos dificuldade em ouvir algo de Deus para uma pessoa, e a revelação só chega quando a abraçamos, impomos-lhe as mãos ou a tocamos de alguma forma • Creem que Deus lhes falará por meio de impressões proféticas; • Querem estas impressões para servir a Deus e a seu povo; • Oram regularmente pedindo que Deus lhes fale; • Agem de acordo com a impressão quando a têm, mesmo correndo o risco de parecerem tolos diante dos outros. Ao orar por alguém, algumas vezes somos tomados por um sentimento de alegria, tristeza, vergonha, medo. Deus pode estar permitindo que sintamos em nossa alma o que a pessoa está passando ou o que Deus tem em relação a ela. Este sentimento também pode estar relacionado com alguma experiência nossa, na qual sentimos algo semelhante, indicando que a pessoa está passando pela mesma experiência. Também pode significar o que está no coração de Deus em relação àquela pessoa (Sf 3.17; Zc 2.8). Outros exemplos de impressões proféticas: • Pensar em uma pessoa que não vemos há muito tempo, em algo que ela deveria fazer... e logo em seguida encotrar a pessoa; • At 14.9 – Paulo viu que o homem tinha fé para ser curado (como se vê a fé em alguém?); • At 27.10 – Paulo percebeu que a viagem ia ser trabalhosa (como se percebe isso?); • Lc 8.45-46 – Jesus sentiu (saber mediante um sentimento) que dele saiu poder; • Ne 7.5 – “... o meu Deus me pôs no coração que ajuntasse os nobres...”; • Mc 2.6-8 – Jesus percebeu em seu espírito o que estavam pensando. Sentidos naturais Deus também pode usar, além da nossa mente, nossos cinco sentidos naturais (visão, audição, tato, olfato e paladar) para nos trazer alguma revelação. Esta pode vir quando: Julho/Agosto - 2009 • Você vê uma pessoa, um lugar ou objeto; • Quando ouve a voz de alguém, diretamente ou ao telefone; pode ser que você tenha uma revelação quando o nome de alguém é citado; • Podemos sentir cheiros agradáveis (incenso, orvalho, perfume, chuva, pão etc) ou ruins (enxofre, morte), durante uma oração ou ministração; precisamos estar atentos, pois Deus pode estar querendo falar algo através disso; • Podemos sentir em nossa boca um sabor diferente ao orar por uma pessoa enferma ou em outra situação. Apesar de estranho, Deus usou maneiras estranhas de curar e expressar sua vontade na Bíblia (Is 55.8; Mc 7.3134; 1 Co 1.27). Recebemos uma revelação de Deus quando ouvimos alguém falar, quando é citado um nome, quando se comenta algo sobre alguém. Não se trata do que a pessoa demonstra pelo tom de sua voz, mas algo que discernimos espiritualmente. Em alguns casos, temos dificuldade em ouvir algo de Deus para uma pessoa, e a revelação só chega quando a 11 comunicou algo através de impressão, visão ou qualquer outro meio. Entretanto não podemos esquecer que Ele pode se comunicar conosco através de sua voz. Mesmo no ouvir a voz de Deus há diferentes níveis de revelação. É fundamental na natureza de todo aquele que crê ser capaz de ouvir a voz de Deus abraçamos, impomos-lhe as mãos ou a tocamos de alguma forma. Será que Deus, além da mensagem falada, não quereria também dizer que está bem próximo a ela ou quer que ela tenha mais intimidade com ele, usando os braços do profeta para expressar esse sentimento? Você também pode ser um profeta parecido comigo, avesso ao toque físico, e Deus quer que você tenha mais proximidade com os irmãos, em vez de simplesmente mandar recados a distância. Se você for assim e estiver tendo dificuldades em obter uma revelação para alguém, experimente abraçar a pessoa ou simplesmente tocá-la – em meu caso, isso funciona muito bem. Deus precisa de profetas que expressem não somente a sua voz, mas o que está em seu coração! A voz do Senhor Quando dizemos que Deus nos falou alguma coisa, na realidade estamos querendo dizer que Ele nos 1)Sussurros suaves: é a suave e meiga voz de Deus que nos vem ao estarmos orando ou meditando. Como esta voz vem em nosso interior de forma silenciosa, precisa ser julgada à luz dos desejos de nosso coração. 