MARIA LÚCIA COSTA RODRIGUES
A NARRATIVA VISUAL EM LIVROS NO BRASIL: HISTÓRICO E LEITURAS ANALÍTICAS
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Patrimônio Cultural e
Sociedade, na Universidade da Região de Joinville (Univille).
Área de concentração: Patrimônio Cultural, Identidade e
Cidadânia. Orientadora: Sueli de Souza Cagneti.
JOINVILLE
2011
4
AGRADECIMENTOS
À Universidade da Região de Joinville (Univille), o incentivo à minha pesquisa ao longo dessa trajetória, desde
a graduação;
À Dra. Sueli de Souza Cagneti, o aceite em orientar esta pesquisa;
Aos professores que de forma direta ou indireta colaboraram com o meu amadurecimento como
pesquisadora, professora, leitora e artista, especialmente aqueles do Mestrado que, com muita dedicação e
competência, me conduziram durante esse percurso de dois intensos anos de pesquisa e debates;
Aos professores da banca, Dra. Silvia Sell Duarte Pillotto e Dra. Taiza Mara Rauen Moraes, o olhar crítico e a
significativa contribuição;
Ao Dr. Luis Camargo, a aceitação do convite para a banca e seus escritos, que muito auxiliaram na minha
dissertação;
Aos prolijianos, meus companheiros de pesquisa, que não cansaram de me incentivar com seus olhares
críticos sobre o meu trabalho e que tanto ajudaram o meu crescimento como investigadora e leitora, além de seus
afiados e humorados comentários, que tantas risadas provocaram, tornando minhas quartas-feiras tão especiais;
À minha família, a paciência e o incentivo;
Aos meus amigos da Casa da Cultura Fausto Rocha Junior.
Dedico esta pesquisa à minha orientadora, Dra. Sueli de Souza Cagneti,
pelas suas palavras de incentivo, pela sua dedicação comigo e com a
investigação, por todos os espelhos que pôs em minha frente, por todas as
portas que me abriu e paisagens que me ensinou a contemplar.
Maria Lúcia Rodrigues
7
Para
José Carlos, Jéssica e Lucas...
19
RESUMO
A pesquisa intitulada “A narrativa visual em livros no Brasil: histórico e leituras analíticas” tem como objetivos
contextualizar e analisar a narrativa visual na literatura infantil e juvenil e também articular um meio de leitura dessa
linguagem que auxilie na formação leitora e na compreensão da paisagem cultural em que se vive atualmente, na
qual a imagem ocupa lugar privilegiado. O tema constitui uma forma de valorização e disseminação de uma
linguagem que é um bem cultural do patrimônio literário brasileiro e reflete questões pertinentes ao contexto social
vivenciado, discutidas no Programa de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade, do qual esta investigação
advém. Para conhecer melhor o texto narrativo visual e suas origens, o estudo engloba um breve histórico da
literatura para crianças e o desenvolvimento da ilustração como um modo de entender a trajetória da narrativa na
linguagem imagética. O recorte proposto está na análise dos títulos premiados como Melhor Livro de Imagem pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) nos anos de 1981 a 2008 enquanto ferramenta para a
compreensão dos temas abordados e a construção dos textos imagéticos. Essa etapa propicia a clareza necessária
para se escolher três obras entre as premiadas, uma para cada década examinada, a fim de desenvolver uma
averiguação detalhada da narrativa imagética focando a leitura cruzada das duas linguagens textuais: a arte literária
e a imagética, ambas provindas da cultura verbal e visual.
Palavras-chave: Literatura infantil; narrativa visual; cultura verbal e visual.
ABSTRACT
The study entitled “A visual narrative in books in Brazil: historical and analytical readings” aims to contextualize and
analyze visual narrative in children‟s literature as well as to articulate a way of reading this language that assists in
the reading formation and in understanding the cultural landscape lived currently which the image occupies a
privileged place. This theme comes as a form of exploitation and dissemination of a cultural heritage language of
Brazil, and reflects issues relevant to the living social contest that are discussed in the Masters in Cultural Heritage
and Society of which comes from this research. To better understand the visual narrative text and its sources the
study includes a brief history of literature for children and the development of illustration in order to understand the
trajectory of the narrative in the imagery language. The proposed cut for this study is the analysis of award-winning
“Melhor livro de imagem” by the Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) from the years of 1981 to 2008
as a tool for understanding the topics and the construction of pictorial texts. This step provides the clarity needed to
choose among the three winning books, one for each decade of analysis, for a detailed study of imagery narrative
focusing on the cross-reading of the two textual languages: imagery and literary art, both from the verbal and visual
culture.
Keywords: Children‟s literature; visual narrative; visual and verbal culture.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS .................................................................................................................................................... 31
NOTAS INTRODUTÓRIAS DE UMA APRENDIZ ........................................................................................................ 36
1 APANHADOS HISTÓRICOS DO LIVRO INFANTIL: O LIVRO, O TEXTO E A ILUSTRAÇÃO DO SÉCULO XVII AO
SÉCULO XX................................................................................................................................................................. 41
1.1 A LITERATURA INFANTIL NO MUNDO ................................................................................................................ 43
1.2 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL................................................................................................................. 48
1.3 A ILUSTRAÇÃO EM LIVROS INFANTIS: BREVES HISTÓRIAS .......................................................................... 56
1.4 O DESENVOLVIMENTO DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO INFANTIL BRASILEIRO ................................................ 65
2 O LIVRO DE NARRATIVA VISUAL .......................................................................................................................... 77
2.1 O ESTUDO DA IMAGEM NARRATIVA ................................................................................................................. 88
2.2 LIVROS DE NARRATIVA VISUAL: UM TRANSITAR ENTRE ARTE LITERÁRIA E ARTE VISUAL NARRATIVA 90
2.3 LITERATURA INFANTIL E SEUS GÊNEROS NA CONSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL LITERÁRIO
BRASILEIRO................................................................................................................................................................ 92
30
3 A NARRATIVA VISUAL EM LIVROS NO BRASIL com base nos PREMIADOS pela FNLIJ DE 1981 a 2008 ........ 98
3.1 A DÉCADA DE 1980: UM INÍCIO PROMISSOR PARA A NARRATIVA VISUAL ................................................ 103
3.2 A DÉCADA DE 1990: INFORMAÇÃO, POESIA, CONTOS E BRINCADEIRAS NA NARRATIVA VISUAL ......... 116
3.3 A PRODUÇÃO DO SÉCULO XXI, DE 2000 A 2008 ............................................................................................ 135
4 NARRATIVAS VISUAIS: CAMINHOS DE LEITURA..............................................................................................153
4.1 IDA E VOLTA: INÍCIO LÚDICO............................................................................................................................ 157
4.1.1 Ida e volta: ações autobiográficas ................................................................................................................. 165
4.2 LEONARDO: INFORMATIVO, LITERÁRIO OU AMBOS? ................................................................................... 167
4.3 A RAÇA PERFEITA: REFLEXÕES PÓS-MODERNAS ....................................................................................... 173
4.3.1 Procedimentos técnicos de construção da imagem: criando textos e dialogando com o enredo .......... 178
IMPRESSÕES DE UM PERCURSO .......................................................................................................................... 183
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................................... 186
LIVROS DE NARRATIVA VISUAL ............................................................................................................................. 190
IMAGEM DE CAPA.......................................................................................................................................................192
31
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Chapbooks do conto Robin Hood............................................................................................................... 45
Figura 2 – Gravura com cena de narração para versão francesa do Contos da mamãe Gansa ................................ 61
Figura 3 – The death of the Grave Digger, de Carlos Schwabe, 1895 ........................................................................ 63
Figura 4 – Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, n. 1, 1876. Técnica: pena, crayon e nanquim ....................................... 66
Figura 5 – As aventuras de Nhô-Quim, de Angelo Agostini ........................................................................................ 67
Figura 6 – Capa de O patinho feio, de Hans Andersen ............................................................................................... 68
Figura 7 – Francisco Richter para O patinho feio, 1915 .............................................................................................. 69
Figura 8 – Voltolino para A menina do narizinho arrebitado ........................................................................................ 70
Figura 9 – André Le Blanc, para Memórias de Emília, 1962 ....................................................................................... 70
Figura 10 – Jurandir Ubirajara Campos, para Obras completas de Monteiro Lobato, Centenário, S.d. ...................... 71
Figura 11 – Paulo Ernesto Nesti, para A reforma da natureza, 1971 .......................................................................... 71
Figura 12 – Revista O Tico-Tico. Ilustração de Luiz de Sá. Rio de Janeiro, 1934....................................................... 72
Figura 13 – Bruxas, longe daqui!................................................................................................................................. 73
Figura 14 – Bruxas, longe daqui!................................................................................................................................. 74
Figura 15 – Chiquita Bacana e as outras pequetitas ................................................................................................... 76
Figura 16 – Capa de Ida e volta ................................................................................................................................ 104
Figura 17 – Todo dia ................................................................................................................................................. 105
Figura 18 – De vez em quando ................................................................................................................................. 106
32
Figura 19 – Cabra-cega ............................................................................................................................................ 106
Figura 20 – Esconde-esconde................................................................................................................................... 107
Figura 21 – A bruxinha atrapalhada .......................................................................................................................... 107
Figura 22 – A bruxinha atrapalhada .......................................................................................................................... 108
Figura 23 – Filó e Marieta ......................................................................................................................................... 108
Figura 24 – Filó e Marieta ......................................................................................................................................... 109
Figura 25 – Outra vez................................................................................................................................................ 111
Figura 26 – Chiquita Bacana e outras pequetitas...................................................................................................... 112
Figura 27 – A menina e o cobertor ............................................................................................................................ 113
Figura 28 – A menina e o cobertor ............................................................................................................................ 113
Figura 29 – O dia-a-dia de Dadá ............................................................................................................................... 114
Figura 30 – O dia-a-dia de Dadá ............................................................................................................................... 115
Figura 31 – A menina e o dragão .............................................................................................................................. 116
Figura 32 – A menina e o dragão .............................................................................................................................. 117
Figura 33 – Noite de cão ........................................................................................................................................... 118
Figura 34 – Noite de cão ........................................................................................................................................... 118
Figura 35 – Pula, gato! .............................................................................................................................................. 119
Figura 36 – Pula, gato! .............................................................................................................................................. 120
Figura 37 – O cântico dos cânticos ........................................................................................................................... 122
Figura 38 – O cântico dos cânticos ........................................................................................................................... 123
Figura 39 – Truks ...................................................................................................................................................... 124
Figura 40 – O caminho do caracol ............................................................................................................................ 126
33
Figura 41 – O caminho do caracol ............................................................................................................................ 126
Figura 42 – O gato Viriato ......................................................................................................................................... 127
Figura 43 – O gato Viriato ......................................................................................................................................... 128
Figura 44 – A bela e a fera ........................................................................................................................................ 130
Figura 45 – A bela e a fera ........................................................................................................................................ 130
Figura 46 – Cenas de rua .......................................................................................................................................... 132
Figura 47 – Cenas de rua .......................................................................................................................................... 132
Figura 48 – Capa de Leonardo.................................................................................................................................. 134
Figura 49 – Seca ....................................................................................................................................................... 136
Figura 50 – Seca ....................................................................................................................................................... 136
Figura 51 – Emoções ................................................................................................................................................ 137
Figura 52 – Emoções ................................................................................................................................................ 138
Figura 53 – Chapeuzinho vermelho e outros contos por imagem ............................................................................. 140
Figura 54 – Chapeuzinho vermelho e outros contos por imagem ............................................................................. 141
Figura 55 – Omar e o mar ......................................................................................................................................... 142
Figura 56 – Omar e o mar ......................................................................................................................................... 142
Figura 57 – No fim do mundo muda o fim ................................................................................................................. 143
Figura 58 – No fim do mundo muda o fim ................................................................................................................. 144
Figura 59 – O amor cego do morcego ....................................................................................................................... 145
Figura 60 – O amor cego do morcego ....................................................................................................................... 145
Figura 61 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 146
Figura 62 – O rouxinol e o imperador ........................................................................................................................ 147
34
Figura 63 – O rouxinol e o imperador ........................................................................................................................ 148
Figura 64 – A linha do Mario Vale ............................................................................................................................. 149
Figura 65 – A linha do Mario Vale ............................................................................................................................. 149
Figura 66 – Rabisco: um cachorro perfeito ............................................................................................................... 150
Figura 67 – Rabisco: um cachorro perfeito ............................................................................................................... 151
Figura 68 – Elementos do gênero narrativo verbal e visual ...................................................................................... 156
Figura 69 – Ida e volta ............................................................................................................................................... 158
Figura 70 – Ida e volta ............................................................................................................................................... 160
Figura 71 – Ida e volta ............................................................................................................................................... 160
Figura 72 – Gráfico referente ao ritmo compositivo de Ida e volta ............................................................................ 161
Figura 73 – Ida e volta ............................................................................................................................................... 162
Figura 74 – Ida e volta ............................................................................................................................................... 164
Figura 75 –Ida e volta ................................................................................................................................................ 166
Figura 76 – Leonardo ................................................................................................................................................ 167
Figura 77 – Leonardo ................................................................................................................................................ 168
Figura 78 – Leonardo ................................................................................................................................................ 169
Figura 79 – Leonardo ................................................................................................................................................ 170
Figura 80 – Leonardo ................................................................................................................................................ 172
Figura 81 – Leonardo ................................................................................................................................................ 172
Figura 82 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 173
Figura 83 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 175
Figura 84 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 176
35
Figura 85 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 177
Figura 86 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 177
Figura 87 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 178
Figura 88 – Título do livro A raça perfeita ................................................................................................................. 179
Figura 89 – A raça perfeita ........................................................................................................................................ 180
36
NOTAS INTRODUTÓRIAS DE UMA APRENDIZ
Quando me preparava para esse momento de escrita, foi inevitável a reflexão sobre
a minha relação com os livros. Nasci numa família de agricultores. Meus pais eram
semianalfabetos, como a grande maioria das pessoas daquela geração. Não tínhamos
energia elétrica; o que nos inseria no mundo era um rádio a pilha. Porém pequenas
atitudes passadas transformam vidas futuras. Aquele lugar não cabia mais para meus irmãos. Eles queriam estudar.
Mudamo-nos para mais próximo da cidade, para que eles pudessem frequentar a escola regular e a família continuar
na agricultura. Na época eu tinha 3 anos, mas é incrível que as lembranças, principalmente as imagens, são nítidas
em minha memória.
Não me recordo bem ao certo, penso que por volta dos meus 10 anos eu e meus irmãos ganhamos de meu
pai uma coleção de livros, comprada de um caixeiro viajante. Escolhi para ler O corcunda de Notre Dame, de Victor
Hugo. Amei a personagem, Quasímodo, sua ingenuidade, gentileza e, ao mesmo tempo, sua força. Nasceu assim
meu interesse pelos livros. Um interesse caro para meus pais. A cidade não tinha biblioteca. Assim, restavam-me os
romances baratos e usados que a revistaria vendia. Comprei um que, depois de ler, trocava com minhas amigas.
As aulas de arte da escola não estavam na lista de minhas preferências, contudo era um prazer desenhar em
casa.Tínhamos um livro que ensinava a desenhar e eu fiz todos os exercícios que havia nele.
. O encantamento pelas linguagens da arte só aumentou com a adolescência e com a faculdade de Artes
Visuais, na qual ingressei já casada e com filhos.
37
Minha inserção no mundo da literatura infantil começou por meio da necessidade de oferecer livros aos meus
filhos e, para isso, eu os lia primeiro. As visitas às livrarias demoravam-se na estante de literatura infantil: livros
coloridos, livros simples e profundamente belos, livros bobos, livros ruins, livros encantadores, livros traduzidos em
arte, muitas vezes esquecidos nos sebos e nas livrarias. Veio desses tesouros olvidados a vontade de entendê-los e
de revelar seus segredos aos que veem o mundo em minúcias, as crianças, olhando-as com respeito e cuidado.
A possibilidade de estudar literatura infantil veio na graduação, entretanto eu estava na faculdade de Artes
Visuais e não de Letras. Então, ocorreu-me que havia as narrativas que usavam como linguagem apenas imagens:
as narrativas visuais, gênero que me instigava e me possibilitaria independência com relação ao texto verbal.
Na universidade havia o Programa de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic). Inscrevi-me com o incentivo da
Dra. Nadja de Carvalho Lamas, que me orientou nesse projeto. Durante um ano mergulhei no universo literário e
colorido da narrativa visual, procurando entender sua construção, sua leitura e as técnicas empregadas, bem como
me aventurar na construção de algumas narrativas visuais, sempre sob a ótica da arte visual.
Essa pesquisa me rendeu, na instituição, o prêmio de Melhor Pesquisa do ano de 2002, proporcionando-me a
realização de uma viagem de estudos para o Rio de Janeiro, onde pude visitar a Fundação Nacional do Livro Infantil
e Juvenil (FNLIJ) e conhecer como funciona a principal entidade no país especializada em literatura infantil e juvenil,
que abriga uma biblioteca com milhares de exemplares no gênero.
Após a graduação, segui com algumas exposições em arte e com o foco em livros de artista, meu tema de
conclusão do curso de Artes Visuais. A narrativa é a fonte em que bebo. Por isso, relato tal percurso em detalhes,
para que se entenda minha relação tão estreita com essas duas linguagens narrativas: a verbal e a visual.
Em 2009 fiz minha primeira exposição individual; ela veio a chamar-se Andarilho. Tive a oportunidade de
dividir com o público uma personagem que desde 2002 estava comigo, pontuando trabalhos de narrativa visual em
livros, pinturas e desenhos. Pensando nesta retrospectiva que faço, percebo que talvez o corcunda Quasímodo,
38
primeira personagem da minha infância, permaneça em algum lugar em mim, ensinando-me com seu olhar sensível
e aberto para as pequenas coisas, muito parecido com o meu amigo “andarilho”.
Ao entrar no programa de mestrado, tive a chance de continuar a investigar a narrativa visual, todavia agora o
enfoque está na literatura e na arte visual narrativa como literatura. Tentei nesse momento do estudo preencher as
lacunas que ficaram e que são naturais quando se trata de uma linguagem híbrida, tal qual a narrativa visual na
literatura, pois no universo da palavra a imagem é uma linguagem muito bem-vinda e necessária na literatura para
crianças e jovens. Além disso, busquei compreender e contextualizar a literatura infantil como parte do patrimônio
literário brasileiro e nas linguagens que se fazem presentes em sua constituição como um todo, visando sobretudo à
linguagem imagética, mais especificamente à narrativa visual.
Como minha trajetória nesse universo narrativo percorre trilhas tão híbridas quanto à própria linguagem, o
programa de mestrado propiciou-me, por meio de minha orientadora, que é votante da FNLIJ no Brasil e
coordenadora do Programa de Literatura Infantil e Juvenil (Prolij), participar como pesquisadora do Prolij, grupo que
há 14 anos vem pesquisando de maneira ativa o gênero literário infantil, infantojuvenil e juvenil pelo país e pelo
mundo, mantendo-se atuante em congressos do gênero.
Ingressar nesse grupo oportunizou-me um contato direto com a produção nacional atual, afinal a maioria dos
livros examinados não é vista em livrarias da região. Esses títulos são disponibilizados pela Dra. Sueli Cagneti, que
como votante recebe um número considerável de obras para análise, o que possibilita que eu siga atualizada na
produção. Ademais, fazendo parte do grupo, tenho a chance de entender melhor o diálogo entre o visual e o verbal
nesse universo literário.
Quando me propus a investigar a produção de narrativas visuais no Brasil, tive de encontrar um recorte que
pudesse traduzir o que se pensou ao longo dos 30 anos de produção para o gênero. Para tanto optei por fazer uma
pesquisa qualitativa (investigação fundamentada em bibliografias e documentos).
39
Como meu foco nesta pesquisa é o desenvolvimento da narrativa visual na literatura infantil e infantojuvenil,
procurei levantar no primeiro capítulo um panorama geral da literatura para a infância na Europa, que por seu meio
deu origem à literatura infantil no Brasil, e ainda como ela se desenvolveu, evidenciando principalmente as
ilustrações para esse gênero. Num outro momento discuto a história do livro para crianças no Brasil: como foram tais
produções e as ilustrações para esses livros. Abordo ainda, finalmente, em que momento surgiu a narrativa visual
nos livros no país e quais as suas origens.
O apanhado histórico mencionado deu subsídios para poder compreender como o gênero se articula e se
desenvolve, para que, no segundo capítulo, seja levantado de modo efetivo o tema: narrativa visual em livros infantis
e infantojuvenis, levando em conta os problemas de nomenclatura e conceituação para esse gênero relativamente
novo no país e enfatizando o valor da linguagem visual narrativa para a infância.
Para perceber melhor a produção narrativa visual em livros, escolhi para analisar, como proposta para o
terceiro capítulo, os livros brasileiros ganhadores do Prêmio Luís Jardim de Melhor Livro de Imagem, concedidos
pela FNLIJ. Tal prêmio é dado desde 1981 para obras nacionais e estrangeiras que circulam no país. A FNLIJ,
entidade sem fins lucrativos, é a maior referência em trabalhos voltados à discussão e promoção da leitura para
crianças e jovens no Brasil e funciona como uma seção do International Board on Books for Young People (Ibby),
maior instituição do mundo quanto à literatura infantil e juvenil filiada à Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com seções em significativo número de países.
Por se tratar de uma linguagem significativa para o estímulo da independência leitora da criança, a qualidade
da produção teria de ser pensada. A escolha pelas obras premiadas justificou-se pelo fato de elas terem passado
pelo olhar de dezenas de estudiosos da área de literatura infantil e infantojuvenil e muitos destes terem sido
referência para os meus estudos. Como todos os anos há premiações, procurei com base nelas fazer um
levantamento dos temas mais abordados, para assim identificar quais obras, no que compete às premiadas,
40
correspondem a todas as características da narrativa na arte literária e na arte visual. Para isso, foquei
principalmente no enredo, buscando notar se ele tem relação com a cultura da infância e se existem ideologias por
trás de tais representações imagéticas. Além disso, procurei observar quais recursos gráficos são importantes para
enriquecer o enredo, tornando-o literário.
O percurso pelos premiados do FNLIJ instigou-me a ir mais a fundo na pesquisa para entender os meandros
da imagem e o que os seus discursos representam e materializam. Portanto, fez-se necessário escolher nessa
produção três obras, uma para cada década de premiação, para uma averiguação mais aprofundada que pudesse
contribuir com a formação de leitores e estudiosos do gênero narrativo visual e verbal.
1 APANHADOS HISTÓRICOS DO LIVRO INFANTIL: O LIVRO, O TEXTO E A ILUSTRAÇÃO
DO SÉCULO XVII AO SÉCULO XX
A busca pela origem da literatura infantil baseia-se no princípio de que o livro infantil em
nenhum momento de sua história foi, assim, tão infantil. A gênese dessa literatura está nos
contos e nas fábulas de origem popular oral, que posteriormente foram registrados conforme a
linguagem escrita. O conhecimento de tal condição é de extrema importância para quem inicia
um estudo desse gênero literário, pois se a referida literatura é construída por adultos, com
determinada visão de mundo, a criança estará sempre submetida a esse olhar. O fator mencionado, aliado às
intenções educacionais e moralistas presentes na literatura para crianças ao longo dos séculos, sujeitou o valor
estético a um segundo plano, o que é inconcebível em obras literárias, e, como consequência disso, ocorreram a
segregação e o rótulo depreciativo de “literatura menor”.
Hoje percebemos que essa visão generalizada está ultrapassada, embora ainda esteja enraizada em muitos
grupos sociais. O caráter literário não está na generalização, e sim na particularidade das obras. Portanto, em
qualquer meio representativo da linguagem verbal teremos ou não literatura, pois esta será a que tem os valores
estéticos que a traduzem como tal. Ponzio, Calufato e Petrilli (2007, p. 228) esclarecem a linguagem literária sob a
ótica bakhtiniana:
42
A literatura brinca com a linguagem verbal, burla-se do discurso da identidade, da diferença, dos papéis.
[...] Esta forma de brincar, ludibriando, com os signos, é a ironia da escritura literária, que Bakhtin
considera uma forma do calar, um modo de fazer calar o discurso dominante, de se defender do seu
ruído ensurdecedor que cobre as múltiplas vozes, incoerentes e contraditórias, e as canaliza em um
discurso monológico, unifica-as em uma identidade, individual ou coletiva [...].
Os autores explicam ainda que “a escritura literária se liberta da divisão dos papéis da vida real e da
responsabilidade limitada a eles, não se submete à regra do discurso funcional e produtivo [...]” (PONZIO;
CALUFATO; PETRILLI, 2007). Poderia ser dito que as características mencionadas contemplam as demais
linguagens artísticas, seja o cinema, a arte visual e a música. De certa maneira, todas circulam na marginalidade da
razão, mesmo que no processo de construção da linguagem se valham dela, é na materialização e na socialização
que as linguagens artísticas se mostram livres.
Uma particularidade da literatura infantil e juvenil é que ela se apropria de duas linguagens distintas, a verbal
e a visual. Muitas vezes a segunda sobressai ou é a única dentro do livro. Mas a recepção desse universo verbal e
imagético pela criança está de acordo com o que os autores dos livros propuseram? Talvez em alguns casos sim, e
em muitos outros não. A criança terá um olhar diferente para o livro, porém não se deve confundir esse olhar com
incapacidade de ler as entrelinhas sugeridas pelo escritor; ela construirá sua própria interpretação, mediante uma
visão provavelmente mais pura diante do texto e da imagem, notando o livro como um todo: sua capa, seu formato,
as cores, as formas e o diálogo entre as linguagens.
Ressalta-se aqui a literatura para crianças como aquela atemporal e artística. É possível que seja o gênero,
na literatura em geral, de caráter mais completo, pois não faz distinção de leitor; encanta da mais tenra idade ao
mais sensível dos anciões. É a junção desses distintos mundos, o infantil e o adulto, presentes na literatura infantil,
que torna seu estudo tão interessante. A literatura infantil representa uma das inúmeras expressões culturais de um
povo, reflete suas tradições e aspirações. Portanto, é relevante que se conheça a trajetória desse gênero e de onde
43
surgiu a necessidade de escrever para crianças, sobretudo no Brasil, onde a literatura infantil tem pouco mais de
século e alguns de seus desdobramentos algumas décadas apenas, como é o caso da narrativa visual, foco desta
pesquisa.
A importância de saber a origem da literatura infantil, no contexto brasileiro, está diretamente ligada ao fato de
que desde o início até hoje as traduções de referência no gênero têm origem europeia.
A literatura infantil que conhecemos teve seus primórdios na oralidade. As fantásticas histórias eram
transmitidas oralmente e muitas vezes cantadas num ambiente medieval, não tendo sido pensadas para os
pequenos. Não havia separação entre crianças e adultos tal qual a conhecemos; aquelas viviam entre estes e
ouviam o que eles ouviam, simplesmente porque não havia a concepção de infância como existe nos dias de hoje. A
moderna concepção de infância começou a dar os primeiros sinais por volta do século XVII e intensificou-se no
século XVIII com a ascensão de uma nova classe social, a burguesa. Antes disso, as crianças na sociedade não
recebiam tanta atenção para o desenvolvimento de seu intelecto por uma questão demográfica, ou seja, a
mortalidade infantil era imensa, como lembra Ariès (1981). Esse fator contribuía para que não se ocupasse muito do
tempo com a formação dos pequenos, pois não se sabia se permaneceriam vivos.
1.1 A LITERATURA INFANTIL NO MUNDO
Os primeiros registros históricos que chegaram até nossos dias e se utilizaram como adaptações para a
literatura infantil foram as fábulas de uma figura lendária, Ésopo. Sua existência histórica permanece duvidosa.
Ésopo era um contador de fábulas caracterizadas particularmente pelo moralismo e pela alegoria. As personagens
construídas por ele eram animais personificados, pois possuíam caráter humano. Powers (2008) traz alguns índices
da existência de Ésopo, citando que se encontraram fábulas em diversos manuscritos gregos. O autor afirma
44
também que no ano de 1485 essas fábulas foram impressas em uma edição de William Caxton, com muitas
ilustrações em xilogravura. Considera-se tal obra um dos primeiros livros impressos na Inglaterra. As fábulas, no
estilo Ésopo, foram interpretadas ao longo de vários séculos por muitos escritores e ilustradores, contudo quem mais
difundiu tal estilo foi Jean de La Fontaine1.
Quanto ao surgimento de uma literatura para crianças, autores brasileiros que se debruçaram sobre a história
desse gênero, como Coelho (1997) e Lajolo e Zilberman (1985), determinam o século XVII, na França, sob o reinado
de Luís XIV, o rei Sol, como o período em que começaram a aparecer as primeiras preocupações com uma literatura
para crianças e jovens. As fábulas (1668), de La Fontaine, Os contos da mamãe Gansa (1691-1697), de Charles
Perrault; Os contos de fadas (oito volumes, 1696-1699), de Madame D‟Aulnoy; e Telêmaco (1699), de François
Fénelon, são os livros pioneiros na literatura infantil. No entanto foram produções pontuais, não ocorrendo um
processo contínuo dessa escrita no continente europeu.
Na Europa do século XVIII, as características físicas dos livros para crianças eram os chapbooks (figura 1), os
quais eram impressos numa única folha dobrada em 12 ou 16 páginas, cuja capa e folha de rosto eram iguais,
normalmente com uma ilustração em xilogravura central emoldurada de ornamentos. Vendedores ambulantes
comercializavam esses livros por um preço bem acessível. As obras não se destinavam ao público infantil, porém
suas características físicas, seu baixo custo e suas ilustrações, além de seus contos fantásticos, suas baladas2 e
1
“Jean de La Fontaine (1621-95) era membro da nova classe de funcionários do governo francês que ajudou a
implementar a eficiência administrativa de Luís XIV. La Fontaine escrevia fábulas no estilo Ésopo, tomando como base
uma ampla variedade de histórias e compondo-as em verso, cada uma com sua moral” (POWERS, 2008, p. 28).
2
“Poema narrativo sobre assunto lendário ou fantástico e de caráter simples e melancólico” (FERREIRA,2009)
45
suas novelas de cavalaria3, as tornaram importante ferramenta de interesse e aprendizagem do público infantil. Os
chapbooks permaneceram como leitura destinada a crianças até o século XIX.
Figura 1 – Chapbooks do conto Robin Hood
3
“Esses primeiros „romances‟ ou novelas de cavalaria formam o ciclo cavaleiresco mais antigo: o de Carlos Magno, o
Grande Imperador dos Francos que, no início da Idade Média (séc. IX), combatendo os bárbaros, foi o apoio da Igreja
Católica Romana e o fundador do Novo Império Ocidental. Expressando o ideal guerreiro e religioso da Idade Média,
essas novelas de cavalaria foram difundidas pelos jograis – músicos ambulantes que iam de vila em vila ou de castelo em
castelo, divertindo os mais variados públicos. E ao mesmo tempo que cantavam as façanhas guerreiras, iam divulgando
valores e costume de um povo para outro” (COELHO, 1997, p. 42).
46
Essa condição de produto acompanha o livro infantil ao longo de sua história. Prova disso é o ano de 1744,
quando britânico John Newbery - dono do principal centro de impressão e comercialização de livros da Inglaterra, o
primeiro a se especializar em títulos para crianças - lançou no mercado o livro A little pretty pocket-book. Como
garante Powers (2008), ele entrou para a história da literatura infantil como o mais eficiente dos autopromotores,
gerando o crescimento do consumo de livros.
Os livros que os pais do século XVIII gostavam de dar aos seus filhos eram não só os que instruíam, mas
também os que agradassem, e Newbery foi o primeiro a juntar livros e brinquedos em pacotes mais baratos. Essa
atitude visionária impulsionou as vendas e a leitura dos livros para crianças. Para Powers (2008), o surgimento das
capas ilustradas constituiu outro importante fator que ajudou a impulsionar as vendas, cujo início se deu na literatura
para crianças. Somente mais tarde, a indústria de livros usou tais capas em larga escala, ao perceber o interesse do
leitor por belos trabalhos.
Os temas moralizadores nesse período eram predominantes, e Lajolo e Zilberman (1985, p. 19) discutem-nos
com base em uma visão de mundo idealizado:
Outras características completam a definição da literatura infantil, impondo sua fisionomia. A primeira
delas dá conta do tipo de representação a que os livros procedem. Estes deixam transparecer o modo
como o adulto quer que a criança veja o mundo. Em outras palavras não se trata necessariamente de
um espelhamento literal de uma dada realidade, pois, como a ficção para crianças pode dispor com
maior liberdade da imaginação e dos recursos da narrativa fantástica, ela extravasa as fronteiras do
realismo. E essa propriedade, levada às últimas conseqüências, permite a exposição de um mundo
idealizado e melhor, embora a superioridade desenhada nem sempre seja renovadora ou
emancipatória.
Há um aspecto importante no crescimento de livros para crianças nesse século: a Inglaterra e os demais
países desenvolvidos da Europa passaram por profundas mudanças socioeconômicas que influenciaram
47
diretamente os grupos sociais mais independentes em termos financeiros e concentrados nos centros urbanos, que
começaram a consumir mais produtos destinados ao letramento e ao intelecto e, por conseguinte, a se preocupar
com o que os seus filhos leem. A criança passou a ser vista, então, como um ser diferenciado que tem necessidades
de desenvolvimento próprias (OLIVEIRA in OLIVEIRA, 2008b).
De 1850 a 1860 surgiu um novo tipo de livro para crianças, os livros-brinquedo, encadernados com folhas
coladas ou muitas vezes com linho entre elas para dar maior resistência.
Retornando ao gênero das fábulas, os irmãos Grimm na segunda metade do século XVIII registraram e
difundiram para o mundo as histórias folclóricas alemãs com fábulas carregadas de mistério, terror e moral, todavia
eles não as criavam. Foi Hans Christian Andersen quem, no século XIX, criou as primeiras histórias voltadas às
crianças. Por esse motivo ele é considerado o pai da literatura infantil no mundo 4. Seus contos seguiam a mesma
linha dos coletados pelos irmãos Grimm, porém, em uns momentos as facetas de crueldade da história eram
maiores, “mais psicológicas, cuja profundidade talvez não seja compreendida por crianças” (POWERS, 2008, p. 30).
Um grande sucesso na literatura para crianças entre o fim do século XIX e o começo do XX foram as histórias
escritas e ilustradas pela inglesa Beatrix Potter5, que concebeu uma nova forma de livros infantis, em formato
pequeno e com unidade de imagem entre a da capa (com ilustração colada em papel sem estampas) e as do interior
do livro. Sua personagem, Peter Rabbit, ficou famoso na literatura figurando em várias de suas histórias.
4
O Ibby, maior instituição no mundo no que se refere à literatura infantil e juvenil com seções em significativo número de
países, confere a cada dois anos a medalha Hans Christian Andersen ao melhor escritor e ilustrador. Duas escritoras
brasileiras já foram agraciadas com o prêmio: Lygia Bojunga, em 1982, e Ana Maria Machado, oito anos depois. Em 2010
dois outros brasileiros ficaram entre os cinco melhores, Bartolomeu Campos de Queirós, como escritor, e Roger Mello,
como ilustrador. Vale lembrar que esses brasileiros são os únicos premiados em toda a América Latina.
5
A biografia de Beatrix Potter foi adaptada para o cinema em 2006 com o filme Miss Potter, dirigido por Chris Noonan e
protagonizado por Renée Zellweger.
48
Esse breve panorama da literatura infantil na Europa até a virada do século mostra a ascensão do gênero e o
aumento relevante da produção de livros destinados a tal público. Isso evidencia a significativa diferença de tempo
que o Brasil levou para consolidar o gênero que, em terras europeias, já estava bem enraizado. Nesse sentido,
Lajolo e Zilberman (1985, p. 21) esclarecem:
Os autores todos da segunda metade do século XIX, são eles que confirmam a literatura infantil como
uma parcela significativa da produção literária da sociedade burguesa e capitalista. Dão-lhe
consistência e um perfil definido, garantindo sua continuidade e atração. Por isso, quando se começa a
editar livros para a infância no Brasil, a literatura para crianças, na Europa, apresenta-se como um
acervo sólido que se multiplica pela reprodução de características comuns. Dentro desse panorama,
mas respondendo às exigências locais, emerge a vertente brasileira do gênero, cuja história, particular e
com elementos próprios, não desmente o roteiro geral.
Os países europeus, com suas importantes personagens, foram os grandes influenciadores da posterior
ascensão da literatura infantil em outros países, justamente por esta estar consolidada e ter grande aceitação. Sua
fórmula foi muito difundida pelo mundo, particularmente no Brasil, foco deste estudo e cuja primeira produção se
resumia somente a traduções dos contos e das fábulas europeias.
1.2 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL
Se na Europa a produção de uma literatura específica para crianças remonta, mesmo que pontualmente, ao
século XVII, no Brasil nesse mesmo período ainda vivíamos o regime monárquico, ou seja, a alfabetização era para
poucos e as crianças nem sequer eram consideradas.
Para Lajolo e Zilberman (1985, p. 23) no século XIX surgiu oficialmente a atividade editorial no Brasil e, com
ela, algumas poucas publicações destinadas às crianças:
49
Com a implantação da Imprensa Régia, que inicia, oficialmente, em 1808, a atividade editorial no Brasil,
começam a publicar-se livros para crianças: a tradução de As aventuras pasmosas do Barão de
Munkausen6 e, em 1818, a coletânea de José Saturnino da Costa Pereira Leitura para meninos,
contendo uma coleção de histórias morais relativas aos defeitos ordinários às idades tenras, e um
diálogo sobre geografia, cronologia e história de Portugal e história natural. Mas as publicações eram
esporádicas [...] e, portanto, insuficientes para caracterizar uma produção literária brasileira regular para
a infância.
Até fins do século XIX, os livros destinados às crianças eram todos importados. Por conseguinte, eram
apenas para os abastados. Os poucos escritores que se aventuravam a escrever algo tinham seus livros impressos
em Portugal. Serra (1998, p. 11) identifica esses primeiros autores e suas obras:
Alguns deles dedicaram-se a esse tipo de literatura do qual ficaram poucos livros de valor, como por
exemplo Através do Brasil, de Manuel de Bonfim e Olavo Bilac. Contos pátrios deste último e Coelho
Neto ou Saudade, de Tales de Andrade. No gênero destacam-se as edições Garnier, com contribuição
decisiva para nosso desenvolvimento cultural.
Os primeiros livros para crianças no Brasil começaram a aparecer no fim do século XIX e consistiam em
traduções importadas de Portugal. As pouquíssimas crianças que tinham acesso à leitura possuíam ao seu dispor a
literatura de outras culturas. As primeiras traduções de destaque na literatura infantil no país foram dos contos de
Perrault e dos irmãos Grimm. Elas integraram a coleção Contos da Carochinha, traduzida por Figueiredo Pimentel e
6
Há algumas variações de nome para o Barão. As autoras colocaram Munkausen, mas, mais adiante na página 29 elas
colocam como Münchhausen. Obteve-se para esse estudo um exemplar , reeditado pela editora do Brasil, com o título As
aventuras do Barão de Munchhausen, com adaptação de J. Pimentel Pinto. Essas histórias foram compiladas por Rudolph
Erich Raspe e publicadas originalmente na Inglaterra. Somente depois Gottfried August Buerger traduziu para o alemão,
cuja língua é a oficial do país de origem do Barão.
50
publicada pelas edições Quaresma, em 1894. Lajolo e Zilberman (1985, p. 29) enfatizam a importância de Pimentel
e Carlos Jansen nas primeiras adaptações e traduções que circulam até nossos dias:
Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel são os que se encarregam, respectivamente, da tradução e
adaptação de obras estrangeiras para crianças. Graças a eles, circulam, no Brasil, Contos seletos das
mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do
celebérrimo Barão de Münchhausen (1891), Contos para filhos e netos (1894) e D. Quixote de La
Mancha (1901), todos vertidos para a língua portuguesa por Jansen.
O panorama literário infantil começou a mudar em 1915, quando a “Weiszflog Irmãos Editores, de São Paulo,
hoje Melhoramento encarrega Arnaldo de Oliveira Barreto da organização de uma „Biblioteca Infantil‟ que se inicia
com O patinho feio, de Andersen” (SERRA, 1998, p.12). Não se deve deixar de citar a relevância da oralidade para
os pequenos no Brasil, já que pouquíssimos destes, na virada do século XIX para o XX, eram alfabetizados.
Destaca-se o valor das amas na formação cultural e imaginativa do Brasil: “[Alguns autores] chegaram a transcrever,
mais tarde, essas histórias ouvidas na infância, como José Lins do Rego em Estórias da velha Totônia” (SERRA,
1998, p. 13).
A quase exclusividade de produções estrangeiras traduzidas e adaptadas gerou a necessidade de criar uma
literatura brasileira genuína para crianças, todavia a influência continuava europeia e, embora o governo
incentivasse a nacionalização da literatura, as personagens eram estereótipos importados. As histórias tinham como
protagonistas crianças (na sua maioria meninos) de comportamento exemplar, virtuosas. Muitas vezes elas
desenvolviam atividades que serviam de exemplo na história. Nessa perspectiva, Lajolo e Zilberman (1985, p. 54)
acrescentam que:
51
Os livros para crianças foram profunda e sinceramente nacionalistas, a ponto de elaborarem uma
história cheia de heróis e aventuras para o Brasil, seu principal protagonista, da mesma maneira, eles
se lançaram ao recolhimento do folclore e das tradições orais do povo. [...] Porém, visando contar com o
aval do público adulto, a literatura infantil foi preferencialmente educativa e bem comportada, podendo
transitar na sala de aula ou, fora dessa, substituí-la.
A primeira pessoa a escrever alguma coisa tipicamente brasileira e específica para crianças foi Monteiro
Lobato. Utilizando uma linguagem coloquial, o que era algo inovador no princípio do século XX, embora o prémodernista fosse considerado por um número significativo de críticos e estudiosos modernista em relação à sua
literatura infantil. Lobato inovou também nos assuntos abordados, que tratam de histórias e personagens da cultura
popular brasileira, trabalhando lendas e mitos, além de “temas públicos, contemporâneos ou históricos” (SERRA,
1998), como guerras, ciência, petróleo e política. Assim, é possível desenvolver na criança um olhar crítico sobre o
mundo e a respeito dos outros. A linguagem coloquial – procedimento modernista – usada por Lobato o deixou mais
próximo da realidade da criança.
A atitude do autor no tocante às crianças desmistifica a leviana concepção adulta de nivelar o pensamento
infantil, subestimando-o, pois Lobato tratava a criança como um indivíduo, pregava a liberdade e discutia de igual
para igual os problemas da vida e da sociedade. Algumas dessas temáticas são passíveis de serem vistas em
histórias como: A chave do tamanho, cujo debate é acerca das consequências da guerra; O poço do Visconde, que
versa quanto aos problemas de desenvolvimento do Brasil; e ainda O Saci, tratando do “conhecimento intuitivo
frente ao predomínio da lógica e da razão” (SERRA, 1998).
Nas décadas de quarenta, cinqüenta e sessenta a linguagem coloquial, bandeira modernista, perde
força com uma nova geração de escritores, que vêem nessa bandeira do passado fonte esgotada pelo
seu uso nos novos meios de comunicação de massa e pela acessibilidade dessas culturas as obras
difundindo-as em novos recursos tecnológicos como a televisão, o rádio e mídias impressas como
jornais e revistas.
52
A obra completa de Monteiro Lobato é composta de 23 títulos e dominou o mercado editorial do gênero por
décadas, deixando pouco espaço para outros autores. Depois do escritor, a literatura infantil permaneceu quase
estagnada até os anos de 1970, quando ocorreu seu boom no Brasil.
Orígenes Lessa7 explana seu pensamento sobre a produção literária para crianças e a grande quantidade de
importados traduzidos que invadem o mercado brasileiro. Ele tem a firme convicção de que é dever do escritor
nacional – e ele define como uma questão de “segurança nacional” – produzir uma literatura genuinamente
brasileira, que possa competir de igual para igual com a estrangeira, argumento colocado num depoimento extraído
de uma revista do Ministério da Educação (MEC) de 19768, recuperado por Yunes e Pondé (1989, p. 53):
Não vamos, não devemos – nem adianta – combater o livro importado e traduzido. O problema é outro.
É preciso preservar na criança, tão maleável, matéria de fácil manuseio e de receptividade
complacente, o sentido da terra, o gosto da gente, a vocação dos rumos comuns. Não é com
romancinhos e contos importados, nem proibindo a importação que conseguiremos. É concorrendo com
eles. [...] Acima de tudo, vamos esquecer um dos erros mais comuns entre nós: o de escrever para a
criança como se a criança fosse um débil mental.
Esse pensamento de influência lobateana fez a diferença na literatura infantil no Brasil.
Um novo momento começou a florescer nos anos 1970, quando os leitores de Lobato viraram escritores
também, e mais uma vez a preocupação com a cultura popular brasileira tornou-se presente. É importante lembrar
7
Jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta. Entre sua produção literária destacam-se a coletânea de contos
Passa três, a novela O joguete e o romance O feijão e o sonho, pelo qual recebeu o prêmio Antônio de Alcântara
Machado (1939).
8
LESSA, Orígenes. Educação. Brasília, Revista do MEC, janeiro/março 1976.
53
que nesse período houve uma reforma no ensino que obrigou à adoção de livros de autores brasileiros nas escolas
de 1.º grau. Isso contribuiu para o aumento diversificado da produção literária para crianças e atrelou de novo a
literatura ao ensino escolar, conforme Serra (1998).
Autores consagrados até hoje, como Fernanda Lopes de Almeida, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo,
Eliardo França, Bartolomeu Campos de Queirós, Marina Colasanti e, por fim, Lygia Bojunga, tematizaram problemas
da sua época e da situação política vivida no país, regido pelo governo militar desde 1964.
O Brasil durante o regime militar, na década de 1970, passou por uma mudança profunda de caráter
econômico, político e social. Houve grandes movimentos intelectuais e populares de esquerda com vistas a uma
mudança, pressionando as classes mais conservadoras, porém estas, aliadas ao Exército, reprimiram os focos de
conflito (SERRA, 1998). A inflação tomou proporções gigantescas, e o governo militar, que até então mantinha
posição nacionalista, aliou-se à política dos Estados Unidos para a América Latina. As guerrilhas instauraram-se no
país.
Quanto à educação, nos anos 1960 o MEC estabeleceu um acordo com a United States Agency for
International Development (Usaid). O órgão norte-americano produziu uma reforma educacional no Brasil em todos
os níveis de escolarização, cujos objetivos eram priorizar determinadas áreas que ajudariam no desenvolvimento
econômico e desprezar outras consideradas irrelevantes para esse fim. Tal acordo causou grande insatisfação de
estudantes e intelectuais, afinal no modelo proposto não se formariam profissionais para servir à sociedade, mas
para setores da sociedade.
É interessante recordar que, com a censura (adotada no país com o Ato Institucional n.º 5, conhecido como
AI-5), quaisquer manifestações artísticas que pudessem incitar ou evidenciar clara ação contra o governo eram
banidas. Houve, com relação aos autores de literatura infantil, uma desatenção, provavelmente por falta de
conhecimento do gênero, a começar por alguns títulos marco na literatura infantil: A fada que tinha ideias, de
54
Fernanda Lopes de Almeida; Reizinho mandão, de Ruth Rocha; O rei de quase tudo, de Eliardo França; e ainda
Onde tem bruxa tem fada, de Bartolomeu Campos de Queirós. Todas essas obras eram, por meio da mistura de
fantasia e realidade, um protesto implícito; elas discutiam o poder totalitário vigente. Nesse contexto, Cagneti (2009,
p. 36) expõe:
Em função da censura militar, muitas das cabeças pensantes e criativas da época – não podendo expor
suas idéias de forma a não serem boicotadas – passaram a escrever literatura infantil e juvenil
(considerada um gênero menor e por isso ignorada pela censura), nela colocando seu protesto e suas
propostas. Nasceram assim os reizinhos mandões de Ruth Rocha, os exilados políticos e suas histórias
de Ana Maria Machado, os desestabilizadores do poder constituído, em Lygia Bojunga, o aprendizado
dos filhos de exilados, em suas peregrinações, sustos e correspondências de Werner
Zotz, as fadas e princesas rebeldes não mais obedientes aos ditames da tradição, de Bartolomeu
Campos Queirós, Ana Maria Machado e Fernanda Lopes de Almeida, O lobo desprovido de poder
diante de uma chapeuzinho instrumentalizada pela palavra, em Chico Buarque.
No ano de 1968 fundou-se a FNLIJ, um órgão de caráter técnico-educacional sem fins lucrativos, responsável
pela promoção da leitura no país, de direito privado e de utilidade pública estadual. A entidade atua como uma
sessão do Ibby9 no Brasil. Ela surgiu com a preocupação de formar leitores e lançou vários projetos de incentivo à
leitura. Em 1974 foi criado o Prêmio da FNLIJ, que é até hoje a distinção máxima no país, concedida aos melhores
de várias categorias da literatura infantil e juvenil: melhor livro de imagem, de criança, de jovem, de poesia,
informativo, de tradução e de projeto editorial, revelação (autor e ilustrador), melhor ilustração, livro-brinquedo e
9
O Ibby tem como objetivos maiores promover e difundir pelo mundo a literatura de qualidade para crianças e jovens.
Jella Lepman, alemã de Stuttgart, foi mentora do projeto de promoção da literatura infantil e infantojuvenil numa Europa
devastada pela Segunda Guerra Mundial. Seu intuito era auxiliar na cicatrização das feridas abertas com a guerra e
posteriormente preparar um futuro de paz e tranquilidade, por meio da formação de novas gerações educadas com
sensibilidade e letramento. Em 1956 Jella criou o Prêmio Hans Christian Andersen, como forma de incentivar autores e
ilustradores a fazerem bons livros para as crianças. Hoje esse prêmio é a maior honraria no mundo literário da infância e
da juventude.
55
teatro. Essas categorias foram sendo acrescentadas na avaliação da FNLIJ ao longo dos anos, e a premiação veio
valorizar a produção e incentivar a busca pela qualidade (SERRA, 1998).
As décadas de 1970 e 80 podem ser consideradas o período mais criativo na literatura infantil e juvenil. A
recém-queda do Ato Institucional n.º 5 deu fôlego às produções, e a nossa literatura passou a ser reconhecida
mesmo no exterior. Em 1983 foi dado a Lygia Bojunga o Prêmio Hans Christian Andersen, uma espécie de Nobel da
literatura infantil e juvenil.
Para Lins (2004, p. 46), muitos outros fatores contribuíram nos anos seguintes com o crescimento quantitativo
e qualitativo dos livros infantis no Brasil:
A – Qualidade artística da literatura e da ilustração brasileiras, com importantes prêmios conquistados
internacionalmente.
B – Informatização e automação, que reduzem os custos de produção e impressão em policromia.
C – Globalização e intercomunicação que possibilitam a produção de livros nacionais fora do Brasil,
com ganho de qualidade a preços mais baixos. É claro que isto facilita também a entrada no mercado
de editoras multinacionais, gerando uma competição, em alguns casos, desigual com as editoras
nacionais. [...]