2) Voz audível somente em nosso interior (Ez 14.2-4): geralmente se trata de uma voz alta e forte, vindo de encontro aos nossos pensamentos e interrompendo-os. Está em um nível de revelação mais alto que o sussurro, pois é menos subjetiva. Embora não sendo uma voz realmente audível, ela dá a impressão de que é, pois ressoa muito forte em nosso interior. Temos a consciência de que estes pensamentos são diferentes dos nossos pensamentos normais, além de terem uma autoridade superior à nossa própria autoridade. 3) Voz audível de Deus: é uma revelação em nível bem elevado, não sendo com frequência que Deus fala deste modo. É inconfundível e imensa em sua natureza. Quando Deus formou a nação de Israel, o povo vivia num mundo de deuses impessoais. Era comum a adoração do sol, da lua, das estrelas e de uma infinidade de ídolos. Deus falou por meio de uma voz audível com todo Israel, mostrando ser um Deus pessoal, acima de toda a criação (Dt 4.15-20), e que era único, acima de todas as divindades pagãs (v.35). Porque ouviram a voz, os israelitas souberam que eram um povo singular entre todos os outros da terra (v.33). Mesmo no Novo Testamento, quando a Voz Audível se tornou uma pessoa, o Pai continuou a falar dos céus: no batismo de Jesus (Mt 3.17); na transfiguração (Mt 17.5); antes da crucificação (Jo 12.27-33); com Paulo no caminho de Damasco (At 9.1-9; 22.9); com Ananias, para que fosse ajudar a Paulo (At 9.10-16); com Pedro, para incluir os gentios na igreja (At 10.9-16); a João, sobre os últimos dias (Ap 1.10-20). Deus ainda fala de forma audível em nossos dias, mas esta é a forma mais rara de Deus falar. dica de leitura Uma história sobre o verdadeiro sentido do amor de Deus Título: Por que você não quer mais ir à igreja? Autores: Wayne Jacobsen e Dave Coleman Editora: Sextante Ano: 2009 POR PEDRO ARRUDA “Este livro é uma obra de ficção”. Esta informação explícita, logo observada na ficha catalográfica, retirou um pouco do meu ânimo inicial pelo título do livro. Além de não ser meu gênero preferido de leitura, senti uma prévia frustração enquanto pensava: “mais um livro de ficção; quando vamos ter a realidade?” Porém, no decorrer da leitura, notei que esta informação não somente cumpria seu caráter de honestidade, mas também se fazia necessária, em virtude de tamanha integração do enredo com a realidade. Por outro lado, podemos atribuir à ficção o sinônimo de sonho. Visto assim, há o consolo de que muita gente, em muitos lugares, já há algum tempo, vem sonhando as mesmas coisas. Por isso esses sonhos começam a ganhar nitidez cada vez maior, como se a concretização deles estivesse vindo à luz. O conteúdo do livro aponta para uma igreja baseada em relacionamentos qualificados (ou, para ser mais exato, comunhão): relacionamento entre os irmãos que deriva de relacionamento pessoal de cada um com Jesus. Tais vínculos se colocam acima das regras e das organizações humanas, o que permite que Jesus edifique a igreja ao assumir completamente o controle, depois de o homem depositar toda a confiança na providência divina sem, contudo, tornar-se um alienado passivo. Reconceitua-se a igreja, deixando de lado todas as definições que se amontoaram sobre ela no transcorrer da história. Privilegia-se o ser igreja a partir do relacionamento (comunhão). Cai a ênfase no edifício, programas, reuniões etc. Para aqueles que saíram do sistema religioso (e acham que o reunir em casas ou o não reunir é o máximo) fica o alerta: não existem modelos em que se engajar, pois só se pode sair do sistema à medida que se retira o sistema de dentro de si. Até mesmo o combate