D – Projetos e instituições, governamentais ou não, como Proler, Paixão de Ler, Bolsa Escola, feiras de
livro, grupos de estudo etc., visando à qualidade do que se lê no Brasil e à manutenção da criança na
escola.
Todas essas ações a favor da manutenção e do fomento de estudos voltados para a área vêm colaborar de
maneira significativa com a qualidade do gênero no país, contudo ainda existem muitas dúvidas em como lidar com
o livro infantil em casa e na sala de aula com as crianças. As produções atuais estão exigindo mais e mais repertório
dos pequenos e dos adultos, isso porque muitos textos remetem a outras leituras, exigindo uma bagagem leitora
56
mais ampla, pois muito se constrói em constantes revisitamentos às histórias clássicas. O que dizer então das
imagens nesses livros, que têm sua própria trajetória construída distintamente do texto verbal?
1.3 A ILUSTRAÇÃO EM LIVROS INFANTIS: BREVES HISTÓRIAS
A imagem concreta acompanhava o homem já nos primórdios. Desde as pinturas em cavernas, ele tenta
materializar o que seus olhos capturam do mundo, e encontra diversas formas e superfícies para essa
materialização: Uma delas é o livro.
O termo livro vem do latim, líber, que significa casca de árvore, material presumivelmente usado para gravar
os códigos da escrita, processo muito utilizado na China. Bem mais tarde, por volta do século VIII, foi desenvolvida a
primeira versão do papel, na época uma espécie de tecido, sendo este precursor dos papéis hoje.
A invenção do papiro pelos egípcios – com exemplares datados do II milênio a.C. – consistia em folhas
confeccionadas por meio de fibras de uma planta própria da região do Nilo, na África, com o mesmo nome. As fibras
sobrepunham-se molhadas formando uma trama. Depois eram colocadas para secar e marteladas até ficarem lisas.
Em outros lugares do Oriente (Assíria e Caldeia, principalmente) eram usadas ainda tábuas de argila e de madeira
gravadas com instrumentos cuneiformes. Na Ásia e na Grécia, também no mundo romano, utilizaram-se os
pergaminhos, produzidos pela pele de carneiro, cabra ou bezerro. Eram bem mais maleáveis que o papiro e
costurados para formar rolos chamados de volumen (WALTI, 2001).
Todas essas formas de livros primitivos se apresentavam em placas, ou em rolos. Foi durante o Império
Romano, no reinado de Augusto (27 a.C. a 14 d.C.), que se teve a ideia de dobrar o pergaminho em folhas e
costurá-las em cadernos. Surgia assim a primeira concepção de livro, que recebeu o nome de códice.
57
Angela Lago10, uma das principais ilustradoras do Brasil, fala sobre tal evolução na comunicação:
A grande revolução da comunicação, que precede e possibilita a revolução que hoje vivemos, acontece
com a invenção dos códices, bem antes da descoberta de Gutenberg. Códice vem de códex: tábula. Os
primeiros livros no formato que conhecemos hoje são denominados assim por oposição à forma do rolo.
Surgem graças ao pergaminho, suporte que é mais flexível que o papiro e que permite a dobra da folha
para a montagem de cadernos. O fácil manuseio do códice possibilita, além da leitura linear sugerida
pela seqüência de páginas, o acesso não linear, que é hoje a base da estrutura das novas mídias. Por
certo, esta possibilidade de acesso já é explorada no códice de forma bastante elaborada.
A elaboração dos livros, no contexto ocidental europeu, era feita por monges nas abadias e nos mosteiros,
onde predominavam os temas religiosos e as biografias papais. Uns ficavam com a tarefa de escrever, e outros, de
ilustrar ou iluminar as páginas com belas imagens e ornamentos, com predominância do dourado. Tais livros ficavam
em poder do clero e também da alta aristocracia. Com o surgimento das universidades, esse conhecimento de
escriba se espalhou, pois houve a necessidade de acelerar o processo de cópia do original dentro das
universidades, tornando maior a difusão do conhecimento.
As técnicas empregadas nas iluminuras dependiam do suporte: para o texto verbal, o bico de pena e a tinta
preta. Para o uso das cores havia dois tipos: nas folhas de papiro aplicava-se aquarela opaca e transparente, e nos
pergaminhos, têmpera.
O códice foi utilizado durante dez séculos, até a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg, no
século XV, porém a iluminura permaneceu como arte por quase um século depois. Walti (2001, p. 19) explica:
O primeiro livro impresso data de 1436, fruto da invenção da tipografia por Gutenberg, na Mongúcia.
Intermediário entre o in-fólio e a forma que conhecemos hoje, o incunábulo, palavra que originariamente
10
Citação retirada do site oficial da ilustradora. Disponível em: <http://www.angela-lago.com.br/codice.html>. Acesso em: 12/jjulho/2010
58
significa berço, é o tipo de livro impresso até o ano de 1500. Os incunábulos caracterizam-se, entre
outras coisas, pela letra irregular e imperfeita, pela ausência de paginação, assinatura e título. Não têm
margens ou capítulos nem sinais de pontuação. Nessa fase, o livro impresso imita o manuscrito, que
por longo tempo continua sendo mais valorizado.
Na Idade Média, a iluminura no contexto europeu cristão esteve presente quase que exclusivamente com
função religiosa, ou seja, as passagens bíblicas e a vida dos santos eram narradas mediante ela. Um dos melhores
exemplos de livro com imagens narrativas desse período é a Biblia pauperum, ou bíblia dos pobres, o mais popular
livro impresso com blocos de madeira datados do século VI. Conforme Manguel (2001, p. 123), “em essência, essas
„bíblias‟ eram grandes livros de figuras nos quais cada página estava dividida para receber duas ou mais cenas. [...]
Presa a um atril, aberta na página apropriada, a Biblia pauperum expunha suas imagens duplas aos fiéis dia após
dia, mês após mês, em seqüência”.
Além das iluminuras, os vitrais e retábulos das catedrais góticas também tinham como função difundir os
princípios cristãos aos homens. Eram o meio de maior eficácia na divulgação da religião e de suas crenças aos
analfabetos, a grande maioria.
Mas esse não era o único papel das iluminuras. Muitos artesãos trabalhavam com imagens que serviam
apenas de ornamento nos livros, como inventários da vida de um nobre ou ainda calendários que reproduziam as
estações do ano, como é o caso de As riquíssimas horas do Duque de Berry, dos irmãos Limbourg. A obra
representava em imagens as atividades próprias de cada estação. Tais calendários iluminados eram tradição na arte
medieval e possuíam em si um grau narrativo ao ilustrar as atividades de cada estação. Já o Livro das horas se
empregava no medievo para medição do tempo sagrado.
A ilustração do livro infantil nasceu com ele próprio. As primeiras obras europeias do gênero que circulavam
na mão de algumas crianças, mesmo não sendo dirigidas somente a elas, os chapbooks (figura 1) (NESYK, 2007),
59
comentado anteriormente, eram livretos de impressão artesanal que traziam em sua capa uma pequena ilustração
xilogravada disposta com o título e as informações do editor, tudo dentro de uma moldura ornada.
Os livros de tal período tinham por base os temas moralistas, característica que permanece até hoje em
muitos livros destinados às crianças, o que acaba em muitos casos por tolher a imaginação criadora, entediando os
pequenos com lições explícitas de boa conduta. O conteúdo desses livros explica-se pelo fato de o livro infantil ter
nascido vinculado à escola. Contudo Benjamin (2002, p. 58), ao comentar as primeiras publicações para crianças na
Alemanha do século XVIII, ressalta que “uma coisa salva o interesse mesmo das obras mais antiquadas e
tendenciosas dessa época: a ilustração”. Para ele, a ilustração escapou “ao controle das teorias filantrópicas, e
artistas e crianças se entenderam, passando por cima dos pedagogos”. Essa observação enfatiza a liberdade que o
ilustrador tem para criar suas imagens. Partindo do pressuposto de que pouca importância se deu à função da
ilustração no texto, o seu lugar em relação à infância determina, porém, uma atitude cuidadosa na criação das
imagens, e isso nem sempre é visto.Os estereótipos imagéticos circulam livremente nas mãos dos pequenos sem o
mínimo de critério nem de preocupação com a formação do olhar sensível e livre de preconceitos.
Powers (2008, p. 16) faz uma minuciosa investigação a respeito da história da literatura infantil ilustrada com
base nas capas dos volumes, afirmando que a ilustração nas capas dos livros está diretamente ligada à literatura
para crianças. Mais tarde, a indústria de livros passou a adotá-la para todos os gêneros, constatando que a capa
ilustrada é uma importante ferramenta de venda. Há de se comentar que nas duas primeiras décadas do século XIX
a ilustração assumia o papel de venda e decoração. Por isso, esse período foi classificado pelos historiadores de
literatura infantil como a era da frivolidade.
Muitas vezes o ilustrador da capa era diferente do ilustrador da história do livro. Não havia a preocupação da
unidade na imagem. Ademais, o processo de impressão da imagem tinha de ser feito por um gravador (gravurista),
que passava o desenho original para uma prancha de pedra (litogravura), uma chapa de metal por meio de incisões
60
e ácidos (água-forte) ou ainda uma prancha de madeira com entalhos (xilogravura). Estas eram as matrizes
entintadas e impressas manualmente, como um carimbo no papel. Somente no fim do século XIX desenvolveu-se
um método mecânico de reprodução da imagem original que dispensou a etapa descrita.
A reprodução mecânica em cores surgiu em 1837 com a utilização da cromolitografia11, e John Bufford
aperfeiçoou o processo conseguindo a impressão em até cinco cores. O aparecimento dessas novas ferramentas de
impressão influenciou no crescimento das ilustrações nos livros infantis e também terminou com o extravio dos
originais do ilustrador, que planejava os desenhos de forma manual e os transferia para diferentes gravadores que,
com diversas aptidões, acabavam por pasteurizar a expressão original do artista (OLIVEIRA, 2008a).
Em muitos casos as ilustrações de dentro do livro representam cenas de narração, ou seja, imagens de
pessoas narrando a história para grupos de ouvintes (figura 2) o que consistia numa prática muito comum. A
oralidade nas histórias era uma característica marcante nos primeiros séculos da literatura infantil e continua até
hoje. Um exemplo desse tipo de cena é a publicação de Contos da mamãe Gansa, de Perrault. A obra traz uma
gravura baseada no original manuscrito do autor. No século XIX a ilustração de cenas de narração foi substituída por
aquelas de caráter narrativo, que se baseavam no texto verbal (NESYK,2007)
11
Método de impressão caracterizado pela decomposição da imagem em partes, que recebem cores diferentes na
impressão.
61
Figura 2 – Gravura com cena de narração para versão francesa do Contos da mamãe Gansa
A arte de ilustrar está muito ligada à arte visual em geral, e no século XIX um movimento veio influenciar de
modo significativo esse meio: o simbolismo. Ele se encontrava na pintura e na literatura (poesia simbolista), e a
ilustração buscava sentido em seu conceito. Oliveira in Oliveira (2008b, p. 40) explica a composição da poesia
simbolista:
62
Seus poetas procuravam expressar um mundo de ambigüidades, dúvidas e fugacidades.
Profundamente metafórica e abstrata, a poesia simbolista renunciava a qualquer procura de
representação por meio de formas físicas. Em outras palavras, um primado da evocação sobre os
processos figurativos, narrativos e descritivos, elementos básicos da ilustração.
Embora os poetas simbolistas repudiassem a ilustração de seus poemas, esses conceitos migraram para a
pintura, e pautando-se em tal fugacidade e ambiguidade de sentido o movimento simbolista produziu imagens
“tangíveis e profundamente simbólicas”. Alguns pintores que na visão de Oliveira (2008c) devem ser considerados
para estudo são: “o pintor suíço Ferdinand Hodler (1853-1918), o alemão Carlos Schwabe (1866-1929) (fig 3), o
francês Puvis de Chavannes (1824-1898) [...], o russo Mikhail Vrubel (1856-1910)”.
Esses pintores e muitos outros oriundos do referido movimento vieram influenciar expressivamente os
ilustradores, sobretudo aqueles da literatura fantástica, com seus seres mágicos e irreais presentes nas fábulas e
nos contos que povoaram o imaginário da quase totalidade das culturas. Os contos de fadas possuem ilustrações
diferenciadas. Por isso, certos autores até os colocam como um gênero de ilustração, por ter características
específicas.
Ao considerar a variedade de temas e formas textuais do universo literário infantil, pressupõe-se que a
ilustração também tenha seguido essa diversidade formal. Talvez a ilustração para contos de fadas, por exemplo,
seja uma das que melhor esclarece a diferenciação de uma forma de ilustração para outra, principalmente pela
criação de seres fantásticos em mundos ilusórios, que seguem até hoje nos livros, nos jogos eletrônicos e nas
produções audiovisuais, sendo “uma grande revivescência de um medievalismo que se origina nas noites do tempo”
(OLIVEIRA in OLIVEIRA, 2008b, p. 18).
63
Figura 3 – The death of the Grave Digger, de Carlos Schwabe, 1895
Fonte: Disponível em: <http://oldpainting.blogspot.com/2007/10/carlos-schwabe-death-of-grave-digger.html>. Acesso em: 6 mar. 2011.
Por muito tempo a ilustração assumiu o papel de reproduzir de maneira fiel o texto verbal. As imagens
construídas ilustravam passagens culminantes da história verbal, havendo, portanto uma repetição por meio de outra
linguagem, a narrativa verbal, que se caracteriza, principalmente, pela linearidade espaço/tempo. Esse fator é muito
importante para entender o processo de mudança ocorrido nas ilustrações através de sua história.
A necessidade de enriquecer as histórias verbais com uma linguagem imagética que acrescentasse e não
repetisse o texto verbal fez com que os ilustradores buscassem novos recursos de produção e composição dessas
imagens, alterando os dois pontos típicos da narrativa: a linearidade e a espacialidade. Tais especificidades sofrem
um salto quando as imagens construídas para o texto verbal aparecem em uma óptica diferente, isto é, mudam sua
64
posição dentro do texto, a construção da composição, utilizando a perspectiva aérea e não frontal12. Isso resulta na
valorização do signo visual, porque seus elementos principais (a cor, a linha e a forma) ganham vida. A imagem
passa a ter vida própria, afinal dialoga com o texto, acrescenta e abre possibilidades de leitura. Nesse sentido, Lins
(2003, p. 36) comenta:
Ilustração extremamente literal ou puramente ornamental e decorativa não representa mais a
diversidade, a pluralidade e a riqueza de informações visuais a que as crianças de hoje têm acesso.
Informações fragmentadas pelo controle remoto e pela velocidade com que são transmitidas,
superpostas e tendo as mais variadas mídias como suporte. Não se trata de valorizar os modismos.
O conhecimento e a atualização constantes, quando calcados em um olhar atento e crítico, impedem
que as modas sejam seguidas cegamente.
Para o autor, mais importante que os modismos que acabam por pasteurizar e estereotipar as produções para
crianças é o manter-se atualizado quanto às inovações da área, mas sem se deixar seduzir por elas. É preciso um
olhar crítico e sensível, e essa percepção será mais claramente desenvolvida se os ilustradores souberem dos
estudos realizados na área da imagem, que hoje se multiplicam pelo mundo. Logo, Oliveira in Oliveira (2008b, p. 41)
enfatiza que a “literatura, assim como a imagem, é um prisma, não um espelho. Diante da individualidade e
abrangência dos olhares, não podemos dogmatizar ou circunscrever a imagem narrativa ao binômio narrardescrever”. Essa redução acabaria por diminuir as possibilidades de leitura da imagem.
12
Angela Lago, uma das principais ilustradoras brasileiras, faz uso desse recurso em muitos de seus livros, como em
João Felizardo e Outra vez.
65
1.4 O DESENVOLVIMENTO DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO INFANTIL BRASILEIRO
Os livros destinados às crianças surgiram pontualmente no Brasil no final do século XIX. A ilustração também
já se fazia presente com ilustradores que viriam a fazer parte das produções posteriormente destinadas a esse
público infantil, por suas imagens se distinguirem pelo humor e pela charge, embora fossem categorias ilustrativas
diferenciadas daquelas criadas para livros infantis.
Um caso muito particular para a história da ilustração no Brasil é o do ilustrador Angelo Agostini. Conforme
consta no livro de ilustradores brasileiros organizado pela FNLIJ (1989), em 1876 Agostini fundou a Revista lIustrada
(figura 4), considerada a mais importante manifestação humorística do século XX no Brasil. Em 1869 Agostini criou
também As aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora, as primeiras histórias em quadrinhos nacionais (figura 5). Essas
duas personagens se caracterizam pela originalidade, são essencialmente brasileiros e, por isso, relevantes fontes
históricas para a pesquisa de costumes e valores sociais.
66
Figura 4 – Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, n. 1, 1876. Técnica: pena, crayon e nanquim
67
Figura 5 – As aventuras de Nhô-Quim, de Angelo Agostini
Fonte: Disponível em: <http://www.universohq.com/quadrinhos/especial_agostini.cfm>. Acesso em: 6 mar. 2011.
Com a criação da Biblioteca Infantil pela Companhia Melhoramentos, em 1915, traduziram-se muitos contos
europeus. As ilustrações para esses contos foram construídas por ilustradores do país. Entre eles os mais
conhecidos são Calixto Cordeiro, Henrique Cavalleiro e Julião Machado. Exemplos de ilustrações para tais
traduções estão na primeira edição em cores de O patinho feio, de Andersen (FNLIJ, 1989), ilustrado por Francisco
Richter13 em 1915 (figuras 6 e 7).
13
Richter foi “vencedor do concurso para capa do primeiro número da revista A Cigarra, realizou uma série de telas do
museu sobre o paisagismo de São Paulo, para o Museu Paulista, e ilustrou toda a série Biblioteca Infantil, criada por
Arnaldo de Oliveira Barreto”.
68
Figura 6 – Capa de O patinho feio, de Hans Andersen
69
Figura 7 – Francisco Richter para O patinho feio, 1915
Os livros de Monteiro Lobato que têm sido reeditados até nossos dias são um caso à parte na literatura
infantil brasileira pela importância que o autor teve no desenvolvimento do gênero. Muitos foram os ilustradores que
se debruçaram em sua obra, materializando visualmente suas personagens: Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde,
Anastácia, Dona Benta e toda a turma do sítio. Quem abriu essa trajetória foi Voltolino (figura 8), ilustrador de
algumas obras de Lobato em suas primeiras edições. Belmonte, Willin, Rodolpho, Hirsh, Odiléia Toscanano, Jurandir
Ubirajara Campos, André Le Blanc, Paulo Ernesto Nesti, Manoel Victor Filho e Murilo Marques Mont (BRASIL, 1995)
foram outros ilustradores que nas décadas seguintes ilustraram as obras do escritor (figuras 9, 10 e 11).
70
Figura 8 – Voltolino para A menina do narizinho arrebitado
Figura 9 – André Le Blanc, para Memórias de Emília, 1962
71
Figura 10 – Jurandir Ubirajara Campos, para Obras completas de Monteiro Lobato, editora Centenário, S.d.
Figura 11 – Paulo Ernesto Nesti, para A reforma da natureza, 1971
72
Outras produções para crianças ficaram conhecidas no país por muitos anos; é o caso da primeira revista
especializada em temas infantis, O Tico-Tico, que apresentava quadrinhos em cores de pequenas histórias. Um dos
ilustradores referência da revista foi Luiz Sá. Ele criou personagens memoráveis, como Reco-Reco, Bolão e
Azeitona, sucesso nas décadas de 1930 e 40 (figura 12).
Figura 12 – Revista O Tico-Tico. Ilustração de Luiz de Sá. Rio de Janeiro, 1934
73
Nos anos 1970 a ilustração teve um papel importante na literatura. Ziraldo, por exemplo, lançou Flicts (1969):
um convite ao leitor para juntar a linguagem verbal com a visual num projeto gráfico inovador. Flicts conta a história
de uma cor muito rara e triste à procura de seu lugar no mundo. Camargo (1995, p. 64) enfatiza que a obra está
entre a narrativa visual – a história é contada em imagens – e o livro ilustrado, pois a imagem ilustra um texto verbal.
O próprio Camargo em Bruxas, longe daqui! (1988), cujos textos verbal e visual são de sua autoria, fez uso desse
diálogo entre as linguagens. Na história, a imagem narrativa tem autonomia sobre a narrativa verbal a ponto de
assumir por completo a narração, sobretudo na cena final (figura 13).
Figura 13 – Bruxas, longe daqui!
Fonte: CAMARGO, 1988
74
Num revisitamento ao conto João e Maria, dos irmãos Grimm, Camargo adapta a história a um contexto mais
brasileiro, com um João usando chapéu de palha e com a casa da bruxa cheia de doces mais brasileiros como, por
exemplo, pão de mel, sonho e brigadeiro, além de fogão a lenha “econômico” na cozinha.
Cagneti (2009, p. 21) discute “a necessidade de ler as imagens que acompanham o texto” dizendo:
Nosso mundo fala muito por meio delas e é preciso saber interpretá-las. As ilustrações [...]
complementam o texto verbal, dialogam com ele. Muitas são as vezes em que imagem substitui o texto
também. Na verdade, os bons livros, principalmente os infantis de hoje em dia, contam suas histórias
por meio das duas linguagens: a verbal e a visual.
Essa afirmação é visível em Bruxas, longe daqui!. Há um diálogo entre as linguagens, começando pela
palavra, que é completada pela imagem. Exemplo desse discurso está no momento em que o menino percebe que
precisa fugir; sabemos de sua intenção, porque a imagem mostra uma gaveta aberta com uma chave aparecendo
(figura 14).
Figura 14 – Bruxas, longe daqui!
Fonte: CAMARGO, 1988
75
Cada vez mais no decorrer das últimas décadas a imagem vem ganhando espaço na literatura infantil,
embora nem sempre com a qualidade desejável, porém essa abertura de espaço é condizente com o que se vem
observando nas mudanças culturais significativas e unificadoras de comportamento da sociedade globalizada: o
excesso de imagens de leitura rápida e fragmentada. Apesar de os livros infantis virem na contra corrente, eles
também já começam a apresentar tais características.
Uma importante mudança surgiu em relação à forma de construção e de disposição das ilustrações dos livros
nos últimos anos. Os ilustradores passaram a fazer todo o projeto gráfico da obra, desde a escolha dos tipos até sua
localização dentro das páginas e a disposição das ilustrações. Essa autonomia gerou uma unidade muito maior do
texto com as ilustrações, e muitas vezes o próprio formato do texto e a posição dele formam uma imagem. Um
exemplo significativo é Chiquita Bacana e as outras pequetitas (figura 15), com texto e ilustrações de Angela Lago.
Nele o texto do livro aparece, muitas vezes, inserido dentro da ilustração, adotando o caráter representativo de um
livro de páginas abertas, de maneira a revelar o texto, isto é, a própria história contada pela protagonista. As
referidas mudanças foram dando ao ilustrador a autonomia de trabalho quanto ao objeto livro como um todo,
priorizando o formato e o diálogo entre as linguagens, a passagem de tempo entre as páginas do livro e do texto
verbal, como também a dobra das páginas. Todos esses elementos são fundamentais para dar ritmo à leitura,
enriquecendo-a e aumentando as possibilidades interpretativas do leitor. Lins (2004, p. 47) reforça:
Com as múltiplas possibilidades de recursos gráficos disponíveis, o ilustrador está virando, em todo o
mundo, cada vez mais um diretor de arte, que pensa no livro de uma forma geral e não só nas
ilustrações. O resultado é um livro mais completo e mais dinâmico, já que na diagramação do texto
passam a ter importância o que está escrito e como está escrito.
76
Figura 15 – Chiquita Bacana e as outras pequetitas
Fonte: LAGO, 1985
A partir do fim dos anos 1970, um novo gênero na literatura infantil começou a ganhar corpo e autonomia, de
modo a antecipar para o universo literário infantil as características de hibridação pós-moderna: a narrativa visual.
Agora é a imagem quem assume caráter literário e dispensa a presença do texto verbal, exceto quando este serve
para ilustrar a imagem. O pioneiro no gênero no Brasil foi Juarez Machado, com o livro Ida e volta, publicado em
1976. Os anos seguintes foram decisivos para a consolidação da narrativa visual. A FNLIJ criou o Prêmio Luís
Jardim de Melhor Livro de Imagem, o que incentivou ilustradores a assumir a autoria das produções de narrativas
visuais. Hoje já são centenas de publicações nessa linguagem. Entre os mais conceituados e atuantes na área estão
Angela Lago, Rui de Oliveira, Roger Mello, André Neves, Nelson Cruz e Mario Vale.
Nos dias de hoje a literatura infantil brasileira está alinhada com as tendências mundiais e ganha o
reconhecimento dos maiores órgãos do mundo na área.
2 O LIVRO DE NARRATIVA VISUAL
No
primeiro
capítulo
procurou-se
narrar
a
trajetória
da
literatura
infantil,
principalmente para entender o texto visual, que cada vez mais ganha destaque nas
produções atuais. Neste segundo capítulo será discutido um gênero específico da literatura
infantil e juvenil: a narrativa visual em livros.
Qual o valor dessa linguagem para o desenvolvimento da percepção dos códigos visuais? Quais os caminhos
de leitura da imagem para se levar de fato à compreensão e síntese da história imagética? Quais os recursos
utilizados pelos ilustradores para se ter a atenção do pequeno ao grande leitor?
Todas as questões expostas referentes à narrativa visual em livros serão tratadas ao longo deste capítulo, a
começar pela conceituação e origem da linguagem, em virtude da grande variedade de expressões usadas para
nomear o gênero: livro sem texto, história sem palavras, livro de imagem, história muda, livro de ilustração e álbum
de figuras. O termo “narrativa visual” foi adotado no presente estudo, cujo foco são as histórias construídas com
imagens pertencentes à literatura infantil e juvenil. Não se tem a pretensão de excluir os outros termos, contudo
alguns deles serão alvo de reflexões.
A narrativa visual em livros pode ser considerada um gênero da literatura, pois os conceitos vêm da arte
literária. Por isso, a fim de compreender a narrativa visual faz-se preciso buscar nessa fonte os índices que permitam
classificar tal produção imagética como livros de narrativa visual. Para os autores que se dedicam à análise literária
narrativa, esta contém elementos próprios que a distinguem. A falta de alguns desses elementos fazem com que ela
perca o sentido.
78
Segundo Gancho (1991, p. 5),a maioria das pessoas é capaz de perceber que toda narrativa tem elementos
fundamentais, sem os quais não pode existir; [...] Em outras palavras a narrativa é estruturada sobre cinco
elementos principais: enredo, personagens, tempo, espaço, narrador.Esse último elemento também pode ser visto
como “foco narrativo ou ponto de vista” segundo Abdala Júnior (1995) pois trata da visão de quem narra a história.
As imagens da arte ou da fotografia, por exemplo, podem possuir grau narrativo, porém na maioria das vezes
não têm a sequência nem todos os elementos que constituem uma narrativa, com começo, meio e fim. Uma imagem
única fornece índices capazes de ser transformados em um texto narrativo ou em um enredo construído por meio da
descrição verbal de uma imagem. Já a narrativa visual é um texto completo e não necessita de reforço verbal, mas
de interpretação, como qualquer texto literário.
Os livros que contam histórias apenas com imagens contêm todos os elementos estudados na narrativa
literária, como o sentido lógico edificado por intermédio de um enredo; um fio condutor, que pode ser uma
personagem ou um objeto; um tempo determinado de maneira cronológica, psicológica ou ambos; e um espaço.
Ademais, a narrativa visual em livros traz diferenças sutis em relação a qualquer outra imagem de cunho narrativo.
Talvez por isso gere problemas quanto à sua conceituação, que não é fechada.
A característica aberta da narrativa visual em livros é um dos fatores que a torna tão particular. Poder-se-ia
dizer que ela carrega uma especificidade que em vários meios sociais e culturais vem alterando o sentido de
relações e verdades absolutas: o hibridismo14.
Antes da ascensão dos meios de comunicação de massa, os signos, as fotos e os textos quase não se
misturavam; eram estratificados em si mesmos. Depois do jornal, “palavra, foto, diagramação passam a conviver em
sintaxes híbridas, resultantes da habilidade de manipular as linguagens de uma forma visual e espacial”
14
Termo muito debatido por teóricos que estudam a cultura contemporânea. Entre eles estão Néstor García Canclini e
Benjamin Abdala Junior, ambos abordados neste estudo.
79
(SANTAELLA, 2001 p. 9), considerando que todas as linguagens são híbridas na raiz que as compõe. No texto
verbal a mescla híbrida acontece na utilização do tempo e do espaço (que é próprio da linguagem sonora também),
além das várias leituras que deram origem aos textos, particularidade cada vez mais comum na pós-modernidade.
Ou seja, cada vez mais o leitor deve ter uma bagagem de leitura de múltiplos gêneros para entender as entrelinhas
da imagem e da palavra. Nas entrelinhas do texto visual essa hibridização aumenta de grau, pois nela é possível ter
as características sonoras do ritmo na construção das imagens, isto é, o autor cria intencionalmente ritmos variados
que geram contrastes na imagem. Tais recursos conduzem o olhar do leitor pelas páginas do livro. O uso do roteiro
verbal para a sequência das imagens, recurso apropriado do cinema, e o emprego dos elementos da narrativa –
enredo, tempo, espaço, personagem e narrador – proporcionam dinamicidade à narrativa.
A imagem tem função de narrativa quando percebemos uma mutação sequencial da figura com sentido claro
ou quando ela demonstra determinada ação. Essa função pode apresentar diferentes graus de narratividade. Isso é
notado nas narrações de uma história, de uma cena ou apenas de uma ação. A função narrativa aparece, também,
nas cenas religiosas da Idade Média, nas histórias em quadrinhos e hoje sobretudo nos livros de literatura infantil e
juvenil. Oliveira (2008a, p. 109) afiança:
Quando as imagens em sua espacialidade incorporam a dimensão temporal, seja pela representação
de ações e eventos, seja pela articulação de vários quadros ou cenas, em seqüências, expondo uma
ordem de acontecimentos temporal, são imbuídas da fluência narrativa.
Referência no meio artístico que discute a leitura de imagens, Manguel vê mudanças na concepção das
imagens narrativas na história da arte que talvez possam auxiliar na compreensão do porquê do uso generalizado
do termo para a arte visual e literatura. Assim afirma o autor:
80
Formalmente, as narrativas existem no tempo e as imagens no espaço. Durante a Idade Média, um
único painel poderia representar uma seqüência narrativa, incorporando o fluxo do tempo nos limites
de um quadro espacial, como ocorre nas modernas histórias em quadrinhos, com o mesmo
personagem aparecendo várias vezes em uma paisagem unificadora, à medida que ele avança pelo
enredo da pintura. Com o desenvolvimento da perspectiva, na Renascença, os quadros se congelam
em um instante único: o momento da visão tal qual como percebida do ponto de vista do espectador.
A narrativa, então passou a ser transmitida por outros meios: mediante “simbolismos, poses
dramáticas, alusões à literatura, títulos”, ou seja, por meio daquilo que o espectador, por outras
fontes, sabia estar ocorrendo (MANGUEL, 2001, p. 24).
Nas manifestações imagéticas de qualquer ordem, para haver uma narrativa completa ela precisa apresentar
todos os elementos da narrativa (enredo, personagem, tempo, espaço, narrador). A narrativa visual faz-se presente
nas pinturas da Idade Média com as características citadas por Manguel, como também nas histórias em
quadrinhos. Porém, a partir da Renascença ela passa a não ser completa; tem grau narrativo apenas, porque lhe
faltam elementos. Ela não se traduz em si mesma, necessita de outras referências para que se complete. Contém
somente índices narrativos e não pode ser considerada uma narrativa visual.
A narrativa visual em livros aproxima-se da verbal, pois segundo Manguel (2001) o início e o fim do livro não
estabelecem limites para o texto. Este transcende o espaço e nunca vai existir integralmente em nossa mente,
apenas em flashes; pequenos recortes do texto resumirão a obra.
No caso da escrita e da oralidade, o narrador descreve uma cena em palavras. Já na imagem a história será
narrada na sequência das cenas e poderá ser oralizada, conforme o universo particular do leitor. Porém nem todas
as histórias presentes nos livros possuem grau de narratividade equivalente. Há histórias que se caracterizam pela
leitura fechada, isto é, o autor não permite interpretações abertas, e outras oferecem grandes possibilidades de
leitura: linear, aos saltos, de trás para frente; gama quase inesgotável de possibilidades que perpassam todos os
tipos de leitores.
81
A narrativa visual em livros é um gênero novo no Brasil. Por esse motivo, sua classificação é confusa. As
publicações de estreia datam do fim de 1970 a início de 1980 e consolidaram-se de maneira definitiva quando a
FNLIJ, no ano de 1981, abriu o Prêmio FNLIJ Luís Jardim de Melhor Livro de Imagem. Os primeiros a ganharem tal
prêmio foram o catarinense e pioneiro do gênero no país, Juarez Machado, com o livro Ida e volta, e Eva Furnari
com a coleção “Peixe vivo”. Desde então, a narrativa visual vem se firmando cada vez mais, com produção contínua
de títulos. Não se tem com este estudo a pretensão de discutir o uso correto do termo; apenas se fará uma reflexão
sobre o porquê da escolha do termo narrativa visual.
Camargo (1995) foi um dos que iniciaram o debate a respeito da narrativa visual na literatura infantil. Antes
dele Maria Helena Martins(1989) havia feito uma análise de Ida e volta de Juarez Machado. Em Ilustração do livro
infantil, o autor usa as duas expressões – livro de imagem e livro sem texto – em um mesmo parágrafo para
conceituar o gênero e ainda cita algumas outras nomenclaturas existentes:
Livros de imagem são livros sem texto. As imagens é que contam a história. Os livros com pouco
texto, em que o papel principal cabe à ilustração, também podem ser chamados de livros de imagem.
A expressão “livro de imagem” não é de uso generalizado. Por necessidade de estilo (para não
repetir as mesmas palavras) ou de conceito (para definir melhor), várias outras expressões têm sido
usadas: álbum de figuras, livro mudo, livro sem texto, texto visual, etc. (CAMARGO, 1995, p. 70).
Camargo optou pelo termo “livro de imagem”, contudo verifica-se que todos os termos mencionados têm
deficiências de conceituação. A começar pelo “livro sem texto”. Como um livro de narrativa construído por imagens
pode não ter texto? No universo da leitura imagética os textos visuais utilizam recursos da linguagem dos signos
representativos: índices, cores, formas, linhas, composição e vazios que possibilitam a leitura de uma história. Num
texto verbal os códigos linguísticos serão, num primeiro momento, decifrados, para mais tarde serem compreendidos
e, por fim, interpretados pelo leitor. A imagem passa praticamente pelas mesmas fases de leitura. Embora a
82
construção e processamento das imagens pelo cérebro difiram da construção e leitura de um texto verbal, pois as
imagens se organizam no espaço e podem ser priorizadas em sequência diferente na mente de dos leitores, isso
não ocorre com o texto verbal que se organiza no tempo e em sequência.
O que se pode entender das confusões sobre a linguagem é que na época em que ela surgiu e, muito mais
tarde nas discussões sobre a linguagem o conceito de texto referia-se somente ao verbal as discussões estavam
aparecendo pontualmente, um exemplo delas está em Fávero e Koch (1984):
É lícito concluir, portanto, que o termo texto pode ser tomado em duas acepções: texto, em sentido
lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de
um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc.), isto é, qualquer tipo de
comunicação realizado através de um sistema de signos.[..]
Atualmente é fato que o termo “livro sem texto” não condiz mais com os conceitos de texto que incorporam as
diferentes linguagens organizadas e manifestadas pelo ser humano.
O termo “álbum de figuras”, originalmente surgido na França pela série de álbuns de Père Castor, editada
pela Flammarion, em Paris, “iniciada em 1932, foi influente na Inglaterra e nos Estados Unidos” (POWERS, 2008, p.
49). A série compõe-se de álbuns ricamente ilustrados em que a condução da história cabia sobretudo às imagens,
algumas com grau narrativo maior e outras com a função de jogo com imagens, como é o caso do livro Ils font
comme ci, elle fait comme ça (“elas fizeram assim, ela faz assado”), de 1934, de Paul Faucher e ilustração de
Chacane. “[...] Consiste em um livro com páginas de cartão perfuradas que formam um jogo sobre profissões em
que as palavras no verso da figura servem de pista” (POWERS, 2008).
Nomear uma história construída somente por imagens de álbum de figuras reduz a conceituação do gênero.
Muitos livros que nada têm a ver com literatura infantil e juvenil são álbuns de figuras; coleções de figurinhas são
83
álbuns de figuras. Sendo assim, esse termo está ligado à coleção de algo, à memória de um determinado tema. Por
esse motivo, ao analisar a produção do gênero, confere-se a fragilidade do termo.
Outra expressão recorrente é “livro mudo”. Questiona-se, todavia, que ao ler uma narrativa visual o silêncio
não está na mente do leitor, e isso acontece para qualquer espécie de texto; a escolha de verbalizar a escrita (em
imagem ou palavra) é do leitor. Martins (1989) verificou que esse termo foi o primeiro ser verbalizado por uma
criança ao folhear o livro Ida e volta de Juarez Machado, na ocasião ela realizava um estudo sobre esse livro. O
termo a partir de então se disseminou.
A FNLIJ classificou o gênero como “livro de imagem”, nome adotado pela maioria dos teóricos da área e pelo
próprio Camargo (1985), isto explica a força de uma instituição, porém, é necessário questionar quão abrangente é o
termo para uma linguagem tão específica. Um livro de imagem pode ser de fotografias, por exemplo, contendo
imagens sem ligações umas com as outras, que talvez tenham em si um discurso indicialmente narrativo, contudo
não dependem das demais para contar uma história. Entretanto faz-se preciso refletir sobre a condição pedagógica
que essa literatura com pouco ou nenhum texto verbal desempenha. Para facilitar a compreensão do maior número
de pessoas de diversos meios, o termo “livro de imagem” é mais acessível. É pensando em facilitar que, muitas
vezes, denominações pouco apropriadas se difundem e ganham força. A discussão é de uma determinada categoria
pertencente a um gênero que, a cada década, ganha mais força qualitativa e quantitativa no mundo: a literatura
infantil e juvenil. Portanto, deve-se ter clareza quanto ao termo a ser usado.
Cagneti (2009, p. 37), em seu livro “Literatura infantil e juvenil: uma história de tantas histórias”, comenta as
confusões acerca do termo e elege o que considera mais apropriado, citando ainda um exemplo bem pertinente,
pois para a autora é importante observar a nomenclatura a fim de não distorcer a função do ilustrador. Por encontrar
narrativas visuais chamadas livros de ilustração, diz:
84
Como chamar livro de ilustração uma obra que se conta através de imagens, ou seja, quando elas –
as imagens – em vez de ilustrar uma história contam uma história? Sem dúvida, a nomenclatura
correta para esse tipo de criação é narrativa visual. Mesmo porque já temos, hoje, um exemplo de
narrativa visual que foi buscar um texto verbal para ilustrá-lo. É o caso da obra inovadora de Roger
Mello, Desertos, que busca na poesia de Roseana Murray a sua ilustração.
Ao ler esse livro constata-se o porquê da confusão entre texto e ilustração. Na ficha catalográfica, a autoria do
livro é de Murray, e a ilustração, de Mello. Ou seja, houve um equívoco da editora. Murray deixa claro no prefácio da
obra sua condição de ilustradora da imagem: “Senti um desejo imenso de ilustrar aqueles desenhos com meus
poemas”. Adiante escreve: “O Roger viu e desenhou. Eu recordei e escrevi. Embora não conheça pessoalmente o
deserto, eu o conheço com o coração, através de todos os textos que li, através dos belos desenhos de Roger
Mello” (in MELLO, 2006).
A escolha do termo “narrativa visual” para esse gênero deve-se ao fato de que, independentemente da
técnica empregada para se obter a imagem, o livro vai contar uma história contendo todos os elementos de uma
narrativa literária, sem importar qual a linguagem escolhida (verbal ou visual), no suporte livro ou em outros. Contudo
o termo sozinho não situa o gênero em um específico. Por isso, é necessário o acompanhamento de “livro”, para que
se veja que a narrativa a que se refere pertence ao universo dos livros e, de modo mais particular, dos livros infantis
e infantojuvenis, e não a quadros ou fotografias sequenciais, por exemplo.
Conforme Rui de Oliveira (2008c), renomado ilustrador brasileiro, toda imagem tem uma história para contar e
pode apenas oferecer ao leitor algum índice, alguma forma que abra espaço para o pensamento elaborar, fabular e
fantasiar, para acontecer uma narração. Portanto, uma narrativa visual é capaz sim de se dar em uma única
imagem. Embora haja essas discordâncias nas nuanças que classificam a narratividade da imagem, reforça-se
neste estudo o lugar a que pertence o gênero, a literatura, e como tal deve conter os conceitos já expostos: enredo,
tempo, espaço, personagem e narrador.
85
As narrativas visuais em livros são histórias contadas por imagens, que só ocorrerão plenamente ao virar das
páginas, e não de maneira isolada. A sua forma narrativa poderá variar: ser linear e, claro, dar saltos e deixar
lacunas para o leitor pensar. Contudo haverá sempre um fio condutor que levará à próxima página e se manifestará
com um começo, um meio e um fim.
No início do século XX surgiram na França, segundo Coelho (1997, p. 170), os álbuns de figuras, primeiros
livros direcionados para o público infantil. Um dos pioneiros nesses álbuns foi Paul Faucher, que lançou em 1932 na
França os conhecidos álbuns de Pères Castor, uma coleção de livros para o público infantil que vendeu milhões de
exemplares na França e em outros 19 países. Entre tais livros está o de um brasileiro já citado, Juarez Machado,
com o título em francês Une aventure invisible. No Brasil a coleção está traduzida hoje em títulos separados, e o
livro de Machado foi publicado como Ida e volta pela editora Agir. Vale lembrar que essa narrativa visual é
considerada pela crítica uma das melhores já publicadas.
Além de Juarez Machado, há outros autores que trabalham com a narrativa visual e produzem excelentes
histórias que envolvem o leitor com belas imagens. Entre eles estão Angela Lago, Eva Furnari, Roger Mello, Marcelo
Xavier, Rui de Oliveira, Guto Lins, Ivan Zigg, Fernando Vilela, André Neves, Nelson Cruz e tantos outros.
Ao analisar a produção de narrativas visuais mediante os títulos premiados entre os anos de 1981 (quando a
FNLIJ lançou o Prêmio Luís Jardim de Melhor Livro de Imagem) e 2008, é possível transitar por entre inúmeras
temáticas: adaptações de contos, crítica social, ludismo, realismo social, informação, poesia, humor etc. Alguns
desses títulos são de difícil classificação e transcendem às características de livros de narrativa visual destinados à
infância e juventude, pois são livros de grande sensibilidade estética que deixam o leitor com aquela interrogação
persistente, própria de uma obra de grande valor artístico, que possibilita a leitura atemporal pela característica
aberta e repleta de signos do universo que representa.
86
A leitura de livros de narrativas visuais, possuidores de valores estéticos e poéticos, coloca-nos diante de um
questionamento: Esses livros, mesmo submetidos aos cortes editoriais para barateamento do custo de produção,
conseguem ultrapassar os limites e ficam em um lugar suspenso, entre a arte visual e a literatura, duas áreas
artísticas distintas, transitando entre ambos os universos, às vezes mais em um que em outro. Então, como
conceituá-los? Simplesmente encontrar uma gavetinha para enquadrá-los e assim apaziguar as dúvidas? É provável
que isso não seja possível, contudo essas questões suscitam reflexões.
Quando a narrativa visual começou a ser publicada no suporte livro, tinha função utilitária, como já vimos,
com as biblias pauperum, porém, ao término do século XIX um novo conceito foi criado na França: livre d’artiste. Ele
se diferenciava do livro ilustrado para crianças na época, por dar tratamento luxuoso e prioritário à ilustração em
relação ao texto verbal. O livro como objeto passou a ganhar força e esporadicamente na história da arte ocidental
ser fonte de inspiração e materialização da arte.
A história da ilustração tem mostrado que os fazedores de livros para crianças são em grande parte artistas,
embora fazer narrativas visuais utilizando esse suporte esteja diretamente ligado a um mercado editorial. Muitos
artistas, no entanto, conseguem transpor essas barreiras, impossibilitando o fechamento da gaveta, seja pela forma
como constroem a narrativa visual, com todos os seus signos representativos, seja na conscientização de que o
livro, enquanto objeto, tem dimensões de tempo e espaço. Muitos desses títulos são difíceis de classificar em faixa
etária, o que, vale afirmar, é um modo aceitável de avaliar.
Alguns autores têm uma enorme facilidade de transitar entre os universos infantil, juvenil e adulto. Um
exemplo é Angela Lago, que declara não saber mais qual é o seu público leitor principal. Ela diz que não faz
narrativas visuais pensando em quem as lerá, e seus temas são diversos: dos infantis aos contos, das poesias à
crítica social.
87
Ângela Lago utiliza muito os recursos espaciais adotados por crianças em suas ilustrações, como acentuar
nitidamente diferenças de tamanho conforme hierarquias ou enquadrar de forma panorâmica a cena, na qual a visão
do leitor é de cima para baixo, o que possibilita a inserção de mais cenas e elementos num único quadro. Alguns
exemplos dessas características em suas narrativas são: Outra vez, Chiquita Bacana e as outras pequetitas, Cenas
de rua e João Felizardo.
O sucesso da narrativa por imagens dependerá do objetivo do autor com relação ao público. Lins (2003 p. 36)
descreve as características que possibilitam esse sucesso:
Projetos gráficos que conversam com as possibilidade do próprio objeto livro, linguagem de
quadrinhos, movimento de cinema, metáforas, metalinguagem, elementos visuais, enfim todo o
conjunto de peculiaridades da narrativa visual, aliado às idéias e à sensibilidade de cada ilustrador,
conduzem o leitor na sua tarefa de perceber ou, simplesmente, ler as imagens.
O que faz esse gênero se manter vivo e circulando nas mãos de crianças e adultos é a possibilidade de ligar
esses dois universos, aparentemente distintos, pois ele propicia diferentes leituras condicionadas à visão de mundo
do leitor e de sua cultura visual.
A imagem necessita de tradução. Imagens criadas por povos ameríndios como é o caso dos brasileiros, por
exemplo, fogem dos canônes das belas-artes com que os olhares europeus e norte-americanos estam
acostumados. Esse olhar é muito distinto do dos povos mestiços e tropicais do Brasil, que trazem “confluências de
tradições culturais diversas e de artesanatos ricos”, como expõe Ana Maria Machado para a introdução do livro de
Oliveira (2008c). Essa tradução pouco ocorre quando ilustradores brasileiros transpõem fronteiras e levam a
ilustração brasileira para fora. Ao valorizar a imagem para a infância e auxiliar na sua manutenção como bem
cultural por meio de estudos a respeito do gênero, é possível gerar discussões mais aprofundadas sobre seu papel
para a cultura em geral.
88
2.1 O ESTUDO DA IMAGEM NARRATIVA
Entende-se comumente o mundo formulando códigos que distinguem uma árvore de uma montanha, um gato
de uma onça, e decodificam-se assim as imagens e objetos físicos. Porém decodificar não é ler. A leitura pressupõe
um estado de alerta para os signos que, apresentados muitas vezes como índices, contextualizam o objeto da leitura
num tempo e espaço que serão percebidos pelo leitor conforme seu próprio conhecimento acerca de outras leituras
e da forma como vê o mundo.
Voltando à questão dos códigos e signos usados nesses livros, por que alguns autores trabalham dessa
forma? A resposta está na arte, ou seja, na perspectiva de tornar aquelas imagens fontes inesgotáveis de leitura que
ultrapassam o tempo vivido.
A imagem hoje em qualquer meio, focando na aqui citada narrativa visual no contexto literário infantil,
caminha com os outros subgêneros da referida literatura. A forma de ler e analisar as histórias já não supre as
necessidades do novo olhar sobre o mundo; a literatura infantil vem exigindo do leitor, como assegura Cagneti
(2001, p. 17), um conhecimento anterior ao texto lido, para poder perceber “o que está nas entrelinhas”.
Os textos visuais e verbais cruzam-se entre si e uns com os outros. Isso requer do leitor um olhar cuidadoso
para verificar como o texto se complementa e quais referências a outros textos faz (aqui se referindo à linguagem
verbal e à visual). Faz-se preciso uma nova forma de leitura, na qual o leitor é o autor e também participante ativo da
história, cujo sentido já não é mais fechado, pois este mudará de leitor para leitor com base na relação que cada um
faz com o texto, considerando suas vivências pessoais.
89
A construção desse tipo de linguagem vem crescendo consideravelmente, sobretudo no contexto brasileiro. O
motivo pode estar na sua função para a infância, mas também numa crescente autonomia da imagem acerca do
texto verbal e na abertura de possibilidades que carrega em si tanto quanto a palavra.
Ao se aventurar pela análise e leitura de imagens, deve-se saber quais caminhos percorrer para não cair em
contradição ou alçar voos cegos diante do que é apresentado aos olhos em forma de representações imagéticas. Há
uma ciência que investiga os signos que constituem as imagens, sejam elas representativas, indiciais ou simbólicas:
a semiótica.
A palavra semiótica, conforme Pignatari (2004, p. 15), vem do grego semeion e significa signo. Portanto, é a
ciência que estuda os signos, e estes são “toda e qualquer coisa que substitua ou represente outra” em diferentes
níveis mediante a linguagem visual ou verbal.
Foi somente no início do século XX que a semiótica surgiu como disciplina. Assim, é muito recente e não
detém o caráter de legitimidade das outras ciências, humanas, como filosofia, ou exatas “puras”, como matemática e
física (PIGNATARI, 2004).
A leitura de um texto, verbal ou visual, terá sempre um encaminhamento dado pelo autor, que possibilitará ao
leitor não fugir ou se perder da mensagem predeterminada, como lembra Jouve (2002). Esses pontos de ancoragem
estão nos signos visuais e linguísticos, mas isso não garante fechamento do texto ao determinado pelo autor: “O
texto [...] pode apenas encaminhar a leitura: é o leitor que vai concretizá-la” (JOUVE, 2002, p. 74).
Uma particularidade do texto narrativo visual está nos diferentes meios de lê-lo. É de fundamental importância
saber disso, dada à condição da narrativa visual em livros. Esta consiste em uma linguagem híbrida, que se cruza
com outras linguagens e ocupa espaços postulados apenas pela linguagem verbal, em que a imagem está
normalmente como coadjuvante.
90
2.2 LIVROS DE NARRATIVA VISUAL: UM TRANSITAR ENTRE ARTE LITERÁRIA E ARTE VISUAL NARRATIVA
As linguagens da arte estão em constante mutação. Se até a Idade Moderna a narrativa era forte meio de
transmissão de pensamento, hoje essa condição está se diluindo como em qualquer outro meio que lida com
narrativas: a história, as declarações universais, o cinema, a literatura.
Novos tempos são vividos pelo advento das grandes tecnologias de comunicação, que diminuíram ou
acabaram de vez com as distâncias. Conceitos de tempo e espaço são sentidos de outra forma.