explícito ao sistema pode fazer parte do jogo e da estratégia de nos envolver no próprio sistema! Isto feito, outras coisas são secundárias. Nestas condições, obviamente que divisão é algo fora de cogitação, e as pessoas estão sujeitas ao amoroso tratamento do Senhor e têm igual consi- deração por aqueles que estão passando por situações semelhantes. Como todos os ensinamentos são proferidos pela personagem chamada João, tendo uma enigmática identificação com o apóstolo dos evangelhos, que não morreria até que Jesus viesse, fica subliminarmente a ideia da necessidade de apóstolos atualmente. Por ser uma obra que circula no meio secular, é bom se preparar para uma tradução fora do “evangeliquês” costumeiro. De forma sensata, os editores misturaram indiferentemente termos como orar e rezar, culto, missa ou reunião, entre outros, além de citações bíblicas numa linguagem não convencional. No contexto, isto não é negativo, pois se torna mais um elemento de nossa reflexão. Adquiri este livro e o li em menos de uma semana. Achei formidável a possibilidade de ele se tornar um best-seller e provocar uma reviravolta eclesiástica se as pessoas “descobrirem” que não precisam de instituições, mas sim de Jesus. Julho/Agosto - 2009 12 O novo ateu POR RICARDO BARBOSA DE SOUSA Hoje, o ateu não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina. O novo ateísmo não precisa negar a fé; apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador. Sabemos que existem vários tipos de ateus. Existem aqueles que não creem em Deus por não encontrarem respostas para os grandes dilemas da humanidade como violência, miséria e sofrimento. Não conseguem relacionar um Deus de amor com o sofrimento humano. Outros não creem porque não encontram uma razão lógica e racional que explique os mistérios da fé, como a criação do mundo, o dilúvio, o nascimento virginal, a ressurreição, céu, inferno etc. Diante de temas tão complexos que requerem fé num Deus pessoal, Criador e Redentor, muitos não conseguem crer naquilo que lhes parece racionalmente absurdo. Os dois tipos de ateus já mencionados são inofensivos. Na verdade, são pessoas que buscam respostas, são honestos e não aceitam qualquer argumento barato como justificativa para suas grandes dúvidas. São sinceros e lutam contra uma incredulidade que os consome, uma falta de fé que nunca encontra resposta para os grandes mistérios da vida e de Deus. No entanto há um outro tipo de ateu, mais dissimulado, que cresce entre nós, que crê em Deus e não apresenta nenhuma dúvida quanto aos mistérios da fé nem em relação aos grandes temas existenciais. Ele vai à igreja, canta, ora e chega até a contribuir. É religioso e gosta de conversar sobre os temas da religião. Contudo, a relevância de Cristo, sua morte e ressurreição para a vida e a devoção pessoal são praticamente nulas. São ateus crédulos. O ateu moderno não é mais somente aquele que não crê, mas aquele para quem Deus não é relevante. Este é um novo quadro que começa a ser pintado nas igrejas cristãs. Saem de cena os grandes heróis e mártires da fé do passado e entram os apáticos e acomodados cristãos modernos. Aqueles cristãos que entregaram suas vidas à causa do Evangelho, que se deixaram consumir de paixão e zelo pela igreja de Cristo, que viveram com integridade e honraram o chamado e a vocação que receberam do Senhor, que sofreram e morreram por causa de sua fé, convicções e amor a Cristo fazem parte de uma lembrança remota que às vezes chega a nos inspirar. Os cristãos modernos creem como os outros creram, mas não se entregam como se entregaram. Partilham das mesmas convicções, recitam o mesmo O ateu moderno não é mais somente aquele que não crê, mas aquele para quem Deus não é relevante credo, frequentam as mesmas igrejas, cantam os mesmos hinos e leem