Edgar Morin discute a nova condição na sociedade pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente os
anos 1960, em sua obra O espírito do tempo: neurose e necrose (título brasileiro: Cultura de massa no século XX),
reconhecendo o nascimento de uma “terceira cultura”, que a sociologia americana denominou de mass culture
(cultura de massa), “aquela oriunda da imprensa, do cinema, do rádio e da televisão, que surge, desenvolve-se,
projeta-se ao lado das culturas clássicas – religiosas ou humanistas – e nacionais” (MORIN, 1984, p. 14).
Hoje, quem sabe, poderia se dizer que há uma quarta cultura, que está em franco desenvolvimento e
mudando de maneira considerável o modo de agir e pensar no e sobre o mundo. Ela está ligada às redes de
relações pela internet, pois nela as pessoas socializam, criam comunidades e novas linguagens de comunicação. As
informações vêm fragmentadas numa página também fragmentada. Linguagens, visual, sonora e verbal, dividem um
mesmo espaço e dialogam ou não entre si. As relações não se processam mais pela presentificação e sim por meio
do virtual. O sujeito constrói uma rede de relacionamento com pessoas de vários países, com diferentes culturas, e
tem ao seu dispor todas as informações possíveis acerca do que precisa saber em alguns cliques; resolve
problemas e faz compras, tudo sem sair de casa.
As verdades absolutas, as grandes teorias lineares positivistas, que normatizavam as sociedades, e o
pensamento cartesiano desintegram-se diante da nova visão de mundo, caracterizada pela falta de fronteiras entre
91
as linguagens. Em nosso continente ela é mais perceptível pela constituição étnica cultural americana, latinoamericana e brasileira. Desde o fim dos anos 1970 vivemos uma transformação do imaginário. As noções de público
e privado têm suas fronteiras fragilizadas até o ponto da extinção vivida hoje em muitas áreas. “Emergem novas
paisagens nos imaginários, assim como acontece um crescimento desmedido do mundo simbólico” (ABDALA
JÚNIOR, 2004, p. 26).
De acordo com esse panorama, novos conceitos aparecem para esclarecer as novas formações sociais e a
construção de seus bens culturais, como, por exemplo, transculturação e hibridismo.
O termo transculturação foi usado pela primeira vez por Fernando Ortiz, sociólogo cubano que examinou os
efeitos resultantes das trocas culturais e econômicas durante o “empreendimento colonial” na América Latina. Para
ele, o termo substitui mais corretamente os termos de aculturação e desculturação, pois expressa melhor “o
processo transitivo de uma cultura para outra” (ABDALA JÚNIOR, 2004, p. 88).
Abdala Júnior (2004, p. 99) explica a etimologia da palavra híbrido:
Híbrido, do grego hybris, cuja etimologia remete a “ultraje”, corresponde a uma miscigenação ou
mistura que viola as leis naturais. [...] A palavra remete ao que é originário de “espécies diversas”
miscigenado de maneira anômala. [...] Híbrido é também o que participa de dois ou mais conjuntos,
gêneros ou estilos. Considera-se híbrida a composição de dois elementos diversos anomalamente
reunidos para originar um terceiro elemento que pode ter características dos dois primeiros
reforçados ou reduzidos.
Com base na óptica etimológica de Abdala Júnior (2004), é possível ter em mente a narrativa visual em livros
como uma linguagem híbrida, pois nela se mesclam arte visual e arte literária, podendo em muitos casos associar
também a linguagem do cinema. Então, qual seria a forma mais apropriada de analisar essa linguagem? Não se
pode pensar a imagem e esquecer de que forma e porque ela se materializa no livro. Também não se deve analisála somente pela visão da literatura, porque a ferramenta de comunicação é a imagem.
92
Os parâmetros empregados para análise das linguagens anteriores a essa paisagem exposta não são mais
suficientes. Estamos diante de uma hibridação. Os gêneros relacionam-se, mas não se anulam. Canclini (2000)
expõe que a “circulação mais fluida” das relações e dos objetos simbólicos não significa a diluição das diferenças, e
sim que é imprescindível estudar esses cruzamentos de outro modo, para que se entendam as particularidades e
suas relações híbridas e assim se compreenda como se constrói a nova paisagem, em que as linguagens se
interagem e se conectam.
Canclini (2000, p. 352) afirma ainda que não há mais linguagens artísticas que permaneçam puras, pois
“todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes. [...] Assim as culturas perdem a relação exclusiva com
seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento”.
2.3 LITERATURA INFANTIL E SEUS GÊNEROS NA CONSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL LITERÁRIO
BRASILEIRO
Ao longo da existência como país, e muito antes disso, já havia bens culturais com os grupos indígenas que
aqui viviam. Com eles tinham-se os modos de fazer, os adornos, a expressão com as pinturas corporais, o
conhecimento de medicina natural, o canto, a dança e a oralidade. Com a chegada dos colonizadores portugueses,
dos africanos e, mais tarde, da imigração europeia, essas diferentes etnias, com a convivência e a mistura étnica,
passaram por uma miscigenação cultural.
As fronteiras culturais enfrentam um sensível afrouxamento na contemporaneidade, com o crescimento da
indústria de entretenimento de massa, que ganhou força no país nos anos 1960. Os históricos enfrentamentos
culturais entre as várias etnias constituintes do país sofreram sensível mudança após o crescimento de estudos e
93
produções artísticas e literárias que, construídos sob a influência desses diferentes grupos, gerou algo novo
(ABDALA JÚNIOR, 2004).
As manifestações que suscitam bens culturais de qualquer ordem necessitam de atenção, seja qual for a sua
forma: material, imaterial ou ambos. O conceito de patrimônio cultural brasileiro alinha-se com o pensamento de
outros países – que sofreram, sobretudo com as guerras, a dilapidação de seus bens culturais e a segregação de
diversas práticas culturais sob o domínio de poderes absolutistas – na criação de leis específicas para a salvaguarda
dos bens que formam nosso patrimônio cultural.
A primeira lei criada no Brasil que faz referência ao patrimônio cultural data de 30 de novembro de 1937.
Trata-se do Decreto-lei n.º 25, que criou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ainda em
vigor. Daquela data até nossos dias, muitos estudos se voltaram para o tema patrimônio. Houve inúmeras
discussões, e diversas questões foram levantadas em torno do patrimônio cultural, que num primeiro momento era
visto enquanto a sua materialidade, seja edificação, objeto de valor artístico e histórico, lugares e paisagens (os
chamados patrimônios naturais).
Pelegrini15, em um artigo publicado em 2008 para a Revista História, discute as bases teóricas que deram
origem à valorização dos bens culturais materiais e imateriais:
Nunca é demais lembrar que, antes mesmo da criação desse órgão, Mario de Andrade, mentor do
pré-projeto que deu origem à lei do tombamento, conjeturava a relevância do estudo sobre as
manifestações populares. Na contramão das idéias elitistas, que tendiam a dissociar o folclore e a
cultura popular dos demais fenômenos sociais ou reduzi-los à “valorização do pitoresco”, Andrade e
15
Sandra C. A. Pelegrini é professora Doutora do Departamento de História do Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atua também como coordenadora do Centro de Estudos das Artes e
do Patrimônio Cultural (Ceapac/UEM) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de
Campinas (NEE/Unicamp).
94
Câmara Cascudo consideravam-nos instrumentos de conhecimento e objeto pertinente às ciências
sociais. Ambos “jamais negaram as tradições brasileiras”, e as apreenderam no âmbito de “uma
visão dinâmica da sociedade, na qual as tradições se transformaram pela mobilidade que
possuem”16.
São graças a pensadores da sociedade e de sua constituição, como Mario de Andrade e Câmara Cascudo,
que temos as bases dos estudos referentes aos diversos bens culturais, tangíveis (materiais) e intangíveis
(imateriais), que formam o patrimônio cultural brasileiro.
A Constituição de 1988 é clara acerca da existência de outro patrimônio que deve ser preservado além do
material e do natural: o patrimônio imaterial, aquele composto dos saberes tradicionais, da linguagem oral, da
literatura, das danças, da música, da culinária, enfim, dos modos de criar, fazer e viver dos grupos sociais. Atenta-se
para o fato de o patrimônio material ter em sua base também o imaterial.
O artigo 216 da Constituição do Brasil promulgada em 198817 define patrimônio cultural brasileiro: “Os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]”.
A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), num texto a respeito do que é
patrimônio cultural, divulga o seguinte:
Esses bens materiais e imateriais que formam o patrimônio cultural brasileiro são, portanto, os
modos específicos de criar e fazer (as descobertas e os processos genuínos na ciência, nas artes e
na tecnologia); as construções referenciais e exemplares da tradição brasileira, incluindo bens
16
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742008000200008>. Acesso em: 1.º
ago. 2010.
17
Disponível em
: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 9/03/2011.
95
imóveis (igrejas, casas, praças, conjuntos urbanos) e bens móveis (obras de arte ou artesanato); as
criações imateriais como a literatura e a música; as expressões e os modos de viver, como a
linguagem e os costumes; os locais dotados de expressivo valor para a história, a arqueologia, a
paleontologia e a ciência em geral, assim como as paisagens e as áreas de proteção ecológica da
fauna e da flora18.
É na discussão sobre patrimônio e no imbricamento do tangível com o intangível que um gênero específico da
literatura, a literatura infantil e juvenil, com suas diferentes facetas, se encontra. Nele, palavra e imagem convivem
em perfeita harmonia, tanto a palavra que suscita imagem quanto o seu contrário e no diálogo entre elas.
Os livros infantis, segundo Benjamin (2002), não servem apenas para introduzir seus leitores no mundo dos
objetos, animais e seres humanos; “serve para introduzi-los na chamada vida”. A criança ao entrar em contato com o
livro interiorizará as imagens e o texto. Somente depois dessa correspondência o sentido da leitura se constitui no
exterior. A riqueza de linguagens desse gênero mostra que, apesar da pressão mercadológica por trás da produção
de livros para crianças e jovens, excelentes autores e ilustradores têm contribuído para a construção da nossa
literatura infantil e juvenil. Estudos lembram que os livros construídos com vistas ao respeito com nossas crianças e
jovens têm brigado por espaço nesse mar de livros de concepções duvidosas presentes nas livrarias, bibliotecas e
escolas de todo o país.
Os signos são construídos em conjunto pela sociedade com o principal objetivo de comunicar, porém isso,
não lhe confere caráter universal de leitura pelo fato de os signos representarem distintas significações em
diferentes culturas. O signo é algo que representa ou torna legível algo para alguém ou para grupos, e não para
18
Disponível em: <http://www.cultura.pe.gov.br/patrimonio.html>. Acesso em: 30 jul. 2010.
96
toda a humanidade. Por isso ele pode traduzir culturas e distingui-las. Ribeiro (2008, p. 126) aponta para essa
particularidade dos signos visuais presentes na ilustração, enfatizando seu caráter de documento histórico:
Desse modo, a ilustração como signo deve ser entendida também como documento histórico que
envolve diversas configurações visuais (como cor, traço, composição etc.), técnicas utilizadas em
cada época e o emprego de elementos icônicos. Esses conjuntos combinados possibilitam um modo
de olhar particular, em que o livro se transforma tanto a partir da própria integração entre leitor e
objeto quanto por meio da transformação da experiência do sujeito com relação à sociedade.
Essa identidade, mundo pertencente ao indivíduo, está na literatura e transporta o sujeito leitor para um
universo particular, subjetivo e imaterial.
Morin (2001, p. 45) demonstra que “em toda grande obra de literatura, de cinema, de poesia, de música, de
pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana”. Contudo tais bens culturais são vistos
sob olhos cuidadosos? Ainda, há discussões e estudos suficientes hoje para dar condições aos leitores de
entenderem o mundo natural, social e cultural por meio dos discursos visuais, verbais ou sonoros? A esse respeito
Oliveira (2008c, p. 44) comenta a importância de ler conscientemente o universo visual e verbal, como maneira de
preservar a integridade cultural e social, tendo em vista que o bombardeio de imagens massificadas e mercantilistas
invade o espaço destinado à imaginação e à formação da identidade do indivíduo. “Ler de forma consciente e
participativa a palavra e a imagem constitui, acima de tudo, um ato de resistência cultural e social. A palavra é
espírito, e a imagem é corpo. Portanto, palavra (espírito) e imagem (corpo) são indissociáveis [...]”.
Oliveira (2008c, p. 96) argumenta:
A imagem é realmente um gênero do pensamento, uma persuasão fortíssima em nossos dias
globalizados, e a nação que melhor usar suas imagens e ícones dominará, numa primeira fase, todos
os fenômenos culturais do planeta, numa segunda fase, o real domínio econômico de outras nações.
Logo, o estudo da imagem impressa nos mais diversos suportes e transmitida pelos mais diferentes
97
veículos de alta tecnologia é fundamental para qualquer país que tenha o mínimo de projeto sério
quanto ao seu futuro como nação, como povo e, sobretudo, como preservação de seus valores
culturais.
Entende-se que, com base nos mais variados discursos, a literatura infantil e juvenil é um bem cultural
pertencente ao grande patrimônio literário brasileiro e, por ter suas especificidades de leitura (palavra, imagem,
objeto livro como um todo integrante da história), precisa ser estudada como um todo ou pautada em suas partes
constituintes. Esse estudo prioriza a imagem como texto independente do verbo, ou seja, a narrativa visual.
3 A NARRATIVA VISUAL EM LIVROS NO BRASIL COM BASE NOS PREMIADOS PELA
FNLIJ DE 1981 A 2008
A relação diária com a imagem, para boa parte da população, começa na primeira hora do
dia, ao ligar a televisão, folhear uma revista ou um livro, navegar na internet ou mesmo circular
pelas ruas das cidades – numa profusão de imagens publicitárias apelativas do consumo.
O homem contemporâneo tem a necessidade de resolver problemas imediatamente. A
valorização do aqui e agora burla o tempo de maturação imprescindível à reflexão. As conquistas
lentas – que revelam aos poucos o sentido de tudo – deixam de ser prioridade na formação
identitária do individuo e do grupo.
Esses aspectos suscitam uma questão: A maturação do olhar e do pensamento quanto à imagem faz-se
indispensável diante do frenesi diário da vida? Não há certeza da resposta, porém os freios saudáveis estão aí,
resistindo ao imediatismo. A arte literária e a visual, por exemplo, têm mostrado que é possível respirar lentamente,
tomando o fôlego de que precisam para a formação de leitores mais críticos e reflexivos. Contudo, é importante que
a escola e os pais ofereçam e mediem boa literatura para as crianças. Assim, desde pequenas, elas poderão buscar
leituras que as façam parar a roda do mundo, transportando-as ao mundo encantado, fantástico, passado, futuro,
como também à realidade presente.
99
Hunt (2010) discute a respeito de leitores adultos e sua visão acerca dos livros para a infância, além daqueles
que recomendam livros para tal público. O autor argumenta que as crianças não veem o mundo como pensam os
adultos. Para estes, as escolhas têm finalidades, uma razão de ser. Já os pequenos não fizeram nenhuma escolha
ainda. Por isso, seu olhar é mais receptivo e minucioso. Enfatiza-se em relação aos livros para crianças que oferecer
obras com imagens e textos estereotipados é abrir caminhos para que seu olhar permaneça tendencioso e
superficial, criando, no mínimo, possibilidades maiores de formatar o pensamento delas ao limitar seu potencial
leitor.
De acordo com Oliveira (2008c, p. 66), “a leitura de um livro é o único momento de nossa absoluta e
silenciosa individualidade”. É certo que há outras formas de leitura que mantêm a individualidade até mesmo mais
sedutora, como a tela de um computador e uma rede de internet, por exemplo, acessada de um lugar confortável e
íntimo das residências. Por conseguinte, compartilha-se da opinião do referido autor: “O livro necessita acompanhar
os novos olhares do leitor de nossos tempos” (OLIVEIRA, 2008c).
A narrativa visual em livros, por seu caráter híbrido19, coloca-se em diálogo com as linguagens do cinema, dos
quadrinhos e da televisão, ou seja, está em sintonia com o universo imagético que invade os lares e as ruas.
Entretanto, essa linguagem se difere das outras, que, por comunicarem mais rapidamente, nem sempre permitem o
fôlego e a reflexão do leitor. Daí a sua importância.
Uma das razões do presente estudo é fomentar a discussão a respeito dessa linguagem para sua
valorização, como bem cultural e instrumento para a alfabetização visual, num espaço próprio da criança: a literatura
infantil e juvenil.
19
Conforme exposto no capítulo 2, os gêneros relacionam-se, mas não se anulam. Para Canclini (2000), é imprescindível
estudar esses cruzamentos de outro modo que não o atual, pois neste cada linguagem é estudada segundo as suas
especificidades, para que se entendam as particularidades e suas relações híbridas e assim compreendam como se
constrói a nova paisagem, em que as linguagens se interagem e se conectam.
100
Cabe aos educadores e produtores de imagens a séria tarefa de selecionar e produzir imagens que respeitam
a cultura da infância, encontrando caminhos que transcendam os espaços destinados aos pequenos, para o que
veem e leem nos livros possam perpassar várias fases de suas vidas, de modo a enriquecer o pensamento e
assumir novas significâncias, fazendo parte, assim, do imaginário do leitor consciente e crítico do futuro.
A presente pesquisa sugere a possibilidade de formar leitores mais completos e flexíveis, no trânsito entre
diversas linguagens textuais, sejam elas visuais ou verbais e, por que não, sonoras, com suas particularidades. A fim
de que isso seja possível, num primeiro momento faz-se preciso entender como ela vem acontecendo, de acordo
com o que se considera o melhor da produção brasileira pela crítica especializada. Para tanto, este capítulo se
dedica aos premiados com o Prêmio Melhor Livro de Imagem, promovido pela FNLIJ. Tais títulos servem de
termômetro para a produção e situação da linguagem no Brasil.
Uma boa notícia é que a linha fronteiriça entre as literaturas adulta e infantil começa a se romper. Percebe-se
ao longo desses anos de contato com o gênero que os autores possuem uma liberdade diferenciada para criar e
brincar com a palavra e a imagem.
As várias premiações importantes no Brasil e também no exterior para nossos escritores e ilustradores só
fazem crescer o interesse por uma área que, além de ter uma significativa fatia do mercado editorial no país, vem
produzindo títulos de qualidade inquestionável.
Imagens e textos que primam pela arte vem colocando a literatura infantil na pauta do dia de relevantes
pensadores da produção literária nacional. Isso significa dizer que tal literatura, que sempre esteve às margens da
literatura dita adulta, começa a despontar entre os grandes pensadores da área e dividir lugar e premiações,
provando que também pode ser e é coisa de gente grande.
Um exemplo de premiação fora da área infantil é o Prêmio Jabuti, um dos mais importantes prêmios literários
brasileiros. Em sua 50.ª edição concedeu o título de Melhor Livro do Ano (ficção) a uma obra infantil de Ignácio de
101
Loyola Brandão, O menino que vendia palavras. Outro escritor que ganhou o mesmo prêmio e outro ainda mais
importante na área foi Bartolomeu Campos de Queirós. O autor, pelo conjunto de sua obra, recebeu o Prêmio IberoAmericano SM de Literatura em sua quarta edição, em 2008 (CECCANTINI, 2010). Assim, foi-lhe concedido o direito
de ter todas as suas obras traduzidas para os países integrantes da comunidade ibero-americana20. Outro exemplo
de sucesso literário é Ana Maria Machado, que ocupa uma das almejadas cadeiras da Academia Brasileira de
Letras. Ela dedica toda a sua escritura literária a crianças e jovens.
Tanto quanto os escritores de literatura para crianças e jovens, nossos ilustradores têm feito trabalhos
significativos, em imagem ou textos. Ilustradores e autores de texto como Ângela Lago, com várias premiações no
país e fora dele, e Roger Mello, que ficou, juntamente com Bartolomeu Campos de Queirós, entre os cinco melhores
do mundo, concorrendo ao Prêmio Hans Christian Andersen, concedido pelo IBBY, colaboram para mudar o
pensamento dos profissionais nas áreas produtoras e leitoras de imagem: as artes visuais, gráficas e literárias.
Reflexo dessa mudança está em alguns cliques nas ferramentas de busca dos bancos de teses e dissertações;
dezenas de estudos mostram o crescente interesse pelo gênero.
Há muitos anos algumas instituições trabalham na promoção da leitura para crianças no país, e na área de
literatura infantil e juvenil a FNLIJ, entidade fundada em 1968 sem fins lucrativos, é a maior referência em trabalhos
voltados para a discussão e incentivo da leitura para crianças e jovens no Brasil. Funciona como uma seção do
IBBY, maior instituição no mundo no que se refere à literatura infantil e juvenil, filiada à UNESCO, com seções em
significativo número de países.
20
Os países que integram a comunidade são os da Península Ibérica, como Portugal, Espanha e muitos países
independentes que foram colônia de ambos os países, ou seja, quase toda a América Central e América do Sul, embora
muitos com essas condições ainda não sejam membros da comunidade.
102
Como forma de estimular a produção qualitativa desse gênero literário, a FNLIJ lançou em 1974 o Prêmio O
Melhor para Crianças. Hoje ela concede todos os anos prêmios em 18 categorias21, o que mostra o crescimento da
produção nacional. Entre tais categorias está o Prêmio Luís Jardim de Melhor Livro de Imagem, dado à melhor obra
de narrativa visual publicado no ano anterior à votação.
Em uma publicação de novembro de 200822 do periódico mensal da instituição, foi possível entender como
funciona a seleção dos melhores títulos por categoria. Uma comissão formada por especialistas em literatura para
crianças, provindos de vários estados do país, é escolhida pela FNLIJ, o que confere maior valor ao prêmio, em
virtude da experiência teórico-prática do júri. Nessa comissão está Sueli de Souza Cagneti, orientadora desta
pesquisa, votante pelo estado de Santa Catarina.
A sede da instituição fica no Rio de Janeiro. As editoras enviam o material para a análise da FNLIJ, que faz a
seleção em etapas. Na primeira fase há uma pré-seleção e depois uma seleção, em que serão escolhidos os que
ganham o selo de altamente recomendáveis. Após esse resultado, os mais votados de cada categoria levam o selo
da instituição. Os altamente selecionados passam de novo por votação criteriosa; os três considerados melhores em
cada categoria são defendidos por parecer escrito nominal de cada votante, o que, feita a triagem, permite a
premiação do melhor no gênero. Os autores, ilustradores e tradutores que já tiverem sido premiados três vezes, se
tiverem mais uma vez maior votação, são considerados hors concours. Os critérios de avaliação também são bem
claros: os votantes averiguam a originalidade do texto e da ilustração, a literalidade e a valorização do conceito de
21
O prêmio FNLIJ abrange as seguintes categorias: Criança, Jovem, Imagem, Poesia, Informativo, Reconto, Tradução
Criança, Tradução Jovem, Tradução Informativo, Tradução Reconto, Projeto Editorial, Revelação Escritor, Revelação
Ilustrador, Melhor Ilustração, Teatro, Livro-Brinquedo, Teórico, Literatura em Língua Portuguesa (de autor não brasileiro,
mas lusófono).
22
A FNLIJ possui um jornal mensal impresso que traz notícias do Brasil e do mundo na área da literatura infantil e juvenil.
No jornal são divulgados prêmios, congressos e artigos. Ele é adquirido por meio de assinatura ou via internet.
103
livro-objeto, por meio do projeto gráfico e editorial, e ainda a adequação à faixa etária a que se destina. Embora esse
último critério, adequação a faixa etária, seja um tanto problemático, pois, em se tratando de criança o seu
amadurecimento leitor não é determinado por sua idade física, mas sim, por seu amadurecimento intelectual.
Dessa maneira, a seleção contempla quase um título por ano ao longo dos 27 anos de premiação. Levando
em conta que em alguns anos ela não aconteceu (algumas vezes, pois não há obras inscritas à altura de uma
premiação e outras por não haver inscritos ou concorrentes), que os títulos internacionais premiados não foram
considerados para o estudo e uma das obras (A menina da tinta) não foi possível resgatar, o corpus analisado
resume-se a um total de 30 narrativas visuais ou livros de imagem, segundo nomenclatura usada pela FNLIJ.
Há algumas limitações no recorte desta dissertação, sobretudo porque na última década livros belíssimos e
altamente recomendáveis pela fundação não puderam fazer parte da pesquisa, por ser inviável em função do pouco
tempo determinado para a elaboração e concretização da produção premiada, que começou nos anos 1980.
3.1 A DÉCADA DE 1980: UM INÍCIO PROMISSOR PARA A NARRATIVA VISUAL
É de Juarez Machado o pioneirismo na narrativa visual em livros no país. Em 1969 ele desenhou Ida e volta
(figuras 16 e 17), porém a obra foi publicada apenas em 1975, em uma “coedição Holanda/Alemanha; em seguida
na França, Holanda e Itália” (CAMARGO, 1995, p. 71). Somente em 1976 o autor lançou o livro no Brasil, pela
editora Primor, e mais tarde pela editora Agir. Um ano depois o livro foi publicado no Japão, onde recebeu o
Nakamore Prize de melhor livro infantil. É indiscutível até hoje, depois de tanto tempo, a qualidade desse trabalho.
Desde então o gênero vem se consolidando cada vez mais, com a produção contínua de títulos.
104
Machado coloca de uma forma divertida e leve a trajetória de uma personagem ao sair do banho e o motivo
que a fez regressar a ele. Tal obra será mais amplamente analisada neste estudo por ser a pioneira, contribuindo
assim para o desenvolvimento dessa linguagem no Brasil.
Figura 16 – Capa de Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
No levantamento dos títulos premiados da primeira década, Eva Furnari foi a autora com a maior quantidade
de premiação: três prêmios, mais dois hors concours. Em 1981, primeiro ano da premiação, ela ganhou com a
coleção “Peixe vivo”, constituída de quatro títulos: Todo dia, De vez em quando, Cabra-cega e Esconde-esconde
(figuras 17, 18, 19 e 20), publicados pela Ática. Os outros dois são: A bruxinha atrapalhada (figuras 21 e 22) (editora
Global) e Filó e Marieta (figuras 23 e 24) (editora Paulinas). A autora direciona seus títulos a uma faixa etária bem
específica: crianças da primeira infância até a alfabetização. Seus livros são bem coloridos, com exceção de A
bruxinha atrapalhada, que é todo em preto e azul sobre um fundo branco. Além disso, esse título possui também
características dos quadrinhos e das tirinhas, comuns nos jornais diários.
105
Com uma carga de humor inocente, os livros de Eva Furnari estão sempre brincando com o leitor por meio
das traquinagens e atrapalhações das personagens. Os recursos gráficos e a linguagem plástica criada para as
narrativas são traços leves e aquarelados, o que confere suavidade à imagem. A autora possui uma marca bem
própria no traço, sendo facilmente identificada a sua autoria nos livros. Seus temas geradores para todas as
publicações dessa década transitaram entre animais, cotidiano infantil e bruxinhas simpáticas.
Figura 17 – Todo dia
Fonte: FURNARI, 1980d
106
Figura 18 – De vez em quando
Fonte: FURNARI, 1980b
Figura 19 – Cabra-cega
Fonte: FURNARI, 1980a
107
Figura 20 – Esconde-esconde
Fonte: FURNARI, 1980c
Figura 21 – A bruxinha atrapalhada
Fonte: FURNARI, 1981
108
Figura 22 – A bruxinha atrapalhada
Fonte: FURNARI, 1981
Figura 23 – Filó e Marieta
Fonte: FURNARI, 1982
109
Figura 24 – Filó e Marieta
Fonte: FURNARI, 1982
Ângela Lago foi outra autora que na década em foco teve dois livros premiados: o primeiro foi Outra vez, em
1984 (editora Miguilin) (figura 25), e dois anos depois Chiquita Bacana e as outras pequetitas (editora Lê) (figura 26).
Nesses dois títulos premiados Lago fez uso da mesma técnica: um desenho aquarelado que ocupa as duas páginas
e é emoldurado pela borda da página. Uma característica de seus livros é recorrer a referências brasileiras. Assim
ela expõe em depoimento no seu site:
Um gosto pela cultura popular veio à tona e passei a referendar meus textos no nosso folclore,
embora continuasse a utilizar tons pastéis e linhas suaves nos desenhos. Nessa época o que mais
gostava era de acrescentar pequenos detalhes engraçados às ilustrações, para serem descobertos
aos poucos pelos leitores. A mania do detalhe foi se acentuando e em 84 publiquei meu primeiro livro
só de imagens, Outra vez23.
23
Disponível em: <http://www.angela-lago.com.br/palestra.html>. Acesso em:
110
Seu traço para essa técnica é muito particular. Suas imagens são ricamente detalhadas, e os planos recebem
diferentes texturas. Praticamente não há plano chapado; tudo é texturizado.
A autora emprega recursos de olhar muito comuns nos desenhos infantis. As soluções encontradas pelas
crianças, no que se refere à posição do olhar no espaço, são muito inteligentes. É visível nos trabalhos de Lago a
ampliação do campo de visão de forma a criar movimento na cena narrativa, com o narrador em posição elevada,
tendo uma visão aérea privilegiada da ação, ou das ações, o que possibilita maior dinamismo e a possibilidade de
narrar inúmeras cenas em um mesmo espaço. O recurso citado aparece em Outra vez e em Chiquita Bacana e as
outras pequetitas. As duas obras assemelham-se na forma narrativa, e ambas as propostas têm vários fios
condutores narrativos, pois pequenas narrativas acontecem paralelamente ao longo do enredo central, tornando as
obras ricas para leitura e análise.
Contudo observa-se uma diferença importante na apresentação do texto entre as duas obras. Em Chiquita
Bacana e as outras pequetitas, há uma história contada em texto verbal, porém a FNLIJ classificou-a como um livro
de imagem, talvez pelo fato de o texto estar disposto como uma imagem, ou seja, ter uma imagem que representa
um livro sendo folheado dentro da cena, e muitas vezes suas páginas se soltam e passeiam pela narrativa. Poderia
ser dito que o texto, nesse caso, é uma ilustração da imagem.
Camargo (1995, p. 71), que opta pela nomenclatura “livro de imagem”, adotada pela FNLIJ, comenta a
dificuldade de classificar um livro como Chiquita Bacana e as outras pequetitas:
111
Alguns livros são de difícil classificação. Aliás, as obras de arte se sentem mal dentro de classificações
– como se tivessem que usar sapatos apertados. Chiquita Bacana e as outras pequetitas, de Ângela
Lago, por exemplo: se considerarmos o texto como música de fundo, o livro é de imagem; se
considerarmos as ilustrações como ornamento, iluminura – e elas de fato têm a graça das iluminuras –
o livro é de poesia.
O livro, que traz o texto verbal, contém também cenas das personagens, como se essas cenas revelassem
além do que nossos olhos podem ver dentro do quadro da página. Os recursos usados por Angela Lago ainda hoje
conferem maior possibilidade de interpretação, num brincar constante com o leitor.
Figura 25 – Outra vez
Fonte: LAGO, 2003
112
Figura 26 – Chiquita Bacana e outras pequetitas
Fonte: LAGO, 1985
Outro autor que ganhou o Prêmio Melhor Livro de Imagem foi Luís Lorenzon, com A menina, o cobertor
(editora FTD) (figura 27e 28), em 1984. A obra tem como enredo o momento de dormir e o sonhar de uma garotinha
com seu cobertor de retalhos coloridos, numa fusão de sonho e realidade. Num brincar de linguagens verbais e
visuais, Lorenzon apresenta uma narrativa visual construída graficamente, de forma simples, divertida e colorida.
113
Figura 27 – A menina e o cobertor
Fonte: LORENZON, 1984
Figura 28 – A menina e o cobertor
Fonte: LORENZON, 1984
114
Marcelo Xavier com O dia-a-dia de Dadá (editora Formato) (figuras 29 e 30) ficou com o prêmio em 1987.
Xavier utilizou para a materialização do enredo uma linguagem muito usada na animação de imagens pela técnica
de stop motion. Em O dia-a-dia de Dadá, as cenas são construídas com massinha de modelar e fotografadas.
Assim, o cotidiano da personagem é apresentado em flashes: o sono, a higiene matinal, o café da manhã e assim
por diante. É um livro colorido e em grande formato, o que confere força às imagens.
Figura 29 – O dia-a-dia de Dadá
Fonte: XAVIER, 1986
115
Figura 30 – O dia-a-dia de Dadá
Fonte: XAVIER, 1986
Em 1988 A menina da tinta (editora Vigília), de Maria José Boaventura, foi premiado. Não se analisou o
referido livro neste estudo, por estar esgotado em sebos e livrarias. A autora, por sua vez, não teve mais nenhum
trabalho expressivo em ilustração publicado, mantendo-se, porém, atuante nas artes plásticas no interior de Minas
Gerais.
No ano seguinte não houve premiação. Embora não tenha tido a representatividade dos dois últimos anos da
década, o número de premiados averiguados dá uma noção geral da produção dos anos 1980, com destaque para
Eva Furnari e Ângela Lago. Com temas simples e complexos, com linguagens plásticas variadas e títulos
interessantes, esse conjunto inicial já indicava a seriedade de pensar imagens para literatura infantil e juvenil no
Brasil.
116
3.2 A DÉCADA DE 1990: INFORMAÇÃO, POESIA, CONTOS E BRINCADEIRAS NA NARRATIVA VISUAL
Se na primeira década de produção a narrativa mostrou-nos ser uma promessa de sucesso, na seguinte ela
se consolidou. Novos ilustradores aventuraram-se pela linguagem e produziram preciosidades.
Quem abriu a década, com a coleção “Meninas”, foi novamente Eva Furnari. Premiada com A menina e o
dragão (editora Formato) (figuras 31 e 32), num enredo simples, construído em pequenos quadros que contam a
história de uma menina sozinha num buraco escavado de uma rocha ou montanha. A garota luta contra um dragão,
consegue se proteger no escavado, mas continua solitária. Essa solidão é quebrada quando um homem de chapéu
e roupa azul retira a madeira da entrada do buraco e faz fogo com ela. A menina começa, aos poucos, a se
aproximar dele, vencendo assim seus medos. Furnari traz com tal obra um discurso metafórico complexo e filosófico.
Ela permanece com o traço suave na técnica de aquarela, mantendo as mesmas características de suas obras
anteriores.
Figura 31 – A menina e o dragão
Fonte: FURNARI, 1989
117
Figura 32 – A menina e o dragão
Fonte: FURNARI, 1989
Em 1991 Graça Lima, com Noite de cão (editora Paulinas) (figuras 33 e 34), foi agraciada com o prêmio da
FNLIJ, sendo essa sua primeira obra de narrativa visual. Além disso, o trabalho recebeu o Prêmio Jabuti, pela
Câmara Brasileira do Livro (CBL).
Usando a linguagem gráfica e plástica – por meio de desenho feito com lápis de cor –, a autora brinca com a
expressão popular “noite de cão”, empregada para quem teve uma noite ruim. Ela conta no livro a noite de um
cachorro que luta para conseguir a lua para si. Trata-se de uma história graciosa, com imagens bem distribuídas nas
páginas, de forma a manter espaços brancos entre a composição formados apenas por cenário mínimo, no qual os
principais elementos são o cachorro, a lua e um fundo azul ou preto.
118
Figura 33 – Noite de cão
Fonte: LIMA, 1990
Figura 34 – Noite de cão
Fonte: LIMA, 1990
119
A arte visual brasileira foi abordada numa narrativa que ultrapassa o caráter informativo com Pula, gato
(editora Santuário, hoje publicado pela Scipione) (figuras 35 e 36), de Marilda Castanha. O prêmio foi concedido em
1992. O livro conta a história de uma menina que entra num museu de arte onde acontece uma exposição de
grandes artistas brasileiros. Num dos quadros da galeria, um gato é representado. Esse gato salta para fora da tela
depois que a garota passa por ele, e pega a mochila cheia de materiais artísticos que ela carrega. Com os materiais,
pinta outro quadro, retratando a si mesmo e a menina. Durante toda a história, todos os quadros da galeria têm vida
e acompanham, das paredes, o desenrolar dos acontecimentos entre ambas as personagens.
Num livro colorido e de grande movimentação de cena, artistas como Oswaldo Goeldi, Tarsila do Amaral,
Cândido Portinari, entre outros, têm suas obras representadas, contudo elas aparecem como coadjuvantes no
enredo que ultrapassa o informativo e brinca com o imaginário leitor.
120
Figura 35 – Pula, gato!
Fonte: CASTANHA, 1991
Figura 36 – Pula, gato!
Fonte: CASTANHA, 1991
Nesse mesmo concurso, saíram os dois primeiros hors concours: Ângela Lago, para a obra O cântico dos
cânticos24 (editora Paulinas) (figura 37), e Eva Furnari, com Truks (editora Ática). O primeiro consiste em uma obraprima da ilustração brasileira. Baseado num poema de amor do livro da Bíblia O cântico dos cânticos, Lago conta em
imagens um de seus poemas. Melhor do que descrever seu enredo, Perroti (in LAGO, 1991, no prefácio da obra –
disposto numa folha avulsa dentro do livro, cujo objetivo é não intervir na direção de leitura e no seu manuseio, que
é circular, ou seja, pode ser folheado em todos os sentidos – relata sua impressão da obra:
24
A obra recebeu também o Prêmio Octogone de fonte 1993-1994, Prix Graphique, do Centre International d‟Etudes en
Littératures de Jeunesse, Paris.
121
Como as grandes obras, esta também permite todas as leituras. É “aberta”, no sentido de Eco. Pode
ser tanto um livro lúdico, capaz de divertir crianças com suas “ilusões” – três colunas que viram
quatro, escadas que só sobem ou só descem, história que começa no fim e termina no começo (ou
vice-versa?), que pode ser lida de trás pra frente, de frente pra trás –, como é também um livro para
adolescentes que se iniciam nos segredos do amor, ou para adultos às voltas com intricadas
questões existenciais. [...] As referências às iluminuras, as miniaturas medievais e islâmicas, a
William Morris e a Escher, o barroquismo das imagens são tratados com tal propriedade que podem
ser desfrutados de diferentes formas, sem se perderem. Ângela acolhe tanto o leitor “ingênuo” como
o erudito, tanto o principiante como o intelectualizado. Como queria Barthes, sua arte é celebração,
irmanação, festa.
A autora revela ainda ao leitor – em um texto seu sobre a obra, disponível em seu site25 – como ver o referido
livro, libertando-se a princípio da racionalidade e mergulhando no caldeirão de ilusões que reside num poema de
amor:
É preciso, portanto, ver este livro, construído sob o signo da paixão, sob este signo – um signo que
não se ordena e está aquém ou além de qualquer lógica. É preciso considerar a possibilidade da
nossa maturidade cronológica não nos liberar da perplexidade e a de continuarmos falando da ilusão
na ilusão.
Pelos textos citados, é possível perceber que não se trata de uma narrativa visual qualquer, e sim de arte. Ao
folhear O cântico dos cânticos, Lago mantém a mesma técnica plástica de Outra vez e Chiquita Bacana e as outras
pequetitas, porém a temática no primeiro é muito complexa. As imagens são quase etéreas, e a composição articulase de maneira meticulosa, a favor da ilusão.
25
Disponível em: <http://www.angela-lago.com.br/aulaCant.html>. Acesso em: 23 out. 2010.
122
Figura 37 – O cântico dos cânticos
Fonte: LAGO, 1991
123
Figura 38 – O cântico dos cânticos
Fonte: LAGO, 1991
Num caminho completamente diferente de Lago, Furnari apresenta Truks (editora Ática) (figura 39). Esse
trabalho segue com a mesma temática de algumas de suas narrativas anteriores: uma bruxinha atrapalhada. Num
livro colorido a autora trabalha uma linguagem plástica diferenciada de suas anteriores. Com a técnica utilizada por
Marcelo Xavier em O dia-a-dia de Dadá – a fotografia –, Furnari constrói personagens em forma de bonecos de pano
articuláveis.
124
Por meio de um cenário mínimo com poucas personagens, o enredo traz uma divertida situação: as
confusões de uma bruxinha ao tentar transformar de volta um dragão em leão. Nessa história duas outras
personagens vivem uma situação paralela: uma minhoca que está o tempo todo fugindo de um passarinho, ambos
alheios às atrapalhações da bruxa.
Figura 39 – Truks
Fonte: FURNARI, 1991
Apesar de Furnari continuar com o seu público-alvo, as crianças, o modo como as cenas são dispostas nas
páginas, apresentando dois quadros emoldurados por virada de página, dificulta a continuidade lógica da trama,
diminuindo a potência narrativa, pois crianças muito pequenas, ao virarem a página, dirigem o olhar imediatamente
ao quadro da direita, para depois verem o da esquerda. Essa é a desvantagem dessa forma compositiva na
narrativa visual. Isso não ocorre quando uma única cena toma as duas páginas do livro.
125
Helena Alexandrino, em 1993, publicou O caminho do caracol (editora Estúdio Nobel). O livro consiste na
história de um menino da cidade que encontra um caracol, com seu habitante dentro do seu quarto. O garoto de
pijama listrado conversa com o caracol e monta no seu pescoço. O caracol leva o menino para uma jornada em um
mundo ao mesmo tempo real e imaginário. Eles viajam para encontrar o grande caracol, onde vive um velho e sábio
habitante. Lá todos os animais se encontram como um refúgio, um lar, uma referência.
As imagens de O caminho do caracol são construídas em aquarela, com traços suaves, e dispostas nas
páginas ora com uma imagem a cada página, ora com uma imagem a cada duas páginas. As bordas da imagem não
têm cortes bruscos; acabam suavemente, conferindo leveza à composição. O enredo da obra traz o fantástico para o
contexto da cidade – poluída, desgastada, sufocante –, como uma janela que se abre para a imaginação, onde tudo
é possível. Nesse sentido, Held (1980, p. 25) reflete:
Assim, a narração fantástica reúne, materializa e traduz todo um mundo de desejos: compartilhar da
vida animal, libertar-se da gravidade, tornar-se invisível, mudar seu tamanho e – resumindo tudo isso
– transformar à sua vontade o universo: o conto fantástico como realização dos grandes sonhos
humanos, sonhos freqüentemente retomados pela ciência.
Todas as características do fantástico estão na história de Alexandrino e são colocadas de maneira a não
separar o imaginário do real. A autora compõe um enredo que aborda o existencial com muita leveza, embora nem
sempre o fantástico possua a condição de futuro feliz possível; muitas vezes ele pode ser bem angustiante.
126
Figura 40 – O caminho do caracol
Fonte: ALEXANDRINO, 1992
Figura 41 – O caminho do caracol
Fonte: ALEXANDRINO, 1992
127
Premiado no mesmo ano de O caminho do caracol, O gato Viriato, de Roger Mello (editado pela Ediouro)
(figuras 42 e 43) traz uma das coisas de que a criança mais gosta: o humor. O livro contém quatro historietas,
construídas em cenas dispostas em até três quadros numa mesma página, lembrando quadrinhos.
Utilizando provavelmente aquarela ou ecoline26 para a criação das imagens, Mello divide com o leitor as
histórias de um gatinho e suas aventuras domésticas com outras personagens. Com uma faceta muito bemhumorada, as narrativas são bem articuladas, e o pequeno leitor identifica-se com as travessuras do protagonista.
Figura 42 – O gato Viriato
Fonte: MELLO, 1992
26
Ambos os materiais são tintas transparentes e trabalhadas com água para diluir ou mudar a intensidade da cor. A
diferença básica de um material para o outro é que a aquarela pode ser pastosa, líquida ou em barra; em todos os casos
a água é usada. O ecoline é líquido, vem em vidro, pode ser usado puro ou diluído e, ainda, possui maior transparência
que a aquarela.
128
Figura 43 – O gato Viriato
Fonte: MELLO, 1992
Rui de Oliveira, em 1994, foi o primeiro autor a ser premiado com uma adaptação do conto de fadas francês A
bela e a fera (editora FTD) (figuras 44 e 45). Sua versão parece ser adaptada do conto de Madame Beaumont, de
1756, que já era um resumo da primeira versão do conto recolhido por Madame Villeneuve em 1740. O referido
conto possui outras variações, inclusive no Oriente. Na versão de Oliveira, Bela é filha de um mercador e tem cinco
irmãs, além de o livro ser ricamente detalhado. O autor provavelmente aplicou aquarela líquida, ou ecoline, a fim de
construir as imagens, que são muito coloridas e texturizadas, lembrando o rococó francês, referenciando a origem
de sua versão.
129
As imagens de A bela e a fera estão dispostas em quadros, que ora tomam as duas páginas, ora são
emoldurados em paredes de estamparia barroca, ou em medalhões. Tudo é muito ornado e colorido.
Em uma entrevista concedida à Sociedade de Ilustradores do Brasil (SIB), Oliveira reflete sobre a condição do
ilustrador na sociedade para a manutenção do imaginário por meio da narração por imagem:
Sou muito otimista quanto ao futuro da imagem narrativa. Não existem mais nas grandes cidades os
contadores de histórias ao redor da fogueira. Nós, ilustradores, somos os novos “griôs”, a narração
visual é um elemento civilizatório. Todas as grandes civilizações surgiram de grandes narrações. A
Bíblia, o Gilgamesh, o Mahabharata, Ilíada e Odisséia, até mesmo livros fundamentais para a cultura
ocidental, como Decameron, Contos da Cantuária, Os lusíadas, A divina comédia, todas estas
histórias sedimentaram povos e nações. Portanto, sem exagero, eu vejo a imagem narrativa como
um elo, uma trilha entre o abstrato e o concreto. As nossas ilustrações são esfinges que cada leitor
decifra à sua maneira27.
Oliveira tem um olhar interessante a respeito da condição da narrativa visual nos dias atuais, sobretudo
quando se trata da análise do conto para entender a formação cultural dos povos. O autor reforça a condição de
permanência dos contos nas ilustrações, afinal a imagem narrativa está entre a representação do real e o que está
velado – o imaginário –, e este não se revela da mesma forma para dois olhares.
27
Disponível no site: <http://www.ruideoliveira.com.br/site.php?lang=br&swf=texts>. Acesso em: 24 out. 2010.
130
Figura 44 – A bela e a fera
Fonte: OLIVEIRA, 1993
Figura 45 – A bela e a fera
Fonte: OLIVEIRA, 1993
131
Nesse mesmo ano Ângela Lago foi mais uma vez hour concours, com Cenas de rua (editora RHJ) (figuras 46
e 47), obra que recebeu outras grandes premiações28.
O livro conta o dia de um menino, vendedor de frutas, no trânsito de uma grande cidade, onde sofre inúmeros
preconceitos e rejeições e encontra num cachorro um amigo. Parece um enredo simples, no entanto a força dessa
história não está nele, e sim nas imagens; elas são densamente simbólicas. A autora abusa da significação das
cores a fim de transmitir o íntimo das personagens: o menino é verde (na nossa cultura essa cor pode significar
esperança), e a mãe com o bebê no carro é azul (cor que carrega uma carga de ternura e aconchego). A raiva e a
maldades das pessoas são representadas por feições quase diabólicas e cores quentes, como laranja e vermelho.
Uma característica importante da obra está na concepção do livro. O projeto gráfico lembra a gravação de um
filme: a capa é preta e tem uma claquete de marcação de cena, bem colorida, que recebe o título do livro em
vermelho com letras manuais; na contracapa aparece apenas o preto do papel; na parte direita da próxima página
surge a mesma imagem da capa, em tamanho menor, contudo o preto ainda predomina. Parece um recurso de
entrada de cena usada no cinema: o fade, ou seja, a imagem que surge lentamente.
A história começa depois do fade, com a primeira cena explodindo nas duas páginas, e é quase possível
escutar o som do ambiente: uma rua movimentada de uma grande cidade. Todas as cenas são expostas da mesma
forma, com uma imagem a cada virada de página. Lago usa a junção das páginas como recurso na composição,
algo bem pouco visto nos trabalhos de outros autores.
28
Prêmio Jabuti Infantil, em 1994, pela CBL; Prêmio O Melhor Livro Sem Texto APCA, em 1994, da Associação Paulista
de Críticos de Artes (APCA); indicação para o Prêmio Hans Christian Andersen Illustration, em 1994, da Ibby, pelo
conjunto da obra; BIB Plaque, Prêmio da Bienal Internacional da Bratislava, em 1995, pelas originais ilustrações do livro;
White Ravens, em 1995, da Biblioteca Internacional de Munique. Informação disponível em: <http://www.angelalago.com.br/bibliografia.html>. Acesso em: 24 out. 2010.
132
Figura 46 – Cenas de rua
Fonte: LAGO, 1995
Figura 47 – Cenas de rua
Fonte: LAGO, 1995
A autora deve ter empregado no livro a técnica de pintura em tinta acrílica sobre papel. As cores das imagens
são muito vibrantes, o que confere maior força à imagem, impressa no papel preto, respeitando uma margem para
que o fundo do papel apareça. A disposição da imagem na página possui como referência um recurso utilizado no
133
cinema: cenas em flashes. Esse trabalho nada tem a ver com as suas obras anteriores; nem o traço os lembra.
Enquanto os outros abusam do desenho e do detalhismo, o de agora busca a expressão do traço solto do pincel,
com poucas linhas e mais planos de cor. A obra tem de mais comum com os outros trabalhos a composição, que
usa o ponto de vista do narrador em posição elevada, aérea.
A temática social é a narrativa central da história, que mostra o engajamento da autora em relação à questão.
Trata-se de algo natural, visto que a primeira profissão da carreira da escritora foi como assistente social.
Em 1995 um livro estrangeiro ganhou o prêmio: Zoom, de Istvan Banyai (editora Brinque-Book). No ano
seguinte não houve premiações para o gênero, e em 1997 o livro brasileiro premiado foi Leonardo, de Nelson Cruz
(editora Paulinas) (figura 48).
A obra traz a história da estátua de Leonardo da Vinci, que se encontra num parque de uma grande cidade.
Essa estátua ganha vida à noite e vira uma contadora de casos. Muitos bichos vêm ficar aos seus pés para ouvir as
histórias contadas de sua vida como cientista e artista. Esse enredo se parece com o de Pula, gato, de Marilda
Castanha. Assim, o lugar e o tempo servem para narrar a história de uma personagem à frente de seu tempo.
O que é informativo não é literário. Nem sempre essa afirmação é real, pois existem gêneros que não são
puros, caso de Leonardo e Pula, gato. Em ambos a informação funciona como o pano de fundo para a construção
do enredo. Os detalhes informativos são apenas mais um recurso para enriquecer a leitura, conforme a bagagem do
leitor. Invenções, pinturas e estudos são abordados pelo autor de forma bem-humorada. Esse livro teve reedição em
2006, com novo formato e todo redesenhado por Cruz.
Nos dois últimos anos da década não ocorreram premiações, embora tenha havido produção, o que pode
justificar produção insuficiente ou mesmo que a produção desses anos não apresentou trabalhos que preenchessem
os critérios básicos exigidos pela FNLIJ: originalidade do texto e da ilustração, literalidade, valorização do livro como
objeto e adequação à faixa etária.
134
Fecharam-se as portas do século XX, e pode-se perceber que a narrativa visual ganhou espaço no meio
literário infantil brasileiro, com 10 títulos brasileiros premiados e apenas um estrangeiro. Somente três
anos(1996,1998,1999)ficaram sem premiações. Nessa década destacaram-se novamente Eva Furnari e Ângela
Lago pela produção, mas nomes significativos para a literatura infantil também apareceram, como por exemplo, Rui
de Oliveira e Nelson Cruz, que exploraram a narrativa visual em trabalhos posteriores.