a mesma Bíblia, mas o efeito é tragicamente diferente. É raro hoje encontrar alguém em cujo coração arde o desejo de ver um amigo, parente, colega de trabalho ou escola convertendo-se a Cristo e sendo salvo da condenação eterna. Os desejos, quando muito, se limitam a visitar uma igreja, buscar uma “bênção”, receber uma oração; mas a conversão a Cristo, o discipulado com todas as suas implicações são coisas que não os atraem mais. Os anseios pela volta de Cristo, o desejo de nos encontrarmos com Ele e ver restaurada a justiça e a ordem da criação ficaram para trás. Somente alguns saudosos dos velhos tempos lembramse ainda dos hinos que enchiam de esperança o coração dos que aguardavam a manifestação do Reino. A preocupação com a moral e a ética, com o bom testemunho, com a vida santa e reta não nos perturba mais – somos modernos, aprendemos a respeitar o espaço dos outros. O cuidado com os irmãos, o zelo para que andem nos caminhos do Senhor, as exortações, repreensões e correções não fazem parte do elenco de nossas preocupações. Afinal, cada um é grande e sabe o que faz. Enfim, somos ateus modernos, o pior tipo que já apareceu. Citamos com convicção o Credo Apostólico, mas o que cremos não tem nenhuma relevância na forma como vivemos. A pessoa de Cristo para muitos é apenas mais uma grife religiosa, não uma pessoa que nos chama para segui-lo. O ateísmo moderno se caracteriza pela irrelevância da fé, das convicções, do significado da igreja e da comunhão dos santos. A irrelevância de Deus para a vida moderna é intensificada pela cultura tecnocrática. Temos técnicas para tudo: para ter um matrimônio perfeito, criar filhos felizes e obedientes, obter plena satisfação sexual no casamento, passos para uma oração eficaz, como conseguir a plenitude do Espírito Santo e muitos outros “como fazer” que entopem as prateleiras das livrarias e o cardápio dos congressos. A sociedade moderna vem criando os métodos e as técnicas que reduzem nossa necessidade de Deus, a dependência dEle e a relevância da comunhão com Ele. Chamamos uma boa música de adoração, um convívio agradável de comunhão, uma moral sadia de santificação, assiduidade nos programas da igreja de compromisso com o Reino de Deus. As técnicas não apenas criam atalhos para os caminhos complexos da vida, como procuram inverter os polos de atenção e dependência. Tornamonos mais dependentes de nós do que de Deus, acreditamos mais na eficiência do que na graça, buscamos mais a competência do que a unção, cremos mais na propaganda do que no poder do Evangelho. Tenho ouvido falar de igrejas que são orientadas por profissionais de planejamento estratégico. Estudam o perfil da comunidade, planejam seu desenvolvimento, arquitetam seu crescimento e, de repente, descobrem que funcionam, crescem, são eficientes e não dependem de Deus para nada do que foi planejado. Com ou sem oração a igreja vai crescer, vai funcionar. Deus tornou-se irrelevante. Tornamo-nos ateus crentes. A minha preocupação não é simplesmente criticar o mundo religioso abstrato, superficial e impessoal que criamos ou criticar a tecnologia moderna que, sem dúvida, pode e tem nos ajudado. Minha preocupação é com o coração cada vez mais distante, mais abstrato, mais centralizado naquilo que não é Deus, mais dependente das propagandas e estímulos religiosos, mais interessado no consumo espiritual do que numa relação pessoal com Deus. Como disse, o ateu hoje não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina, não precisa da comunhão dEle para a vida. A sutileza do novo ateísmo é que ele não precisa negar a fé, apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador. Este ateu está muito mais presente entre nós do que imaginamos. Fonte: www.edificando.com.br Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.