Figura 48 – Capa de Leonardo
135
3.3 A PRODUÇÃO DO SÉCULO XXI, DE 2000 A 2008
Questões sociais estão presentes no primeiro título premiado em 2000, Seca, de André Neves (editora
Paulinas) (figuras 49 e 50). O livro aborda o imaginário infantil num contexto árido do Norte e Nordeste brasileiro,
ambiente familiar do autor, que nasceu em Pernambuco (PE). De forma poética, Neves reproduz o dia de uma
família em busca de água para abastecer a casa. O trajeto vira brincadeira para três crianças com suas latas na
cabeça e seus barquinhos de papel.
As ilustrações tomam conta das páginas, com uma cena para cada virada de página, o que confere unidade
visual narrativa e engloba mais faixas etárias pela facilidade de leitura. A técnica escolhida pelo autor para a história
é o pastel sobre papel texturizado. As cores predominantes em toda a composição são: amarelo, vermelho, laranja e
tons terrosos, ou seja, cores quentes. A escolha por tais cores potencializa o ambiente escolhido para a história, o
sertão nordestino.
136
Figura 49 – Seca
Fonte: NEVES, 1999
Figura 50 – Seca
Fonte: NEVES, 1999
Em 2001 voltou à cena dos premiados o pioneiro Juarez Machado, com o título Emoções (editora Agir)
(figuras 51 e 52). O livro é convidativo ao olhar e aos sentidos, e a história, novamente contada por pegadas,
repetindo o foco narrativo de Ida e volta. A temática central está no que a vida oferece e no quanto essas escolhas
137
ficam marcadas no protagonista da história, que aparece apenas em pegadas. Estas mudam de acordo com as
ações da personagem, ou seja, ficam impregnadas de passado. Conforme se modificam as ações, as pegadas
recebem novas impressões. As ações acontecem num determinado lugar, o Rio de Janeiro, mensagem clara do
autor, com os signos representativos do lugar: Pão de Açúcar, calçada de Copacabana, Carnaval e futebol, o que
mostra um pouco da relação do próprio autor com a cidade na qual viveu por muitos anos.
Figura 51 – Emoções
Fonte: MACHADO, 2000
138
Figura 52 – Emoções
Fonte: MACHADO, 2000
Depois de A bela e a fera, Rui de Oliveira ganhou mais uma vez o prêmio em 2002, com uma adaptação em
imagens de contos. Chapeuzinho vermelho e outros contos por imagens (publicado pela Companhia das Letrinhas)
(figuras 53 e 54) traz três contos: “Chapeuzinho vermelho”, “João e Maria” e “O Barba-Azul”. A adaptação dos contos
é de Luciana Sandroni.
Esse livro se difere dos outros por usar a referência verbal para a imagem. Todos os três contos são narrados
primeiramente em palavras, depois Oliveira conta-os em imagens. Além disso, há um texto da antropóloga Lilia
Moritz Schwarcz, que aborda o contexto medieval e oral no qual os contos foram criados e as várias versões que
surgiram para um mesmo conto, dependendo da região em que era registrado.
O texto de Schwarcz revela a importância da literatura na compreensão dos espaços históricos culturais, já
que os casos de versões em diferentes épocas para um mesmo conto revelam o pensamento vigente na construção
do indivíduo. Assim afirma Schwarcz na introdução do livro de Oliveira (2001, p. 8):
139
Dessa maneira, é sempre bom pensar que os contos que hoje lemos e relemos não surgiram prontos e
acabados. Foram sendo esculpidos e lapidados pelo tempo; muitas vezes nuançados e adoçados com
o objetivo de evitar uma reação inesperada. Não é à toa que as primeiras versões desses nossos
contos, coletadas durante os séculos XVI, XVII, XVIII, sejam muito mais cruéis do que nossas histórias
tão bem-comportadas.
Oliveira optou pelo grafite para escrever em imagens os contos. A escolha confere uma aura de passado,
quando os chapbooks com suas ilustrações em xilogravura apresentavam aos leitores as primeiras versões
impressas dos contos populares, no século XVIII.
Com traços característicos, o autor explora a textura do desenho, com ilustrações que às vezes dominam
páginas duplas, ou pequenos quadros em uma mesma página, sendo todas as cenas cortadas por molduras nas
bordas.
No fim o livro ainda traz os estudos para a criação das imagens de “O Barba-Azul”, o que mostra uma
possível preocupação do autor, que também é professor na área da imagem, para se entender os diferentes
estágios por que passam os processos construtivos.
140
Figura 53 – Chapeuzinho vermelho e outros contos por imagem
Fonte: OLIVEIRA; SANDRONI, 2001
141
Figura 54 – Chapeuzinho vermelho e outros contos por imagem
Fonte: OLIVEIRA; SANDRONI, 2001
Em 2003 não houve premiação, mas o ano seguinte, como que para compensar, premiou dois trabalhos. Um
prêmio foi para Cláudio Martins, e outro hors concours, para Ângela Lago. Martins lançou a coleção “História muda”
(editora Dimensão), formada por três títulos: Omar e o mar, No fim do mundo muda o fim e O amor cego do
morcego. Embora os livros componham uma coleção, as temáticas trabalhadas por eles são bem distintas; une-as
sua visualidade: todos têm o mesmo formato e técnica plástica, o desenho aquarelado.
Em Omar e o mar (figuras 55 e 56), a história é contada de forma sintetizada. Trata-se da viagem de um
menino
ao
redor
do
mundo,
após
ele
cair
no
mar
e
conseguir
se
segurar
no
tronco
flutuante de uma árvore. Essa viagem está situada num tempo determinado, revelado na representação das Torres
Gêmeas (World Trade Center, EUA), as quais foram atingidas em 11 de setembro de 2001.
142
Figura 55 – Omar e o mar
Fonte: MARTINS, 2003c
Figura 56 – Omar e o mar
Fonte: MARTINS, 2003c
143
No segundo título, No fim do mundo muda o fim (figuras 57 e 58), Martins aborda a conscientização
ecológica. Depois de assistir a um filme em que o mundo acabava explodindo após sucessivas agressões feitas pelo
homem, representado pelo escritor como monstros, as personagens saem chocadas da sala de cinema e procuram
mudar seu modo de viver, pensar e agir.
Figura 57 – No fim do mundo muda o fim
Fonte: MARTINS, 2003a
144
Figura 58 – No fim do mundo muda o fim
Fonte: MARTINS, 2003a
O amor cego do morcego (figuras 59 e 60) é o terceiro trabalho da coleção, um livro humorado que narra a
história de um morcego que, atingido pela flecha de um cupido, se apaixona por tudo que parece outro morcego. O
interessante desse título é a forma compositiva das cenas: o fio condutor da narrativa são os objetos misteriosos
pelos quais o morcego se apaixona, colocados na parte inferior da página direita. Eles são revelados ao virar da
página, mostrando situações engraçadas na história. Essa maneira compositiva leva o leitor a percorrer as páginas
não com o olhar horizontal da leitura ocidental, mas sim vertical. Esse exercício confere força ao trabalho, pois
parece que o narrador e o leitor voam com o morcego, porém não em velocidade igual, porque o acontecimento não
se descobre durante a ação do animal, mas após o virar da página.
145
Figura 59 – O amor cego do morcego
Fonte: MARTINS, 2003b
Figura 60 – O amor cego do morcego
Fonte: MARTINS, 2003b
146
Ângela Lago, no seu terceiro hors concours, lida com questões éticas da bioengenharia. A raça perfeita
(editora Projeto), realizado em coautoria com Gisele Lotufo, é um marco nessa linguagem, pois insere a narrativa
visual na contemporaneidade imagética, em que a imagem fotográfica não representa mais uma realidade, contudo
uma idealização, obtida por meio de manipulação digital.
O enredo expõe a história de uma cientista que tenta criar em seu laboratório a raça perfeita de cachorro. A
abordagem crítica com relação ao tema é evidente na produção e merece um estudo à parte dos premiados.
Figura 61 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
Em 2005 novamente um conto popular foi adaptado para imagens. O rouxinol e o imperador (editora
Peirópolis) (figura 62), de Hans Christian Andersen, inspira Taisa Borges.
147
Influenciada pelo ambiente no qual a história se passa, a China, Borges cria imagens cheias de texturas
inspiradas na estamparia do país. São imagens totalmente gráficas, porém a forma, a cor e a composição, aliadas
ao formato grande e quadrado do livro, conferem ao trabalho força plástica visual, algo raro nesse tipo de linguagem
gráfica.
Interessante como os contos encontram lugar em diferentes momentos na narrativa visual em livros. A razão
pode estar no texto de domínio público, que muitas vezes já povoa o imaginário do leitor. O ilustrador não precisa
criar um texto nem enredo para a história, entretanto precisa ter sensibilidade na escolha das cenas, para que a
fluência narrativa não sofra cortes bruscos nem a história seja contada pelas cenas primordiais.
Figura 62 – O rouxinol e o imperador
Fonte: BORGES; ANDERSEN, 2004
148
Figura 63 – O rouxinol e o imperador
Fonte: BORGES; ANDERSEN, 2004
Ao contrário do livro de Rui de Oliveira, Chapeuzinho vermelho e outros contos, em O rouxinol e o imperador
não há texto verbal nem informativo como referência. Os índices verbais estão somente no título e no autor.
O humor e a simplicidade do traço unidos a um projeto gráfico que valoriza o espaço branco estão em A linha
do Mario Vale (editora RHJ) (figuras 64 e 65), premiado em 2006. O livro não é uma narrativa contínua como as
outras, com começo, meio e fim ou com os elementos narrativos – enredo, personagem, tempo, espaço, narrador. A
evidência de não ser uma narrativa visual está em sua construção; trata-se de uma coletânea de cartoons
publicados diariamente por Mario Vale no jornal Hoje em Dia.
149
Figura 64 – A linha do Mario Vale
Fonte: VALE, 2005
Figura 65 – A linha do Mario Vale
Fonte: VALE, 2005
150
Um ponto alto no referido título está em como as imagens foram dispostas na página. Normalmente uma cena
ocupa as duas páginas, contudo ela não é grande; fica pequena no imenso espaço branco, tais quais nas pequenas
tirinhas dos jornais.
Outra característica está na disposição das imagens, que favorece todas as faixas etárias, inclusive as
crianças que não dominam o código escrito, porque a imagem está sempre colocada na página direita, ou quando
está na esquerda a direita está vazia, facilitando a leitura da criança, que ainda não tem seu olhar educado para a
direção da leitura ocidental.
Em 2007 a produção estrangeira A pequena marionete (editora 34), de Gabrielle Vincent, recebeu a
premiação. No ano seguinte Rabisco: um cachorro perfeito (editado pela Ática) (figuras 66 e 67), de Michele Iacocca,
foi premiado.
Figura 66 – Rabisco: um cachorro perfeito
Fonte: IACOCCA, 2007
151
Figura 67 – Rabisco: um cachorro perfeito
Fonte: IACOCCA, 2007
O livro conta a história de um menino que desenha o cachorro perfeito para ele. O desenho ganha vida e, ao
encontrar seu criador, este não o reconhece, porque o cachorro que ele imaginou era outro. O animal então passa a
viver nas ruas com todos os problemas decorrentes dela e pergunta às pessoas se elas conhecem um desenhista,
até que um dia consegue chegar no desenhista. Assim, o cão lhe pede para desenhar um cachorro segundo suas
descrições. O animal pega o desenho e então passa por todos os ambientes por que cruzou anteriormente, chega
ao menino que o desenhou no início da história e entrega o desenho do cachorro descrito pelo menino, então este o
aceita.
Iacocca utiliza a linguagem dos quadrinhos em grande parte da história. Esse recurso é bem-vindo ao
ilustrador quando o enredo é muito longo, pois possibilita expor várias cenas em uma única página.
Nessa última década fica clara a constância da produção do gênero no país. Foram 10 títulos nacionais, um
único ano sem premiação e houve dois prêmios para obras estrangeiras.
152
Ao fechar o levantamento feito, foi possível verificar que as narrativas visuais vêm crescendo em quantidade e
qualidade no Brasil. As razões que levam a esse crescimento podem estar na valorização da linguagem por grupos
especializados em pesquisas sobre literatura para a infância, o que é real ao longo das duas últimas décadas. Luís
Camargo, por exemplo, em 1995 dedicou um capítulo de seu livro a essa linguagem, fazendo uma análise de Outra
vez, de Ângela Lago. A ênfase deste estudo está na análise desenvolvida sob a óptica das funções que a imagem
desempenha: função expressiva/ética, descritiva, narrativa, lúdica, metalinguística, estética, de pontuação e
simbólica.
De 1995 para cá muitos autores abordaram o tema, todavia continuam inserindo-o em poucos parágrafos. O
destaque vai para Ieda de Oliveira em O que é qualidade em ilustração: com a palavra, o ilustrador. Seu trabalho
traz pequenas inserções do assunto em artigos. Outra evidência é Rui de Oliveira em Pelos jardins de Boboli. Nessa
obra ele não fala especificamente da narrativa visual em livros, mas da ilustração como imagem narrativa.
Pensar narrativa visual em livros exige a seriedade de uma linguagem a ser decifrada e catalogada. Vem
acontecendo o uso livre de várias nomenclaturas para uma mesma temática. Todavia, acima de todas essas
confusões acerca do termo, acredita-se que tal linguagem está crescendo não só pela qualidade profissional de
nossos ilustradores, como também pelo importante papel que desempenha na formação leitora, possibilitando
aberturas para outras formas de leitura além do texto verbal.
4 NARRATIVAS VISUAIS: CAMINHOS DE LEITURA
Quando somos crianças, um universo representativo descortina-se diante dos nossos
olhos. As imagens (além do som) são nosso primeiro elo com o mundo das linguagens. Saber
ler e procurar apreender os signos presentes nas imagens, num olhar que permaneça aberto
em todas as fases da vida, pode auxiliar e muito no entendimento de mensagens implícitas em
qualquer texto, visual ou verbal.
Dondis (1997) afirma que é necessário um “alfabetismo visual” para ler imagens. Esse
alfabetismo deve contemplar conceitos próprios da linguagem visual, como ocorre com a
linguagem verbal, embora se saiba que, quando se trata de leitura de imagens, ela nunca
estará separada totalmente da escrita ou da oralidade. Compartilha-se neste estudo do
pensamento do autor, embora se saiba que, alfabetizar é somente o primeiro passo no desenvolvimento de um
leitor. Contudo, é um auxilio, pois a exposição diária às imagens, sem que se possa lê-las com certo critério, reforça
a condição de ela estar mais “suscetível a digressões éticas e culturais [...], sobretudo, se consideramos que a
imagem é uma forma de literatura e um modo equivalente de leitura literária” (OLIVEIRA, 2008c, p. 118).
Os desvios éticos normais que ocorrem no uso da imagem, principalmente se ela está voltada para o
consumo (e o mercado livreiro insere-se nesse meio), são assimilados sem restrições pela sociedade, por não haver
por parte da grande massa um conhecimento acerca de tais desvios. “O analfabetismo e a educação insatisfatória
do povo adornam esse painel de cores sinistras; é na imagem que, por sua instantaneidade a ideologia do opressor
se aninha e se reproduz melhor (OLIVEIRA, 2008c, p. 119).
154
Enquanto não se tem de fato um panorama concreto de mudança para a condição descrita, as reflexões e
investigações ocorrem em grande proporção no meio acadêmico e pelos autores que dedicam total atenção à
imagem, sobretudo no meio infantil e juvenil, foco deste estudo.
Se após o levantamento feito da trajetória da narrativa visual em livros no Brasil constatou-se, por meio dos
escritos, que a linguagem visual é pouco discutida (mas para a maioria ela é encarada como fundamental,
principalmente até a alfabetização verbal da criança), o que não se questionou foi o uso da linguagem como
ferramenta de inserção às leituras imagéticas em qualquer faixa etária. Isso porque o texto em imagens é construído
conforme os conceitos do gênero mais comumente percebido por qualquer leitor, o narrativo, sem que isso
signifique, por razão de maior empatia, um gênero vulgar.
O presente capítulo pretende, assim, encarar a narrativa visual em livros como ferramenta para o “alfabetismo
visual” e dar subsídios para ir além, pois alfabetizar é somente a primeira fase de um processo de construção de
relações entre texto, contexto e discursos a serem revelados. Para o universo das letras usa-se - para a etapa além
do alfabetismo - o termo letramento ou ato de letrar: “capacitar ao uso social e cultural da leitura e da escrita.”
(OLANDA, 2009, p.513) Embora os termos alfabetizar e letrar não sejam adequados para o caso da imagem, pela
própria etimologia das palavras, seus sentidos são, nesta investigação, almejados, pois, ao analisar as narrativas
visuais sobre a ótica do alfabetismo/letramento, busca-se uma forma de auxiliar no desenvolvimento qualitativo de
leitores e produtores de imagem. O contato com expressivo número de obras brasileiras, premiadas pela FNLIJ, que
significam uma pequena, quase insignificante, parcela do total de títulos já produzidos ao longo desses 30 e tantos
anos desde Ida e volta, reforça essa proposta.
Para que seja exposta a forma de leitura desta investigação, retiraram-se do grupo dos premiados três títulos
correspondentes às três décadas de produção analisadas. A escolha não veio de critérios específicos. Apenas
verificou-se que tais trabalhos foram pouco avaliados por especialistas e que representariam cada década em foco
155
na dissertação. Logo, apresentam-se Ida e volta, de Juarez Machado, representando o pioneirismo do gênero na
década de 1980; Leonardo, de Nelson Cruz, dos anos 1990; e A raça perfeita, de Ângela Lago e Gisele Lotufo, da
primeira década do novo século. Procurou-se, na escolha, que os livros abordassem temáticas diferenciadas e
abrangessem leitores variados.
Dois autores fundamentam a proposta deste estudo reflexivo: Gancho (1991), por trabalhar os cinco
elementos que compõem a narrativa (tempo, espaço, personagem, narrador, enredo); Oliveira (2008c), por enfatizar
em parte de suas pesquisas aspectos constituintes da imagem (cor, ritmo, cenário, perspectiva e composição).
A ilustração, para Oliveira (2008c, p. 80), “é um gênero dentro das artes visuais narrativas”. Acrescenta-se a
essa afirmação que a ilustração não é de toda compatível com a narrativa visual, pois ela é construída nos suspiros
do texto verbal e dialoga com ele. O texto narrativo visual caminha no diálogo entre as artes visuais narrativas e o
texto imagético literário. Para se fazer a análise de uma narrativa visual em livros, é necessário ter em mente que
esse diálogo deve ser constante.
Uma maneira de manter o diálogo entre imagem narrativa e texto literário narrativo, elementos que constam
de uma narrativa visual, é encontrar pontos de ancoragem entre os conceitos de cada gênero. Para tanto, formulouse um esquema com base nas reflexões dos autores que este estudo contempla:
156
A forma como os elementos da narrativa verbal dialogam e são traduzidos na narrativa visual podem ser
vistos no esquema abaixo:
NARRATIVA VERBAL
NARRATIVA VISUAL
Figura 68 – Elementos do gênero narrativo verbal e visual
Apesar de, como já dito, existir muitas formas de leitura, a escolha por esse caminho nas análises deve-se ao
diálogo entre as linguagens. Isso confere dinamismo à leitura da narrativa visual. Cruzar diferentes elementos
narrativos sob a óptica dos conceitos literários para o gênero narrativo e dos conceitos pertinentes à imagem (como
mostra a figura 68) abre uma nova possibilidade de ler a narrativa visual. É nesse ponto que o presente estudo
pretende contribuir.
157
4.1 IDA E VOLTA: INÍCIO LÚDICO
Um bom exemplo para entender como um discurso imagético pode revelar representações individuais e
coletivas de um meio está em Ida e volta, de Juarez Machado, porque o enredo trata do cotidiano de um sujeito com
um determinado gosto, que vive num lugar que poderia ser tanto em uma região do Brasil como da Europa, e esses
gostos refletem os valores sociais implícitos na imagem.
Uma criança consegue perceber a mensagem principal de Ida e volta? Nesse caso sim, pois são expostas
ações rotineiras praticadas pela maioria das pessoas; as minúcias dessa análise não são relevantes para elas, afinal
uma das características da infância é o pragmatismo regado de leitura inocente, contudo aos adultos não cabe uma
leitura inocente ao falar de literatura infantil. Conforme Hunt (2010, p. 217):
A criança pode ser inocente, se inocência e amoralidade podem ser equiparadas; mas para que nós,
adultos, possamos falar proveitosamente em literatura infantil, não podemos nos permitir a pretensão de
ter uma inocência similar. Temos de aceitar [...] que os livros para criança podem parecer doces e
inocentes, mas que eles não o podem ser assim – e tampouco o podem ser seus críticos.
É dessa forma que se procura pensar a análise de Ida e volta, a começar pelos elementos narrativos: enredo,
personagem, tempo, espaço e narrador.
O enredo do livro trata de um tema rotineiro: um dia na vida do protagonista, visto pelo leitor em suas ações
triviais.
158
A capa fornece a primeira cena da história: um chuveiro desligado, um boxe com a cortina aberta e pegadas
azuis no chão encaminhando-se para dentro do livro. Quem é o protagonista? Só sabemos pelos índices fornecidos
pelo autor, ou seja, pelas pegadas e ações executadas pelo protagonista nos diversos ambientes frequentados por
ele, pois propiciam fortes indícios dos gostos e da personalidade da personagem (figura 69).
Figura 69 – Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
Machado prioriza a ação a ser realizada. Há economia de elementos visuais na cena. Por exemplo, a pegada,
com a forma de pés descalços, deixa o chuveiro, percorre algumas páginas vazias e chega até um armário. Supõese que a personagem tenha se vestido, porque existe um único cabide vazio no armário. As cenas continuam ao
virar das páginas, seguindo as ações da personagem imaginária, que está calçando sapatos, de acordo com as
suas pegadas. Ela faz o desjejum. Depois, liga um gramofone à manivela, ensaia uns passos de dança, vai até um
cabideiro onde estão vários chapéus, escolhe um deles e sai à rua.
159
As cenas passam-se pelas ações das personagens, sempre indicadas pelas pegadas. O modo como a
história é construída dá dinamismo à cena e ar de mistério, já que a pegada entra em cena na virada da página,
executa uma ação ou participa dela e segue para a próxima virada da página, criando uma expectativa do que
acontecerá ou da revelação de alguma personagem em determinado momento; o elemento surpresa é muito forte.
Utilizando os conceitos da imagem de Oliveira (2008c), o enredo presentifica-se em vários elementos
constitutivos da imagem: nas personagens, no ambiente em que a narrativa se desenrola e no ritmo ditado pela
pegada que percorre as páginas. Este último elemento desempenha papel fundamental na narrativa.
Existe uma linha rítmica que perpassa todo o livro. Esse ritmo é ditado pelas pegadas e por suas ações. Há
espaços em certas páginas que estão quase totalmente em branco; apenas as pegadas na parte inferior desenham
uma linha horizontal que segue para pontos de tensão visual, predominantemente verticais, que ocupam grande
parte da página. Esses pontos revelam a ação que dará sequência ao enredo. O contraste entre horizontalidade e
verticalidade, ou entre piano e forte, usando um termo musical, como ocorre em Ida e volta, dita a dinâmica rítmica
da narrativa.
Segundo Oliveira (2008c, p. 57), “o ritmo é uma variedade intencional de formas criadas [...] para despertar os
interesses do olhar”, e ele estará sempre gerando contrastes. Um exemplo visual do ritmo na imagem está na cena
em que a personagem pega o chapéu no cabideiro e sai para a rua apanhando uma maçã (figuras 70 e 71). Os
pontos de tensão estão na composição dos guarda-chuvas e dos chapéus, que cria contraste com o vazio da página
que a precede. Essas alternâncias acontecem em quase todo o livro.
160
Figura 70 – Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
Figura 71 – Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
161
O esquema a seguir ilustra o ritmo visual em Ida e volta:
Figura 72 – Gráfico referente ao ritmo compositivo de Ida e volta
Há algumas personagens na história, a começar pelas pegadas, que indiciam a presença do protagonista. As
demais aparecem no decorrer da ação deste, como por exemplo, ao caminhar pela rua e encontrar o que parece um
cachorro, conforme indicam as pegadas, um vasilhame para ração e uma casinha na qual as pegadas entram,
compondo um ambiente canino. Existem, também uma personagem lendo jornal na banca de flores, uma velhinha
que recebe as flores supostamente compradas pelo protagonista e, por último, um artista de circo que anda em
“pernas-de-pau” carregando uma placa no peito com a palavra “circus” (figura 73).
162
Figura 73 – Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
Os recursos visuais empregados a fim de enfatizar a função desempenhada pelas personagens na história
estão diretamente ligados à cor, linha, forma, às poses e expressões das personagens. Por exemplo, Machado opta
por desenhar o protagonista por pegadas. A pegada é a representação de alguém caminhando, portanto essa forma
visual é um índice que representa algo de algo. Por que a velhinha aparece e o vendedor de flores é representado
por trás de um jornal? Talvez porque culturalmente há uma valorização maior do idoso por suas vivências, e um
vendedor de flores é mais um anônimo que presta serviços nos espaços urbanos. O homem da perna-de-pau é
outro que aparece por inteiro na história. Na primeira cena somente suas pegadas aparecem e caminham ao lado
das do protagonista. O leitor fica na expectativa de ver quem é. Na página seguinte o autor das pegadas aparece
por inteiro, de maneira a revelar o artista anunciando um circo na cidade. A escolha de Machado por esse modo de
163
representar o circo traduz de forma brilhante sua essência, ou seja, a arte de divertir, de surpreender e de provocar
magia.
O tempo em que ocorre a narrativa é circular, pois a história começa e termina no mesmo ambiente: o
chuveiro. Além de o enredo visual mostrar essa circularidade, o próprio título – Ida e volta – reforça-a.
Quanto ao espaço-tempo em que acontece a narrativa, o autor preferiu contar a história priorizando grandes
espaços em branco nas páginas; o vazio serve como respiro ao olhar e confere amplitude ao ambiente. Ademais,
valoriza os pontos de tensão na composição das cenas.
Há poucos índices na representação capazes de indicar lugar ou época específica. O que se pode fazer são
suposições. Isso porque o desjejum do protagonista não é tipicamente de um brasileiro, e sim de um europeu ou de
alguém que vivencia essa cultura. Outra suposição é de que se trata de um lugar frio, pois a personagem sai de
casa e apanha uma maçã de uma macieira, árvore frutífera típica de região fria. Ainda, no seu armário de roupas há
um esqui, equipamento de esporte de neve (figura 74).
164
Figura 74 – Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
Se o lugar em que se passam as cenas é uma região de inverno gelado, durante a história não é inverno, pois
maçãs são colhidas no verão, e a personagem da banca de flores usa sandálias. Logo, a história ocorre num dia de
verão em um lugar de estações bem definidas.
O narrador dessa história parece ser o próprio protagonista, pois parece que vivencia ou vivenciou os fatos. O
ângulo de onde a história se narra é frontal, caracterizando assim a totalidade de enquadramento em cenas,
parecendo flashes de memória do protagonista, que conta os fatos já ocorridos.
165
Em Ida e volta o protagonista sai e entra no chuveiro. Em tais cenas somente são visíveis as pegadas
descalças de uma pessoa. Se houvesse um narrador testemunhando a ação e participando dessa cena, por demais
íntima, poderia haver duas xícaras no desjejum, o que não ocorreu. Como o protagonista conta os fatos, este não
pode ver-se, mas vê e deixa suas marcas, as pegadas.
4.1.1 Ida e volta: ações autobiográficas
Quanto do autor há nessa história? Juarez Machado começou sua carreira como artista plástico e continua
atuante na área. Ele excursionou por canais de comunicação, para os quais produzia vinhetas e animações mudas.
Natural de Joinville (SC), viveu no Rio de Janeiro (RJ) por alguns anos e mudou-se para Paris (França), onde vive
até hoje. Possui residência lá e em Joinville.
Quem conhece e acompanha a carreira artística do autor do livro em foco e sabe um pouco sobre a sua vida
pessoal e sua personalidade encontra, ao analisar Ida e volta, um pouco do autor e de seus gostos. Irreverente,
costuma usar chapéus e bengalas. Machado (2004) diz que a pintura serve para seu deleite, para colorir sua vida.
Gosta de pintar a vida como uma festa, o amor e também a sensualidade feminina. Seus hábitos diários poderiam
bem ser os do protagonista de Ida e volta, isso porque o guarda-roupa da personagem tem muito do pintor, que
explora um tom de humor em suas imagens. No caso do guarda-roupa, as roupas são fantasias de marinheiro,
super-homem, executivo, e os acessórios são lenços, cachecóis, esqui, raquete de tênis, bola, bota de neve e tênis.
Ou seja, o protagonista é uma personagem de caráter leve, de bem com a vida. Na porta do guarda-roupa há figuras
de carros de corrida, de um ciclista e um retrato.
A bicicleta é um elemento forte na história (figura 75). Ela aparece na loja de bicicletas e quando o
protagonista sai para seu passeio de bicicleta e sofre um acidente curioso, que o leva novamente para ao banho, na
166
quarta capa do livro. A cidade onde Machado nasceu, Joinville, na época em que a história foi criada era a capital
das bicicletas, um elemento presente naturalmente na vida do autor. Além disso, o município fica próximo ao mar,
como o Rio de Janeiro, que tem vias acidentadas que levam a ele.
Figura 75 –Ida e volta
Fonte: MACHADO, 1985
O circo também se faz presente na sua pintura. O autor é um artista multifacetado e caminha por diferentes
linguagens artísticas inclusive pela dramaturgia, enfatizada por uma veia humorística e dramática, parte de seu
repertório na época em que o livro foi produzido.
O que se percebe após esse trajeto de idas e voltas pelas páginas da obra de Juarez Machado é que ela
permanece atual e aberta a novos olhares, após 35 anos de seu lançamento no Brasil. Essa característica de fato a
coloca como literária.
167
4.2 LEONARDO: INFORMATIVO, LITERÁRIO OU AMBOS?
Figura 76 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
As dúvidas para perceber a poesia que identifica uma narrativa visual como literária se tornam constantes,
principalmente quando se tem por princípio a posição sobre escritura literária descrita por Ponzio, Calefato e Petrilli
(2007, p. 221): “Se liberta da divisão dos papéis da vida real e da responsabilidade limitada a eles, não se submete à
regra do discurso funcional e produtivo [...]”. Por isso a escolha pela análise de uma narrativa com elementos
informativos, porém que mantenha o caráter poético. Entre os premiados da década de 1990 optou-se por Leonardo,
de Nelson Cruz, editado em 1997 pela editora Paulinas (figura 76), ganhador de uma nova versão em 2006 pela
editora Scipione. Para essa análise, preferiu-se a primeira versão, por ter sido ela a premiada.
168
Leonardo conta a história de um pintor, escultor e inventor chamado Leonardo. A bagagem de leitura do leitor
dirá quem é essa personagem pelas obras e pelos estudos representados nas imagens. Trata-se de Leonardo da
Vinci, que viveu na Renascença italiana. Num primeiro momento parece somente um livro informativo, porque traz
algumas das invenções, das pinturas e dos estudos de da Vinci. Após uma análise mais criteriosa, nota-se que o
livro vai além do informativo, a começar pelo enredo.
A história começa num parque de uma cidade qualquer, onde há uma estátua de um pintor sentado em uma
cadeira segurando uma paleta de pintura (figura 77). Quando o parque fecha, muitas aves e animais noturnos
encaminham-se para a estátua, que ganha vida e passa a contar suas invenções e seus estudos de anatomia,
desenho e pintura de quando vivia na Itália. Entre uma história e outra, um pássaro vermelho chama a atenção dela,
voltando rapidamente ao seu lugar de origem no parque e a ser apenas uma estátua do lugar.
Figura 77 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
169
O tempo da narrativa é o tempo real, em que está a estátua de Leonardo, e um tempo psicológico, narrado
pelo protagonista Leonardo, quando ele conta as histórias de seus grandes feitos. A marcação do tempo real da
narrativa para o psicológico é determinada pela presença dos pássaros, um especificamente, que avisa a estátua
que é hora de voltar ao parque.
Como o tempo da história se passa no âmbito real e psicológico, o lugar a que pertence a narrativa é um
parque de uma grande cidade de qualquer lugar do mundo onde se encontra a estátua. As imagens que mostram
Leonardo possivelmente em Florença vêm da imaginação (ou criação, lembranças) do protagonista. Portanto, é um
lugar em sua memória (figura 78).
Figura 78 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
As personagens da trama são a estátua de Leonardo, vários pássaros, os gatos, um gambá, os transeuntes
do parque e o guarda, que abre e fecha o parque. Todos eles pertencem ao tempo real da história. No tempo
psicológico, aquele narrado pelo protagonista, temos outras personagens: um jovem discípulo que ajuda o pintor e
170
cientista, os modelos vivos para suas investigações científicas e uma modelo para seus estudos da Monalisa, além
de muitos outros que convivem com Leonardo na cidade.
O narrador na história não é Leonardo, e sim um narrador onisciente, que sabe tudo o que acontece na
história e com as personagens, até mesmo a respeito de seus pensamentos. Já na capa do livro (figura 76) há uma
cena aérea panorâmica em que estão alguns pássaros voando sobre uma grande cidade. Ao virar a página
encontra-se a contra capa com o título da narrativa visual, um gato e um gambá correndo para dentro do livro. Na
página seguinte a cena vai se aproximando do chão, indo para um parque da cidade. Após aparecem os animais
com Leonardo, ele começa a narrar a história, e sabe-se que é ele quem narra, porque os pássaros é que o trazem
para a realidade.
Figura 79 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
171
Contudo existe outro narrador que conta toda a história nos dois tempos em que ela se passa. Ele sabe como
pensa Leonardo e coloca sua posição diante da história ao escolher o ângulo de enquadramento de cena mesmo
quando ela se passa num tempo psicológico, pois o narrador tem caráter intruso, ou seja, ele entra na mente da
personagem e continua escolhendo ângulos de visão diferenciados para mostrar as cenas.
Para materializar o enredo, Cruz optou pela técnica de aquarela aliada a outros materiais que reforçam a
textura do papel. Há a predominância de tons pastéis nas cenas, que são colocados ora ocupando as duas páginas
de espelho, ora dividindo-as em duas cenas paralelas que dizem respeito a uma cena panorâmica do acontecimento
e uma focalizada no objeto de interesse principal, que aparece recortado num fundo branco da página.
A maneira compositiva escolhida pelo autor a fim de criar pontos de tensão nas cenas foi o uso dos espaços
vazios em contraposição aos espaços cheios, ou seja, sempre com contrastes. Esse é o ritmo da narrativa,
predominantemente composto de linhas verticais e círculos, entre retângulos cheios e retângulos com grandes
vazios que conduzem o olhar do leitor para os pontos de interesse e servem de respiro para o olhar.
Leonardo ultrapassa o gênero informativo, pois Cruz agrega a ele uma pitada de humor que vem para quebrar
a seriedade dos fatos narrados pelo protagonista. Um bom exemplo está na cena em que a personagem principal
investiga os objetos inseridos num circulo perfeito, enquanto isso, uma tela enorme com um círculo desenhado sobre
um quadrado repousa ao fundo e um homem nu espera pacientemente o momento de posar para a pintura. Parece
que o autor quer mostrar o que está por vir: o famoso desenho do homem vitruviano29 (figura 80). Em outra cena
Leonardo faz estudos para Monalisa, e os esboços vão da Monalisa com rosto de caveira para outra com chifres e
bigode (figura 81). Essas escapadas humorísticas para as cenas dão leveza especial à história, conferindo-lhe algo
a mais do que maçantes informações sobre essa personagem da Renascença.
29
Desenho mais famoso da teoria matemática sobre a proporção corporal perfeita desenvolvida pelo arquiteto romano
Marcus Vitruvius.
172
Figura 80 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
Figura 81 – Leonardo
Fonte: CRUZ, 1996
173
Em Leonardo a investigação e o entendimento dos códigos imagéticos e o que representam dependerá do
nível leitor, no entanto não se aconselha subestimar a capacidade leitora de uma criança em fase de letramento,
pois seu olhar é aberto e, sendo assim, não possui representações imagéticas suficientes que possam tolher sua
mente criadora. Há sempre um porém ao rotular as faixas etárias as quais história se destina quando se trata de
narrativa visual. As crianças têm uma relação com a imagem que pode surpreender qualquer tentativa de
classificação. Ela existe, mas jamais é fechada.
4.3 A RAÇA PERFEITA: REFLEXÕES PÓS-MODERNAS
Figura 82 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
174
Alguns autores têm facilidade de transitar entre os universos infantil, infantojuvenil e adulto. Um exemplo é
Ângela Lago, que declara não saber mais qual é o seu público leitor principal, pois não faz narrativas visuais
pensando em quem as lerá. Seus temas são diversos: dos infantis aos contos, das poesias à critica social. Essa
conduta entra em concordância com o pensamento de Góes (1991, p. 3) ao esclarecer que não há muros que
separam leitores infantis dos adultos quando o assunto é literatura:
[...] Concluímos que literatura infantil é, antes de tudo, “literatura”, isto é, mensagem de arte, beleza e
emoção. Portanto, se destinada especificamente à criança, nada impede (pelo contrário) que possa
agradar ao adulto. E nada modifica a sua característica “literária” se, escrita para o adulto, agradar e
emocionar a criança.
Lago brinca com o leitor, e sua narrativa é de poeta, numa brincadeira de esconde e revela. Seus livros
pedem sempre uma nova leitura. Vez ou outra a autora aborda a temática social. Quando o faz, não minimiza uma
má ação nem açucara a personalidade das personagens. O bem e o mal têm as características potencializadas em
suas imagens. Assim é em Cenas de rua e A raça perfeita (figura 82). Este trata de um tema polêmico e atual:
pesquisas científicas com animais. A técnica de construção de imagem é outra, completamente diferente das que
Lago costuma utilizar.
É no livro de narrativa visual A raça perfeita, em parceria com Gisele Lotufo, que se procura refletir sobre a
forma de conceber essa obra, que contempla a escritura literária descrita por Ponzio, Calefato e Petrilli (2007) e os
elementos narrativos citados por Gancho (1991). Analisando a obra sob a óptica literária, ela possui todos os
elementos que a traduzem como gênero narrativo, a começar pelo enredo.
O trabalho conta a história de um cientista (que pode ser identificado como mulher, por uma inscrição
embaixo de sua mesa) que procura produzir em seu laboratório o cachorro cuja raça seria a perfeita e que poderia
lhe trazer muitas premiações pelo feito. À medida que transcorrem suas experiências de misturar as raças de
175
cachorros entre si e outros animais (borboleta), os erros vão aparecendo e sendo descartados na lata de lixo, até o
momento em que o cientista coloca vários cachorros em uma centrífuga, que pela alta velocidade mistura partes de
um cão com partes de outros, formando novos seres. Mas para chegar à raça perfeita, muitos sacrifícios se fazem
necessários (figura 83). O ápice da história acontece quando o cientista consegue criá-la. Prêmios são conquistados,
contudo a raça perfeita volta-se contra o seu criador e domina o meio, liderando o grupo de cobaias e conduzindo-as
a um novo começo (figura 84).
Figura 83 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
176
Figura 84 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
As personagens da história são um cientista, que aparece sempre com o rosto borrado, impossibilitando sua
identificação, e muitos cachorros cobaias. O espaço onde acontece o enredo é determinado por um laboratório de
pesquisas científicas num tempo atual, determinado pelos equipamentos laboratoriais. As autoras possivelmente
situam a história no Brasil, porque as únicas cores, o verde e o amarelo (presentes na capa, segunda e terceira capa
e no verso da quarta capa), são as cores da bandeira brasileira, colocadas como que para guardar a narrativa, que
se desenrola toda em fotografias em preto e branco (figura 85).
O narrador de A raça perfeita é onisciente e relata a cena de cima, à altura do cientista e de baixo. Há
momentos em que emite opinião, como quando o cientista joga na lata de lixo sob sua mesa os experimentos que
não deram certo. O enquadramento dessa cena é de baixo para cima, tornando possível ver uma inscrição, feita
com algo cortante no fundo do tampo da mesa, cujo desenho representa uma bruxa com nariz adunco e chapéu
acompanhado dos dizeres “mesa da bruxa”. Esse é um forte indício de que pode ser uma cientista (figura 87).
177
Figura 85 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
Figura 86 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
178
Figura 87 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
4.3.1 Procedimentos técnicos de construção da imagem: criando textos e dialogando com o enredo
As autoras escolheram uma técnica que traduz brilhantemente o tema gerador do enredo: imagens
fotográficas manipuladas. Elas são dispostas uma para cada duas páginas, tomando quase todo o espaço, restando
apenas uma fina moldura preta. Assim, a cada virada de página, uma nova ação dá continuidade ao enredo.
O título do livro, por sua vez, aparece com várias tipologias (figura 88), o que pode indicar a mistura, a
miscigenação. Além disso, a forma como ele aparece escrito pode sugerir tanto uma raça considerada perfeita como
uma a ser criada.
179
Figura 88 – Título do livro A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
Quanto ao protagonista da história, o cientista, ele é representado por uma personagem de jaleco branco e
rosto borrado. Sua identificação remete aos contos infantis e o coloca como a moderna bruxa, com seus
experimentos e poções. Esse é um fator fundamental para a interpretação do texto visual, já que a inscrição da
mesa é a representação estereotipada da bruxa (figura 87).
Os animais são tanto manipulados pelas autoras quanto pela cientista protagonista, mediante os recursos de
manipulação de imagem digital da época. Elas conduzem o enredo misturando e enfatizando expressões nos
cachorros, borrando o rosto do cientista, de maneira a ocultar a sua identidade.
180
Figura 89 – A raça perfeita
Fonte: LAGO; LOTUFO, 2004
No tocante ao tema gerador, o livro foi publicado em 2004 e lida com pesquisas científicas com animais,
podendo apresentar conotação de denúncia. Editou-se o volume num momento em que estavam em alta as
discussões sobre bioética, envolvendo células-tronco, quimeras entre humanos e animais, bem como o brincar de
Deus chegando cada vez mais perto da realização. Diz Westphal (2004, p. 46) a respeito:
Somos lembrados da proposta arquitetônica de Bauhaus, que possibilita a bricolagem como referencial
estético. Assim os seres vivos podem ser bricolados, apresentando exteriormente, ou não, um novo
design. A arte e a arquitetura pós-moderna trabalham com a superposição de realidades distintas, onde
seres virtuais e reais se confundem.
181
Semelhantemente, na biotecnologia, seres completamente diferentes, ontologicamente distintos, são
redesenhados e reconstruídos recebendo uma identidade diferente daqueles seres que lhe deram
origem.
O enredo suscita mais de uma analogia; pode falar sobre uma nova eugenia, ou seja, a criação do homem
perfeito fruto da bioengenharia. Sendo assim, essa análise promoveria grandes reflexões acerca da bioética em
pesquisas na contemporaneidade. Poder-se-ia caminhar também para uma reflexão quanto à soberania da ciência e
dos poderes instituídos que, acima da ética, procuram ao longo da modernidade e pós-modernidade dominar a
natureza (e nesta está o homem), tratando-a como objeto de exploração, ou ainda que a raça criada e tida como
perfeita para a cientista não passa de um vira-lata, isto é, um cachorro sem raça definida em virtude das inúmeras
misturas, como parece ser o animal que as autoras escolheram para representar a perfeição, lembrando talvez a
relação paradoxal do contexto de misturas raciais que formam o povo brasileiro.
A raça perfeita é um convite à reflexão, mas antes de tudo mostra que a narrativa visual em livros destinados
às crianças e aos jovens é uma linguagem que merece ser estudada por sua capacidade múltipla de leitura,
transcendendo os espaços destinados a ela, sendo capaz de ser lida como imagem pertencente à cultura visual ou
como gênero da literatura infantil, sendo interpretada de diferentes maneiras e por distintas culturas.
Não cabe aqui determinar soberanamente se esse livro é atrativo para crianças. O artista não deve se
preocupar com quem lerá sua obra. As opiniões divergem com frequência nesse meio literário infantil, afinal se sabe
que as obras destinadas aos pequenos são feitas por adultos. A cultura da infância possui suas especificidades e
possui etapas distintas dentro dela própria que não são somente físicas e temporais, mas, psicológicas também.
É possível dizer que dar livros com imagens e textos que reforcem estereótipos para as crianças é abrir
caminhos para que seu olhar permaneça nessa leitura estereotipada, o que estará no mínimo criando possibilidades
maiores de formatar o pensamento delas ao limitar seu potencial leitor.
182
As personagens dos livros para infância mudaram. Parece muito mais natural conviver com bruxas cientistas,
com lobos em crise financeira e existencial, com príncipes nem tão príncipes assim. Quanto à imagem narrativa, ela
é cúmplice do olhar descobridor da criança e aliada no processo (qualitativo) de formação leitora em qualquer idade.
Conclui-se com as três obras analisadas que, não importa qual é técnica empregada nem o tema abordado;
todas são literatura. Consistem em livros que mantêm as portas abertas para diversos olhares, e as escolhas feitas
para a leitura analítica deles não propiciam o fechamento das portas para novas leituras, fator considerado positivo.
Os caminhos escolhidos procuram buscar uma forma de contribuir para uma leitura mais global, porém sem perder
as especificidades da linguagem narrativa visual e verbal. O que se buscou foi manter o diálogo entre as linguagens,
de maneira imbricada e híbrida, condição necessária ao entendimento da paisagem cultural atual.
IMPRESSÕES DE UM PERCURSO
O caminho escolhido nesta investigação para abordar a narrativa visual na literatura
procurou examinar, num primeiro momento, quais são os primórdios dessa linguagem no objeto
livro e na arte narrativa. Observou-se também que há muitos séculos ela vem sendo utilizada como
instrumento de informação e de persuasão, como é o caso dos retábulos da Idade Média, das
biblias pauperum e das iluminuras.
A migração da narrativa visual para a literatura infantil parece um caminho natural. A
narrativa no contexto infantil apresenta a criança ao universo das linguagens impressas, contudo
seu caráter não é de informar, mas sim de oferecer-lhe o mundo, abrindo espaços de diálogo com aqueles que
ainda não foram expostos aos signos linguísticos e aos que buscam leituras do mundo em linguagens diversas.
Pôde-se constatar durante o percurso de estudo que a narrativa visual é uma linguagem em crescimento no
Brasil. Por isso, um recorte foi necessário para que a pesquisa pudesse contribuir mais efetivamente com o
entendimento do papel dessa linguagem para a cultura em geral. Percebe-se que os caminhos percorridos até aqui
possibilitam apenas mais um pequeno passo à frente no longo caminho que se abre para outros tantos na pesquisa
do referido gênero.
Ao analisar os títulos premiados, foi possível verificar que os ilustradores/autores brasileiros se preocupam
com os temas e as imagens que produzem para as crianças.
Os temas abordados nos livros avaliados demonstram que a narrativa visual no Brasil é uma linguagem que
dialoga com a cultura da infância, como as obras de Eva Furnari, as primeiras premiadas de Ângela Lago e as de
184
Cláudio Martins. Outros trabalhos entraram na complexidade estética da imagem, usando o máximo de
detalhamento no traço e na cor, fazendo referência a outros momentos da cultura da imagem, como o Rococó,
caracterizado pelo rebuscamento nos detalhes, e a estamparia oriental, caso de A bela e a fera e O rouxinol e o
imperador, contos tradicionais narrados em imagens por Rui de Oliveira e Taisa Borges, nessa ordem. Há aqueles
que utilizaram a informação como instrumento para fazer literatura, como Leonardo, de Nelson Cruz, e os que
traduziram em imagens o próprio ser e estar no mundo, como Ida e volta e Emoções, ambos de Juarez Machado.
Existem ainda aqueles que, antenados com os problemas éticos e sociais do país, abordaram de forma crítica e
poética temas polêmicos, a maneira de Cenas de rua e A raça perfeita, os dois de Ângela Lago, e também Seca, de
André Neves.
Todos esses assuntos mostram que os autores brasileiros de narrativas visuais seguem o exemplo sempre
atual de Monteiro Lobato, vendo as crianças com respeito, tratando-as de igual para igual. Isso sugere que tal
linguagem proporciona leituras de diferentes olhares: do olhar puro, mas perspicaz, da criança ao olhar menos puro
e menos ingênuo do adulto.
Depois de entender e contextualizar a narrativa visual no universo literário infantil notou-se que as
possibilidades de leitura vão além daquelas da cultura da infância. Sendo assim, essa leitura pode ser um
instrumento acessível para leitores que querem ir além da decodificação
na leitura, buscando entender os
elementos constitutivos da imagem, e também, por se materializar na forma de um dos gêneros mais comumente
compreendidos pela maioria dos leitores, o narrativo.
O presente estudo propôs-se a encontrar caminhos de leitura que contemplassem a situação atual vivida
pelas linguagens artísticas: o hibridismo. Ao analisar as obras Ida e volta, de Juarez Machado, Leonardo, de Nelson
Cruz, e A raça perfeita, de Ângela Lago, sob a óptica de Canclini (2000) a respeito da paisagem contemporânea
para as linguagens, concluiu-se que consiste em uma forma de leitura que contribui para mais um passo na leitura
185
analítica dessa linguagem, pois procura ver o livro como um todo. Todavia, é uma leitura que precisa de
aprofundamento, pois há raras pesquisas que contemplam em minúcias a leitura dessa linguagem. À frente disso
está Martins (1989) ,nos seus estudos de Ida e Volta, de Juarez Machado, e também Camargo (1995), que faz uma
leitura analítica de Outra vez, de Ângela Lago.
A narrativa visual na literatura infantil brasileira é assunto pouco debatido. Ao longo desta dissertação,
percebeu-se que são essenciais mais debates acerca do gênero. Poucos seminários e congressos abordam o tema,
porque há pouca informação sobre a linguagem, o que agrava sua situação. Existem muitos estudos quanto à
produção dos escritores para a infância no país, contudo no tocante à produção dos ilustradores pouco se sabe, “e
isto está fazendo falta”, como bem coloca Ana Maria Machado na introdução do livro de Oliveira (2008c) Pelos
jardins de Boboli.
Ao chegar às reflexões que finalizam este estudo, verifica-se que há muitas lacunas, que só se preencherão
com o auxílio de outros olhares a respeito do tema. Os recortes feitos aqui limitaram sua abordagem. Dezenas de
títulos com os quais se teve contato durante a pesquisa, que tanto instigaram a novas leituras do grupo de pesquisa
do qual a autora deste trabalho faz parte, ficaram de fora das análises.
Ser pesquisador é estar sempre em constante dúvida; como se tudo o que se leu ou pensou apenas
mostrasse caminhos, e, para percorrê-los, diferentes veículos e instrumentos precisam ser usados. Fica-se sempre à
procura de algo que conduza ao conhecimento sobre, nesse caso, a narrativa visual, porém, tendo a clareza de que
seu final está longe de ser visualizado. Muitas ferramentas de leitura serão fundamentais pelos caminhos a serem
ainda percorridos.
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MARIA LÚCIA COSTA RODRIGUES A NARRATIVA